MORTE
A MORTE E CERTA
A morte vird definitivamente, e nao hd nada que possa impedi-la.
Contemplamos:
Onde quer que eu nasca, seja em um estado de existéncia
afortunado ou desafortunado, eu terei definitivamente de
morrer. Quer eu nasga na mais feliz condigao de um renas-
cimento elevado ou no mais profundo inferno, terei de expe-
rienciar a morte. Nao importa quanto e quao longe eu viaje,
nunca encontrarei um lugar onde eu possa me esconder da
morte, mesmo que eu v4 aos confins do espaco ou as profun-
dezas da terra.
Ninguém que estava vivo no século I permanece vivo hoje,
e ninguém que estava vivo no século II e nos seguintes per-
manece vivo hoje. Apenas seus nomes sobreviveram. Todos os
que estavam vivos hd duzentos anos jd morreram, e todos os
que vivem hoje terao partido daqui a duzentos anos.
Contemplando esses pontos, devemos nos perguntar: “Serei eu o
unico a sobreviver 4 morte?”.
Quando nosso carma para vivenciar esta vida chegar ao fim,
ninguém e nada poderao impedir nossa morte. Quando a hora da
nossa morte chega, nao ha como fugir. Se fosse possivel impedir
a morte utilizando clarividéncia ou poderes miraculosos, aqueles
que possuissem tais poderes teriam se tornado imortais; mas até
mesmo 0s clarividentes morrem. Os monarcas mais poderosos
que ja governaram neste mundo ficaram impotentes e desprote-
gidos perante o poder da morte. O rei dos animais, 0 ledo, que
pode matar um elefante, é imediatamente destruido quando se
encontra com o Senhor da Morte. Até mesmo os biliondrios nao
tém como evitar a morte. Eles nao podem distrair a morte ofere-
cendo suborno ou comprando mais tempo, dizendo: “se adiares
minha morte, darei a ti riquezas que esto além dos teus mais
extravagantes devaneios”.
31COMO TRANSFORMAR A SUA VIDA
A morte é inexordvel, implacavel, e nao far concessdes. Ela &
como o desmoronamento de uma imensa montanha em todas as
quatro diregSes; nao ha maneira de deter sua devastagao. Isso tam-
bém é verdadeiro para o envelhecimento e a doenga. O envelheci-
mento avanca furtivamente e corréi nossa juventude, nosso vigor e
nossa beleza. Embora estejamos pouco conscientes desse processo,
ele jd se encontra em andamento e nao pode ser revertido. A doenga
destréi o conforto, o poder e o vigor do nosso corpo. Se os médicos
nos ajudarem a superar nossa primeira doenga, outras tomarao seu
lugar, até o momento em que, por fim, nossa doenca nao poder ser
curada e morreremos. Nao podemos escapar da doenga e da morte
fugindo delas. Nao podemos aplaca-las com riquezas nem utilizando
poderes miraculosos que as facam desaparecer. Cada ser vivo neste
mundo tem de sofrer o envelhecimento, a doenga e a morte.
Nosso tempo de vida nao pode ser aumentado e, na verdade,
esta diminuindo continuamente. A partir do momento da nossa
concepcao, rumamos inexoravelmente em diregio & morte, do
mesmo modo que um cavalo de corrida galopa em dire¢ao a linha
de chegada. Ocasionalmente, até mesmo cavalos de corrida dimi-
nuem sua velocidade; porém, em nossa corrida rumo & morte, nun-
ca paramos, nem mesmo por um segundo. Enquanto dormimos e
enquanto estamos acordados, nossa vida escapa furtivamente de
nés. Todo veiculo, de vez em quando, para e interrompe sua Via-
gem, mas nosso tempo de vida nunca interrompe sua corrida. No
momento seguinte ao nosso nascimento, parte do nosso tempo de
vida ja pereceu. Vivemos no proprio abraco da morte. Apés nos-
so nascimento, nao temos liberdade para permanecer sequer por
um minuto. Rumamos, como um atleta correndo, em diregaio ao
abraco do Senhor da Morte. Podemos pensar que estamos entre os
vivos, mas nossa vida é a propria estrada da morte.
Suponha que nosso médico nos revelasse que estamos softendo
de uma doenga incurdvel e que temos apenas uma semana de vida.
Se um amigo nosso, ent&o, nos oferecesse um presente fantastico
= como um diamante, um carro novo ou férias gratuitas - nao
ficarfamos muito excitados com isso. Porém, na verdade, essa é a
32MORTE
nossa verdadeira e dificil situac4o, pois todos nés estamos sofren-
do de uma doenga mortal. Quanta tolice é ficar excessivamente
interessado pelos prazeres passageiros desta breve vida!
Se acharmos dificil meditar sobre a morte, podemos ouvir com
atengao o tique-taque de um reldgio e tomar consciéncia de que
cada tique marca o fim de um momento de nossa vida e nos ar-
rasta para mais perto da morte. Podemos imaginar que o Senhor
da Morte vive a uma certa distancia de nés. Entio, 4 medida que
ouvimos 0 tique-taque do regio, podemos imaginar que damos
passos em dire¢io 4 morte, momento a momento. Desse modo,
compreenderemos que estamos viajando em direcao 4 morte,
sem um tnico momento de descanso.
Nosso mundo é tao impermanente quanto nuvens de outono,
com 0 nosso nascimento e morte assemelhando-se a entrada e
saida de atores em um palco. Os atores frequentemente mudam
seus figurinos e papéis, entrando em cena sob muitos e diferen-
tes vestudrios e caracterizacGes. Do mesmo modo, os seres vivos
tomam continuamente diferentes formas e entram em novos
mundos. Algumas vezes, 0s seres vivos sao seres humanos; outras
vezes, sao animais e, outras vezes, entram no inferno. Devemos
compreender que o tempo de vida de um ser vivo passa como um
relampago no céu e termina rapidamente, como a agua que cai de
uma montanha elevada.
A morte vir, independentemente de termos ou nao consegui-
do tempo para a pratica espiritual. Embora a vida seja breve, isso
nao seria tao ruim se tivéssemos tempo suficiente para a pratica
espiritual, mas a maior parte do nosso tempo esta comprometida
com dormir, trabalhar, comer, fazer compras, conversar e assim
por diante, restando pouquissimo tempo para uma pratica espit
tual pura. Nosso tempo é facilmente consumido por outras ativi-
dades, até que, repentinamente, morremos.
Insistimos em pensar que temos tempo suficiente para a pratica
espiritual, mas, se examinarmos com bastante aten¢ao nosso estilo
de vida, veremos que os dias passam rapidamente, sem nos dar-
mos conta e sem que tenhamos comegado seriamente uma pratica.
33COMO TRANSFORMAR A SUA VIDA
Se nao tivermos arranjado tempo para nos empenharmos pura-
mente na pratica espiritual, iremos rememorar nossa vida na hora
da morte e ver que ela foi de muito pouco beneficio. No entanto,
se meditarmos sobre a morte, desenvolveremos um desejo tao sin-
cero de praticar puramente que iremos naturalmente comegar a
modificar nossa rotina didria de modo que inclua, ao menos, um
pequeno tempo para a pratica espiritual. Por fim, encontraremos
mais tempo para a pratica espiritual do que para outras atividades.
Se meditarmos repetidamente sobre a morte, talvez possamos
sentir medo; mas nao é suficiente, apenas, sentir medo. Uma vez
que tenhamos gerado 0 medo adequado de morrer despreparados,
devemos procurar por algo que nos ofereca verdadeira protecao.
Os caminhos das vidas futuras s40 muito longos e desconhecidos.
Temos de vivenciar uma vida apés outra e nao podemos estar se-
guros onde iremos renascer - se teremos de seguir os caminhos
dos estados infelizes de existéncia ou os caminhos de reinos mais
felizes. Nao temos liberdade ou independéncia - temos de ir para
onde nosso carma nos levar. Por essa razio, precisamos encontrar
algo que nos mostre um caminho seguro para as vidas futuras,
algo que nos conduza pelos caminhos corretos e para longe dos
caminhos erréneos. As posses e prazeres desta vida nado podem
nos proteger. Uma vez que somente os ensinamentos espirituais
revelam um caminho perfeito que ira nos ajudar e proteger no
futuro, precisamos aplicar esforco com nosso corpo, fala e mente
para colocar em pratica ensinamentos espirituais, como os que
sao apresentados neste livro. O iogue Milarepa disse:
Existem mais medos nas vidas futuras do que nesta vida. Pre-
paraste algo que ira te ajudar? Se nao te preparaste para as vi-
das futuras, entao, faze-o agora. A unica prote¢ao contra aque-
les medos é a pratica dos sagrados ensinamentos espirituais.
Se refletirmos sobre nossa prépria vida, iremos ver que temos
gasto muitos anos sem nos interessarmos pela pratica espiritual
€ que, agora, mesmo se tivermos 0 desejo de praticar, ainda nao
34MORTE
estamos a praticar puramente devido a preguiga. Um grande eru-
dito chamado Gungtang disse:
Passei vinte anos nao desejando praticar ensinamentos es-
pirituais. Passei os vinte anos seguintes pensando que po-
deria pratica-los mais tarde. Passei mais vinte anos absor-
vido em outras atividades e lamentando o fato de que nao
havia me empenhado na pritica espiritual. Esta é a historia
da minha vida humana vazia.
Essa poderia ser nossa propria histéria de vida, mas, se meditar-
mos sobre a morte, evitaremos desperdigar nossa preciosa vida
humana e iremos nos empenhar para torna-la significativa.
Contemplando esses pontos, devemos pensar profundamente:
“eu vou morrer, inevitavelmente”. Considerando que, na hora da
morte, somente nossa pratica espiritual sera de alguma assistén-
cia verdadeira para nés, tomamos a firme resolugao: “eu preciso
colocar os ensinamentos espirituais, conhecidos como Dharma,
em pratica”. Quando esse pensamento surgir de modo claro e for-
te em nossa mente, devemos manté-lo estritamente focado e sem
distragées, de modo que nos familiarizemos cada vez mais com
ele, até nunca mais perdé-lo.
AHORA DA NOSSA MORTE E INCERTA
Algumas vezes, enganamos a nés mesmos, pensando “sou jovem
€, portanto, nao morrerei tao cedo”; mas, ao meramente observar
quantas pessoas jovens morrem antes que seus pais, podemos ver
quao equivocado esse pensamento é. Algumas vezes, pensamos
“sou saudavel e, portanto, nao morrerei tao cedo”, mas podemos
observar que, de vez em quando, pessoas que sao saudaveis e
cuidam de doentes morrem antes de seus pacientes. Pessoas que
esto indo visitar amigos no hospital podem morrer antes, num
acidente de carro, pois a morte nao se limita aos idosos e aos en-
fermos. Uma pessoa que esteja em plena atividade e sentindo-seCOMO TRANSFORMAR A SUA VIDA
bem pela manha pode estar morta a tarde, e outra que se sente
bem quando vai dormir pode morrer antes que acorde. Algumas
pessoas morrem enquanto estao comendo, ao passo que outras
morrem enquanto estao conversando. Algumas pessoas morrem
assim que nascem.
A morte pode nio dar aviso algum. Esse inimigo pode chegar
a qualquer momento e, com frequéncia, ataca rapidamente, quan-
do menos esperamos por ele. A morte pode chegar enquanto es-
tamos dirigindo para ir a uma festa, ou ligando nossa televisio ou
até mesmo enquanto estamos pensando “eu nao vou morrer hoje” e
fazendo planos para nossas férias de verao ou nossa aposentadoria.
O Senhor da Morte pode se aproximar sorrateiramente de nds, do
mesmo modo que nuvens escuras movem-se pelo céu, sem que as
percebamos. Algumas vezes, quando entramos em casa, 0 céu est
brilhante e claro, mas ao sair, o céu esta encoberto. Do mesmo modo,
a morte pode lancar rapidamente sua sombra sobre nossa vida.
Existem muito mais condigdes conducentes 4 morte do que a
sobrevivéncia. Embora nossa morte seja certa e nosso tempo de
vida, indefinido, isso nao seria tao ruim se as condi¢Ges que levam
a morte fossem raras; porém, existem inumerdveis condigées ex-
teriores e interiores que podem levar a nossa morte. O ambiente
exterior causa mortes por fome, enchentes, incéndios, terremotos,
poluicao, e assim por diante. De modo semelhante, os quatro ele-
mentos corporais internos (os elementos terra, agua, fogo e ven-
to) causam a morte quando sua harmonia é perdida e um deles
se desenvolve em excesso. Quando esses elementos internos estao
em harmonia, diz-se que sio como quatro serpentes da mesma
espécie e de forga equivalente, vivendo juntas pacificamente; mas,
quando perdem sua harmonia, é como se uma serpente se tornasse
mais forte que as outras e passasse a devorar as demais até, por
fim, ela propria morrer de fome.
Além dessas causas inanimadas da morte, outros seres vivos
(como ladrées, soldados inimigos e animais selvagens) também
podem ocasionar nossa morte. Até mesmo coisas que néo consi-
deramos ameagadoras, como aquelas que pensamos que sustentam
36MORTE
€ protegem nossa vida - como nossa casa, nosso carro ou nosso
melhor amigo - podem tornar-se causas da nossa morte. As ve-
zes, pessoas morrem esmagadas pelo desmoronamento da propria
casa ou por cairem da escada em seu préprio lar, e, todos os dias,
muitas pessoas morrem em seus carros. Algumas pessoas morrem
durante as férias, e outras morrem praticando seu hobby ou esporte
preferido - por exemplo, um cavaleiro que morre numa queda. O
proprio alimento que comemos para nutrir e sustentar nossa vida
pode ser uma causa de morte. Nossos amigos ou, até mesmo, nosso
marido ou esposa, podem se transformar, involuntariamente ou de
modo intencional, em causas da nossa morte. Vemos nas noticias
como casais, as vezes, se matam um ao outro, e de pais que, as ve-
zes, matam seus préprios filhos. Se investigarmos cuidadosamente,
seremos incapazes de encontrar qualquer prazer mundano que nao
seja uma causa potencial de morte e que seja, unica e exclusiva-
mente, uma causa para permanecermos vivos. O grande erudito
Nagarjuna disse:
Mantemos nossa vida em meio a milhares de condi¢es que
ameacam nos matar. Nossa forca vital é como a chama de
uma vela ao sabor da brisa - facilmente extinta pelos ventos
da morte, que sopram de todas as direcées.
Cada pessoa criou 0 carma para permanecer nesta vida por
um determinado periodo, mas, visto que nao podemos lembrar 0
carma que criamos, nao podemos saber a duragao exata da nossa
vida atual. E possivel que morramos de morte prematura, antes
de completar nosso tempo de vida, pois podemos esgotar nosso
mérito - que é a causa de boa fortuna - mais cedo do que o es-
gotamento do carma que determina nosso tempo de vida. Se isso
acontecer, ficaremos tao doentes que os médicos nao conseguirio
nos ajudar, ou nos encontraremos numa situa¢ao na qual seremos
incapazes de obter alimentos e demais necessidades que susten-
tam nossa vida. No entanto, mesmo quando ficamos seriamente
doentes, se nosso tempo de vida nao tiver chegado ao fim e ainda
37COMO TRANSFORMAR A SUA VIDA
tivermos mérito, podemos encontrar todas as condigdes necess4-
rias para nossa recuperagio.
O corpo humano é muito fragil. Embora existam muitas cau-
sas de morte, isso nao seria tio ruim se nosso corpo fosse forte
como 0 aco; porém, nosso corpo é delicado. Nao sao necessarias
armas e bombas para destruir nosso corpo; ele pode ser destruido
por uma pequena agulha. Como Nagarjuna disse:
Ha muitos destruidores da nossa forga vital.
Nosso corpo humano é como uma bolha d’gua.
Assim como uma bolha d’gua estoura tio logo é tocada, uma tinica
e simples gota de agua em nosso cora¢ao ou o mais leve arranhao de
um espinho venenoso podem causar nossa morte. Nagarjuna disse
que, ao final deste éon, o universo inteiro sera consumido pelo fogo
nem mesmo suas cinzas irdo restar. Uma vez que 0 universo inteiro
ir se tornar vazio, nao é necessario dizer que este delicado corpo
humano ira se deteriorar muito mais rapidamente.
Podemos contemplar 0 processo da nossa respiracao e como
ele continua, sem interrup¢io, entre a inalacao e a exalacio. Se
esse processo parar, morremos. Até mesmo quando estamos dor-
mindo e nossa continua-lembranca nao est4 mais funcionando,
nossa respiracdo continua, embora, sob muitos outros aspectos,
parecamos um cadaver. Nagarjuna disse: “isso é a coisa mais
maravilhosa!”. Quando acordamos pela manha, deveriamos nos
regozijar, pensando: “Como é surpreendente que a minha respi-
racao tenha mantido minha vida durante o sono. Se ela tivesse
cessado durante a noite, eu agora estaria morto!”.
Por contemplar que a hora da nossa morte é totalmente incerta
e compreendendo que nao ha garantia de que nao morreremos
hoje, devemos pensar profundamente, dia ¢ noite: “Pode ser que
eu morra hoje, pode ser que eu morra hoje”. Meditando nesse sen-
timento, chegaremos, entdo, a uma forte determinagao:
38MORTE
J que, em breve, terei de partir desta vida, nao hd sentido
em ficar apegado ds coisas desta vida. Em vez disso, tomarei
a sério a verdadeira esséncia da minha vida humana, empe-
nhando-me sinceramente numa pratica espiritual pura.
O que significa “empenhar-se numa pritica espiritual pura’?
Quando praticamos ensinamentos espirituais que sio métodos
para controlar nossas delusées (tais como o desejo descontrolado,
raiva e ignorancia), estamos nos empenhando numa pratica espi-
ritual pura. Isto, por sua vez, significa que estamos seguindo ca-
minhos espirituais corretos. Essa pratica espiritual pura tem trés
niveis: (1) a prdtica de uma pessoa de escopo inicial, (2) a pratica
de uma pessoa de escopo mediano e (3) a pratica de uma pessoa
de grande escopo. Uma explicacao detalhada desses trés niveis
pode ser encontrada nos livros Caminho Alegre da Boa Fortuna e
Budismo Moderno.
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