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O Outro Lado e Nós-Quimbanda - Segunda Leitura
O Outro Lado e Nós-Quimbanda - Segunda Leitura
O juiz nos pede, quer dizer, por um mandato nos exige uma
intervenção. Essa relação entre o juiz e a saúde mental é peculiar, sendo a
justiça soberana, frequentemente vemos esses arautos da Lei a nos exigir que
mortos ressuscitem ou a recomendar que o doente seja tratado de
determinada maneira completamente estapafúrdia. É arbitrário, porém, é
verdade, muitas vezes têm razão e apenas fustiga com seu instrumento que é a
voz no imperativo, o “faça e cumpra”, o ponto em que nós na saúde nos
omitimos quanto ao devido cuidado. Mas é tensa a relação, e não haveria
como ser de outro modo, frequentemente encomenda-se, na via dessa relação,
situações insólitas, mais do que isso, a essa relação cabe a administração do
insólito na vida social.
Pois bem, o juiz nos pediu uma intervenção. A de traçar o destino de
uma senhora, quem sabe uma família, louca ou de loucos. O esboço da cena é
compatível com o surrealismo ordinário da realidade brasileira. A senhora pôs
fogo em sua residência, só isso. Se ameaçasse apenas a si, poderíamos crer,
tudo bem, seria um alívio para a vizinhança. Mas não foi assim, coisa estranha,
ao contrário, um certo temor respeitoso, não apenas medo, entre os vizinhos
compõe a cena e não descobrimos inicialmente de onde ele provém. Até
porque, sabemos disso, as comunidades têm seus métodos de dar cabo dessas
ameaças que vêm de dentro, os quais não foram aplicados naquela
circunstância. Esses ameaçados mais diretos, os vizinhos strictu sensu,
escondem ou omitem algo, mas mesmo assim não deixam de transparecer
suas preocupações com o gesto da vizinha e a tolerância da comunidade. Há
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burguês” usual. Ela era apenas uma “dona de casa que gostava de cozinhar
para seus filhos”, não via por que estar internada nem, muito menos, tomar
medicação psiquiátrica. Subitamente e estranhamente, alguém lhe perguntara
— de onde teria vindo essa pergunta? —, “por que a senhora está sempre
visitando cemitérios?”. Ela respondia, “isso vem da minha religião, macumba,
que eu praticava na juventude, mas não faço mais isso não”. Era
impressionante a força de sua performance, sua “coerência”, ao ponto de
algumas pessoas levantarem a acusação de que aquela internação não tinha
qualquer justificativa clínica, era um sequestro, mais um, imposto pelo arbítrio
da justiça. Essas pessoas emudeciam quando eram confrontadas com o fato
de que a dona de casa em apreço, autodeclarada mãe exemplar, incendiara sua
casa, estava disposta a viver nela em escombros e que a alimentação de seus
filhos, alguns dos quais com mais de quarenta anos (na época ela contava com
77 anos), consistia em restos de comida colhidos na rua e cozinhados “a
lenha” nessa casa. Insistiam que a internação era um sequestro e ponto.
Verificava-se aí uma estranha impossibilidade de unidades do discurso
colocar outra unidade de discurso, do mesmo inclusive, em questão, objetar-
lhe – uma contradição pura e simples –, tendo valor de verdade tão somente a
denotação do enunciado mais imediato que ela pronunciava apresentando-se
em acordo com a norma social dominante entre os técnicos da saúde mental.
Como tal potência retórica era possível me escapava completamente. Fato foi
que ela recebeu alta da internação, e foi encaminhada junto dos filhos para
frequentar um CAPS. Ela acedeu a essa solução, que naquele momento a justiça
e o sobrinho acolheram prontamente. Isso tudo se deu no ano de 2008. Estive
nesse CAPS uns três anos depois para discutir o caso e pude constatar que ela e
seus filhos continuavam a frequentá-lo. O que pareceu indicar que pelo menos
o encaminhamento da situação fora “realista” — pois… até aquele momento
nada de incêndios.
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“subitamente”, uma lembrança que eclodiu dessa forma, que fui lançado há
trinta anos antes, e, do mesmo modo, agora em 2020, ao texto de Clóvis
Moura, no que ele pode articular quanto ao termo Quimbanda, uma variante
da Umbanda, uma forma religiosa de matriz africana. Vejamos isso.
Quimbanda. A citação é um pouco longa, mas necessária para lançar
alguma suposição de determinação para o caso. Ele a retira dos estudos de
Georges Lapassade sobre as religiões negras O segredo da macumba.
Bibliografia