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CACHOEIRA DO DÉD, EM SANTO ANTÔNIO DA ALEGRIA. FOTO: ADELMO CARNETI/ EXPRESSÃO STUDIO
A construção de poder materno, por exemplo, remete a Osun; iyabás
consequentemente são mães, cujas prerrogativas de autoridade não devem ser
deslocadas politicamente em virtude de transformações epistêmicas,
ocasionadas pelo patriarcado branco colonizador. Porque em África a
hierarquia é ajustada socialmente quanto recurso transponível, variando no
território os contextos de idade e geração, daí os mais velhos e mais jovens
estarem configurados fora do tempo ocidental.
Na família de candomblé, modelo de resistência negra, não-nuclear, refeita por
laços de afeto, os vínculos não são bio-lógicos; a mãe, Iyalòrisà, carrega os
valores culturais numa construção cultural fêmea, ela não é nata ou inferior por
ser mulher inventada. A mulher torna-se mãe ao “casar-se” em cerimônia com a
ancestralidade, independentemente da anatomia sexual corporificada. Naquele
rito seus filhos não necessariamente têm laços sanguíneos.
Há contextos aonde os mais novos gozam de prestígios, considerando a
antiguidade e posto adquiridos nessa matripotência. O inverso acontecerá em
decorrência da iniciação hierárquica bancada naquela cultura familiar, devendo
maior dedicação em pesquisa revelar como a dominação masculina se
configura nesse arranjo pulverizado de poderes, que logicamente faz os
homens com cargos religiosos transporem masculinidades aprendidas durante
o contato com a cultura patriarcal.
Tratar Osun como sereia das águas doces, narcisista, deusa vênus, portanto
europeia, faz parte das cosmovisões etnocêntricas que não refletem a
centralidade do pensamento cosmosentido com cinco búzios abertos, orikis e
espiritualidade do povo yorubá. A maternidade pertinente a Osun tem sido
suprimida do caráter iyalódè, agora caricatura colonizada. Longe de Osun a
imagem da mãe chorona, parideira, contrária aos direitos sexuais e
reprodutivos das mulheres.
A este respeito lembremos de Lélia Gonzalez, filha de Osun, espelho iyalódè
que lutou pela necessidade antirracista do “lixo falar” e de orientarmos as
nossas intelectualidades domésticas no espaço público, afinal, Narciso é
autoadorador da Europa, Osun é adorada em África. Osun vive na oralidade e na
escrita dispostas a traduzirem a beleza das mulheres negras, a sabedoria, a
inteligência, a habilidade na administração das riquezas e dentro das ciências
sociais; uma deidade maior que os equívocos linguísticos e conceituais sobre
corpo, maternidade e destino biológico, duma perspectiva propagada pelo olhar
branco-etnográfico e masculinista de Pierre Verger.
PIERRE VERGER