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OYÈRÓNKÉ OYĚWÙMÍ/FACEBOOK

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A partir da pesquisadora feminista nigeriana e


intelectuais brasileiras, refuta-se o olhar colonial
sobre a epistemologias afrodiaspóricas
A epistemologia acontece na cultura. Entretanto, a colonialidade moderna tão
criticada por nós, pensadoras negras decoloniais, solapou das civilizações
africanas o ponto de vista ancestral, ainda creditou gênero e sexualidade como
marcadores estruturantes dos estudos feministas e de mulheres.
Tais ‘bio-lógicas’ de masculino e feminino subsumiram a heterogeneidade de
significados políticos inscritos nos corpos das mulheres posicionadas no
mundo. A ponto das pensadoras estadunidenses Ângela Davis e bell hooks, no
Brasil Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, atravessarem a década de 80 criticando
o racismo dentro do projeto intelectual feminista, que ao orquestrar campanhas
pelo direito ao aborto desconsiderou a esterilização em massa de mulheres
negras, bem como a implicação de raça nos abortos clandestinos inseguros,
realizados por mulheres pobres.
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➤ Leia também:
 Orixá não é santo

Uma das razões, sem dúvidas, da pesquisadora nigeriana Oyèronké Oyèwúmi,


proponente do Osunismo, chamar de fracasso teórico o feminismo que abriga
conceitos e pautas em cima das categorias ocidentais, apresentadas
dicotômicas de público-privado e presunção do macho como superior.
Segundo a pensadora, a Iya (maternidade) reflete a categoria mais estruturante e

fluida em termos sociais, políticos e espirituais do povo Yorubá.


Através dela expomos o nosso ponto de vista e o porquê das realidades
africanas serem interpretadas sem quaisquer empréstimos ocidentais, tendo
em vista o marcador gênero, conforme Oyèwúmi, não conseguir explicar como
a fêmea se torna mulher e mãe. Ademais, na diáspora africana o conceito de
“matripotência” – superestimação da maternidade – é a lente pela qual
poderão os feminismos apreciarem e entenderem a epistemologia africana na
diáspora.

CACHOEIRA DO DÉD, EM SANTO ANTÔNIO DA ALEGRIA. FOTO: ADELMO CARNETI/ EXPRESSÃO STUDIO
A construção de poder materno, por exemplo, remete a Osun; iyabás
consequentemente são mães, cujas prerrogativas de autoridade não devem ser
deslocadas politicamente em virtude de transformações epistêmicas,
ocasionadas pelo patriarcado branco colonizador. Porque em África a
hierarquia é ajustada socialmente quanto recurso transponível, variando no
território os contextos de idade e geração, daí os mais velhos e mais jovens
estarem configurados fora do tempo ocidental.
Na família de candomblé, modelo de resistência negra, não-nuclear, refeita por
laços de afeto, os vínculos não são bio-lógicos; a mãe, Iyalòrisà, carrega os
valores culturais numa construção cultural fêmea, ela não é nata ou inferior por
ser mulher inventada. A mulher torna-se mãe ao “casar-se” em cerimônia com a
ancestralidade, independentemente da anatomia sexual corporificada. Naquele
rito seus filhos não necessariamente têm laços sanguíneos.
Há contextos aonde os mais novos gozam de prestígios, considerando a
antiguidade e posto adquiridos nessa matripotência. O inverso acontecerá em
decorrência da iniciação hierárquica bancada naquela cultura familiar, devendo
maior dedicação em pesquisa revelar como a dominação masculina se
configura nesse arranjo pulverizado de poderes, que logicamente faz os
homens com cargos religiosos transporem masculinidades aprendidas durante
o contato com a cultura patriarcal.

Para as epistemologias africanas e diaspóricas, o macho não é a regra.


As iyabás são mães que conseguem absolutamente todo o respeito da força
masculina sem perder a maternidade e a autoridade iyalódè, visto como a
participação política acontece no público e também no privado. A panela da
cozinha refoga a língua fêmea que deverá usar toda a sua importância para
articular os interesses das outras.
➤ Leia também:
 “Feminismo negro não exclui, amplia”, diz Djamila Ribeiro

Tratar Osun como sereia das águas doces, narcisista, deusa vênus, portanto
europeia, faz parte das cosmovisões etnocêntricas que não refletem a
centralidade do pensamento cosmosentido com cinco búzios abertos, orikis e
espiritualidade do povo yorubá. A maternidade pertinente a Osun tem sido
suprimida do caráter iyalódè, agora caricatura colonizada. Longe de Osun a
imagem da mãe chorona, parideira, contrária aos direitos sexuais e
reprodutivos das mulheres.
A este respeito lembremos de Lélia Gonzalez, filha de Osun, espelho iyalódè
que lutou pela necessidade antirracista do “lixo falar” e de orientarmos as
nossas intelectualidades domésticas no espaço público, afinal, Narciso é
autoadorador da Europa, Osun é adorada em África. Osun vive na oralidade e na
escrita dispostas a traduzirem a beleza das mulheres negras, a sabedoria, a
inteligência, a habilidade na administração das riquezas e dentro das ciências
sociais; uma deidade maior que os equívocos linguísticos e conceituais sobre
corpo, maternidade e destino biológico, duma perspectiva propagada pelo olhar
branco-etnográfico e masculinista de Pierre Verger.
PIERRE VERGER

O conhecimento a partir do lugar comum da representação branca de gênero,


inviabiliza a multidimensionalidade de poder político, econômico, civilizatório
existente em Osun, aliás, desperdiça a água contornada epistemologicamente
para as Américas sob a forma de pancada e estrondos. Quando buscamos a
epistemologia africana, percebemos logo que Osun significa fonte.
Em Ijèsá, anualmente, através do Festival de Osogbo, celebração destacada na
Nigéria, é celebrada a sua importância para o povo Yorubá, ao contrário do
Brasil, onde Osun aparece quase sempre folclorizada como arquétipo da
mulher recatada, sensual, reprodutora, do lar, protetora dos olhos e das
crianças. Era de imaginar a charge dessa natureza e brancura
comportamentais, sofrer rejeição pelos feminismos e, hegemonicamente, ser
submetida às demandas sincréticas cristãs da variação de Osun como maria
imaculada, vênus, afrodite…
Osun não parece com Santa Luzia, protetora de olhos, sequer a santa teria
condições de ser refletida no abébè segurado pelas iyalódès, pelos feminismos
e mulheridades diaspóricas. As ilações fantasiosas, criativas, epistemicidas,
são permanentes reificações, em certa medida, elaboradas nas obras de Pierre
Verger.
O prestígio do autor na academia aliado ao status sacerdotal no candomblé
ganharam parâmetros científicos jamais neutros, na medida em que para
Verger o
“Arquétipo de Oxum é o das mulheres graciosas e elegantes, com paixão pelas
jóias, perfumes e vestimentas caras. Das mulheres que são símbolos do charme
e da beleza. Voluptuosas e sensuais, porém mais reservadas que Oya. Elas
evitam chocar a opinião pública, à qual dão grande importância”. 
Ora, Osun faz parte da resistência dos escravizados trazidos pelas águas, das
conexões religiosas e da espiritualidade cumpridoras da missão de fazermo-
nos viver belas, autônomas, fortes suficientemente para carregar o ouro não
somente por causa do brilho, mas pelo peso do valor de todas nós intelectuais
engajadas no feminismo negro, bem longe de estereotipias da dondoca, frágil,
superficial.
A este respeito Chimamanda Ngozi lembra que quando se “trata de aparência,
nosso paradigma é masculino”. Para o Império Ijèsá, onde Osun é saudada
como Oba, portanto rainha, existe uma história das mulheres soberanas;
aspecto fundamental da subjetividade de quem é iyalódè na forma de dizer e
pensar. Em Osogbo e nas demais cidades, Osun encontra-se cultuada como
guerreira diplomática. A soberania iyalódè alimenta com água o mundo nos
seus fluxos de conhecimentos. É preciso engolir!

Paò de Literatura de Terreiro, segundo o Doutor Henrique Freitas


ADICHIE, CHIMAMANDA NGOZI. Sejamos todos feministas; Tradução Christina
Baum. 2014.
CARNEIRO, Sueli; CURY, Cristiane. O poder feminino no culto dos orixás.
Guerreiras de natureza: mulher negra, religiosidade e ambiente. Elisa
Nascimento. Grupo editorial summu. 2008
OYĚWÙMÍ, Oyèrónké. Conceituando o gênero: os fundamentos eurocêntricos
dos conceitos feministas e o desafio das epistemologias africanas. Concepts,
Methodologies and Paradigms. CODESRIA Gender Series. Volume 1, Dakar,
CODESRIA, 2004, p. 1-8  Tradução para uso didático por Juliana Araújo Lopes.
—————————–  Laços familiares/ligações conceituais: notas africanas sobre
Epistemologias feministas. Family bonds/Conceptual Binds: African notes on
Feminist Epistemologies. Signs, Vol. 25, No. 4, Feminisms at a Millennium
(Summer, 2000), pp. 1093-1098. Tradução para uso didático por Aline Matos da
Rocha
ROSÁRIO, Cláudia Cerqueira. Oxum e o feminino sagrado: algumas
considerações sobre mito, religião e cultura. IV ENECULT – Encontro de
Estudos Multidisciplinares em Cultura.
VERGER Pierre. Orixás. Deuses iorubás na África e no Novo Mundo. Salvador,
Corrupio /São Paulo, 2e ed. 1986.
GONZALEZ. Lélia – Coleção Retratos do Brasil Negro. Escrito por Alex Ratts e
Flavia Mateus Rios.  Editora: Selo Negro Edições
 
Este texto não reflete necessariamente a opinião de CartaCapital.

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