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Vamos falar sobre Mulherismo Africana?

Texto ​/ Aza Njeri 


 
Muita  gente  tem  me  perguntado  o  que  é  essa  vertente  matriarcal  de  pensamento 
afrocêntrico  chamada  Mulherismo  Africana  que  desenvolvo  desde  2018  no  Ciclo 
Mulherismo  Afreekana,  no  Rio  de  Janeiro,  ao  lado  de  Katiúscia  Ribeiro,  Dandara  Aziza  e 
Raissa Imani e outras mulheres negras.
Então  resolvi  fazer  essa  breve  ilustração.  Mulherismo  africana,  ou  do  inglês  Womanist 
Afrikana,  é  uma  forma  de  pensamento  matriarcal  afrocêntrico  cunhado  por  Cleonora 
Hudson,  em  1987,  e desdobrado por Nah Dove, Ama Mazama, Marimba Ani, Ifi Amadiume, 
Mary  Modupe.  No  Brasil,  figuram  nomes  como  Katiúscia  Ribeiro,  Anin  Urasse,  Dandara 
Aziza,  Raissa  Imani,  Ama  Mizani,  Kaká  Portilho,  Marina  Miranda  e  essa  que  vos  escreve, 
que se dedicam ao estudo e ação mulherista.
Mulherismo  Africana  objetiva,  segundo  Cleonora  Hudson,  "criar  critérios  próprios  (das 
mulheres  africanas)  para avaliar suas realidades tanto no pensamento quanto nas ações". 
A  sua  principal  abordagem  é  materno-centrada,  considerando  a  liderança  social  que  as 
mães negras têm nas nossas comunidades.
Entretanto,  ao  atravessarmos  o  oceano  Atlântico  e  nos  tornarmos  “Amefricanos” 
(Gonzalez,  1988;  2018),  a  concepção  materno-centrada  ganha  novas  perspectivas,  não 
estando  necessariamente  ligada  à  gestação  físico-uterina,  mas,  sim,  a  todo  um  conjunto 
de valores e comportamentos de gestar potências e permanência comunitária.
Quando  partimos  desta  realidade,  estamos  definindo  a  luta  mulherista  como  a 
possibilidade de reintegrar as vidas pretas destroçadas pelo racismo de cunho integral.
“I​ sso  quer  dizer  que,  por  exemplo,  quando  um  Babalorixá  cuida  daquelas  potências  em 
formas  de  abian,  yawo  e  ebomis,  ele  está  exercendo  o princípio materno-centrado africano, 
que  em  nada  se  relaciona  ao  útero  físico,  mas,  sim,  ao  útero  mítico-ancestral,  a  partir  da 
movimentação  de  toda  uma  energia,  que  é  feminina.  Inúmeros  são  os  exemplos  que 
podemos  elencar,  desde  parteiras  e  erveiros,  às  tias  que cuidam dos erês em suas próprias 
casas,  nas  comunidades  periféricas,  para  que  os  pais  possam  trabalhar,  educadores  que 
gestam a potência de seus alunos etc.’ (Njeri; Ribeiro, 2019, p.600-601)
O  termo  mulherismo  vem  de  mulher,  negando  qualquer  semelhança  com  a  fêmea  que  se 
desdobra  em  pensamentos  e  ações  de  agenda  ocidental.  E  africana,  termo  em  latim,  se 
apresenta  enquanto  identidade  cultural  e  localização,  pois  nos  recentraliza 
identitariamente em África.
O  Mulherismo  Africana,  portanto,  é  uma  alternativa  para  entender,  refletir  e  agir  rumo  à 
saída  dessa  maafa  [neologismos  políticos  usados  para  descrever  a  história  e  os  efeitos 
contínuos  das  atrocidades  infligidas  ao  povo  africano]  ocidental  que  vivemos.  A  partir  da 
voz  de  Maat  [deusa  da  verdade,  da  justiça;  no  Egito  Antigo],  o  mulherismo  traz  a  tona  o 
papel  matrigestor  dos  negros  enquanto  líderes  na  luta  para  recuperar,  reconstruir  e  criar 
uma  integridade  cultural  que  defenda  os  antigos  princípios  maaticos  de  reciprocidade, 
equilíbrio,  harmonia,  justiça,  verdade,  integridade  e  ordem,  visando a luta antigenocida e a 
nossa sobrevivência de povo.
Anin  Urasse  (2019)  esmiúça  o  conceito  apresentando  princípios  mulheristas:  uso  de 
terminologia  própria  e  autodefinição;  centralidade  na  família;  genuína  irmandade  no 
feminino;  fortaleza,  unidade  e  autenticidade;  flexibilidade  de  papéis,  colaboração  na  luta 
de  emancipação  e  compatibilidade  com  o  homem;  respeito,  reconhecimento  pelo  outro  e 
espiritualidade;  respeito  aos  mais  velhos;  adaptabilidade  e  ambição;  maternidade  e 
sustento dos filhos.
E  adverte  que  “Os  princípios  acima  descritos,  longe  de  prescrições  teórico-normativas, 
são  características  reais,  palpáveis  e  observáveis  nas  comunidades  africanas  em  geral, 
seja no continente, seja na diáspora” (Urasse, 2019, p. 303).
Do matriarcado
O  matriarcado  africana  é  um  dos  eixos  suleadores  do  Mulherismo  Africana.  Partindo  da 
Teoria  dos  dois  berços  do  senegalês Cheikh Anta Diop (2014) considera-se o matriarcado 
pilar  ontológico  do  berço  meridional  (África)  desde  tempos  imemoriais,  e  que,  devido  ao 
impacto  dos  inúmeros  contatos  conflituosos  com  o  berço  nórdico  (Europa),  ocorreu  um 
apagamento  do  protagonismo  feminino  negro  focando  na  submissão  e  subordinação 
destas.
​ onclui-se  do  exposto  que  o  regime  matriarcal  é geral em África, quer na antiguidade, quer 
“C
nos  nossos  dias,  e  este  traço  cultural  não  resulta  de  uma  ignorância  do  papel  do  pai  na 
concepção  da  criança.  O  culto  fálico  que  é  corolário  do  regime  agrícola  (pedras  erguidas, 
obeliscos  do  Egipto,  templos  da  Índia  do  Sul)  comprova-o  largamente;  este  demonstra  que 
no  momento  em  que  a  humanidade  arcaica  optava  pela  filiação  matrilinear, a mesma tinha 
conhecimento  do  papel  fecundante  do  pai.  Em  nenhum  dos  regimes  descritos  no  berço 
meridional se negligencia sistematicamente o parentesco patrilinear.” (DIOP, 2014, p. 66).
O  patriarcado  teve  um  grande  impacto  sobre  as  sociedades  africanas,  já  que  alterou 
cosmovisões  ontológicas  que  ordenavam  a  pertença  no  mundo  de  homens  e  mulheres 
negros  naquele  continente.  Filmes  como  Ceddo  e  Moolaadé  de  Ousmane  Sembene; 
Bamako  e  Timbuktu  de  Abderrahmane  Sissako  são  exemplos  desse  conflito  capturado 
pelo  papel  refletor-coletivo  da  arte  (Njeri,  2019).  O  interessante  nas  quatro  obras  é  que 
tanto  o  patriarcado  anglo-europeu  quanto  o  islâmico,  alienígenas  à  África,  são 
questionados enquanto agentes de dominação africana nessas cinematografias.
Em  uma  comparação  rápida  baseada  em  Diop  (2014)  pode-se  afirmar  que  são 
características  matriarcais  o  equilíbrio  entre  mulheres  e  homens  em  todas  as  áreas  de 
organização  social;  a  origem  nas  sociedades  agrárias;  a  xenofilia;  o  princípio  de 
complementaridade;  e  entende  a  mulher-mãe,  centro  da  organização  social,  enquanto 
portadora da vida e da cultura.
O  patriarcado,  cuja  origem  são  as  sociedades  nômades,  é  hierárquico  e  desequilibrado 
nas  relações masculino e feminino, baseando-se na disputa de poder e hegemonia; possui 
o  racismo  civilizacional,  estrutural,  epistemológico,  cultural,  religioso,  institucional  e 
ambiental  como  pilar  estruturador,  sendo  também  xenofóbico;  e  considera  as  mulheres 
perpetuadoras do pecado, como Eva, por exemplo.
Da irmandade entre as mulheres
É  importante  manter-se  alerta  com  a  lógica  ocidental  de  “dividir  para  conquistar”, 
principalmente  quando,  vira  e  mexe,  a  preocupação  maior  dos  interessados  no 
Mulherismo  Africana  é  saber  se  há  uma  rivalidade  com  feminismo  negro,  do  que 
compreender as propostas desenvolvidas.
É  urgente  que  se  estabeleça  uma  “genuína  irmandade  no  feminino”  que  nos  fala  Anin 
Urasse  (2019),  não  em  busca  da  sororidade  universal,  mas  sim  pela  recuperação  e 
manutenção  de  ligações  ancestrais  oriundas  de  nosso  berço  civilizacional.  Longe  da 
compreensão  ingênua  de  homogeneidade  das  mulheres,  e  exaltando  a  sua  pluralidade  e 
diversidade,  a  “genuína  irmandade  no  feminino”  promove  práticas  e  massa  crítica 
profundas  e  plurais,  pois  respeita,  abarca  e  agrega  as  multiformas  de  Ser  e  Estar  de 
mulheres negras.
​ anto  no  continente  quanto  na  diáspora,  temos  vários exemplos da realidade e efetividade 
“T
das  irmandades  de  mulheres  pretas.  Assim,  é  importante  reconhecermos  as  diferenças 
entre  mulheres  africanas,  mas,  mais  ainda,  os  elementos  que  nos  aproximam  e  irmanam. 
Sabemos  que  muitas  destas  diferenças  (religiosas,  regionais,  culturais,  identitárias, 
partidárias  e  de  classe)  são  produtos  do  colonialismo,  imposições  do  elemento  branco 
externo  ao  nosso  povo.  Não  podemos  esquecer,  ainda,  que  o  reforço  exagerado  da 
individualidade  e  das  diferenças  também  é  uma  construção  ocidental.  Quer  admitamos  ou 
não,  e  a  despeito  de  qualquer  construção  teórica,  possuímos  uma  ancestralidade  comum 
que  faz  com  que  nos  sintamos  irmanadas  e  reconhecidas  umas  nas  outras  quando 
estamos  juntas  nas  nossas  práticas  diárias.  As  irmandades,  associações,  sociedades  de 
mulheres  africanas  ao  longo  da  história  estão  baseadas  nos  mesmos  princípios  que 
estamos construindo aqui. É real, palpável, exemplificável, não uma construção teórica a ser 
efetivada  no  futuro.  Entretanto,  vale  ressaltar  que  nem  todo  ajuntamento  de  mulheres 
africanas pode ser visto como benéfico se este não refletir os valores do nosso eu-coletivo.” 
(Urasse, 2019, p.306)
As  hierarquias  do  patriarcado  colocam  a  raça  branca  e  o  Senhor  do  Ocidente  (homem 
branco)  como  opressor  de  todos  os  povos  não  brancos,  mesmo  que,  entre  homens  e 
mulheres  brancos  haja  também  a  opressão  de  gênero.  Assim,  o  feminismo  mainstream 
está  na  luta  para  a  equiparação  e  igualdade  das  mulheres  -  brancas  e  também  as  não 
brancas  que  adotam  o  feminismo  -  com  o  homem branco senhor da máquina ocidental e, 
para  mim,  essa  luta  é  legítima,  já  que,  operando  dentro  da  agenda  ocidental,  essas 
mulheres se sentem ontologicamente pertencentes ao Ocidente.
Para  o  Mulherismo  Africana,  o  Ocidente  inteiro  tem  que  cair, não havendo a possibilidade 
de  negociações  com  este  Senhor  dentro  de  sua  agenda.  Então  não  há  a intenção de uma 
igualdade  de  gêneros  entre  homens  e  mulheres,  mas  sim  a  busca  por  paradigmas 
civilizatórios  de  Ser  e  Estar  no  mundo  que  partem,  focam  e  retornam  para  a  centralidade 
negro-africana  e  afroameríndia.  Então,  ao  meu  ver  não  há  conflitos  ou  rixas,  mas  sim  a 
lucidez de que nossas agências são antagônicas e o nosso empoderamento é da raça.
Do homem negro
O  Mulherismo  Africana  não  concebe o homem negro como inimigo, mas compreende que 
por  estarem  desenraizados  e  descentralizados  de  sua  própria  agência  reproduzem  o 
violento  modus  operandi  patriarcal  branco  como  forma  enquadramento  ontológico.  O 
fato,  porém,  de  na  escala  ocidental  de  pertença,  o  homem negro estar distante do Senhor 
do  Ocidente  -  em  raça,  classe  e humanidade - faz com que o machismo por ele executado 
não  lhe  traga  como  devolutiva  as  benéfices  do  Patriarcado,  como  o  faz  com  o  homem 
branco.
Por  isso,  homens  negros  que  copiam  o  lugar  dominador  dos  homens  brancos,  acabam 
sofrendo  dupla  escala  de  violência:  a  ontológica,  porque  não  é  possível  fazer  o  redondo 
caber  no  quadrado,  e  eles  sempre  estarão no lugar de cópias mal diagramadas do Senhor 
do  Ocidente;  e  a  de  Vida,  já  que  por  conta  de  suas  escolhas  calcadas na lógica ocidental, 
oprimem,  batem,  abandonam,  negligenciam  e  rompem  laços  com  seus  filhos  e  as 
mulheres negras.
Os  problemas  oriundos  do  patriarcado  em  homens  negros  devem  ser  analisados à luz da 
centralidade  masculina  negra,  com  o  apoio  de  mulheres  negras  na  empreitada  reflexiva, 
mas  a  mudança  paradigmática  deve  vir  a  partir  das  experiências  desses  homens.  Talvez 
um  dos  primeiros  passos  seja  a  autoconsciência  sobre  o  poder  de  degradação  ético  e 
estético do Patriarcado e seus desdobramentos racistas, machistas e homo/transfóbico.
Considerações suleadoras
A  mulher  negra  é  a  formuladora  inicial  da  socialização  das  crianças  negras, 
consequentemente,  do  povo  negro.  Primeira  nutridora,  é  o  estágio  inicial  de  motivação 
inspiradora  da  vida  de  uma  pessoa.  Chave-mestra  para  a  regeneração  coletiva  em 
complementaridade a homens negros que também pratiquem a matrigestão.
Pessoas  negras  que  desempenham  o  princípio  mítico-uterino  feminino  de  nutrição  físico, 
psíquico,  intelectual  ou  espiritual  de  potências  (pessoas),  utilizando-se  da  centralidade, 
localização  e  agência  afrocêntrica  de  emancipação  do  povo  preto,  estão  praticando  o 
matriarcado  africana.  Portanto,  o  entendimento  de  nutrir  potências  não  possui 
exclusividade de gênero.
Outro  princípio  pilar  é  a  centralidade  na  família,  composta  pelos  ancestrais,  as  pessoas 
viventes  e  as  que  virão  a  nascer.  Não  é  possível  conceber  emancipação  de  mulheres 
negras  e  seu  povo  sem  incluir  a  família,  pois  a  lógica  africana  não  é  individualista  e 
privatista,  e  nós,  de  maneira  ampla,  somos  enraizados  em  um  quilombo  familiar, 
independente  da  configuração  que  ele  tenha,  sendo,  portanto,  sagrado  o  respeito  a  sua 
unidade familiar e a todas as demais existentes.
Talvez  por  isso,  a  violenta  discussão de palmitagem que rola nas redes sociais seja muito 
mais  um  elemento  desagregador  que  promotor  de  consciência,  já  que,  muitas  das  vezes, 
ao  invés  de  um  diálogo  analítico  sobre  quais  caminhos  percorridos  para  a  escolha  da 
interracialidade  familiar,  opta-se  pelo  desrespeito  daquela  construção,  deslegitimando-a, 
sem  se  importar  com  a  humanidade  dos  filhos  do  casal  em  sua  maioria  negros  ou,  no 
mínimo, não brancos.
Nos  Ciclos Mulherismo Afreekana que eu, Katiuscia Ribeiro, Dandara Aziza, Raissa Imani e 
outras  mulheres  negras  conduzimos  mensalmente  no  Rio  de  Janeiro  desde  2018,  venho 
percebendo  que  a  teoria  mulherista  africana  está  em  constante  construção,  sendo 
possível  afirmar  que  nós,  desta  diáspora,  estamos  agregando  valores  amefricanos  ao 
pensamento que originalmente vem da diáspora afro-americana.
Utilizando  de  nossa  autodeterminação,  chego  a  dizer  que  o  pensamento  mulherista 
amefricano-brasileiro  tem  muito  a  agregar  ao  pan-africanismo e à afrocentricidade, já que 
nós,  mulheres  e  homens  negros,  compomos  a  maior  diáspora  africana  no  mundo  e 
possuímos  vivos  e  operantes  valores  afro-civilizatórios  que  permitiram  a  nossa 
sobrevivência, permanência e continuidade.
Umoja: África em nós!

*  Aza  Njeri  é  doutora  em  literaturas  africanas  e  pós  doutoranda  em  filosofia  africana.  É 
crítica  de  teatro  e  literatura,  poeta,  pesquisadora,  professora  e  mãe.  Para  conhecer  mais 
sobre o seu trabalho, 

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