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2021
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HORRANA PORFIRIO SOARES
SÃO PAULO
2021
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação na Publicação
Serviço Técnico de Biblioteca
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
Catalogação na Publicação
Serviço Técnico de Biblioteca
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
Palavras-chave:
história do design; afrocentricidade; design afro-brasileiro; afro-design.
Abstract
In order to overcome an anti-black racism narrative, and to be able to include the
African-brazilian population in its historical role in the development of material
cultural and design in the country, this project aims to analyze aspects of the his-
torical and apistemological origins of design, and show the development of arti-
facts produced by black hands.
This work was structured seeking to align visions of material culture using as
basis the method inserted in the Afrocentricity paradigm named location, elabo-
rated mainly by the philosopher Molefi Kete Asante. From the perspective of this
method, this work seeks to present a narrative that presupposes the agency of the
Afro-brazilian people and their contribution to design field, thus aiming to make
it a space that can be built new ways of thinking and designing, without reprodu-
cing oppressive vices of colonization.
Since design is a broad area of activity,
with numerous artifacts, interfaces and
systems, the main areas covered will relate to the period before the formaliza-
tion of design as a discipline and profession in Brazil, emphasizing the bridges
between these and the directly connected productions in contemporary times,
which include: work with mining and metallurgy, clothing - which includes textile
technologies and jewelry - and an analysis of the Black Press period and the first
steps of typography among black people in Brazil, highlighting designers from
each period and their contribution to the development of technique, technology
and its impact on the history of design.
Key words:
history of design; afrocentricity; afro-brazilian design; afro-design.
Lista de ilustrações
Figura 1. Capa do mini documentário Emory Douglas: The art of the Black Panthers 19
Figura 2. Foto da primeira apresentação do “Cadê os pretos no Design?” no 27º Encontro Nacional
de Estudantes de Design — N CWB 2017. 20
Figura 3. Montagem Victor Martz e capa O Mundo Mágico dos Anhangás, 2017. 22
Figura 4. Dupla do projeto O mundo Mágico dos Anhangás, com conteúdo, diagramação e ilustra-
ções feitas pelo designer Victor Martz, 2017. 23
Figura 5. Designer Amanda Grigorio durante o N Design Curitiba, 2017. 24
Figura 6. Matheus J.J. durante a primeira apresentação do Cadê os pretos no Design? no N Curitiba,
2017. 25
Figura 7. Complexo de funções do design, elaborado por Victor Papanek. 43
Figura 8. Instalação “Ensino no design: por quem, para quem?”no Centro de Cultura e Extensão
Maria Antônia. 54
Figura 9. Detalhe a Instalação no Centro de Cultura e Extensão Maria Antônia. 56
Figura 10. Diagrama da ideologia cultural europeia elaborado por Marimba Ani. 59
Figura 11. Ilustrações de ofícios negros: marcenaria e sapateiro (autor desconhecido, 1829). 71
Figura 12. Carpinteiro, por Almeia Júnior. Óleo sobre madeira, 1894. 72
Figura 13. Capas de disco projetadas pelo designer baiano J. Cunha para o bloco de carnaval Ilê Aiyê
e para o Trio Elétrico Tapajós. 74
Figura 14. Logotipo do Grupo Cultural Olodum, por João Silva. 74
Figura 15. Logotipo para o ex-presidente Fernando Collor de Mello, por João Silva. 75
Figura 16. Pesos de ouro de origem Akan. 77
Figura 17. Bateia, século XIX. 78
Figura 18. Detalhe de bateia, século XIX. 80
Figura 19. Detalhe de Castiçal, século XIX. 82
Figura 20. Enxó, século XIX. 83
Figura 21. Detalhe de portão de ferro, século XIX. 84
Figura 22. José Adário dos Santos, ou Zé Diabo trabalhando. 85
Figura 23. Ossain, feito por José Adário dos Santos. 87
Figura 24. Esboço de Ossain, feito por José Adário dos Santos. 88
Figura 25. Ferramentas dos Orixás, por José Adário dos Santos. 89
Figura 26. Retrato de Baiana, por Guilherme Gaensly. Década de 1880. 91
Figura 27. Alakás. 93
Figura 28. Desenhos explicativos dos modos de usar o alaká. 94
Figura 29. Mestre Abdias. 95
10
Figura 30. Mestre Abdias trabalhando no tear. 96
Figura 31. Pulseira de crioula com três placas. Século XIX. 97
Figura 32. Colares e figas. Ourom marfim, coral e ônix. Século XIX. 99
Figura 33. Pulseiras com balangandãs. Ouro, coral, osso, ônix, marfim, esmalte e pasta de vidro.
Século XIX-XX. 100
Figura 34. Balangandãs. Prata, madeira e osso. Século XIX. 101
Figura 35. Bilhete postal: Uma crioula da Bahioa, Brazil. 103
Figura 36. Peças de roupas produzidas por Goya Lopes. 105
Figura 37. Aku’aba. 106
Figura 38. Panos de posse do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1998. 107
Figura 39. Adinkras e seus significados. 109
Figura 40. Adinkra Denkyem. 110
Figura 41. Ilustração Arte do Cotidiano, por Goya Lopes. 111
Figura 42. Uso da Samakaka na coleção Xica Manicongo, por Isaac Silva. 112
Figura 43. Maria Clara Araújo, primeira travesti à ingressar na Universidade Federal do Pernambuco,
posando para o lookbook da coleção Xica Manicongo. 113
Figura 44. Modelos posam para coleção Minha pele costura minha história, de Jal Vieira. 115
Figura 45. Cabeçalho do periódico O Homem de Côr, 1833. 116
Figura 46. Edição nº 83 de A mulher do Simplício ou a Fluminense Exaltada (1846) e Edição nº 1 de
A Marmota na Corte (1849). 120
Figura 47. Folha de Rosto do livro Desencantos, por Machado de Assis e periódico semanal A Gri-
nalda, 1861. 121
Figura 48. Edições 1, 3 do periódico O Menelik: Órgão mensal, noticioso, literário e crítico dedicado
aos homens de cor, 1915 - 1917. 123
Figura 49. Jornais O Bandeirante (1918) e O Alfinete (1918). 124
Figura 50. Primeira edição de O Clarim (que se tornaria posteriormente em O Clarim da Alvorada),
1924. 126
Figura 51. Edição nº12 de O Clarim da Alvorada, 1925, edição nº 18 de A Liberdade, 1920. São Paulo
- SP. 127
Figura 52. Edição nº 48 do jornal Alvorada, de Pelotas - Rio Grande do Sul e Edição nº 6 do jornal
Auriverde, 1928, de São Paulo. 128
Figura 53. Edições do jornal A voz da Raça, da Frente Negra Brasileira. 129
Figura 54. Edição nº 14 do jornal Alvorada, da Associação dos Negros Brasileiros. 130
Figura 55. Dupla da 1ª Edição do jornal Quilombo, por Abdias do Nascimento, Rio de Janeiro. 131
Figura 56. Capa da 1ª Edição do jornal Quilombo, por Abdias do Nascimento, Rio de Janeiro. 132
Sumário
Agradecimentos 6
Resumo 8
Abstract 9
Capítulo 1. Motivações 14
Tembo 15
Hipóteses e perguntas 39
Resultados da localização 65
12
Capítulo 5. Localizando os pretos no design 68
Contribuição preta para o design 69
13
Capítulo 1
Motivações
Tembo
Ser uma leitora precoce me incentivou a ler todo e qualquer conjunto de palavras
que se colocasse diante dos meus olhos. Quando eu tinha quatro para cinco anos
de idade, lembro-me perfeitamente de estar diante de um livro de ciências que
falava sobre o estilo de vida de diversos animais, e em como fiquei apaixonada
pelo comportamento dos elefantes.
Os tembo (elefante na língua swahili) saltaram sobre os olhos daquela pequena
de quase cinco anos de idade por causa de sua inteligência, memória, mas sobre-
tudo a sua capacidade de desenvolver laços de afeto e empatia. Eles são capazes
de guardar memórias de cunho social e ecológico, que auxiliam em sua sobrevi-
vência; conseguem, depois de anos, reconhecer indivíduos de sua espécie e de
outras; são capazes de construir ferramentas simples, manipulando objetos de
pequeno até grande porte para diversas finalidades; e tem compreensão da morte
e até possuem alguns “rituais” de passagem.
Sem muito contato com o mundo fora do meu núcleo familiar quando criança, eu
achava os tembo muito parecidos com os humanos, e aquilo me fascinava absur-
damente.
Com cinco anos, já na escola e agora convivendo com as estruturas sociais fora
da minha própria casa e vizinhança, aprendi duas coisas: a primeira, foi desenhar
elefantes e outras coisas que me interessavam. A segunda, não tão feliz, era que
os humanos não eram muito parecidos com os tembo.
Fiquei obcecada por desenhar elefantes assim que aprendi. A obsessão passava
pela vontade de representá-los à altura da sua grandiosidade a todo custo, e
foram horas e horas dedicadas em frente à uma lousinha que ficava no quintal
de casa estudando sua anatomia, nos seus mais variados ângulos. Não fazia ideia
15
do que era design, nem mesmo o que era arte, mas sabia com toda a certeza que
eu queria desenhar elefantes o resto da minha vida. Ter o desenho como base
para qualquer coisa que eu fizesse foi a premissa para a escolha de uma profissão
quando tinha meus quinze anos. Não foi difícil encontrar o design e me apaixonar
por ele, e nas possibilidades que ele poderia me proporcionar.
A chegada na faculdade de design como a única mulher negra matriculada no
curso naquele período me forçou a olhar novamente para a história que me levou
ao design e quais eram os próximos passos a partir daquele dado. As perguntas
que me fiz, sendo uma delas título deste trabalho, resultaram num projeto de vida
que começa a se materializar aqui, e visa colocar em prática os princípios que tão
jovem aprendi com os tembo: a importância da memória para a sobrevivência; a
capacidade de utilizar elementos do meio a favor do fortalecimento do grupo; e
mais importante: prezar pela vida e memória dos meus.
Como Beatriz Nascimento “eu sou preta, penso e sinto assim”. Sou parte do todo
que carrega na marca a herança histórica que constrói na identidade manter-se
vivo. Que não pertence aos espaços que nos foram negados por tanto tempo,
sobretudo o design e a universidade, mas é parte intrínseca da história obliterada,
àquela que fomos esquecendo.
Manter vivo se traduz neste trabalho como a persistência da memória do povo
africano (no continente e diáspora) no que tange a sua contribuição técnica e
intelectual nos termos do design, apesar da estrutura racista que fundamenta
a nossa sociedade. Este projeto é baseado em um passo anterior ao desenho: a
ânsia de sermos mais tembo por um lado, e um profundo desejo de me reconhe-
cer em histórias que não sejam exclusivamente contadas sob a ótica da opressão.
Apesar da discussão sobre o racismo estrutural ser crucial para este projeto, julgo
16
ser essencial a compreensão de que as pessoas africanas e seus descendentes não
são resultado exclusivo da opressão que sofrem. Por milênios os africanos con-
tribuíram para o desenvolvimento da tecnologia e da intelectualidade na história
da humanidade, influenciando diretamente as referências que se impõem como
exclusivamente europeias hoje. Somente nestes últimos quinhentos anos, a his-
tória desta contribuição foi recontada e resumida à um povo que foi escravizado,
sofrendo as consequências de uma das ações mais brutais e devastadoras contra
seres humanos já vista. Diante disso, é importante adiantar: assimilar este pro-
jeto como uma reação ao racismo apenas, é anular a compreensão que a história
deste povo também foi de contribuição epistemológica para humanidade, e esse
período foi muito maior que os séculos de escravidão que nos precede.
Por fim, a linha do tempo desta história que começou com meus cinco anos, tem
hoje vinte e cinco. Neste trabalho, além das tentativas de contar a história sob
uma nova perspectiva e buscar a visibilidade do povo preto na área que amo,
reside o que tenho aprendido com a criança que começou essa história dese-
nhando um futuro através de elefantes. Tembo, muito mais que uma tradução
pretensiosa para uma língua africana, trata-se de um termo para o resgate de
princípios adormecidos dentro da lógica eurocêntrica de mundo, que enquanto
designers temos urgência em revisitar e ressignificar.
Espero que cada página seja um passo para a realização de ser, em essência,
tembo. Que possamos manter a lembrança dos nossos passos viva para seguirmos
em frente.
17
Como tudo começou
O que motivou o desenvolvimento deste trabalho teve início no ano de 2015. A
Universidade de São Paulo estava envolvida nas discussões sobre a importância
de cotas raciais na universidade, analisando seus desafios e implicações. Diversos
coletivos e entidades acadêmicas estudantis se debruçaram sobre a questão, e o
surgimento de entidades como a Ocupação Preta1 dificultou para que o assunto
passasse despercebido. Este era o plano de fundo do dia em que eu descobri ser a
única mulher negra do curso de design matriculada naquele período.
Além dessa descoberta, discutimos sobre a inexistência de professores negros na
minha unidade de ensino; a faculdade possuía em média mil e trezentos alunos,
mas a quantidade de estudantes negros não chegava a uma centena. Levantei por
fim, uma última pergunta: quantos designers negros eu conheço?
Fui assombrada por essa pergunta até o ano seguinte (2016), quando me foi apre-
sentado o mini-documentário Emory Douglas: The art of The Black Panthers2.
Emory Douglas foi ministro da cultura do Partido dos Panteras Negras3 do início
ao fim do partido, mas antes disso era formado em design gráfico pela City Col-
lege of San Francisco (Faculdade da Cidade de San Francisco). O Sr. Douglas foi
responsável pelo projeto gráfico dos jornais e cartazes distribuídos para as comu-
nidades negras entre os anos 1968 e 1982, e a linguagem por ele estabelecida mar-
1. Ocupação Preta foi um coletivo de pessoas negras (majoritariamente estudantes) que surgiu
na USP em 2015. Esse grupo tinha como tática ocupar salas de aula para falar sobre a importância
de cotas raciais.
2. Disponível em <https://vimeo.com/128523144>. Acesso em abril de 2020.
3. O Partido dos Panteras negras (em inglês, Black Panther Party) foi uma organização revolu-
cionária em prol de direitos civis para a população negra dos EUA, atuando a priori como uma pa-
trulha armada nas comunidades negras, e posteriormente foram responsáveis por uma série de
programas sociais, como distribuição de alimentos, escolas e etc. Um dos principais meios de ar-
recadação de recursos era a venda de jornais, principal espaço de atuação de Emory Douglas.
18
Figura 1.
Capa do mini documentário Emory Douglas: The art of the Black Panthers
cou a época de lutas por direitos civis dos negros, reconhecida até hoje por seu
caráter provocativo e sua autenticidade.
Após este filme e de repetir a pergunta anterior incansavelmente em diversos
espaços, nasceu o projeto “Cadê os pretos no design?”, onde inicialmente foi
pesquisado alguns designers negros em diversas áreas de atuação sem nenhuma
distinção de território, tampouco alguma análise muito profunda de sua atuação
ou dos artefatos desenvolvidos por eles. A priori, este projeto tinha como objetivo
trazer nomes, apresentar uma lista com uma quantidade razoável de designers
negros, e também fazer uma discussão, mesmo que rasa, sobre os impactos do
racismo sobre nossas referências no campo do design.
O “cadê os pretos no design?” foi desenvolvido primariamente para ser uma ativi-
dade estudantil. Esta era dividida em duas partes: a primeira, um seminário breve
19
Figura 2.
Foto da primeira apresentação do “Cadê os pretos no Design?” no 27º Encontro Nacional de Estu-
dantes de Design — N CWB 2017. Fonte: Acervo N Design
20
com reflexões iniciais e algumas referências no campo do design. A segunda,
a partir das reflexões e provocações apresentadas na parte anterior, o formato
mudava para uma roda de conversa, em que os estudantes agora poderiam com-
partilhar as suas próprias reflexões e experiências acadêmicas e de mercado den-
tro do tema. Não existia qualquer restrição de público para a atividade, ou seja,
não era uma atividade exclusiva para pessoas negras. Contudo, ela foi desenvol-
vida para dialogar com esse público em particular.
Embora a atividade tenha começado num evento estudantil dentro da própria
FAU durante a semana estudantil nomeada “Ocupa Museu” em 2017, ela tomou
corpo de fato durante o 27º Encontro Nacional de Estudantes de Design em
Curitiba durante as férias de inverno de 2017, conhecido como N CWB 2017. A
primeira parte da atividade foi trabalhada sob a perspectiva de três eixos de refle-
xão: representatividade, visibilidade e empoderamento – sendo o eixo represen-
tatividade o mais proeminente entre eles. A proposta de guiar a discussão a partir
desses eixos intencionava um aprofundamento desses termos, identificados como
conceitos esvaziados e rasos por uma série de fatores históricos e políticos.
O mundo globalizado que tomou forma a partir da queda do projeto comunista e do fim
da Guerra Fria é um mundo hegemônico não somente do ponto de vista econômico e
político, mas também (e sobretudo) do ponto de vista ideológico. Embora se apresente
como um mundo anti-ideológico - aliás, como o mundo do fim das ideologias -, na
realidade ele massifica e difunde globalmente uma cultura ideológica que se apresenta
como inclusiva. Trata-se da imagem fracionada de uma diversidade rasa e fácil,
transmitida nos pulsos eletrônicos dos meios de comunicação de massa, incapaz de
remeter à riqueza e à profundidade das diferentes culturas e experiências históricas.
Moore, 2009
21
Na primeira parte dessa atividade, os designers negros apresentados eram majo-
ritariamente estrangeiros exceto dois, e ambos contribuíram para o Movimento
Estudantil de Design no Brasil: Victor Martz e Amanda Grigorio4. Sendo a ati-
O MUNDO
MÁGICO
DOS
ANHANGÁS
Material Didático Complementar para Educação Física
no 5º ano no Ensino Fundamental que promove
a diversidade sexual e a igualdade de gênero
Complementary Didactic Material for Physical Education in the 5th year
in Elementary Education that promotes sexual diversity and gender equality
Figura 3.
Montagem Victor Martz e capa O Mundo Mágico dos Anhangás, 2017. Fonte: Imagens concedidas
pelo designer.
4. Victor Martz é designer formado pela FAU USP, foi um dos organizadores do 25º Encontro Na-
cional dos Estudantes de Design em São Paulo, 2015, e desenvolveu o projeto “O mundo mági-
co dos Anhangás – Material Didático Complementar para Educação Física no 5º ano do Ensino
Fundamental que promove a diversidade sexual e a igualdade de gênero”. O projeto foi baseado
numa pesquisa profunda sobre as relações de gênero e sexualidade, e propôs um material didá-
tico complementar para as aulas de Educação Física especificamente, por ser uma ambiente co-
nhecido por construção de inseguranças e bullying, além de ser de domínio hétero-masculino.
Amanda Grigorio é designer, artista e ilustradora natural de Curitiba que organizou e participou
de dezenas de encontros estudantis de design. Construiu atividades e conversas acerca da an-
cestralidade africana em contraposição à visão escravagista que se tem da participação negra
na sociedade. Durante o R Floripa 2017, a palestra “Eu, diáspora” trouxe uma leitura da história do
racismo e um dos elementos da Unidade Cultural Africana, o Ubuntu. A palestra foi integrada com
a atividade “Cadê os pretos no Design?”.
22
Figura 4.
Dupla do projeto O mundo Mágico dos Anhangás,
com conteúdo, diagramação e ilustrações feitas pelo
designer Victor Martz, 2017. Fonte: Imagem concedi-
da pelo designer.
Figura 5.
Designer Amanda Grigorio durante o N Design Curitiba, 2017. Fonte: Acervo N Design
24
comunidade (Cheick Diallo e Aïssa Figura 6.
Matheus J.J. durante a primeira apresentação do
Dione); questões de gênero e repre-
Cadê os pretos no Design? no N Curitiba, 2017.
sentatividade (Eddie Opara e Victor Fonte: Acervo N Design
Martz).
Uma das conclusões decisivas para o
andamento deste projeto durante o N
CWB 2017, foi a necessidade de construir
narrativas com termos e referências
próprios, e um aprofundamento teórico
das relações étnico-raciais na diáspora,
sobretudo no Brasil. Embora houvesse
um consenso de que a as referências
dentro do campo do design já estabelecidas não fossem ruins, elas se mostraram
limitadas para as conjunturas apresentadas por todos na atividade, inclusive os
não-negros. Os motivos dessa falta de identificação com boa parte das referências
cujas o acesso era mais abundante não ficaram óbvias durante a atividade. Mas
até onde se pôde perceber, o fator cultura se mostra fundamental para repensar
as estruturas de ensino e de projeto, e que para tal, existe a profunda necessidade
de trazer para a mesa de conhecimento os povos ou populações oriundos dessa
diversidade cultural. Neste sentido, o termo representatividade ganha funda-
mento, pois não se trata em apenas ter pessoas negras nos espaços acadêmicos ou
como referências de design só por estar, mas significa que a sua presença permite
a entrada de todo o arcabouço cultural intrínseco a experiência diaspórica das
pessoas africano-brasileiras na sociedade e as demandas específicas que essas
vivências proporcionam.
Falar sobre o racismo e seus impactos, e como isso se reflete no design é indis-
25
cutivelmente importante para o projeto. Entretanto, este não é um projeto socio-
lógico, exclusivamente. Se tratando também de uma análise histórica do design
enquanto profissão e sua função social, é necessário voltar os olhos para a cons-
trução da cultura material, localizar esse agente e designer preto, que artefatos
este produz ou produziu e sobre quais acúmulos históricos e culturais que o terri-
tório e a conjuntura social impõem.
No intuito de superar uma narrativa centralizada no racismo anti-negro, e poder
incluir a população africana-brasileira em seu lugar histórico no desenvolvi-
mento da cultura material e do design no país, o “Cadê os pretos no design?”
deixou de ser uma lista arbitrária de designers negros, e se propõe apresentar um
produto a partir de uma pergunta: é possível traçarmos uma narrativa histórica
do design centrada na população afro-brasileira, apontando os diversos momen-
tos históricos em que contribuição para o desenvolvimento da técnica, tecnologia
e design foram pungentes?
26
Capítulo 2
Premissas e Método
Preta, negra ou africana?
Dentro dos estudos e trocas estudantis que tangenciam as discussões raciais e o
desenvolvimento destas relações dentro do Brasil e do design, uma análise pro-
movida pela intelectual Elisa Larkin Nascimento proporcionou uma nova discus-
são para este projeto:
A noção comum de racismo como um fenômeno relativo apenas à cor da pele escamoteia sua
natureza mais profunda, que reside na tentativa de desarticular um grupo humano por meio
da negação de sua própria existência e de sua personalidade coletiva. Reduzir o africano e
seus descendentes à condição de “negros”, identificados apenas pela epiderme, retira deles o
referencial histórico e cultural próprio. Assim, sua própria condição humana é roubada. [...]
Nomeando-os “negros”, niggers, coons ou crioulos, o dominador negava-lhes a
referência a terra, cultura e história, assim reduzindo sua identidade à cor, que
passara a simbolizar sua condenação à inferioridade e à escravização.
Nascimento, 2008
Diante dessa afirmação, surgiu a seguinte pergunta: por que fazer uso do título
negra ou preta diante desse fator histórico? Qual o melhor termo para definirmos
essa população, esse povo, ao discutir as relações raciais? Uma pergunta de com-
plexidade histórica e social como essa resultaria muito provavelmente em uma
outra tese, com toda a certeza não seria uma na área do design. Mas a provocação
foi, e ainda se faz necessária para se definir quem são os pretos no design da per-
gunta que nomeia este projeto. Este capítulo pretende acrescentar algumas obser-
vações acerca do assunto.
As dicotomias bem e mal, ou branco e preto sempre existiram de certa maneira
nas relações de cunho racial ou de cunho religioso dentro da epistemologia
ocidental (Ani, 1993). Durante a evolução dos sistemas econômicos escravistas,
negro sinalizava a condição de escravo, e por sua vez branco implicava em ter
28
nascido livre. Hofbauer vai adicionar em sua análise sobre a branquitude que
em uma outra mutação histórica da palavra negro, pós o período escravista, a
dicotomia toma um outro formato, que aglutina um pouco de todos os significa-
dos anteriores: branco é sinônimo de progresso; pela regra da dicotomia, negro
é retrocesso. Essa dicotomia em especial é o que encorpa a ideologia do embran-
quecimento, camuflada pelo mito da democracia racial (Hofbauer, 2007).
Adicionando sobre a análise de Hofbauer, o pensador quilombola Nêgo Bispo5
(1959), ressalta a característica de negação de identidade coletiva que a palavra
carrega (Nascimento, 2008) e complementa fazendo uma analogia aos povos ori-
ginários:
O estranho é que mesmo pensando ter chegado às Índias, logo denominaram essa terra
de Monte Pascoal. Ao perceber que não era um monte, chamaram-na Terra de Vera
Cruz, Terra de Santa Cruz e, por último, Brasil. Mais estranho ainda é que os povos
aqui encontrados como, por exemplo, os povos de língua tupi que chamavam essa
terra de Pindorama (Terra das Palmeiras), continuam sendo chamados de índios.
Como sabemos, esses povos possuem várias autodeterminações. Os
colonizadores, ao os generalizarem apenas como “índios”, estavam
desenvolvendo uma técnica muito usada pelos adestradores, pois sempre que
se quer adestrar um animal a primeira coisa que se muda é seu nome.
Santos, 2015
5. Antônio Bispo dos Santos, conhecido como Nêgo Bispo é um escritor e intelectual quilombola
do Piauí, e militante importante da luta pela pela e movimento social quilombola.
29
O poeta Cuti em suas palavras tenta ressignificar a palavra negro dentro do
vocabulário no Brasil. E acrescenta que se a palavra negro evoca as questões que
nossa sociedade precisa superar, então “é ela, a palavra negro que precisamos
empregar” (CUTI, 2010). Em uma de suas poesias nomeada A palavra negro, o
poeta diz:
[...]
a palavra negro
tem chaga tem chega!
tem ondas fortessuaves nas praias do apego
nas praias do aconchego
a palavra negro
que muitos não gostam
tem gosto de sol que nasce
Em suma, não existe um consenso sobre o emprego das palavras negro ou preto.
Existe sim um sentimento de dissolução dos ditos termos amenizantes, como
moreno, mulato, etc. Neste trabalho, os termos negro, preto, africano se entre-
laçam e se confundem, por entender as premissas do uso de cada uma dessas
palavras. Preto numa tentativa de apropriação do termo, e retirar à força a pro-
priedade dos racistas que fazem uso da palavra para nos ofender. Negro por toda
história que carrega, e por compreender que para “pretas de pele clara” como eu,
apropriar-se sem escrúpulos da palavra preto tenha implicações muitas vezes
pertinente por parte dos irmãos e irmãs de pele escura muitas vezes pertinente
por parte dos irmãos e irmãs de pele retinta.
Mas por se propor à uma narrativa afrocêntrica, haverá preferência pela identifi-
cação por africano (a) - e quando se tratar do Brasil, africana-brasileira, afro-bra-
sileira ou africana em diáspora - por não poder ignorar que parte da construção
30
do racismo se vale desse desenraizamento com a terra, e possuirmos como parâ-
metro ontológico a história da Europa (Nascimento, 2008 e Factum, 2009). Este
reconhecimento impõe a este projeto a postura de romper com a construção colo-
nial e recontar a partir dos próprios parâmetros, num que provavelmente nem as
palavras negra ou preta existiriam. Não se trata de revisionismo histórico, mas
uma nova proposta de centralidade em nossas narrativas. E justamente por não
poder ignorar a história das palavras, que neste trabalho povo preto, povo negro,
povo africano significam exatamente a mesma coisa.
31
implica em inserir o povo africano, do continente ou diáspora, como agente
histórico protagonista, enfatizando a sua perspectiva sócio-cultural ao analisar
ou descrever fenômenos de cunho político, histórico, social e econômico (Bene-
dicto, 2016). A afrocentricidade visa partir da localização física e “mental” do
africano como ponto de partida, uma vez que reside na sociedade contemporânea
uma sobreposição da construção histórico-cultural europeia como se fosse a his-
tória de toda a humanidade, como ressalta Asante:
Uma das tarefas mais desafiadoras é desmascarar a noção de que posições particularistas
não são universais. A Europa desfilou sua cultura como norma por tanto tempo que os
africanos e asiáticos deixam de perceber a experiência europeia, seja ela da Idade Média,
seja de Shakespeare ou Homero, assim como os conceitos europeus de beleza, como
apenas aspectos particulares, e não universais da experiência humana, embora possam
ter implicações para outras culturas. O que os afrocentristas devem sempre criticar é a
ofensiva particular que projeta a Europa como o padrão pelo qual se deve julgar o resto do
mundo. Nenhuma cultura particular pode se arrogar essa prerrogativa. A afrocentricidade
busca criticar todas as reivindicações exageradas dos particularistas. É preciso ressaltar
que não é necessário parecer-se com a cultura europeia para ser civilizado ou humano!
Asante, 2008
Asante parte do princípio que existe uma desorientação negra, e que o método
afrocêntrico visa uma mudança revolucionária desta descentralização (off-cen-
ter) - do ponto de vista cultural, econômico, histórico, psicológico e social - e por
causa dela, é importante uma narrativa que se atenha à localização de África e
sua diáspora. Sendo assim, a afrocentricidade é “um tipo de pensamento, prática
e perspectiva que percebe os africanos como sujeitos agentes de fenômenos atu-
ando sobre sua própria imagem cultural e de acordo com seus próprios interesses
humanos”. (Asante, 2009).
O que é primordial na filosofia afrocêntrica é indagar sobre questões culturais,
32
econômicas, políticas e sociais considerando o povo africano como protagonista,
sem infligir a experiência africana como a única posição e perspectivas verdadei-
ras ou válidas, pois não existe um antilugar ou antiperspectiva na afrocentrici-
dade. É só uma diferença de posição, o que não implica que a outra deixe de exis-
tir. É possível falar de qualquer disciplina sob a perspectiva afrocêntrica, desde
que os africanos sejam atores e não cidadãos de segunda classe (Asante, 2009).
A revisão bibliográfica deste projeto é seguida da elaboração de uma análise crí-
tica, fundamentada pelas cinco características gerais do paradigma afrocêntrico
(Asante, 2009):
1. Localização psicológica;
2. Compromisso com a descoberta do africano enquanto sujeito;
3. Defesa dos elementos culturais africanos;
4. Compromisso com refinamento léxico;
5. Compromisso com uma nova narrativa da história da África.
33
ser analisado. Mas não só o tempo estabelece tais parâmetros. A localização psi-
cológica identifica se o autor ou fenômeno analisados estão à serviço ou em con-
sonância com a sua própria cultura. (Asante, 2009).
Preocupar-se com a descoberta do africano enquanto sujeito também é central,
pois muitos fenômenos africanos foram descritos e analisados sob a perspectiva
de intelectuais europeus, análises estas muitas vezes racistas ao longo da história
da humanidade. Portanto, é imprescindível que, ao analisar os fenômenos em
suas flutuações no tempo (Asante, 2009), se busque pela narrativa autônoma
do sujeito africano. Essa característica é fundamental, pois diz respeito à uma
disputa de narrativa em relação aos intelectuais que defendem que os africanos,
povos originários ou asiáticos não são capazes de contarem sua própria história.
Isso garante que não ocorra uma mediação que potencialmente inferiorize a cul-
tura de povos não-brancos e distorça a análise histórica ou fenomenológica.
Outro aspecto importante é atentar-se e examinar os usos etimológicos das pala-
vras e termos. Existirá, ao longo da nomeação de objetos ou ofícios ao longo deste
trabalho uma preocupação com a origem das palavras, seus desdobramentos e
significados. É crucial na orientação da análise para a agência africana respeitar
e defender as manifestações culturais e criativas como válidas, sem entrar na
consideração se estes produtos são necessariamente bons ou úteis, mas sim uma
manifestação da criatividade humana (Asante, 2009).
Como já foi introduzido, este trabalho objetiva enfatizar a contribuição cultural,
histórica e tecnológica africanas para o design, e isto implica em abrirmos os
horizontes para novos parâmetros, não pautados exclusivamente pelos ideais
do bom design ou à lógica cartesiana de mundo, defendendo novas perspectivas
que nascem de outros berços culturais. A aplicação do método afrocêntrico tem
como objetivo final uma narrativa que não seja exclusivamente pautada na visão
34
negativa que foi construída do povo africano e sua cultura ao longo da história.
A somatória dessas características permite apresentarmos uma história huma-
nizada do povo preto, e que as raízes dele na história possam servir como o novo
parâmetro para um futuro em que não existam premissas de culturas superiores
ou inferiores, mas que possuem características distintas apenas.
Pesquisador dos sistemas de escritas africanos, o designer e professor zimba-
buense Saki Mafundikwa (1955) em seu livro Afrikan Alphabets (Alfabetos Afrika-
nos) expressa a importância de desenvolver leituras históricas descentralizadas
do ponto de vista exclusivamente ocidental:
Espero pelo dia quando poderemos escrever sobre nosso amado continente sem precisar
nos explicar excessivamente - quando nossas teses serão aceitas como fatos e fonte de
conhecimento, não consideradas com o ceticismo que atualmente temos que enfrentar. Quando
o nome Afrika evocar dignidade, conquista e orgulho, e não inquietação, doença e conflitos.
Mafundikwa, 2007
35
Capítulo 3
Racismo à brasileira
Racismo por denegação
A dita “cultura brasileira” à primeira vista parece bastante ambígua quando a
associamos ao seu contexto histórico. Por um lado se manifesta como o país da
democracia racial, exaltando a mestiçagem como seu principal traço cultural; por
outro lado, dialoga amigavelmente com figuras políticas que não se constrangem
em comparar negros com gado “que não servem nem para procriar”, ou que afir-
mam que índios “deveriam comer capim para manter suas origens”. Mas olhando
com maior profundidade, é possível observar que o Brasil herdou um modelo
bastante sofisticado de racismo, que é capaz de negar a capacidade intelectual
dos africanos, índios e seus descendentes, mantendo os mesmos em situação de
subalternidade enquanto acreditam que a cultura ocidental branca é verdadeira-
mente universal e superior (Gonzalez, 2018). A ambiguidade é uma característica
de países que utilizaram mão de obra escravizada, como pontua Araújo (2013):
Gonzalez propõe uma análise dos países ibéricos que volta para as Guerras da
Reconquista (722 d.C.), que consiste na retomada do território da referida penín-
sula pelos mouros e berberes, que além de professarem a fé islâmica ao invés da
cristã dos europeus, eram majoritariamente negros (6700 mouros para 300 ára-
bes). Do ponto de vista racial e civilizacional, a presença moura deixou marcas
nas sociedades ibéricas, que sem dúvida se expressaram durante a colonização da
América Latina, por terem adquirido durante esses séculos experiência quanto
aos processos eficazes de articulação das relações raciais (Gonzalez, 2018).
O Racismo por denegação nomeado pela antropóloga é consequência desse pro-
cesso histórico ocorrido durante a Alta Idade Média, em que as sociedade ibéricas
eram estruturadas pelo modelo feudal, rigidamente hierárquico e racialmente
38
excludente para com mouros e judeus (Gonzalez, 2018). Foi sob essa construção
cultural, já racialmente estratificada, que os povos ibéricos colonizaram a Amé-
rica Latina, e construíram por essas terras uma ideologia que garante a superiori-
dade racial sem um sistema declaradamente segregacionista.
As sociedades que vieram a constituir a chamada América Latina foram as herdeiras históricas
das ideologias de classificação social (racial e sexual) e das técnicas jurídico-administrativas
das metrópoles ibéricas. Racialmente estratificadas, dispensaram formas abertas de
segregação, uma vez que as hierarquias garantem a superioridade dos brancos enquanto
grupo dominante. A expressão do humorista Millôr Fernandes ao afirmar que “no Brasil não
existe racismo porque o negro reconhece o seu lugar”, sintetiza o que acabamos de expôr.
Gonzalez, 2018
Hipóteses e perguntas
Sendo o Brasil construído por esses moldes, não diferente tem sido a história do
design ou da tecnologia. Em seu artigo Tecnologia e fazer artístico no tempo do
escravismo (2013) elaborado para o catálogo da exposição do Museu Afro Brasil
Arte, Adorno, Design e Tecnologia no Tempo do Escravismo, Henrique Cunha
Júnior afirma que durante 4.500 anos na história da humanidade o continente
africano esteve mais “avançado” que os europeus tecnologicamente falando,
sendo ultrapassado apenas nos últimos 4 séculos. Entretanto, essa contribui-
ção técnica humana foi obliterada pelos historiadores e antropólogos. O autor
defende sua afirmação apresentando brevemente uma linha do tempo da tecnolo-
gia na história da humanidade, que começa com o desenvolvimento da escrita - o
marco inaugural a história da humanidade sob uma perspectiva eurocêntrica - e
passa pelo desenvolvimento de técnicas urbanísticas, matemática, astronomia e
sobretudo a elaboração técnica para manipulação do ferro e outros minérios para
o desenvolvimento de artefatos diversos (Cunha Júnior, 2013. p. 46-48). O filósofo
39
Molefi Kete Asante concorda com Cunha Júnior quando diz:
Uma das hipóteses que levanto para este projeto parte do entendimento de que
o design no Brasil é fruto da mimese de um modelo cujo berço é europeu e euro-
cêntrico. Seu desenvolvimento parte do mesmo paradigma etnocêntrico que
expressa a dominação européia no mundo (Barbosa, 2008). Este paradigma se
desenvolve sob a crença da superioridade do modelo de vida europeu-ocidental, e
isto permite aos mesmos tanto determinar a ótica pela qual analisamos o mundo,
quanto o modelo a ser seguido pelas demais culturas.
Esta visão eurocêntrica de mundo condiciona o nascimento disciplinar da História como pode-
se observar, por exemplo, em obras de dois “pais” da disciplina: Michelet e Ranke. Cada um
a seu modo, tais autores buscaram reconstruir a história de sua nação como representante
máxima da “especificidade” europeia; seja por sua face moderna, contratualista (Michelet);
seja por sua face romântica, de origem místico-religiosa (Ranke) (Fontana, 1998). [...]
Mas o que ocorre ao historiador, ou filósofo social, quando, olhando para o passado
de outros povos e civilizações, não se pudesse encontrar neles a genealogia da
modernidade européia-ocidental? Trata-se de uma questão pertinente. Hegel, por
exemplo, foi peremptório neste ponto ao falar sobre o passado da África, que aqui
interessa ressaltar. Dizia o filósofo alemão que, ao se analisar a história da África,
não se poderia ali encontrar progressos e movimentos históricos. Sua conhecida
conclusão, pois, considerou que a África não faria parte da “história do mundo”.
Barbosa, 2008.
40
Sendo assim, a hipótese é que o design se manifesta por aqui como este modelo
universal que faz parte da verdadeira história do mundo. Como veremos, não
podemos afirmar que não existem estudos sobre a presença africana no design,
tampouco que não houve contribuições pungentes para o design no Brasil ou no
mundo. Portanto, minha hipótese é que essa transformação do design mimético
para um à brasileira (Moraes, 2008) ocorre sob a apropriação ou sincretismo de
saberes de outros povos, desenvolvendo um suposto design mestiço e multicultu-
ral que só é ensinado, praticado e direcionado por e para brancos. Mas ficam as
questões: no que o apagamento do povo africano influi? O que estamos perdendo
enquanto disciplina, profissão, método ou simples visão?
41
Capítulo 4
Localizando o design
Definição e origem do design industrial
Método
Uso Associação
Telesis Estética
Necessidade
Figura 7.
Complexo de funções do design, elaborado por Victor Papanek. Fonte: Reprodução
Definir o design tem sido uma tarefa em constante atualização há tempos. Per-
meando entre definições que afirmam que “tudo é design” até os que desejam
enquadrá-lo em um conjunto de habilidades e técnicas muito específicas, “o que
é design” é uma pergunta com muitas respostas possíveis. Victor Papanek (1984)
ao introduzir a sua própria definição deste complexo de funções, inicia essa dis-
cussão em torno da definição afirmando que:
43
Todos os homens são designers. Tudo o que fazemos, a maioria do tempo, é design, pois o
design é base para todas as atividades humanas. O planejamento e padronização de qualquer
ato em direção a um desejo, o fim previsível constitui um processo de design. Qualquer
tentativa de separar design, para torná-lo uma coisa em si só, trabalha contra o fato que o
design está primariamente subjacente à matriz da vida. Design é compor um poema épico,
fazer um mural, pintar uma obra-prima, escrever um concerto. Mas o design é também
limpar e reorganizar uma gaveta da escrivaninha, arrancar um dente comprometido, fazer
uma torta de maçã, escolher um lado de um jogo de baseball e educar uma criança.
Design é o esforço consciente e intuitivo de impor uma ordem significativa.
Papanek, 1984. p.3-4. Grifo meu.
Papanek acredita nesta definição pois ele compreende que o design é um com-
plexo de funções, que possui seis partes, sendo elas: (1) Método; (2) Associação;
(3) Estética; (4) Necessidade; (5) Progresso planejado6; (6) Uso. (Figura 7.)
E ele continua afirmando:
Embora acredite que o design está atrelado a tudo, Papanek afirma que o design
– que podemos considerar que começou assim que a humanidade começou a
desenvolver ferramentas – e o design industrial são coisas diferentes (Papanek,
1984. p. 29). A World Design Organization (Conselho Internacional das Organiza-
ções de Design Industrial, ou WDO) define o design industrial especificamente
como:
6. No texto é usado o termo em inglês Telesis, que não possui tradução literal para o português.
44
um processo estratégico de solução de problemas que impulsiona inovação,
constrói sucesso de negócios, e guia para maior qualidade de vida através de
produtos, sistemas, serviços e experiências inovadoras7. (Grifo meu)
7. DEFINITION OF INDUSTRIAL DESIGN. World Design Organization. About. Disponível em: <https://
wdo.org/about/definition/>. Acesso em 25 de janeiro de 2021.
45
O trabalho final do design é transformar o ambiente e ferramentas do homem, por
extensão, o próprio homem. Homens têm mudado sempre a si mesmo e seu entorno, mas
recentemente ciência, tecnologia e produção em massa avançou tão radicalmente que
as mudanças são mais rápidas, mais completas, e muitas vezes menos previsíveis.
Papanek, 1984.
46
trial europeia: o primeiro diz respeito ao contexto fora da Europa. Muitos países
ainda eram colônias europeias, sobretudo o Brasil, que foi o último país a romper
com o sistema escravista em 1888 (Cunha Júnior, 2013). A revolução industrial
europeia teve grande influência na pressão nos processos de abolição, uma vez
que estavam mudando os regimes de trabalho, e não mais viam vantagens neste
modelo de sistema econômico das colônias, aprofundando uma crise que já
estava se estabelecendo no sistema escravista,
A crise no sistema escravista [no Brasil] entrava em sua última fase. Do ponto de vista
estritamente econômico, capitais de nações europeias mais desenvolvidas no sistema capitalista
investiam nos ramos fundamentais, como transportes, iluminação, portos e bancos, criando
uma contradição que irá aguçando-se progressivamente entre o trabalho livre e o escravo. [...]
Dessa forma, na passagem da crise para a decomposição do sistema escravista, temos duas
vertentes econômicas e de comportamento dos senhores. A primeira era a dos que habitavam
a região decadente e estagnada do Nordeste e Norte, com uma economia sem possibilidades
de recuperar-se [...]. A segunda, era a tendência dos fazendeiros de café de parte de Minas, do
Vale do Paraíba e outras áreas de São Paulo e Rio de Janeiro, que entravam agressivamente
no mercado mundial ainda através do trabalho escravo, o que era um anacronismo.
Tudo isso levava a que se pensasse em outro tipo de organização do trabalho.
MOURA, 1992.
47
O segundo fenômeno foi um comportamento gerado dentro da perspectiva
antiescravista. A Inglaterra liderou políticas antiescravistas oriundas do modelo
econômico de produção de artefatos como foi dito, e foi neste mesmo período,
durante uma grande efervescência do pensamento racionalista e científico que
surgiram com mais força as teorias de supremacia racial (MACHADO, 2018). É evi-
dente, como já foi introduzido anteriormente, que o racismo enquanto prática e
ideologia tem um longo processo histórico, que precede os séculos XVII e XVIII, e
os europeus não foram os únicos a estabelecer esta relação hierárquica de raças.
Os árabes já escravizaram povos africanos séculos antes da Europa, e durante a
Idade Média acreditavam que os africanos pertenciam a uma raça reservada à
escravidão (Factum, 2009 e Nascimento, 2009).
O design industrial atravessou diversos fenômenos históricos que culminaram na
Primeira Guerra Mundial (1914-1918), e a artificialização da natureza e o racio-
nalismo da forma iniciadas no século anterior seguiram como características
influentes no que mais tarde se tornaram a Staatliches Bauhaus (1919-1933) e logo
em seguida a HfG-Ulm, Hochschule für Gestaltung Ulm, conhecida como Escola
de Ulm (1946-1968). Ambas possuíam, em maior ou menor grau, uma discussão
que girava em torno da racionalização da forma e sua função, negando estilos
decorativos, adotando um estilo abstrato e racional. Essa discussão também
acompanhou as flutuações políticas, econômicas e culturais europeias do perí-
odo, sobretudo na Alemanha, desde a depressão econômica do pós-guerra, até a
ascensão do nazismo. O racionalismo, dentro deste contexto, se apresenta como
uma forma de pôr ordem ao caos político estabelecido, como comenta Maldonado
sobre a Bauhaus:
48
O contributo da Bauhaus para o design industrial não pode ser abordado, como
habitualmente se faz, sem ter em conta as particulares condições socioeconômicas
e culturais da Alemanha, antes e depois da República de Weimar. Não é por acaso
que a República de Weimar e a Bauhaus têm a mesma data (e o mesmo lugar) de
nascimento e a mesma data de desaparecimento (1933). Também a sua periodização
revela um paralelismo surpreendente e a custo se resiste à tentação de estabelecer
uma relação de causalidade dos acontecimentos. [...] Mas a Bauhaus não se limitou a
refletir os altos e baixos da realidade: procurou também modificá-la. Quando se queria
eternizar o caos, a Bauhaus com Gropius, reivindicou a ordem. Quando, mais tarde,
se procurou eternizar a ordem vacilante e opressiva da racionalização industrial, a
Bauhaus, com Meyer, empenhou-se em dar a esta racionalização um conteúdo social.
Maldonado, 2009. p. 53. Grifo itálico do autor.
É este modelo que acaba por servir de base significativa para construção do que
viria a ser considerado o começo do design no Brasil.
49
No âmbito do design, a Escola de Ulm se estabelece como protagonista absoluta
na exportação de seu modelo para países periféricos. Parafraseando Maldonado e
Benjamin, esta se constitui, por vez, como a referência maior dentro da “dinastia”
de identificação do design no Brasil e em vários outros países periféricos.
MORAES, 2006. p. 37.
O modelo de ensino da ESDI serviu como base para a criação dos demais cursos
de design que foram surgindo no país, como a FAAP, a disciplina de Desenho
Industrial no curso de Arquitetura e Urbanismo da USP e assim por diante.
Gui Bonsiepe (1934), designer Alemão, também formado e posteriormente pro-
fessor da Escola de Ulm até o seu fechamento, além de ser uma referência para os
países do sul no que diz respeito às premissas ligadas à Escola de Ulm e o design
modernista, dedicou parte de sua pesquisa para compreender a relação do design
industrial oriundo da Europa com a periferia8. Bonsiepe em sua análise define
uma localização que parte do Centro para a Periferia, e afirma que os países Peri-
féricos, possuem uma relação de dependência tecnológica dos países do Centro
(Bonsiepe, 1985). E essa dependência se dará devido a construção histórica do
design nos respectivos territórios; o design, como observado, trata-se de um ofício
que se estabelece no contexto histórico do continente europeu.
Em outra análise, específica sobre o modelo da Escola de Ulm que, de acordo com
Bonsiepe, se tornou uma “influência poderosa” que adquiriu “caráter de modelo,
mesmo que as conotações normativas, eurocêntricas e universalistas deste termo
devessem ser evitadas” (Bonsiepe, sem ano), ele observa outras características
que corroboram com esta ação, entre elas: o conceito de “boa forma” servia como
8. Neste caso, Bonsiepe centraliza o modelo de design na Europa, que se torna automaticamente
o centro desta discussão, e a periferia vai incluir boa parte dos demais países abaixo do norte ge-
opolítico, também considerados países de Terceiro Mundo, subdesenvolvidos ou em desenvolvi-
mento
50
orientação; a integração extensa das disciplinas científicas em seu currículo; sua
historicidade frente ao nazismo; e a alteração da conjuntura política mundial
frente à globalização, incluindo novos blocos econômicos (europeu e na América
Latina), além do liberalismo econômico. Embora cite e aponte os problemas do
paternalismo europeu no design do mundo, Bonsiepe não caracteriza o design
como imperialista dentro deste contexto.
Tomás Maldonado observa, diante da análise das relações do design com países
“não-centrais” que a América Latina e o continente africano encontraram dificul-
dades em estabelecer um processo assertivo de industrialização e modernização.
Ele afirma que uma das questões decisivas tenha sido não partir das bases cultu-
rais autóctones para impulsionar este novo modelo de produção europeu.
Seja como for, vem a propósito a pergunta: qual foi o caminho que, nestes casos, conduziu
ao êxito? Por que (e principalmente, como) foi possível o arranque nestes países [Singapura,
Malásia, Taiwan e Coréia do Sul], e não foi possível em outros da América Latina e da África?
Os fatores foram múltiplos e da mais variada natureza. No entanto, podemos
arriscar que foi decisiva a sagacidade em utilizar as tecnologias tradicionais
como alavanca, de uma forma realista, sem excluir, porém, uma progressiva
(e apoiada) abertura à transferência de tecnologias avançadas.
Maldonado, 2009. p. 97.
É mister reconhecer que não seria mesmo tarefa fácil (principalmente quando apontamos
para a direção dos artefatos industriais) a instituição efetiva do design no âmbito
produtivo brasileiro. Reconhece-se ainda que a aplicação de modelos de sucesso em
países de industrialização mais madura não ocorreu com o mesmo sucesso em outras
localidades que apresentavam as suas características e necessidades específicas.
MORAES, 2006. p. 42.
51
O que não foi considerado ao encarar o problema de autonomia no design dos
povos da América do Sul e da África nas análises destacadas foi que todos os paí-
ses citados em “falharem” na modernização foram colonizados pela Europa no
período em que se estabelecia o design e a indústria como parte dos critérios de
desenvolvimento. Os continentes americano e africano, como já foi introduzido,
sofreram por séculos com a degradação gradual e contínua de seus povos nativos
ou dos forçadamente trazidos, corroborando para que a gênese do design nestes
lugares se descolassem de sua realidade material local, e colaborou para que –
uma vez entendido que o design está conectado com a cultura de um povo – que
ele reproduzisse os mesmos valores engessados da época em que corpos negros
faziam parte dos produtos tanto quanto qualquer outro produzido pela indústria.
52
Em 2009 iniciou-se a extensa tarefa de produzir um novo Projeto Político Pedagógico
de maneira amplamente democrática e participativa dentro da comunidade FAU. Até
2011 deu-se a etapa de diagnóstico do curso e a partir daí começou a fase de elaboração
do novo projeto, com muitas reuniões abertas e deliberativas, onde discutia-se desde o
objetivo do curso, o perfil do aluno até chegar à consolidação de uma grade horária que
desse conta desses anseios: um curso que mesmo generalista, desse a oportunidade do
aluno se aprofundar em determinadas áreas de conhecimento, que não deixasse de lado
a fundamentação ética do profissional de design ou fosse descolado do contexto social.
ROCHA, 2018
Ciro Fico Vieira da Rocha e eu nos reunimos em conjunto aos outros estudantes
de design da FAU durante a greve de 2018 para dar início a um projeto nome-
ado “Ensino na FAU: por quem, para quem?” (posteriormente renomeado como
Ensino no Design: por quem, para quem?), que visava levantar dados sobre os
autores da bibliografia básica do curso no período do 1º e 3º semestres, classifi-
cando-os em três categorias: Raça, apoiada na classificação racial do IBGE (pre-
tos, pardos, brancos, amarelos e indígenas); Gênero e Território, este sendo consi-
derado o local da(s) publicação(ões) do(a) autor(a).
O objetivo era aproveitar o momento da greve para fazer um balanço e “refletir à
respeito do racismo, machismo e colonização no ensino do curso de design, tendo
como plano de fundo a categorização das obras contidas nas bibliografias deste, e
fomentando momentos de aprofundamento da discussão entre os colaboradores”
(ROCHA e SOARES, 2018), corroborando para uma “formação crítica e propositiva,
capaz de refletir sobre o papel de sua profissão, identificar as demandas da socie-
dade e dos usuários para quem projeta, e de dar respostas, por meio do projeto
em design, a problemas contemporâneos do desenvolvimento humano e social,
levando em consideração aspectos socioculturais, político-econômicos, tecnológi-
cos, históricos e ambientais” como é estabelecido no PPP (ROCHA, 2018).
53
Figura 8.
Instalação “Ensino no design: por quem, para quem?”no Centro de Cultura e Extensão Maria Antônia. Fonte: PRCEU.
54
Ao longo de 5 encontros ocorridos entre os dias 11 e 28 de julho de 2018, sendo
um desses encontros a apresentação do projeto Cadê os pretos no design?,
categorizamos em coletivo uma amostra das bibliografias básicas de 13 matérias
obrigatórias dos dois primeiros anos do período ideal da grade curricular vigente
até o ano de 2018 do curso de design, oferecidas pela Faculdade de Arquitetura,
Urbanismo e Design da USP. O projeto, que se tornou uma instalação de visuali-
zação de dados premiado pelo Projeto Nascente USP 2018, expôs os dados sobre a
bibliografia básica do curso de design da referida faculdade revelou os seguintes
dados:
Na categoria de Território deste mesmo levantamento, 20,5% das obras são brasi-
leiras, e 79,5% distribuídas por 13 países9 majoritariamente do norte global - 54,3%
europeus, 23,6% EUA, 0,8% Japão e 0,8% Canadá (ROCHA, 2018).
O resultado deste projeto evidencia o apagamento das pessoas não brancas na
academia e leva a questionar o papel da academia no processo da diversidade
étnica, racial e sobretudo cultural dentro da universidade, além de apresentar
uma contradição com o Projeto Político Pedagógico desenvolvido pela mesma. O
fato desses números disporem desta maneira nas disciplinas que fundamentam
os primeiros anos dentro do curso - embora não possamos afirmar por outras ins-
tituições - nos sugere que o ensino de design ainda não é ensinado sob o ponto de
vista de nossa própria realidade histórica, social e material.
9. Os países são: Alemanha, Canadá, Dinamarca, Espanha, EUA, França, Holanda, Inglaterra, Itália,
Japão, Portugal, Suécia e Suíça.
55
Figura 9.
Detalhe a Instalação no Centro de Cultura e Extensão Maria Antônia. Fonte: PRCEU
Num país com 54,9% da população negra e 51,6% de mulheres, termos uma bibliografia
analisada com 95,3% dos autores brancos (e 4,7% amarelos), apenas 18,1% de mulheres,
e em que todos as obras estrangeiras foram publicadas no Norte Global, torna visível o
abismo na representatividade nos autores de nossas bibliografias, refletindo a colonização
do nosso pensamento e as barreiras de acesso de determinados corpos na academia.
ROCHA e SOARES, 2018
56
desenvolvimento do campo dentro da cultura e das consequências históricas de
países colonizadores (Bonsiepe, 1983). Mesmo que este modelo de ensino adote
por muitas vezes algumas características locais, o predomínio político, cultural
e econômico que determina a cultura material baseada na realidade europeia
caracteriza o modelo de ensino como neocolonialista em sua essência, por não
partir do seu próprio desenvolvimento histórico, político, econômico e cultural
local, se configurando num disfarce anticolonial como Gui Bonsiepe observa:
É fato indiscutível que a questão da cultura material, a questão da “física da cultura”, é crucial para
qualquer sociedade. É por isso que o desenhista industrial, como “físico da cultura”, encontra-se em
um ponto nevrálgico do sistema de objetos. Esse sistema é, atualmente, em sua composição, seus
atributos técnico-funcionais e seus aspectos estético-formais, quase exclusivamente determinado no
Centro. Por isso, frequentemente, o desenho industrial, nos países periféricos, é interpretado como
uma extensão de algo criado no Centro para o “Submundo Perplexo”. Esse modelo expansionista
suaviza-se em reverências retóricas às condições e tradições locais, uma forma de brindar lip
service. O neocolonialismo utiliza muitos disfarces; inclusive, às vezes, o disfarce anticolonial.
Bonsiepe, 1983. Grifos do autor
O que tudo isso nos indica sobre a localização da centralidade do design, afinal?
Podemos talvez, afirmar duas coisas: a primeira é que o berço histórico, mas
sobretudo cultural do design como o conhecemos é centralizado no continente
europeu, e sua gênese é concomitante com diversos movimentos intelectuais que
sinalizaram um novo momento para a continuidade e expansão da cultura domi-
nante europeia pelo mundo, através de um novo modelo de colonização. Além
disso, o período foi marcado pela ascensão do racionalismo como paradigma do
pensamento europeu e a crença de sua superioridade intelectual, cultural, polí-
tica e por fim racial frente a outros povos. Esse modelo de pensamento se projeta
sobre o design através de escolas que nascem após a Revolução Industrial Euro-
peia. A Bauhaus e a Escola de Ulm, escolas que embora possuam características
57
próprias, refletem as flutuações históricas que movimentaram a Europa durante
todo o século XX, também não estão desatreladas das características culturais que
são estruturadas neste momento através dos povos indígenas e africanos.
10. Utamawazo, de acordo com Marimba Ani, trata-se do pensamento culturalmente estrutura-
do. “É a forma na qual o pensamento de membros de uma cultura devem ser modelados”. Tam-
bém se trata da estratégia tomada para o crescimento da asili
58
Utamawazo Asili Utamaroho
Universalista, Controlador, Progressista,
doutrina da semente da metodologia da
Superioridade cultura Superioridade
Figura 10.
Diagrama da ideologia cultural europeia elaborado por Marimba Ani. Fonte: reprodução
Esta ideia de controle é facilitada por primeiro separar o ser humano em compartimentos
distintos (“princípios”). Platão distingue os compartimentos de “razão” e “apetite” ou “emoção”.
A Razão é um princípio ou função superior do homem/mulher, ao passo que o Apetite é “mais
de base” [“more base”]. Eles estão em oposição um ao outro e ajudam a constituir, o que se
tornou uma das dicotomias mais problemáticas no pensamento e comportamento Europeus.
Esta oposição resulta na divisão do ser humano. Não mais inteiros [whole], nós, mais tarde,
nos tornamos a “mente vs. corpo” de Descartes. A superioridade do intelecto sobre o ser-
emocional [emotional self] é estabelecida como espírito separado da matéria. Até mesmo o
termo “espírito” tem uma interpretação intelectualista cerebral na tradição ocidental (Hegel).
Ani, 1994.
O que essa divisão promove é controle (Ani, 1994). Isso porque as partes dessa
divisão são hierarquizadas, um é considerado bom e elevado (razão, raciona-
lidade) e o outro é ruim e desprezível (sentidos, emoções), e não partes com-
plementares de um todo. Elas são partes inconciliáveis e conflituosas, em que
59
a parte “boa” deve controlar a parte “má”, uma vez que ser controlado pelas
emoções dentro dessa visão é ser inferior. Este comportamento é justificado pelo
formato analítico do pensamento europeu, que objetifica a natureza para “pensar
adequadamente sobre ela” e por fim, manipulá-la, controlá-la. O controle não
pode ser estabelecido quando você está emocionalmente atrelado ao objeto (Ani,
1994). Essa visão polarizada do sentido de civilização foi a base para estabelecer
uma lógica de controle em toda a epistemologia europeia, e isso vai ecoar sobre-
tudo com a ascensão do movimento intelectual iluminista do século XVIII.
O termo “raça branca” ou “povo branco” entrou nas principais línguas europeias no final
do século 17 no Oxford English Dictionary, originando-se da construção da racialização
da escravidão na época, no contexto do tráfico transatlântico de seres humanos e da
escravização de povos nativos do continente americano por portugueses e espanhóis católicos
(Dee, 2003, p. 157) que iniciou no século 15. Posteriormente foi atribuído a estirpes de
sangue, ancestralidade e traços físicos e acabou sendo um tema de investigação científica,
que culminou no racismo científico, que teve grande aceitação e que no século 20 foi
repudiado por parte da comunidade científica. Segundo a historiadora Irene Silverblatt,
“o pensamento racional (...) transformou as categorias sociais em verdades raciais [...]
MACHADO, 2018
Neste mesmo pensamento, observa Marimba Ani, Platão afirma que poucos serão
capazes de tal grau de elevação, colocando essa responsabilidade para uma mino-
ria. A filosofia moderna enxergava que povos africanos e originários das Améri-
cas não eram racionais (Cunha Júnior, 2013). Somado às diversas descobertas
e teorias científicas, e ao histórico que alguns países europeus já possuíam com
povos não-brancos, esse foi um prato cheio para negar a capacidade intelectual
e astúcia criativa de outros povos, inclusive no desenvolvimento de artifícios e
objetos. Faz todo o sentido, pois como já observamos, paralelamente ao pensa-
mento racionalista do século da filosofia e construção do pensamento científico
60
europeu, a europa estava colonizando outros países, e promoveu a ascensão de
teorias científicas racistas para justificar a inferioridade de povos africanos ou
originários. Sobre o pensamento racionalista, Ani destaca que nessa epistemolo-
gia (eurocêntrica):
Tal conceito errado é que produziu uma imagem distorcida dos africanos e dos
afrodescendentes como incultos e desprovidos de tudo que fosse civilizado. Esse conjunto
de crenças serviu para justificar o escravismo criminoso através da ideologia de que os
“aptos” submetem os mesmos “aptos”, os mais cultos submetem os incultos. Fórmula e
ideologia muitas vezes mentirosas, falsas, advindas de ideias evolucionistas e racistas.
Cunha Júnior, 2013
61
Uma estética que se esforça por um modelo de perfeição; aquela perfeição representada pela
proporção adequada a ser determinada por precisão de medição e relação matemática de linha
e espaço - tal é a estética Européia Clássica herdada. Como uma expressão do utamawazo
europeu, essa estética tornou-se racionalista e controladora, representando um esforço para a
precisão, associou à brancura a falta de cor (que é vista como excessiva), e experimenta prazer
no poder (utamahoro), não o “poder para”, que é energia; mas o “poder sobre”, que é destruição.
Ani, 1994
O utamaroho11 europeu, de acordo com Ani, caracteriza a “arte popular”, que vai
dar “prazer às massas europeias” (Ani, 1994) por ser a energia que mantém a cul-
tura em andamento. Ani destaca seu caráter político, quando afirma que a arte
e a estética reforçam a identidade cultural, e afirmam o conceito de consciência
nacional. O utamaroho define os ícones de identidade nacionalista cultural, que
vão atuar precisamente no que identificamos (esteticamente) como sendo supe-
rior às outras culturas, mas sobretudo traça a linha que define o que se trata de
estética universal das manifestações “étnicas” e/ou locais. Ani afirma que o prin-
cipal responsável por apresentar esses ícones à psique individual é o design.
Uma das expressões/usos mais prevalentes da arte popular conforme ela coletiviza a
psique Europeia individual está no design. Se estudado a partir de uma perspectiva
africano-centrada, vemos que o design é uma influência poderosa e onipresente em
nossas vidas. Os carros que dirigimos; os móveis nos quais sentamos, dormimos ou
comemos; os aparelhos que usamos; mesmo as cores e tecidos com os quais decoramos
nossas casas - todos empregam a estética Europeia de linha, dimensão e espaço. [...]
[...] Ícones como a bandeira Americana, por exemplo, ou mesmo uma estátua
Grega, geram sentimentos de orgulho em uma pessoa de ascendência Europeia,
pois ela se identifica com o que ela entende ser uma tradição cultural superior.
Ani, 1994.
11. De acordo com Ani, utamaroho trata-se da força vital da cultura, a energia (manifestada por
ideologia) que faz com que a cultura germine e se propague.
62
Destacar essas características da cultura europeia são fundamentais tanto para
a localização psicológica adequada, quanto para evidenciar que esses atributos
caracterizam profundamente as manifestações estéticas da linha do tempo do
design industrial europeu, que por sua vez influenciou escolas em todo mundo,
incluindo o Brasil.
O design no Brasil, que de certa forma começa por essas terras como uma
mimese do design europeu (MORAES, 2006) reproduz uma das principais caracte-
rísticas da epistemologia europeia discutida por Marimba Ani: o racionalismo - e
atrelado à isso uma grande necessidade de estabelecer “ordem”, capaz através do
pensamento racional (Maldonado, 2009). Além disso, se estabelece como um
paradigma para os países periféricos, mostrando a segunda característica eviden-
ciada pela análise de Ani, que é o universalismo. Ani observa que a característica
universalista europeia torna-se um critério para invalidar e rejeitar fontes de
criatividade cultural externas (Ani, 1994), e tal conceito universalista também é
observado por Bonsiepe quando argumenta sobre o paternalismo europeu:
63
Embora essa concepção possa tender a estrangular artistas africanos e “não-europeus”, eles
acham quase impossível argumentar contra, porque ela está emocional e simbolicamente
ligada à “fraternidade do homem” cristã - retórica “nós somos todos um.” No clima moralista
da ética retórica europeia, a rejeição desta proposição é feita para parecer má [...]
Ani, 1994
64
e fazeres, incorpora as suas características, reinterpretando-as e por fim, des-
cartando-as (Ani, 1994), pois o sincretismo (característica profunda de diversas
manifestações culturais no Brasil) foi sem dúvida uma estratégia de sobrevi-
vência dessas culturas. As tradições, costumes e estética hoje notadas como
tipicamente brasileiras são profundamente atravessadas por códigos ocidentais,
forçando uma reinvenção dessas tradições (Factum, 2009. p. 60)
Mas, é importante pontuar que, embora incipiente, o reconhecimento da influên-
cia africana na construção da cultura brasileira culminou em estudos acadêmi-
cos que abordam, sob o ponto de vista histórico, o aspecto sócio-racial presente
no campo do design, localizados em sua maioria no desenvolvimento da cultura
material afro-brasileira no período escravista no Brasil. A abordagem racial para
o design contemporâneo vem sendo desenvolvida (Factum, 2009), mas tanto esta
quanto a influência africana na cultura material são ainda muito raros na prática
cotidiana de ensino da história do design.
Resultados da localização
A germinação do design acompanha mudanças estruturais no modo de vida euro-
peu, impactando irreversivelmente como o mundo era visto por eles até então.
Os comportamentos posteriores às revoluções reafirmaram o que a antropóloga
Marimba Ani vai nomear como asili cultural. Essa semente germinativa da cul-
tura impõe algumas regras para as manifestações culturais (utamawazo) e a
estratégia para elas (utamaroho) (Ani, 1994). Entre as manifestações e seus meios
estão as características imperialistas e absolutistas - sendo o universalismo a
doutrina para garantir essa supremacia; e as características consumistas e expan-
sionistas - parte do método para a mesma finalidade.
O design nasce próximo do auge das teorias do racismo científico, que por sua
65
vez tem como propósito afirmar paradigmas que definiam que o cientificismo, a
lógica, a razão, eram superiores às vaidades ritualísticas e decorativas - comu-
mente encontradas nas expressões culturais amefricanas (Gonzalez, 2018). Car-
los Machado adiciona ainda:
Estudos ocidentais de raça nos séculos 18 e 19 desenvolveram o que mais tarde seria
denominado racismo científico. Os proeminentes cientistas europeus que escreveram
sobre a diferença humana e natural incluíam uma raça eurasiana branca ou ocidental
entre um pequeno conjunto de “raças humanas” e uma superioridade física, intelectual
ou estética imputada a essa categoria branca. Essas ideias foram desacreditadas pelos
cientistas apenas na segunda metade do século 20 após duas guerras mundiais.
MACHADO, 2018
66
estética. Com isso, desmarginalizar as práticas ancestrais, partir para antes do
período escravista e o descobrimento e definição de tecnologias abre espaço para
começar a reconhecer que os pretos sempre fizeram parte da história, e uma vez
sabido o que foi feito, podemos melhorar para o futuro.
67
Capítulo 5
Localizando
os pretos no design
Contribuição preta para o design
A história da criação do Brasil e a história do negro brasileiro é praticamente
uma só. Pouco depois da chegada dos portugueses em Pindorama12, e a imediata
exploração dessas terras e das pessoas que já a habitavam, foi autorizado ofi-
cialmente o desembarque de africanos para serem escravos, condição essa que
seguiria pelos próximos três séculos, o mais longo período baseado no sistema
escravista da história. Essa particularidade histórica, que transformou o que era
Pindorama para se tornar Brasil, acabou determinando profundamente as rela-
ções raciais que se estabeleceram após a abolição.
É praticamente impossível estipular com exatidão a quantidade de africanos que
foram traficados para o Brasil durante todo escravagista, mesmo após a proibição
do tráfico em 1850, e as estimativas variam e não são confiáveis (MOURA, 1992;
Nascimento, 2016), pois os arquivos que documentavam o comércio de escravos
foram destruídos (Nascimento, 2016). Entretanto, o sociólogo Clóvis Moura (1925
- 2003) e desenvolvedor da Sociologia da Práxis Negra13 define que existem esti-
mativas que podem ser discutidas:
12. Pindorama era o nome que o povo Tupinambá dava para o Brasil antes da chegada dos portu-
gueses. Significa Terra das Palmeiras.
13. “De uma maneira geral, a Sociologia da Práxis Negra opera uma dupla ruptura epistemoló-
gica em relação aos estudos sobre o negro no Brasil: a primeira, com a escola – culturalista de
Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Edison Carneiro e Gilberto Freyre (esta ruptura se dá através do
marxismo, com a análise da luta de classes na ordem escravista); a segunda ruptura - por dentro
do marxismo – se dá quando a noção de práxis é colocada em primeiro plano, em detrimento de
outras categorias (classe, estrutura etc.).” OLIVEIRA, Fábio Nogueira de. Clóvis Moura e a Sociolo-
gia da Práxis Negra. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas e Sociais) – Universidade Federal
Fluminense. Rio de Janeiro, p. 14. 2009.
69
Embora não tenhamos possibilidades de estabelecer o número exato de africanos
importados pelo tráfico, podemos fazer várias estimativas. Elas variam muito e há
sempre uma tendência de se diminuir esse número, em parte por falta de estatísticas
e também porque muitos historiadores procuram branquear nossa população. [...]
Essas estimativas variam desde a do historiador Rocha Pombo, que calcula em 10.000.000 o número
de negros africanos entrados, às de Renato Mendonça, que afirmou ter sido de 4.830.000. [...]
[Nos dados do último autor] O problema do contrabando obviamente não foi computado como
uma variável a ser considerada. Mas o certo é que quase 40% do total de africanos retirados
do Continente Negro durante a existência do tráfico foram desembarcados no Brasil.
MOURA, 1992.
70
No Brasil, diferente de alguns outros países colonizados nas Américas, utilizou
exclusivamente o sistema escravista como meio de produção e modelo econômico
(Cunha Júnior, 2010), o que torna possível afirmar que, até a abolição em 1888,
tudo relacionado a trabalho foi realizado por africanos escravizados e seus des-
cendentes (Cunha Júnior, 2013; MOURA, 1992). Com uma mão de obra de origem
africana extremamente especializada para as necessidades econômicas da época,
isso também indica que uma parte considerável da cultura material do Brasil des-
cende diretamente de técnicas previamente desenvolvidas no continente africano
(Cunha Júnior, 2013. p. 43).
Figura 11.
Ilustrações de ofícios negros: marcenaria e sapateiro (autor desconhecido, 1829).
Fonte: Arte, adorno, design e tecnologia no tempo da escravidão, Emanuel Araújo (org), 2013
Uma parte importante do que foi realizado na produção material durante o período
do escravismo criminoso brasileiro é proveniente da existência de um passado
civilizatório africano, propiciado pelas qualificações profissionais e habilidades já
desenvolvidas no continente africano. A imigração forçada de cativos africanos carreou
para cá riquíssima mão de obra africana. Isto nos leva à necessidade de repensar as
considerações que fazemos sobre africanos e afrodescendentes na história nacional.
Cunha Júnior, 2013. p. 43
71
Figura 12.
Carpinteiro, por Almeia Júnior. Óleo sobre madeira, 1894. Fonte: Arte, adorno, design e tecnologia
no tempo da escravidão, Emanuel Araújo (org), 2013
72
Apesar do conjunto de crenças racistas afirmando que os africanos eram de uma
raça inferior, culturalmente toscos, endossado ao longo do período escravista
para justificar o tráfico de pessoas, os cativos africanos trouxeram consigo uma
riquíssima mão de obra (CUNHA JUNIOR, 2013). A metalurgia era uma tecnologia
já amplamente desenvolvida em quase toda extensão do continente africano por
volta de 1300 a 1200 anos antes da era cristã, por exemplo (CUNHA JUNIOR, 2013).
Essa contribuição técnica não fica limitado na metalurgia ou agricultura, mas
teve presença nas técnicas têxteis, marcenaria, carpintaria e ourivesaria.
Os africanos – sobretudo seus descendentes – tiveram também a possibilidade
de aprender e dominar técnicas que não eram típicas do continente africano. Em
1824 o Brasil se vê diante da abertura do que seria uma das mais importantes
tipografias do período regencial. Francisco Paula Brito, se torna pioneiro como
editor e tipógrafo preto, e marca um legado de publicações que é retomado no
século seguinte por movimentos e organizações, como a Frente Negra Brasileira e
posteriormente a Associação de Negros Brasileiros (Moura, 2002)
Contemporaneamente, o design tem feito um movimento de olhar para o passado
como fonte de inspiração e como energia de continuidade. Símbolos de diversos
povos africanos são incorporados em estampas na moda e peças gráficas. Factum,
analisando o desenvolvimento dos designers pretos da Bahia comenta:
[...] A partir da década de 70 do século passado, os negros conquistam uma discussão mais
honesta no país sobre a questão racial. Desde então, a população da cidade de Salvador
vem exercitando uma prática de retomada e reafirmação de valores da cultura negra. [...]
Com isso, abre-se uma grande espaço para elaboração de produtos cujo design
(proposta estético-formal) tem em sua concepção referências africanas, não
importando a origem geográfica africana, desde que remeta a África.
FACTUM, 2009. p. 110
73
Figura 13.
Capas de disco projetadas pelo designer baiano J. Cunha para o bloco de carnaval Ilê Aiyê e para o
Trio Elétrico Tapajós. Fonte: Design na Bahia – ABDesign, 2002.
Embora não seja objetivo deste projeto aprofundar as análises nos materiais de
design gráfico, vale a menção de alguns designers que são fundamentais para
estabelecer as características do design afro-brasileiro contemporaneamente: J.
Cunha (1948) tem um extenso trabalho artístico e de design que busca como refe-
rência a estética africana, intimamente conectado com o carnaval (Figura 13.)
sobretudo por assinar a identidade visual do bloco Ilê-Aiyê (ABDesign, 2002).
Figura 14.
Logotipo do Grupo Cultural Olodum, por João Silva. Fonte: Design na Bahia – ABDesign, 2002
74
Figura 15.
Logotipo para o ex-presidente Fernando Collor de Mello, por
João Silva. Fonte: Design na Bahia – ABDesign, 2002
João Silva (1960) é um dos mais premiados publicitários baianos, também atua
como designer e diretor de arte. É responsável pela criação de logotipos e símbo-
los importantes, como a marca do Grupo Cultural Olodum (Figura 14.)e o logo-
tipo do ex-presidente da república, Fernando Collor de Mello (Figura 15.).
Nos próximos capítulos deste trabalho, serão analisados artefatos desenvolvidos
pelos pretos no design, visando dar luz à sua contribuição para a construção do
design e sua devolutiva para a sociedade, e levantar proposições para inserirmos
sua história e soluções projetuais nos estudos em design.
Sendo o design uma área de ampla atuação, com inúmeros artefatos, interfaces e
sistemas, as principais áreas abordadas dirão respeito ao período antes da forma-
lização do design enquanto disciplina e profissão no Brasil, enfatizando as pontes
entre estes e as produções diretamente conectadas na contemporaneidade, que
incluem: trabalho com mineração e metalurgia, indumentária – que inclui tecno-
logias têxteis e joalheria – e uma análise do período da Imprensa Negra e os pri-
meiros passos da tipografia entre pessoas negras no Brasil, destacando designers
de cada período e sua contribuição para o desenvolvimento da técnica, tecnologia
e seu impacto na história do design.
75
Magia ou tecnologia? Processos de mineração
e metalurgia
Durante o ciclo do ouro no Brasil no período que contempla os séculos XVIII
e XIX, uma crença foi cultivada pela população, sobretudo os mineradores da
região das Minas Gerais. Acreditava-se que para obter sucesso nas atividades de
extração mineral e fazer fortuna, o minerador deveria ter uma negra Mina como
concubina (Paiva, 2002). Essa crença foi fomentada também pela entrada mas-
siva de pessoas africanas de origem Mina para trabalhar na região. Estima-se que
das populações africanas que estavam cativas na capitania Comarca do Rio das
Velhas – que apresentava uma atividade de moderada para intensa em relação
à mineração – representavam 40% da população em relação a outras origens
(Paiva, 2002).
Considerando que toda lenda ou mito possa carregar parte do contexto histórico,
é possível assumir que essa crença de que os (as) africanos (as) de origem Mina
davam “sorte” para mineradores traz como pano de fundo é que os Mina, por
conta da sua origem em África, possuíam um conhecimento técnico apurado para
mineração (Paiva, 2002; Leite, 2013).
Para compreendermos melhor como esse conhecimento técnico foi desenvolvido
e aprimorado no período, deve-se compreender como era essa dinâmica no conti-
nente africano.
Costa da Mina foi uma nomeação dada pelos portugueses para a região do golfo
da Guiné, que contempla os litorais de Gana, Togo, Benim e Nigéria. Como é uma
região muito rica em minério, os povos Ashanti e Fante já possuíam tradição
tanto em torno da mineração de ouro como na produção de objetos feitos de ouro
também, sobretudo os pesos de ouro Akan (MAFUNDIKWA, 2007)
76
Figura 16.
Pesos de ouro de origem Akan. Fonte: Afrikan Alphabets, Saki Mafundikwa, 2007
Os pesos Akan, além de sua função prática, são também reconhecidos como precursores
da escrita. Desenhos figurativos vieram para representar a sabedoria local de provérbios
ou eventos culturais. Eles eram usados como dispositivos mnemônicos para essas histórias
e provérbios de sabedoria, e às vezes eram enviados como mensagens tridimensionais.
MAFUNDIKWA, 2007. p. 29
Não obstante a ideia generalizada que subestima e, até mesmo, negligencia a atuação
feminina na mineração, elas se transformaram em mão-de-obra especializada na área,
tanto na África, quanto no Brasil. Além disso, na mesma região Ashanti, mulheres (com
suas crianças ao lado ou sendo carregadas nas costas das mães) montavam vendas nas
ruas das cidades, onde ofereciam alimentos e objetos variados, pagos com ouro em pó,
que servia de moeda para transações. Ora, novamente, e não por pura coincidência, o
quadro, quase de maneira idêntica, pôde ser facilmente constatado nas Minas Gerais.
Paiva, 2002
77
Essas práticas podem explicar porque as mulheres Ashanti (Mina, mas para os
portugueses) pareciam tão necessárias para o ciclo do ouro e sucesso na minera-
ção. Essa influência não se deu apenas nas crenças populares, mas também nos
costumes, nas técnicas e sobretudo na cultura material. Dentro do contexto da
mineração, uma das contribuições aparece através da bateia (Figura 17.), um ins-
trumento para auxiliar na mineração, similar a uma tigela. Ao que tudo indica,
as bateias possuem origem tanto africana, quanto européia e indígena14 (Silva,
2013b). Contudo, esses instrumentos possuem características diferentes, sobre-
tudo a de material: as africanas eram construídas com madeira, enquanto as
europeias eram feitas de metal, sobretudo o estanho (Silva, 2013b; Paiva, 2002).
Figura 17.
Bateia, século XIX. Fonte: Arte, adorno, design e tecnologia no tempo da escravidão, Emanuel
Araújo (org), 2013.
78
material: as bateias de madeira facilitam a concentração do ouro e de outras
pedras preciosas (Silva, 2013b). Analisando o objeto, além do seu formato
facilitar o manejo e o transporte, o material aumenta a aderência das pepitas
pequenas e pó de ouro, por possuir texturas e veios que as prendem na madeira,
fazendo com que o escape dos minérios fosse menor ao manejar a bateia, no ato
de remover cascalhos e outros elementos indesejáveis (Silva, 2013b). Além disso,
a madeira era mais resistente ao calor do sol e a água (Paiva, 2002).
[...] No início dos trabalhos de mineração do ouro, dos diamantes e das pedras preciosas,
no século XVIII, segundo relatos de viajantes e de técnicos que visitaram o Brasil no século
posterior, eram usados pratos de estanho, nos rios e córregos, para separar-se areia e seixos
do material precioso. Não demorou muito e o instrumento foi considerado pouco adequado
ao bom desempenho das atividades. Escravos(as) africanos(as) teriam, então, introduzido
gamelas feitas com madeira específica, resistente ao sol e à água, para separar o ouro e os
diamantes do material indesejado. Além do tipo de madeira e da técnica de manipulação das
gamelas, esses homens e mulheres introduziram, ainda, práticas que facilitavam o trabalho.
Paiva, 2002
79
Figura 18.
Detalhe de bateia, século XIX. Fonte: Arte, adorno, design e tecnologia no tempo da escravidão,
Emanuel Araújo (org), 2013.
Os pedaços de metal aplicados na bateia podem ser para fechar maiores aberturas da madeira
por conta do atrito com o fundo dos riachos, ou o contato constante com água e sol. As chapas de
latão colaboram para aumentar o tempo de vida da bateia e evita que parte do minério caia no
momento do manejo.
80
Nesta crença popular, acreditava-se que alguma coisa de ordem da sorte aconte-
cia em relação aos cativos de origem Mina para encontrarem ouro. Essas formas
de mito, como já observamos, sempre carregam parte da realidade como forma
de transmitir alguma sabedoria popular. Mas neste caso também adquire a fun-
ção de negar que essas pessoas tinham conhecimento técnico (e não sorte, ou
mágica) no que tangencia as habilidades mineradoras. Apesar disso, os povos
africanos de diversas origens sempre atribuíram uma conexão espiritual às práti-
cas que envolvem tanto a mineração quanto à metalurgia.
A metalurgia é uma prática ancestral antiga e muito respeitada na cultura afri-
cana. Responsável por forjar os objetos de uso cotidiano, que envolvem seu uso
em guerras, utensílios domésticos, ou para fins espirituais, o ferreiro tem uma
importância civilizatória, e por fim, sagrada (Cunha Júnior, 2013. p. 47-48),
representado dentro das religiões africanas como entidade que tutela e protege a
comunidade (Leite, 2013). O ferreiro tem a função honrada de instrumentalizar a
vida, e para tal está em constante comunhão com os espíritos (Leite, 2013. p. 79).
81
origens dominam a arte da metalurgia, que data aproximadamente 1.300 a 1.200
anos antes da era cristã (Cunha Júnior, 2013). Existem registros que em Kush,
na região da Núbia (atual Sudão), no período de 700 a 300 antes da era cristã,
se desenvolveu uma grande produção de ferro (Cunha Júnior, 2013). Embora
existam controvérsias e polêmicas, os sítios produtores de ferro na Tanzânia e
África Oriental podem ser os mais antigos e de melhor qualidade na antiguidade
(Cunha Júnior, 2013. p. 47). O jornalista José Roberto Teixeira Leite, adiciona:
Figura 19.
Detalhe de Castiçal, século XIX. Fonte: Arte, adorno, design e tecnologia no tempo da escravidão.
São Paulo: Museu Afro Brasil, 2013.
82
Hoje, após acuradas pesquisas realizadas em fins do século XX por uma equipe de arqueólogos,
antropólogos, historiadores, engenheiros e sociólogos africanos e europeus, sob a liderança
do senegalês Hamady Bocoum, sabe-se com certeza que a metalurgia não foi introduzida
na África Negra, mas ali se desenvolveu ao longo de milênios, em regiões como o Níger, a
Nigéria e Camarões. Com efeito, datações obtidas pelo método do carbono-14 revelaram que
a atividade siderúrgica naqueles países têm pelo menos 2.500 anos, sendo que em alguns
sítios do Níger Ocidental, teria sido iniciada muito mais cedo, por volta de 2.500 a.C.
Leite, 2013. p. 76
Figura 20.
Enxó, século XIX. Fonte: Arte, adorno, design e tecnologia no tempo da escravidão. São Paulo: Mu-
seu Afro Brasil, 2013.
83
Os estudos arqueológicos no Brasil mostram que parte da metalurgia africana
importada pelo sistema colonial teve aplicação na agricultura, carpintaria e
muitos outros. Na agricultura, esses estudos arqueológicos feitos nos sítios his-
tóricos do Rio de Janeiro mostram três tipos de enxada, duas delas de tecnologia
africana e uma inglesa (Cunha Júnior, 2013). Para definir a qualidade de uma
enxada, Henrique Cunha Júnior observa:
[...] a qualidade metalúrgica das enxadas depende dos processos de fundição do ferro e do
trabalho do ferreiro na produção do formato. A flexibilidade da lâmina da enxada e sua
resistência à batida contra o solo representa a qualidade do instrumento. As enxadas boas têm
grande flexibilidade produzindo menos impacto no braço do trabalhador, levando uma maior
produção com menor cansaço físico. Os estudos de metalurgia demonstraram maior qualidade
do produto africano em relação ao europeu. Fato que apenas é modificado no século XIX.
Cunha Júnior, 2013.
Figura 21.
Detalhe de portão de ferro, século XIX. Fonte: Arte, adorno, design e tecnologia no tempo da escra-
vidão. São Paulo: Museu Afro Brasil, 2013.
84
Figura 22.
José Adário dos Santos, ou Zé Diabo trabalhando. Fonte: Lucas Marques
Antigas referências quanto à produção de ferro na capitania de São Paulo indicam que
em 1590 foi realizada a construção de dois engenhos para fundição de ferro operados
por africanos, sob a responsabilidade de Afonso Sardinha. A origem da Fábrica de
Ferro Ipanema de Sorocaba, no entanto, remonta ao ano de 1765. Por outro lado, a
descoberta de ouro em Minas Gerais que fomentou uma necessidade da siderurgia.
Cunha Júnior, 2013.
85
Adário começou a aprender o ofício de ferreiro e ferramentaria dos orixás aos 11
anos de idade, na Ladeira da Conceição da Praia na Bahia (MARQUES, 2016). Seu
mestre e mentor Martiniano Prato foi quem lhe ensinou o ofício.
Aos 68 anos de idade, José Adário dos Santos, conhecido por todos como “Zé Diabo”,
é hoje considerado por boa parte do povo-de-santo de Salvador como um grande
ferreiro ou “ferramenteiro de orixá”. Seu processo de aprendizagem técnica com os
metais acompanhou sua aprendizagem com o próprio candomblé: iniciado na religião
aos oito anos de idade, Zé Diabo é também um babalorixá respeitado e detém grande
conhecimento em relação a assentamentos, ebós, feituras, ervas e jogos de búzios.
MARQUES, 2016. p. 39
86
Figura 23.
Ossain, feito por José Adário dos Santos. Fonte: Arte, adorno, design e tecnologia no tempo da es-
cravidão. São Paulo: Museu Afro Brasil, 2013.
87
Assim, os desenhos parecem sugerir uma lógica bem diferente daquela que, em nossa visão
moderna de design, entende-se como projeto [...] Ou seja, não há uma necessária continuidade
representacional na tríade projeto→execução→produto, que pressupõem uma linearidade entre
os termos – linearidade típica do projeto hilemórfico moderno. [...] o processo de produção das
ferramentas no candomblé não compartilha do mesmo plano ontológico moderno que opõe
necessariamente forma e matéria (ou aquilo que entende-se como modelo hilemórfico). Assim,
o desenho surge mais como uma forma de engajamento possível entre o homem, a matéria e os
deuses – uma forma, como veremos, de intuir os desejos do próprio orixá em materializar-se.
MARQUES, 2016.
Figura 24.
Esboço de Ossain, feito por José Adário dos Santos. Fonte:
Lucas Marques
“Nasci mesmo é pra trabalhar no ferro, no bruto. Fui criado assim, foi Ogum que
me fez assim. Não dá pra querer colocar chifre em cabeça de cavalo. Não dá”
MARQUES, 2016
15. Na tradição dos orixás, [orí é a] denominação da cabeça humana como sede do conhecimento
e do espírito. Também, forma de consciência presente em toda a natureza, inclusive em animais e
plantas, guiada por uma força específica que é o orixá. (Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africa-
na)
88
Após esses processos, ele se encaminha para o coração do processo, que é pro-
priamente a forja. Esse não é um processo leviano, ou para fazer minuciosidades.
Para forjar precisa estar “com a cabeça no lugar” (MARQUES, 2016). Depois da
forja, passa para a fase de acabamento, que envolve pintura e a secagem ao sol, e
está pronta a ferramenta.
É curioso como o trabalho sagrado dos ferreiros desde os ancestrais até os mais
velhos vivos conseguem traçar uma variedade de paralelos com o próprio pro-
cesso que define o design. Se comparado o processo de José Adário dos Santos
com o complexo de funções proposto por Papanek, é possível identificar que o
processo do ferreiro se preocupa e atende às seis fases estabelecidas. Mas o dife-
rencial reside numa característica que, como observamos, não é considerada nos
processos do design aos moldes do pensamento ocidental: a profunda conexão
com a espiritualidade, desde a sua idealização, até a finalização do produto final.
Figura 25.
Ferramentas dos Orixás, por José Adário dos Santos. Fonte: Lucas Marques
89
Indumentária de resgate da ancestralidade
A indumentária afro-brasileira é geralmente atrelada com o viés de resgate da
ancestralidade. Essa conexão com os símbolos africanos, são representados atra-
vés das roupas e adereços, permitindo incluir as pessoas pretas a participarem
da continuidade dessa cultura que se interrompe em alguns momentos históricos,
na forma de repressões e apagamento das manifestações culturais de matriz afri-
cana, sobretudo as religiosas.
Parte dessas manifestações são as roupas comumente conhecidas como roupas de
baiana, que possuem origem no século XVII, que mistura uma série de elementos
culturais de origem africana, europeia e árabes (Figura 26.).
Foi do ventre desta Bahia Afrobarroca que nasceu o traje da baiana, inicialmente a
serviço de externar a riqueza de suas senhoras e seus senhores, e, mais tarde ou ao
mesmo tempo, constituindo-se em insígnias de poder para suas usuárias. Trata-se de uma
indumentária híbrida, que foi sendo elaborada muito vagarosamente, no século XVII [...]
Factum, 2009. p. 150-152
Espécie de xale comprido que integra o antigo traje das mulheres africanas e
crioulas na Bahia. Usado a tiracolo, sobre uma das espáduas, com as extremidades
cruzadas na frente, ou jogado negligentemente sobre o ombro, era feito com
tecido importado da África ocidental, sendo mais tarde fabricado no Brasil.
LOPES, 2011
16. Esse nome tem a ver com a suposição de que esse adereço veio da costa africana. A expressão
“da Costa” era popular para definir o nome de diversos produtos vindos de África (Factum, 2009)
90
Figura 26.
Retrato de Baiana, por Guilherme Gaensly. Década de 1880. Fonte: Arte, adorno, design e tecno-
logia no tempo da escravidão. São Paulo: Museu Afro Brasil, 2013.
Os alakás foram importantes produtos importados para o Brasil no século XVIII,
oriundos de regiões cujo seu uso era tradicional, incluindo Costa do Marfim,
Gana, Nigéria, Congo, Benin e Senegal (Santos, 2011). Posteriormente, no mesmo
século, o adereço passou a ser fabricado no Brasil, e já fazia parte da indumentá-
ria afro-baiana, e ainda hoje é um pedaço fundamental para manter pungente a
premissa de reconexão ancestral.
O alaká, em conjunto com outros adereços da indumentária da baiana, repre-
senta a forma africana de ver o mundo e indica a hierarquia daquela que faz uso
do traje dentro do contexto religioso (Factum, 2009).
Feito de tecelagem manual, tem um formato retangular de pelo menos 2m de
comprimento por 0,6m de largura. O material utilizado para sua confecção geral-
mente é o algodão, mas também seda ou ráfia (Santos, 2011), possuindo padro-
nagens geralmente geométricas, com listras longitudinais ou entrecruzadas, sem
nenhum ornamento ou outro símbolo mais elaborado. As cores do alaká referem-
-se aos orixás, e seu uso indica tanto hierarquia quanto proteção. As iyawos, por
exemplo, após o período de feitura o utilizam na cor branca, para proteger o seu
corpo, sobretudo a cabeça e o ventre, das energias do mundo exterior17.
Modos de usar o pano da Costa. Da esquerda para a direita, em cima: 1) saída a passeio
com o traje de cerimônia; 2) saída à rua, a serviço, com o traje diário; 3) costas do 1º.
Em baixo, na mesma ordem: 1) modo também de cerimônia, agasalhando mais; 2)
pano da Costa de mulher que se dispõe a trabalhar; 3) modo de usá-lo em cerimônia
do culto orixá masculino. Ao centro (32 a 36), diferentes modos de usar o torso.
TORRES, 2004
É importante ressaltar que, como boa parte da cultura material africana, seja no
continente ou na diáspora, todo objeto possui significado atribuído à sua exis-
92
Figura 27.
Alakás. Fonte: IPAC
93
tência. O alaká está intimamente relacionado ao axé18, à transmissão oral de
conhecimento e tradição. Isso se materializa através da figura do Mestre Abdias
Sacramento Nobre que nos anos 80, era o único representante no Brasil de uma
linhagem de tecelões de Alakás (LOPES, 2011).
Nascido no bairro de Santo Antônio, Salvador, filho de um ferreiro e uma domés-
tica, aprendeu seu ofício com seu padrinho, Alexandre Geraldes, que por sua vez
Figura 28.
Desenhos explicativos dos modos de usar o alaká. Fonte: Alguns aspectos da indumentária da
crioula baiana, Torres, 2004.
18. Termo de origem iorubá que, em sua acepção filosófica, significa a força que permite a reali-
zação da vida, que assegura a existência dinâmica, que possibilita os acontecimentos e as trans-
formações. (Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana)
94
aprendeu o ofício com seu pai, Ezequiel Antônio Geraldes da Conceição (TORRES,
2004). Uma característica importante dessa sucessão de artesãos é a técnica, tipi-
camente africana, para confecção de seus alakás.
O tear de Mestre Abdias Nobre, tecelão baiano, possui características idênticas aos
teares encontrados na África Central, em especial na Nigéria, sendo a mesma técnica
desenvolvida. O jacarandá era a madeira mais utilizada na confecção do tear, sendo
ele todo desmontável. O tecelão pode transportá-lo, caso haja necessidade.
LOPES e NOBRE, 2011
95
Figura 30.
Mestre Abdias trabalhando no tear. Fonte: IPAC
96
A nomeada Joalheria Crioula (ou joalheria escrava baiana) foi um conjunto de
peças que adquiriram um certo grau de produção em escala durante o período, e
se destacam como peças de design por sua função social entre as mulheres negras
(Factum, 2009).
Ao analisar os elementos que configuram a joalheria crioula no Brasil, Ana
Beatriz Simon Factum afirma em sua pesquisa que:
Nas vestes destas mulheres, como também nas suas jóias, manifesta-se a mistura dos
elementos da cultura europeia com as questões locais para se criar uma nova realidade,
ambígua e contraditória, em que é possível reconhecer parcialmente suas matrizes originais.
FACTUM, 2009. p. 155
Figura 31.
Pulseira de crioula com três placas. Século XIX. Fonte: Fonte: Arte, adorno, design e tecnologia no
tempo da escravidão. São Paulo: Museu Afro Brasil, 2013.
A pulseira de placas (Figura 31.), de acordo com Factum, é uma “peça da jóia
crioula, composta por chapas retangulares decoradas com motivos fitomorfos ou
97
efígies e as partes são conectadas entre si pelos elos ou cilíndros do mesmo metal,
ou em coral ou petra colorida escantoados”. Era um padrão da época inclusive
entre os membros da família real do Brasil, o que indica que as peças faziam
parte uma tentativa de inserção social (Factum, 2009. p. 164). Os adornos se
caracterizam como afro-brasileiros, segundo Factum, não apenas pela sua criação
e uso por mulheres africanas, mas sobretudo pela sua mistura de elementos esti-
lísticos, que representam elementos de origem europeia, muçulmana e africana:
98
Figura 32.
Colares e figas. Ourom marfim, coral e ônix. Século XIX. Fonte: Fonte: Arte, adorno, design e tecno-
logia no tempo da escravidão. São Paulo: Museu Afro Brasil, 2013.
99
O uso do Coral, pedra alaranjada que pode ser observada nas contas e figas na
Figura 32. também foi intenso na joalheria afro-brasileira, sobretudo as de cor
vermelha (e eventualmente encontradas na cor azul). Elas foram utilizadas na
forma cilíndrica (africana), em rama como amuleto europeu ou lapidados em
forma de figa – que se encontram nos colares e balangandãs (factum, 2009).
Figura 33.
Pulseiras com balangandãs. Ouro, coral, osso, ônix, marfim, esmalte e pasta de vidro. Século XIX-
-XX. Fonte: Fonte: Arte, adorno, design e tecnologia no tempo da escravidão. São Paulo: Museu Afro
Brasil, 2013.
100
Figura 34.
Balangandãs. Prata, madeira e osso. Século XIX. Fonte: Fonte: Arte, adorno, design e tecnologia no
tempo da escravidão. São Paulo: Museu Afro Brasil, 2013.
Genericamente o balangandã é uma joia protetiva, isto é, uma joia amuleto que serve
para a proteção espiritual de sua usuária. Os balangandãs podem ser devocionais, ou seja,
aqueles que envolvem a devoção sincretizada a um orixá e/ou a algum santo da Igreja
católica (cujos pingentes podem ser a espada de São Jorge, que representa o embate
guerreiro; a pombinha, que representa o Espírito Santo; além de cruzes e crucifixos).
Silva, 2013a. p.155
101
cando uma devoção sincretizada a um orixá ou santo da igreja, além dos penden-
tes como amuletos.
Genericamente o balangandã é uma joia protetiva, isto é, uma joia amuleto que serve
para a proteção espiritual de sua usuária. Os balangandãs podem ser devocionais, ou seja,
aqueles que envolvem a devoção sincretizada a um orixá e/ou a algum santo da Igreja
católica (cujos pingentes podem ser a espada de São Jorge, que representa o embate
guerreiro; a pombinha, que representa o Espírito Santo; além de cruzes e crucifixos).
Silva, 2013a. p. 155
102
Figura 35.
Bilhete postal: Uma crioula da Bahioa, Brazil. Fonte: Fonte: Arte, adorno, design e tecnologia no
tempo da escravidão. São Paulo: Museu Afro Brasil, 2013.
Na imagem é possível observar os principais itens da idumentária abordados: o uso do alaká, as
jóias e a penca de balangandãs pinduradas na cintura.
103
A moda afro-brasileira e relacionados tem como uma característica forte essa
reconexão ancestral, resgatando símbolos africanos e seus significados para
serem vestidos e celebrados. A designer e artista Goya Lopes (1974) representa
este movimento de apropriação desses símbolos africanos, além de explorar ele-
mentos característicos da indumentária e estética baiana.
Formada pela Escola de Belas Artes da Universidade da Bahia, Goya Lopes desen-
volve desde 1986 produtos para área têxtil (tanto na moda quanto para decora-
ção de interiores), conceituando seu trabalho dentro da simbologia africana e
afro-brasileira (ABDESIGN, 2002). O traço característico de Goya carrega sempre
símbolos como os adinkras, ou homenagens aos Orixás, e o uso de cores quentes
e vibrantes são amplamente utilizadas em suas confecções e estampas.
As roupas apresentadas na Figura 36., apresentam alguns símbolos africanos
importantes de serem destacados:
Aku’aba
A aku’aba é uma boneca feita de madeira ou argila de origem Ashanti, mas tam-
bém apropriada por diversos povos africanos nos arredores. De acordo com a
Encyclopedia of African Religions (Enciclopédia das Religiões Africanas) ideali-
zada por Molefi Kete Asante e Ama Mazama:
A Kwa Ba, também conhecida como Akua’ba, é a grande mãe primordial de todos os
humanos na construção Akan do universo. É ela quem acolhe os humanos na existência
social e torna possível a comunidade humana. Sem a Kwa Ba, não há acolhimento, e sem
acolhimento não há reconhecimento da humanidade que existe em cada pessoa. [...]
A mãe primordial é aquela que recebe as meninas na idade adulta quando
elas tem sua primeira menstruação, e recebem as imagens feitas de
madeira ou argila da Aku’aba das suas mentoras mais velhas.
Asante e MAZAMA, 2009
104
Figura 36.
Peças de roupas produzidas por Goya Lopes. Fonte: ABDesign
105
Figura 37.
Aku’aba. Fonte: Arquivo pessoal
Ela é utilizada num contexto ritualístico para fertilidade – que neste caso vai
além da gestação biológica, mas também de origem criativa. A fertilidade sob
essa perspectiva é simbolizada pela água corrente, ou rio (também representado
na Figura 7), sendo a aku’aba um instrumento para manter este rio seguindo seu
curso. A Iyá Janaína Portella comenta:
106
Figura 38.
Panos de posse do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1998. Fonte:
Divulgação, por Cláudio Eugênio
107
Dentro de um contexto ritual, a Iyá Janaína Portella explica que a aku’aba geral-
mente é feita por um homem artesão, e para obtê-la, uma mulher deve ganhá-la
de uma mãe que possua muitos filhos (ANEXO I).
Adinkras
Os adinkras são um sistema de proto-escrita através de ideogramas de origem
Akan - posteriormente incorporado pelos Ashanti que existe por um pouco
mais de quatro séculos (MAFUNDIKWA, 2007). Seus mais de oitenta ideogramas
carregam nomes e formas de provérbios tradicionais, princípios, momentos his-
tóricos, observações do modo de vida animal como filosofia, e outros aspectos
sócio-culturais. Além de se manifestar como grafia, os adinkras funcionam como
linguagem através de objetos: estampas de roupas utilizadas em ocasiões espe-
ciais, como em contrapesos de ouro (djayobwe) vistos brevemente em capítulos
anteriores, o conhecido banco do rei (gwa) e contemporaneamente em objetos de
ornamentação em casas, acessórios, etc.
108
Sankofa Adinkrahene Nkyimkyim Ako-Ben Owuo Atweede
“Retorne e pegue” O chefe dos símbolos Torções da vida. Chifre de guerra “A escada da morte será
Aprender com o passado Adinkra. Grandeza, caris- Iniciativa, dinamismo, Chamado às armas subida por todos”
ma e liderança. versatilidade Mortalidade
109
O principal motivo dessa civilização ser estudada é que ela foi invadida por
diversos povos e, assim mesmo, conseguiu preservar seus valores culturais
e sua identidade pelos seus produtos contextualizados no meio.
astro e Menezes, 2009. p. 38
O adinkra Denkyem (Figura 40.), utilizado nas estampas feitas por Goya Lopes
(Figura 35. e Figura 41.) traduzido literalmente da língua Twi, significa croco-
dilo. Representa a adaptabilidade: o crocodilo respirar o ar, mas vive tanto na
água quanto na terra, e representa a capacidade de se adequar às circunstân-
cias19.
Figura 40.
Adinkra Denkyem. Fonte: Reprodução adinkra.org <Acesso em dezembro, 2020>
110
Figura 41.
Ilustração Arte do Cotidiano, por Goya Lopes. Fonte: Livro Imagens da Diáspora.
111
adequam a diversos formatos de corpos. Em uma de suas coleções mais memorá-
veis, homenageou as mulheres trans e travestis no desfile baseado na história de
Xica Manicongo, considerada a primeira travesti da História do Brasil.
O resgate da ancestralidade dentro desse contexto de enfrentamento das opres-
sões também reivindica a afetividade como combustível para a força criativa,
reivindicada por Isaac Silva e também por Jal Vieira. Nascida na Brasilândia,
periferia de São Paulo, a dificuldade financeira que marca a carreira de Vieira
colocou-a para pensar em materiais menos convencionais em suas confecções
repletas de texturas.
Figura 42.
Uso da Samakaka na coleção Xica Manicongo, por Isaac Silva. Fonte: Divulgação
112
Figura 43.
Maria Clara Araújo, primeira travesti à ingressar na Universidade Federal do Pernambuco, posan-
do para o lookbook da coleção Xica Manicongo. Fonte: Divulgação.
113
criou uma rede de apoio para os profissionais pretos da área, incluindo Jal Vieira.
Essa linhagem de designers que acompanham a história da indumentária africa-
no-brasileira possuem diferentes demandas ao longo do tempo, e designers mais
contemporâneos têm abordado pautas que permeiam, além da raça, discussões
sobre gênero, sexualidade, acesso e representatividade, criando novas formas de
se relacionar com a historicidade da cultura material, símbolos e ancestralidade,
mantendo a história viva, em movimento, indicando progresso na luta contra o
apagamento cultural e epistemológico das pessoas pretas na história. Sobretudo
recorda o princípio apresentado no início deste trabalho: tembo, espelhando-se
no comportamento natural dos elefantes, significa metaforicamente dentro desse
contexto a persistência da memória e continuidade dos passos daqueles que vie-
ram antes. Assim, os ancestrais se mantêm vivos e presentes em nossas vidas.
114
Figura 44.
Modelos posam para coleção Minha pele costura minha história, de Jal Vieira. Fonte: Elle, 2020.
115
Periódicos da Luta Negra
Figura 45.
Cabeçalho do periódico O Homem de Côr, 1833. Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira, Biblioteca
Nacional.
116
A tradição oral é a grande escala da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. Pode
parecer caótica àqueles que não lhe descortinam o segredo e desconcertar a mentalidade
cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. Dentro da tradição
oral, na verdade, o espiritual e o material não estão dissociados. Ao passar do esotérico
para o exotérico, a tradição oral consegue colocar-se ao alcance dos homens, falar-lhes de
acordo com o entendimento humano, revelar-se de acordo com as aptidões humanas.
Bâ, 2010. p.169
A tradição oral se torna importante dentro desse contexto, porque é a fala que
possui o poder da criação (Bâ, 2010). Mas apesar dessa relação com a tradi-
ção oral, é errôneo afirmar que os povos africanos não possuem relação com a
escrita. Vendo de um ponto de vista europeu, o domínio da escrita é o marco que
divide a pré-história da história propriamente dita. Apesar de todas as outras for-
mas de registro, desde a pré-escrita até tradições orais, a história começa quando
a Europa passa a dominar este recurso.
A escrita versus a tradição oral, dita desta forma, parece ser mais uma das
dicotomias que separam os europeus dos povos africanos, mas a África detém
117
uma série de sistemas de escrita que foram desenvolvidos ao longo da história
(Mafundikwa, 2007). A escrita e outros sistemas considerados proto-escritas
(como os adinkras, abordados anteriormente) fomenta a criação de símbolos que
promovem uma nova linguagem, que age como uma nova fonte de conhecimento
em si, mas também como um apoio da tradição oral. Não existe oposição entre
essas formas de linguagem. Entretanto, embora não seja considerado neste pro-
jeto uma hierarquia entre as tradições, a escrita neste trabalho será priorizada
por conta da sua função específica dentro do design.
A atividade impressora era proibida na colônia brasileira até a chegada da coroa
portuguesa em 1808 (Melo e Ramos, 2011). A sua chegada trouxe os primeiros
equipamentos tipográficos, que eram basicamente tipografias de chumbo, com
coleções de tipos e ornamentos, que acabaram por definir os parâmetros de lin-
guagem gráfica da época (Melo e Ramos, 2011).
118
Foi num sábado de 1833, dois anos após a abdicação de D. Pedro I (o Sete de Abril) e
a criação da Guarda Nacional, também chamada de “milícia cidadã”. O cenário era
o da intensa agitação em torno dos valores da democracia moderna que marcou o
período regencial. Vivia-se um momento de reafirmação prematura da cidadania
brasileira. O primeiro jornal da imprensa negra no Brasil, o pasquim O Homem de
Côr, surge da Tipografia Fluminense de Paula Brito, na capital do Império, a 14 de
setembro, pondo em xeque as efetivas condições de realização dessas promessas
Pinto, 2006. p.17
119
Paula Brito foi responsável pela publicação das obras de autores como Machado
de Assis e José de Alencar, além de diversas obras que marcam a história literá-
ria brasileira, como o primeiro romance brasileiro “Antônio José ou o poeta e a
Inquisição”, de Gonçalves de Magalhães (Revista Fapesp, 2016). Neto de africanos
libertos, pôde ser aprendiz de arte gráfica na Tipografia Imperial e Nacional, gra-
ças ao seu avô materno. Passou por diversas tipografias, ocupando melhores car-
gos, que garantiu experiência no ofício para que ele desse continuidade em seu
próprio negócio, em 1831 (Pinto, 2006. p. 52).
Logo depois de adquirir o maquinário necessário para dar início aos trabalhos,
lançou o periódico A mulher do Simplício ou A Fluminense Exaltada (1832-1846).
Anos mais tarde, criou a Marmota na Corte, que passa a se chamar Marmota Flu-
minense em 1852 (Pinto, 2006. p. 53).
Figura 46.
Edição nº 83 de A mulher do Simplício ou a Fluminense Exaltada (1846) e Edição nº 1 de A Mar-
mota na Corte (1849). Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira, Biblioteca Nacional.
120
Figura 47.
Folha de Rosto do livro Desencantos, por Machado de Assis e periódico semanal A Grinalda, 1861.
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira, Biblioteca Nacional.
121
grafia clássica europeia, que chega aqui junto com a corte (Melo e Ramos, 2011).
Os jornais geralmente possuem não mais do que duas colunas, e o uso de adornos
é limitado a poucos elementos na página. No caso dos livros, o alinhamento era
geralmente centralizado, fazendo o uso de diversas famílias tipográficas - mas
estabelecendo uma hierarquia clara entre as informações. Esse modelo de diagra-
mação ainda é amplamente utilizado nas folhas de rosto das publicações (Melo e
Ramos, 2011).
O legado dos periódicos com pautas raciais não se extingue nas publicações feitas
pela tipografia de Paula Brito. Em 1915 com a publicação de O Menelik que origi-
nou a Imprensa Negra, que durou até 1963 (Moura, 2002). O período da Imprensa
Negra, que ocorreu sobretudo em São Paulo, foi marcado pela ausência de recur-
sos, o que acaba explicando poucas edições de boa parte delas.
122
Figura 48.
Edições 1, 3 do periódico O Menelik: Órgão mensal, noticioso, literário e crítico dedicado aos ho-
mens de cor, 1915 - 1917. Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira, Biblioteca Nacional.
O nome do periódico, O Menelik, tem como objetivo homenagear uma figura que,
de acordo com o periódico, era “esquecida entre os homens de cor” (O Menelik,
1915) o primeiro imperador da Etiópia, Menelik II. Uma das razões para a escolha
do nome, segundo o jornal, era que o nome era fácil (O Menelik, 1915).
123
Embora tenha sido um periódico direcionado para pessoas negras20, o jornal O
Menelik não se ocupava ativamente das discussões políticas que envolviam raça,
mas focou sobretudo em divulgar bailes, algumas notícias mais cotidianas não
conectadas com os jornais de maior circulação da época. De acordo com Jayme
Figura 49.
Jornais O Bandeirante (1918) e O Alfinete (1918). Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira, Biblioteca
Nacional. A estrutura desses jornais seguem a mesma regra de serem mais sérios com uma quan-
tidade grande de textos, apelando menos para o uso de imagens e ilustrações.
20. É visível nesses jornais a tentativa de utilizar temos mais atenuantes para a palavra negro, so-
bretudo nos jornais mais velhos, como o próprio Homem de Côr, de 1833 da Typographia F. P. Brito
e O Menelik, de 1915, fundado pelo poeta Deocleciano Nascimento. Nas edições que foram anali-
sadas para este trabalho, a palavra “negro” é sempre substituída pelos termo “homens de cor” ou
“classe de cor”.
124
Aguiar, um dos fundadores do jornal O Clarim (que mais tarde se tornou O Cla-
rim da Alvorada), O Menelik, assim como seus contemporâneos O Xauter (1916),
O Bandeirante (1918), O Alfinete (1918), entre alguns outros, tratavam do “movi-
mento associativo das sociedades dançantes” (Aguiar In. Moura, 2002).
Esse O Menelik, por causa da época de guerra da Abissínia com a Itália, teve uma
repercussão muito grande dentro de São Paulo. Todo negro fazia questão de ler
O Menelik [...] Depois, então, é que surgiram os negros que queriam dar alguma
coisa de mais elevação, de cultura, de instrução e compreensão para o negro. Então
surgiram os primeiros jornais dos negros dentro de um espírito de atividade profunda.
Modéstia à parte, eu e o Correia Leite, a 6 de janeiro de 1924, fundamos O Clarim.
Aguiar In. Moura, 2002
125
Figura 50.
Primeira edição de O Clarim (que se tornaria posteriormente em O Clarim da Alvorada), 1924. Fon-
te: USP Imprensa Negra Paulistana
126
Figura 51.
Edição nº12 de O Clarim da Alvorada, 1925, edição nº 18 de A Liberdade, 1920. São Paulo - SP. Fon-
te: USP Imprensa Negra Paulistana
127
A organização conseguiu respeito dentro da comunidade negra, mas também das
autoridades. E isso se dava majoritariamente pelos posicionamentos da Frente,
que defendiam que para o negro se integrar na sociedade, tinha que ser cultural-
mente parecido com o branco (Factum, 2009).
A organização conseguiu respeito dentro da comunidade negra, mas também das
autoridades. E isso se dava majoritariamente pelos posicionamentos da Frente,
que defendiam que para o negro se integrar na sociedade, tinha que ser cultural-
mente parecido com o branco (Factum, 2009).
Figura 52.
Edição nº 48 do jornal Alvorada, de Pelotas - Rio Grande do Sul e Edição nº 6 do jornal Auriverde,
1928, de São Paulo. Fonte: Moura, 2002
128
Paradoxalmente, o conceito de raça é manipulado pelos frente-negrinos,
que, no seu jornal A Voz da Raça, colocam como seu slogan “Deus, Pátria,
Raça e Família”, que depois foi modificado. Era um slogan decalcado
diretamente do “Deus, Pátria e Família”, da Ação Integralista.
Moura, 1992
Essas contradições ideológicas fizeram com que José Correia Leite se afastasse da
organização (incluindo o jornal). Mais tarde, junto à Associação do Negro Brasi-
leiro, daria origem ao jornal Alvorada (1945).
Figura 53.
Edições do jornal A voz da Raça, da Frente Negra Brasileira. Fonte: USP Imprensa Negra
129
Há uma particularidade na imprensa negra: ela não reproduz nas suas páginas
esta dinâmica da sociedade abrangente. Muito raramente há referências a esses
fatos. Ela é fundamentalmente uma imprensa setorizada, ou, como a caracteriza
Bastide, apoiado nos norte-americanos, uma imprensa adicional [...]
Esta posição de pequeno universo é uma constante nesses jornais. A
sua tônica é a integração do negro brasileiro (mais negro brasileiro
do que afro-brasileiro) na nossa sociedade como cidadãos.
Moura, 2002
Figura 54.
Seu slogan reforça o peso do símbolo,
Edição nº 14 do jornal Alvorada, da Associação reproduzindo uma frase de José do
dos Negros Brasileiros. Fonte: USP Imprensa Ne- Patrocínio, que diz: “Não principiamos,
gra
continuamos”.
130
Fora do eixo da imprensa negra paulista, no Rio de Janeiro o intelectual Abdias
do Nascimento (1914-2011) fundava o jornal Quilombo: vida, problemas e aspira-
ções do negro (1948). Focado nas questões políticas, mas sobretudo culturais da
população negra, o jornal Quilombo, diferente dos demais dentro do período da
imprensa negra, não reivindica um “embranquecimento” ou uma integração que
signifique abdicar de símbolos e costumes tipicamente afro-brasileiros. O jornal
Quilombo aborda assuntos que envolvem as escolas de samba, candomblé, teatro
e poesia, entre outros.
Esteticamente também é razoavelmente diferente dos demais jornais, sobretudo
Figura 55.
Dupla da 1ª Edição do jornal Quilombo, por Abdias do Nascimento, Rio de Janeiro. Fonte: IPEAFRO.
131
Figura 56.
Capa da 1ª Edição do jornal Quilombo, por Abdias do Nascimento, Rio de Janeiro. Fonte: IPEAFRO.
132
pelo logotipo manuscrito que encabeça o jornal e títulos de algumas matérias. O
amplo uso de imagens e ilustrações também demonstram um maior apelo popu-
lar da publicação (Melo e Ramos, 2011).
O universo que engloba, não apenas a Imprensa Negra, mas a cultura material
afro-brasileira como um todo é repleto de contradições e dificuldades. Apesar
das mudanças de método e visão política, todos aparentam ter objetivos muito
similares: a garantia de direitos, bem-estar social e bem-viver das pessoas negras
e da cultura que as cerca. De uma forma ou de outra, a historiografia do design
afro-brasileiro demonstra muito mais do que um pesar pela condição denunciada
pelos ancestrais que ainda persiste no nosso presente: ensina uma tremenda
consciência de agência, de que somos protagonistas de nossa própria história
Uma das estratégias utilizadas para a manutenção do racismo foi, e tem sido, a de
ignorar toda a contribuição tecnológica e intelectual do povo negro no percurso
da história da humanidade, retirando assim qualquer referência para a cons-
trução de auto-imagem que não seja a de um passado escravagista. Mas ela não
precisa ser. Depende de muitos, mas sobretudo de nós, não cortar a garganta da
nossa cultura.
133
Capítulo 6
Conclusão
Responder a pergunta cadê os pretos no design tem sido uma missão de anos, e
será missão de muitos outros anos ao horizonte. Reforçar essa noção da passagem
do tempo em conjunto às definições que o projeto adotou permite abrir o leque para
outras soluções dessa pergunta.
Esse projeto possuía duas hipóteses principais: a primeira pressupunha que existiram
sim designers negros que contribuíram para o design brasileiro. Essa hipótese se con-
firma quando considerado que o design ocorreu – mesmo que sem esta nomenclatura
– antes da oficialização do design no Brasil a partir da ESDI, na década de 60. Mas
ela segue verdadeira quando observamos alguns designers contemporâneos e suas
contribuições que também buscam reivindicar o espaço no design enquanto descen-
dentes de africanos.
A segunda hipótese levantada para este projeto parte do entendimento de que o
design no Brasil é fruto da mimese de um modelo cujo berço é europeu e eurocên-
trico. Seu desenvolvimento parte do mesmo paradigma etnocêntrico que expressa a
dominação europeia no mundo. Essa hipótese, por sua vez, pode possuir duas respos-
tas válidas: se for considerado que o design é um fenômeno intrínseco ao ser humano
desde que começou a desenvolver ferramentas, e que este não possui origem após a
Revolução Industrial Europeia, e sim como parte da evolução humana, a hipótese não
se confirma. Nesse sentido, é possível empregar a análise de Victor Papanek (1984)
que afirma que o design agrega um complexo de funções, e toda elaboração de sis-
tema, interface ou artefato que (1) envolva um método, incluindo suas ferramentas,
materiais e processos; (2) se associe à cultura e ambiente construções cognitivas ao
longo do tempo; (3) que sua estética dialogue com a percepção do ambiente que o
cerque; (4) busque solucionar necessidades humanas de qualquer ordem; (5) possua
um progresso planejado, visando a atualização gradual de técnicas e tecnologias;
e (6) vise um uso, seja como ferramenta, comunicação ou símbolo; é considerado
135
design. Contudo, como o próprio afirma: não é Design Industrial (PAPANEK, 1984). O
que leva para a segunda resposta possível:
A segunda resposta plausível é que, o design como o conhecemos e que compõe os
modelos de ensino no Brasil, é fruto direto da Revolução Industrial Europeia. Sendo
fruto de um fenômeno significativo (tanto do ponto de vista histórico, quanto social e
civilizatório), o design reflete neste paradigma, valores e premissas do ambiente em
que ele foi concebido. Nesse sentido, o design age (também) como uma ferramenta
de manutenção do utamawazo e utamaroho europeus, que de acordo com a tese da
antropóloga Marimba Ani, Yurugu: uma crítica afro-centrada do pensamento cultural
e comportamento europeu (1994), possui características racionalistas, universalistas
e também controladoras. Nesse sentido, o berço cultural do design é intrinsecamente
eurocêntrico, porque ele serve à asili europeia, assim como os demais elementos da
cultura dominante.
Este dado diante da pergunta cadê os pretos no design tem o peso da própria história,
que sistematicamente (sobretudo no período em que o racionalismo europeu ganha
corpo dentro das dinâmicas culturais e sociais europeias) diminui e menospreza a
contribuição preta pro mundo. Sendo assim, por que procurar os pretos no design?
Como é possível estabelecer uma análise afrocêntrica dos artefatos produzidos dentro
dessa profissão?
Talvez não seja possível, ou seja preciso pensar num novo nome que contemple a
visão holística que a cultura material africana e afro-brasileira possuem. Essa é uma
discussão ampla, e definitivamente não é do escopo deste projeto. Entretanto, se
apegar ao conceito de agência determinado pelo paradigma da Afrocentricidade é o
que define esta análise como afrocêntrica. Este projeto não pressupõe que africanos
e seus descendentes ficaram à margem da construção da história, e ao assumir essa
posição, localizou histórica e psicologicamente os indivíduos e fenômenos, defendeu e
136
respeitou os termos, crenças e elementos culturais africanos nas análises dos artefa-
tos e daqueles que os produziram.
Levando em consideração que as culturas interagem, trocam, assimilam – e com toda
a certeza, entre brancos e negros essa relação foi menos equilibrada, mas ainda não
deixou de existir –, não só o que foi analisado contribuiu para o que pode ser cha-
mado de design, indiferente de sua origem, como é possível afirmar que sim, os arte-
fatos analisados são peças de design. Levando em consideração a análise de Marimba
Ani, o que diferencia o design afro-brasileiro do design europeu (visto como univer-
sal) não é apenas quem fez (os pretos), mas em quais circunstâncias e sobre qual
prerrogativa cultural. Estariam essas mãos pretas apenas reproduzindo um modelo
ocidental? Se sim, isto pode ser considerado design afro-brasileiro?
A resposta para as perguntas anteriores é não. A cultura material dos africanos e seus
descendentes no Brasil, embora carregue atravessamentos de origem europeia (como
também indígena), é autêntica na valorização dos espíritos, e quando não com esse
nome, carrega na marca o respeito e a necessidade de continuidade dos processos
que foram construídos pelos ancestrais. O racionalismo promovido pela cultura euro-
peia, como observa Ani, não inclui a esfera espiritual como diretriz primária.
Diante de todos os pontos levantados, ressalto que este trabalho tem como objetivo
fazer um convite às reflexões sobre ensino e prática do design dentro de uma reali-
dade que inclua novas narrativas e localizações, pertencentes ao desenvolvimento
deste ofício.
Acredito profundamente que quando geramos narrativas autênticas com nossas pró-
prias referências, damos um passo para a nossa liberdade. E esta escrita anda lado a
lado desta crença. Mais do que nunca.
137
Capítulo 7
Referências
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2020.
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Os textos deste trabalho
foram compostos com a
família tipográfica Capitolina,
projetada pelo designer
Christopher Hammerschmidt
com revisão de Marconi Lima.
Para os títulos e texto sem-
serifa, foi utilizada a família
tipográfica Obvia, projetada
por Marconi Lima, tipógrafo
preto na TypeFolio.
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