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Mais
forte
Den
Starkare
August
Strindberg
* **
tradução
indirecta
do
francês
(Tage
Aurell
e
Georges
Perros )
e
do
espanhol
(Francisco
J.
Uriz )
de
Luís
Varela
Personagens:
Senhora
X,
actriz,
casada.
Menina
Y,
actriz.
Recanto
dum
café
para
senhoras;
duas
pequenas
mesas
em
ferro,
uma
banqueta
em
pelúcia
vermelha
e
algumas
cadeiras.
Entra
a
Senhora
X.
Roupas
de
Inverno
(chapéu
e
casaco
comprido);
um
elegante
cesto
japonês
nos
braços.
A
Menina
Y
está
sentada,
diante
duma
garrafa
de
cerveja
meio
vazia
e
a
ler
uma
revista
ilustrada;
mudará
frequentemente
de
revista.
Senhora
X:
-‐
Minha
querida
Amélia!...
Então,
aqui
sozinha
na
véspera
de
Natal
como
uma
pobre
solteirona?!
Menina
Y
(levanta
os
olhos,
meneia
a
cabeça
em
sinal
de
assentimento,
e
retoma
a
leitura).
Senhora
X:
-‐
Sabes,
faz-‐me
pena
ver-‐te
sozinha
num
café,
na
véspera
dum
dia
destes.
Faz-‐me
pensar
na
boda
que
vi
em
Paris,
num
restaurante
–
a
noiva
mergulhada
numa
revista
de
humor
e
ele
a
jogar
bilhar
com
as
testemunhas.
Disse
para
comigo:
se
começam
assim,
vão
ter
um
lindo
final.
Jogar
bilhar
no
dia
do
casamento!
E
ela
–
dás-‐te
conta?
–
estava
a
ler
a
revista.
Mas
há
uma
diferença.
(Entra
A
Empregada,
põe
uma
chávena
de
chocolate
diante
da
Senhora
X
e
depois
sai).
Senhora
X:
-‐
Sabes,
Amélia,
no
fundo,
penso
que
tinhas
feito
melhor
em
ficar
com
ele.
Lembra-‐
te
que
eu
fui
a
primeira
a
dizer-‐te:
perdoa-‐lhe.
Lembras-‐te?
Hoje
serias
uma
mulher
casada,
com
um
lar...
eras
uma
mulher
tão
feliz,
há
um
ano.
Voltavas
de
uma
visita
aos
pais
do
teu
noivo,
no
campo,
até
querias
deixar
o
teatro...
Pois
é,
querida
Amélia,
um
lar
é
mesmo
o
que
há
de
melhor
na
vida
-‐
depois
do
teatro
-‐
e
as
crianças,
sabes...
Mas
não,
tu
nunca
compreenderás.
Menina
Y
(faz
um
trejeito
de
desprezo
com
os
lábios).
*
Strindberg, August, Théâtre complet, vol.2, Paris, L’Arche, 1982.
**
Strindberg, August, Teatro escogido, Madrid, Alianza Editorial, 1982.
A Mais forte – August Strindberg (trad. Luís Varela)
Senhora
X:
(bebe
um
gole
de
chocolate,
abre
o
cesto
e
mostra
os
presentes
que
acaba
de
comprar.)
-‐
Vou
mostrar-‐te
o
que
comprei
para
as
crianças.
(mostra
uma
boneca.).
Olha
para
esta,
é
para
a
Lisa,
uma
boneca
que
mexe
os
olhos
e
a
cabeça,
já
reparaste?...
E
para
o
Maia,
uma
pistola
com
rolha.
(Carrega
a
pistola
aponta
para
a
Menina
Y
e
dispara.)
Menina
Y
(faz
um
gesto
de
horror).
Senhora
X:
-‐
Tiveste
medo?
Pensaste
que
eu
te
ia
matar,
hem?
Sim,
sim,
pensaste.
Que
tu
me
quisesses
matar
não
me
espantava,
uma
vez
que
te
fiz
mal,
ao
que
parece,
e
que
tu
não
esqueces.
Continuas
a
pensar
que
fui
eu
que
andei
a
intrigar
para
seres
despedida
do
Grande
teatro.
Mas
é
mentira,
claro,
nunca
fiz
nada
de
semelhante.
Oh,
e
depois,
para
quê
estar
aqui
a
insistir
no
assunto?
Tu
não
hás-‐de
mudar
de
opinião.
(Tira
do
cesto
um
par
de
pantufas
bordadas).
E
isto
é
para
o
meu
maridinho.
Com
tulipas
bordadas.
Detesto
estas
flores,
mas
ele
quer
tulipas
em
tudo.
Menina
Y
(lança
à
Senhora
X
um
olhar
irónico
e
curioso.)
Senhora
X
(com
uma
mão
dentro
de
cada
pantufa:).
-‐
Vês
os
pezinhos
pequenos
que
ele
tem,
o
meu
Bob?
Hem?
E
que
elegância
quando
anda!
Tu
nunca
o
viste
em
pantufas,
claro.
(A
Menina
Y
ri)
Repara.
(Faz
andar
as
pantufas
por
cima
da
mesa.)
Menina
Y
(ri
às
gargalhadas).
Senhora
X:
-‐
E
depois,
quando
se
enfurece,
bate
o
pé,
assim,
olha:
"Estupor
de
criadas,
quando
é
que
aprenderão
a
fazer
café?!
Foram
outra
vez
aquelas
idiotas
que
cortaram
mal
a
mecha
do
candeeiro."
E
depois
queixa-‐se
das
correntes
de
ar,
tem
frio
nos
pés:
"Caramba!
Está
um
frio
de
rachar!
Estas
imbecis
nem
o
lume
do
fogão
são
capazes
de
acender."
(Esfrega
a
sola
duma
pantufa
na
gáspea
da
outra.
Menina
Y
(ri
às
gargalhadas)
Senhora
X:
-‐
E
quando
ele
vem
para
casa
e
se
põe
à
procura
das
pantufas
que
a
Maria
meteu
debaixo
da
cómoda.
Oh,
não
está
certo
troçar
assim
do
seu
maridinho!
Ele
é
muito
meiguinho,
e
é
um
maridinho
tão
bom...
Precisavas
dum
assim,
Amélia.
De
que
é
que
te
estás
a
rir?
Diz.
Vá.
E
depois,
eu
sei
que
ele
me
é
fiel,
estás
a
ver;
sim,
sim,
sei
muito
bem.
Foi
ele
mesmo
-‐
o
que
é
que
é
tão
engraçado?
-‐
foi
ele
mesmo
que
me
contou
como
a
galdéria
da
Frederica
tentou
seduzi-‐lo
quando
eu
estava
em
digressão
na
Noruega.
Já
viste
o
descaramento?
(Um
silêncio.)
Se
ela
se
tivesse
atrevido
comigo
cá,
arrancava-‐lhe
os
olhos.
(Um
silêncio.).
Estou
bem
contente
por
ter
sido
o
Bob
a
dizer-‐me;
detesto
mexericos.
(Um
silêncio.)
Mas
a
Frederica
não
foi
a
única,
sabes?
Não
compreendo,
as
mulheres
estão
completamente
embeiçadas
pelo
meu
marido.
Devem
pensar
que
lá
porque
ele
está
no
ministério
tem
alguma
coisa
a
ver
com
os
contratos
do
teatro.
Tu,
se
calhar,
também
lhe
andaste
a
correr
2
A Mais forte – August Strindberg (trad. Luís Varela)
atrás.
Antigamente,
também
não
me
inspiravas
confiança...
mas
agora
sei
que
ele
nunca
esteve
interessado
em
ti
e
sempre
tive
a
impressão
que
tu
lhe
querias
mal
por
isso.
(Um
silêncio.
Olham-‐se,
embaraçadas).
Senhora
X:
-‐
Por
que
não
vens
a
nossa
casa,
esta
noite,
Amélia?
Vá,
ao
menos
para
me
provar
que
não
estás
zangada
connosco,
ao
menos
que
não
estás
zangada
comigo.
Não
sei
porquê,
mas
não
gosto
de
estar
de
candeias
às
avessas,
sobretudo
contigo.
Talvez
porque
da
outra
vez
eu
me
atravessei
no
teu
caminho...
(cada
vez
mais
devagar)
...
ou...
não,
na
verdade
não
sei...
no
fundo,
porquê?
(Um
silêncio.)
Menina
Y
(observa
a
Senhora
X
com
curiosidade).
Senhora
X
(pensativa:)
-‐
Foi
tão
curiosa,
a
maneira
como
nos
conhecemos...
Da
primeira
vez
que
te
vi,
meteste-‐me
medo,
tanto
medo
que
eu
nem
me
atrevia
a
perder-‐te
de
vista
por
um
instante.
Arranjei
sempre
maneira
de
estar
perto
de
ti,
e
como
não
me
atrevia
a
ser
tua
inimiga,
fiz-‐me
tua
amiga.
Mas
de
cada
vez
que
vinhas
a
nossa
casa,
sentia
uma
espécie
de
mal-‐estar
porque
reparava
bem
que
o
meu
marido
não
te
suportava;
sentia-‐me
esquisita,
como
quando
se
usam
roupas
que
foram
feitas
para
outra
pessoa
-‐
e
fazia
tudo
para
ele
ser
simpático
contigo;
sem
resultado,
de
resto,
até
ao
dia
em
que
tu
anunciaste
o
teu
noivado.
Então
vocês
tomaram-‐se
duma
violenta
amizade
um
pelo
outro,
até
parecia
que
finalmente
se
atreviam
a
mostrar
os
vossos
verdadeiros
sentimentos
uma
vez
que
tu
estavas
em
segurança
-‐
e
o
que
é
que
aconteceu,
então?...
Eu
não
fiquei
com
ciúmes,
é
estranho...
e
lembro-‐me
do
baptizado,
tu
foste
a
madrinha
do
nosso
filho,
eu
obriguei-‐o
a
dar-‐te
um
beijo
-‐
e
ele
beijou-‐te,
mas
tu
ficaste
tão
perturbada...
Na
altura,
não
liguei...
depois
também
não...
não...
só
agora
(Levanta-‐se
bruscamente.)
Porque
é
que
não
dizes
nada?
Nem
uma
palavra
desde
que
cheguei,
deixas-‐me
para
aqui
a
falar
sozinha.
Olhas
para
mim
e
fazes-‐me
desfiar
todos
estes
pensamentos
que
eu
julgava
mortos,
como
quem
desfia
um
casulo
de
seda...
estes
pensamentos...
estas
dúvidas,
talvez...
deixa-‐me
ver
se
percebo.
Porque
é
que
rompeste
o
teu
noivado?
Porque
é
que
nunca
mais
voltaste
a
nossa
casa
desde
essa
altura?
Porque
é
que
não
queres
vir
passar
a
consoada
connosco?
Menina
Y
(
faz
como
se
fosse
para
falar).
Senhora
X:
-‐
Cala-‐te.
Não
vale
a
pena
falares.
Agora
percebi
tudo,
sozinha.
Era
por
isto,
por
aquilo
e
por
aqueloutro.
Sim,
sim.
Tudo
se
explica.
Então
é
isso?...
Que
nojo!...
Não
quero
ficar
nem
mais
um
minuto
à
tua
mesa.
(Leva
as
coisas
dela
para
outra
mesa.)
Então
era
por
isso
que
eu
tinha
absolutamente
que
bordar
tulipas
nas
pantufas
dele,
eu
que
detesto
tulipas:
porque
tu
gostavas
de
tulipas;
é
por
isso
(atira
as
pantufas
para
o
chão.)
que
nós
tínhamos
que
passar
o
Verão
no
lago
porque
tu
não
3
A Mais forte – August Strindberg (trad. Luís Varela)
suportavas
o
ar
do
mar.
É
por
isso
que
o
meu
filho
tinha
que
se
chamar
Eskil,
porque
era
o
nome
do
teu
pai.
É
por
isso
que
eu
tive
que
vestir-‐me
com
as
tuas
cores,
ler
os
teus
autores,
comer
os
teus
pratos
favoritos,
beber
o
que
tu
bebias...
o
teu
chocolate,
por
exemplo;
é
por
isso;
ó
meu
Deus,
é
horrível!...
Quando
penso
nisso,
que
horror!...
Tudo,
tudo,
passaste-‐me
tudo,
até
as
tuas
manias...
A
tua
alma
meteu-‐se
na
minha,
como
uma
lagarta
numa
maçã,
e
corroeu
tanto,
escavou
tão
bem
que
já
só
resta
a
casca
com
um
pouco
de
farinha
negra
dentro.
Queria
fugir-‐te;
não
conseguia.
Estavas
sempre
presente,
como
uma
serpente,
fixando
em
mim
os
teus
enormes
olhos
negros,
e
eu
estava
como
que
enfeitiçada...
sentia
as
asas
abrirem-‐se,
mas
era
só
para
me
arrastarem
ainda
mais
para
o
fundo;
eu
estava
dentro
de
água,
com
os
pés
amarrados,
e
quanto
mais
os
meus
braços
se
debatiam
para
nadar,
mais
me
afundava,
cada
vez
mais
e
mais,
até
atingir
o
fundo
onde
tu
me
esperavas
como
um
caranguejo
gigante,
de
pinças
abertas...
aí
está
ao
que
eu
cheguei.
Oh,
meu
Deus,
odeio-‐te,
odeio-‐te!
E
tu,
tu
para
aí
estás,
sem
uma
palavra,
calma,
indiferente;
chova
ou
faça
sol,
seja
Natal
ou
Ano
Novo,
estejam
os
outros
felizes
ou
infelizes,
para
ti
é
indiferente;
és
incapaz
de
amar
ou
de
odiar;
imóvel
como
uma
cegonha
à
espreita
dum
ninho
de
ratos;
não
eras
capaz
de
apanhar
a
tua
presa,
nem
de
a
perseguir,
apenas
de
ficar
à
espreita,
de
a
espiar
pacientemente.
E
aí
estás
tu
sozinha
no
teu
canto
-‐
sabes
que
lhe
chamam
ninho
de
ratos
por
causa
de
ti?
-‐
a
leres
o
jornal
para
saberes
se
alguém
está
com
problemas,
ou
fica
na
miséria,
ou
é
despedido
do
teatro;
e
tu
aí,
à
espreita
de
vítimas,
calculando
as
tuas
hipóteses,
como
o
piloto
os
seus
naufrágios,
é
aqui
que
tu
esperas
que
te
venham
pagar
o
tributo!
Minha
pobre
Amélia!
Olha,
apesar
de
tudo
fazes-‐me
pena,
porque
eu
sei
bem
que
és
infeliz
como
todas
as
pessoas
ofendidas,
e
perversa
porque
te
feriram...
Gostava
de
te
querer
mal
e
não
sou
capaz...
Sim,
toda
essa
história
com
o
Bob,
é-‐me
indiferente...
Que
mal
é
que
isso
me
pode
fazer?
Teres
sido
tu
ou
outra
qualquer
a
ensinar-‐me
a
beber
chocolate,
ora!
Vai
dar
ao
mesmo...
(Bebe
um
gole.
Com
ar
entendido.)
De
resto,
o
chocolate
é
muito
bom
para
a
saúde.
E
se
aprendi
a
vestir
bem
graças
a
ti,
tant
mieux...
o
meu
marido
fica
mais
preso
a
mim...
e
nesta
batalha
tu
foste
perdendo
à
medida
que
eu
ia
ganhando...
Sim,
a
julgar
por
alguns
sinais,
tu
já
o
perdeste...
Mas
tu
com
certeza
que
não
pensavas
que
eu
me
iria
embora...
como
tu
própria
o
fizeste?
Como
deves
estar
arrependida...
Pois
bem,
não,
não
irei
até
esse
ponto...
não
se
deve
ser
mesquinho,
sabes?
Porque
é
que
eu
hei-‐de
ter
que
me
contentar
com
os
restos
dos
outros?
Ao
fim
e
ao
cabo,
agora,
sou
provavelmente
eu
a
mais
forte...
Nunca
recebeste
nada
de
mim,
nunca
te
dei
nada
e
tu
deste-‐me
tudo
sem
o
saberes...
Eu
sou
como
o
ladrão
nocturno
do
conto...
Quando
acordas,
sou
dona
de
tudo
o
que
te
falta.
Como
se
explica
que
tudo
se
tenha
tornado
insignificante,
estéril,
nas
tuas
mãos?
Com
todas
as
tuas
tulipas
e
todas
as
tuas
paixões,
não
foste
sequer
capaz
de
preservar
o
amor
dum
homem,
e
eu
fui.
Os
teus
queridos
autores
não
te
ensinaram
a
arte
de
viver;
a
mim,
sim.
Tu
não
tiveste
um
pequeno
Eskil,
apesar
de
ser
o
nome
do
teu
pai.
E
porque
é
que
nunca
dizes
nada,
porque
é
que
ficas
muda
como
um
peixe?...
Sim,
no
princípio,
pensava
que
era
um
sinal
de
força...
mas
provavelmente
é
só
que
tu
4
A Mais forte – August Strindberg (trad. Luís Varela)
não
tens
nada
para
dizer.
Que
não
passas
dum
odre
vazio.
(Levanta-‐se
e
apanha
as
pantufas.).
Agora,
vou
para
casa...
com
as
tulipas...
sim,
com
as
tuas
tulipas.
Não
foste
capaz
de
aprender
nada
com
os
outros,
de
te
vergares...
e
partiste-‐te,
como
uma
cana
seca.
Mas
eu
não,
eu
não.
Obrigada,
Amélia
por
todas
as
tuas
lições.
Obrigada
por
teres
ensinado
o
meu
marido
a
amar.
Vou
para
casa,
para
desfrutar
dele,
para
o
amar
muito.
Sai.