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Zanzibar », de Altaïr Despres: « Post


coïtum, animal triste »
O livro da semana. A autora denuncia a inanidade do turismo de massa com
base em um desequilíbrio econômico entre seus atores e que nunca beneficia
a população dos países do Sul.

Por  Kidi Bebey


Postado no jornal Le Monde em 05 de março de 2023 às 9:00, atualizado às 10:33
Disponível em: https://www.lemonde.fr/afrique/article/2023/03/05/zanzibar-d-altair-despres-
post-coitum-animal-triste_6164209_3212.html
Tradução livre de DANTAS, A. V. S. 
Tempo de Leitura: 4 min.

O que é Zanzibar? Um arquipélago do Oceano Índico na Tanzânia, África Oriental?


Certamente. Mas é também o título e a questão de um romance, o primeiro da autora
francesa Altaïr Despres que, começando pelo poder de evocação desse território -
sinônimo de estadas encantadoras para pessoas que, no planeta, têm os meios de
passar as férias lá - oferece uma ficção na contagem regressiva dessa imaginação.

"Este livro não é apenas inspirado por fatos reais. Ele conta, através da literatura, uma
história verdadeira", alerta a romancista no preâmbulo. Que aqueles que sonham com
imagens românticas seguem seu caminho; pelo contrário, será uma questão de
desiludir seus olhos e concordar em arranhar onde dói.

Inicialmente, no entanto, e para a maioria dos protagonistas do livro, tudo começa com
um sonho: aquele que construímos nos projetando em férias assim que acreditamos
nas imagens promocionais das agências de turismo. É o caso dos dois estudantes
noruegueses Helle e Dina: "Os pais de Helle haviam oferecido a ela a viagem como
uma recompensa por ter concluído o seu mestrado. A garota havia chamado a sua
melhor amiga Dina para acompanhá-la. Ela não teve muito esforço para convencê-la.
Foi o suficiente para ela abrir seu computador, digitar "Zanzibar" na ferramenta de
buscas e mostrar as fotos para ela.”

Jovens ocidentais e os « beach boys » de Zanzibar


A estada das duas amigas confirma perfeitamente suas expectativas. Elas têm direito
ao "grande prêmio, praias paradisíacas (era a base), visita à Stone Town (Patrimônio
Mundial da UNESCO), plantações de especiarias, ilha da prisão e suas tartarugas
gigantes, cruzeiro em Boutre, concerto de Taarab (música local), kitesurfing na costa
leste, nadando com os golfinhos e tudo o mais”.
As duas meninas também estão se preparando para participar da "festa da lua cheia",
uma festa organizada todos os meses na praia do hotel e que se tornou um ritual
essencial dos lugares. Os proprietários planejaram desta vez em grande escala:
abrindo o concerto, a estrela da Tanzânia Diamond Platnumz em pessoa, música
estrondosa, comida abundante e bar bel guarnecido, a fim de marcar de uma maneira
excepcional os vinte anos do seu estabelecimento. À noite, uma multidão de
frequentadores e recém-chegados entra em transe, em uma atmosfera de loucura
coletiva, sob os holofotes leves e os alto-falantes dos quais se lançam os melhores
hits do momento.

Ao prazer da dança se acrescenta o de seduzir - ou mais exatamente, de ser seduzido


- para dezenas dos ocidentais presentes, gradualmente desinibidos pelo consumo de
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álcool e drogas. Porque os diversos "beach boys", meninos de praia e guias de
turismo de Zanzibar e da Tanzânia se misturam com turistas e expatriados na
esperança de tirar proveito da situação: em outras palavras, obtêm dinheiro ou favores
materiais em compensação por seus serviços sexuais.

Chegamos ao coração de Altaïr Despres aqui. De fato, a partir desta celebração que
abre o romance e é a sua matriz, a romancista começa a descrever uma série de
retratos de mulheres cujos percursos de vida e, sobretudo, os relacionamentos, nos
permitem compor gradualmente um verdadeiro quebra-cabeça sociológico de
Zanzibar. É assim que Helle, a estudante, que se tornou muito rapidamente a
namorada de Dolce, ignora que por trás do sorriso do seu "amante" se esconde uma
família e dois filhos para sustentar. Animadora cultural na França, Mathilde viveu por
um ano no arquipélago após sua reunião decisiva com o belo Khamisi... que, no
entanto, é incapaz de ganhar a vida de forma legal.

Todos perdedores
Ainda encontramos Ethel, Dina, Vanilla, Doria, Inès, Juliette, tantas mulheres que se
apaixonaram de uma maneira ou de outra pela ilha de Zanzibar, inevitavelmente por
causa do charme de seus meninos de praia. Elas acabaram ficando por lá por uma
semana ou por toda a vida, mas devem resolver fazer, uma vez ou outra, o balanço de
sua situação. E como no dia seguinte a uma festa, quando a embriaguez noturna
desaparece para dar lugar à ressaca, o real aparece bem às claras, sujo e
desencantado, tal qual o verso de um belo cartão postal.

“Helle se deu conta que que o pequeno esconderijo isolado do mundo, o santuário de
proteção do dia anterior, era de fato essa grande extensão contestada entre a praia e
as primeiras casas da vila. A área estava pontilhada aqui e ali com palmeiras, mas
também com sacos plásticos, garrafas vazias e redes de pesca rasgadas, carregadas
pela maré e pelo vento.”

Ao multiplicar os protagonistas, Altaïr Despres consegue dar complexidade e sutileza


ao que denuncia: a inanidade do turismo de massa com base em um desequilíbrio
econômico entre seus atores e que nunca beneficia a população dos países do Sul.
Em contraste com todo o sentimentalismo, o dinheiro aqui forma o pano de fundo de
todos os relacionamentos que se resumem, no final das contas, a transações
comerciais. Por um lado, vemos mulheres, cientes de sua liberdade e empoderadas
pelas suas capacidades financeiras. Por outro lado, jovens cidadãos de um país
pobre, reduzidos a sobreviver com refeições ou dinheiro magro de bolso obtido graças
às suas capacidades sexuais.

Antes de encarnar os personagens, Zanzibar era o "campo" da antropologia de Altaïr


Despres. Tendo se tornado uma romancista, a autora sabe do que está falando. Sua
escolha de uma linguagem nua e crua, assim como um narrador onisciente, deixa
transparecer uma ironia estridente a serviço do seu projeto. Helle retorna amarga a
Oslo pouco tempo depois, com a memória secreta no fundo do seu coração de seus
quinze dias de erro. Antes de sua partida, Dolce e seus camaradas "Beach Boys"
partem para conquistar novas presas para serem seduzidas. No magnífico arquipélago
tropical de Zanzibar, tanto aqueles que estão passando quanto aqueles que
permanecem são todos perdedores. "Post Coitum, animal triste.”

Zanzibar, de Altaïr Despres, Julliard Editions, 240 páginas, 20 euros.

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