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TRÁFICO INTERNACIONAL DE MULHERES: CONSTRUINDO UM REGIME


INTERNACIONAL COM ENFOQUE EM DIREITOS HUMANOS? - ESTUDO DOS
CASOS BRASIL/ESPANHA

Thesis · February 2021

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Verônica Maria Teresi


Universidade Federal do ABC (UFABC)
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

Verônica Maria Teresi

TRÁFICO INTERNACIONAL DE MULHERES:


CONSTRUINDO UM REGIME INTERNACIONAL COM ENFOQUE EM DIREITOS
HUMANOS? - ESTUDO DOS CASOS BRASIL/ESPANHA

São Bernardo do Campo - SP


2021
Verônica Maria Teresi

TRÁFICO INTERNACIONAL DE MULHERES:


CONSTRUINDO UM REGIME INTERNACIONAL COM ENFOQUE EM DIREITOS
HUMANOS? - ESTUDO DOS CASOS BRASIL/ESPANHA

Tese apresentada ao programa de Pós-


Graduação em Ciências Humanas e Sociais
(PCHS) da Universidade Federal do ABC
(UFABC), como requisito parcial à obtenção do
Título de Doutor. Linha de Pesquisa: Estado,
Políticas Públicas e Sociedade Civil.
Orientador: Prof. Dr. Gilberto Marcos Antônio
Rodrigues

São Bernardo do Campo - SP


2021
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Véra Lucia de Campos Octaviano - CRB-8/848
__________________________________________________________________________________

Teresi, Verônica Maria


Tráfico internacional de mulheres: construindo um regime internacional com enfoque em
direitos humanos? - estudo dos casos Brasil/Espanha / Verônica Maria Teresi. --São Bernardo
do Campo, 2021. Tese (Doutorado em Ciências Humanas e Sociais) - Programa de Pós-
Graduação em Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal do ABC, 2021.
468 f. : il.
Orientador: Gilberto Marcos Antonio Rodrigues
1. Tráfico internacional de mulheres. 2. Direito Internacional dos Direitos Humanos. 3.
Organização da Sociedade Civil. 4. Brasil. 5. Espanha. I. Rodrigues, Gilberto Marcos Antonio.
II. Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais. III. Título.
CDD 341.27
CDU 343.545(043)
"O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
À minha pequena grande pimpolha Júlia Beatriz que me
redefiniu e me fez ampliar o sentido de ser mulher e mãe
neste mundo.

Ao meu amor Carlos Alberto, pela partilha do amor e da


vida, principalmente quando nos redescobrimos um no
outro. Pelos cafés, águas, bolos: mimos em forma de ânimo,
durante estes últimos dois anos e, principalmente pelos dias
e noites de ausência enquanto escrevia esta tese.

A mi mami Beatriz, la mujer más fuerte y dulce que


conozco. En ti me espejo cada dia.
A mi papi Javier, por siempre tener una palabra que permite
ver una luz al fin del túnel… A ustedes dos, por cuidaren
de mi pequeño tesoro, como cuidarían de mi, cuando yo
estaba escribiendo… Por seren fortaleza en estos tiempos
tan inciertos...

Às mulheres que compartilharam suas histórias comigo e


para aquelas que permanecem na invisibilidade da
exploração...

À todas, todes e todos os atores que lutam diariamente pelos


direitos das pessoas vítimas de tráfico e principalmente
aqueles que acreditam num outro mundo possível...
AGRADECIMENTOS

Se o processo de escrita é solitário para todos e todas nós, ao mesmo tempo me senti
abraçada por uma rede de apoio em todo o momento do Doutorado, especialmente neste ano
tão difícil, isolado e solitário. Esse sentimento foi fundamental nesse processo de finalização
da escrita desta tese.
Ao final dessa pesquisa, posso garantir que ela só foi possível pela colaboração, apoio
e confiança de muitas pessoas. Estou certa de que a temática envolve compromisso com a vida
humana e isso requer paixão, dedicação, sensibilidade, capacidade e principalmente
persistência. Gostaria de agradecer a todos e todas que compartilharam desses “instantâneos”
quase cinco anos que se acabam e que se concretizam nesse trabalho, acreditando que dele virão
muitos outros, pensados por muitas outras mentes, e que juntos, possam permitir mudanças no
enfrentamento ao tráfico de mulheres e nas vidas de tantas mulheres que se encontram
vulneráveis e em situação de exploração por esse mundo afora.
Inicialmente agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), por ter me beneficiado com uma bolsa de estudos, de janeiro de 2018 a janeiro de
2020, condição essencial para a conclusão dessa pesquisa.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da
UFABC, especialmente a todos e todas que tive a oportunidade de conviver por quadrimestres
que me modificaram totalmente. A escolha de um Programa Interdisciplinar foi a melhor
escolha que fiz e com ela tive a oportunidade de abrir muitas “caixinhas” de conhecimento antes
desconhecidas e principalmente a “caixinha” da curiosidade por tantas outras que ainda tenho
que descobrir. Também gostaria de agradecer aqueles que, por momentos, me fizeram duvidar
se aquele era meu lugar e se eu conseguiria finalizar uma tese ali. Gostaria de deixar um
agradecimento afetuoso especialmente aos professores e professoras Alessandra Teixeira,
Arlene Martinez Ricoldi, Camila Nunes Dias, Claudio Luís Camargo Penteado, Elias David
Morales Martinez, José Blanes Sala, Marilda Aparecida Menezes, Roberta Guimarães Peres, e
Sergio Amadeu da Silveira.
Aos meus colegas do Doutorado das turmas de 2015 a 2020, com quem compartilhei
muitas manhãs e tardes, muitas reflexões, muitas leituras compartilhadas, muitas trocas sobre
nossos projetos de pesquisa e a realização da I Semana Pesquisa Interdisciplinar do PCHS-
UFABC. Muitos destes já são doutores e trilham seus caminhos para além da fortaleza da
Universidade, especialmente, Celina Lerner, Dulci Lima, Francine Tadielo, Joyce Souza, Karen
Fonseca, Robson Silva Santos, Rodolfo Avelino, Rosângela Teixeira, Tais Oliveira, Thiago
Mattioli e aos meus amigos coloquianos: Danilo Garnica Simini e Michel Carvalho.
À secretaria do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais, no nome
da Melina Mergl, quem sempre nos auxiliou e resolveu inúmeras de nossas dúvidas
administrativas.
Em especial quero agradecer ao meu orientador, professor e posso dizer com todo o
respeito, amigo, Dr. Gilberto Marcos Antônio Rodrigues pela confiança, estímulo desde os
tempos de graduação e Mestrado, ensinamentos, orientações, partilha de muitos momentos,
acadêmicos e de militância no enfrentamento ao tráfico de pessoas. Orgulho de poder termos
convivido tantos anos. É uma honra ser sua orientanda.
Quero agradecer às Professoras Doutoras Alessandra Teixeira e Marilda Aparecida
Menezes por todo o ensinamento, disponibilidade, pelas contribuições feitas na Banca de
qualificação realizada em agosto de 2018 e por aceitarem participar da minha banca final de
avaliação. Agradeço também às professoras Dras. Fernanda de Magalhães Dias Frinhani e
Maria Lucia Pinto Leal por aceitarem compor a Banca final de avaliação.
Agradeço às diversas pessoas, movimentos de mulheres, da infância, da economia
solidária de Santos e região, e tantos outros que na multidisciplinaridade e interseccionalidade
vêm construindo uma discussão na cidade de Santos sobre o enfrentamento ao tráfico de pessoas
e com quem venho aprendendo muito.
Ao Núcleo de Políticas Públicas e Sociais da UNIFESP/ Baixada Santista pela acolhida
desde 2018 da temática do tráfico de pessoas, pela partilha de ideias e projetos, pela
oportunidade de aprender com cada uma das professoras, professores, pesquisadores, alunos e
alunas, colaboradores, pessoas que pensam muito sobre as políticas públicas da cidade de
Santos e com os quais compartilho sonhos de ver uma cidade mais humana e acolhedora para
todos e todas. Agradeço nas pessoas das queridas professoras Dra. Anita Kurka e Dra. Gisele
Bovolenta.
Agradeço aos atores que atuam no enfrentamento ao tráfico de pessoas e que me
permitiram compreender o fenômeno do tráfico de mulheres no Brasil e na Espanha a partir de
seus olhares, principalmente a situação das mulheres brasileiras na Espanha e especialmente
por acreditarem no meu trabalho como pesquisadora. No Brasil, agradeço a Rede Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, especialmente aos NETP e PAHHM. Agradeço
especialmente nas pessoas Leila Silva (PA) Ludimila Paiva (RJ), Livia Xerez (CE), Silvia
Xavier (PR), Ricardo Alves (SP), Jeanne de Aguiar (PE), Andreia Castro (SP). E as OSCs
ASBRAD, no nome da Dalila Figueiredo, ONG Astral, no nome da Beth Fernandes, do Projeto
Resgate, no nome do Marco Aurelio, Cáritas Foz Iguacú, no nome do Carlos. Na Espanha,
especialmente ao Centro Vagalume (Galicia), Médicos del Mundo (Madrid), Proyecto
Esperanza (Madrid), Fundación Amaranta/Asturias (Gijón), Proyecto Sicar-Barcelona
(Barcelona), Accem (Madrid), Fundación Cruz Blanca (Madrid), Cáritas Española (Marid).
Não posso deixar de citar pessoalmente Iru, José, Lourdes Pazo, Luis Aguirre, Marta González,
Ramon Esteso, Vanesa Alvarez, Domi, Clara Corbera, Ester, Carmen Martinez, Hilde Daems,
Luiz Aguirre, Teresa De Gasparis, que para além do trabalho, se tornaram exemplos de
dedicação e compromisso com a vida dessas mulheres. Agradeço também a Betania Nze,
Enrique Lopez Villanueva e a Mirian Benterrak, pelo apoio e contribuição.
Agradeço às pesquisadoras e pesquisadores que me permitiram tantos olhares sobre o
tráfico de pessoas, especialmente Dra. Maria Elena Sopeña Vallina, minha querida Maleni; ao
querido Dr. Guilherme Dias Mansur, pelas longas conversas e reflexões sobre o tráfico de
pessoas; a Dra. Graziella Rocha, pela militância e dedicação sem fim ao tema; a minha querida
Dra. Marta Carballo de la Riva; minha querida Fernanda Fuentes, a querida e incansável Renata
Braz, ao Dr. Luciano Dornelas, pela partilha de seu conhecimento, a Dra. Waldimeiry Correa
da Silva pelo apoio, compartilhamento de olhares, conversas, indicações de leituras.
Ao Instituto Universitário de Desarrollo y Cooperación de la Universidad Complutense
de Madrid, pela acolhida de sempre, pela oportunidade de desenvolver parte da minha pesquisa
de tese como pesquisadora convidada, pelos conhecimentos compartilhados e amizade, em
especial ao diretor Dr. José Ángel Sotillo, Bruno Ayllón, David Álvarez, Jorge García Burgos,
Juncal Gilsanz Blanco, Rocío Lópes, Tahina Ojeda Medina, e todos com os quais compartilhei
momentos especiais no ambiente acadêmico espanhol.
Em especial agradeço a “nuestro despachito unido”! Mesmo distante estamos unidas,
Juncal Gilsanz Blanco e Rhina Cabezas. Obrigado pela sempre amizade, acolhida na Espanha
e pelo mimo em forma de flor no Brasil.
Às minhas queridas amigas e amigos que torceram por mim e me apoiaram. Em especial,
Dra. Maria do Rosário Salles (Marô), pela leitura cuidadosa e carinhosa da tese. A Márcia Farah
Reis, pela luta, perseverança, compromisso com as causas mais nobres e pelo apoio sempre. À
Sonise Gomes pelas reflexões partilhadas e tão importantes para a tese. Agradeço às amigas e
amigos Adriana Machado, Cristiane Elias, Érika Mendes Silva, Flávia Rios, Luciana Lima,
Josieni Pereira, Tatiana Moreira, Verônica Altef Barros, Vinicius Nobre, pelo carinho e
estimulo mesmo à distância.
Aos meus amigos e amigas da “UP”: amigos dos tempos da graduação que
permaneceram pelos sonhos comuns. Obrigado pelo apoio na qualificação, pelas mensagens de
carinho e de incentivo até o final desta tese.
Agradeço a minha rede de apoio mais próxima pelo amor em forma de paciência,
estimulo, companheirismo, amor. Ao meu amor Carlos Alberto, por toda a parceria, apoio,
incentivo e, por compreender minhas ausências neste processo. À minha pimpolha pelo tempo
que deixamos de “pimpolear” juntas: brincando, desenhando, cozinhando, passeando... Aos
meus pais, pelo apoio incondicional de sempre... Sem vocês esta tese não teria sido possível.
Agradeço também a querida Vera Lúcia Campos Otaviano, um anjo e me auxiliou na
revisão do texto e da formatação final. Pela sua calma, tranquilidade e por me dar a confiança
de que conseguiríamos terminar a revisão no prazo!
Espero não ter deixado ninguém de fora dos agradecimentos, mas se por acaso isso
acontecer, sintam-se todos abraçados, em um sincero gesto de muito obrigada!

Gracias a la vida que me ha dado tanto


Me ha dado la risa y me ha dado el llanto
Así yo distingo, dicha de quebranto
Los dos materiales que forman mi canto
Y el canto de ustedes, que es el mismo canto
“Gracias a la Vida” - Violeta Parra
EPIGRAFE

Que tal se delirarmos por um tempinho


Que tal fixarmos nossos olhos mais além da infâmia
Para imaginar outro mundo possível?
[...]
Será incorporado aos códigos penais
O crime da estupidez para aqueles que a cometem
Por viver só para ter o que ganhar
Ao invés de viver simplesmente
Como canta o pássaro em saber que canta
E como brinca a criança sem saber que brinca.
[...]
Os economistas não chamarão mais
De nível de vida o nível de consumo
E nem chamarão a qualidade de vida
A quantidade de coisas.
[...]
A comida não será uma mercadoria
Nem a comunicação um negócio
Porque a comida e a comunicação são direitos humanos.
Ninguém morrerá de fome
Porque ninguém morrerá de indigestão.

As crianças de rua não serão tratadas como se fossem lixo


Porque não existirão crianças de rua.
As crianças ricas não serão como se fossem dinheiro
Porque não haverá crianças ricas.

A educação não será privilégio daqueles que podem pagá-la


E a polícia não será a maldição daqueles que podem comprá-la
[...]
Seremos compatriotas e contemporâneos
De todos o que tenham
A vontade de beleza e vontade de justiça
Tenham nascido quando tenham nascido
Tenham vivido onde tenham vivido
Sem importarem nem um pouquinho
As fronteiras do mapa e do tempo.

Seremos imperfeitos
Porque a perfeição continuará sendo o aborrecido privilégios dos deuses
Mas neste mundo, [...]
Seremos capazes
De viver cada dia como se fosse o primeiro
E cada noite como se fosse a última.

(O direito de sonhar) Eduardo Galeano


RESUMO

TERESI, Verônica Maria. Tráfico internacional de mulheres: construindo um regime


internacional com enfoque em direitos humanos? - Estudo dos casos Brasil/Espanha. 2021. 468
f. Tese (Doutorado em Ciências Humanas e Sociais) - Programa de Pós-Graduação
Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais (PCHS) da Universidade Federal do ABC
(UFABC). 2021.

Esta pesquisa tem como objetivo verificar se estamos diante de um processo de construção de
um regime internacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas, especialmente mulheres, a
partir de um enfoque em direitos humanos. Parte-se da constatação de que existe um regime de
combate ao tráfico de pessoas, disposto principalmente pela Convenção das Nações Unidas
contra o Crime Organizado Transnacional e o Protocolo de Palermo (2000), que se desenvolve
a partir de uma lógica securitária e de criminalização internacional do crime organizado
transnacional. Esse regime dá centralidade ao Estado, deixando em segundo plano a proteção
das vítimas. A pesquisa foca no tráfico internacional de mulheres para fins de exploração
sexual, construindo-se os elementos fundantes que caracterizam e especializam essa
modalidade de tráfico para esse público específico. Nesse sentido, percebe-se que esse regime
é excludente de um regime de proteção às mulheres. Dessa forma, a problemática da pesquisa
focaliza a possível construção da proteção internacional das mulheres vítimas de tráfico de
pessoas a partir do enfoque baseado nos Direitos Humanos, devolvendo e conferindo
centralidade às vítimas nas políticas de tráfico. A abordagem privilegia as organizações da
sociedade civil, especialmente localizadas no Brasil e na Espanha, por ocuparem espaços
distintos dentro do arranjo de forças das institucionalidades internas de cada país, e que vêm
pautando a proteção das vítimas no âmbito dos Estados. Trata-se de uma pesquisa de natureza
qualitativa, de base documental, bibliográfica, com pesquisa exploratória (entrevistas). As
entrevistas foram gravadas e transcritas, dando voz principalmente às mulheres e às
organizações da sociedade civil entrevistadas. A análise exige a percepção de idiossincrasias
dos atores fundamentais para compreender anseios, percepções e motivações de ação. A
pesquisa descreve os processos de construção das políticas públicas internas de enfrentamento
ao tráfico de pessoas no Brasil e na Espanha, desde a incorporação das normativas
internacionais de Palermo, assim como descreve as políticas públicas criadas internamente, a
governança e institucionalidade desenvolvidas, analisando se estas têm permitido a criação de
um regime com enfoque em direitos humanos, visando e priorizando a proteção e atenção das
mulheres vítimas. Procura-se identificar elementos relevantes para a construção do regime
baseado em direitos humanos, apontando reflexões para uma intervenção nessa perspectiva.
Como considerações finais, avalia-se que o jogo de forças entre os atores, nos espaços
internacionais e internos nos estados, considerando também os interesses e pautas próprias dos
atores, vem permitindo avanços na construção de uma mentalidade, no sentido da necessidade
de proteção das vítimas e, no âmbito interno, verificam-se políticas públicas internas que
forçam e condicionam os estados a proteger e atender às vítimas. De outro lado, ainda há muito
a ser construído e, principalmente, muito a se fazer para que a vítima de tráfico de pessoas esteja
efetivamente na centralidade das ações internacionais e nacionais no enfrentamento ao tráfico
de pessoas, especialmente mulheres.

Palavras-chave: Tráfico internacional de mulheres. Direito Internacional dos Direitos


Humanos. Organização da sociedade civil. Brasil. Espanha.
ABSTRACT

TERESI, Verônica Maria. International Trafficking of women: building an international


regime with a focus on human rights? - Case studies Brazil/Spain, 2021. 468 f. Thesis
(Doctorate in Social and Human Sciences) - Interdisciplinary Post-graduation program in Social
and Human Sciences (PCHS) from the Federal University of ABC (UFABC). 2021

This research aims at verifying if we are facing a construction process of an international regime
to confront human trafficking, especially women, with an emphasis on human rights. It stems
from the acknowledgment of the existence of a regime to combat human trafficking, disposed
mainly by the United Nations Convention against Transnational Organized Crime and the
Palermo Protocol (2000), which unfolds from a security rationale and the international
criminalization of transnational organized crime. This regime gives the State a central role,
leaving the protection to the victims in the background. The research focuses on the
international trafficking of women for the purpose of sexual exploitation, building the
underlying elements that characterize and specialize this kind of trafficking for this specific
profile. In this sense, it is noticeable that this regime excludes a regime of protection to women.
Hence, the core of the research focuses on the possible construction of international protection
of the women who are victims of trafficking from a perspective based on Human Rights,
bringing the victims to the central debate in the policies related to human trafficking. The
approach privileges organizations in the civilian society, especially those located in Brazil and
Spain, for occupying distinct spaces within the power arrangement of the internal institutions
of each country, and that have been guiding the protection of victims in the realm of the States.
The research has a qualitative, documentary and bibliographic nature, with exploratory research
(interviews). The interviews were recorded and transcribed, giving voice especially to the
women and organizations from the civilian society that were interviewed. The analysis demands
the perception of idiosyncrasies of the main actors to understand fears, perceptions and motives
for action. The research describes the processes behind the development of internal public
policies to confront human trafficking in Brazil and Spain, from the incorporation of
international norms in Palermo, including the way public policies created internally are
described, to the developed governance and institutions, analyzing if these have allowed the
creation of a regime with an emphasis on human rights, aiming at and prioritizing the protection
and attention to the women who are victims. There is the intention to identify elements that are
relevant to the construction of a regime based on human rights, raising reflections for an
intervention within this perspective. In the final considerations, it is assessed that the powerplay
among the actors, in the international and internal domains of the state, also considering the
interests and agenda of these actors, have been allowing for advancements in the construction
of a mindset towards the need to protect the victims and, in the internal realm, public policies
that force and condition the states to protect and assist the victims can be verified. On the other
hand, there is still much to be developed and, especially, a lot to be done so as to effectively
bring the victim of human trafficking into the center of the international and national actions to
confront human trafficking, especially women.

Keywords: International trafficking of women. International Human Rights Law. Civil Society
organization. Brazil. Spain.
RESUMEN

TERESI, Verônica Maria. Trata internacional de mujeres: construyendo un régimen


internacional con enfoque en derechos humanos? - Estudio de los casos Brasil/España. 2021.
468 f. Tesis (Doctorado en Ciencias Humanas y Sociales) - Programa de PosGrado
Interdisciplinar en Ciencias Humanas y Sociales (PCHS) de la Universidade Federal do ABC
(UFABC). 2021.

Esta investigación tiene como objetivo verificar si estamos frente un proceso de construcción
de un régimen internacional para combatir la trata de personas, especialmente mujeres, desde
un enfoque de derechos humanos. Se basa en el hecho de que existe un régimen para combatir
la trata de personas, principalmente previsto por la Convención de las Naciones Unidas contra
la Delincuencia Organizada Transnacional y el Protocolo de Palermo (2000), que se desarrolla
desde una lógica de seguridad y criminalización del crimen organizado transnacional. Este
régimen otorga centralidad al Estado, dejando en un segundo plano la protección de las
víctimas. La investigación se centra en la trata internacional de mujeres con fines de explotación
sexual, construyendo los elementos fundantes que caracterizan y especializan este tipo de trata
para este público específico. En este sentido, es evidente que este régimen excluye un régimen
de protección para las mujeres. De esta manera, el tema de investigación se enfoca en la posible
construcción de una protección internacional para las mujeres víctimas de trata de personas
desde el enfoque de Derechos Humanos, retornando y dando centralidad a las víctimas en las
políticas de trata. El enfoque favorece a las organizaciones de la sociedad civil, especialmente
ubicadas en Brasil y España, ya que ocupan espacios diferenciados dentro de las
institucionalidades internas de cada país, que han orientado la protección de las víctimas en el
ámbito de los Estados. Es una investigación cualitativa, basada en documentos, bibliografía,
con investigación exploratoria (entrevistas). Las entrevistas fueron grabadas y transcritas,
dando voz principalmente a las mujeres y organizaciones de la sociedad civil entrevistadas. El
análisis requiere la percepción de idiosincrasias de los actores fundamentales para comprender
los deseos, percepciones y motivaciones para la acción. La investigación describe los procesos
de construcción de políticas públicas internas para combatir la trata de personas en Brasil y
España, desde la incorporación de los estándares internacionales de Palermo, así como describe
las políticas públicas creadas internamente, la gobernabilidad e institucionalidad desarrolladas,
analizando si estas han permitido la creación de un régimen con enfoque de derechos humanos,
orientado y priorizando la protección y atención de las mujeres víctimas. Se busca identificar
elementos relevantes para la construcción del régimen de derechos humanos, señalando
reflexiones para una intervención en esta perspectiva. Como consideraciones finales, se evalúa
si el juego de fuerzas entre los actores, en los espacios internacionales e internos de los estados,
considerando también los intereses y pautas propias de los actores, ha permitido avances en la
construcción de una mentalidad, en el sentido de la necesidad de proteger a las personas y,
internamente, existen políticas públicas internas que obligan y condicionan a los Estados a
proteger y asistir a las víctimas. Por otro lado, aún queda mucho por construir y, principalmente,
mucho por hacer para que la víctima de la trata de personas esté efectivamente en el centro de
las acciones internacionales y nacionales de lucha contra la trata de personas, especialmente
mujeres.

Palabras clave: Trata internacional de mujeres. Derecho Internacional de los Derechos


Humanos. Organización de la sociedad civil. Brasil. España.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1. Mapa Político da Espanha por Comunidades Autônomas ..................................... 115


Figura 2. Trajeto percorrido por Jasmin da Nigéria até a Espanha ....................................... 131
Figura 3. Trajetória de Hibisco de Santo Domingo até Espanha........................................... 133
Figura 4. Trajetória de Hibisco de San Sebastián até Gijón .................................................. 134
Figura 5. Trajetória de Violeta de Caracas a Espanha ........................................................... 136
Figura 6. Trajetória de Violeta de Madrid a Oviedo e Gijón ................................................ 136
Figura 7. Trajetória de Liz de São Paulo, Paris (FR) /Madrid (ES). ..................................... 139
Figura 8. Trajetória de Liz de Madrid a El Berrón e Gijón ................................................... 139
Figura 9. Inter-relação entre Migração, Tráfico de Pessoas e Tráfico Ilícito de Migrantes .. 169
Figura 10. Objetivos Desenvolvimento do Milênio .............................................................. 187
Figura 11. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ......................................................... 188
Figura 12. Regime Complexo do Tráfico de Pessoas ............................................................ 217
Figura 13. Regimes Complexos Global e Regionais ............................................................. 219
Figura 14. Linha do Tempo Política Pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil.
............................................................................................................................................... 257
Figura 15. Mapa da Rede Atual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil ............ 284
Figura 16. Fluxo de Retorno de vítima de tráfico Espanha-Brasil ........................................ 353
Figura: 17. Linha do Tempo da Política Pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas na
Espanha.................................................................................................................................. 333
Figura: 18. Trajeto Camomila: Campo Grande (MS) – São Paulo (SP) – Paris (FR). .......... 355
Figura: 19. Trajeto Camomila: Paris (FR) – Bilbao (ES). ..................................................... 356
Figura: 20. Trajeto Camomila: Paris (FR) – Bilbao (ES). ..................................................... 356
Figura: 21. Localidades onde Camomila exerceu prostituição 357
LISTA DE TABELAS

Tabela 1. Aeroportos de origem e País de Destino................................................................ 113


Tabela 2. Cidade de Origem x Cidade de Trânsito x Cidade de Destino na Espanha ........... 114
Tabela 3. Modelos de interpretação da prostituição. (Elaboração Própria)........................... 150
Tabela 4. Quadro comparativo do tráfico de pessoas e contrabando de migrantes ............... 170
Tabela 5. ODS 5 – Igualdade de gênero ................................................................................ 189
Tabela 6. Orçamento Ministério da Justiça para Política Nacional tráfico de pessoas ......... 266
Tabela 7. Parcerias governo Brasileiro com OIs para o fortalecimento do enfrentamento ao
tráfico de pessoas no Brasil ................................................................................................... 267
Tabela 8. Número de denúncias de tráfico de pessoas registradas pelo Disque 100 -Brasil - 2016
a 2019 .................................................................................................................................... 271
Tabela 9. Número de vítimas de tráfico atendidas CREAS (2012-2019). ............................ 292
Tabela 10. Número de Atendimentos de Vítimas de Tráfico atendidas CREAS
(mulheres/homens) 2012-2019 .............................................................................................. 293
Tabela 11. Censo SUAS Número de Atendimentos por Estado............................................ 294
Tabela 12. Dados vítimas tráfico de pessoas - Unidade de Repressão ao Tráfico de Pessoas
URTP/PF ............................................................................................................................... 299
Tabela 13. Relatório Atuação da Polícia Federal no Combate aos Crimes Violadores dos
Direitos Humanos/2019 ......................................................................................................... 300
Tabela 14. Número de inquéritos instaurados (SISCART ), indiciamentos, indiciados e
Inquéritos com indiciamento (SINIC ) pela Polícia Federal ................................................. 300
Tabela 15. Número de Assistências Prestadas pela DPU em casos de tráfico de pessoas
(2012/2015). .......................................................................................................................... 301
Tabela 16. Distribuição do número de vítimas por cor ou raça e UF .................................... 305
Tabela 17. Política Pública brasileira de enfrentamento ao tráfico de pessoas x governos
(2000/2020). .......................................................................................................................... 312
Tabela 18. Orçamento Espanhol do Plano Integral 2015-2018 ............................................. 342
Tabela 19. Política Pública espanhola de enfrentamento ao tráfico de pessoas x governos
(2000/2020). .......................................................................................................................... 360
Tabela 20. Normativas internacionais do ramo do Direito Internacional dos Direitos Humanos
............................................................................................................................................... 368
LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1. Modalidades de exploração por sexo ..................................................................... 97


Gráfico 2. Número de rotas de Tráfico de mulheres ............................................................. 113
Gráfico 3. Número de vítimas de tráfico atendidas CREAS (2012-2019) ............................ 292
Gráfico 4. Número de Atendimentos de Vítimas de Tráfico atendidas CREAS
(mulheres/homens) 2012-2019 .............................................................................................. 293
Gráfico 5. Distribuição do número de vítimas por idade na época do aliciamento ............... 305
Gráfico 6. Procedimento derivação de potencial vítima de tráfico estrangeira não comunitária
em situação documentação irregular 326
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ACCEM - Asociación Comisión Católica Española de Migración


ACNUR - Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados
ANP - Academia Nacional de Polícia
APRAMP - Asociación para la Prevención, Reinserción y Atención de la Mujer Prostituida
ASBRAD - Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude
CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CATW - Coalition Against Trafficking in Women
CEAR - Comisión Española de Ayuda al Refugiado
CECRIA - Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes
CEDAW - Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as
Mulheres
CEDH - Convenção Europeia sobre Direitos Humanos
CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos
CITCO - Centro de Inteligencia contra el Terrorismo y el Crimen Organizado
CONATRAP - Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
CPMI - Comissão Parlamentar de Inquérito do Congresso Nacional
CRAS - Centros de Referência da Assistência Social
CRC - Convenção sobre os Direitos da Criança
CREAS - Centro de Referência Especializado de Assistência Social
DEAM - Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher
DPF - Departamento de Polícia Federal
DPU - Defensoria Pública da União
DUDH - Declaração Universal dos Direitos Humanos
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
ECOSOC – Conselho Econômico e Social
EUA - Estados Unidos da América
FRONTEX - Agencia de Control de Fronteras Externas
FUNDAP - Fundação do Desenvolvimento Administrativo (SP)
GAATW - Aliança Global contra o Tráfico de Mulheres
GRETA - Grupo de Peritos em Ação contra o Tráfico de Seres Humanos
GTI - Grupo de Trabalho Interministerial
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ICMPD - International Centre for Migration Policy Development
IDG - Índice de Desenvolvimento por Gênero
IDG - Índice de Desenvolvimento por Gênero
IMDH - Instituto de Migração e Direitos Humanos
IOM - Organização Internacional para Migrações
IPG - Índice de Poder por Gênero
ITTC - Instituto Terra, Trabalho e Cidadania
IUDC/UCM - Instituto Universitario de Desarrollo y Cooperación de la Universidad
Complutense de Madrid
LO - Ley Ordinária
LOAS - Lei Orgânica da Assistência Social
MDS - Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
MERCOSUL - Mercado Comum do Sul
MJ - Ministério da Justiça
MP - Ministério Público
MPF - Ministério Público Federal
MRE - Ministério das Relações Exteriores
MRN - Marco Regulatório Nacional
MROSC - Marco Regulador Organização Sociedade Civil
NETP - Núcleo Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
NOB/SUAS - Norma Operacional Básica do Sistema Único da Assistência Social
ODM - Objetivos de Desenvolvimento do Milênio
ODS - Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
OEA - Organização dos Estados Americanos
OI - Organização Internacional
OIM - Organização Internacional para Migrações
OIT - Organização Internacional do Trabalho
ONU - Organização das Nações Unidas
ONU Mulheres - Organização das Nações Unidas para Mulheres
OSC - Organização da Sociedade Civil
OSCE - Organização para a Segurança e a Coordenação na Europa
PAAHM - Posto Avançado de Atendimento Humanizado ao Migrante
PCHS/UFABC - Programa de Ciências Humanas e Sociais da UFABC
PESTRAF - Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Meninas e Adolescentes para fins de
exploração sexual no Brasil
PF - Policia Federal
PIB - Produto Interno Bruto
PIDCP - Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos
PNAS - Política Nacional de Assistência Social
PNETP - Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PRONASCI - Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania
RECTP - Red Española contra la Trata de Personas
RMA - Registros Mensais de Atendimento
RMAAM - Reunião de Mulheres Mercosul
SEDH - Secretaria Especial de Direitos Humanos
SENASP - Secretaria Nacional de Segurança Pública
SNJ - Secretaria Nacional de Justiça
SPM - Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres
STF - Supremo Tribunal Federal
SUAS - Sistema Único da Assistência Social
SUS - Sistema Único de Saúde
TIP - Tribunal Penal Internacional
TSH - Tráfico de Seres Humanos
UCRIF - Policía Nacional y Unidad Contra Redes de Inmigración Ilegal y Falsedades
Documentales
UE - União Europeia
UNASUL - União de Nações Sul-Americanas
UNODC - Organização das Nações Unidas para Drogas e Crimes
USAID - Departamento de Estado dos Estados Unidos
SUMARIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 30
I. Contextualização do tema. De que fenômeno estamos falando? ......................................... 30
II. Problema de pesquisa .......................................................................................................... 31
III Travessias, andanças, bagagens, construção de estímulos ................................................. 35
IV. Limitações da Pesquisa ..................................................................................................... 37
V. Contextualizando a pesquisa interdisciplinar ..................................................................... 41
VI. Aspectos preliminares sobre a proteção internacional dos direitos humanos e o enfoque em
direitos ..................................................................................................................................... 45
VII. Procedimentos Metodológicos ......................................................................................... 51
A. Fase exploratória................................................................................................................. 51
A.1.Estado da arte.................................................................................................................... 51
A.2 Técnicas, instrumentos de coletas de pesquisa e aproximação com o campo .................. 53
B. Análise dos Dados Coletados.............................................................................................. 55
C. Ética na pesquisa ................................................................................................................. 57
VIII. Organização da Tese ....................................................................................................... 58
PARTE 1................................................................................................................................. 60
DO FENÔMENO DO TRÁFICO DE MULHERES À CONFIGURAÇÃO DO REGIME
COMPLEXO DE ENFRENTAMENTO ............................................................................. 60
CAPITULO 1: ELEMENTOS FUNDANTES DO TRÁFICO DE MULHERES:
EXPLORAÇÃO, VULNERABILIDADE, GÊNERO, MIGRAÇÃO FORÇADA. ......... 61
1.1 Mobilidade Humana como Fenômeno Social ................................................................... 62
1.1.1 A mobilidade humana forçada e não forçada ................................................................. 70
1.2 O Conceito de Vulnerabilidade ......................................................................................... 74
1.2.1 A vulnerabilidade como suscetibilidade ao tráfico de pessoas ...................................... 77
1.2.2. A vulnerabilidade decorrente da pandemia de COVID-19 ........................................... 79
1.3 A Interseccionalidade da Pobreza, o Gênero e Raça como Elementos de Exclusão Social e
Geradores de Vulnerabilidades ao Tráfico de Pessoas ............................................................ 82
1.4 O Mercado, as Mulheres, a Prostituição e o Tráfico de Pessoas ....................................... 91
CAPÍTULO 2 - O FENÔMENO SOCIAL DO TRÁFICO INTERNACIONAL DE
PESSOAS: PERSPECTIVAS A PARTIR DO TRÁFICO DE MULHERES ................. 95
2.1 A Perspectiva do Fenômeno do Tráfico de Mulheres a Partir do Brasil ......................... 102
2.1.1 Apontamentos sobre o fenômeno tráfico de mulheres brasileiras à Espanha .............. 111
2.2 Quem são as Mulheres Vítimas de Tráfico no Contexto Espanhol? ............................... 117
2.2.1 As histórias de mulheres permeadas pela experiência do fenômeno do tráfico de pessoas
129
2.2.1.1 Jasmin, a nigeriana de cabelos longos trançados ....................................................... 130
2.2.1.2 Hibisco, a dominicana de voz grave e potente .......................................................... 132
2.2.1.3 Violeta, a venezuelana de voz doce e cheia de esperança ......................................... 135
2.2.1.4 Liz, a brasileira falante .............................................................................................. 138
2.2.1.5 Considerações finais sobre as entrevistas realizadas ................................................. 141
CAPÍTULO 3 - O REGIME INTERNACIONAL COMPLEXO DO
ENFRENTAMENTO AO TRAFICO DE MULHERES: UMA PERSPECTIVA
HISTÓRICA ........................................................................................................................ 143
3.1 Do Fenômeno ao Regime ................................................................................................ 143
3.1.1 Combate à escravidão e ao tráfico de pessoas escravizadas ......................................... 143
3.2 Descrevendo Criticamente a Construção Normativa do Regime Internacional ao Tráfico de
Pessoas, Principalmente Mulheres e Crianças ....................................................................... 147
3.2.1 As relações de poder na construção do conceito da criminalidade organizada transnacional
158
3.2.2 Antecedentes da Convenção do Crime Organizado Transnacional e seus Protocolos . 161
3.2.2.1 Congressos das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Criminosos
161
3.3 Marco Normativo das Nações Unidas ............................................................................. 165
3.3.1 A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional............. 165
3.3.1.1 Aspectos comparativos entre os Protocolos do Tráfico de Pessoas x Contrabando de
Migrantes ............................................................................................................................... 169
3.3.2 Relatoria Especial em tema de tráfico de pessoas no âmbito do Conselho de Direitos
Humanos das Nações Unidas ................................................................................................ 173
3.3.3.A Organização Internacional do Trabalho (OIT) ......................................................... 179
3.3.4 Organização Mundial das Migrações (OIM) ................................................................ 185
3.3.4.1 Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) .................... 186
3.3.5 Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e o fenômeno do tráfico de mulheres 187
3.4. A conformação dos Regimes Regionais de Enfrentamento ao Tráfico de Mulheres para fins
de Exploração Sexual ............................................................................................................ 190
3.4.1 A conjuntura regional na América Latina para o enfrentamento ao tráfico de pessoas192
3.4.1.1 O enfrentamento ao tráfico de pessoas no âmbito da OEA ....................................... 195
3.4.1.2 O Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) e o enfrentamento ao tráfico de pessoas202
3.4.2 O enfrentamento ao tráfico de pessoas no âmbito da Europa....................................... 206
3.4.2.1 Marco da União Europeia .......................................................................................... 206
3.4.2.2 Marco do Conselho da Europa .................................................................................. 209
3.4.2.3. Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) ............................ 214
3.5 O Regime Internacional Complexo ................................................................................. 215
3.5.1 Regime Internacional complexo do tráfico de pessoas ................................................ 217
3.5.2 A atuação das organizações da sociedade civil no regime complexo de enfrentamento ao
tráfico de pessoas ................................................................................................................... 220
3.5.2.1 As redes Global Alliance Against Traffic in Women (GAATW) e Coalition Against
Trafficking in Women (CATW) ............................................................................................ 235
PARTE 2............................................................................................................................... 237
ESTUDOS DE CASOS BRASIL E ESPANHA ................................................................ 237
CAPÍTULO 4 - O BRASIL E O REGIME COMPLEXO DO TRÁFICO DE PESSOAS,
EM ESPECIAL DE MULHERES ..................................................................................... 238
4.1 A Internalização do Tráfico de Pessoas pelos Estados Nacionais: o caso Brasil ............ 239
4.1.1 O Regime complexo de governança do Brasil para o enfrentamento ao tráfico de pessoas,
em especial mulheres ............................................................................................................. 240
4.2 A Construção da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil . 243
4.2.1 A política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas e os planos nacionais de
enfrentamento ao tráfico de pessoas ...................................................................................... 243
4.2.2 O Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (CONATRAP) ............ 254
4.2.3 A Legislação Interna sobre Tráfico de Pessoas no Brasil ............................................ 257
4.3 O Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas: olhares interministeriais ................................. 263
4.3.1 Ministério da Justiça – Secretaria Nacional de Justiça (SNJ) ...................................... 263
4.3.2 Ministério da Justiça – Secretaria Nacional de Segurança Pública (SNSP) ................. 268
4.3.3 Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos ......................................... 270
4.3.4 Ministério da Cidadania ............................................................................................... 272
4.3.5. Ministério da Saúde (MS) ........................................................................................... 274
4.3.6 Ministério das Relações Exteriores (MRE) .................................................................. 274
4.4 O Pacto Federativo no Brasil e o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas ........................ 277
4.5 Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil ................................. 280
4.5.1 Assistência às vítimas no âmbito do Sistema Único da Assistência Social (SUAS) ... 288
4.6 A Dimensão da responsabilização do Tráfico Internacional de Pessoas ......................... 298
4.6.1 Informações da Polícia Federal .................................................................................... 299
4.6.2 Defensoria Pública da União (DPU) ............................................................................ 301
4.6.3 O lugar das mulheres no sistema de responsabilização do tráfico ............................... 302
4.7 Orçamento para a Política Pública do Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas ................. 309
4.8 Breves Conclusões Parciais do Capitulo 4: avanços e desafios da política pública de
enfrentamento ao tráfico de pessoas ...................................................................................... 312
CAPÍTULO 5 - A ESPANHA E O REGIME COMPLEXO DO TRÁFICO DE
MULHERES ........................................................................................................................ 318
5.1 A Internalização do enfrentamento ao tráfico de pessoas ............................................... 318
5.1.1 Sistema de proteção às vítimas de tráfico, principalmente às mulheres estrangeiras ... 323
5.1.2 Os Planos Integrais de Luta contra o Tráfico de Mulheres para fins de Exploração Sexual
na Espanha ............................................................................................................................. 334
5.1.3 A Espanha e o financiamento da política de enfrentamento ao tráfico de pessoas ...... 341
5.2 Relatoria Nacional contra o Tráfico de Seres Humanos.................................................. 343
5.3. A Red Española contra la Trata de Personas (RECTP) ................................................ 344
5.4 Avanços e desafios da política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas ............. 347
5.5 O Trabalho em rede: a cooperação internacional entre OSCs para retorno de mulheres
brasileiras na rota Brasil-Espanha ......................................................................................... 348
5.5.1 Fluxo de cooperação inter-redes ................................................................................... 351
5.5.2 A experiência de retorno de Camomila ........................................................................ 354
5.6 Breves conclusões finais do Capitulo 5: avanços e desafios da política pública de
enfrentamento ao tráfico de pessoas ...................................................................................... 360
CAPÍTULO 6 - A CAMINHO DA CONSTRUÇÃO DE UM REGIME BASEADO NO
ENFOQUE EM DIREITOS HUMANOS? ....................................................................... 364
6.1 Princípios do Enfoque em Direitos .................................................................................. 370
6.2 Reflexões para uma Intervenção na Perspectiva do Enfoque em Direitos ...................... 373
6.3 O Brasil está a Caminho da Construção de um Regime Baseado no Enfoque em Direitos
Humanos? .............................................................................................................................. 375
6.4 A Espanha está a Caminho da Construção de um Regime Baseado no Enfoque em Direitos
Humanos? .............................................................................................................................. 380
6.5 Breves Conclusões Parciais do Capitulo 6: a Caminho da Construção de um Regime
Baseado no Enfoque em Direitos Humanos .......................................................................... 387
CAPÍTULO 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................... 389
REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 397
Anexo 1. Número de nacionais brasileiros expulsos da Espanha para Brasil ....................... 443
Anexo 2. Comitê de Ética da UFABC. Parecer n.3.612.959 ................................................. 444
Apêndice 1. Formulário para entrevistas ............................................................................... 447
Apêndice 2. Termo de Consentimento para Participação Entrevista .................................... 451
Apêndice 3. Lista de atores entrevistados ............................................................................. 453
Apêndice 4. Cronograma de Execução das entrevistas realizadas ........................................ 455
Apêndice 5 - Relatoria Especial em tema de tráfico de pessoas no âmbito do Conselho de
Direitos Humanos das Nações Unidas................................................................................... 456
Apêndice 6. Alterações legislativas sobre tráfico de pessoas no Brasil (1940-2016) ........... 459
Apêndice 7. Institucionalidade do enfrentamento ao tráfico de pessoa nos entes subnacionais
462
30

INTRODUÇÃO

I. Contextualização do tema. De que fenômeno estamos falando?

O fenômeno do tráfico de pessoas se refere, fundamentalmente, a uma forma de


exploração das pessoas decorrente do sistema econômico predominante no mundo. Essa
percepção é fundamental, pois muitas vezes se pensa no tráfico de pessoas a partir do
deslocamento das pessoas, seja interno ou internacional. O que leva ao tráfico de pessoas é a
exploração das pessoas, independentemente da finalidade exploratória. Quando se centraliza a
compreensão do fenômeno do tráfico de pessoas no deslocamento das pessoas, permite-se que
pautas migratórias sejam utilizadas para enfrentar esse fenômeno, pessoas, criando-se, em
muitos casos, medidas de controles migratórios justificados pelo enfrentamento do tráfico de
pessoas. A migração, por si só, e mais adiante se falará sobre esse outro fenômeno, não deve
ser impedida, limitada ou restringida. Migrar é um direito humano que deve ser perseguido
pelos Estados Nacionais.
Quando se desloca o entendimento do tráfico de pessoas para um fenômeno de
exploração das pessoas, faz-se primordial conjeturar um regime de enfrentamento que pense a
vítima como ponto central de proteção, como sujeito de direitos violados que precisa ser, o mais
rápido possível, devolvido à sua condição de titular de direitos. Esse ponto é fundamental para
esse olhar sobre o fenômeno do tráfico de pessoas que deve pensar a vítima na sua
totalidade/completude, como sujeito pleno de direitos e o centro último da proteção.
A clareza desse marco normativo protetivo que se compromete com a vítima e o
conhecimento do fenômeno social do tráfico de pessoas facilitam a observação, a análise, o
desenho e a execução de potenciais políticas públicas que abordem o fenômeno do tráfico de
pessoas a partir de um enfoque integral, no qual a transversalidade efetiva somente se garante
pelo enfoque em direitos.
Nesse sentido, faz-se a crítica à abordagem predominante vigente do regime jurídico de
enfrentamento ao tráfico de pessoas, centrada, principalmente, no combate ao crime, deixando
para segundo plano a proteção das vítimas.
31

II. Problema de pesquisa

Está-se diante de um processo de construção de um regime internacional 1 de combate


ao tráfico de pessoas, disposto principalmente pela Convenção das Nações Unidas contra o
Crime Organizado Transnacional e o Protocolo Adicional específico, também chamado
Protocolo de Palermo (2000). Todavia, esse regime existente surge e se desenvolve a partir de
uma lógica securitária e de criminalização internacional do crime organizado transnacional, que
incorpora a luta contra o tráfico de pessoas como uma modalidade do crime transnacional. Esse
regime de combate ao tráfico de pessoas é excludente de um regime de proteção às vítimas,
mesmo que o Protocolo de Palermo o mencione2.
Acredita-se que a escolha da incorporação do tráfico de pessoas à modalidade do crime
organizado transnacional foi uma estratégia de controle de grupos estigmatizados, como grupos
de imigrantes, mulheres. Seria uma maneira de governança para o crime, o que ajudaria a
explicar a transposição de questões relacionadas à mobilidade humana na estrutura das Nações
Unidas, principalmente na Organização das Nações Unidas para Drogas e Crimes (UNODC)3.
Sob essa lógica de criminalização, não é possível sedimentar um regime de proteção às
vítimas de tráfico. As próprias organizações internacionais (OIs), entendidas como atores
internacionais, atuam, muitas vezes, na linha da cooperação técnica com os Estados, na lógica
do controle ao crime organizado transnacional e da proteção aos direitos das vítimas, na
perspectiva do crime transnacional, muitas vezes, em detrimento dos Direitos Humanos das
vítimas.
O regime de combate ao crime organizado transnacional existente trata o atendimento e
a proteção dada às vítimas como algo secundário; centra-se na proteção do Estado contra o
crime transnacional. As vítimas e a sua proteção são relegadas a um segundo plano,

1
O conceito de Regime Internacional nasceu na década de 1970, na Teoria Política e de Relações Internacionais.
Entende-se por regime internacional como “conjuntos de princípios, normas, regras e procedimentos de tomada
de decisão, explícitos ou implícitos, em torno dos quais as expectativas de atores convergem em uma dada área
das relações internacionais.” (tradução livre). KRASNER, S. D. International regimes. Ithaca: Cornell
University Press, 1983. p. 2. Ou ainda “instituições sociais que definem práticas, atribuem papéis e guiam a
interação dos ocupantes de tais papéis em uma determinada área.” (tradução livre) YOUNG, O. R.
International governance: protecting the environment in a stateless society. Ithaca: Cornell University, 1994.
p. 3.
2
Importante destacar que o Protocolo de Palermo menciona a palavra “proteção”, somente quatro vezes.
3
Ver em: BERNTEIN. Elizabeth. Carceral politics as gender justice? The “traffic in women” and neoliberal
circuits of crime, sex, and rights. Theory and Society, v. 41, n. 3, p. 233-259, 2012. DIAS, Guilherme Mansur.
Migração e crime: desconstrução das políticas de segurança e tráfico de pessoas. 2014. Tese apresentada ao
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Doutorado em Antropologia Social. UNICAMP. Ver PIRES, Monica
Sodré. Enfrentamento ao tráfico de pessoas: condicionantes domésticos dos Estados e formação da agenda
brasileira. 2017. Doutorado USP.
32

condicionando, em muitos casos, a denúncia e colaboração da vítima de tráfico na persecução


do crime e responsabilização do traficante para a caracterização formal da vítima de tráfico,
mais uma vez sob a lógica da criminalização. Em outros casos, a prática indica a dificuldade de
se caracterizar a vítima quando esta não colabora com as autoridades e/ou não denuncia o seu
traficante/rede. Em outros casos ainda, mesmo havendo a possibilidade legal de reconhecer e
identificar uma vítima, independentemente de sua colaboração com as autoridades, a prática
assinala para poucos casos nessa perspectiva, o que pode indicar uma ausência de olhar de
sensibilização para a problemática e para a centralidade da vítima nos casos de tráfico de
pessoas, ou uma tentativa de utilizar o combate ao tráfico de pessoas como uma forma de
controle migratório.
Nesse sentido, não há dúvidas quanto à necessária criação de mecanismos de atenção e
proteção às vítimas de tráfico com enfoque em direitos humanos e, principalmente, a mudança
de olhar para o fenômeno que trata principalmente de uma violação de direitos. Assim, a
resposta institucional por parte dos atores que enfrentam o tráfico de pessoas, e que criam
políticas públicas internacionais e internas, deve garantir os direitos ao longo de todo o processo
de restabelecimento da vítima, independentemente da denúncia ou de outras formas de
colaboração, reconhecendo as obrigações mínimas de prevenção, investigação,
responsabilização e, sobretudo, atenção às vítimas.
Levando em conta esses apontamentos sobre a proteção dada às vítimas e o plano de
fundo do regime internacional do tráfico de pessoas, é preciso pensar o problema de pesquisa e
responder a questão: Existe um processo de construção de um regime internacional para as
pessoas vítimas do tráfico de pessoas, especialmente mulheres, a partir do enfoque em direitos
humanos?
Para responder a essa pergunta central de pesquisa é necessário assumir como premissa
científica a necessidade de conferir a centralidade à vítima nas políticas de tráfico de pessoas.
Em rápida síntese dos 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pode-se
relacionar algumas das graves violações perpetradas pelo tráfico de pessoas: violação do direito
à vida; à liberdade; à igualdade; à segurança pessoal; ao direito de não ser submetido à
escravatura ou à servidão; a não ser submetido à tortura; tratamentos cruéis; desumanos ou
degradantes; o não reconhecimento da personalidade jurídica; o direito a não sofrer
intromissões arbitrárias na vida privada, na família, no domicílio ou na correspondência; direito
de livre circulação e escolha da residência em um Estado; direito de abandonar o país em que
se encontra e de regressar ao seu país; direito à segurança social; direito de exigir a satisfação
dos direitos econômicos, sociais e culturais; direito ao trabalho e à sua livre escolha, em
33

condições equitativas e satisfatórias; direito ao repouso e ao lazer; a uma limitação razoável da


duração do trabalho; direito a um nível de vida suficiente para assegurar e à sua família a saúde
e o bem-estar4.
Tendo isso em mente, a pesquisa objetiva romper com a lógica unilateral da
criminalização, e pretende demonstrar: 1. Se estamos diante da necessidade de criação de um
regime internacional de proteção dos direitos humanos das vítimas de tráfico com enfoque
baseado em Direitos, que se contrasta com o regime de enfrentamento focado na criminalização
e no Estado, e 2. Se o Brasil e a Espanha estão diante de um processo de construção de políticas
públicas que privilegiam a proteção dos direitos das suas vítimas por meio de um enfoque em
Direitos Humanos.
Nesse aspecto, a abordagem privilegia dois estudos de casos: o Regime de
enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil e na Espanha. Dar-se-á destaque às organizações
da sociedade civil (OSCs) que atuam nessa temática, por ocuparem espaços distintos dentro do
arranjo de forças das institucionalidades internas de cada país, e indicar como vêm pautando a
atuação de assistência e proteção das vítimas no âmbito desses Estados.
Para tanto será fundamental identificar e descrever os processos de construção das
políticas públicas internas de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil e na Espanha, desde
a incorporação da Convenção contra o Crime Transnacional, o Protocolo de Palermo, a criação
das normativas internas para adequar Palermo, analisar normativas regionais específicas que
abordem temáticas relacionadas ao tráfico de pessoas, descrever as políticas públicas criadas
internamente para dar uma resposta ao tráfico de pessoas e, principalmente, verificar se essas
políticas públicas têm permitido a criação de um regime com enfoque em Direitos Humanos,
visando à proteção e atenção das vítimas.
A tese está olhando para um Regime Complexo, que não envolve somente um regime
jurídico relativo ao tráfico de pessoas construído pelos Estados por meio das normas
internacionais. Está diante de um regime em processo de construção, que se inicia,
fundamentalmente, pelo Marco da Convenção contra o Crime Transnacional, e o seu Protocolo
específico relativo ao tráfico de pessoas, mas que também está se conformando com uma série
de outros instrumentos normativos (“hard law”) e não normativos (“soft law”) resultantes de
uma série de atores que dialogam e conformam ações, e vão construindo esse regime complexo
em uma lógica de governança global e principalmente local.

4
ONU. Declaração Universal dos Direitos do Homem. 1948. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-
content/uploads/2018/10/DUDH.pdf. Acesso em: 2 ago. 2019.
34

Nesse sentido, propõe-se discutir sobre o papel que as OSCs5 têm desempenhado,
especialmente para assegurar a atenção e proteção dessas vítimas, atuação esta individual ou
em rede, dentro da lógica de governança global, onde outros atores, para além dos Estados e
das Organizações Internacionais (OIs), desempenham a função de pensar e de garantir a
proteção dessas vítimas por conexões diversas. Se por um lado esses atores têm emergido como
protagonistas na proteção e atenção das vítimas de tráfico, desempenhando medidas tanto
internas como internacionais (proteção, atenção, advocacy, lobbying, cooperação, entre outras),
por outro é necessário abordar as críticas existentes à atuação desses atores não governamentais,
seja porque o campo das OSCs é diverso entre si, seja porque elas possuem agendas próprias e
que podem estar em conflito com o suporte desejado e esperado pelas próprias vítimas 6.
Para tanto, parte-se de uma hipótese principal e outra secundária: Hipótese principal:
A proteção e assistência internacional das vítimas de tráfico de pessoas devem estar amparadas
no Marco Referencial dos Direitos Humanos e não em marcos normativos de securitização.
Hipóteses secundárias: 1. As redes de OSCs são atores protagonistas no tensionamento com

5
No Brasil são consideradas Organizações da Sociedade Civil (OSCs), conforme O Marco Regulador Organização
Sociedade Civil (MROSC): Artigo 2º I - Organização da sociedade civil:
a) entidade privada sem fins lucrativos que não distribua entre os seus sócios ou associados, conselheiros,
diretores, empregados, doadores ou terceiros eventuais resultados, sobras, excedentes operacionais, brutos ou
líquidos, dividendos, isenções de qualquer natureza, participações ou parcelas do seu patrimônio, auferidos
mediante o exercício de suas atividades, e que os aplique integralmente na consecução do respectivo objeto
social, de forma imediata ou por meio da constituição de fundo patrimonial ou fundo de reserva;
b) as sociedades cooperativas previstas na Lei no 9.867, de 10 de novembro de 1999; as integradas por pessoas
em situação de risco ou vulnerabilidade pessoal ou social; as alcançadas por programas e ações de combate à
pobreza e de geração de trabalho e renda; as voltadas para fomento, educação e capacitação de trabalhadores
rurais ou capacitação de agentes de assistência técnica e extensão rural; e as capacitadas para execução de
atividades ou de projetos de interesse público e de cunho social.
c) as organizações religiosas que se dediquem a atividades ou a projetos de interesse público e de cunho social
distintas das destinadas a fins exclusivamente religiosos. Ver em: BRASIL. Conceito de sociedade civil
organizada: marco regulador organização sociedade civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13019.htm. Acesso em: 20 nov. 2019.
Na Espanha, são consideradas organizações da sociedade civil,
Artigo 2.
1. As entidades do Terceiro Setor de Ação Social são aquelas organizações de privado, decorrente do cidadão ou
da iniciativa social, sob diferentes modalidades, que respondem a critérios de solidariedade e participação social,
para fins de interesse geral e ausência de lucro, que promovem o reconhecimento e exercício de direitos civis,
bem como os direitos econômicos, sociais ou culturais de
pessoas e grupos que sofrem de condições vulneráveis ou que estão em risco de exclusão social.
2. De qualquer forma, as entidades do Terceiro Setor de Ação Social são as associações, fundações, bem como
as federações ou associações que as integram, desde que cumprir as disposições desta Lei. Para a representação
e defesa de seus interesses de maneira mais efetiva e de acordo com a Lei Orgânica 1/2002, de 22 de março, que
regulamenta direito de associação e com seus regulamentos específicos, as entidades do Terceiro Setor de A
Ação Social pode formar associações ou federações que, por sua vez, podem ser agrupadas cada. Ver em: BOE.
Ley 43/2015, de 9 de octubre, del Tercer Sector de Acción Social. Disponível em: https://www.
boe.es/buscar/pdf/2015/BOE-A-2015-10922-consolidado.pdf. Acesso em: 15 mar. 2020.
6
ARADAU, Claudia. Rethinking trafficking in women politics out of security. New York: Palgrave Macmillan,
2008.
35

os Estados, na proteção (interna/internacional) das vítimas de tráfico num enfoque baseado em


direitos humanos.

III Travessias, andanças, bagagens, construção de estímulos

A jornada que me levou a desenvolver este trabalho se iniciou há cerca de quinze anos
(2004), na cidade de Santos (SP). Naquela época, participava da Comissão Municipal de
Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil de Santos, onde tive a oportunidade de fazer
parte, como pesquisadora, de alguns projetos coordenados pela Organização Internacional do
Trabalho (OIT) e me apresentaram a temática do tráfico de pessoas, tema que ainda estava
sendo inicialmente compreendido no Brasil. Estava-se principiando a discussão e se
comemorando a recente ratificação do Protocolo de Palermo7.
Esses trabalhos me estimularam a desenvolver o Mestrado em Direito Internacional, em
que procurei compreender a cooperação internacional para o enfrentamento ao tráfico de
mulheres brasileiras vítimas de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual para a
Espanha8. A pesquisa da minha dissertação de Mestrado em Direito Internacional 9 suscitou a
discussão sobre a perspectiva dos Direitos Humanos, possibilitando a compreensão e apontando
alguns caminhos para o enfrentamento. Durante o processo, e mesmo não sendo o meu foco de
estudo, a dinâmica do trabalho desenvolvido pelos atores não governamentais, em especial das
organizações da sociedade civil (OSCs), despertou o meu interesse. A finalização dessa
pesquisa, em 2007, levou a outras perguntas e novos questionamentos, principalmente no que
se referia ao atendimento das vítimas brasileiras que desejavam retornar ao Brasil ou aquelas
que eram obrigadas a retornar em função de processos de deportação por irregularidade
documental.
A minha dissertação de Mestrado (2007) me permitiu trabalhar no Instituto
Universitario de Desarrollo y Cooperacion de la Universidad Complutense de Madrid (IUDC-

7
Mais adiante falaremos sobre os Documentos Internacionais que regulam o enfrentamento ao tráfico de pessoas,
entre eles o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional
Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, daqui em
diante Protocolo de Palermo (2000). Ratificado pelo Brasil em 2004.
8
Naquele momento, a única pesquisa realizada no Brasil sobre o tráfico de pessoas era a “PESTRAF - Pesquisa
sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil” (2002)
e nela a Espanha aparecia como principal destino das mulheres brasileiras vítimas de tráfico. Disponível em:
http://www.childhood.org.br/wp-content/uploads/2014/03/Pestraf_2002.pdf. Acesso em: 20 jan. 2020.
9
TERESI, Verônica Maria. A cooperação internacional para o enfrentamento ao tráfico de mulheres
brasileiras para fins de exploração sexual: o caso Brasil – Espanha. Dissertação (Mestrado) - UniSantos,
2007. Disponível em: http://biblioteca.unisantos.br/tede/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=61. Acesso em:
15 nov. 2019.
36

UCM), desenvolvendo um projeto no qual se pôde ampliar o estudo das redes de atores que
prestavam atendimento às vítimas brasileiras de tráfico e construir, juntamente com alguns
atores governamentais e organizações não governamentais, pistas para a construção de redes de
atores regionais e internacionais (Brasil e Espanha) que pudessem oferecer garantias e melhorar
o atendimento às vítimas em destino e nos processos de retorno, se assim fosse o caso
(2008/2010)10. Nesse contexto, realizou-se pelo IUDC/UCM, em Madri (2008), o Seminario
Internacional Articulación de la Red Hispano-brasileña em el contexto de la Atención a las
brasileñas víctimas de trata”11, evento que permitiu articular atores governamentais e não
governamentais brasileiros e espanhóis para planejar redes de atendimento às vítimas de tráfico
brasileiras. Ainda na Espanha, participei da pesquisa desenvolvida entre 2009 e 2013 que
originou o livro “Mulheres Brasileiras na Conexão Ibérica: um estudo comparado entre
Migração Irregular e Tráfico”12.
No período 2010-2013, e já de retorno ao Brasil, tive a oportunidade de desenvolver
algumas consultorias. Uma delas resultou no Diagnóstico Nacional sobre Tráfico de Pessoas,
que foi utilizado para subsidiar o Diagnóstico Mercosul sobre o tráfico de mulheres com fins
de exploração sexual (RMAAM13). Outro resultou na elaboração do Guia de Referência para a
Rede de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil (2012)14, outras, em cursos formativos
(Rede EaD-SENASP e FUNDAP) para capacitar agentes públicos (2013); outra ainda para

10
Em 2008, o Brasil dava início à execução do I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP)
(2008/2011), fato que sinalizou ao coletivo de atores regionais e internacionais sua importância, ampliando os
diálogos, as discussões, problematizando vários aspectos do enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil e na
Espanha. A Espanha também estava iniciando o I Plan Estatal contra la Trata de Personas para fines de
Explotación Sexual (2009/2011).
11
CARBALLO, Marta; GARCÍA, Jorge; TERESI, Verônica. (org.). Seminario Internacional Articulación de
la Red Hispano-Brasileña en el contexto de la atención a las brasileñas víctimas de trata Madrid, 2009.
IUDC. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/16498425/Memoria-SeminarioTrata-Dec08. Acesso
em: 10 out. 2019.
12
LEAL, Maria Lucia; TERESI, Veronica Maria; DUARTE, Madalena. Mulheres brasileiras na conexão
ibérica: um estudo comparado entre migração irregular e tráfico. 1. Ed. Curitiba: Appris, 2013. A partir da
análise da trajetória de nove mulheres brasileiras, esta pesquisa constatou a precarização das relações de trabalho
e a desproteção social vivenciadas no Brasil e nos países destino (Portugal e Espanha); a angústia resultante do
machismo, racismo e outras formas de estigmas, preconceitos e xenofobia em diferentes fases de suas vidas.
Tais fatores reforçam, entre outros achados, a ideia de que os processos migratórios e as situações de tráfico de
pessoas, vivenciadas por essas mulheres é resultado das contradições do processo de globalização, acirradas
pela crise de acumulação do capital e de seus impactos no mundo do trabalho em consonância com a questão
de gênero.
13
MERCOSUL. O tráfico de mulheres com fins de exploração sexual no MERCOSUL. Disponível em: www.
mercosurmujeres.org. Acesso em: 20 jul. 2020.
14
TERESI, Verônica; HEALY, Claire. Guia de referência para a rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas
no Brasil. Brasília, DF: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Justiça, 2012. Disponível em:
http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos/cartilhaguiareferencia.pdf.
Acesso em: 20 out. 2019.
37

aprimoramento da implementação do funcionamento e metodologia da rede atual de Postos


Avançados de Atendimento Humanizado aos Migrantes (2014, 2015).
Entre 2015-2017, participei do Projeto Fronteiras, coordenado e executado pela OSC
ASBRAD, que tinha como finalidade dialogar com os profissionais das redes de enfrentamento
à violência contra a mulher e tráfico de pessoas dos municípios fronteiriços de: Bonfim/RR,
Brasileia/AC, Corumbá/MS, Foz do Iguaçu/PR, Jaguarão/RS, Oiapoque/AP, Pacaraima/RR,
Ponta Porã/MS, Santana do Livramento/RS e Tabatinga/AM.
Em 2019, participei como consultora do projeto “Atenção Brasil: fortalecendo a
capacidade do governo brasileiro no enfrentamento do tráfico de pessoas”, implementado pelo
International Centre for Migration Policy Development (ICMPD)15 nas cidades de Belém(PA),
Foz do Iguaçu (PR), São Paulo (SP) e Rio de Janeiro (RJ), o que me possibilitou conhecer
particularidades do enfrentamento ao tráfico de pessoas nessas regiões, principalmente os atores
que ali atuam, desde governamentais, a Rede local de enfrentamento ao tráfico de pessoas,
(NETP e PAAHM), as OSCs e ligados ao judiciário.
A bagagem adquirida com a oportunidade de realizar essas atividades técnicas e
acadêmicas na temática do enfrentamento ao tráfico de pessoas reforçou a minha necessidade
de analisar o fenômeno do tráfico de pessoas a partir de uma perspectiva interdisciplinar,
pensando e incorporando complexidades que são inerentes ao fenômeno do tráfico de pessoas
e que perpassem por ele.
É nessa perspectiva que me proponho apresentar esta tese doutoral no âmbito do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais (PCHS) na Universidade Federal
do ABC, no qual me é permitido analisar o fenômeno do tráfico de pessoas e, mais
especificamente, refletir sobre a construção de um regime internacional com enfoque em
Direitos Humanos para as vítimas, por meio de um olhar e uma abordagem interdisciplinar.

IV. Limitações da Pesquisa

É importante definir algumas possíveis limitações da pesquisa, gerais e específicas.


As limitações gerais, em primeiro lugar, referem-se ao lugar de onde se escreve. O lugar
e olhar da pesquisadora, mulher, ocidental, do Sul Global, orientam e, talvez, limitam as

15
O projeto foi implementado pelo ICMPD em parceria com a Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da
Justiça (SNJ), o Departamento de Polícia Federal (DPF), o Ministério Público Federal (MPF) e o Instituto de
Migração e Direitos Humanos (IMDH).
38

reflexões da pesquisadora. A construção de pensamento, as fontes utilizadas e a aproximação


do objeto estão limitadas a esse olhar, mesmo que se tenha consciência dessa limitação. Ao
mesmo tempo, essa condição potencializa um olhar que contribui e pode desafiar o pensamento
majoritário, em geral construído pela visão masculina do Norte Global.
Outra limitação da pesquisa alude à dificuldade de encontrar estudos interdisciplinares,
o que dificulta observar um objeto social desde a sua integralidade, ainda mais quando se
verifica a compartimentalização nas análises e estudos das Ciências Humanas e Sociais. Isso
dificultou a construção da base teórica desta tese. Os autores abordam o fenômeno desde o olhar
da sua ciência, dificultando, em parte, uma perspectiva mais interdisciplinar de análise.
A terceira limitação geral diz respeito ao próprio tema de estudo. O tráfico de pessoas é
um fenômeno muito amplo e complexo. Ele próprio permitiria produzir muitas outras teses.
Nesta pesquisa, prioriza-se a análise do fenômeno social do tráfico e do regime de
enfrentamento existente, a necessidade de olhar as vítimas de tráfico, em especial mulheres, na
centralidade do regime, principalmente no que tange à garantia de direitos, por meio de um
enfoque em Direitos Humanos.
A pesquisa pretende verificar se estamos diante de um processo de criação de um regime
internacional para as vítimas de tráfico com enfoque baseado em Direitos Humanos, analisando
especialmente os casos Brasil e Espanha. Nesse sentido, a pesquisa não pretende generalizar
percepções, nem constitui matriz de um novo paradigma. Almeja proporcionar reflexões,
questionamentos e novos elementos para análise e, quem sabe, novos pontos de partida.
O enfrentamento ao tráfico de pessoas pode ser analisado desde várias dimensões,
conforme estabelece o Protocolo de Palermo. A responsabilização e criminalização dos agentes,
a prevenção, a cooperação e atenção às vítimas. Pensar o enfrentamento ao tráfico de pessoas
desde a perspectiva de um enfoque baseado em direitos humanos necessariamente deve incluir
e imbricar as quatro dimensões (prevenção, atenção, responsabilização e criminalização). De
outro lado, a pesquisa abordará mais especialmente a dimensão da atenção e proteção às
vítimas.
Entendeu-se que para pensar o processo de construção de um regime internacional
baseado no enfoque em Direitos Humanos era necessário analisar como, e se, essas dimensões
estavam sendo construídas no âmbito das políticas públicas de atenção às vítimas no âmbito de
Brasil e Espanha. Nesse sentido, a pesquisa não abordará aspectos exclusivamente jurídicos
relativos às fases do delito, dedicando-se a pensar as dimensões de responsabilização, salvo
quando algum aspecto colidir com a perspectiva de enfoque em Direitos na garantia dos direitos
das vítimas.
39

O tráfico de pessoas pode ser analisado desde diversas finalidades de exploração. Esta
pesquisa se limita a observar o fenômeno do tráfico de mulheres para fins de exploração sexual,
seja pela própria trajetória pessoal da autora na área, seja pela percepção de que o fenômeno do
tráfico de pessoas para a exploração sexual tem uma construção histórica mais percebida pelos
atores que serão abordados na pesquisa.
Apreendeu-se como estratégia de pesquisa que, para analisar se estamos diante de um
processo de criação de um regime internacional para as vítimas de tráfico com enfoque baseado
em Direitos Humanos, era necessário estudar algumas experiências de atuação de Estados.
Importante destacar que o tráfico de pessoas acontece em grande parte dos países do
mundo: dentro de um mesmo país, entre países fronteiriços e até entre diferentes continentes.
O tráfico de pessoas se deu incialmente pelas práticas escravocratas e institucionalizadas do
século XVI, principalmente da África para as Américas. A partir do século XVIII/XIX, ou seja,
mais recentemente, o tráfico internacional acontecia a partir do hemisfério Norte em direção ao
Sul, de países mais desenvolvidos para os menos desenvolvidos. Atualmente, verifica-se que
acontece em todas as direções: do Sul para o Norte, do Norte para o Sul, do Leste para o Oeste
e do Oeste para o Leste. Percebe-se que um mesmo país pode ser o ponto de partida, de chegada
ou servir de ligação entre outras nações no tráfico de pessoas16.
Escolheu-se o Brasil e a Espanha por alguns motivos.
Inicialmente, interessava analisar dois modelos de Estados que participassem de Blocos
de integração diferentes, neste caso, União Europeia/Conselho da Europa/OSCE e
OEA/Mercosul, e que essas conformações permitissem estudar as normas específicas sobre
tráfico de pessoas que conformam esses regimes regionais.
Era importante encontrar um país que tenha sido ou que ainda é referência por atender
a um número acentuado de vítimas brasileiras; nesse sentido, a Espanha, até aproximadamente
2008, recebeu e atendeu um elevado número de mulheres brasileiras17. Há indícios de que, após
esse período, em função da crise econômica na Europa, de 2009/2010 e especialmente na
Espanha18, somado à passada percepção de melhora das condições econômicas e sociais do

16
OIT. Tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. Claudia Sérvulo da Cunha Dias (coord.). Brasília,
DF: OIT, 2005. p. 12.
17
RIVA, Marta Carballo. TERESI, Veronica Maria. Documento de Trabajo nº: 14 Investigación: “Hacia un
Protocolo de Actuación en el Contexto Actual De Trata De Mujeres Brasileñas en España”. IUDC, 2009, p. 28-
37. Disponível em: https://www.ucm.es/data/cont/docs/599-2013-11-16-DT_14_Hacia_un_protocolo_
de_actuacion.pdf. Acesso em: 15 out. 2019.
18
R7. Entenda a crise na Europa: governos de Portugal, Itália, Grécia, Irlanda e Espanha estão endividados.
(27/05/2010). Disponível em: http://noticias.r7.com/economia/noticias/entenda-a-crise-na-europa-
20100526.html. Acesso em: 15 out. 2019.
40

Brasil19, muitas mulheres que haviam sido vítimas de tráfico, que se encontravam em situação
de irregularidade documental, e estavam limitadas à atuação profissional pelo endurecimento
das normativas de permanência, iniciaram um processo de tentativa de retorno ao Brasil.
Outro documento importante e que fundamentou o objeto da presente pesquisa foi o
amplo diagnóstico sobre a situação do tráfico de pessoas na Espanha intitulado “La trata de
seres humanos en España: víctimas invisibles”(2012)20. Trata-se de relatório produzido durante
quatro anos pelo órgão Defensor del Pueblo, ligado às Cortes Gerais Espanholas e encarregado
de defender os direitos fundamentais e liberdades públicas por meio da supervisão das
atividades das administrações públicas. O referido documento informa que “os dados oficiais
obtidos afirmam que o perfil médio da vítima de tráfico de pessoas na Espanha corresponde a
uma mulher em situação documental regular, de nacionalidade romena, entre 18 e 32 anos, ou
brasileira entre 33 e 42 anos.” (grifo nosso).
Para verificar as necessidades e as formas como as redes de apoio se articulam para
atendimento, retorno e outras demandas das vítimas, seria importante estudar um país que
apresentou a necessidade de articulação com a rede de atores no Brasil. Nesse caso, a Espanha
também preenche esse requisito. Dados do Ministerio del Interior, da Dirección General de
Policía Nacional (Espanha), obtidos via Consulado Geral do Brasil em Madri, em 24/05/2018,
apontam para um total de 3146 pessoas brasileiras deportadas ao Brasil, entre 2010 e 2017,
sendo 1448 mulheres (Anexo 1)21.
Considera-se interessante analisar modelos diversos na conformação de políticas
públicas de atenção às mulheres em situação de prostituição, exploração sexual e vítimas de
tráfico. No caso da Espanha, o atendimento oferecido é promovido pelas OSCSs, que são
parceiras do Poder Público e cofinanciadas para prestarem esse atendimento. Por sua vez, no
Brasil, optou-se por prestar, principalmente, o atendimento às vítimas de tráfico de pessoas por

19
Ver em: IPEA. Crescimento da economia e mercado de trabalho no Brasil. 2015. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/TDs/td_2036.pdf. Acesso em: 15 out. 2019. O GLOBO.
PIB brasileiro fecha 2010 com crescimento de 7,5%, maior desde 1986, aponta IBGE. (03/03/2011)
Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/pib-brasileiro-fecha-2010-com-crescimento-de-75-maior-
desde-1986-aponta-ibge-2815938. Acesso em: 15 out. 2019.
20
DEFENSOR DEL PUEBLO. La trata de seres humanos en España: victimas invisibles. 2012. p. 19.
Disponível em: https://www.defensordelpueblo.es/wp-content/uploads/2015/05/2012-09-Trata-de-seres-
humanos-en-Espa%C3%B1a-v%C3%ADctimas-invisibles-ESP.PDF. Acesso em: 20 jan. 2020.
21
Os dados de retornos, entre 2010 a 2017, seja pela articulação das OSCs, seja pelo número de retornos
decorrentes de Programas de Retorno Voluntário mesmo tendo sido solicitados, não foram conseguidos para
completar essa análise. Por outro lado, de 2010 a 2019, de forma voluntária, auxiliei na articulação de atores,
espanhóis e brasileiros, de pelo menos, 6 retornos de mulheres e transexuais, algumas delas inclusive com filhos
pequenos. Em reunião realizada com o Consulado em Madrid em fevereiro de 2020, entre 2017 e 2019, foram
deportadas 26 pessoas brasileiras da Espanha para o Brasil por estarem em situação de irregularidade
documental. Dessas, 4 eram mulheres e uma delas, com filho menor de idade.
41

meio da rede de atores públicos já existentes no Sistema Único de Saúde (SUS) e Sistema Único
de Assistência Social (SUAS), nesse caso, principalmente pelos Centros de Referência
Especializado da Assistência Social (CREAS), juntamente com a Rede de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas no Brasil (Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas( NETPs), Postos
Avançados de Atendimento Humanizado ao Migrante (PAAHMs) e os Comitês de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas)22. As OSCs, que anteriormente prestavam esse
atendimento exclusivamente, passaram a desempenhar ações mais voltadas à prevenção,
pesquisa, consultoria, advocacy e monitoramento da política pública nacional, regional e local,
e, em alguns casos, continuam prestando atendimento e compondo os Comitês Estaduais e
Regionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e no CONATRAP (Comitê Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas)23.
Algumas das OSCs pesquisadas participam de outras redes, no âmbito da governança
global, para além do Estado Nacional, ampliando ainda mais a possibilidade de análise da
atuação desses atores e de suas ações no enfrentamento ao tráfico de pessoas. (É o caso de
Organizações brasileiras e espanholas que participam da rede GATTAW, Forum Social de
Trata de Personas, Red Española contra la trata de personas, Red Catalana Contra la Trata de
Personas, Red Gallega contra la Trata de Personas), conforme ficará demonstrado no decorrer
da pesquisa.
As limitações apresentadas são importantes para não gerar expectativas equivocadas
quanto ao que se pretende como resultado deste trabalho.

V. Contextualizando a pesquisa interdisciplinar

É fundamental abordar aspectos da pesquisa interdisciplinar porque a categoria “tráfico


de pessoas” pode motivar diversas pesquisas e ser objeto de estudo em diversas áreas do
conhecimento. Essa categoria é multidimensional, dotada de complexidade que requer a
contribuição e a fusão de diferentes saberes, o que sugere certa deficiência de se olhar sob um
só aspecto.

22
BRASIL. Ministério da Justiça. Carta da Rede Nacional de Núcleos de Enfretamento ao Tráfico de Pessoas e
Postos Avançados de Atendimento Humanizado ao Migrante. Disponível em: https://www. justica.gov.br/sua-
protecao/trafico-de-pessoas/redes-de-enfrentamento/anexos/carta-da-rede-versao-final. pdf/view. Acesso em
16 mar. 2020.
23
Adiante, falar-se-á sobre o Conatrap. Por enquanto, ver em: https://www.novo.justica.gov.br/sua-protecao/
trafico-de-pessoas/politica-brasileira/conatrap. Acesso em: 16 mar. 2020.
42

Por meio da pesquisa interdisciplinar, é possível construir respostas para problemas cada
vez mais complexos através da diversificação de iniciativas e das formas de pensar e de agir,
principalmente no que tange à produção do conhecimento científico24. A pesquisa
interdisciplinar surge como questionamento ao pensamento único, como uma tentativa de
retomada da pluralidade25.
Um diálogo interdisciplinar é fundamental para que seja possível uma compreensão
mais abrangente sobre o fenômeno, bem como a implantação de ações mais efetivas 26. Na
interdisciplinaridade, gera-se um conhecimento superior ao fragmentado, uma vez que superar
a fragmentação permite construir um novo conhecimento capaz de compreender a realidade
como um todo27. Aparece como uma crítica à fragmentação e surge em oposição à
supervalorização do saber técnico28.
Nesse sentido, é importante diferenciar a pesquisa interdisciplinar da pesquisa
transdisciplinar: a transdisciplinaridade não significa apenas que as disciplinas colaboram entre
si, mas também que existe um pensamento organizador que ultrapassa as próprias disciplinas.
É uma abordagem científica que visa à unidade do conhecimento; procura estimular uma nova
compreensão da realidade articulando elementos que passam entre, além e através das
disciplinas, buscando compreender a complexidade29
É na Carta da transdisciplinaridade, produzida no I Congresso Mundial de
Transdisciplinaridade, 1994, realizado em Arrábida, Portugal, que temos uma definição do
conceito transdisciplinar: “Artigo3. [...] A transdisciplinaridade não procura o domínio de

24
Ver em SPINOLA, Luara; ALMEIDA, Fabiana Carlos Pinto de; MENEZES, Marilda Aparecida de; FACÓ.
Júlio Francisco Blumentti. Contextualizando a interdisciplinaridade: um estudo de caso na Universidade
Federal do ABC. Research Society and Development, v. 9, p. 1-17, 2020. Disponível em: https://www.
researchgate.net/publication/340238602_Contextualizando_a_interdisciplinaridade_um_estudo_de_caso_na_
Universidade_Federal_do_ABC. Acesso em: 15 abr. 2020. Discussão interessante sobre a relevância e
importância da pesquisa interdisciplinar.
25
MARIOTTI, Humberto. Os cinco saberes do pensamento complexo (Pontos de encontro entre as obras de
Edgard Morin, Fernando Pessoa e outros escritores). III Conferências Internacionais de Epistemologia e
Filosofia, Portugal, 2002. Ver também: FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. Interdisciplinaridade: história,
teoria e pesquisa. Papirus editora, 1994.
26
COLARES, Marcos. I Diagnóstico sobre Tráfico de seres Humanos: São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás e Ceará.
Brasília, DF: Secretaria Nacional de Justiça, 2004. Ver em: PEREZ, O. Que é interdisciplinaridade? Definições
mais comuns em Artigos Científicos Brasileiros. INTERSEÇÕES, Rio de Janeiro, v. 20 n. 2, p. 454-472, dez.
2018.
27
Ver em: GUSDORF, G. Passado, presente, futuro da pesquisa interdisciplinar. Tempo Brasileiro, Rio de
Janeiro, n. 1995. JAPIASSU, H. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro, Imago, 1976.
FAZENDA, I. (org.). O que é interdisciplinaridade? São Paulo, Cortez, 2008.
28
MENEZES, S.; YASUI, S. A interdisciplinaridade e a psiquiatria: é tempo de não saber? Ciênc. saúde coletiva,
Rio de Janeiro, v. 18, n. 6, p.1820. Disponível em: http://www.scielosp.org/scielo.php?script=
sci_arttext&pid=S141381232013001400032&lng=en&nrm=iso Acesso em: 15 out. 2019.
29
TEIXEIRA, Hélio. O que é transdisciplinaridade. Disponível em: http://www.helioteixeira.org/ciencias-da-
aprendizagem/o-que-e-transdisciplinaridade/. Acesso em: 15 ago. 2019.
43

várias disciplinas, mas a abertura de todas as disciplinas ao que as une e as ultrapassa. [...]
Artigo 11. Uma educação autêntica não pode privilegiar abstração no conhecimento. Ela deve
ensinar a contextualizar, concretizar e globalizar. A educação transdisciplinar reavalia o papel
da intuição, do imaginário, da sensibilidade e do corpo na transmissão do conhecimento.”30.
Se a Revolução Francesa, a época das Luzes e a Revolução Industrial trouxeram consigo
a racionalização e o surgimento das ciências modernas, apontando para a especialidade de
abordagens, o século XXI retoma a necessidade de se pensar de forma orgânica,
transdisciplinar. Como fazer isso, nem sempre é fácil. Trata-se de enorme desafio global, que
implica grande dificuldade pelo enfrentamento paradigmático que envolve.
Todos os objetos de uma pesquisa são interdisciplinares em sua essência, uma vez que
toda a ciência é um recorte de uma realidade. O cientista escolhe quais recortes fará, quais
escolhas de pesquisa bancará. A título de exemplo, objetos podem ser vistos como grandes
espirais, onde podem ser selecionados aspectos específicos para serem analisados, de forma
justificada. Analogicamente, é como se pudéssemos escolher que onda do mar estudar, pois é
um pedaço que pode nos ajudar a compreender o mar, mas ela não pode ser o mar. A
justificativa é fundamental para indicar essas escolhas e dar caráter científico à pesquisa.
Sempre seremos forçados a deixar outras perspectivas de análise de fora.
O importante é perceber que a ciência não pretende e não pode ter a responsabilidade
de encontrar verdades absolutas, mas, sim, as verdades possíveis para aquela pesquisa, com
aquele recorte de objeto, num dado contexto histórico. As verdades científicas são limitadas e
limitadoras. Essa forma de perceber a ciência e a função da pesquisa pode ser mais libertadora,
mesmo não deixando de ser menos desafiadora e exigir responsabilidade.
Acreditar que uma pesquisa científica pretende levar a uma verdade absoluta é retirar
do pesquisador essa consciência da provisoriedade das respostas na ciência e de sua posição
limitada, modesta, humilde e de simplicidade imprescindíveis. Conhecer, nesse contexto, é ter
certeza da incerteza. A interioridade sobre a provisoriedade da ciência nos conduz a um
profundo exercício de humildade, fundamental para aqueles que desejam se dedicar à pesquisa
e fazer a ciência avançar.
Maturana nos presenteia com a reflexão de que a paixão move o cientista, o que nos
permite pesquisar aceitando a vivência da emoção como um processo precursor das ideias de
pesquisa. Ele coloca a emoção como um elemento fundamental para diferenciar o processo de
produzir ciência. “A emoção fundamental que especifica o domínio de ações no qual a ciência

30
CARTA DA TRANSDISCIPLINARIDADE. Disponível em: http://cetrans.com.br/assets/docs/CARTA-DA-
TRANSDISCIPLINARIDADE1.pdf. Acesso em: 20 out. 2019.
44

acontece como uma atividade humana é a curiosidade, sob a forma do desejo ou paixão pelo
explicar.”31. Ao descrever os critérios para a validação das explicações científicas, o autor
reconhece o processo de subjetividade existente de forma concomitante ao processo de
objetividade científica, sem deixar de exigir do cientista o cuidado para não confundir os
critérios de validação das experiências científicas com critérios experienciais ou de fenômenos
de nossas vidas cotidianas32.
É nessa perspectiva de entendimento sobre pesquisa, carregada de responsabilidade
científica, que se localiza esta pesquisa de doutorado. Acredita-se que somente se atingirá o
objetivo se esta pesquisa contribuir para questionamentos e surgimento de novas perspectivas
de pesquisa. Para retomar ou revisitar outros olhares, outros pontos de partida, que podem surgir
com a inclusão de elementos novos, de interpretações distintas, quebras de paradigmas
anteriores.
Esta pesquisa, assim, propôs-se a “mergulhar” no complexo universo da pesquisa
acadêmica, tendo como objeto de estudo o fenômeno do tráfico de pessoas, mais especial de
mulheres, e com o objetivo de analisar a potencialidade da construção de um regime
internacional para vítimas de tráfico de pessoas baseada no enfoque em Direitos Humanos.
Pensar a construção da proteção internacional de mulheres vítimas de tráfico de pessoas
não pode ser feita somente pelo Direito Internacional (minha área de origem acadêmica e,
portanto, o meu lugar de conforto). Considero que não é possível abordar essa temática sem a
intersecção da área das Relações Internacionais para pensar o surgimento e atuação de novos
atores envolvidos na proteção dos Direitos Humanos, além da articulação/intersecção das
Ciências Sociais (lato sensu) na compreensão dos processos migratórios forçosos e as suas
relações com o tráfico de pessoas e a exploração das pessoas, da História, que nos auxilia a
compreender as relações de exploração das pessoas no decorrer do tempo, do Serviço Social
para compreender conceitos relacionados a atenção, proteção, estruturação da proteção das
pessoas, a partir de uma perspectiva da humanização dos direitos e da pessoa como portadora
de direitos, da Ciência Política na construção da governança global como novo modelo de esfera
internacional para além das tradicionais formas de entender a soberania, as relações de poder
entre atores, das redes sociais, em sentido amplo.
Importante, ainda, frisar que a temática dos Direitos Humanos é, por si só,
interdisciplinar, igualando o peso de seus vários campos constituintes das Ciências Humanas,

31
MATURANA, Humberto R. Ciência, cognição e vida cotidiana. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001. p.
132-133.
32
Ibid., p. 138.
45

Sociais e Sociais Aplicadas, sem ter uma matriz principal em um campo para gerar
conhecimento multidimensional. Nessa perspectiva, a leitura do fenômeno do tráfico de pessoas
buscou a interdisciplinaridade e, na medida em que se construía a percepção do enfoque
baseado em Direitos, a transdisciplinaridade. A percepção fundamental da construção
compartilhada das ciências, apesar de mais árdua, parece ser a mais abrangente alcançando mais
elementos que podem ser fundamentais para a compreensão. A ideia de que objetos híbridos33
encontram na interdisciplinaridade muito mais um ponto de partida que de chegada, e de que
não há um modelo final estabelecido que possibilite chegar às respostas desejadas, mas que
tudo se constrói, permite explorar novas possibilidades e aceitar a dúvida como premissa
acadêmica34.
Nesse sentido, pesquisar por meio de uma perspectiva interdisciplinar foi um desafio
posto. Escolher o Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da UFABC foi
de total importância para o desenvolvimento desta tese, no sentido de permitir a geração de
conhecimento sobre a nova percepção interdisciplinar da realidade social e gerar contribuições
para novos questionamentos das ciências humanas e sociais no microuniverso da pesquisa. A
formação proporcionada pelas matérias realizadas no decorrer do Doutorado permitiu
compreender, identificar e agir sobre os elementos das dinâmicas sociais, do Estado, das
políticas públicas, dos atores sociais presentes na sociedade e relevantes para a temática do
enfrentamento ao tráfico de pessoas.

VI. Aspectos preliminares sobre a proteção internacional dos direitos humanos e o


enfoque em direitos

A Era Moderna foi o nascedouro do processo de conquistas de direitos humanos. A


partir do século XVIII, com a Declaração da Virgínia (1776) e a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão (1789), a necessidade dos direitos humanos é proclamada, mas ainda
como desejo de alguns povos (norte-americano e francês).
A abordagem efetiva do tema proteção internacional dos direitos humanos só ganhou
expressão diante da ocorrência de um fato que marcou a humanidade com brutalidade, e após
o qual se percebeu que era urgente criar meios que visassem à proteção da pessoa humana: a
Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O horror do Holocausto desencadeou, entre outras

33
Objetos híbridos são aqueles que resultam da mistura de dois ou mais elementos diferentes.
34
FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa. Papirus editora, 1994.
46

medidas, a criação da Organização das Nações Unidas (ONU). Esta organização repudiava as
atrocidades cometidas contra a pessoa humana, e desejava impedir que algo semelhante
ocorresse novamente. Nesse sentido, Arendt resgata e traz para o foco da discussão a questão
da dignidade da pessoa humana como um bem universal irrenunciável35.
Não importa a origem da dignidade humana; o importante é preservar a humanidade sob
quaisquer circunstâncias. O indivíduo que tem a sua dignidade violentada através de maus-
tratos, exploração, humilhações, condições subumanas de sobrevivência, vê-se morto por
dentro.
A partir desse momento histórico, estabelece-se um consenso em torno da necessidade
de criação de instituições destinadas a promover o tema da proteção aos direitos humanos
através de documentos que vinculassem os Estados. “A partir do término da Segunda Guerra
Mundial, foram instituídos mecanismos internacionais de tutela dos direitos fundamentais,
acompanhando a tendência de consolidação de uma ética universalizante, centrada na promoção
da dignidade humana.”36.
Nesse contexto, em 1945, assina-se a Carta da ONU, criando a Organização das Nações
Unidas, a mais importante organização em âmbito universal, que rapidamente se debruçou e
elaborou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que elegeu os direitos
essenciais para a preservação da dignidade humana37.
Seus preceitos têm como meta dois pontos essenciais complementares: incrustar o
respeito e a dignidade da pessoa humana na consciência da comunidade universal, e evitar o
ressurgimento da ideia e da prática da descartabilidade do homem, da mulher e da criança. 38
A Declaração é a tradução da angústia vivida pelo mundo naqueles anos, quando da
terrível experiência da Segunda Guerra. Nesse contexto, a DUDH constrói a fundação sob a
qual se erguerá uma complexa estrutura normativa com vistas à promoção dos direitos
fundamentais das pessoas. Apesar de ser uma declaração e, consequentemente, não ter força
vinculante, é nítida a sua influência no sentido de balizar as relações internacionais e mesmo as

35
ARENDH. Hannah. Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. Tradução Roberto
Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
36
SARMENTO. Daniel. Constituição e globalização: a crise dos paradigmas do direito constitucional. In:
MELLO, Celso de Albuquerque (coord.). Anuário direito e globalização: a soberania. Rio de Janeiro:
Renovar, 1999.
37
CAMPOS. Adalgisa Rosa. O direito internacional e o sistema de proteção dos direitos humanos. 2004.
Fronteira, Belo Horizonte, v. 3, n. 5, p. 7-36, jun. 2004. Disponível em: http://periodicos.pucminas.
br/index.php/fronteira/article/view/5065/5137.Acesso em: 20 out. 2019.
38
ALMEIDA, Guilherme Assis de. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948: matriz do direito
internacional dos direitos humanos (DIDH). In: ALMEIDA, Guilherme de Assis de; PERRONE-MOISÉS,
Cláudia (coord.). Direito internacional dos direitos humanos: instrumentos básicos. São Paulo: Atlas, 2002.
47

ações internas dos Estados, com força de costume, sendo invocada em diversos documentos a
partir dali39.
Poder-se-ia dizer que a DUDH é como se fosse uma "Constituição internacional”, um
contrato social universal, e traz em seus artigos normas programáticas na tentativa de construir
uma sociedade justa e igualitária. O caráter programático desse documento, conforme descrito
no seu artigo 2840, tem influenciado as constituições nacionais, normativas internas e a
construção de políticas públicas internas, no sentido de buscar correspondência com os
preceitos instituídos pela Declaração. A Declaração começa pela universalidade abstrata dos
direitos naturais, transfigura-se na particularidade concreta dos direitos positivos, e termina na
universalidade não mais abstrata dos direitos positivos universais41.
A compreensão da dignidade da pessoa humana e de seus direitos no curso da História
tem sido, em grande parte, fruto da dor física e do sofrimento moral. A cada grande surto de
violência, os homens recuam, fazendo nascer nas consciências a exigência de novas regras de
uma vida digna para todos42.
Somada à DUDH, e buscando garantias de aplicabilidade dos princípios contidos na
Declaração, somente em 1966 foram elaborados dois pactos: o Pacto Internacional sobre
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos. Os pactos complementam a Declaração de 1948, e refletem a preocupação em garantir
proteção nas mais amplas dimensões da vida humana, seja no âmbito dos direitos sociais
(coletivos) e dos direitos individuais. Fundamental é a Declaração sobre o Direito ao
Desenvolvimento (1986), que vincula todos os direitos de forma direta, considerando que todos
os direitos humanos e as liberdades fundamentais são indivisíveis e interdependentes, e que,
para promover o desenvolvimento, devem ser dadas atenção igual e consideração urgente à
implementação, promoção e proteção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e
culturais, e que, por conseguinte, a promoção, o respeito e o gozo de certos direitos humanos e
liberdades fundamentais não podem justificar a negação de outros direitos humanos e liberdades
fundamentais43. Nessa perspectiva, o centro do processo é o ser humano e o paradigma do

39
JULIBUT, Liliana Lyra. Os pactos de direitos humanos (1966). In: ALMEIDA, Guilherme de Assis de;
PERRONE-MOISÉS, Cláudia (coord.). Direito internacional dos direitos humanos: instrumentos básicos.
São Paulo: Atlas, 2002. p. 35
40
Artigo 28. "Todo homem tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades
estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados"
41
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 30.
42
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 37.
43
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento (1986).
Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Direito-ao-Desenvolvimento/declaracao-sobre-
o-direito-ao-desenvolvimento.html. Acesso em: 15 mar. 2020.
48

desenvolvimento humano incorpora capacidades e situa a pessoa no centro de qualquer atuação


e intervenção.
As características dos direitos humanos são fundamentais quando se pensa na proteção
das pessoas. Podem ser destacados: 1. A Historicidade aponta que os direitos humanos não
surgiram todos ao mesmo tempo, mas são frutos de conquistas históricas; são construídos
gradualmente, e vão se expandindo e sendo revelados ao longo da história. Importante destacar
que a historicidade dos direitos humanos é expansiva, não permitindo a supressão de direitos já
reconhecidos na ordem jurídica, mas somente uma ampliação da proteção do indivíduo,
reconhecendo novos direitos; 2. A Universalidade garante que os direitos humanos englobem
todos os indivíduos, independentemente de sua nacionalidade, cor, opção religiosa, sexual,
política, condição de regularidade documental em um país etc. Os direitos se destinam a todas
as pessoas, e têm abrangência territorial universal, mesmo que na prática eles fiquem limitados,
em muitos casos, às regulamentações dos Estados nacionais. Nessa concepção, universal é a
ideia de que todo ser humano é titular de um conjunto de direitos, independentemente das leis
e cultura de cada Estado; 3. A Complementaridade, Unidade e Indivisibilidade permitem
compreender que os direitos humanos não devem ser interpretados isoladamente, mas de forma
conjunta e interativa com os demais direitos, afastando a ideia de que haveria hierarquia entre
os direitos, como se uns fossem superiores aos outros, e propõem que todos os direitos são
exigíveis, por serem todos importantes para a materialização da dignidade humana; 4. A
Efetividade determina que a atuação do Poder Público deve ser no sentido de garantir a
efetivação dos direitos humanos e garantias fundamentais, previstos por meio de mecanismos
coercitivos, de construção de políticas públicas que efetivem direitos formalmente garantidos.
A mera formalidade de reconhecimento do direito nem sempre satisfaz a garantida dos direitos
no caso concreto; 5. A Interdependência dos direitos preceitua que, apesar da autonomia de
cada um dos direitos, eles possuem diversas interseções para atingirem as suas finalidades. A
garantia de um direito está diretamente ligada à garantia de outro; e 6. A Inalienabilidade
determina que os direitos humanos não podem ser alienados, transferidos.
Essas características reforçam a importância dos direitos humanos e afiançam a
essencialidade da garantia da dignidade humana. Ademais, os direitos humanos são históricos,
resultantes de um construído para um nivelamento ético que pretendia dar à condição humana
uma condição absoluta44.

44
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 18.
49

No decorrer das décadas, vários documentos internacionais em forma de pactos e


tratados se seguiram, seja no âmbito global (principalmente no âmbito da ONU), quanto nos
âmbitos regionais (União Europeia, Conselho Europa, Organização dos Estados Americanos,
MERCOSUL, entre outros) de alcance geral ou específico, preconizando a primazia dos direitos
humanos e da dignidade da pessoa humana.
Todos os documentos internacionais orientam expressamente que os países signatários
coliguem em suas legislações internas o primado desses direitos, incorporando-os como
princípio norteador de sua ação em âmbito internacional e nacional. Nesse sentido, e a grosso
modo, é inegável o fortalecimento da proteção aos direitos humanos por meio de instituições
governamentais e, com especial destaque, no jogo de forças e interesses, pela sociedade civil
organizada. Nesse sentido, Herrera Flores destaca que “o conteúdo básico dos Direitos
Humanos será o conjunto de lutas pela dignidade, cujos resultados, se é que temos o poder
necessário para isso, deverão ser garantidos por normas jurídicas, por políticas públicas e por
uma economia aberta às exigências da dignidade.”45.
É certo que ainda se está distante do cenário de perfeita harmonia, paz e respeito à
dignidade das pessoas, almejadas pela humanidade; muito provavelmente, isso jamais se
realizará de forma plena.
No entanto, essa é a busca inacabável do Direito Internacional dos Direitos Humanos
(DIDH), que sobrevive e se desenvolve apesar do desdém e, por vezes, até sabotagem por parte
de interesses econômicos, políticos e de outras naturezas, que se contrapõem aos direitos das
pessoas e, principalmente, das pessoas mais vulneráveis.
A presente pesquisa parte do regime internacional de direitos humanos existente para
analisar se estamos diante de um processo de criação de um regime internacional para as vítimas
de tráfico com enfoque baseado em direitos humanos, utilizando os estudos de casos da Espanha
e do Brasil.
É preciso analisar a temática do tráfico de pessoas de forma multidisciplinar e pensar na
abordagem integral, com matizes e interseccionalidades: direitos, gênero, raça, desigualdade.
O enfoque em direitos permite um olhar interdisciplinar centrado na complexidade,
multidisciplinariedade e multicausalidade que envolvem o fenômeno do tráfico de pessoas. De
outra parte, atende a necessidade do desenvolvimento humano, por meio de uma sociedade que
paute as suas relações no apoio mútuo, solidariedade e não discriminação. Nesse sentido,
importante destacar os principais instrumentos de direitos humanos do âmbito global,

45
FLORES. Joaquín Herrera. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. p.
33.
50

especialmente na esfera da ONU, que nos auxiliam a pensar a garantia da abordagem integral
dos direitos das vítimas de tráfico: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), a Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) e a Convenção sobre os
Direitos da Criança (CRC), que contêm proibições específicas de escravidão, servidão e tráfico
de mulheres e crianças.
Entende-se que o enfrentamento ao tráfico de pessoas deve estar vinculado ao enfoque
em direitos humanos, o que significa enfrentar o fenômeno por meio de transformações de
paradigmas, que permitam mudanças políticas, jurídicas, econômicas e sociais, exigindo ações
coletivas complexas no sentido de combater o problema, juntamente com a promoção da
proteção e atenção integral às vítimas de tráfico de pessoas.
Pensar o enfrentamento ao tráfico de pessoas a partir de outro paradigma que não o do
combate ao crime é desenvolver uma política antitráfico em nível global não tendo como
primazia os direitos humanos, que se reflita e se propague internamente nos Estados. É
fundamental, ainda, dizer que deve ser adotada a perspectiva crítica dos direitos humanos que
garanta o empoderamento e emancipação do ser humano levando em conta as suas
particularidades, as suas circunstâncias, o seu lugar, as suas vulnerabilidades específicas46.
Nesse sentido, o enfoque em direitos humanos parte da centralidade das pessoas e suas
necessidades no âmbito das ações de enfrentamento ao tráfico de pessoas. O enfoque em
direitos é um conjunto de processos (normativos, institucionais e sociais) que abrem e
consolidam espaços de luta pela dignidade humana47. Somente a partir dessa lógica garantida
pelos direitos humanos se pode perceber o outro como digno de respeito, dotado do direito de
desenvolver as suas potencialidades humanas plenamente. Essa ótica incorpora a necessidade
de romper com o processo do tráfico de pessoas garantindo a sua condição humana e de sujeito
de direitos.
Desenvolver o enfrentamento ao tráfico de pessoas sob a perspectiva do enfoque em
direitos permite vincular os direitos humanos e o desenvolvimento abordando de forma paralela
os direitos de primeira e segunda geração e os direitos de terceira geração e o direito ao
desenvolvimento. Os estudos de caso do Brasil e da Espanha realizados adiante permitirão
verificar se o enfrentamento ao tráfico de pessoas vem se desenvolvendo, e/ou em que medida
o fazem.

46
SILVA, Waldimeiry Correa. Regime Internacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas: avanços e
desafios para a proteção dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 8.
47
Id.
51

VII. Procedimentos Metodológicos

A. Fase exploratória

A.1.Estado da arte

Inicialmente, foi consultada a base de dados disponíveis na plataforma CAPES das


Teses de Doutorado e Dissertações de Mestrado para verificar quais estudos já haviam sido
realizados sobre a categoria48 “tráfico internacional de pessoas”. Entre 2005 e 2019, foram
encontradas 28 pesquisas que abordaram essa temática49 Utilizaram-se também as seguintes
palavras-chave para complementar a busca: tráfico de pessoas, crime organizado transnacional,
políticas públicas de enfrentamento ao tráfico de pessoas, tráfico de mulheres50.
Na leitura das teses, constatou-se que algumas, além de ter pontos de contato com o
tema desta pesquisa, foram essenciais para: 1. Verificar se o objeto de estudo já havia sido
pesquisado no país; 2. Analisar o estado da arte no plano das pesquisas no Brasil (no âmbito da
Plataforma escolhida) referentes a essa temática; dentre elas, algumas foram extremamente
relevantes para a construção do meu problema de pesquisa. Destacam-se as teses: do
pesquisador, Dias, sobre “Migração e Crime: desconstrução das políticas de segurança e tráfico
de pessoas.” (2014), a tese da pesquisadora Corrêa, sobre “Tráfico Internacional de Brasileiras
para fins de exploração sexual na Espanha: estudo sobre sentidos normativos e institucionais
conferidos às vítimas e os silenciamentos produzidos por tais significações” (2018), a tese da
pesquisadora Pires, “Enfrentamento ao tráfico de pessoas: condicionantes domésticos dos
Estados e formação da agenda brasileira.” (2017), a tese da pesquisadora Frinhani, que elaborou
uma pesquisa interdisciplinar “As Representações Sociais dos Profissionais do Direito sobre
Tráfico de Pessoas” (2014) e a tese do pesquisador Faipher, com a pesquisa “A persecução
penal do tráfico internacional de seres humanos no Brasil: organização, interações e decisões.”
(2019). Essas pesquisas contribuíram enormemente para a formulação de questionamentos
relevantes à elaboração de argumentos e hipóteses da presente pesquisa.

48
Por categorias entende-se elementos constitutivos de processos sociais, como percebidos por uma teoria ou visão
do mundo (Weltanschauung). Marx já apontava para as categorias como sendo formas de ser, características da
existência.
49
Dessas pesquisas, 23 tratavam de Dissertações de Mestrado e 2 pesquisas relativas a cursos profissionalizantes
e 3 Teses de Doutorado.
50
Foram encontradas 140 pesquisas. Dessas pesquisas, 27 tratavam de Teses de Doutorado, 105 de Dissertações
de Mestrado, 10 pesquisas relativas de Mestrado Profissional e 1 profissionalizante.
52

Outras três teses bastante essenciais para a minha pesquisa, elaboradas fora do Brasil e
importantes para o mapeamento do “estado de arte”, foram a tese da pesquisadora Carballo de
la Riva, defendida na Universidad de Alcalá, Madrid – España., com o título “Trata de
Personas: consideraciones históricas y jurídicas. Estructuras, institución y sistemas de
explotación” (2017), a tese da pesquisadora Waldimeiry, defendida na Universidad de Sevilla
– España, com o título “Formas Contemporáneas de Esclavitud: Trata de Mujeres” (2011) e a
tese do pesquisador López Riopedre, defendida no Departamento de Sociología I. Facultad de
Ciencias Políticas y Sociología, UNED, com o título “Inmigración colombiana y brasileña y
prostitución femenina en la ciudad de Lugo: historias de vida de mujeres que ejercen la
prostitución en pisos de contactos.” (2010).
Após a qualificação, em agosto de 2018, houve outra etapa de pesquisa, com a
possibilidade de duas visitas à Espanha: a primeira, em agosto de 2018, para conversas
informais com atores estratégicos no enfrentamento ao tráfico de pessoas; a segunda, em
fevereiro de 2020, para a realização das entrevistas organizadas conforme planejamento e após
a aprovação pelo Comitê de Ética da UFABC, juntamente com a realização de breve estadia de
pesquisa no Instituto Universitario de Desarrollo y Cooperación de la Universidad
Complutense de Madrid (IUDC-UCM), que me permitiu acesso à Universidade, às bases de
dados das bibliotecas da Universidade Complutense de Madrid e a realização de entrevistas
com atores governamentais, da sociedade civil espanhola e mulheres vítimas de tráfico de
pessoas.
Com a etapa de pesquisa no IUDC/UCM, abriu-se outra possibilidade de acesso a
referências bibliográficas bastante ampla, com a realização de uma bibliometria, o que garantiu
incorporar referências com outros olhares sobre a temática do tráfico de pessoas, numa
perspectiva mais europeia51.
O período de desenvolvimento do Doutorado (2016-2020) foi bastante rico na
ponderação das questões relacionadas ao tema desta pesquisa. A participação em várias
atividades com atores governamentais, do judiciário, da sociedade civil, como ouvinte,
participante ou até organizadora, permitiu uma reflexão e um acúmulo de materiais,
perspectivas, sobre a construção de um regime internacional para as vítimas de tráfico com
enfoque baseado em Direitos Humanos, tema desta pesquisa.

51
As referências utilizadas e pesquisadas na Universidad Complutense de Madrid estão dispostas nas Referências
Bibliográficas da tese.
53

A.2 Técnicas, instrumentos de coletas de pesquisa e aproximação com o campo

Utilizaram-se diversas fontes primárias, como documentos oficiais governamentais,


normativas internacionais e internas (Brasil e Espanha). Foram realizadas também entrevistas
com atores governamentais brasileiros e espanhóis e organizações da sociedade civil do Brasil
e da Espanha, algumas e alguns especialistas na temática do tráfico de pessoas e mulheres
vítimas de tráfico.
A escolha dos atores entrevistados utilizou alguns critérios:52
1. Atores governamentais: que estivessem diretamente vinculados ao desenvolvimento das
políticas públicas do tráfico de pessoas; que tivessem condições de fazer uma análise na
perspectiva histórica da construção das políticas públicas do tráfico de pessoas; que
pudessem fazer uma leitura crítica sobre os avanços e desafios da política pública
interna;
2. Organizações da sociedade civil: que tivessem sido parte desde o início da construção
da política nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas (Brasil e Espanha); que
tivessem atuação em várias frentes de ações (atendimento, proteção, pesquisa,
prevenção, capacitação, programas de retorno); que tivessem algum tipo de participação
na institucionalidade da política pública (Brasil e Espanha) e, que compusessem alguma
rede de atores não governamentais na temática do tráfico de pessoas; e
3. Mulheres: que tivessem sido vítimas de tráfico; que tivessem sido atendidas ou
estivessem sendo atendida por uma OSC na Espanha ou no Brasil53.
Como fontes secundárias, foram utilizadas livros, artigos, teses, matérias de jornais e
revistas, documentos técnicos de organizações internacionais (ONU, OEA, Conselho Europa,
MERCOSUL, OIT, UNODC, OIM, OCDE, União Europeia, entre outros) e documentos
técnicos de organizações da sociedade civil brasileiras e espanholas.
Entendeu-se que era preciso escutar diversos atores que compõem “jogos de forças” na
construção do Regime Internacional do tráfico de pessoas. Assim, fez-se necessário utilizar uma
metodologia de pesquisa que abrangesse fontes orais e escritas.
Nessa perspectiva, acredita-se que a entrevista semiestruturada tem como característica
um roteiro com perguntas abertas, sendo indicada para estudar um fenômeno específico, como

52
As entrevistas realizadas com os atores governamentais e da sociedade civil do Brasil e da Espanha foram
utilizadas sem se identificar os atores. Escolheu-se essa metodologia por se entender importante não expor os
atores e poder contar com a fala reflexiva dos mesmos. O Formulário das entrevistas – Apêndice 1 e o Termo
de Consentimento de Entrevista –Apêndice 2.
53
Os atores entrevistados estão dispostos no Apêndice 3.
54

no caso desta pesquisa. Por entender que cada entrevista é um encontro entre, neste caso, a
pesquisadora e entrevistados(as), percebe-se que o roteiro de entrevista não deve ser uma
sequência de perguntas fixas de modo a limitar o diálogo, mas um instrumento que orienta a
entrevista, permitindo também incorporar questões, percepções, temas não previstos.
Assim, foi fundamental a existência de certa flexibilidade na sequência da apresentação
das perguntas às pessoas entrevistadas, garantindo a possibilidade de realizar perguntas
complementares para melhor entender o fenômeno em pauta.
Podemos entender por entrevista semi-estruturada, em geral, aquela que parte
de certos questionamentos básicos, apoiados em teorias e hipóteses, que
interessam à pesquisa, e que, em seguida, oferecem amplo campo de
interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão surgindo à medida que se
recebem as respostas do informante. Desta maneira, o informante, seguindo
espontaneamente a linha de seu pensamento e de suas experiências dentro do
foco principal colocado pelo investigador, começa a participar na elaboração
do conteúdo da pesquisa54.

Outro aspecto importante se referiu à necessidade de esclarecer os entrevistados sobre


os objetivos da entrevista, o que se desejava e qual seria a sua contribuição para a pesquisa,
além de informar sobre a duração média da entrevista. Essas informações foram passadas no
momento do convite feito para participar da pesquisa (por e-mail ou telefone), assim como no
momento do início da entrevista, quando da assinatura do Termo de Consentimento. As
entrevistas tiveram, em média, 1h e 2h.
No caso das entrevistas realizadas com as cinco mulheres vítimas de tráfico, mesmo
utilizando como guia um questionário semiestruturado, entendeu-se importante incorporar
aspectos da metodologia de História Oral.
Bourdieu nos ensina que é fundamental uma postura de vigilância epistemológica55 que
permita à pessoa entrevistada narrar as suas experiências, a sua história de vida e evite, na medida
do possível, interferências do entrevistador56.
Em muitos casos, os relatos sobre fatos vivenciados por elas, percepções e, muitas vezes,
recursos de linguagem, pausas, silêncios, incorporações linguísticas do espanhol para o português,
puderam revelar conexões com experiências, sentimentos, acontecimentos significativos na vida

54
TRIVIÑOS, Augusto. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São
Paulo: Atlas, 1987. p. 146.
55
A epistemologia é o ramo da filosofia que se ocupa do estudo da natureza do conhecimento, da justificação e da
racionalidade da crença e dos sistemas de crenças, em outras palavras, de toda a Teoria do Conhecimento. Ver
em: https://www.infoescola.com/filosofia/epistemologia/. Acesso em: 15 jan. 2020.
56
BOURDIEU, P. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. M. (org.) Usos e abusos da história oral. Rio de
Janeiro: Ed. Da Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. 183-192.
55

dessas mulheres. Algumas vezes, a entrevistada produziu um discurso que se construiu a partir de
sentimentos vivenciados. Nesse sentido, a entrevista, mais do que oferecer dados e informações
sobre a vida dessas mulheres, construiu informações que são penetradas das subjetividades
daquelas que narram e que ouvem. São, portanto, narrativas preciosas, cheias de vida.
A História Oral pode ser definida como “a interpretação da história e das mutáveis
sociedades e culturas através da escuta das pessoas e do registro de suas lembranças e
experiências.”57. Nessa perspectiva, a utilização da metodologia de história de vida permitiu
acessar experiências dessas mulheres vítimas de tráfico, as suas histórias de vida, as suas
potencialidades, os seus desejos, as experiências do processo de vivência de violências, as suas
superações e, ao mesmo tempo, as experiências vivenciadas em função da assistência, usufruídas
ou não, em decorrência das potenciais políticas de enfrentamento ao tráfico de pessoas existentes.

B. Análise dos Dados Coletados

Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa, de base documental, bibliográfica,


com pesquisa exploratória (entrevistas). A análise exigiu a percepção de idiossincrasias dos
atores fundamentais para compreender anseios, percepções e motivações de ação.
Os dados têm como base as comunicações, sendo recolhidos em formas de palavras ou
imagens e não de número58. Ademais, o paradigma qualitativo permite a busca da compreensão
das vivências das pessoas e, nesse caso, das práticas dos atores, através da análise dos
depoimentos59.
É importante ter em conta o que Minayo chama de obstáculos para uma análise eficiente.
O primeiro obstáculo se refere à ilusão do pesquisador em ver as conclusões, à primeira vista,
como transparentes, ou seja, pensar que a realidade dos dados, ao início, é clara. A familiaridade
que o pesquisador tem com relação ao que está pesquisando pode ser uma ilusão de que os
resultados sejam óbvios. Isso pode levar a uma simplificação dos dados, distorcendo, e a
conclusões superficiais ou equivocadas. O segundo obstáculo, alude ao fato de o pesquisador
se envolver com os métodos e técnicas a ponto de esquecer os significados presentes em seus
dados, em detrimento de questionamentos dos procedimentos metodológicos. O terceiro

57
THOMPSON, P. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 9.
58
BOGDAN, R. C.; BIKKLEN, S. K. Investigação qualitativa em educação. Porto: Ed. Porto, 1994. p. 47.
59
ENGERS, Maria Emília. Paradigmas e metodologias de pesquisa em educação: notas para reflexão. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 1994.
56

obstáculo é a dificuldade que o pesquisador pode ter em articular as conclusões que surgem dos
dados concretos em detrimento de conhecimentos mais amplos ou mais abstratos60.
Na pesquisa, os dados coletados foram submetidos a análise de conteúdo, utilizando-se
categorias encontradas nas respostas dos sujeitos, harmônicos com os objetivos do trabalho.
Segundo Bardin, a análise de conteúdo possui três momentos: 1. Pré-análise - Determinamos
os documentos que constituirão o "corpus" a ser analisado (as observações, participante, as
entrevistas, os questionários e documentos); 2. Exploração do material - Codificação e
categorização utilizando critério semântico (significativo), construindo categorias temáticas
adequadas ao tipo de análise; e 3. Tratamento dos resultados – Indução e a interpretação. É a
fase da reflexão, da intuição com embasamento nos materiais empíricos. Confronto entre o
conhecimento acumulado e o adquirido61.
As entrevistas foram fundamentais para identificar, conhecer, refletir sobre a atuação
dos atores governamentais ou não, no enfrentamento ao tráfico de pessoas e, principalmente,
para compreender o jogo de forças existentes entre os atores, no âmbito interno dos dois estudos
de caso realizados.
Dessa forma, a transcrição das entrevistas foi importante para recordar os detalhes de
cada uma, e assim aprofundar os conteúdos ali abordados. A transcrição permitiu uma
apropriação do conteúdo das falas dos sujeitos. Os dados foram submetidos a análise de
conteúdo, utilizando-se categorias de análise determinadas pelos blocos de perguntas
realizadas, e que atendem aos objetivos do trabalho 62.
Como foram realizadas entrevistas com diferentes tipos de atores, as categorias de
análise foram diferentes.
1. Para as mulheres entrevistadas:
A. Sobre a trajetória de vida
B. Sobre sua ida para a Espanha
C. Sobre a percepção das Organizações da Sociedade Civil
D. Sobre o futuro

2. Para as OSCs e atores governamentais:


A. Sobre o Regime Internacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas

60
MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec-Abrasco,
1999.
61
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa, Portugal; Edições 70, LDA, 2009.
62
Id.
57

B. Sobre a Política Pública interna de enfrentamento ao tráfico de pessoas


C. Sobre a Proteção das Vítimas de Tráfico
D. Sobre a atuação específica da OSC

O mais difícil na análise dos conteúdos das entrevistas é conseguir analisar os dados
obtidos estabelecendo uma distância e fazendo uma leitura isenta e generalizável.
Posteriormente, o enriquecimento da leitura ocorre quando o pesquisador se livra dos
imediatismos da primeira leitura e consegue identificar aquilo que está além das aparências,
localizado o significado daquela fala num quadro de totalidade social em que a mensagem se
insere.
As entrevistas, nesse sentido, foram transcritas, e as respostas destacadas e separadas
por aspectos que chamaram a atenção ou novidades nas falas.
Essas falas foram incorporadas na tese, auxiliando nas observações e percepções da
pesquisadora, na medida em que davam elementos sobre a construção de um regime
internacional com enfoque em Direitos Humanos. “[...] o discurso não é um produto acabado,
mas um momento de criação de significados com tudo o que isso comporta de contradições,
incoerências e imperfeições. Leva em conta que, nas entrevistas, a produção é ao mesmo tempo
espontânea e constrangida pela situação.”63.
Nesse enfoque, as entrevistas foram fundamentais para os objetivos da tese, uma vez
que permitiram a análise das idiossincrasias importantes inerentes ao papel desempenhado por
ator na construção de um regime para vítimas de tráfico de pessoas.

C. Ética na pesquisa

Importante destacar que o projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética da


UFABC, e aprovado em: 1/10/2019, conforme Parecer n.3.612.959. (Anexo 2).
A realização das entrevistas somente ocorreu após a aprovação do projeto e dos roteiros
de entrevista. Entretanto, passar o projeto pelo Comitê de Ética foi fundamental para validação
e demonstrar a responsabilidade da pesquisadora no trato com as pessoas entrevistadas, aspecto
fundamental nas pesquisas das áreas de humanas.

63
MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec-Abrasco,
1999. p. 206.
58

As entrevistas estavam previstas para acontecer de janeiro a março de 2020. Em função


da organização da agenda dos atores espanhóis a serem entrevistados, houve a necessidade de
alterar a programação. Os atores espanhóis e as mulheres que estavam na Espanha foram
entrevistados presencialmente de 10 a 21 de fevereiro. Alguns atores espanhóis foram
incorporados posteriormente, e entrevistados à distância, por meio de Skype.
Os atores brasileiros estavam programados para serem entrevistados de janeiro a março.
Com a pandemia do COVID-19, que modificou toda a estrutura e a normalidade das relações,
a partir principalmente de março de 2020, houve a necessidade de reprogramar as entrevistas,
conforme a possibilidade de cada um dos atores que foram entrevistados, governamentais ou
da sociedade civil. Essas entrevistas aconteceram por Skype.
Essa alteração de cronograma alterou a programação na escrita e reflexão sobre os
resultados da pesquisa, exigindo maior fôlego no final para a realização das entrevistas
previstas. (Apêndice 4)

VIII. Organização da Tese

Na tentativa de abordar os pontos essenciais para a realização desta Tese, optou-se por
desenvolver uma introdução que permitisse a contextualização do fenômeno e da pesquisa no
âmbito interdisciplinar, assim como os elementos metodológicos.
A Tese está dividida em duas partes: a primeira parte, “Do fenômeno do tráfico de
mulheres à configuração do regime complexo de enfrentamento”, composta pelos três primeiros
capítulos, procura descrever os principais elementos fundamentais do tráfico de mulheres,
caracterizando o fenômeno social do tráfico para além da figura penal criada, chegando à
construção do Regime Internacional Complexo do enfrentamento do tráfico de pessoas, levando
em conta uma perspectiva histórica e crítica sobre a caracterização desse crime no contexto do
crime organizado transnacional, e os elementos que permitem acessar perspectivas de
enfrentamento que levem e priorizem o enfoque em direitos na centralidade das pessoas, tanto
no âmbito global como regional (Europa, América).
A segunda parte desenvolve os “Estudos de casos Brasil e Espanha”, analisando nos
capítulos quatro e cinco como esses Estados foram construindo e desenvolvendo os seus
regimes complexos de enfrentamento ao tráfico, principalmente por meio de suas políticas
internas no sentido de dar uma resposta para esse fenômeno, principalmente provocado pela
adesão ao Protocolo de Palermo. Os estudos de caso permitiram verificar os avanços e desafios
59

ainda existentes no enfrentamento ao tráfico de mulheres, sempre tendo como modelo o


enfrentamento baseado no enfoque em direitos humanos.
O último capítulo que compõe a segunda parte da tese traz elementos conceituais do que
é o enfoque em direitos, e de como ele pode ser inserido nas intervenções práticas de construção
de políticas dos estados. Procurou também, analisando os elementos apresentados, responder
se estamos diante da construção de um regime baseado no enfoque em direitos humanos,
levando em conta os casos de estudo.
A escolha dos casos de estudo foi importante para analisar como vem sendo construído
esse regime complexo que atua permeado em tantos regimes internacionais. Sem os casos de
estudo seria difícil verificar como o jogo de forças dos atores, principalmente as OSCs, atuam
na construção desse regime e são fundamentais para a sua incessante construção.
Termina-se com as considerações finais, destacando-se os pontos mais relevantes
desenvolvidos no trabalho. O trabalho possui ainda Referências, dois Anexos e 5 Apêndices.
60

PARTE 1
DO FENÔMENO DO TRÁFICO DE MULHERES À CONFIGURAÇÃO DO REGIME
COMPLEXO DE ENFRENTAMENTO
61

CAPITULO 1: ELEMENTOS FUNDANTES DO TRÁFICO DE MULHERES:


EXPLORAÇÃO, VULNERABILIDADE, GÊNERO, MIGRAÇÃO FORÇADA.

Não digam que fui rebotalho,


que vivi à margem da vida.
Digam que eu procurava trabalho,
mas fui sempre preterida.
Digam ao povo brasileiro
que meu sonho era ser escritora,
mas eu não tinha dinheiro
para pagar uma editora.
Carolina de Jesus (Folha da Noite, 1958)

Neste capítulo, pretende-se realizar um acercamento ao fenômeno social do tráfico de


pessoas. Acercar-se é fundamental para caracterizar o fenômeno e entender os elementos que
compõe a discussão do enfrentamento internacional desse fenômeno. O fenômeno do tráfico de
pessoas é polifacetado e complexo exigindo ser observado, analisado e enfrentado sob várias
perspectivas complementares.
Falar de tráfico de pessoas é falar da forma moderna de exploração das pessoas,
independente da finalidade da exploração. Configura-se como forma contemporânea de
escravidão, e resulta de uma afronta aos valores e princípios de Direitos Humanos. Por vezes,
o desconhecimento, a simplificação de abordagens leva a entendimentos equivocados que
acabam violando mais direitos fundamentais, além de não pautar o ponto central do fenômeno
que está sendo estudado.
Pontuar o olhar de onde deve ser olhado o tráfico de pessoas muda toda a abordagem
posterior, internacional e interna, seja no âmbito da responsabilização, criminalização e
principalmente no entendimento de que se estar diante de vítimas que, obrigatoriamente,
necessitam ter os seus direitos violados restabelecidos. Quando realmente se compreende a
pessoa que passa pela experiência do tráfico de pessoas como uma vítima de violação de
direitos, a sua proteção internacional e interna, dentro dos Estados, passa a ser demandada como
prioridade e não pode ser condicionada a nenhuma exigência.
Falar de tráfico de pessoas também é falar de mobilidade humana. De mobilidade
humana forçada. A perspectiva de que se vive em um mundo interligado traz à tona a discussão
da mobilidade internacional e de sua relação com as possíveis vulnerabilidades decorrentes,
dentre elas, o contrabando internacional de pessoas e o tráfico internacional e interno de pessoas
64
.

64
Os conceitos dessas duas modalidades de deslocamento humano serão posteriormente conceituados.
62

1.1 Mobilidade Humana como Fenômeno Social

A mobilidade humana é um acontecimento que permeia os indivíduos desde os


primórdios da humanidade. Nesse sentido, o deslocamento de pessoas se verifica, seja intra-
fronteiras (dentro de um Estado Nacional) ou entre fronteiras (fora das fronteiras internas),
principalmente quando a intenção desse deslocamento tem o caráter de fixar residência em
outro lugar.
Nos primórdios da humanidade, os seres humanos se deslocavam fugindo de
acontecimentos da natureza (tempestades, secas, entre outros), buscando regiões onde a
sobrevivência fosse possível para obter moradia e alimentação, uma vez que consumiam o que
encontrava na natureza e por isso o deslocamento era fundamental; tratava-se da migração
caracterizada no período paleolítico. Quando o ser humano percebe que pode “controlar a
natureza”, ele se fixa em um determinado lugar. O surgimento da agricultura sedentariza o ser
humano a um espaço territorial. Nesse momento, o ser humano passa a migrar por outras razões:
sonhos, clima, conflitos, fugas, clima, entre outros65.
A configuração política dos Estados nacionais a partir do século XVII e das mudanças
decorrentes dessa nova configuração, entre elas a concepção das soberanias estatais, muda
completamente a forma de relacionamento da humanidade com os espaços territoriais. Na
concepção mais tradicionalista, a soberania pode ser tratada em duas dimensões: a soberania
interna e externa. A dimensão interna faz alusão à autoridade exercida na ordem interna 66: o
Estado é o aparato político e administrativo que detêm o uso legítimo de força 67. Na sua
dimensão externa, o conceito de soberania faz alusão à independência do Estado em relação aos
demais Estados soberanos, o que significa que não há subordinação, mas sim igualdade formal
entre as soberanias68.
Atualmente, a relevância do conceito de soberania se deve à relativização que tem
sofrido por causa do adensamento dos fluxos globais de produtos, serviços, tecnologia,
comunicação, informação e pessoas, assim como das novas dinâmicas que ganharam mais
ênfase no pós-Guerra Fria.

65
NAVARRO. R.F. A Evolução dos materiais. Parte1: da Pré-história ao Início da Era Moderna. Revista
Eletrônica de Materiais e Processos, v. 1, n. 1, p. 01-11, 2006.
66
FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
67
WEBER, Max. A política como vocação. Discurso pronunciado na Universidade de Munique em 1918,
publicado em 1919 por Duncker & Humblodt, Munique.
68
FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
63

Nesse enfoque, a fronteira demarca o que é interno e o que é externo; quem é nacional
e quem é estrangeiro69. A fronteira indica onde a soberania interna inicia e assim, a partir de
onde se pode utilizar o uso legítimo da força para a proteção do Estado e de sua população. A
soberania estatal cria mecanismos de controle das suas fronteiras, entre elas, a exigência de
documentos (passaportes) que atestam a permissão de entrada, controlam o acesso às fronteiras
e condicionam a permanência nos estados nacionais.
Portanto, com a criação do modelo político dos Estados Nacionais, e a percepção dos
limites dos espaços territoriais, a mobilidade humana pode ser definida como um fenômeno
social que ocorre quando há o deslocamento de pessoas, voluntariamente e sem a
intermediação de terceiros, de um lugar para outro, envolvendo Estados Nacionais
(mobilidade internacional) ou até mesmo internamente dentro de um mesmo Estado
subnacional (mobilidade interna).
Para a OIM, migração significa:
Processo de atravessamento de uma fronteira internacional ou de um Estado.
É um movimento populacional que compreende qualquer deslocação de
pessoas, independentemente da extensão, da composição ou das causas; inclui
a migração de refugiados, pessoas deslocadas, pessoas desenraizadas e
migrantes económicos70.

A OIM ainda diferencia migração espontânea de migração forçada como sendo:


Migração espontânea: Indivíduo ou grupo que inicia e prossegue o seu plano
de migração sem qualquer ajuda externa. A migração espontânea é geralmente
causada pelos factores de atracção e de repulsão e caracteriza-se pela falta de
auxílio estatal ou de qualquer outro tipo de auxílio nacional ou internacional.
Migração forçada: Termo geral usado para caracterizar o movimento
migratório em que existe um elemento de coacção, nomeadamente ameaças à
vida ou à sobrevivência, quer tenham origem em causas naturais, quer em
causas provocadas pelo homem (por ex., movimentos de refugiados e pessoas
internamente deslocadas, bem como pessoas deslocadas devido a desastres
naturais ou ambientais, químicos ou nucleares, fome ou projectos de
desenvolvimento)71.

Mesmo sabendo que conceituar esses fenômenos da mobilidade humana é importante


para caracterizá-los, diferenciá-los e delimitá-los a regimes pelos quais podem estar inseridos
os fenômenos de mobilidade, a ação humana e a complexidade destes fenômenos de mobilidade
podem escapar desta tentativa de conceitos. E é importante essa percepção da existência das

69
Estrangeiro: o que não pertence ou que se considera como não pertencente a uma região, classe ou meio;
forasteiro, ádvena, estranho. (Dicionário Google on-line).
70
OIM. Glossário sobre migração n. 22. 2009. p. 41 Disponível em: http://publications.iom.int/
system/files/pdf/iml22.pdf. Acesso em: 2 jun. 2018.
71
Id.
64

fronteiras tênues nas experiências migratórias que, muitas vezes, relativizam e problematizam
o engessamento dos conceitos relacionados a mobilidade humana.
Nesse sentido, as migrações podem ser classificadas por diversas categorias de análise
que procuram compreender as especificidades de mobilidade de grupos, espaços e indivíduos72.
Cada vez mais percebe-se a necessidade de questionar as classificações fixas e rígidas das
categorias de análise, uma vez que é fundamental compreender as especificidades das
mobilidades de grupos e de espaços migratórios73.
As transformações econômicas produzidas pelo capitalismo no contexto internacional
são expressas através da reestruturação produtiva (do Fordismo à acumulação Flexível)74, com
mudanças no cenário urbano mundial75 e a unificação/formação dos países, acabam por gerar
excedentes populacionais que encontram na migração, uma alternativa, as vezes, a única
alternativa. A história da imigração pode, assim, estar vinculada à expansão do capitalismo com
a circulação de capital, mercadorias e pessoas76.
Essa dinâmica da mobilidade internacional no século XXI exige uma análise que
contemple os movimentos de mão de obra e sua inserção no mercado de trabalho, sem
desconsiderar as disputas políticas em âmbito global. As políticas e práticas neoliberais das três
últimas décadas derivaram em maior concentração de renda, com uma nova lógica de expulsões
representada por uma intensificação do número de pessoas, empresas e lugares que estão sendo
expelidos do centro da ordem social e econômica77.
Assim, ao menos antes da pandemia mundial de saúde de 2020, o cenário econômico
internacional revelava uma intensa expansão internacional do capital e a mobilidade da força
de trabalho, realidade permeada por diferentes mobilidades migratórias78. Apesar do

72
Ver em: SASKIA Sassen. Três migrações emergentes: uma mudança histórica. SUR 23 (2016). Acesso em: 11
jul. 2016, Disponível em: http://sur.conectas.org/tres-migracoes-emergentes-uma-mudanca-historica/. Acesso
em: 15 mar. 2020. HARVEY, D. O novo imperialismo. 8. ed. São Paulo: Loyola, 2014. SAYAD, Abdelmalek.
A imigração ou os paradoxos da alteridade. 1. edição. São Paulo: Edusp. 1998.
73
MENEZES, Marilda Aparecida. Migrações e mobilidades: repensando teorias, tipologias e conceitos. p.21-40.
In: TEIXEIRA, Paulo Eduardo; BRAGA, Antonio Mendes da Costa; BAENINGER, Rosana (org.). Migrações:
implicações passadas, presentes e futuras. Marília: Oficina Universitária; São Paulo: Cultura Acadêmica,
2012.
74
HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.
75
SASSEN, S. The mobility of labor and capital. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
76
BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1987.
77
SASSEN, S. The mobility of labor and capital. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
78
Importante destacar que, principalmente nos países do Sul Global, a pandemia somente reforçou e expôs a
desigualdade estrutural negligenciada e não resolvida, provocando consequentemente danos consideráveis nos
países. Soma-se hoje à emergência sanitária o colapso econômico e o colapso dos sistemas de proteção social,
eventos que devastam a vida das populações mais vulneráveis, como as que estão em condições de mobilidade
humana. Por outro lado, diante da mobilidade imparável do vírus, a resposta, tem sido a interrupção
momentânea da mobilidade transnacional e o controle da mobilidade nos espaços nacionais. CLACSO.
Proyecto (In)movilidades. Disponível em: https://www.inmovilidadamericas. org/?fbclid=
65

reconhecimento do direito à autodeterminação pessoal, o direito de circulação não é absoluto.


Ele esbarra diretamente com o Direito do Estado de controlar as suas fronteiras, e assim, as
migrações, seja para impedir o despovoamento, seja para impedir a entrada de “elementos
perigosos” e “desestabilizadores” da ordem interna79. Esse direito estatal muitas vezes legitima
políticas migratórias de restrição de acesso e consequentemente, políticas que vulneram ainda
mais as pessoas que desejam migrar80.
Discorrer sobre deslocamentos humanos é verificar que se vive em um mundo
interligado, onde as distâncias são relativizadas, e o que parece muito distante, passa a estar
próximo. O fenômeno da mobilidade humana se mostra extremamente complexo e variável.
Migrar representa muitas vezes dar um novo sentido à vida. Buscar uma vida melhor. Surge
como uma tentativa de transformação, de procurar alternativas às situações de exclusões sociais
vividas. Trabalhar em outro país se apresenta como uma alternativa ou, muitas vezes, como a
única oportunidade a seguir. É buscar condições para ser alguém diferente. É trazer outro
sentido para a vida em um lugar diferente do de origem. É ter a possibilidade de começar de
novo.
Nesse sentido, compreender as migrações é encontrar as interassociações com as
dinâmicas do mercado de trabalho.
Afinal, o que é um migrante? Um imigrante é essencialmente uma força de
trabalho, e uma força de trabalho provisória, temporária, em trânsito. [...]
Foi o trabalho que fez “nascer” o imigrante, que o fez existir; é ele quando
termina, que faz “morrer” o imigrante, que decreta sua negação ou que o
empurra para o não-ser. E esse trabalho, que condiciona toda a existência do
imigrante, não é qualquer trabalho, não se encontra em qualquer lugar; ele é o
trabalho que o “mercado de trabalho para imigrantes” lhe atribui e no lugar
em que lhe é atribuído: trabalhos para imigrantes que requerem, pois,
imigrantes; imigrantes para trabalhos que se tornam, dessa forma, trabalhos
para imigrantes. [...]
Afinal, um imigrante só tem razão de ser no modo do provisório e com a
condição de que se conforme ao que se espera dele; ele só está aqui e só tem

IwAR3cmibfcwc2ZyBQETRLDuv7PylbPkJrwcqiIGMAWW6vBWpoK6bSRaYfGXM. Acesso em: 10 jul.


2020.
79
CAVARZERE, Thelma. Direito internacional da pessoa humana: a circulação internacional de pessoas. 2 ed.
rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p.11.
80
Exemplo bastante elucidativo é o que se evidencia com as mulheres marroquinas que atravessaram as fronteiras
a caminho da Europa, no ano passado, com contratos sazonais para colheita de morangos e, pelo motivo da
pandemia, não podem retornar para origem, encontrando-se em situação de total vulnerabilidade e desproteção
social. “Existem 7.200 trabalhadores rurais que, após a temporada, foram bloqueados na Espanha. Marrocos
ainda não abre as fronteiras terrestres nem permite a operação da travessia do estreito e exclui que a situação
muda até o final do verão.” (tradução nossa). EL SALTO. 7.000 temporeras marroquíes atrapadas y ningún
plan. (10/07/2020). Disponível em: https://www.elsaltodiario.com/temporeros/7.000-temporeras-marroquies-
atrapadas-y-ningun-plan-retorno?fbclid=IwAR3-ks8CDqmP4XqaKlEQp1qwhc6H_
lgb0RCDh75bbEdIGGPNkkc9W_tkT-g. Acesso em: 10 jul. 2020.
66

razão de ser pelo trabalho e no trabalho; porque se precisa dele, enquanto se


precisa dele, para aquilo que se precisa dele e lá onde se precisa dele. [...]81.

Pode-se dizer que se vive em um momento crucial. Se para alguns a migração é


apresentada como algo que deve ser evitado por “provocar colapsos” nas economias e
sociedades (pela diversidade de culturas, dificuldades de integração, desmonte social dos
Estados etc.), por alocar migrantes em risco e abrir caminho para o crescente sentimento anti-
imigrante em diversas partes do mundo, para outros, estudos indicam que os migrantes
representam aproximadamente 3% da população mundial, produzem mais de 9% do PIB
mundial, cerca de 3 trilhões de dólares a mais do que se tivessem ficado em casa. As migrações,
assim, preenchem empregos, trazem habilidades e ajudam as economias a prosperar. E isso,
pensando-se somente pela lógica utilitarista: se há benefícios para os migrantes, há para os
países de origem e destino82.
As migrações internacionais no século XXI adquirem, assim, cada vez mais, um papel
importante no cotidiano social, nos mercados de trabalho, nas sociedades de chegada e de
partida, nos fluxos financeiros, na mobilidade da força de trabalho e principalmente na vida dos
migrantes83.
Nesse sentido, a migração é um desafio global complexo. Estima-se que cerca de 272
milhões de pessoas são migrantes internacionais, o que equivale a 3,5% da população mundial.
Globalmente, o número estimado de migrantes internacionais aumentou nas últimas cinco
décadas. Desse total, em 2019 é maior 119 milhões em relação ao número de 1990 (153
milhões) e mais que o triplo de 1970 (84 milhões)84.
Na América Latina, as assimetrias de desenvolvimento dos países, principalmente pelas
reestruturações institucionais e pela falha dos processos de integração sub-regional, estão
impedindo a retenção das populações que procuram em outros Estados melhores condições de
vida. Pode-se dizer que os fatores que levam imigrantes a saírem de seus países são vários:
deixa-se para trás culturas, famílias, círculos sociais mais próximos. Muitas vezes, o
deslocamento territorial surge como uma alternativa de melhorar as condições de vida para si e
suas famílias, que muitas vezes ficam no país de origem.

81
SAYAD, Abdelmalek. O que é um imigrante? Peuples Méditerranées, n. 7, p. 3-23, abr.-jun. 1979.
82
OIM. More than numbers how migration data can deliver real-life benefits for migrants and governments,
2018.
83
SASSEN, S. The mobility of labor and capital. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
84
OIM. Informe sobre las migraciones en el mundo 2020. 2019. Disponível em: https://publications.
iom.int/system/files/pdf/wmr_2020_es.pdf. Acesso em: 10 jul. 2020.
67

Migrar representa dar um novo sentido à vida e buscar uma vida melhor. Surge como
uma tentativa de transformação, de buscar alternativas às situações de exclusões sociais vividas,
de vulnerabilidades vivenciadas85.
Essa procura por melhores condições de realização pessoal e profissional faz com que
muitos imigrantes aceitem trabalhos muitas vezes em condições piores do que aquelas às quais
se submetiam, ou até mesmo submeteriam em seus países de origem. “O mundo dos excluídos
cresce diante dos nossos olhos diariamente, pessoas [...] têm o sentimento de terem sido
expulsas, descartadas. Para elas, as portas da democracia fundada em trabalho e direitos estão
fechadas. Mesmo que estivessem abertas, seriam as portas dos fundos, que só levariam aos
andares inferiores, sem escadaria para o crescimento social.”86.
Apesar de estarem em piores condições (muitas vezes, até em situações análogas à
escravidão) ou de se submeterem aos trabalhos de menor complexidade, a remuneração por
esse trabalho é geralmente melhor do que aquele pago nos países de origem, seja pelo valor em
si, seja pela melhor cotação da moeda, encorajando e sujeitando os imigrantes a essas situações.
Esses imigrantes enviam um montante de dinheiro (remessas) às suas famílias, que
muitas vezes sobrevivem com esse valor, justificando o seu sacrifício. Por outro lado, pode-se
identificar outras motivações simbólicas, que não perpassam somente pelas condições
econômicas. “[...] o sonho de trabalhar na Europa é bastante forte e idealizado. Esse sonho é
uma conjunção de ideais de identidade como o processo, o desenvolvimento, a estabilidade
econômica, a evolução cultural presente na Europa e um sonho de liberdade. Migrar é buscar
condições para ser alguém diferente – novos papéis.”87.
A complexidade nas motivações para migrar é evidente, ainda mais quando se fala de
mobilidade realizada por mulheres para o exercício da prostituição. Muitas começam por
motivos distintos, entre eles, dificuldades econômicas e exclusão social, problemas familiares
e afetivos e desigualdade de gênero, dimensões que estão relacionadas e que serão abordadas
posteriormente88. As mulheres relatam que as suas vidas no Brasil eram muito difíceis, pois o

85
LEAL, Maria Lucia; TERESI, Verônica Maria; DUARTE, Madalena. Mulheres brasileiras na conexão
ibérica: um estudo comparado entre migração irregular e tráfico. 1. Ed. Curitiba: Appris, 2013.
86
BAUMAN, Zygmunt; MAURO, Ezio. Babel: entre a incerteza e a esperança. 1. Edição. Rio de Janeiro: Editora
Zahar, 2016. p. 47.
87
MAYORGA, Cláudia. Identidade, migração e gênero: o caso de mulheres brasileiras prostitutas em Madrid.
Belo Horizonte: PUC Minas, 2006.
88
Ver em: MEDEIROS, Regina. Hablan las putas!: sobre las practicas sexuales, prostitución y SIDA en el mundo
de la prostitución de Barcelona. 2ª ed. Barcelona: Virus Editora, 1999. CARMONA BENITO, Sara. Inmigración
y prostitución: el caso de Raval (Barcelona). Papers. Revista de Sociología, n. 60, 2000, p. 343-354.
EMAKUNDE. La prostitución ejercida por mujeres en la C.A.E. 2001. JÁUDENES, E.; JIMENEZ, M.
(coord.) Tráfico e inmigración de mujeres en España: olombianas y ecuatorianas en los servicios domésticos y
sexuales. ACSUR-Las Segovias, 2001. PISCITELLI, Adriana. Tránsitos: circulación de brasileñas en el ámbito
68

que ganhavam com o seu trabalho era insuficiente para as suas necessidades de moradia,
alimentação, vestimenta e também lazer e educação. A necessidade de apoiar e sustentar
economicamente a família é uma preocupação constante entre as mulheres. Outras motivações
se relacionam a problemas familiares e afetivos89.
Analisar e compreender o processo migratório é importante, assim como também olhar
para o “migrante” como o sujeito social desse processo. Esse olhar largo auxilia na
compreensão do fenômeno migratório e dá mais elementos para compreender a transformação
da esfera econômica, da esfera social, da esfera cultural e simbólica dos processos migratórios90.
Muitas vezes, os países receptores do Norte Global exercem uma lógica perversa que
demonstra a sua irresponsabilidade com a cooperação para o desenvolvimento social: por um
lado, destinam as vagas de trabalho desprezadas por suas populações locais à maior parte dos
imigrantes; são geralmente trabalhos de baixa complexidade e de baixo salário, que não
valorizam e garantem mecanismos de aprimoramento do trabalhador e, inclusive, muitas vezes,
sem efetivas garantias trabalhistas. Utilizam-se da força de trabalho para sustentar os seus
processos produtivos, desrespeitando os direitos desses trabalhadores que se submetem a essas
relações; por outro lado, captam pessoas qualificadas nos países em desenvolvimento do Sul
Global e retêm estudantes destacados, evitando o desenvolvimento desses países91.

As mulheres latino-americanas são responsáveis pelo novo perfil da imigração


na Europa, com pouco mais da metade de sua presença na Espanha e Itália.
Centenas deles compõem a indústria do sexo, e muitos jogam trabalhos de
baixa qualificação, como tarefas domésticas, cuidar de crianças e hotéis, de
acordo com um relatório da Organização Internacional de Migrações
Em relação aos serviços domésticos, observou-se crescimento demanda por
esse tipo de serviço, que tem como um de seus principais causa o fato de que
mulheres de classe média em países Ocidentais entraram no mercado de
trabalho e quando o fizeram começou a exigir serviço doméstico para realizar
tarefas reprodução - limpeza, cuidado de crianças e idosos92.

de la transnacionalización de los mercados sexual y matrimonial. Horizontes Antropológicos, v. 31, p. 131-


137, 2009.
89
MAYORGA, Claudia. Cruzando fronteiras. Prostituição e imigração. Cadernos Pagu, n. 37, p. 323-355, jul.-
dez. 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/cpa/n37/a14n37.pdf. Acesso em: 10 maio 2019.
90
SAYAD, A. A imigração: ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1998. Ver
também: MENEZES, Marilda Aparecida. Trabalho, familia e migrações: uma relação afetiva e uma trajetória
de pesquisa. Revista Latinoamericana de Antropologia del Trabajo, v. 4, p. 01-09, 2020. Disponível em:
http://www.ceil-conicet.gov.ar/ojs/index.php/lat/article/view/685/547. Acesso em: 10 ago. 2020. “Observar as
formas de resistência microbianas, fragmentadas, dissimuladas tem possibilitado dar visibilidade às ações e
pensamentos dos trabalhores, que normalmente passam despercebidas em outras lentes teórico-metodológicas.”
p. 5.
91
DOMENICONI, Joíce. Migração internacional qualificada no século XXI: a circulação de trabalhadores do
conhecimento desde uma perspectiva Sul-Sul. In: BAENINGER, Rosana et al. Migrações Sul-Sul. 2. edição.
Campinas: Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó”- NEPO/UNICAMP, 2018. p. 202
92
MAYORGA, Claudia. El tráfico de mujeres como problema: colonialismo y patriarcado. Revista Electrónica
de Psicología Política, Año7, n. 21, nov./dic. 2009.
69

Outro fator importante se refere à eventual condição de regularidade documental em que


se encontram essas pessoas nos países de destino, o que intensifica a sua submissão a piores
condições de trabalho, com receio de serem descobertas e repatriadas aos países de origem.
Esses imigrantes irregulares são excluídos93, muitas vezes, de qualquer mecanismo de
assistência social, saúde, educação e de segurança pública. São pessoas indesejáveis. “Esta
situação de ilegalidade ou paralegalidade de uma parte importante dos contingentes migratórios,
nos remete à questão da cidadania e do direito à inserção na sociedade receptora: habitação,
educação, saúde etc.”94.
Ressalta-se ainda que os imigrantes, mesmo estando em condições de regularidade
documental, restam muitas vezes desprotegidos de qualquer processo de integração no país que
os acolhe, vivendo situações de discriminação (principalmente mulheres) e exclusão.
Questão que deve ser pontuada, no âmbito da mobilidade humana, é a responsabilidade
dos Estados frente à ausência de políticas públicas estruturais, que evitem e/ou previnam
situações de vulnerabilidades institucionais, econômicas, sociais que, de alguma maneira,
estimulem ou simplesmente não evitem a migração em condições vulneráveis. Migrar por não
se vislumbrar outra possibilidade de viver plenamente, com dignidade, em origem, em função
de vulnerabilidades institucionais, deve ser considerado como uma violência institucional,
devendo haver responsabilidade do Estado.
Analisando a questão migratória desde a perspectiva dos países receptores de migrantes,
verificam-se diversos tensionamentos. Se de um lado há pessoas procurando alternativas de
vida, do outro, temos Estados que criam “medidas de controle”, seja por argumentos de
segurança ou de exercício de soberania nacional.
Em função desses “controles”, verifica-se aumento das políticas restritivas de admissão
a estrangeiros nos países receptores (principalmente nos desenvolvidos). Castles assinala que
“numa economia cada vez mais internacional, é difícil abrir fronteiras à circulação de
informação, bens e capital, se ao mesmo tempo estiverem fechadas à circulação de pessoas.”95.

93
Importante destacar a discordância com a terminologia de pessoas “legais ou ilegais”. Compreende-se que as
pessoas migrantes podem se encontrar em situação de irregularidade documental e não de ilegalidade.
94
PIZARRO, Jorge Martinez; PUJADAS, Joan J.; VILLA Miguel. Migração na América Latina: repercussão para
a Europa: análises e informações. Revista nº 17. Centro de Estudos. Rio de Janeiro: Fundação Konrad
Adenauer, 2004. p. 07.
95
CASTLES, S. Migración internacional a comienzos del siglo XXI: tendencias y problemas mundiales. Revista
Internacional de Ciencias Sociales, n. 165, p. 29, sept. 2000. Las migraciones internacionales. “en una
economía cada vez más internacional, es difícil abrir las fronteras a la circulación de información, bienes y
capital si al mismo tiempo se cierran a la circulación de las personas.” (tradução nossa).
70

Estabelecer medidas restritivas viola o direito de migrar e pode também, em grande


medida, violar os direitos das pessoas que efetivamente não estejam querendo migrar em busca
de trabalho, como por exemplo, pessoas que estejam se deslocando por motivos de turismo.
Apontar algumas causas que geram a mobilidade daqueles que procuram alternativas de
vida melhores merece atenção, inclusive porque podem sinalizar causas motivacionais de
aceitação de propostas por parte de vítimas de tráfico internacional de pessoas, justamente por
se tratar de grupos vulneráveis96.
Pensar a mobilidade humana sem questionar a corresponsabilidade de todos os atores,
principalmente a dos Estados, pela potencial manutenção de relações de desigualdades
mundiais (econômicas, políticas, financeiras, sociais) proporcionadas e mantidas pelo sistema
global capitalista neoliberal, colocando a responsabilidade pelos processos migratórios nas
“escolhas” dos migrantes, parece ser bastante desproporcional.
Bauman nos brinda com uma reflexão interessante sobre uma mudança no modo de vida
e a percepção da construção da riqueza. Há uma equivocada percepção de que
1. O crescimento econômico é a única maneira de lidar com os desafios e de
algum modo resolver todos os problemas que a coabitação humana
necessariamente gere;
2. O aumento permanente do consumo, ou a rotatividade acelerada de novos
objetos de consumo, talvez seja a única ou pelo menos a principal e mais
efetiva maneira de satisfazer a busca humana de felicidade;
3. A desigualdade entre os homens é natural; assim, ajustar as oportunidades
de vida humana à sua inevitabilidade beneficia todos nós, enquanto adulterar
seus preceitos prejudica todos;97.

A reflexão de Bauman permite pensar que desconstruir lógicas excludentes para pensar
lógicas inclusivas e garantistas é uma das necessidades para uma comunidade mundial que se
paute pelos direitos humanos.

1.1.1 A mobilidade humana forçada e não forçada

A mobilidade humana é complexa e apresenta uma série de nuances. Para efeitos de


classificação, pode ser caracterizada como forçada ou não forçada. É importante identificar qual
o tipo de mobilidade a que pertencem as pessoas que passam por processos migratórios, uma
vez que os regimes jurídicos e as políticas às quais estão expostas são diversos, muitas vezes

96
Importante destacar, e mais adiante será abordado, o consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas é
considerado irrelevante para a caracterização do fenômeno do tráfico pelo Protocolo de Palermo.
97
BAUMAN, Zygmunt. A riqueza de poucos beneficia todos nós? 1. edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2015. p. 40.
71

caracterizados por Regimes que têm enfoque nos Direitos Humanos das pessoas e outros, nos
interesses mais particulares dos Estados.
Como anteriormente descrito, por migração internacional se entende o processo de
cruzamento de uma fronteira internacional ou de um Estado. É um movimento populacional
que compreende qualquer deslocamento de pessoas, independentemente da extensão, da
composição ou das causas; inclui a migração não forçada (que pode ser caracterizada como
migração econômica) e a migração forçada.
Pela complexidade que envolve os processos de mobilidade humana, evidencia-se que
as definições teóricas sobre as modalidades de mobilidade humana, muitas vezes, na prática
ficam difíceis de ser categorizadas. As categorias, por vezes, não captam totalmente a realidade
dos processos, limitando-os e, por vezes, diminuindo a riqueza desses processos sociológicos.
Nessa lógica, o direito de migrar deve ser considerado como inerente ao ser humano,
apesar de nem sempre os Estados garantirem essa condição, impondo, é certo, uma série de
restrições e de políticas migratórias, que condicionam muitas vezes esse direito ao direito da
soberania estatal98.
A migração não forçada pode ser caracterizada pela migração laboral, e trata do
movimento de pessoas do seu Estado para outro Estado com a finalidade de aí encontrar
emprego. A migração laboral está regulada nas leis sobre migração da maioria dos Estados.
Além disso, alguns Estados desempenham papel ativo na regulação da migração laboral externa
e procuram oportunidades no estrangeiro para os seus nacionais.
A migração forçada é toda aquela em que existe um elemento de coerção,
nomeadamente ameaças à vida ou à sobrevivência, seja motivada por causas naturais,
terremotos, tsunamis, inundações (migração ambiental), seja motivada por causas provocadas
pelo ser humano (conflitos armados, fome, perseguição ideológica, política, de gênero, entre
outros).
Nesses casos aparecem algumas modalidades ligadas à migração forçada, como por
exemplo, as pessoas refugiadas, consideradas imigrantes com condições peculiares, amparadas
pela Convenção das Nações Unidas Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951). A Convenção
impõe a proteção para aquele que: “devido a fundados temores de perseguição por motivos de
raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de
nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país” (Artigo 1º da
Convenção). Verifica-se, portanto, um Regime Jurídico específico no âmbito dos direitos

98
CAVARZERE, Thelma. Direito internacional da pessoa humana: a circulação internacional de pessoas.2. ed.
rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
72

humanos de proteção particular a esses imigrantes que se deslocam territorialmente, temendo


serem perseguidos por motivo de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões
políticas em seu Estado de origem. Esse regime jurídico de proteção ao refugiado tem um grau
de proteção alto, inclusive permitindo que as pessoas possam ingressar em outro território sem
documentos ou sem documentos válidos, e solicitem refúgio, bem quando do atravessamento
da fronteira.
A migração ambiental tem a sua motivação ocasionada devido a alterações ambientais
repentinas ou progressivas que afetam negativamente as vidas das pessoas ou as suas condições
de vida, obrigando-as a deixar as suas residências habituais, ou escolhem fazê-lo, temporária
ou permanentemente, deslocando-se dentro do próprio país ou para o estrangeiro99. Essas
alterações ambientais podem ter causas naturais ou de interferência humana.
A migração clandestina se caracteriza por ser uma migração secreta ou encoberta, uma
vez que viola as exigências em matéria de imigração. Pode ocorrer quando um estrangeiro viola
os regulamentos de entrada de um país ou, tendo entrado legalmente, nele permanece em
violação dos regulamentos de imigração100.
A modalidade do tráfico de pessoas é caracterizada pelo “recrutamento, o transporte,
transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo-se à ameaça ou ao uso da
força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à
situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter
o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração”, e
possui um regime jurídico modelado a partir da lógica da contenção do crime organizado
transnacional, que será tensionado e discutido ao longo deste trabalho, uma vez que se entende
que a principal motivação desse regime devam ser a proteção e atenção das vítimas de tráfico
de pessoas.
O Regime normativo do tráfico de pessoas é regulado globalmente pela Convenção
contra o Crime Organizado Transnacional e o Protocolo de Palermo. (2000), além de uma série
de normativas regionais que serão abordadas posteriormente101.
A par do regime de tráfico de pessoas, o contrabando de pessoas, também chamado de
tráfico de migrantes (ou smuggling, em inglês), verifica-se quando uma pessoa é transportada
consensualmente por terceiros a outro país, por meios ilegais, com a intenção de obter, direta

99
OIM. Glossário sobre migração n. 22. 2009. p. 41 Disponível em: http://publications.iom.int/system/files/
pdf/iml22.pdf. Acesso em: 2 jun. 2018.
100
Id.
101
No capítulo terceiro verifica-se a construção histórica e na atualidade do Regime Jurídico Internacional do
Tráfico de Pessoas.
73

ou indiretamente, benefício financeiro. A utilização do “serviço” de terceiro se dá porque essa


pessoa não pode ingressar no país destino pelos meios normais, por não ser nacional ou
residente permanente e não preencher os requisitos necessários para obter o visto exigido. No
contrabando, há o consentimento da vítima que pactua com terceiro o transporte até o destino
pretendido102.
Essa modalidade criminosa não contém o elemento da coerção e do engano. Assim, o
tráfico de migrantes não é reconhecido como uma violação dos direitos humanos, mas uma
violação às leis migratórias, e pressupõe a participação voluntária de imigrantes com as redes
de tráfico na intenção de obter a entrada ou admissão ilegal ou irregular em outro país. Nessa
modalidade, sempre é exigido o atravessamento de fronteiras nacionais, diferentemente do que
ocorre com o tráfico de pessoas, que pode se dar internamente ou de forma internacional.
O tráfico de pessoas envolve o deslocamento de pessoas através do engano, da coerção
ou do aproveitamento de sua condição de vulnerabilidade social, com a intenção de explorá-la
no destino final, obtendo benefício financeiro, o que não ocorre no caso do contrabando de
pessoas.
Interessante destacar que, apesar de essas duas modalidades estarem devidamente
diferenciadas, na prática a realidade das mobilidades pode confundir-se103. Há dificuldade em
se verificar qual é a modalidade existente ou, até mesmo, pode haver uma mudança do
fenômeno, passando do contrabando de pessoas à exploração no trajeto ou no destino final por
uma rede de tráfico de pessoas.
As condições de vulnerabilidade às quais estão expostas essas pessoas, em especial
mulheres e crianças, somado ao desejo e necessidade de chegar ao destino final, alargam e
flexibilizam a margem do limite conceitual desses fenômenos migratórios dificultando, em
demasia, a caracterização do mesmo. Na pratica, verificam-se explorações de diversas formas
no trajeto/trânsito (sexual, trabalho) dessas pessoas que desejam chegar ao seu destino final,
principalmente as mulheres e meninas, que servem, muitas vezes, como “moedas de troca”
nesse deslocamento.

102
O Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, relativo
ao Combate ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea, que será posteriormente analisado,
conceitua, em seu artigo 3º que o “tráfico de migrantes significa a promoção, com o objetivo de obter, direta ou
indiretamente, um benefício financeiro ou outro benefício material, da entrada ilegal de uma pessoa num Estado
Parte do qual essa pessoa não seja nacional ou residente permanente.”
103
As entrevistas realizadas com as mulheres vítimas de tráfico na Espanha, demonstraram como a inicial
mobilidade caracterizada pelo contrabando de pessoas, principalmente no caso da mulher de origem nigeriana,
mudou sua configuração para tráfico de pessoas, ainda no trajeto migratório para a Europa, em função das
coações, violências e exploração. O caso será descrito mais adiante.
74

O consentimento dado por essa mulher que aceita e requisita esse auxílio de um terceiro
para chegar ao destino final, parece ser suficiente para que ela aceite qualquer tipo de situação
de violência. Ademais, muitas vezes, pela impossibilidade ou até mesmo pela incapacidade de
identificar essas nuances e flexibilidades dos processos migratórios, essas pessoas
(principalmente mulheres e crianças) acabam sendo alvos fáceis para redes de captação e
exploração no destino.

1.2 O Conceito de Vulnerabilidade104

Etimologicamente, a palavra vulnerabilidade vem do latim vulnerare (ferir) vulnerabilis


(que causa lesão). Pode-se dizer que vulnerável é aquele que pode ser fisicamente ferido; sujeito
a ser atacado, derrotado, prejudicado ou ofendido. Vulnerável pode ser entendido como aquela
pessoa que se pode vulnerar; diz-se do lado fraco de uma questão ou do ponto por onde alguém
pode ser ferido ou atacado;105 diz-se, também, sobre aquele que é mais suscetível de ser
danificado ou magoado, prejudicado ou destruído106.
Entende-se que o conceito de vulnerabilidade tem um valor heurístico107, uma vez que
pode e é utilizado por diversas áreas do saber. A utilização disseminada do termo
vulnerabilidade tem sua origem no movimento de Direitos Humanos, difundido no campo da
Saúde Pública nos anos de 1980, no âmbito das políticas públicas relacionadas à epidemia da
AIDS/SIDA. As características dessa epidemia, os grupos sociais que foram sendo atingidos
(em diversos países e de diversas formas), fizeram com que se aproximasse a incidência do
vírus com o contexto socioeconômico, buscando-se esclarecer quais grupos sociais e indivíduos
poderiam estar mais ou menos vulneráveis à vitimização dessa epidemia.
A incorporação do conceito de vulnerabilidade foi entendida como abertura alternativa
e promissora dos conceitos de “risco” e de “população de risco”, originários da epidemiologia.
Esse novo conceito apresenta uma fecunda elaboração conceitual, capaz de ampliar um
universo heterogêneo de reflexões e práticas. Assim é que, a partir dessa articulação entre os
termos riscos e população de risco, esses termos foram, aos poucos, sendo substituídos pelo

104
A discussão proposta nesse item 1.2 foi feita inicialmente em RODRIGUES, Gilberto M. A.; TERESI,
Veronica. O conceito de vulnerabilidade: uma perspectiva interdisciplinar para os Direitos Humanos. In: SALA,
José Blanes; VALENTE, Izabel. Cidadania, migrações, direitos humanos: trajetórias de um debate em aberto
Euro-Atlântico: espaço de diálogos. Campina Grande/Coimbra: UFCG/CEIS20, 2018. p. 117-146.
105
Dicionário Aurélio. Significado de vulnerável.
106
Dicionário online Caldas Aulete. Significado de vulnerável. Consultado em: 08/02/2018. Disponível em:
http://www.aulete.com.br/vulner%C3%A1vel.
107
O valor heurístico de um conceito refere-se à sua capacidade de iluminar campos, ampliar e inovar.
75

termo vulnerabilidade. Segundo Adorno, essa nova concepção “[...] buscou incorporar a ideia
do direito que todas as pessoas deveriam ter de alterar suas condições de vida para tornarem-se
menos vulneráveis e, assim, promover a igualdade para todos.”108.
Naquele momento, a caracterização da vulnerabilidade à doença passava pela
informação sobre ela e pela mudança de comportamento pessoal. Por outro lado, o conceito
também estava ligado à interação de múltiplos fatores sociais, econômicos, políticos e culturais,
exigindo uma nova dimensão institucional e cultural.
À luz das Ciências Humanas e Sociais, o conceito de vulnerabilidade foi inicialmente
desenvolvido para abordar a vulnerabilidade social a partir de uma forma mais integral e
completa, aproximando-se das diversas modalidades de desvantagens sociais, para além do
fenômeno da pobreza. A categoria “vulnerabilidade” adquire assim uma perspectiva ligada à
própria estrutura da sociedade, dos direitos e dos acessos desiguais, o resultado negativo da
relação entre disponibilidade dos recursos materiais ou simbólicos dos atores sociais e o acesso
à estrutura de oportunidades sociais, econômicas, culturais resultantes do Estado, mercado e
sociedade como um todo. De acordo com Adorno “[...] a expressão vulnerabilidade social
sintetiza a ideia de uma maior exposição e sensibilidade de um indivíduo ou de um grupo aos
problemas enfrentados na sociedade e reflete uma nova maneira de olhar e de entender os
comportamentos de pessoas e grupos específicos e sua relação e dificuldades de acesso a
serviços sociais como saúde, escola e justiça.”109.
Na América Latina, o conceito de vulnerabilidade social é recente e foi criado com o
objetivo de ampliar a análise dos problemas sociais, ultrapassando o identificador renda ou a
posse de bens materiais da população em geral. A abordagem analítica da vulnerabilidade social
se torna sistemática a partir de Moser, que sintetiza o chamado asset/vulnerability framework110.
Em sua pesquisa sobre estratégias de redução da pobreza urbana (1998), além de destacar o
caráter dinâmico desse enfoque, Moser ressalta a importância dos ativos das famílias – não se
referindo apenas à renda ou posse de bens materiais – os quais influenciariam o seu grau de
vulnerabilidade social, a sua renda e a sua capacidade de responder a crises, o que do ponto de
vista da formulação de políticas constituiu uma inovação.

108
ADORNO, Rubens C. F. Capacitação solidária: um olhar sobre os jovens e sua vulnerabilidade social. São
Paulo: Associação de Apoio ao Programa Capacitação Solidária, 2001. Disponível em: http://dspace.fsp.
usp.br/xmlui/bitstream/handle/bdfsp/673/ado001.pdf?sequence=1. Acesso em: 15 dez. 2017.
109
Id.
110
MOSER, C. The asset vulnerability framework: reassessing urban poverty reduction strategies. Washington
D.C: World Bank, 1998. Disponível em: https://pt.slideshare.net/ NelsonCervantes/moser-46195639. Acesso
em: 15 dez. 2019.
76

Segundo Moser111 e Filgueira112, o conceito de vulnerabilidade deve ser considerado


uma ferramenta eficaz para analisar a situação dos excluídos socialmente na América Latina,
uma vez que é capaz de compreender amplamente as instabilidades e idiossincrasias existentes
na realidade dos pobres que vão além dos atributos de renda. Assim, o conceito de
vulnerabilidade permite uma visão integral sobre as condições de vida dos pobres, ao mesmo
tempo em que considera a disponibilidade de recursos e estratégias para que esses indivíduos
enfrentem as dificuldades que os afetam. Estar vulnerável pode gerar estratégias de
sobrevivência como migrar ou aceitar o convite que perpasse pelo tráfico de pessoas, sabendo-
se ou não qual a finalidade real desse deslocamento do tráfico.
A vulnerabilidade se anuncia no cerceamento dos direitos, sejam eles econômicos,
políticos ou culturais. Nisso, conectam-se a discussão da pobreza e da exclusão: o cerceamento
do direito de ter dignidade, de ter saúde, de ter habitação digna, de ser respeitado, de ter
participação política, de ser representado, de ser ouvido, de poder falar, de se sentir socialmente
parte.
Nessa perspectiva, a vulnerabilidade é produto de uma negativa de direitos: “a
vulnerabilidade não é uma fragilidade irreversível diante de ameaças incomensuráveis: é uma
condição produzida histórica e socialmente, com uma participação decisiva nas relações de
poder no resultado.”113. Ademais, ela é reversível, se houver interesse político e público de que
assim seja.
Rey indica que a vulnerabilidade tem múltiplas facetas, e por isso nos referirmos a ela
de maneira genérica, o que pode resultar enganoso.
Um grupo indígena da selva do Chocó colombiano pode ser muito pobre e ter
numerosos elementos de vulnerabilidade econômica, de recursos e habitar
zonas de grande vulnerabilidade ambiental. Porém sua organização social, sua
coesão comunitária, sua visão coletiva, seu projeto comum têm permitido
resistir e sobrepor-se diante de muitas ameaças ao longo da história. Os
elementos sociais, psicológicos organizativos formam parte das análises de

111
MOSER. Youth violence in Latin America and the Caribbean: costs, causes, and interventions. Washington
D.C: World Bank, 1999. Consultado em: 15/12/2019. Disponível em: file:///
C:/Users/User/Downloads/Youth_Violence_in_Latin_America_and_the_Caribbean_.pdf.
112
FILGUEIRA, C. H. Estructura de oportunidades y vulnerabilidad social: aproximaciones conceptuales
recientes. In: CEPAL. Seminario Vulnerabilidad. Santiago de Chile: CEPAL, 2001. Consultado em:
10/12/2019. Disponível em: https://www.cepal.org/publicaciones/xml/3/8283/cfilgueira.pdf
113
MATOS, Francisco Rey. ¿Grupos vulnerables o vulnerados? Jornal ELPAIS. 13/04/2020. Disponível em:
https://elpais.com/elpais/2020/04/09/planeta_futuro/1586425616_757834.html?ssm=FB_CC&fbclid=IwAR1
NksX8sZDvxspq8chLvXPOikXUZzGxoaSqxFcUSLMpvUqy2vsPh8SMffQ. Acesso em: 14 abr. 2020.
Tradução: “la vulnerabilidad no es una fragilidad irreversible ante amenazas inconmensurables: es una
condición producida histórica y socialmente, con una participación determinante de las relaciones de poder
en ese resultado”.
77

vulnerabilidade junto com as mais convencionais dimensões econômicas, de


idade, gênero, ambiental e outras114.

Nesse sentido, a vulnerabilidade deve ser analisada de forma mais holística, ampla e
complexa possível, levando em conta também os elementos sociais, psicológicos e
organizativos das pessoas. Isso indica que as generalizações sobre a caracterização de
vulnerabilidades a determinados grupos podem ser equivocadas.
Falar das violações de direitos decorrentes das vulnerabilidades e que geram formas de
exploração é fundamental para provocar a percepção da problemática e realizar o enfrentamento
no sentido de eliminar essas violações. Dessa forma, a vulnerabilidade pode ser diretamente
conectada aos fenômenos de mobilidade humana da atualidade, e principalmente ao fenômeno
do tráfico de pessoas.

1.2.1 A vulnerabilidade como suscetibilidade ao tráfico de pessoas

No contexto específico do tráfico de pessoas, o termo “vulnerabilidade” é


frequentemente usado para se referir aos fatores intrínsecos, ambientais ou contextuais que
aumentam a suscetibilidade de uma pessoa ou grupo de se tornar vítima de tráfico.
O tráfico de pessoas constitui grave violação de direitos humanos, cuja origem radica
em fatores sociais econômicos e culturais. Reconhece-se que esses fatores incluem violações
dos direitos humanos, como pobreza, desigualdade, discriminação, racismo e violência de
gênero115, que contribuem para criar situações de privação econômica e condições sociais que
limitam as opções pessoais e facilitam a atividade de traficantes e exploradores. De maneira
mais especial, entre os fatores considerados significativos em relação à vulnerabilidade das
pessoas a se tornarem vítimas de tráfico116, incluem-se o sexo, questão racial, pertencente a
grupos minoritários e a falta de um status legal reconhecido. Verificou-se que as crianças são

114
MATOS, Francisco Rey. ¿Grupos vulnerables o vulnerados?. Jornal ELPAIS. 13/04/2020. Disponível em:
https://elpais.com/elpais/2020/04/09/planeta_futuro/1586425616_757834.html?ssm=FB_CC&fbclid=IwAR1
NksX8sZDvxspq8chLvXPOikXUZzGxoaSqxFcUSLMpvUqy2vsPh8SMffQ. Acesso em: 14 abr. 2020.
Tradução: “Un grupo indígena en la selva del Chocó colombiano puede ser muy pobre y tener numerosos
elementos de vulnerabilidad económica, de recursos y habitar en zonas de gran vulnerabilidad ambiental. Pero
su organización social, su cohesión comunitaria, su visión colectiva, su proyecto común les ha permitido resistir
y sobreponerse ante muchas amenazas a lo largo de la historia. Los elementos sociales, psicológicos,
organizativos forman parte del análisis de la vulnerabilidad junto con las más convencionales dimensiones
económicas, de edad, de género, ambiental y otras.”.
115
Ver em: Plano de Ação Global das Nações Unidas para o Combate ao Tráfico de Pessoas, documento A / RES
/ 64/293 das Nações Unidas, de 12 de agosto de 2010, terceiro parágrafo preambular.
116
Organização Internacional do Trabalho e Comissão Europeia, Indicadores operacionais de tráfico de seres
humanos 2009.
78

intrinsecamente vulneráveis ao tráfico117 e que outros fatores de vulnerabilidade as afetam,


como viajar desacompanhado ou sem certidão de nascimento118.
De outro modo, é importante esclarecer que a vulnerabilidade ao tráfico não é de
natureza fixa, predeterminada ou mesmo totalmente "conhecida". Existem muitos fatores que
moldam o contexto em que o tráfico ocorre e a capacidade da pessoa de responder a ele. Nesse
sentido, identificar a vulnerabilidade de forma autêntica quase sempre exigirá uma análise de
cada situação específica; por isso é tão difícil traçar padrões de perfis pré-estabelecidos.
A Cúpula Judicial Ibero-americana sobre acesso à justiça realizada no Brasil, em 2008
contribuiu para a caracterização desse conceito de vulnerabilidade, destacando: “Podem
constituir causas de vulnerabilidade, entre outras: idade, incapacidade, pertencer a comunidades
indígenas ou minoritárias, vitimização, migração e deslocamento interno, pobreza, gênero e
privação de liberdade. A determinação específica de pessoas vulneráveis em cada país
dependerá de suas características específicas ou mesmo do seu nível de desenvolvimento social
e econômico.”119.
Outro aspecto da vulnerabilidade que deve ser abordado é a de origem e de destino. A
de origem se refere a uma “complexa interação de fatores relacionados à presença ou ausência
de proteção; respeito pelos direitos; segurança física e segurança; acesso às necessidades da
vida, como alimentos, água e cuidados de saúde; e padrões de migração, deslocamento e
conflito.”120.
Se por um lado a vulnerabilidade de origem está ligada a condições socioeconômicas,
como pobreza, trabalho precoce, baixa remuneração, longas jornadas de trabalho, a de destino
se liga a falsas promessas de trabalho, à facilidade da vida na Europa, à possibilidade das
mulheres ficarem ricas e às condições da atividade a ser desempenhada. No caso do exercício
da prostituição, verifica-se a obrigatoriedade de realização vários programas em uma noite,

117
Ver em: Diretiva Europeia contra o Tráfico de Seres Humanos (o décimo segundo parágrafo do preâmbulo).
Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/ES/TXT/PDF/?uri=CELEX: 32011L0036&from=es.
Acesso em: 3 nov. 2019.
118
Ver em: OIT. Dando uma face global à globalização, pesquisa geral sobre convenções fundamentais sobre
direitos no trabalho, 101ª sessão, junho 2012, par. 590, 594 e 605.
119
CUMBRE JUDICIAL IBEROAMERICANA. 100 Reglas de Brasilia sobre Acceso a la Justicia de las
Personas en Condición de Vulnerabilidad. XIV. Brasilia, 4 a 6 de marzo de 2008. Disponível em:
https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2009/7037.pdf. Acesso em: 10 fev. 2020.
120
LARSEN, J. J.; DURGANA, D. P. Measuring vulnerability and estimating prevalence of modern slavery.
Chance: Using data to advance Science, Education, and Society, Virginia, v. 30, n. 3, p. 13, 2017.
79

local insalubre, exposição a doenças sexualmente transmissíveis, jornadas extensas de trabalho,


uso de drogas, violência física e psicológica121.
A OIM ainda propõe um modelo que define vulnerabilidade em um contexto de
migração como a capacidade diminuída de um indivíduo ou grupo de resistir, lidar ou se
recuperar da violência, exploração, abuso e violação de seus direitos. É determinado pela
presença, ausência e interação de fatores e circunstâncias que: a) aumentam o risco e a
exposição a, ou b) protegem contra violência, exploração, abuso e violação de direitos122.

1.2.2. A vulnerabilidade decorrente da pandemia de COVID-19

Este trabalho está sendo concluído no momento em que uma pandemia assola o Mundo.
Quem diria que, em pleno século XXI, vivenciar-se-ia uma situação tão sui generis como
esta?123.
Impossível negar que o isolamento e confinamento das pessoas para evitar o contágio
pelo COVID-19 ocasionou mais um fator de vulnerabilidade às vítimas de tráfico de pessoas,
pela invisibilidade e potencial exposição à situações de exploração.
Apesar de ainda ser bastante incipiente, alguns levantamentos feitos por OSCs e outros
atores internacionais que atuam no enfrentamento ao tráfico de pessoas, os traficantes estão
ajustando os seus modelos de negócios ao ‘novo normal’ criado pela pandemia, especialmente
por meio de abuso das modernas tecnologias de comunicação. Por outro lado, a pandemia afeta
o trabalho desenvolvido pelas autoridades estatais e OSCs em fornecer serviços essenciais às
vítimas desse crime.
A identificação das vítimas, que já é difícil em circunstancias normais, parece estar
sendo dificultada em tempos de COVID-19, seja porque estão mais expostas à contração do
vírus, menos equipadas para evitá-lo e têm menos acesso à assistência médica para garantir sua
recuperação.

121
FRINHANI, Fernanda de M. D. As representações sociais dos profissionais do direito sobre tráfico de
pessoas. Tese (Doutorado) - USP, 2014. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2140/tde-
08122014-162505/publico/FERNANDA_FRINHANI_TESE.pdf. Acesso em: 10 out. 2019.
122
OIM. Handbook protection and assistance for migrants vulnerable to violence, exploration and abuse.
Disponível em: https://publications.iom.int/books/iom-handbook-migrants-vulnerable-violence-exploitation-
and-abuse. Acesso em: 10 ago. 2019.
123
Importante destacar que esta pandemia iniciou na Espanha e no Brasil(finais de fevereiro/2020), dias após meu
retorno da viagem de realização das entrevistas para a tese, o que reforçou, de forma muito particular, pela
proximidade com as pessoas, minha preocupação com as mulheres vítimas, mulheres migrantes, mulheres no
exercício da prostituição e principalmente das mulheres em situação de exploração sexual e laboral neste
momento de isolamento social.
80

Para as vítimas confinadas por seus traficantes, as medidas de combate ao COVID-19


podem piorar ainda mais a situação, que já é desesperadora. As mulheres vítimas podem estar
mais invisíveis, dificultando ainda mais o seu potencial encaminhamento aos sistemas de
proteção social. Bloqueios e confinamentos podem reforçar o isolamento das vítimas e reduzir
drasticamente qualquer chance de serem identificadas e removidas de tais situações de
exploração. Também se percebe que o aliciamento vem sendo feito pelas mídias eletrônicas, o
que dificulta, ainda mais a identificação dessas violações de direitos124.
Todavia, aquelas que são identificadas neste momento de pandemia, sinalizam a
invisibilidade, exposição a piores condições de violência e de contaminação do vírus Covid-19.
Essa preocupação aparece tanto no Brasil como na Espanha.
Nossas unidades especializadas no combate ao tráfico desmantelaram uma
rede internacional de exploração sexual de mulheres, com 12 vítimas sendo
libertadas em Córdoba e Jaén, algumas delas menores. A organização
desmantelada continuou a atividade mesmo depois do estado de alarme [...]
Como afirmado, ‘apesar do confinamento, muitos clientes solicitaram
serviços sexuais indo aos apartamentos onde as mulheres estavam ou exigiram
que se mudassem para suas próprias casas’125.

Especialistas em segurança pública acreditam que um dos reflexos provocados


pela pandemia do novo coronavírus no Brasil, além das graves consequências
na área sanitária do país, deverá ser o crescimento da atividade de grupos que
atuam no tráfico humano, em especial aqueles voltados para exploração sexual
de mulheres, uma das principais vertentes deste tipo de crime126.

Além da invisibilidade da violência das diversas explorações vivenciadas pelas vítimas


de tráfico, há o risco da exposição real com a doença altamente contaminante. Ademais, o

124
UNODC. Impacto da pandemia covid-19 no tráfico de pessoas:conclusões preliminares e mensagens com
base em um rápido balanço. Disponível em: https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/frontpage/2020/05/covid-19-
unodc-alerta-para-maiores-riscos-para-vtimas-do-trfico-de-pessoas.html. Acesso em: 10 maio 2020.
125
20 MINUTOS. La policía desarticula una red que obligaba a prostituirse a 12 mujeres a domicilio durante
el confinamiento. 10/04/2020. Disponível em: https://www.20minutos.es/noticia/4223008/0/ desmantelada-
organizacion-prostitucion-confinamiento/?utm_source=facebook.com&utm_medium=
socialshare&utm_campaign=mobile_web&fbclid=IwAR2EEfoZTfy20lIcQUQR7zfyiZyxEJ-
sP2xSkjrn4KvohPCI26EG-qPC8D4. Acesso em: 10 abr. 2020. “La Policía Nacional ha desmantelado una
organización criminal de trata, en el marco de una operación en la que ha detenido a siete personas como
presuntos autores de un delito de trata de seres humanos y ha liberado a 12 mujeres, una de ellas menor de edad,
que estaban siendo víctimas de explotación sexual en Córdoba y Jaén, y que habían sido captadas en Colombia.
"Nuestras unidades especializadas en la lucha contra la trata han desarticulado una red internacional que
explotaba sexualmente a mujeres, siendo liberadas 12 víctimas en Córdoba y Jaén, alguna de ellas menor de
edad. La organización desmantelada continuaba la actividad incluso tras ser decretado el estado de alarma",
ha explicado el Comisario Principal de la Policía Nacional, José García Molina, este viernes 10 de abril
durante la rueda de prensa posterior a la reunión del Comité de Gestión Técnica del Coronavirus. Según ha
precisado, "a pesar del confinamiento, muchos clientes solicitaban los servicios sexuales acudiendo a los pisos
en que se encontraban las mujeres o reclamaban que estas se desplazaran a sus propios domicilios.”
126
NOTICIAS R7. Tráfico de pessoas pode aumentar com pandemia, dizem especialistas. 29/04/2020.
Disponível em: https://noticias.r7.com/sao-paulo/trafico-de-pessoas-pode-aumentar-com-pandemia-dizem-
especialistas-29042020. Acesso em: 30 abr. 2020.
81

isolamento e o distanciamento social podem agravar os problemas de saúde mental e


interromper qualquer acesso a redes informais de apoio. Com a redução dos serviços
governamentais e as mudanças na forma como são administrados, as vítimas identificadas que
já estavam sendo apoiadas por serviços governamentais ou grupos comunitários podem
enfrentar desafios e dificuldades em receber apoio.
Por isso, alguns países europeus estão propondo a regularização dos migrantes
indocumentados, justamente para diminuir essa vulnerabilidade127.
A UNODC lançou algumas propostas de ação para auxiliar nesse momento:
• As respostas COVID-19 devem ser monitoradas continuamente. Nos
casos em que essas medidas impactam negativamente, de forma involuntária,
grupos vulneráveis, como vítimas de tráfico, devem ser feitos ajustes para
minimizar os danos e garantir que as necessidades desses grupos sejam
adequadamente atendidas.
• Ao priorizar a saúde pública, uma cultura de estado de direito precisa
prevalecer. As respostas contra o tráfico devem continuar baseadas nos
direitos humanos, enquanto o acesso aos cuidados de saúde e apoio social sem
discriminação deve ser garantido.
• Sempre que possível, a tecnologia deve ser utilizada para facilitar o
acesso a processos judiciais e permitir a coleta e o fornecimento de provas, o
envio de documentos e a apresentação ou adjudicação de moções ou petições
aos tribunais.
• Agentes de Lei devem permanecer vigilantes ao abordar padrões de
crimes novos e em evolução e adaptar suas respostas para impedir que
traficantes de pessoas ajam impunemente durante a pandemia.
• Apesar da desaceleração prevista das economias por causa do COVID-
19 e das pressões resultantes nos orçamentos nacionais, os países devem
continuar apoiando o trabalho de combate ao tráfico e adaptar seus programas
de assistência às novas e extraordinárias circunstâncias criadas pela pandemia
e suas consequências.
• Os provedores de serviços devem permanecer flexíveis e se adaptar a
um ambiente em evolução para atender às necessidades de suas comunidades.
• Há necessidade de coleta e análise sistemática de dados sobre o impacto
do COVID-19 no tráfico de pessoas. Não existe país imune à pandemia e,
como o COVID-19 não afeta todas as regiões ao mesmo tempo, a experiência
de um país pode ser vital para outros128.

127
Ver em: ECO. SEF vai legalizar todos os estrangeiros em situação irregular em Portugal. Disponível em:
https://eco.sapo.pt/2020/03/28/sef-vai-legalizar-todos-os-estrangeiros-em-situacao-irregular-em-portugal/.
Acesso em: 30 abr. 2020. Ver: OBSERVADOR. Conselho da Europa saúda Portugal por regularizar
imigrantes. Disponível em: https://observador.pt/2020/03/30/conselho-da-europa-sauda-portugal-por-
regularizar-imigrantes/. Acesso em: 30 abr. 2020.
128
UNODC. Impacto da pandemia covid-19 no tráfico de pessoas: conclusões preliminares e mensagens com
base em um rápido balanço. Disponível em: https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/frontpage/2020/05/covid-19-
unodc-alerta-para-maiores-riscos-para-vtimas-do-trfico-de-pessoas.html. Acesso em: 10 maio 2020.
82

1.3 A Interseccionalidade da Pobreza, o Gênero e Raça como Elementos de Exclusão


Social e Geradores de Vulnerabilidades ao Tráfico de Pessoas

Vejo que nós, negras meninas


Temos olhos de estrelas,
Que por vezes se permitem constelar
O problema é que desde sempre nos tiraram a nobreza
Duvidaram das nossas ciências,
E quem antes atendia pelo pronome alteza
Hoje, pra sobreviver, lhe sobra o cargo de empregada da casa
É preciso lembrar da nossa raiz
semente negra de força matriz que brota em riste!
Mãos calejadas, corpos marcados sim
Mas de quem ainda resiste. [...]
Mel Duarte, 1988 ("Não desiste negra, não desiste!")

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) indicou em uma de suas


publicações que "a pobreza representa um nível crítico de privação, que põe em questão a
sobrevivência"129 a dignidade e o gozo efetivo dos direitos das pessoas que estão nessa situação,
dimensões que não se limitam a carência de ingresso monetário suficiente para satisfazer suas
necessidades básicas 130.
A análise da pobreza com base na perspectiva dos direitos humanos implica partir do
reconhecimento de indivíduos, grupos e coletivos que vivem nessa situação como detentores
de direitos humanos e agentes de mudança. Em outras palavras, as pessoas que vivem na
pobreza não são mais consideradas como "receptoras passivas de ajuda" ou "sujeitos
beneficentes", para serem tratadas como sujeitos de direitos, que podem participar ativamente
da tomada de decisões sobre questões que eles estão preocupados, e exigem proteção e
responsabilização das autoridades do Estado. Além disso, deve ser incluído na abordagem da
pobreza uma abordagem de direitos humanos, uma perspectiva de gênero, a fim de levar em
conta a discriminação histórica e os estereótipos de gênero que afetaram mulheres, meninas e
adultos.
As mulheres são mais afetadas pela pobreza e particularmente prejudicadas no exercício
de seus direitos civis, políticos e econômicos, sociais e culturais. A desigualdade entre homens
e mulheres na responsabilidade pelo trabalho de cuidado aumenta as diferenças de gênero
trazendo consequências para as atividades laborais, pessoais, políticas e sociais.

129
Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL), Desarrollo Social Inclusivo: “Una nueva
generación de Políticas para superar la Pobreza y Reducir la Desigualdad en América Latina y el Caribe”.
Conferencia Regional sobre Desarrollo Social de América Latina y el Caribe Lima, 2 a 4 de noviembre de 2015.
130
CIDH. Informe sobre pobreza y derechos. Comisión Interamericana de Derechos Humanos (CIDH).
OEA/Ser.L/V/II.164. 2017.
83

A pesada e desigual responsabilidade pelo trabalho de cuidado perpetua as


desigualdades de gênero e econômica. Ela prejudica a saúde e o bem-estar de
trabalhadores de cuidado – em sua maioria mulheres – e limita sua
prosperidade econômica ao ampliar diferenças de gênero no emprego e nos
salários. Além disso, as mulheres e meninas que assumem essa
responsabilidade têm pouco tempo para si mesmas e, portanto, não conseguem
satisfazer suas necessidades básicas ou participar de atividades sociais e
políticas131.

Na região da América Latina e Caribe, as mulheres constituem aproximadamente 51%


da população total e só têm acesso a 38% da massa da renda monetária gerada e recebida pelas
pessoas, com os outros 62% correspondentes aos homens132.
As mulheres têm uma carga desproporcional de cuidado dentro de suas famílias. Esses
encargos e as limitações que impõem o uso de tempo, reduz suas possibilidades de acesso,
decente emprego formal, qualidade e recursos econômicos para sua subsistência e de suas
famílias. Apesar da inserção continuada das mulheres no mercado de trabalho e no setor de
educação, as conquistas nessa área ainda são pequenas. A desigualdade econômica também se
baseia na desigualdade de gênero. “A probabilidade de mulheres e meninas estarem em
empregos mal remunerados e precários é maior e são elas que assumem a maior parte do
trabalho de cuidado não remunerado e mal pago.”133.
Além disso, o modelo de capitalismo dominante explora, impulsiona ativamente crenças
sexistas tradicionais que desempoderam mulheres e meninas, desvalorizando-as, ainda que
contando com elas para fazer esse trabalho.
A OIT observou que mulheres vivem em situação de pobreza e extrema pobreza, em
circunstâncias que são geralmente caracterizadas pela sua alta dedicação na dependência não
remunerada e econômica dos seus parceiros, bem como a sua concentração em uma faixa
estreita de atividades laborais, principalmente de ocupações informais, com baixos salários e
sem acesso à seguridade social. O trabalho de cuidado não remunerado e mal pago é
desproporcionalmente assumido por mulheres e meninas em situação de pobreza,
especialmente por aquelas que pertencem a grupos que, além da discriminação de gênero,
sofrem preconceito em decorrência de sua raça, etnia, nacionalidade, sexualidade e casta. “As

131
OXFAM. Relatorio Tempo de cuidar: o trabalho de cuidado não remunerado e mal pago e a crise global da
desigualdade. 2020. p 13. Disponível em: https://oxfam.org.br/justica-social-e-economica/forum-economico-
de-davos/tempo-de-cuidar/. Acesso em: 20 jan. 2020.
132
Ibid., p. 9.
133
Id.
84

mulheres são responsáveis por mais de três quartos do cuidado não remunerado e compõem
dois terços da força de trabalho envolvida em atividades de cuidado remuneradas.”134.
As mulheres migrantes também migram para outros territórios devido à pobreza e falta
de oportunidade A busca por emprego é uma das motivações das mulheres migrarem, fato que
também serve para suprimir o estereótipo da mulher que migra como acompanhante, sempre
do homem “produtivo”.
Não é possível falar de mulheres e não apontar para interseccionalidade dessa categoria
com a questão racial. Nas Américas, a população de ascendência africana excede 150 milhões
de pessoas - um número que é aproximadamente igual a 30% da população total - e está entre
os grupos mais empobrecidos do continente135.
No Brasil, um fator importante dessa desigualdade é que a composição racial da
população brasileira varia de acordo com a região, com os brancos predominando no Sul, uma
área de maior desenvolvimento econômico; e afrodescendentes no Norte. A situação das
mulheres afrodescendentes reflete a interseção das desigualdades raciais e de gênero, uma vez
que estão nos níveis educacional, ocupacional e de renda mais baixos. No Brasil, entre
trabalhadores assalariados domésticos, o percentual de mulheres afrodescendentes (18,6%)
excede a população branca de mulheres em 8 pontos percentuais. Além disso, a prevalência de
diferentes doenças é maior em mulheres afro-brasileiras136.
As dificuldades na titulação, uso e administração de terras de povos afrodescendentes
em vários países das Américas tiveram um forte impacto no gozo de direitos básicos, incluindo
o acesso a serviços mínimos para abastecimento de água, eletricidade e saneamento. Essas
limitações não podem ser esquecidas quando da caracterização dos principais grupos
vulneráveis e que encontram na mobilidade humana, seja ela voluntária ou forçada, uma
alternativa a ser considerada para sua possível melhora de vida.
A pobreza tem dois efeitos contraditórios sobre a migração de pessoas. Por um lado,
gera impulso para as pessoas migrarem, como estratégia de sobrevivência. Por outro lado,
também limita ou impede a capacidade de migração, dado que os custos associados à migração
são muito altos, particularmente se envolver a migração através de canais regulares. Nesse
sentido, a migração pode não ser uma opção disponível para pessoas em extrema pobreza.

134
OXFAM. Relatorio Tempo de cuidar: o trabalho de cuidado não remunerado e mal pago e a crise global da
desigualdade.2020. p.10 Disponível em: https://oxfam.org.br/justica-social-e-economica/forum-economico-de-
davos/tempo-de-cuidar/. Acesso em: 20 jan. 2020.
135
CIDH. Situación de las personas afrodescendientes en las Américas. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 62, 5 diciembre
2011. p. 17.
136
CEPAL. Panorama social de América Latina. 2015. p. 37.
85

Muitas vezes, a migração somente é possível quando há o seu financiamento, o que pode levar
a situações de endividamento, exploração ou de submissão a redes de contrabando de pessoas
ou tráfico de pessoas.
De toda forma, existe a tendência de vários Estados no Mundo no sentido de conter a
imigração pela implementação progressiva de políticas destinadas a restringir o direito à livre
circulação, como a solicitação de vistos de nacionais de países que não eram solicitados
anteriormente e também o fechamento e maior securitização de fronteiras137.
Sem tentar simplificar o fenômeno da globalização138, verifica-se que o atual processo
de internacionalização da economia, no qual os países possuem seus desenvolvimentos
econômicos condicionados aos ajustes estruturais orientados pelas instituições financeiras
multilaterais e pelo mercado de capital, percebe-se a concentração de recursos que tende a
aumentar consideravelmente, agravando as situações de desigualdade social e de
vulnerabilidade social, perpetuando mecanismos de discriminação e exclusão de amplos
segmentos da população.
No Brasil, segmentos historicamente excluídos e discriminados, como as mulheres,
afrodescendentes, indígenas, sofrem profundamente as consequências dessas desigualdades,
pois vivenciam diversos tipos de vulnerabilidades. Ademais, as bases que fundamentam as
elites da sociedade brasileira e a construção do estado brasileiro têm raízes no modelo patriarcal,
escravista e patrimonialista e qualquer tentativa de reconhecimento das mulheres como sujeitos
de direitos ainda é novo na história deste país139.
O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) criou, desde 1997,
dois índices para medir as diferenças por gênero: o Índice de Desenvolvimento por Gênero
(IDG) e o Índice de Poder por Gênero (IPG). O primeiro leva em conta as diferenças de

137
Uma tentativa recente que exemplifica essa tendência foi o quase fechamento das fronteiras brasileiras na
tentativa de impedir a entrada dos venezolanos que procuram escapar da condição de pobreza. AGENCIA
BRASIL. Roraima pede ao STF fechamento da fronteira com a Venezuela. 13/04/2018.
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-04/roraima-pede-ao-stf-que-determine-fechamento-da-
fronteira-com-venezuela. Acesso em: 30 abr. 2019.
138
Boaventura de Souza Santos afirma que a globalização consiste num conjunto de relações processuais que se
transformam e transformam a globalização. Não existe uma única entidade globalizante, existem várias
globalizações que se relacionam em feixes sociais, que tendem a envolver conflitos entre vencedores e vencidos.
Analisa que o Estado neoliberal é a instância de poder hegemônico enviado para se adequar às exigências do
modelo econômico globalizado. As formas contra-hegemônicas são aquelas relativas à democracia
participativa; ao multiculturalismo; à justiça e cidadania emancipatórias, e participações locais. SANTOS,
Boaventura Souza. Reinventando a democracia. Coimbra: Gradiva, Fundação Mario Soares, 1999. p. 4.
139
. Ver em: HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26. edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. 29. edição. Rio de Janeiro: Record, 1933. DA MATTA, Roberto. A casa & a rua: espaço, cidadania,
mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara. 1987. GIACOMINI, Sônia Maria. Mulher e escrava:
uma introdução histórica ao estudo da mulher negra no Brasil. Petrópolis: Vozes. 1988.
86

expectativa de vida, alfabetização, matrícula na escola e renda entre homens e mulheres; o


segundo mede a participação das mulheres na força de trabalho, nos cargos de chefia, na política
e em profissões técnicas. O relatório do PNUD de 1997 indicava que “nenhuma sociedade trata
suas mulheres tão bem quanto seus homens”. Corroborando a afirmação do relatório do PNUD
de 1997, verificou-se que, em 2018, a participação das mulheres na força de trabalho, ainda
apresenta discriminação entre homens e mulheres.
O PNUD ampliou o conceito de pobreza, desvinculando-o somente da questão de
consumo140. Hoje, fatores importantes são incluídos para a definição de pobreza, como o
analfabetismo, a falta de acesso a serviços básicos, a insegurança, o isolamento físico ou social,
a vulnerabilidade, a violência e doenças. A pobreza deve ser entendida como uma construção
econômica e cultural sustentada e consentida sistematicamente pelos países desenvolvidos, do
Norte Global, para melhor sustentar seus próprios modelos de desenvolvimento. A pobreza,
desde este contexto internacional, é uma opção política imposta141.
A pobreza, assim, pode ser definida como “a incapacidade de dirigir e orientar a própria
vida, a humilhação de se sentir impotente e vulnerável ao desespero e sem confiança em si
mesmo. A pobreza é [...] um estado de desamparo e vulnerabilidade.”142.
No grupo de países emergentes, como o Brasil, a desigualdade entre os gêneros é maior
que a da média mundial. Entre os homens, 76,1% estão no mercado, contra percentual de apenas
45,6% entre mulheres - diferença de 30,5 pontos percentuais143. Os dados do Relatório da OIT
apontam para a desigual relação na oportunidade de participação na força de trabalho entre
homens e mulheres no Mundo.
A estratificação de gênero enraizadas nas estruturas econômicas perpetua as
desigualdades de acesso ao trabalho, atestando o gênero como uma forma reiterada de
inferioridade.
Analisando esses dados - que não revelam a realidade massiva das mulheres brasileiras,
principalmente no que se refere aos índices de escolaridade -, mesmo as mulheres mais
qualificadas, que teriam as mesmas condições de capacidades laborais que os homens, são
discriminadas. A situação torna-se ainda mais penosa quando se considera, portanto, as

140
O Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD – 1997, traz um conceito amplo de pobreza: a pobreza
humana não enfoca o que as pessoas possuem ou deixam de possuir, mas o que podem ou não fazer – é a
privação das capacidades mais essenciais da vida.
141
SANTOS, Boaventura S. Descolonizar el saber, reinventar el poder. Uruguay: Ediciones Trilce. 2010.
142
PROYECTO ESPERANZA. El mundo de la trata. Coordinación Proyecto Esperanza. España. p. 46.
Disponível em: http://www.proyectoesperanza.org/pdf/trata/entero.pdf. Acesso em: 1 mar. 2018
143
ILO. Perspectivas sociais e de emprego no mundo: tendências para mulheres 2018. Resumo Executivo, 2018.
Disponível em: http://www.ilo.org/global/research/global-reports/weso/2018/WCMS_615674/lang--
es/index.htm. Acesso em: 10 out. 2019.
87

mulheres com menor grau de instrução, excluídas do mercado formal de trabalho, lançadas para
as piores formas de trabalho, submetidas às relações de exploração e de violência
Pesquisa do IBGE, 2016, com os principais destaques da evolução do mercado de
trabalho nas regiões metropolitanas (Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São
Paulo e Porto Alegre), entre 2003-2015, indica-se que o rendimento de trabalho das mulheres,
em 2015, estimado em R$ 1.927, continuava sendo inferior ao dos homens, estimado em R$
2.555. Ademais, comparando a média anual dos rendimentos dos homens e das mulheres,
verificou-se que, em média, as mulheres ganham em torno de 75,4% do rendimento recebido
pelos homens144.
As diferentes condições de desenvolvimento da força do trabalho das mulheres em
relação aos homens certamente aparecem como um fator relevante na construção dos
economicamente excluídos, reforçado pela manutenção cultural dessa realidade que se reverte
em estados de vulnerabilidade social das mulheres. Este fenômeno é conhecido como a
“feminização da pobreza”145.
O conceito “feminização da pobreza” se originou nos Estados Unidos da América, nos
anos de 1970, quando se discutia o surgimento de mães solo e sua relação com a assistência
social. Mais tarde passou a ser relacionado com o crescimento de famílias matrifocais ou
monoparentais146, bem como com a participação das mulheres nos setores de atividades
informais urbanas de baixa remuneração. Atualmente, por outro lado, esse conceito destaca: 1)
a maior incidência da pobreza e de sua severidade entre mulheres que entre homens; 2) à
tendência no aumento da pobreza entre mulheres pelo crescimento de domicílios
monoparentais; 3) a caracterização da pobreza feminina, atingindo essencialmente as mulheres
dos países em desenvolvimento.147.

144
IBGE. Principais destaques da evolução do mercado de trabalho nas regiões metropolitanas abrangidas
pela pesquisa Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre (2003-2015).
Disponível em: ftp://ftp.ibge.gov.br/Trabalho_e_Rendimento/Pesquisa_Mensal_de_Emprego/Evolucao_
Mercado_Trabalho/retrospectiva2003_2015.pdf. Acesso em: 20 jan. 2019.
145
MELO, Mônica de; MASSULA, Letícia. Tráfico de mulheres: prevenção, punição e proteção. São Paulo: BH
Gráfica. Realização CLADEM e Consulado Geral dos Estados Unidos em São Paulo, 2003.
146
Matrifocalidade é um conceito que qualifica um grupo doméstico centrado na mãe, estando o pai
frequentemente ausente ou detendo apenas um papel secundário. Gonzalez define que a família matrifocal
apresenta as seguintes características: 1 – a mãe é a figura estável, e as outras pessoas do grupo doméstico
funcionam ao seu redor; 2 – a maioria dos contatos dos membros da família se realiza com parentes
matrilaterais; 3 – as mulheres têm o poder de decidir sobre as crianças e a casa. GONZALEZ, Nancie. Toward
a definition of matrifocality. In: WHITEN JR. & SZWED, J. (ed.) Afro-american anthropology. Free Press
and Collier Macmillan: New York London, 1970, apud ZARUR George. Repensando o conceito de
matrifocalidade.
147
NOVELLINO, Maria Salet F. Os estudos sobre feminização da pobreza e políticas públicas para mulheres,
2004. Disponível em: http://www.abep.org.br/publicacoes/index.php/anais/article/viewFile/ 1304/1268.
Acesso em: 10 abr. 2019.
88

Esse conceito também tem sido utilizado associado ao processo de globalização e


destaca: 1) que existe maior incidência de pobreza entre mulheres que entre homens; 2) que a
pobreza é mais severa entre mulheres que entre homens; 3) que existe uma tendência ao
aumento da pobreza entre mulheres, associada, particularmente ao crescimento das taxas de
domicílios com chefes mulheres148.
Essa realidade pode indicar algumas das motivações que levam pessoas, principalmente
mulheres, a procurarem melhores condições de sobrevivência e de condições de vida, ficando
sujeitas às situações de vulnerabilidade e violência. As vulnerabilidades às quais estão
submetidas as pessoas, as coloca em diversas situações de risco e de exploração por parte de
redes de atores que se aproveitam dessas pessoas.
No século XXI, a perspectiva de gênero é fundamental quando se interpreta o fenômeno
social das migrações, sejam elas livres ou forçadas, uma vez que esses fluxos migratórios se
tornam mais complexos na medida em que se contornam mais dinâmicos pela circulação do
capital internacional e da nova divisão internacional do trabalho. A perspectiva das migrações
femininas é relevante para compreender as migrações contemporâneas.
Importante destacar também que a pobreza é fundante na caracterização de complexas
e diversas vulnerabilidades dos grupos potenciais ao tráfico de pessoas, em especial mulheres
e meninas. Porém, quando falamos do tráfico internacional de mulheres, os perfis das mulheres
efetivamente vítimas brasileiras para a Espanha, são de fato as que estão na linha da pobreza
descrita aqui? Essas mulheres são as mais pobres? Quem são elas? Se não são, o que essa
discussão da pobreza tem a ver com essas mulheres?
No capítulo 2 identificar-se-á os perfis das mulheres vítimas de tráfico para a Espanha.
Porém, é importante que se ressalte que as mulheres brasileiras vítimas de tráfico não se
caracterizam, no geral, como sendo as mulheres descritas no perfil de pobreza aqui descritos.
A pobreza, nestes casos, se apresenta muito mais como geradora de ausência de oportunidades,
de uma ausência do usufruto de direitos, de condições para uma vida plena, que impulsiona
estas mulheres a partir em busca de algo melhor, algo mais.
A violência de gênero é uma manifestação de relações de poder historicamente desiguais
entre homens e mulheres, em que a subordinação não implica na ausência absoluta de poder.
Geralmente está associado a algum tipo de agressão, seja através de ameaças, ofensas, lesões
físicas, abusos, violações, entre outros.

148
BRIDGE. Briefing paper on the ‘feminisation of poverty’. Institute of Development Studies. 2001.
Disponível em: http://www.bridge.ids.ac.uk/sites/bridge.ids.ac.uk/files/reports/femofpov.pdf. Acesso em: 10
abr. 2019.
89

Constitui uma das violações dos Direitos Humanos e um problema de saúde pública
global. Caracteriza-se como uma violência que silencia, racionaliza, nega e não é aceita pelos
indivíduos e pela sociedade149.
Diversos fatores estruturais e simbólicos são os fundamentos da violência de gênero. É
fundamental observar que a dependência social, econômica, afetiva, a falta de oportunidades e
de equidade no mundo do trabalho são condições que intensificam a situação de vulnerabilidade
e impedem a quebra dos ciclos intergeracionais de violência contra a mulher.
O gênero é uma categoria de análise que permite distinguir e separar o biológico,
atribuído ao sexo, do cultural, determinado pelo gênero, e por meio do qual funções,
responsabilidades e oportunidades são conferidas a homens e mulheres.
Nesse sentido, gênero é uma construção discursiva e cultural dos sexos biológicos.
“‘Gênero’ é um termo usado para analisar os papéis “masculino” e “feminino” que se tornaram
hegemônicos. A aparência de homem e mulher está profundamente ligada a regas de
comportamento. Somos controlados social e domesticamente desde que fomos “generificados”
[...].” Assim, as relações de gênero são "construções sociais" que mudam de uma sociedade
para outra no decorrer do tempo, sendo assim caracterizadas por serem suscetíveis à
modificação, reinterpretação e construção150.
Utilizar a categoria de gênero como análise permite entender a relação de
subordinação e dominação entre homens e mulheres. A desigual distribuição
de poder entre os sexos influencia a forma como homens e mulheres podem
desenvolver suas habilidades pessoais, profissionais e sociais151 (tradução
nossa).

O gênero é uma dimensão central da vida pessoal, das relações sociais e da


cultura. É um cenário em que nos deparamos com questões práticas difíceis
sobre justiça, identidade e até sobrevivência152 (tradução nossa).

149
CASTILHO, Elizabeth. Feminicidio: mujeres que mueren por violência intrafamiliar em Colombia. Bogotá:
Profamilia, 2007. p. 18.
150
SCOTT, J. W. Gender: A useful category of historical analysis. The American Historical Review, v. 91, n. 5,
1986. Disponível em: http://www.jstor.org/discover/10.2307/1864376?uid=3737664&uid=2&uid=
4&sid=21104752748101. Acesso em: 8 ago. 2019.
151
GARCÍA, Mª Ángeles Briñón. Una visión de género...es de justicia. Ayuda en Acción, Entreculturas e
InteRed. 2007. Disponível em: https://www.entreculturas.org/sites/default/files/una_vision_de_
genero.es_de_justicia.pdf. Acesso em: 2 ago. 2019. “Utilizar la categoría de género como análisis permite
entender la relación de subordinación y dominación entre hombres y mujeres. La distribución desigual de
poder entre los sexos influye en la manera en que los hombres y las mujeres pueden desarrollar sus habilidades
personales, profesionales y sociales”
152
CONNEL, Raewyn; PEARSE, Rebbeca. Gênero uma perspectiva Global: compreendendo o gênero – da
esfera pessoal à política – no Mundo contemporâneo. São Paulo: Versos, 2015.p. 25. “El género es una
dimensión central de la vida personal, de las relaciones sociales y de la cultura. Es un escenario en el que nos
enfrentamos a cuestiones prácticas difíciles con respecto a la justicia, identidad, e incluso la supervivencia.”
90

Discutir os conceitos de "sexo" e "gênero" permite compreender a violência contra a


mulher como um fenômeno histórico, fruto de relações de desigualdade de gênero socialmente
construídas. Nesse sentido, a violência contra as mulheres é um fenômeno histórico, resultado
das relações de desigualdade de gênero, juntamente com as desigualdades de classe, raça e
sexualidade. Você não pode analisar as relações de gênero sem compreendê-las em seu contexto
histórico, econômico e social.
Devido à violência contra as mulheres ser um fenômeno essencial para a
desigualdade de gênero, não é apenas um produto social, como é o fundamento
dessa sociedade patriarcal, baseada em relações de dominação e submissão.
Não pode ser entendido, portanto, apenas como violência física, mas como
uma ruptura de qualquer forma de integridade das mulheres: física,
psicológica, sexual, moral, independente do ambiente em que ocorre, tanto no
espaço público quanto no privado153.

A violência de gênero é assim entendida como todo comportamento que causa violência
a uma pessoa por causa de seu gênero. Seu exercício é realizado com o objetivo de intimidar,
humilhar, tomar decisões e decidir sobre sua sexualidade e integridade pessoal. É qualquer ação
ou conduta, baseada em seu gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou
psicológico, tanto no público quanto no privado.
A discussão de gênero é fundamental para compreender o fenômeno do tráfico de
pessoas, principalmente quando falamos das vítimas mulheres.
A coisificação das mulheres por meio da exploração do sexo é uma forma de violência
de gênero. Utiliza-se a mulher como objeto, como se ela pudesse ser transformada em objeto e
porque ela é entendida como algo que pode ser apropriado, geralmente, por um homem.
O gênero influi diretamente na finalidade de uma das modalidades do tráfico de pessoas.
Enquanto mulheres são mais traficadas para fins de exploração sexual comercial, homens o são
com a finalidade de realizar trabalho escravo ou análogo à escravidão. Isso se dá, em parte,
pelas desigualdades de gênero existentes que entendem as mulheres como objetos consumíveis,
sem dignidade e direitos. Para além “[...] de toda a situação concreta de violação de direitos que
essas vítimas experienciam, elas ainda são destituídas de sua possibilidade de desejar. Elas não
têm vontades ou desejos, mas são apenas, literalmente, objetos de desejo. 154 E ainda, “É como
se, de modo geral, a mulher não fosse pensada a partir de si, mas em comparação ao homem. É
como se a mulher não fosse definida em si mesma, mas em relação ao homem e através do olhar

153
CUNHA, Barbara Madruga. Violência contra a mulher, direito e patriarcado: perspectivas de combate à
violência de gênero. 2014. Disponível em: http://www.direito.ufpr.br/portal/wp-content/uploads/2014/12/
Artigo-B%C3%A1rbara-Cunha-classificado-em-7%C2%BA-lugar.pdf. Acesso em: 17 mar. 2019.
154
GONÇALVES, Tamara A. Tráfico de meninas e mulheres para fins de exploração sexual: uma problemática
que extrapola divisas nacionais. In: BRASIL. Secretaria Nacional de Justiça. Tráfico de pessoas: uma
abordagem para os direitos humanos. Brasília, DF: Ministério da Justiça, 2013. p. 254.
91

do homem. Olhar este que a confina num papel de submissão que comporta significações
hierarquizadas.”155.
Para compreender e responder a pergunta se uma mulher determinada é vítima de
tráfico, pode ser importante incorporar o entendimento do conceito de interseccionalidade. Esse
conceito foi introduzido por Crenshaw para argumentar que gênero e raça interagem e definem
juntas uma situação particular de desvantagem social156. Esclarece que não se trata de somar as
desigualdades, mas de verificar como cada uma delas se intersecciona de forma diferente em
cada situação pessoal e no grupo social mostrando estruturas de poder existentes no seio da
sociedade. A evolução desse conceito permite perceber que as desigualdades são produzidas
pelas intersecções entre os mais variados sistemas de subordinação, entre eles, de raça, gênero,
etnia, orientação sexual, religião, “deficiência”, lugar de origem, situação econômica, etc.; e,
permite analisar como esses sistemas se retroalimentam gerando subordinação, favorecendo na
criação, manutenção e reforço das desigualdades formais e informais, que levam a diferentes
formas de perceber e visualizar as situações de vulnerabilidade que podem levar a uma situação
de tráfico de pessoas157.

1.4 O Mercado, as Mulheres, a Prostituição e o Tráfico de Pessoas

A precariedade nas condições de sobrevivência e no acesso a recursos provenientes do


trabalho leva homens e mulheres, em diversos contextos sociais e culturais, a se deslocarem
para locais onde, potencialmente, podem encontrar melhores oportunidades de trabalho, de
vida. Nesses contextos migratórios, a prostituição pode ser vista como uma atividade associada
a essas estratégias.
Não se tem a intenção de se debruçar sobre as correntes de pesquisa que apontam para
a possibilidade ou não de se considerar a prostituição como uma atividade laboral. Longe de
qualquer avaliação simplistas, estudos apontam que a prostituição, em muitos casos, está
associada a uma estratégia migratória, que pode ou não, estar vinculada ao tráfico de pessoas.

155
RIBEIRO, Djalmila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento:Justificando, 2017. p. 36.
156
CRENSHAW, K. demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of
antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. University of Chicago Legal Forum, v.
189, n. 1, p. 139-167, 1989. Disponível em: https://chicagounbound.uchicago.edu/cgi/viewcontent.cgi?
article=1052ycontext=uclf. Acesso em: 10 maio 2020.
157
SILVA Correa, Waldimeiry. La Interseccionalidad en la Trata de Seres Humanos: Un encuentro necesario para
el enfoque de Derechos Humanos. In: CORDERO RAMOS, N.; CRUZ ZUÑIGA, P. (org.). Trata De
Personas, Género Y Migraciones En Andalucía (España), Costa Rica Y Marruecos: retos y propuestas
para la defensa y garantía de los derechos humanos. Madrid: Dykinson editorial, 2019. p. 37 -38.
92

Assim, pode-se dizer que nem sempre a prostituição vinculada a migração é tráfico de pessoas,
mesmo que esta seja uma corrente defendida por algumas correntes feministas e por discursos
políticos principalmente de países de destino158. Para esta pesquisa, não cabe discutir
prostituição livre, mas analisar o tráfico de pessoas para fins de exploração.
Muitas vezes o processo em que ocorre essa busca de oportunidades apanha,
recorrentemente, os indivíduos em situação de vulnerabilidade e com poucas possibilidades de
negociar as condições em que vão desenvolver atividades laborais. Ademais, a necessidade de
garantir a sua sobrevivência, e, em muitos casos, de suas famílias, pode levar a mulher a se
prostituir em condições bastante vulneráveis e de exploração.
Se em muitos casos a opção pela atividade da prostituição já decorre, por si, de uma
situação de precariedade econômica e de ausência de expectativas estáveis, quando ela se insere
em processo migratório forçado ou em situação de irregularidade, culmina, na degradação da
sobrevivência e de dignidade, que se encontra submergido a mecanismos de opressão e a
práticas de violência física e psicológica.
Sabendo do tensionamento existente na discussão sobre as posições a favor do exercício
da prostituição como atividade laboral livre e da posição contra o exercício da prostituição como
uma atividade laboral por fundar-se na exploração da pessoa, destaca-se o posicionamento de
Bindel, quando aponta que “A descriminalização do comércio sexual beneficia proxenetas e
donos de bordéis, não mulheres. Abolição é a única solução progressiva”, argumentando que
seus estudos têm indicado que as experiências de legalização da prostituição como na Holanda
e na Suécia, onde a lei que criminaliza a demanda e descriminaliza aqueles que vendem sexo
(desde 1999) não tem diminuído as vulnerabilidades das mulheres.
O que acontece quando o argumento da legalização ganha é mostrado na
Holanda na última década. (...P "Dois terços das prostitutas são estrangeiros,
na maioria das vezes ilegais, e ninguém os registra." O ex-prefeito de
Amsterdã, Job Cohen, disse que a legalização não conseguiu remover o crime
organizado do comércio sexual e que ele esperava "reverter parcialmente" a
legislação159 (tradução nossa).

Outra análise interessante sobre a associação do controle da prostituição no decorrer do


século XX, juntamente com a relevância dos fluxos migratórios nos é dada por Ebe Campinha

158
RIOPEDRE, José López. Inmigración colombiana y brasileña y prostitución femenina en la ciudad de
Lugo: historias de vida de mujeres que ejercen la prostitución en pisos de contactos. Tese (Doutorado) - UNED,
2010.
159
BINDEL, Julie. Why prostitution should never be legalised. The Guardian, 11/10/2019. Disponível em:
https://www.theguardian.com/commentisfree/2017/oct/11/prostitution-legalised-sex-trade-pimps-women.
Acesso em: 17 abr. 2018. “What happens when the legalisation argument wins is shown in the Netherlands
over the past decade. Just three years after the law there was changed, the government began closing down
street prostitution zones and restricting the number of “window brothel” licences.”
93

O termo “escravidão branca” serviu, precisamente, para, nas décadas finais do


século XIX, sustentar as campanhas de denúncia contra aquelas condições a
que grupos de indivíduos encontravam-se sujeitos na sequência de processos
migratórios da Europa para as Américas e, sobretudo, dentro dos Estados
Unidos.
[...] Alegavam as vozes regulacionistas, de mulheres e homens da classe
média, que o trânsito de prostitutas entre o velho e o novo mundo estava a
propiciar o aumento da quantidade de mulheres que se dedicavam à
prostituição, e, com isso, o aumento da quantidade de homens que buscavam
“fora de casa” novas experiências sexuais, ocasionando um cenário de
promiscuidade generalizada e de propagação de doenças. Também, o termo
“escravas brancas” associava-se à ideia repugnante de mulheres brancas que
vendem seu corpo a homens não brancos naqueles locais distantes. Tratava-
se, aliás, de problematizar a prostituição a partir de antigas posturas morais e
religiosas que encontraram, no período higienista oitocentista, argumentos
cientificamente sustentados para proceder à limpeza social160.

Para o regulacionismo, a atividade da prostituição, deveria ser, sanitariamente regulada


e controlada, obrigando as mulheres prostitutas a submeterem-se a exames médicos que
atestassem a sua aptidão sanitária, bem como deveria proceder-se à inspeção dos bordeis161.
Esse caráter sanitário escondia o que estava implícito: o caráter culposo e desviante dos bons
costumes que se associava às mulheres prostitutas, sempre de classe mais desfavorecida, o que
fazia subentender uma campanha de pureza social.
O tema da “escravidão branca”, ou fenômeno de tráfico que lhe é associado, só reaparece
com certa relevância nos fóruns internacionais durante os anos de 1980. Ele ressurge
[...] com a denominação de ‘tráfico de mulheres’, agora inserido na agenda
política dos movimentos feministas, das organizações de direitos humanos,
grupos cívicos e religiosos, entre outros, com âmbitos de incidência em nível
local, regional e internacional. Embora, inicialmente, tivesse associado à
noção de ‘tráfego’ – traffic –, com base no trânsito de prostitutas da América
Latina e da Ásia para a Europa Ocidental, o fenômeno passa a assumir o
caráter de ‘tráfico’ – trafficking – a partir do significativo fluxo, organizado e
sistemático, de contingentes de mulheres da Europa de Leste, nomeadamente
da Rússia, Ucrânia e Romênia, com destino à Europa Ocidental, Estados
Unidos e Ásia162.

É perceptível, pela análise feita pela pesquisadora Campinha, como a perseguição à


prostituição, pelas mais variadas perspectivas, foi incorporada à contenção das migrações com
finalidade de prostituição. Também se justifica o controle migratório das mulheres que exercem
prostituição por entendê-las vulneráveis, sem condições de decidir o que desejam fazer de suas
vidas e de seus corpos, justificando, muitas vezes, o enfoque de securitização e controles

160
SANTOS, Ebe Campinha. Trafico e gênero: a moralização do deslocamento feminino. Tese de Doutorado
apresentada ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social da PUC-Rio. 2012. Disponível em:
https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/21456/21456.PDF. Acesso em: 20 jun. 2019.
161
Essas práticas se enquadram na lógica da “ciência da sexualidade”, explicitada por Michel Foucault (1988).
162
Id.
94

migratórios com a finalidade de salvar/cuidar/proteger essas mulheres vulneráveis, vítimas,


frágeis das redes criminosas163.
Esse argumento será mais desenvolvido posteriormente, na análise da Convenção contra
o Crime Transnacional e, especificamente, o Protocolo de Palermo, a partir da escolha do tráfico
de pessoas como uma das categorias a serem combatidas, principalmente com a finalidade da
exploração sexual.
No proximo capitulo, compreende-se o fenomeno do tráfico de pessoas, principalmente
mulheres. Como se sabe, o tráfico de pessoas é considerado um fenômeno invisível, de difícil
identificação e consequentemente de quantificação.

163
ARADAU, Claudia. Rethinking trafficking in women politics out of security. New York: Palgrave
Macmillan, 2008.
95

CAPÍTULO 2 - O FENÔMENO SOCIAL DO TRÁFICO INTERNACIONAL DE


PESSOAS: PERSPECTIVAS A PARTIR DO TRÁFICO DE MULHERES

Sou poeta destruidora de alienação


Saudando minha ancestralidade
Combatente, militante contra a padronização.
Que diz que só a loira é bonita
E que o feio está em mim
Enganou-se, pois, sou descendente de Zumbi
Resistente que nem Anastásia
Liderança feito Dandara.
(Elizandra Souza)

O fenômeno do tráfico de pessoas164 é considerado uma das piores violações dos direitos
humanos, como uma forma de escravidão contemporânea. Entende-se que o tráfico de pessoas
as submete à condição de exploração e, muitas vezes, submetendo-as à condição de escravos.
Deslocam-se pessoas, enganando-as ou aproveitando-se da sua condição vulnerável para as
explorar em alguma atividade rentável.
Trata-se de fenômeno social que envolve o deslocamento de pessoas através do engano,
da coerção ou do aproveitamento de sua condição de vulnerabilidade social, com a intenção de
a explorar no destino final e obter benefício financeiro. Essa exploração pode ser, no mínimo,
sexual, trabalho forçado, casamento forçado, extração de órgãos e mendicidade.
A finalidade do tráfico é a exploração da pessoa em alguma atividade que permita lucro
àquele que a trafica. O tráfico de pessoas está incorporado no tratamento dos seres humanos
como propriedade, e isso não é novo. Desde a antiguidade, o tráfico continua a representar um
problema para quem trabalha no Sistema Internacional e nas áreas regulatórias internas. A reificação ou
coisificação do ser humano continua a representar um problema para a lei em todo o mundo 165.
Neste capítulo, discutir-se-á criticamente o fenômeno do tráfico de pessoas a partir dos
números de vítimas apresentadas pelas principais organizações internacionais
intergovernamentais e não governamentais que atuam nessa temática. Como se sabe, esse tipo
de tráfico é considerado um fenômeno invisível, de difícil identificação, e consequentemente
de quantificação. Diferentemente do tráfico de armas e drogas, em que a materialidade do crime
se verifica pelas armas e pelas drogas, no tráfico de pessoas, a materialidade é a própria pessoa,
ficando bastante dificultada a identificação dessa materialidade.

164
Também denominado tráfico de seres humanos (TSH).
165
CARBALLO, Marta de la Riva. Trata de Personas: consideraciones históricas y jurídicas: Estructuras,
institución y sistemas de explotación” Tesis Doctoral. 2017. p. 33.
96

A Agência das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC)166 apresenta


anualmente relatórios sobre a situação do tráfico de pessoas no mundo. Esses relatórios
permitem que os dados, perfis das vítimas, dos traficantes e tendências do fenômeno sejam
analisados. Segundo o relatório de 2016, um total de 63.251 vítimas foram detectadas em 106
países, entre 2012 e 2014. Com base nesse relatório, 17.752 vítimas detectadas em 85 países
em 2014, das quais sexo e idade foram relatados, e uma clara maioria era do sexo feminino -
mulheres e meninas - compreendendo cerca de 70% do número total de vítimas detectadas167.
As mulheres representam 51% das vítimas identificadas, principalmente para a
finalidade de exploração sexual, mas também para casamentos simulados ou forçados,
mendicância, exploração do trabalho doméstico, trabalho forçado na agricultura ou
alimentação, em fábricas de vestuário e para remoção de órgãos168.
O relatório aponta, de 2012 a 2014, que 23 mil vítimas de exploração sexual são, na sua
maioria, do sexo feminino. Os homens traficados para exploração sexual estão concentrados na
Europa Ocidental e nas Américas. Durante o mesmo período, as mulheres também foram
responsáveis por 37% do número de vítimas detectadas traficadas para trabalho forçado. Em
algumas partes do mundo, como a Ásia Oriental, as mulheres são a maioria das vítimas
detectadas, e traficadas para trabalho forçado. Grande parte desse tráfico tem a forma de
servidão doméstica. Os infratores podem ser membros da família, casais agindo juntos ou
indivíduos que atraem vítimas do exterior com a promessa de uma vida melhor169.
O mesmo relatório da UNODC, do ano 2018, apontou que a maioria das vítimas
detectadas em todo o mundo é do sexo feminino, principalmente mulheres adultas, mas
também, cada vez mais, meninas. Mais de 51% das vítimas de tráfico detectadas para
exploração sexual são do sexo feminino, e 35% das vítimas traficadas para trabalho forçado
também são mulheres e garotas. Ao mesmo tempo, mais da metade das vítimas de tráfico para

166
O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) é o escritório líder mundial na luta contra as
drogas ilícitas e o crime organizado transnacional. Foi fundado em 1997, quando os Programas das Nações
Unidas para o Controle Internacional de Drogas (UNDCP), juntamente com o Centro de Prevenção ao Crime
Internacional, estabeleceram o Escritório das Nações Unidas para o Controle de Drogas e Prevenção do Crime
(ODCCP). Posteriormente, em 15 de março de 2004, foi criado um escritório com personalidade jurídica
própria e com poderes legais. Através do boletim STSGB / 2004/6, emitido pelo Secretariado Geral das Nações
Unidas, foi criado o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). O UNODC tem o mandato
de ajudar os Estados membros em sua luta contra as drogas ilícitas, o crime e o terrorismo. Na Declaração do
Milênio, os Estados membros também decidiram intensificar o combate à criminalidade organizada
transnacional em todas as suas dimensões, redobrar esforços para implementar o compromisso de combater o
problema mundial das drogas e empreender uma ação concertada contra o terrorismo internacional.
167
Global Report on Trafficking in Persons – United Nation Office of Drugs and Crime, 2016. Disponível em:
https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/glotip/2016_Global_Report_on_Trafficking_in_
Persons. pdf. Acesso em: 10 jan. 2020.
168
Id.
169
Id.
97

trabalho forçado são homens. Outro dado interessante revelado nesse relatório de 2018 é que a
maioria das vítimas detectadas globalmente é traficada para exploração sexual, embora esse
padrão não esteja presente em todas as regiões. Tráfico de mulheres - mulheres e meninas - para
a exploração sexual prevalece nas Américas, Europa, Extremo Oriente e Pacífico, enquanto na
América Central e no Caribe predominam mais meninas e adolescentes170.
A Organização Internacional de Migrações (OIM) aponta que desde 1994, quando
iniciou as primeiras abordagens de combate ao tráfico de pessoas, até o final de 2016, já havia
atendido mais de 90.000 pessoas traficadas no mundo. Os programas de combate ao tráfico da
OIM fornecem uma fonte única de dados sobre o tráfico que é de âmbito internacional, por
meio da coleta de informações obtidas diretamente das vítimas de que foram assistidas pela
OIM171.

Gráfico 1. Modalidades de exploração por sexo

Fonte: OIM Dataview. Disponível em: https://www.ctdatacollaborative.org/iom-data-overview. Acesso em: 10


jan. 2020.

Em análise do Relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) Global


Estimates of Modern Slavery172 (2017), estimou-se que 40,3 milhões de pessoas foram vítimas
da escravidão moderna em 2016, ou seja, mais de 40 milhões de homens, mulheres e crianças

170
Ibid., p. 10.
171
O Counter-Trafficking Data Collaborative (CTDC) serve como um repositório central de informações críticas
sobre tráfico humano. Publica dados padronizados e harmonizados de várias organizações usando um esquema
unificado em seu conjunto de dados global. O CTDC facilita um nível incomparável de análise interagências e
transfronteiriça e fornece ao movimento de combate ao tráfico uma compreensão verdadeiramente profunda
desta questão complexa. Equipado com informações atualizadas e confiáveis, os tomadores de decisão têm o
poder de desenvolver e implementar intervenções direcionadas. Ver em: OIM. Disponível em: https://www.
ctdatacollaborative.org/iom-data-overview. Acesso em: 10 jan. 2020.
172
ILO. Global estimates of modern slavery, 2017. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/
groups/public/@dgreports/@dcomm/documents/publication/wcms_575479.pdf. Acesso em: 10 jan. 2020
98

que estavam sendo forçados a trabalhar contra a vontade, sob ameaça, ou estavam vivendo em
um casamento forçado173. Dessas pessoas, 24,9 milhões estavam em trabalhos forçados sob
ameaça ou coerção, como trabalhadores domésticos, em construções locais, fábricas
clandestinas, fazendas e barcos de pesca, em outros setores e na indústria do sexo; 15,4 milhões
de pessoas viviam em um casamento forçado para o qual não deu consentimento174.
O relatório também aponta que mulheres e meninas são desproporcionalmente afetadas
pela escravidão moderna, contabilizando 28,7 milhões ou 71% do total geral. Mais
precisamente, mulheres e meninas representam 99% das vítimas de trabalho forçado na
indústria do sexo comercial. Uma em cada quatro vítimas da escravidão moderna era criança.
Cerca de 37% (5,7 milhões) daqueles forçados a casar eram crianças. Crianças representam
18% das pessoas submetidas a exploração de trabalho forçado, e 21% das vítimas de exploração
sexual comercial. Nos últimos cinco anos, 89 milhões de pessoas experimentaram alguma
forma de escravidão moderna, por períodos de tempo variando de alguns dias até cinco anos. O
tempo médio de duração das vítimas no trabalho forçado oscilou de alguns dias ou semanas a
até quase dois anos175.
O mesmo relatório da OIT assinala que acabar com a escravidão moderna exigirá uma
resposta multifacetada, que aborda a matriz de forças - econômica, social, cultural e legal - que
contribuem para a vulnerabilidade e permitem abusos. Ademais, não se pode falar de uma
solução de tamanho único. Respostas precisam ser adaptadas aos ambientes diversos nos quais
a escravidão ocorre.
Nesse mesmo sentido, Marta Carballo destaca a necessidade de respostas transnacionais
do fenômeno. O tráfico de pessoas é a nova escravidão contemporânea, e não tem outro
propósito senão contribuir para a acumulação de capital. Nessa acepção, a economia de
mercado atual facilita e estimula a existência do tráfico, transformando pessoas em objetos ou
bens altamente lucrativos. O tráfico de pessoas atinge todos os países, sejam de origem de
vítimas, de trânsito ou de destino, e é um crime de natureza regional e interna. Essa
complexidade exige uma abordagem transnacional do fenômeno176.

173
Importante destacar que a OIT tem como vocação a temática do trabalho e suas formas de exploração. Nesse
sentido, a OIT tem um olhar sobre as piores formas de trabalho, que são consideradas finalidades da exploração
que leva ao tráfico de pessoas. Sejam elas, o trabalho forçado, casamento forçado, exploração sexual de
pessoas.
174
ILO. Global Estimates of Modern Slavery, 2017. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/
@dgreports/@dcomm/documents/publication/wcms_575479.pdf. Acesso em: 10 jan. 2020.
175
Id.
176
CARBALLO, Marta de la Riva. Trata de Personas: consideraciones históricas y jurídicas: Estructuras,
institución y sistemas de explotación. Tese Doutorado Universidad de Alcalá (Espanha). 2017. p. 50.
99

Mulheres e meninas representaram mais de 99% de todas as vítimas de exploração


sexual forçada. Mais de 70% das vítimas de abuso sexual e exploração encontravam-se na Ásia
e na Região do Pacífico, seguida pela Europa e Ásia Central (14%), África (8%), Américas
(4%) e Estados Árabes (1%)177.
Mais de 1 milhão das vítimas de exploração sexual forçada (21% de todas as vítimas)
tinham até 18 anos. Importante destacar que, de acordo com a Convenção sobre as Piores
Formas de Trabalho Infantil da OIT (1999), todas as crianças encontradas em qualquer tipo de
exploração sexual são consideradas vítimas de exploração sexual comercial 178.
Certamente, gera um incômodo verificar as disparidades das estimativas de vítimas
informadas nos relatórios internacionais. O Relatório da Organização das Nações Unidas para
Drogas e Crime (UNODC) Trafficking in Persons: Global Patterns, 2006, já apontava esse
aspecto, inclusive ressaltando que as metodologias utilizadas para calcular esses dados são
poucas vezes informadas. O relatório ainda esclarece que não é essencial a quantificação do
número de vítimas traficadas para justificar uma ação em resposta a essa problemática179.
A organização não governamental Global Alliance Against Trafficking in Women
(GAATW) realizou pesquisa de âmbito internacional sobre o tráfico de mulheres, a pedido do
Relator Especial da ONU sobre a Violência Contra as Mulheres (Special Rapporteur on
Violence Against Women), e realçou que encontrar estatísticas confiáveis sobre a extensão do
tráfico era praticamente impossível, devido à ausência de pesquisas sistemáticas e à falta de
“definição precisa, coerente e inequívoca do fenômeno e da ilegalidade ou natureza criminal do
tráfico e da prostituição.”180.
Crítica interessante aparece em texto publicado na Revista Pagu, que remete à
necessidade da explicitação da metodologia e dos conceitos utilizados para a discussão de
eventuais dados estatísticos levantados sobre o tráfico de pessoas, uma vez que “os motivos que

177
Os dados do Relatório relativos à exploração sexual se referem a pessoas, inclui mulheres e homens que
involuntariamente entraram em uma forma de comercial exploração sexual ou que tenham entrado
voluntariamente, mas não podem sair. Inclui também todas as formas de exploração sexual comercial
envolvendo crianças. OIT, Global estimates of modern slavery, 2017. p. 39. Disponível em: http://
www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/@dgreports/@dcomm/documents/publication/wcms_575479.pdf.
Acesso em: 5 jan. 2020.
178
Convenção 182 da OIT. Ratificada pelo Brasil em 12/09/2000. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/decreto/d3597.htm. Acesso em: 5 mar. 2019.
179
Relatório da UNODC Trafficking in Persons: Global Patterns. Disponível em: http://www.unodc.org/
pdf/traffickinginpersons_report_2006ver2.pdf. p. 45. Acesso em: 15 mar. 2019.
180
WEIJERS, M. LAP-CHEW, L. Trafficking in women, forced labour and slavery-like practices. In:
MARRIAGE, domestic labour and prostitution, Utrecht and Bangkok: The Foundation Against Trafficking in
Women (STV)/The Global Alliance Against Trafficking in Women (GAATW). 1997. Disponível em: http://
lastradainternational.org/lsidocs/1137-Trafficking%20in%20women%20Wijers-Lap%20Chew.pdf. Acesso
em: 15 jan. 2020.
100

levam um indivíduo a se prostituir, imigrar ou tentar combinar as atividades são complexos e


multifacetados e não podem ser resumidos em conceitos – caros à ciência social, mas quase
nunca encontrados de forma pura e isolados da vida real.”181.
Não raro, as estatísticas disponíveis sobre o número de vítimas de tráfico de pessoas se
referem à quantidade de “trabalhadoras do sexo” migrantes ou domésticas, o que não configura,
necessariamente, situações de tráfico de pessoas, dado que algumas já poderiam exercer a
atividade antes do fluxo migratório, e mesmo deslocadas não se caracterizar como vítimas de
tráfico. Nessa linha de argumentação, os números alarmantes de pessoas traficadas divulgados
por órgãos internacionais, sem explicitar a metodologia utilizada para a obtenção dessa
informação, aponta para o perigo da criação de políticas ineficientes e inadequadas, a partir de
dados imprecisos e não confiáveis. A dificuldade de se obterem dados confiáveis sobre o
fenômeno do tráfico de pessoas prejudica de várias maneiras a intervenção por meio de políticas
públicas, conforme explicitado abaixo:

Os números sobre o tráfico sexual, seja a nível nacional, continental ou


mundial, dificilmente são sólidos e fiáveis, o que tem conduzido a duas
posições que, por serem extremadas, efetivamente pouco podem ajudar as
mulheres traficadas. Cada organização internacional presenteia‑nos com
números que podem divergir em milhares ou em milhões. Por um lado, temos
instâncias que fazem referência a números muito elevados; por outro, aquelas
que contestam esses números e que entendem que o tráfico sexual é um
fenômeno residual. Ambas as posições comportam perigos. A primeira tem o
perigo de negar aquilo que é a autodeterminação das mulheres, assumindo
como tráfico situações de auxílio à imigração ilegal ou prostituição voluntária.
A segunda comporta o perigo de não ajudar as mulheres que estão realmente
em perigo182.

Muitas vezes, as narrativas que aparecem nos estudos relativos ao tráfico de pessoas, a
repetição de imagens de mulheres capturadas ajudam a construir um imaginário unificado e
sem muitos questionamentos, que reforçam estereótipos em relação à mulher que aparece como
o grupo mais vulnerável à ação das organizações criminosas, e que por isso o seu deslocamento
precisa ser tutelado pelo Estado183, com ações de contenção de pessoas, criação de visto e
negativas do mesmo, aumento de pessoas deportadas e controle das fronteiras, evitando a

181
BLANCHETTE, Thaddeus; LEITE, Gabriela S.; PINHEIRO, Anna Marina M. P.B. Prostitutas, “traficadas” e
pânicos morais: uma análise da produção de fatos em pesquisas sobre o tráfico de seres humanos. Cadernos
Pagu, Campinas, n. 25, p. 184, 2005.
182
SANTOS, B. de S.; GOMES, C.; DUARTE, M. Tráfico sexual de mulheres: representações sobre ilegalidade
e vitimação. Revista Crítica de Ciências Sociais, Lisboa, n. 87, p. 70, dez. 2009.
183
ADRIJASEVIC, R. Trafficking in women and the politics of mobility in Europe. Tese de Doutorado na
Universidade de Utrecht/ Países Baixos, 2004. Disponível em: http:// igiturarchive.library.uu.nl/
dissertations/2005-0314-013009/index.htm. Acesso em: 20 set. 2019.
101

migração de milhares de pessoas, em especial de países em desenvolvimento, em busca de


melhores oportunidades de trabalho e de vida, principalmente se esse deslocamento se der de
forma irregular. Discutir-se-á sobre a sobreposição entre as leis de enfrentamento ao tráfico de
pessoas e de migração mais adiante e de como elas por vezes desconstroem a necessária
proteção às vítimas de tráfico e, ainda, a garantia de processos migratórios em condições dignas.
Nesse contexto, entende-se importante pontuar que, independentemente do número
efetivo de vítimas identificadas, o tráfico de pessoas aparece como tema importante da agenda
mundial pelo desrespeito aos direitos humanos violados, devendo ser compreendido e tendo
como pano de fundo o máximo de variantes possíveis, permitindo a análise particular das
características das vítimas, os fatores que as envolvem e os elementos que possibilitam e
corroboram para a existência desse fenômeno, a fim de que ele possa ser enfrentado de forma
a garantir e restabelecer direitos ao invés de vulnerar ou estigmatizar pessoas.
No caso do tráfico de mulheres, é relevante diferenciar uma vítima de tráfico de pessoas
e uma imigrante que utiliza os seus mecanismos possíveis para buscar melhores condições de
vida em outro Estado. Deve ser denunciado e repudiado que os Estados criem políticas
restritivas de acesso, penalizando as mulheres imigrantes, e as colocando em situações de
vulnerabilidade. Entretanto, não se pode deixar de proteger uma vítima de tráfico de pessoas
que é enganada, e/ou aceita se deslocar por meio de uma rede de tráfico internacional de
pessoas.
Daí a importância de apreender o fenômeno do tráfico de pessoas para além do crime
disposto no Protocolo de Palermo, compreendendo as formas de exploração humanas, os
processos migratórios, as motivações dos deslocamentos e do fenômeno como um todo184.
Nesse sentido, reduzir o fenômeno social do tráfico de pessoas ao crime do tráfico, certamente
é não compreender a sua complexidade e a necessária abordagem multidimensional do
fenômeno.
As redes de tráfico de pessoas e o fenômeno do tráfico de pessoas para fins de
exploração sexual têm variações. É perceptível como as redes de tráfico se aproveitam das
condições de vulnerabilidades experimentadas por mulheres. Essas redes se utilizam de diversas
situações vivenciadas (econômicas, sociais, familiares, pessoais) e da expectativa de realizar
imaginários construídos, que prometem sonhos de se transformarem em pessoas diferentes em
outros espaços (motivações subjetivas, simbólicas) enganando-as, seja pelo engano da

184
É fundamental que se problematize o momento, a motivação de porquê incluir o tráfico de pessoas no Protocolo
de Palermo como documento junto a Convenção contra o Crime Organizado Transnacional e, assim, e o
conceito dado ao tráfico de pessoas naquele instrumento internacional. Isso será feito mais adiante.
102

finalidade do seu deslocamento185, seja pelo engano quanto a como será o exercício dessa
finalidade186. Quando já em destino, essas mulheres são coagidas psicologicamente ou até com
violência física para que ali permaneçam 187.
Verifica-se a ocorrência de coação física e psicológica em vítimas de tráfico da Europa
do Leste e da África que estão inseridas no mercado sexual espanhol. Existem diferenças
importantes entre as redes de tráfico, de acordo com o tipo de abuso que elas exercem sobre as
mulheres. As redes da América Latina e da África tendem a fazer maior uso do abuso
psicológico, enquanto na Europa Oriental, o castigo físico predomina 188.
Nesse sentido, “O abuso psíquico, propriamente dizendo, tal como ameaças constantes
e coerção, une-se às condições dolorosas em que são forçados a viver e a trabalhar, muitos deles
vítimas de genuínos raptos por membros da rede, onde o único relacionamento com o exterior
é aquele mantido com os clientes.”189.
A grande percepção dos traficantes de pessoas é a de se utilizar da vulnerabilidade das
vítimas, através do engano ou daquelas que procuram melhores condições de vida no exterior.
Muitas se submetem a colaborar com os traficantes para obter sucesso no seu deslocamento
para o país de destino, dificultando a verificação dos controles de imigração. Outras ainda, não
se identificam como vítimas de tráfico; entendem que estão sendo ajudadas a concretizar um
processo migratório. Quando no destino, muitas têm os seus documentos apreendidos, e são
submetidas a cárcere privado até pagarem as suas dívidas.

2.1 A Perspectiva do Fenômeno do Tráfico de Mulheres a Partir do Brasil

Sabe-se das dimensões continentais do Brasil, além das suas vastas fronteiras, secas ou
não, que levam à percepção das suas vulnerabilidades para o tráfico de pessoas nas suas mais
variadas formas. As vastas regiões de fronteiras brasileiras apresentam diversas características

185
Muitas veces, a finalidade do deslocamento é exploração do exercício da prostituição, quando na verdade se
lhes promete leva-las para trabalhar com cuidado de crianças ou idosos, ou para trabalhar em residências no
trabalho doméstico, ou até mesmo em bares, como garçonetes.
186
Outras vezes, as mulheres aceitam trabalhar no exercício da prostituição, mas não conhecem as condições reais
às quais serão submetidas em destino.
187
TERESI, Verônica Maria. A cooperação internacional para o enfrentamento ao tráfico de mulheres brasileiras
para fins de exploração sexual: o caso Brasil - Espanha, Dissertação de Mestrado. UniSantos. 2007.
188
GOMARIZ, Maria José. (Equipo técnico y Coordinación) Tipología de la prostitución femenina en la
Comunidad de Madrid. Departamento de Trabajo Social y Servicios Sociales. Madrid: Escuela de Trabajo
Social de la Universidad Complutense de Madrid, 2001. p.172.
189
Ibid., p.173. “Al maltrato psíquico propiamente dicho, como las amenazas constantes y la coacción, se unen las
condiciones penosas en las que se ven obligadas a vivir y trabajar, muchas de ellas víctimas de auténticos
secuestros por parte de los integrantes de la red, donde la única relación con el exterior es la mantenida con
clientes.” (tradução nossa).
103

importantes, que devem ser levadas em conta para a caracterização da região e de potenciais
situações de tráfico, seja para a identificação das vítimas, seja para o efetivo enfrentamento
(repressão e responsabilização), e principalmente para o atendimento das vítimas. Essa múltipla
diversidade leva à percepção de uma variedade cultural e possíveis desigualdades regionais
fronteiriças; diferenças no idioma e na dificuldade de comunicação; complexidade institucional
para abordar o tema; dificuldade na comunicação e articulação de atores públicos, privados e
da sociedade civil; na identificação de possíveis vítimas; diversidade e inovação nas formas de
exploração das pessoas.
Casos relacionados a crianças e adolescentes têm despertado a atenção dos atores
responsáveis pela identificação de vítimas de tráfico. Verifica-se a captação de crianças e
adolescentes por redes e ferramentas virtuais (Facebook, Instagram, WhatsApp, entre outras),
por meio de abordagens sedutoras, em que traficantes se passam por artistas, assessores de
artistas ou até mesmo funcionários de agências de modelos, prometendo a essas meninas e
adolescentes oportunidades no exterior190. Em muitos casos, as famílias concordam com a
viagem dessas adolescentes, e autorizam a saída do país191. Quando essas adolescentes chegam
ao destino, são surpreendidas com uma realidade completamente diferente da que lhes foi
prometida, tendo que realizar atividades sem o seu consentimento e com uma dívida bastante
elevada.
Outros casos de tráfico de mulheres no Brasil se referem a mulheres migrantes trazidas
de países fronteiriços (Bolívia, Venezuela, Peru, Colômbia, entre outros)192 por redes de tráfico
para trabalho forçado, principalmente ligados à indústria de tecelagem. Essas mulheres ficam,
muitas vezes, confinadas em espaços insalubres, e são submetidas a toda espécie de violências
(psicológica, física, doméstica e, em alguns casos, sexual). A invisibilidade das mulheres
migrantes é ainda maior, e se receia que seja por muitas estarem em situação de irregularidade
documental, pelo próprio temor de denunciar essas redes criminosas, redes essas organizadas,
e principalmente as redes informais. Importante ressaltar ainda, que muitas delas acabam tendo
os seus filhos nesses espaços, e a vulnerabilidade pela invisibilidade dessas crianças é imensa.

190
Verificam-se também, no caso de meninos, promessas feitas por falsos agentes que representam clubes de
futebol nacionais e estrangeiros. Ver em: ASBRAD. Websérie 20. Questões para entender o tráfico de
pessoas no Brasil. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9uGqHGE-X8k. Acesso em: 13 jul.
2020.
191
No caso de tráfico interno, é ainda mais difícil identificar essas situações em função do baixo controle das
rodovias e rotas fluviais no Brasil.
192
Importante destacar a vulnerabilidade decorrente dos fluxos migratórios vindos da Venezuela. Há uma realidade
bastante complexa, inclusive com migração de indígenas waraos. Muitos desses migrantes, mesmo não tendo
acessado o Brasil por meio de redes de aliciamento de tráfico de pessoas ou contrabando de migrantes, acabam
sendo aliciados por redes de exploração, em busca de oportunidades de trabalho no Brasil.
104

Muitas delas não têm nem mesmo documentos de identidade, sendo inexistentes para o Estado
brasileiro193.
No entanto, muitas mulheres, mesmo sendo vítimas de tráfico, não se identificam como
pessoas traficadas. Entendem que a relação de cobrança do valor facilitado para a empreitada
da migração faz parte do processo, e assim há um sentimento de que a situação de vida
melhorará e elas poderão, após pagar a dívida, juntar dinheiro para regressarem ao Brasil como
vitoriosas na empreitada. A situação de exploração vivenciada é entendida como normal, e
muitas vezes aceita, até o pagamento da dívida194.
Situação diversa se verifica no caso das vítimas que são levadas por meio de coação
física ou psicológica ao país de destino. As redes de tráfico atuam por meio de ameaças pessoais
e aos seus familiares, obrigando-as a omitir a situação de tráfico, dificultando o trabalho das
autoridades, que identificam essas pessoas como imigrantes, sejam regulares ou irregulares,
quando, na verdade, tratam-se de vítimas de tráfico de pessoas.
Importante ressaltar que há uma linha tênue na identificação/detecção de uma vítima de
tráfico e de uma pessoa imigrante. Aparentemente, não há materialidade que se identifique por
meio de um “objeto” que concretize uma vítima de tráfico de pessoas. No caso do tráfico de
armas e de drogas, por exemplo, a materialidade se dá na arma e na droga; no da vítima de
tráfico, essa materialidade se dá na pessoa, o que dificulta a identificação de vítimas, e às vezes
criminaliza imigrantes no seu processo migratório.
Outra realidade bastante invisível é aquela em que muitas mulheres migrantes são
utilizadas como mulas de drogas para o Brasil. Estudo bastante interessante do Instituto Terra,
Trabalho e Cidadania (ITTC, São Paulo) constatou uma realidade bastante invisível e
desconhecida para grande parte dos atores governamentais, principalmente os da segurança
pública. Muitas mulheres atendidas pelo Instituto foram presas enquanto exerciam a função de
mulas do tráfico internacional de drogas195. Geralmente, essas mulheres recorrem à função de
mulas como forma de obter ou complementar a renda para o sustento da família, visto que a
maioria é responsável pelo domicílio. Entretanto, percebeu-se que algumas delas também se
submetem à função de mulas contra a sua vontade, sendo vítimas de tráfico de pessoas. De 2008
a 2019, foram identificadas, pelo menos, 106 que se encaixavam em critérios internacionais

193
REPÓRTER BRASIL. Especial Zara: flagrantes de escravidão na produção de roupas de luxo. 2011.
Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2011/12/especial-zara-flagrantes-de-escravidao-na-producao-de-
roupas-de-luxo/. Acesso em: 20 abr. 2020.
194
TERESI, Verônica Maria. A cooperação internacional para o enfrentamento ao tráfico de mulheres brasileiras
para fins de exploração sexual: o caso Brasil - Espanha, Dissertação de Mestrado. UniSantos. 2007.
195
ITTC. Tráfico de pessoas: por que as mulheres migrantes atendidas pelo ITTC estão sujeitas a isso? Disponível
em: http://ittc.org.br/trafico-pessoas-mulheres-migrantes-ittc/. Acesso em: 2 abr. 2020.
105

utilizados para a identificação de vítimas de tráfico de pessoas. A pesquisa identificou que,


aproximadamente 1/3 das mulheres, com relatos que se enquadram no perfil de vítimas de
tráfico de pessoas, não sabiam da vinculação da viagem ao tráfico de drogas, enquanto 27%,
descobriram no momento dos preparativos ou durante a própria viagem. Nesses casos, é comum
a ocorrência de ameaças, de diversas ordens, para que as mulheres prossigam viagem196.

O fato de uma parcela das mulheres (38%) saberem desde o início sobre a
vinculação da viagem ao tráfico de drogas não exclui o fato de que elas tenham
trajetórias com elementos do tráfico de pessoas. Muitas destas estavam em
situação de extrema vulnerabilidade e seus aliciadores fizeram uso disso,
recorrendo até mesmo a ameaças aos familiares, especialmente filhos e filhas,
para que elas fizessem o transporte das drogas, como é o caso de algumas
mulheres que estavam devendo para agiotas. Também é comum que as
mulheres queiram desistir do transporte de drogas durante a viagem, mas são
mantidas em cárcere privado e/ou têm seus documentos retidos,
procedimentos estes utilizados pelos aliciadores, tanto para a cobrança de uma
dívida impagável, como para constranger e conter as mulheres197.

Outro aspecto interessante destacado no perfil dessas vítimas da modalidade do tráfico


de pessoas com fins de mulas de drogas é que, diferentemente do perfil das mulheres vítimas
de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, com utilização de mulheres mais jovens,
essa modalidade utiliza mulheres das mais diversas faixas etárias, sendo majoritariamente
mulheres entre 30 e 45 anos.
Igualmente, a organização ASBRAD, no Projeto Fronteiras,198 identificou algumas
situações de mulheres migrantes presas em penitenciárias em cidades de fronteiras, em
decorrência do tráfico de drogas, na mesma condição do ITTC. A identificação de adolescentes
e mulheres adultas aliciadas nas redes sociais.

Em Tabatinga, por exemplo, houve um caso de apreensão de três meninas,


respectivamente com 14, 15 e 16 anos, e uma jovem de 18 anos que levavam
pastas de cocaína amarradas em seus corpos. Em seus pertences, foram
encontradas fotografias sensuais e de sexo explícito, evidenciando situações
de abuso e exploração sexual, além da exploração para o transporte de drogas.
[...] As rotas são variadas, mas normalmente a droga ilícita é adquirida nos
países estrangeiros, em muitas cidades da Colômbia e do Peru. Após
abastarem-se das cargas, as “mulas” seguem para grandes capitais do Brasil.

196
Id.
197
Id.
198
O Projeto Fronteiras teve como objetivo a promoção de cursos livres sobre o atendimento humanizado às
vítimas diretas e indiretas do tráfico de pessoas, voltados para profissionais das redes de enfrentamento à
violência contra a mulher, organizações da sociedade civil e cidadãos interessados no tema. Os cursos foram
realizados em 10 municípios fronteiriços brasileiros: Bonfim e Pacaraima, no estado de Roraima; Brasiléia, no
estado do Acre; Corumbá e Ponta Porã, no estado do Mato Grosso do Sul; Foz do Iguaçu, no estado do Paraná;
Jaguarão e Santana do Livramento, no estado do Rio Grande do Sul; Oiapoque, no estado do Amapá; e
Tabatinga, no estado do Amazonas. ASBRAD. Percepções sobre o Tráfico de Pessoas e Outras formas de
Violência contra a Mulher nas Fronteiras Brasileiras. 2018. Disponível em: http://www.asbrad.org.br/wp-
content/uploads/2018/10/fronteiras_livro_paginasimples.pdf. Acesso em: 10 dez. 2019.
106

A denúncia anônima é a principal fonte que leva as autoridades de repressão


a identificarem essas mulheres e meninas mulas199.

Importante destacar a utilização das ferramentas virtuais para aliciar essas adolescentes
e mulheres, assim como da vulnerabilidade às quais estavam expostas200.
É sabido que a normativa do tráfico de pessoas estabelece que o fim maior desse crime
é a exploração das pessoas, independentemente da sua modalidade. A grande dificuldade é
capacitar os atores para o olhar amplo em relação às potenciais modalidades, com os mais
variados perfis de vítimas.
No Brasil, há relatos e estudos de tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças,
para a exploração sexual e laboral, adoção ilegal201, mendicância forçada, exploração pelo
narcotráfico, casamentos forçados202, a questão de gênero no trabalho escravo e nos ambientes
doméstico e rural, dentre outras formas de exploração da pessoa humana203.
Esses exemplos mostram como o Brasil tem diversas realidades do tráfico de pessoas,
em especial mulheres, crianças e adolescentes, para as mais variadas finalidades, mesmo que
haja mais visibilidade aos casos de tráfico de mulheres para fins de exploração sexual204.
Questão que fica é sobre a ausência de dados do tráfico de mulheres em outras modalidades.
Será que esses casos realmente não existem ou há uma invisibilidade desses casos? É certo que

199
ASBRAD. Percepções sobre o Tráfico de Pessoas e Outras formas de Violência contra a Mulher nas Fronteiras
Brasileiras. 2018. Disponível em: http://www.asbrad.org.br/wp-content/uploads/
2018/10/fronteiras_livro_paginasimples.pdf. Acesso em: 10 dez. 2019.
200
Interessante notar como as ferramentas virtuais cada vez mais vão sendo incorporadas ao aliciamento e controle
das vítimas de tráfico. Há pouco mais de 10 anos atrás, quando da realização do Mestrado e de pesquisa na
Espanha, com entrevistas às mulheres brasileiras em situação de exploração sexual, essas ferramentas ainda
não apareciam nos relatos e na vida dessas mulheres. Ver: ASBRAD. Webséries Ep. 10 Crime Cibernético.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2tf_pZ46wf4. Acesso em: 15 jul. 2020.
201
Ver em: O GLOBO. MPF apura novos casos de crianças traficadas de orfanato no exterior. Disponível em:
http://g1.globo.com/. Acesso em: 10/05/2019. CÂMARA. Caso Charlotte Cohen. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/noticias/430820-brasileira-conta-na-cpi-tentativas-de-descobrir-como-foi-
adotada-e-levada-ao-exterior/. Acesso em: 20 abr. 2019.
202
Ver em: TAYLOR, A.Y., LAURO, G., SEGUNDO, M., Greene, M.E. “Ela vai no meu barco” Casamento na
infância e adolescência no Brasil. Resultados de Pesquisa de Método Misto. Rio de Janeiro e Washington DC:
Instituto Promundo & Promundo US. setembro, 2015.
203
ASBRAD. Percepções sobre o Tráfico de Pessoas e Outras formas de Violência contra a Mulher nas Fronteiras
Brasileiras. 2018. Disponível em: http://www.asbrad.org.br/wp-content/uploads/2018/
10/fronteiras_livro_paginasimples.pdf. Acesso em: 10 dez. 2019. Ver também: ASBRAD. Direitos Humanos
e gênero no cenário da migração e do tráfico internacional de pessoas. Cadernos Pagu, Campinas, n. 31, 2008.
204
Importante ressaltar que mesmo a exploração sexual tem suas diversas realidades, desde a exploração sexual
de mulheres nas cidades, nos garimpos, nas tribos indígenas, nas fronteiras, entre outros. Imaginar o fenômeno
da exploração sexual sob uma única ótica é cegar-se para o fenômeno. Ver em: HAZEU, Marceu. Tráfico de
mulheres criança e adolescentes para fins de exploração sexual comercial na Amazônia. Movimento República
de EMÚS/TXAÍ. Belém: OIT, 2003. Ver também: LANDINI, T.S. A pornografia infantil na internet: uma
perspectiva sociológica. In R. M. Libório, & S. M. G. Sousa (Eds.), Exploração sexual de crianças e
adolescentes no Brasil: Reflexões teóricas, relatos de pesquisa e intervenções psicossociais (pp.165-162). São
Paulo, Brasil: Casa do Psicólogo e Goiânia, Brasil: Universidade Católica de Goiás. 2004. Ver em: NETO,
Luiz Alvino de Souza. Projeto Centro de Acolhimento às Mulheres migrante vítimas de violência.
Pacaraima/RR: 2009.
107

a invisibilidade desses casos pode estar ocultando realidades do tráfico de pessoas, deixando
essas pessoas, principalmente mulheres, mais vulneráveis às diversas formas de exploração 205.
De toda forma, mesmo se tratando de tráfico para fins de exploração sexual de meninas
e adolescentes, ainda há muita invisibilidade, pelo desconhecimento e não identificação. Nas
falas abaixo, fica evidente como profissionais da rede de atenção às vítimas nem sempre
conhecem o fenômeno, as suas particularidades, e não conseguem identificar situações claras
de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual.

“Se eu identifico casos de tráfico de pessoas aqui na região?


Acho que não. Se vejo meninas ‘menores’ atravessando a fronteira para fazer
programa? Vejo o tempo todo; é só ir ali na margem do rio à noite que você
encontra.” (Servidora pública no Oiapoque-AP)206.

“Aqui é normal as meninas (menores de 18 anos) atravessarem a ponte para


fazerem programa aqui no Brasil.” (Servidora pública de Foz do Iguaçu)207.

Mesmo reconhecendo todas essas realidades de tráfico de pessoas, é importante reforçar


que nem todas as pessoas que migram são vítimas de tráfico, mesmo sabendo que, muitas vezes,
os processos migratórios expõem as pessoas a situações de explorações e de submissão a
trabalhos menos reconhecidos socialmente. Essa generalização é um equívoco, e pode gerar a
retirada do direito de migrar. Inclusive, mais adiante, será destacada essa diferença, apontando
como o atual enfrentamento ao tráfico de pessoas conduzido pelos atores internacionais tem
tentado, dentro de um regime complexo, em muitos momentos, aproximar esses fenômenos,
criando políticas de controle e segurança contra o tráfico de pessoas, estendendo-as, de forma
velada, ao controle de imigrantes indesejados208.
Outro aspecto relevante sobre o tráfico de pessoas é a dificuldade em obter dados
estatísticos definitivos sobre as vítimas, bem como sobre o lucro produzido com essa atividade,
seja pela complexidade inerente ao fenômeno, seja pelo contexto da ilegalidade que o envolve.
As mulheres, meninas e adolescentes constituem as vítimas preferenciais desse
“mercado sexual”. No Brasil, a primeira pesquisa que identificou e mapeou a situação do tráfico
de mulheres, meninas e adolescentes no país, a Pesquisa sobre o Tráfico de Mulheres, Meninas

205
Outra realidade bastante invisível no Brasil é a das travestis e transexuais. Ver em: FERNANDES; Beth. Da
relação das travestis e transexuais com o Tráfico de pessoas. Revista eletrônica do Simpósio Vozes e Plurais;
2009.
206
ASBRAD. Percepções sobre o Tráfico de Pessoas e Outras formas de Violência contra a Mulher nas Fronteiras
Brasileiras. 2018. p. 277. Disponível em: http://www.asbrad.org.br/wp-
content/uploads/2018/10/fronteiras_livro_paginasimples.pdf. Acesso em: 10 dez. 2019.
207
Ibid., p.277.
208
MANSUR, Guilherme Dias. Migração e Crime: desconstrução das políticas de segurança e tráfico de pessoas.
2014. Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Doutorado em Antropologia Social.
UNICAMP.
108

e Adolescentes para fins de exploração sexual no Brasil (PESTRAF), em 2002, mostrava que o
tráfico para fins sexuais é predominantemente de meninas negras e mulatas, com idades
compreendidas entre 15 e 25 anos209. As vítimas menores de idade são aliciadas para o tráfico
interno, pela dificuldade na retirada de menores de idade, inclusive as que não possuem
constituição física de mulheres, com documentos falsos. Já as maiores de 18 anos, estariam
mais disponíveis para as redes internacionais de tráfico210.
Situação particular acontece em municipalidades brasileiras fronteiriças com outros
países (Paraguai, Uruguai, Bolívia, Venezuela, Suriname), onde os limites de fronteiras são de
difícil identificação. Nessas regiões, há atuação das redes de tráfico de meninas e adolescentes
para o mercado sexual211. A pouca idade das vítimas brasileiras poderia estar corroborando a
“feminização da pobreza”, por falta de oportunidades sociais, vulnerabilizando-as e as inserindo
no mercado do tráfico interno e internacional sexual.
A exploração sexual, como forma de violência sexual contra meninas e adolescentes é,
em muitos casos, o primeiro passo para o tráfico de pessoas. As motivações econômicas,
sociais, psicológicas podem estar levando e estimulando a essa prática, em função das situações
de vulnerabilidade decorrentes dos fatores interseccionais da pobreza, abusos intra e
extrafamiliares, e a ausência do Estado na execução de políticas públicas de assistência e
proteção aos abusos a que essas vítimas são submetidas. Dados da PESTRAF (2002) indicam
que as vítimas identificadas como vítimas de tráfico haviam sido vítimas de abusos. A ausência
de uma política pública eficaz e eficiente, que possibilite uma cadeia de cuidados paralisando
essas situações de violência ainda na infância e adolescência, é uma das condicionantes para
que essas vítimas partam para o aceite às redes de tráfico de pessoas.

209
LEAL, Maria Lucia Pinto. Pesquisa sobre o Tráfico de Mulheres, Meninas e Adolescentes para fins de
exploração sexual no Brasil. Coordenada pelo CECRIA – Centro de Referência, Estudos e Ações sobre
Crianças e Adolescentes, 2002. p. 61.
210
No Brasil, o ECA estabelece uma distinção etária entre criança e adolescente. Aquele compreende de 0 a12
anos incompletos; esse compreende de 12 a 18 anos incompletos. Por outro lado, as convenções internacionais
referentes aos direitos da criança, entendem criança como toda pessoa menor de 18 anos, conforme estabelece
a Convenção sobre os Direitos da Criança em seu artigo 1º.
211
Ver em: BRASIL. MINISTERIO DA JUSTIÇA. PESQUISA TRI-NACIONAL SOBRE TRÁFICO DE
MULHERES DO BRASIL E DA REPÚBLICA DOMINICANA PARA O SURINAME. Disponível em:
https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos-
pesquisas/2008pesquisa_trinacional.pdf. Acesso em: 10 jan. 2020. Ver ainda, BRASIL, Ministério da Justiça,
Secretaria Nacional de Justiça. Pesquisa ENAFRON Diagnóstico sobre Tráfico de Pessoas nas Áreas de
Fronteira. Brasília: Ministério da Justiça, 2013. Ver ainda, ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DEFESA DA
MULHER DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE-ASBRAD. Percepções Sobre O Tráfico De Pessoas E Outras
Formas De Violência Contra A Mulher Nas Fronteiras Brasileiras. Secretaria Nacional de Políticas Para as
Mulheres. Ministério dos Direitos Humanos, 2018. Disponível em: http://www.asbrad.org.br/wp-
content/uploads/2018/10/fronteiras_livro_paginasimples.pdf. Acesso em: 22 nov. 2019.
109

Nesse contexto, essas pessoas, já mulheres adultas ou quase, acabam sendo convidadas
e levadas para outros países, limítrofes ou não, em muitos casos mais desenvolvidos,
principalmente da Europa Ocidental, com a perspectiva de melhorarem de vida, traçarem um
futuro pessoal e garantirem o futuro de suas famílias212.
As falas das mulheres abaixo demonstram esse desejo por melhorar as suas vidas em
diversas perspectivas:

Para mim (sic) sair do meu país, para trabalhar para comer? Para comer eu
tenho no meu país. Não precisa. Não precisa estar longe da minha família
para comer. Aí no Brasil se você planta uma mandioca, se você cria uma
galinha, você come. Não é fome. É você tentar fazer algo... Eu sempre me
preocupei muito com o amanhã. Quando eu estiver com 60 anos213.

Quero juntar dinheiro para voltar para Salvador... Quero comprar uma
caminhonete para... botar minhas barracas... É, botar meus salgados... Botar
isopor com bebidas, né? Cerveja e refrigerante... Umas mesinhas que arma e
desarma, pelo menos umas quatro, umas quatro mesinhas... Botar meu fogão,
fazer minhas friturinhas, já levar tudo feito, congelado, entende?214.

[...] e eu tava tão desesperada... trabalhava, ganhava tão pouco! Vivendo


tantos anos ali em Goiânia, de aluguel! O dinheiro num sobrava pra você dar
uma entrada num lote! E pra levantar a casa, então [...]215.

[...] Então eu queria arrumar a casa, comprar um carro, dar melhor condição
pros meus meninos216.

[...] No Brasil o emprego está muito difícil e como a minha universidade é


particular eu pensei assim: falta um ano para eu acabar o curso, eu passo um
ano em Portugal juntando dinheiro daí eu volto e termino o meu curso217.

Muito embora a questão financeira e o atrativo dos recursos financeiros sejam relevantes
para a inserção das vítimas no mercado sexual, percebe-se em alguns casos a prevalência de
problemas intrafamiliares. A violência intrafamiliar, como a violência doméstica e os abusos
sexuais, aparecem como motivadores relevantes para o abandono das casas e o ingresso na
exploração sexual.
Frequentemente, essas mulheres, ao aceitarem ir a outro país, mesmo cientes de que irão
trabalhar no mercado sexual, não imaginam as condições reais que as esperam ali. Quando

212
A PESTRAF indica que a maioria das mulheres vítimas de tráfico, têm filhos.
213
PISCITELLI, Adriana. Traficadas ou Autônomas?: a noção de consentimento entre brasileiras que oferecem
serviços sexuais na Espanha. Prelo in: Brasília: Ministério da Justiça. Dilemas jurídicos do enfrentamento ao
tráfico internacional de seres humanos.
214
Id.
215
LEAL, Maria Lucia; TERESI, Veronica Maria; DUARTE, Madalena. Mulheres brasileiras na conexão
ibérica: um estudo comparado entre migração irregular e tráfico. 1. Ed. Curitiba. Appris.2013. p. 71.
216
Id.
217
Id.
110

chegam, encontram-se com os seus documentos retidos pela rede de tráfico, confinadas em
locais próprios para a prostituição, padecendo de maus tratos, exploradas - uma vez que não
podem sair até pagarem toda a dívida contraída com a viagem, transporte e alojamento –, vendo
ameaças constantes contra as suas famílias, e principalmente contra os seus filhos.
Outras mulheres migram de forma autônoma, com projetos migratórios independentes,
mesmo que eles impliquem em se utilizar de redes de apoio de outras pessoas, suas conhecidas
ou não e, já em destino, acabam passando por situações vulneráveis, em decorrência das
condições de destino, e captadas por redes de exploração e tráfico de pessoas218. Esse perfil de
mulheres que estando em destino acabam sendo exploradas e aliciadas para redes de tráfico de
pessoas geralmente não se enquadram no “perfil” de vítima de tráfico, apesar de muitas
apresentarem elementos de vulnerabilidade e de exploração que as caracterizaria como.
Ainda, outras mulheres entendem que realmente concordaram em pagar o valor devido,
e se submetem às redes de tráfico aceitando as condições impostas pelo aliciador. Não há
percepção de que estão sendo exploradas, nem muito menos traficadas. Verifica-se que somente
a prostituição forçada (por meio de coação e ameaça) é associada ao tráfico de pessoas. O tráfico
resultante do engano sobre as condições no exercício da prostituição não é entendido como
tráfico por elas. As falas de mulheres abaixo indicam a ausência do tráfico de pessoas nem
mesmo quando há uma cobrança exorbitante do valor das passagens pagas por elas.

O que é Máfia? É cobrar o dobro por uma passagem? Isso não é máfia, isso é
algo que acontece. Você quer vir para a Europa, mas não tem dinheiro para a
passagem. A passagem custa 1000 euros, eu compro para você, porque eu tenho
o dinheiro, mas cobro 3000. Você aceitou, pronto, feito. Máfia é quando tem
uma mulher como escrava, prisioneira, quando a vendem. Isso tem aqui, com
as romenas. Mas a polícia prende, elas e não os homens que estão na calçada
da frente controlando! E elas têm que trabalhar queiram ou não, não podem
parar para comer, ou tem que comer o que eles dão para elas. Isso é máfia, com
brasileira não tem isso não219.

Eu acabei pagando duas vezes o valor do que eu devia porque eu perdi o


controle da minha dívida. Eu nunca terminava de pagar. Até que um dia me
mandaram embora e um cliente me apoiou na sua casa220.

Verifica-se, assim, que a leitura feita pelas mulheres, referente ao que se considera
tráfico, é diferente do estabelecido pelo Protocolo de Palermo. Talvez a percepção do que é
exploração seja diferente para cada mulher; talvez a sua realidade pessoal a impeça de

218
MENEZES, Marilda Aparecida; COVER, Maciel. A noção de redes sociais aplicada a pesquisas em espaços
de trabalhadores migrantes. Sociedade e Cultura, v. 20. 2018. p. 97.
219
PISCITELLI, Adriana. Traficadas ou Autônomas?: a noção de consentimento entre brasileiras que oferecem
serviços sexuais na Espanha. Prelo in: Brasília: Ministério da Justiça. Dilemas jurídicos do enfrentamento ao
tráfico internacional de seres humanos.
220
Entrevista realizada a Liz (mulher brasileira entrevistada na Espanha em fevereiro de 2020).
111

identificar situações de exploração. Talvez também haja uma deficiência no próprio


instrumento de Palermo, que não traz um conceito sobre o que deve ser considerado exploração
para além das modalidades mínimos indicadas.

2.1.1 Apontamentos sobre o fenômeno tráfico de mulheres brasileiras à Espanha

A problemática do tráfico de pessoas no Brasil passou a ser percebida pelo movimento


social de defesa dos direitos da criança e do adolescente quando na sua atuação no
enfrentamento à exploração sexual contra meninas e adolescentes emergiu um fenômeno que
estava atingindo mulheres, crianças e adolescentes, mas que apresentava características
diversas da exploração sexual e necessitava de uma atuação governamental. Identificava-se um
fenômeno parecido com o da exploração sexual, mas que envolvia outros elementos, como o
deslocamento, a facilitação da exploração sexual, o envio da vítima, o que exigia um estudo,
uma pesquisa, para se conhecer, entender e encontrar ações que pudessem atuar sobre essa
problemática.
Assim foi que, em 2002, com a elaboração da PESTRAF, visibilizou-se de forma
nacional a problemática do tráfico de mulheres, meninas e adolescentes, e se verificou, desde o
âmbito público, a necessidade da construção de respostas para o enfrentamento desse “novo”
fenômeno. O processo metodológico de construção da PESTRAF se utilizou, em grande parte,
dos conhecimentos, expertise e atuação prática da rede de enfrentamento à violência sexual
contra crianças e adolescentes já existente naquele momento221.
A rede de atores naquela época, principalmente organizações da sociedade civil que
atuavam com atendimento à violência sexual infanto-juvenil, e especialmente exploração
sexual, era composta por alguns dos principais atores que estavam identificando na prática esse
fenômeno, e a pesquisa se utilizou desse saber empírico das organizações da sociedade civil e
das matérias produzidas em função dessa rede para iniciar uma exploração sobre esse tema.
Assim, para além das críticas existentes, e as quais não se pretende esgotar aqui, considera-se

221
Essa pesquisa foi o ponto de partida para os trabalhos da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do
Congresso Nacional no decorrer de 2003 e 2004. Por sua vez, a Frente Parlamentar dos Direitos da Criança e
do Adolescente imprimiu um esforço concentrado na criação de uma Rede Nacional pela Infância e
Adolescência, em 2005, na perspectiva de disseminar a criação de Frentes Parlamentares similares em cada
Assembleia Legislativa (estadual) e em cada Câmara Municipal dos municípios brasileiros. Este ano a Frente
Parlamentar lançou o Manual de Formação e Ação de Frentes Parlamentares em defesa dos Direitos da Criança
e Adolescente. Nesse mesmo ano, a Frente Parlamentar deu início à mobilização intensa dos congressistas para
aprovação de matérias legais que garantam o enfrentamento de todas as formas de violência contra crianças e
adolescentes, principalmente a exploração sexual.
112

uma pesquisa precursora da necessidade da ratificação do Protocolo de Palermo e da criação da


política pública brasileira nesse campo.
É importante destacar que a PESTRAF sofreu críticas quanto a essa metodologia
empregada222; porém, apesar disso, entende-se que a PESTRAF cumpre com o seu papel de
pesquisa inicial reveladora de uma realidade não identificada anteriormente e que precisava ser
desvelada. Além disso, ela ainda é a única pesquisa brasileira de âmbito nacional que identifica
e descreve as principais rotas de tráfico. Por essa razão, ainda se utilizam muitos de seus dados
para demonstrar a existência de rotas de tráfico internacionais, interestaduais e intermunicipais.
Além disso, o número de mulheres brasileiras vítimas de tráfico na Espanha indica a existência
de rotas de tráfico, mesmo que elas não sejam mapeadas, na atualidade, em um estudo. Assim,
utilizar-se-ão os dados da PESTRAF para indicar as rotas traçadas naquele momento,
principalmente aquelas em que a Espanha era o destino final.
A PESTRAF identificou no Brasil 241 rotas223 de tráfico, sendo 131 internacionais, 78
interestaduais e 32, intermunicipais. As mulheres e adolescentes vítimas do tráfico internacional
eram levadas à Espanha (destino mais frequente, com 32 rotas), Holanda (11 rotas), Venezuela
(10 rotas), Itália, Portugal, Paraguai, Suíça, Estados Unidos, Alemanha e Suriname. A Região
Norte apresentava o maior número de origem das rotas, seguida de perto pela Região Nordeste
e, um pouco mais distante, pela Sudeste, pela Centro-Oeste e pela Sul, no que se refere ao tráfico
nacional. No tráfico internacional, predomina a Região Nordeste224.

222
GRUPO DA VIDA. Prostitutas, “traficadas” e pânicos morais: uma análise da produção de fatos em pesquisas
sobre o “tráfico de seres humanos”. Cadernos Pagu (25), julho-dezembro de 2005, pp.153-184.
223
Conceitua-se “rota” como o caminho previamente traçado por pessoas ou por grupos que têm como objetivo
chegar a um destino planejado.
224
PESTRAF, p. 73-110.
113

Gráfico 2. Número de rotas de Tráfico de mulheres

Fonte: PESTRAF, 2002.

Na intenção de visualizar melhor as rotas identificadas na pesquisa com destino à


Espanha, estabeleceram-se dois critérios: 1. rotas levando em consideração o aeroporto de
origem no Brasil; e 2. rotas levando em consideração a cidade de origem, a cidade de trânsito
interno e a cidade de destino na Espanha.
As Tabela 1 e 2, a seguir indicam esses dados relativos aos critérios desenhados.

Tabela 1. Aeroportos de origem e País de Destino

Aeroporto de origem País Destino

Recife (PE) España - Itália - Alemanha - Portugal

Guarulhos (SP) - Rio de Janeiro (RJ) España - Portugal - Suíça - Holanda - Itália - Alemanha

Brasília - Palmas (TO) - Rio de Janeiro España

Santa Genoveva (GO) España

Rubem Berta (Uruguaiana - RS) España - Múrcia

Paraná España

Foz Iguaçu (PR) - Curitiba (PR) España

Fonte: Tabela aeroporto de origem/país de Destino. (elaboração própria) PESTRAF (2002).


114

Tabela 2. Cidade de Origem x Cidade de Trânsito x Cidade de Destino na Espanha

Cidade de Cidade de Destino na


Cidade de Trânsito
Origem Espanha
Fortaleza (CE) - Rio de Janeiro
Recife (PE) Barcelona
(RJ)

Recife (PE) Rio de Janeiro Barcelona

Fortaleza (CE) Rio de Janeiro España

Valencia, Bilbao, Salamanca,


Salvador (BA)
Barcelona

São Luiz (MA) São Paulo Valencia, Bilbao, Salamanca, Madrid

Imperatriz (MA) España

Teresina (PI) São Paulo Valencia, Bilbao,

Natal (RN) Bilbao

Fonte: Tabela Cidade de origem, cidade de trânsito, cidade destino na Espanha (elaboração própria, cf.
PESTRAF, 2002).

Dados da mesma pesquisa indicam que o grande número de rotas para a Espanha se
refere a uma organização criminosa chamada “Conexão Ibérica”, formada por diferentes
organizações criminosas através de seus prostíbulos em Portugal e na Espanha. Lisboa seria,
naquele momento, a porta de entrada das brasileiras, uma vez que o sistema de controle de
imigração não impunha grandes dificuldades. De lá elas eram levadas para cidades portuguesas
e espanholas por quatro rotas: Rota Norte, Rota “Rede Mississipi”, Rota Central e Rota Direta.
Em conversas por meio das entrevistas ou de informações coletadas com as OSCs e com
mulheres, vítimas de tráfico ou com projetos migratórios envolvendo prostituição, as rotas de
tráfico têm se diversificado, mesmo tendo a Espanha como destino final. Percebe-se a existência
de rotas Brasil-Paris (aéreo)/Paris-Espanha (terrestre - ônibus ou trem); Brasil-Portugal
(aéreo)/Portugal-Espanha (terrestre - carro ou ônibus). Outras rotas utilizam a Alemanha como
trânsito e até mesmo a Turquia para depois viajar, por via terrestre, até a Espanha.
Importante destacar que ainda há poucos dados que permitam identificar as principais
rotas de tráfico de pessoas, principalmente mulheres, crianças e adolescentes, inclusive pela
facilidade com que essas redes de desarticulam e articulam criando novas rotas.
Analisando as rotas de tráfico identificadas na PESTRAF, verificando as matérias
veiculadas na imprensa sobre redes desarticuladas pelas polícias envolvendo vítimas brasileiras,
115

e mapeando os serviços de atenção às vítimas na Espanha, pode-se perceber que as brasileiras


estão localizadas em diversas localidades da Espanha. Porém, evidencia-se uma concentração
de brasileiras e mulheres latinas, principalmente no norte da Espanha, envolvendo as
Comunidades Autônomas da Galícia, Astúrias, Cantábria, País Basco, La Rioja e Navarra.
Na região Sudeste e Sul, verifica-se a presença de brasileiras, apesar de em menor
número, em Barcelona, Valência, Múrcia e em algumas localidades da Andaluzia. Nessas
regiões, predominantemente agrícolas, constatam-se mulheres de origem africana
(principalmente nigerianas e marroquinas), muitas levadas por contratos sazonais temporários
de trabalho, como a colheita de morangos e frutas vermelhas, e depois traficadas internamente
para outras colheitas e exploração sexual225.
Também há notícias sobre a presença de brasileiras em cidades próximas a Madrid, entre
elas, Segóvia, Toledo, Salamanca e Cidade Real.

Figura 1. Mapa Político da Espanha por Comunidades Autônomas

Fonte: Mapa das regiões autonômicas da Espanha226.

225
Em tempos de pandemia, verifica-se em julho/2020, a situação de mais de 7000 mulheres marroquis com
contratos temporários para a lavoura vencido e sem poder retornar ao país de origem. ELSALTO. 7.000
temporeras marroquíes atrapadas y ningún plan. Miles de temporeras permanecen bloqueadas sin recursos
económicos ni información sobre cómo y cuándo podrán retornar a su país. Las organizaciones denuncian
abandono institucional y cuestionan el marco de la contratación en origen. 10/07/2020. Disponível em:
https://www.elsaltodiario.com/temporeros/7.000-temporeras-marroquies-atrapadas-y-ningun-plan-
retorno?fbclid=IwAR3-ks8CDqmP4XqaKlEQp1qwhc6H_lgb0RCDh75bbEdIGGPNkkc9W_tkT-g. Acesso
em: 15 jul. 2020.
226
Mapa da Espanha. disponível em: http://www.eduso.net/habilitacion/mapacomunidades.gif. Acesso em: 10 set.
2018.
116

Mesmo tendo poucas pesquisas que identifiquem rotas de tráfico de pessoas no Brasil,
pode-se mencionar o Projeto “Migrações Transfronteiriças: fortalecendo a capacidade do
Governo Brasileiro para gerenciar novos fluxos migratórios”. Conhecido como MT-Brasil, teve
como objetivo fortalecer a capacidade do Governo Federal brasileiro para melhor gerir os fluxos
migratórios, com foco na assistência e integração laboral e social de grupos vulneráveis, como
os retornados, migrantes e as potenciais vítimas de tráfico de pessoas, tendo como uma de suas
atividades conhecer os movimentos migratórios das fronteiras estudadas e potenciais vínculos
com o tráfico de pessoas (2016)227.
Outra pesquisa realizada no âmbito das fronteiras foi a ENAFRON: “Diagnóstico sobre
Tráfico de Pessoas nas Áreas de Fronteira no Brasil”, que abordou as modalidades de tráfico de
pessoas mais incidentes nas regiões, o perfil das pessoas traficadas e o modo de ação dos agentes
criminosos (2013)228. Quanto a esses dois estudos, há que se perceber que tanto a pesquisa
quanto o projeto supradescritos foram pensados e desenvolvidos para identificar perfis e rotas
de fluxos migratórios nas regiões de fronteira, mas a PESTRAF ainda continua sendo a única
pesquisa nacional que se propôs a identificar perfis das mulheres e meninas traficadas para fins
de exploração sexual, interna e internacionalmente, ainda em 2002.
A realidade do tráfico de mulheres é complexa e difícil de ser enquadrada em perfis
definidos e definitivos. De toda forma, é possível identificar e conhecer algumas
microrrealidades. Como a presente pesquisa tem por foco os estudos de caso dos regimes de
enfrentamento ao tráfico de mulheres do Brasil e da Espanha, entende-se relevante compreender
as particularidades das redes de tráfico de mulheres brasileiras com destino na Espanha, uma
vez que cada rede certamente apresenta diferenças entre as próprias, seja pela subjetividade de
cada coletivo, pelas características culturais, simbólicas ou até mesmo pelas características de
articulação e atuação das redes de tráfico, tanto as criminosas como as de atores responsáveis
pelo enfrentamento229.

227
ICMPD. Projeto MT Brasil. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-
pessoas/publicacoes/anexos-pesquisas/mtbrasil_act-1-3-1-4_relatorio_final.pdf. Acesso em: 10 jan. 2019. Ver
também: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos-
pesquisas/mtbrasil_act-1-3-1-4_relatorio_final.pdf.
228
ICMPD. ENAFRON. 2013. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-
pessoas/publicacoes/anexos-pesquisas/enafron_es_web.pdf. Acesso em: 15 jan. 2019.
229
Foi muito importante como pesquisadora ter tido a oportunidade de retornar, ao longo de 14 anos, algumas
vezes ao trabalho de campo, entrevistando mulheres brasileiras, em contextos de prostituição e tráfico de
pessoas. Essa bagagem de pesquisa permite destacar pontos de contato comuns e mudanças significativas no
fenômeno no decorrer do tempo, além de permitir identificar os avanços e possíveis retrocessos na construção
do regime de enfrentamento ao tráfico de pessoas, principalmente para o que nos interessa, as políticas de
atenção com enfoque em direitos. Ver em: TERESI, Veronica Maria. A cooperação internacional para o
enfrentamento ao tráfico de mulheres brasileiras para fins de exploração sexual: o caso Brasil - Espanha,
Dissertação de Mestrado. UniSantos. 2007. 202 p. Disponível em:
117

2.2 Quem são as Mulheres Vítimas de Tráfico no Contexto Espanhol?

Dentre a metade do século XIX e começo do XX, a Espanha é considerado um país


emissor de emigrantes, principalmente para a América Latina (Argentina, Cuba, Brasil, Uruguai
e México). Após a década de 1950, houve alteração do fluxo migratório para a Europa Central,
em decorrência da necessidade de mão de obra pouco qualificada para o setor industrial230.
A partir dos anos 1980, com a incorporação da Espanha à Comunidade Econômica
Europeia, há alteração radical dos fluxos migratórios, passando a Espanha da categoria de país
emissor para país receptor de imigrantes; caracteriza-se por uma imigração econômica
proveniente principalmente da África e da América Latina231.
Nesse complexo e efervescente contexto migratório, as redes criminosas de tráfico de
pessoas encontram espaço para desenvolver as suas atividades, seja para fins de exploração
sexual, seja para fins de trabalho forçado, principalmente na agricultura232.
A caracterização das mulheres brasileiras vítimas de tráfico no contexto espanhol deve
levar em conta diversos perfis de mulheres brasileiras, com as mais diversas especificidades e
vulnerabilidades. No Brasil, verifica-se que as redes de tráfico de mulheres normalmente não
se utilizam predominantemente da coação física para aliciar e levar ao exterior, mas se valem
da situação das suas mais diversas vulnerabilidades233, sugerindo, de forma enganosa, que
alcançarão melhores condições de vida no exterior, e as ameaçando, principalmente por meio
da coação psicológica. No contexto espanhol, pode-se identificar a ocorrência de coação física

http://biblioteca.unisantos.br/tede/tde_busca/ arquivo.php?codArquivo=61. Acesso em: 15 nov. /2019. Ver


em: CARBALLO, Marta. GARCÍA, Jorge. TERESI, Verônica. (org.). Seminario Internacional Articulación
de la Red Hispano-brasileña en el contexto de la atención a las brasileñas víctimas de trata. Madrid, 2009.
IUDC. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/16498425/Memoria-SeminarioTrata-Dec08. Acesso
em: 10 out. 2019. Ver em: RIVA, Marta Carballo. TERESI, Verônica Maria. Documento de Trabajo nº: 14
Investigación: “Hacia un Protocolo de Actuación en el Contexto Actual De Trata De Mujeres Brasileñas
en España”, 2009. Disponível em: https://www.ucm.es/data/cont/docs/599-2013-11-16-
DT_14_Hacia_un_protocolo_de_actuacion.pdf. Acesso em: 15 out. 2019.Ver em: LEAL, Maria Lucia;
TERESI, Veronica Maria; DUARTE, Madalena. Mulheres brasileiras na conexão ibérica: um estudo
comparado entre migração irregular e tráfico. 1. Ed. Curitiba. Appris.2013.
230
RIPOLL. Érika Masnet. O Brasil e a Espanha na dinâmica das migrações internacionais: um breve
panorama da situação dos emigrantes brasileiros na Espanha. Trabalho apresentado no XV Encontro Nacional
de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambu. Minas Gerais – Brasil, de 18-22 de setembro de
2006. p. 05.
231
RIPOLL. Érika Masnet. O Brasil e a Espanha na dinâmica das migrações internacionais: um breve
panorama da situação dos emigrantes brasileiros na Espanha. Trabalho apresentado no XV Encontro Nacional
de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambu. Minas Gerais – Brasil, de 18-22 de setembro de
2006 p. 05.
232
ACCEM, La otra cara de la trata: informe diagnóstico sobre otras formas de trata que afectan a las mujeres.
2019. Disponível em: https://www.accem.es/wp-content/uploads/2019/11/LA-OTRA-CARA-DE-LA-
TRATA-NOVICOM-2019.pdf. Acesso em: 15 fev. 2020. O presente estudo desenvolvido pela OSC ACCEM,
233
Importante remeter ao conceito de interseccionalidade já apontado.
118

e psicológica nas vítimas da Europa do Leste e da África que estão inseridas no mercado sexual.
“[...] existem diferenças importantes entre as redes, dependendo do tipo de abuso que praticam
nas mulheres. Assim, redes da América Latina e da África tendem a fazer maior uso de abuso
psicológico, enquanto na Europa Oriental o castigo físico predomina.” 234..
A grande percepção dos traficantes é a de se utilizar da vulnerabilidade das vítimas,
através do engano ou até mesmo com o consentimento delas que procuram melhores condições
de vida no exterior. Essas vítimas não se identificam como vítimas de tráfico, e seguem as
instruções dos traficantes para obter sucesso no seu deslocamento para o país de destino,
dificultando, frequentemente, a verificação dos controles de imigração. Ao chegarem ao destino
final, muitas têm os seus documentos apreendidos pela rede, são submetidas a cárcere privado
até pagarem as suas dívidas, não têm poder de escolha em relação aos clientes, nem mesmo em
relação aos horários e rotinas235.
As situações de violência e de coação também são identificadas pelas próprias mulheres:

[...] chamavam a gente 13h para almoçar, vestir e descer! Às vezes, não dava
tempo de todo mundo tomar banho” Ficavam duas ou três sem tomar banho”.
Toma mais tarde!236.

[...] o dinheiro fica todo na casa”. Você nem pega no dinheiro não!237.

Um cara me obrigou! Ele me segurou na cama e falou:


Sem camisinha... sua amiga fez comigo sem camisinha, porque você não?
Eu falei: não! Você está doido! Se ela foi, eu “bajo” agora e falo para ela
subir, mas eu não quero! Esse cara me forçou!238.

Mesmo no caso das vítimas que não são levadas por meio de coação ao país de destino,
as redes de tráfico atuam por meio de ameaças pessoais e aos seus familiares, obrigando-as a
omitir a situação de tráfico, inclusive dificultando o trabalho das autoridades, que identificam
essas pessoas como imigrantes, sejam regulares ou irregulares, quando de um controle em um
espaço de prostituição ou em qualquer outro espaço social, como ônibus, supermercado, rua
etc.

234
GOMARIZ, Maria José. (Equipo técnico y Coordinación). Tipología de la Prostitución Femenina en la
Comunidad de Madrid. Departamento de Trabajo Social y Servicios Sociales. Madrid: Escuela de Trabajo
Social de la Universidad Complutense de Madrid.,2001. p.172.
235
Ibid, p. 173. “Al maltrato psíquico propiamente dicho, como las amenazas constantes y la coacción, se unen las
condiciones penosas en las que se ven obligadas a vivir y trabajar, muchas de ellas víctimas de auténticos
secuestros por parte de los integrantes de la red, donde la única relación con el exterior es la mantenida con
clientes.”
236
LEAL, Maria Lucia; TERESI, Veronica Maria; DUARTE, Madalena. Mulheres brasileiras na conexão
ibérica: um estudo comparado entre migração irregular e tráfico. 1. Ed. Curitiba. Appris, 2013. p. 83.
237
Ibid., p. 83.
238
Ibid., p. 89.
119

Os traficantes deixam que as mulheres enviem algum dinheiro (400,500 euros


mês) para que as suas familias não as procurem. [...] Às vezes, inclusive a
familia imagina a atividade a qual a mulher está se dedicando, mas como
chega o dinheiro [...].
A propria percepção da vítima é nula de sua condição. Não se sentem
exploradas laboralmente e cada vez mais há menos violencia fisica239.

Outro aspecto relevante nas situações de tráfico é a da circulação constante dessas


vítimas, seja para aquelas que trabalham nas ruas, como para aquelas que trabalham nos “clubs
de alterne” ou nas “plazas” de prostituição240. O constante deslocamento impede que as vítimas
criem uma relação de afinidade com os próprios clientes e esses, assim como já evidenciado
em alguns casos, denunciem a situação de exploração ou até acabem ajudando a vítima a
escapar241.

Um cliente meu, que era policia, Guardia Civil, ficou meu amigo e cada vez
que ele ia ao apartamento, para cheirar cocaína, e vinha porque se sentia bem
comigo. Ele tinha confiança em mim e eu nele. Eu contava sobre a minha vida
para ele. Naquele momento eu o vi como minha salvação, então liguei para
ele e contei tudo que estava acontecendo. Ele disse que sim, havia um delito e
que se chamava coação. Ele recomendou que eu o denunciasse e saísse de
lá242.

O caso de Violeta, o contato com os clientes se dava pelo whatsApp e paginas de


contatos sexuais. O seu contato com o mundo exterior era somente por esses meios. Ela saia
para fazer compras, mas as ameaças psicológicas feitas pelo aliciador, de que ela seria deportada
para a Venezuela, faziam com que ela saísse muito pouco, e não se comunicasse com ninguém.

Violeta, você não pode ir a praia porque a policia pode te pegar. Ao cinema
também não porque vão te pegar. No final eu não saía. Eu dizia, Bento, preciso
de um dia livre. Eu não posso estar todos os dias com 3 celulares. Eu não tenho
vida.
Ele dizia: sim, tudo bem. Mas se um cliente ligar eu que você, faria, pois é
dinheiro243.

239
Entrevista OSC española que realiza abordagem às mulheres em contexto de prostituição, exploração sexual e
tráfico de pessoas. “Los tratantes dejam que las mujeres envien algun dinero (400, 500 euros mes) para que
sus famílias no las busquen. [...] A veces incluso la família imagina la actividad que se dedica, pero como
llega el dinero. [...] La propia percepcion de la víctima es nula de su condición. NO se sienten explotadas
laboralmente y cada vez más hay menos violencia física.”
240
Adiante serão caracterizados esses espaços de exercício da prostituição na Espanha.
241
Os clientes são, muitas vezes, o único contato que as vítimas têm com o Mundo exterior. E, eles são os que
auxiliam na fuga dessas mulheres.
242
Entrevista Violeta, fevereiro 2020.
243
Fala retirada de uma das entrevistas realizadas com mulheres no âmbito da pesquisa de Doutorado. Os nomes
dados às mulheres serão fictícios para preservar suas privacidades. Utilizar-se-á sempre nomes de flores
brasileiras. O nome dado ao traficante também é fictício. Procurou-se, em todas os trechos disponibilizados na
tese, colocar a fala da mulher da forma como ela foi dita, sem a preocupação da formalidade da língua,
justamente para preservar o diálogo e as palavras ditas pela entrevistada, que muitas vezes, trazem consigo
marcas de profundidade e violências sentidas.
120

A percepção da vítima sobre a situação de exploração sofrida nem sempre é percebida


de forma consciente, quando há consentimento dela no exercício da prostituição244. No caso de
Violeta, ela não visualizava uma situação de exploração existente até que foi auxiliada.
No geral, outro aspecto identificado é o sentimento de que a situação de vida melhorará
e elas poderão, após pagar a dívida, juntar dinheiro para regressar ao seu lugar de origem como
vitoriosas na empreitada.
Na Espanha a prostituição e exploração sexual feminina são exercidas em diferentes
espaços245.
Os clubs de alterne ou bares estão localizados nas cidades ou à beira das estradas. São
locais com música onde as mulheres ficam à disposição dos clientes. Eles chegam, pagam
bebidas (“sacan copas”), conversam, e se acerta o valor da relação sexual. Após esse primeiro
momento, as mulheres levam os homens aos quartos, que ficam no mesmo local. Esses lugares
não são as residências dessas mulheres; elas somente vão ali para trabalhar. Recebem, muitas
vezes, parte do valor das bebidas pagas pelo cliente, além do valor da relação sexual (programa).
Muitos desses espaços246 funcionam como plazas, onde as mulheres vivem, e pagam
uma diária ao dono247. Aparentemente, funcionam como um hotel. O esquema de receber parte
do valor pago pelas bebidas é similar aos clubes de alterne. Nesses locais, as mulheres não
costumam ficar mais que 21 dias (período menstrual). Os donos dos clubes aproveitam o
período menstrual para as mudar de clube, e até mesmo de cidade. Isso ocorre para diversificar
o “objeto” de mercado (mulheres), e para evitar que os clientes estabeleçam relação afetiva com
elas, o que muitas vezes favorece uma aproximação que pode resultar em auxílio e denúncia
das redes248.
Até os anos 2010, era comum encontrar muitas mulheres brasileiras e colombianas
nesses espaços. Atualmente (2020), é mais comum encontrar venezuelanas, paraguaias,
colombianas e algumas brasileiras, dependendo da região da Espanha249. A idade média dessas

244
Para o Protocolo de Palermo o consentimento dado é irrelevante para caracterizar o tráfico de pessoas.
245
Ver em: MALGESINI, Graciela. (Coordinadora de la Investigación). Impacto de una posible normalización
profesional de la prostitución en la viabilidad y sostenibilidad futura del sistema de pensiones de protección
social. Estudios y Cooperación para el Desarrollo. Informe ESCODE2006, 2006. pg. 24 - 31. TERESI,
Verônica Maria. A cooperação internacional para o enfrentamento ao tráfico de mulheres brasileiras
para fins de exploração sexual: o caso Brasil - Espanha. Dissertação (Mestrado) - UniSantos. 2007.
Disponível em: http://biblioteca.unisantos.br/tede/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=61. Acesso em: 15
maio 2020.
246
Os “clubes de alterne” são conhecidos na gíria como “puticlubs”
247
O preço da diária varia de local para local, entre 30 e 50 euros.
248
SALAS, Antonio. El año que trafiqué con mujeres. Madrid: Ediciones Temas de Hoy, 2005. p.114.
249
A variação da nacionalidade das mulheres está relacionada ao aumento das condições de vulnerabilidade dos
países de origem e a percepção das autoridades espanholas sobre esses deslocamentos para o exercício da
prostituição.
121

mulheres é de 20 a 30 anos. Elas chegam a ganhar de 2000 a 3000 euros por mês, somando o
valor percebido entre relações sexuais e as bebidas pagas pelos clientes250.
Há clubes pequenos ou grandes, a depender do número de mulheres que estejam
exercendo a prostituição, que pode oscilar entre 10 e 200 pessoas, incluindo a encarregada do
local, camareiros, cozinheiros, vigias etc.
Muitos deles, por estarem à beira das estradas, são menos visíveis e mais procurados
pelos clientes que desejem anonimato. Ademais, as mulheres que estão nesses locais,
principalmente pelo sistema das plazas, têm mais dificuldade de estabelecer contato com a vida
social exterior, por estarem fora das cidades. Os clientes, não raro, como já mencionado, são
seus interlocutores diretos com a vida de fora.
Alguns clubes são locais onde as mulheres moram e exercem prostituição. Neles elas
têm como referência de lugar um quarto, que dividem com duas ou três colegas, sendo ainda os
locais onde fazem os programas sexuais.
A fala das mulheres, que foram entrevistadas em 2011 no projeto Mulheres brasileiras
na conexão ibérica, indica que era comum esses locais de exercício da prostituição serem os
mesmos da residência, e havia que se pagar um valor fixo por dia, além dos controles para sair
do local.
No lugar que nós dormia nós fazia o programa!251.

[...] todo o dia eu pagava 50 euros, todos os dias. O primeiro programa é da


casa, o restante é seu. Você tem que fazer todo dia o da casa, ou que você faz
pra você ou não! Se você mora dentro do clube aí você tem hora pra sair e pra
chegar. E você pode sair só de dia, de noite não pode sair! Se você sair de
noite, você tem que pagar a sua saída! A saída é 150 euros252.

Era mais ou menos... porque se a gente só fizesse um passe só, a gente não
ficava com nada!253.

É comum a aplicação de multas às mulheres que descumprem horários, por


permanecerem nas habitações com os clientes mais tempo que o estipulado ou até mesmo
quando saem dos locais com clientes para realizar programas e não retornam no horário
programado.

250
Importante destacar que, as mulheres que têm dívidas contraídas com redes de tráfico e com donos de clubes,
seja a título de passagem aérea, valor para ingressar na Espanha, etc., e assim não recebem praticamente
nenhum dinheiro até devolverem toda a dívida, salvo se o traficante deixar que essa mulher envie um pouco de
dinheiro para sua família e com isso, diminui a percepção de violência, violação.
251
LEAL, Maria Lucia; TERESI, Veronica Maria; DUARTE, Madalena. Mulheres brasileiras na conexão
ibérica: um estudo comparado entre migração irregular e tráfico. 1. Ed. Curitiba: Appris, 2013.
252
Id.
253
Id.
122

Algumas mulheres que se encontram nos clubes não moram ali; elas passam o dia, sob
vigilância, em outro espaço, por vezes um apartamento.

[...] você ia caminhando lá, e alguém te seguindo, até chegar lá no bar de copa
lá, tipo uma discoteca... e começaram a me ameaçar... se você não obedecer!
Eles disse que eu tinha que ficar lá e me prostituir! Aí, ele falou: não! Você
tem que trabalhar e tem que pagar a passagem! Eu falei: num sei o que é que
tá falando não! Aí começou a me ameaçar. E falou assim: Agorinha cê vai
entender o quê que é! Você é muito rebelde! Quê isso? Você é muito
ignorante! Vou acabar arrancando a sua língua, cortando sua cabeça fora!
Tinha um monte de gente vigiando!254.

Interessante notar que, passados praticamente 10 anos da última vez em que se pôde
acessar esses espaços de prostituição, houve relatos, por parte das OSCs entrevistadas, que esses
espaços se verificam cada vez menos, pelas imposições e restrições de cunho sanitário feitos
pelas administrações públicas locais. Começa a não ser tão vantajoso esse sistema para os
próprios traficantes. Porém, uma das OSCs entrevistadas menciona que, apesar de que, sim, há
que se eliminarem os clubes, por outro lado o fechamento desses espaços não eliminará a
prostituição, exploração e tráfico de pessoas. Ao contrário, eliminar os clubes dará maior
invisibilidade à prostituição e maior dificuldade de acesso às mulheres, aumentando a
vulnerabilidade e possíveis violências. Como os clubes funcionam como bares, a polícia pode
acessar a qualquer momento; porém, se essas mulheres estiverem em pisos, o acesso é possível
somente com um mandado judicial255.
Os pisos são apartamentos onde as mulheres exercem prostituição. Esses espaços
constituem modalidade de muita expansão na Espanha. Muitos são gerenciados por agências
ou por donos particulares. São apartamentos discretos onde o cliente tem a possibilidade de
escolher as mulheres de forma individualizada. Geralmente, os pisos têm de 5 a 15 mulheres
trabalhando. Há 10 anos, o cliente chegava e ficava numa sala. Todas as mulheres entravam,
uma a uma, e ele ao final escolhia com qual queria ter relações sexuais. Nos dias atuais, esse
contato inicial da “escolha” é feito, principalmente, de forma on-line. Nessa nova modalidade,
o cliente já chega ao piso tendo horário definido com a mulher “escolhida”.
Por serem apartamentos particulares, os pisos são mais difíceis de serem identificados e
de se revelar qual é a condição de vida e de “trabalho” a que estão submetidas as mulheres.
Ademais, os controles feitos pela polícia são menores, uma vez que essa somente pode entrar,
sem o consentimento do dono, se tiver uma autorização judicial, o que somente ocorre quando

254
Id.
255
“Por un lado si que me gustaría que desaparecieran los clubes, y por otro lado no, porque es la formula para
poder llegar hasta las mujeres. La mayor invisibilidad, mayor dificultad en acceder a ellos, mayor vulnerabilidad,
mayor violencia. Cuanto más visibles, menos violência hay.” (OSC entrevistada)
123

há provas de que ali as mulheres são vítimas de tráfico, que estão sendo submetidas a situação
de escravidão ou sendo agredidas. O contato feito pelos clientes, até aproximadamente os anos
de 2010, era prioritariamente realizado pelos inúmeros anúncios divulgados nos jornais de alta
circulação espanhola256. Atualmente, esse contato se faz pelas redes sociais e plataformas
virtuais de acesso. Praticamente, todos os sistemas de mensagens e redes sociais, como
WhatsApp, Tinder, Facebook, Instagram, Snapchat são usados para contactar serviços ligados
à prostituição.
As mulheres que trabalham nos pisos geralmente pagam metade do que ganham em cada
relação sexual, chegando a somar, por mês, cerca de 1200 a 4000 euros. Nesses espaços, as
mulheres podem ou não residir. Aquelas que residem no local são mais controladas pelas
encarregadas, e devem estar disponíveis 24 horas por dia, além de não terem qualquer margem
de escolha dos clientes, ao contrário do que acontece nos clubs de alterne e nas ruas. “[...] a
diferença é que o apartamento é 24 h, você tem que tá todo dia lá, você descansa, dorme, mas
o homem pode chegar às 3 h, 4 h, 6 h da manhã. Você poder estar deitada que eles vão lá te
chamam.”257.
Existe também a prostituição de rua (“prostitución callejera”), desenvolvida em
parques, centros urbanos, polos industriais. A rua é o espaço em que se faz a “negociação
econômica”. As relações sexuais são feitas em hotéis ou pensões, e até mesmo nos carros ou
espaços abertos e afastados. Na Espanha, a prostituição de rua é exercida principalmente pelas
mulheres africanas e do leste europeu e por algumas latinas258. As brasileiras estão localizadas
nos clubes de alterne, nas plazas e nos pisos, não exercendo prostituição de rua.
As mulheres que exercem prostituição nas ruas, salvo aquelas que estão sendo
agenciadas pelos traficantes (“chulos”), não têm que dividir os valores ganhos com as relações
sexuais; de outro lado, elas estão mais vulneráveis a violências, agressões etc. Além disso,
enquanto nos clubes e nos pisos o valor ganho pelas mulheres varia entre 1000 e 4000 euros,
nas ruas elas conseguem de 500 a 2500 euros, dependendo muito da idade e da aparência física
da mulher/travesti/transexual259.

256
Discutiu-se muito sobre o papel desempenhado pela mídia na promoção e divulgação da prostituição. Dados
indicam que somente o jornal espanhol “El País” lucra cerca de 5 milhões de euros por ano em publicidades
com prostituição. Mesmo sabendo que a prostituição não é uma atividade proibida na Espanha, discute-se a
responsabilidade social dos jornais na demanda pela prostituição. Ver: Periodismo digital. Borja Ventura:
http://blogs.periodismodigital.com/periodismo.php/2006/04/04ª_2. Acesso em: 13 jan. 2020.
257
LEAL, Maria Lucia; TERESI, Veronica Maria; DUARTE, Madalena. Mulheres brasileiras na conexão
ibérica: um estudo comparado entre migração irregular e tráfico. 1. Ed. Curitiba: Appris, 2013. p. 82.
258
As travestis e transexuais também utilizam bastante os espaços da rua para exercer prostituição e onde também
são exploradas pelas redes de tráfico.
259
O valor pago pelas relações sexuais varia de acordo com o serviço desejado pelo cliente. Nas ruas, um “serviço
básico” de penetração vaginal com preservativo pode custar 20 euros. Já a penetração anal, pode chegar a 40
124

Sabe-se também que muitas das mulheres africanas e do leste europeu nas ruas estão
sendo agenciadas por seus traficantes, e não ficam com nada do que recebem pelas relações
sexuais.
As OSCs relatam a existência de mulheres transexuais brasileiras nos espaços de
prostituição espanhóis. As OSCs especializadas e entrevistadas esclarecem que as/os
transexuais se encontram, em grande parte, nos pisos e nas ruas. Se há vulnerabilidade das
pessoas que exercem prostituição, essa população é a mais vulnerável. A invisibilidade (quando
nos pisos), e as explorações e violências sofridas nas ruas evidenciam essa situação260.
As redes criminosas se articulam e se aproveitam de sistemas que tenham controle
migratório ineficiente, com vulnerabilidade social e ausência de Políticas Públicas efetivas de
combate e atendimento às vítimas. Além disso, essas redes de tráfico se adaptam às mudanças
dos controles migratórios dos países de destino, criando novas metodologias de inserção261.
A dívida da “bolsa viagem” é contraída com o dono do club de alterne ou com o
proprietário do apartamento (piso). Algumas delas são obrigadas a permanecer no local de
“trabalho” até pagarem a dívida, e muitas se envolvem com drogas.
Conforme estudo do Departamento de Trabalho Social e Serviços Sociais da
Universidade Complutense de Madrid, no ano 2001, as redes de tráfico apresentam uma
estrutura hierárquica e piramidal, com uma organização interna muito fechada e rígida,
composta basicamente de homens. Essas redes estão envolvidas paralelamente com outros tipos
de delitos, como o tráfico de armas e de drogas, roubos, falsificação de documentos, lavagem
de dinheiro, entre outros262.
Tal constatação foi ratificada pela pesquisadora Piscitelli, que acrescenta: “As
organizações que atendem trabalhadoras do sexo consideram que o número de brasileiras

euros. Uma “felación” (masturbação) pode custar 10 euros. Nos clubes a penetração vaginal pode custar 50
euros e a anal, 70. Nos pisos os valores variam, conforme o “status” do local. Os pisos de “alto standing”
podem chegar a cobrar 400 euros por cada relação sexual. Os mais simples, podem cobrar de 40 a 80 euros. O
tempo de serviço prestado também é diferente conforme o local. Nos clubes e nos pisos, o tempo aproximado
é de 30 minutos. Já nas ruas, o tempo médio é de 5 a 10 minutos. Importante destacar que a prostituição
masculina e transexual é mais paga. Mesmo na prostituição callejera, uma mulher trans não aceita menos que
50 euros por qualquer serviço. Já um homem, não aceita menos que 70 euros por serviço
260
A Fundación Cruz Blanca, organização da sociedade civil espanhola é a única organização que possui uma casa
de acolhida com seis lugares para atender homens em situação de vulnerabilidade e vítimas de violência sexual.
Porém, não há espaços específicos para acolher as transexuais.
261
Durante nossa estância na Espanha pudemos perceber que as fronteiras espanholas estão muito atentas à
imigração de mulheres brasileiras, seja ou não por meio das redes de tráfico, dificultando a entrada no espaço
espanhol. Deve-se destacar, conforme diálogos mantidos com as polícias espanholas e pelas próprias
impressões de algumas ONGs visitadas, uma tendência atual para o tráfico de mulheres paraguaias e
venezuelanas.
262
GOMARIZ, Maria José. (Equipo técnico y Coordinación) Tipología de la prostitución femenina en la
comunidad de Madrid. Madrid: Departamento de Trabajo Social y Servicios Sociales. Escuela de Trabajo
Social de la Universidad Complutense de Madrid, 2001. p. 172-173.
125

oferecendo serviços sexuais na rua é relativamente reduzido quando comparado com mulheres
de outras nacionalidades. Elas seriam uma presença relevante em espaços fechados.”263.
O perfil do aliciador está diretamente ligado às exigências do mercado de tráfico para
fins sexuais, ou seja, a demanda é que define o perfil do aliciador e o da pessoa explorada.
No Brasil, apesar da prevalência de homens como aliciadores/agenciadores das vítimas
de tráfico264, há grande número de aliciadoras que conseguem convencer mulheres das
vantagens da inserção nas redes sexuais, através de suas experiências “bem-sucedidas” com a
prostituição no exterior. Percebe-se, principalmente pelo relato das mulheres vítimas, que essas
aliciadoras já estiveram em condição de vítimas, mas conseguiram pagar a sua dívida e foram
inseridas na estrutura das redes de tráfico para exercer um poder de convencimento sobre outras
mulheres265; ou ainda, que essas aliciadoras se envolvem sentimentalmente com algum
traficante ou dono de clube de prostituição, e acabam sendo as principais fontes de aliciamento
de mulheres no Brasil.

O exemplo do pequeno município de Uruaçu, localizado no interior de Goiás,


a menos de 200 Km de Brasília, mostra bem as possibilidades oferecidas às
brasileiras mais podres pelo comércio do corpo no estrangeiro.
[...] Em 1997, uma jovem da cidade deu um exemplo diferente. Foi para a
Espanha para trabalhar na prostituição (que fique claro que no primeiro
momento essa ocupação foi ocultada da família e da cidade). Em pouco
tempo, várias moças de Uruaçu seguiram a mesma trilha. Em 2004, as
chamadas “Espanholas” (mulheres que construíram um patrimônio em
Uruaçu se prostituindo na Espanha) tinham consolidado sua imagem na
cidade como mulheres de sucesso, a ponto de não mais esconder a origem
dos ganhos obtidos no exterior. Hoje elas são donas de aproximadamente
60% dos imóveis para alugar no município266.

Assim, fica evidente o papel desempenhado pela mulher aliciadora. Verificam-se


também casos de mulheres que, sem terem consciência de que estão aliciando as suas amigas,
parentes, acabam conseguindo o contato, e muitas vezes ajudando com dinheiro para a entrada
de outras mulheres nos países de destino.

263
PISCITELLI, Adriana. Traficadas ou autônomas?: a noção de consentimento entre brasileiras que oferecem
serviços sexuais na Espanha. In Prelo: Brasília, DF: Ministério da Justiça. Dilemas jurídicos do enfrentamento
ao tráfico internacional de seres humanos.
264
A PESTRAF indica que 59% dos aliciadores são homens, contra 41% de aliciadoras mulheres, pg.64
265
Ver em: RIOPEDRE, José López. Inmigración colombiana y brasileña y prostitución femenina en la ciudad
de Lugo: historias de vida de mujeres que ejercen la prostitución en pisos de contactos. Tese de Doctorado
UNED, 2010; ARJONA GARRIDO, Ángeles; CHECA OLMOS, Juan Carlos y ACIÉN GONZÁLEZ,
Estefanía. Economía étnica y espacios alternativos de ocio: estrategias económicas de mujeres
subsaharianas” en Mujeres en el camino. El fenómeno de la migración femenina en España (Checa y Olmos
ed.: 117-138). Barcelona. Icaria. 2005. Ver em: ACIÉN, Estefanía. Mujeres inmigradas trabajando en la
prostitución en el poniente almeriense: perspectivas de acercamiento y experiencia de trabajo en La
prostitución a debate. Por los derechos de las prostitutas (Briz y Garizábal coord.: 78-92). Madrid. Talasa,
2007.
266
Revista Veja, edição 05/02/2005.
126

Verifica-se também que muitas mulheres vítimas de tráfico acabam indicando outras
mulheres brasileiras para irem à Espanha, com contatos, local para elas exercerem prostituição,
conseguindo em contrapartida diminuir parte de sua dívida contraída com a rede criminosa.
Porém, ao contrário do que possa parecer muitas vezes, elas não têm a percepção de que estão
traficando mulheres e se beneficiando com isso. As suas percepções são de que estão ajudando
uma amiga ou parente a melhorar de vida, e ao mesmo tempo diminuindo as suas dívidas. Há
uma complexidade na identificação do papel exercido por essas mulheres que, por momentos,
parecem aliciadoras de outras mulheres e, por outros, parecem estar incentivando projetos
migratórios de outras mulheres.
Independentemente da existência dessas redes de aliciadores, verifica-se a existência de
uma diversidade de possibilidades viabilizando a migração para se inserir no mercado sexual.
As migrantes envolvem conhecidos, amigos, parentes e namorados267. Existe uma linha tênue
entre a migração livre para exercício da prostituição e o tráfico de mulheres para fins de
exploração sexual; diga-se, nem sempre possível de separação.
No que se refere às redes de favorecimento do tráfico para fins de exploração sexual,
percebe-se que elas se organizam por meio de diferentes atores que desempenham funções
diversas e complementares, sejam do ramo do turismo, do transporte, da moda, de agências de
serviços (massagens, acompanhantes), e que possibilitam uma estrutura dentro e/ou fora do
Brasil para a eficiência do tráfico, com o máximo de lucro possível.

Também em entrevista, uma das modelos, de 16 anos, afirmou ter


conhecimento de duas colegas que, ao irem para São Paulo, receberam
propostas capciosas. Uma que tinha 17 anos aceitou e foi para a Espanha, sem
a família. Passando um tempo, até a família perdeu contato com ela. A outra,
com 15 anos, não aceitou, voltou para Rondônia e saiu da carreira de
modelo268.

A perspectiva dessas mulheres inseridas no mercado sexual espanhol sempre aparece


como uma atividade momentânea, até conseguir dinheiro suficiente para retornar ao seu lugar
de origem e desenvolver uma atividade ou até mesmo se inserir em outra atividade diferente da
prostituição na Espanha. Porém, a inserção profissional na Espanha é difícil, pela situação de
irregularidade em que se encontram. Quase todas entram como turistas, tendo o visto expirado
em três meses. Existe a possibilidade de ampliação do visto pelo mesmo período, mas nenhuma
consegue fazer esse trâmite porque se encontra em situação de privação de liberdade nesses três
primeiros meses, até pagarem as suas dívidas contraídas com as redes que as levaram à Espanha

267
Ver AGUSTÍN, Laura Maria. Trabajar en la industria Del sexo, y otros tópicos migratorios. Donostia: Tercera
Prensa, 2005.
268
PESTRAF, p. 69.
127

ou não têm como justificar a ampliação da estadia na Espanha. Assim, passam à situação de
irregulares frente às autoridades de imigração espanholas269.
Essa situação de irregularidade as torna mais vulneráveis, basicamente por dois motivos:
1) frente aos proxenetas que muitas vezes as ameaçam denunciar às autoridades policiais
espanholas se não fizerem o que eles determinam, e 2) em relação à tentativa de sair da
prostituição e se inserir em outra atividade, pela ausência de possibilidades de conseguir outra
inserção profissional270.
É importante perceber que considerar todas as mulheres como vítimas de tráfico
equivale a deixar de compreender o fenômeno da prostituição no seu todo; possivelmente, estar-
-se-ia negando autonomia de vontade às mulheres. Independentemente da posição teórica ou
moral que se possa ter sobre a prostituição, o discurso de algumas das mulheres e de algumas
organizações da sociedade civil que atendem mulheres em situação de prostituição revelam, em
alguns casos, voluntariedade no exercício da prostituição. Cabe ressaltar que é necessário dizer
que há mulheres trazidas por redes de tráfico informais, desvinculadas de grandes redes de
tráfico de pessoas ligadas ao crime organizado transnacional, e que necessitam ser acolhidas,
atendidas e protegidas.
Conhecendo histórias de mulheres brasileiras, percebeu-se que a maioria chega à
Espanha com a intenção de “fazer” dinheiro e depois voltar para o Brasil. Com o tempo, pensam
em criar condições para ficar na Espanha mudando de atividade profissional, e trazer as suas
famílias, principalmente os seus filhos, que ficaram aos cuidados de suas mães, pais ou outros
familiares. Interessante notar que esse perfil é muito semelhante na maioria das mulheres,
independentemente de sua nacionalidade.
A maternidade compartilhada é um aspecto importante da condição da mulher
migrante/vítima de tráfico e caracteriza a maternidade transnacional. As mulheres deixam os
seus lugares de origem (seja por meio de um processo autônomo migratório ou como vítima de
tráfico), confiam os seus filhos aos cuidados de outra pessoa (geralmente, uma mulher: sua mãe,
irmã, tia), mas nunca deixam de se vincular a eles. A expectativa é conseguir proporcionar
melhores condições de vida a essas crianças, mesmo que isso implique não acompanhar esse
processo de crescimento. Nesse contexto, a feminização das migrações converteu as avós em

269
A pena para um imigrante irregular é a deportação. Na Espanha esse termo técnico não existe. Eles utilizam o
termo expulsão. O termo expulsão é utilizado tanto para a pena resultante de uma infração administrativa
(Exemplo: por irregularidade documental) como para uma pena judicial (no caso de cometimento de crime por
parte de migrante).
270
A contratação de um imigrante irregular na Espanha é considerada uma infração administrativa grave pela lei
de estrangeiros, com multas altíssimas ao empregador. Isso inibe consideravelmente os empregadores na
contratação de migrantes irregulares.
128

mães, quando estas acreditavam ter concluído tais etapas em suas vidas. As consequências para
a vida dessas avós, que começam a assumir a responsabilidade de criar filhos/as, influencia na
formação e percepção da criança de qual é o seu núcleo familiar, e como se formam as relações
entre as diferentes pessoas nesse núcleo. Essas separações mães/filhos/as têm consequências
profundas nas relações pessoais dessas mulheres, principalmente de seus filhos/as, mas acabam
gerando efeitos nos círculos sociais mais extensos271. Apesar da dificuldade de pesquisas mais
generalistas sobre os perfis das mulheres272 no contexto do tráfico de pessoas e de prostituição,
isso é percebido pelos dados das pesquisas e dos relatos das organizações da sociedade civil
espanholas. Grande parte dessas mulheres têm entre 19 e 40 anos, com filhos no Brasil. São
mulheres brancas e negras273. A maioria delas não exercia a prostituição no Brasil. Muitas não
haviam terminado o ensino médio; outras, nem mesmo o ensino fundamental, e indicavam ser
de Goiás, Paraná, São Paulo (interior e litoral), Bahia e Pernambuco.
De forma geral, a captação nos países de origem ocorre por meio de redes informais e
familiares: umas trazem as outras na intenção de “ajudar” amigas e parentes a melhorar de vida.
No caso das redes de mulheres brasileiras na Espanha, elas mesmas são o contato para a vinda
de outras brasileiras. O dinheiro e o local de “trabalho” são possibilitados pela rede organizada
do mercado sexual na Espanha. Os donos dos clubes cuidam da infraestrutura, logística de
encaminhamento da mulher do aeroporto/cidade/local de “trabalho”, além, muitas vezes, do
dinheiro para emissão de passaporte, passagem aérea e dinheiro para “comprovar”, frente às
autoridades migratórias na Espanha, que se trata de uma viagem a turismo274.

271
RIVA, Marta Carballo. TERESI, Verônica Maria. Hacia un Protocolo de Actuación en el Contexto Actual
de Trata de Mujeres brasileñas en España. Documento de Trabajo n. 14. Instituto Universitário de
Desarrollo y Cooperación de la Universidad Complutense de Madrid. 2009.
272
Importante destacar que os perfis de mulheres encontradas e entrevistadas especialmente neste momento da
elaboração da tese, mesmo não sendo todas brasileiras, constroem perfis que se assemelham aos perfis das
brasileiras, em diversos aspectos.
273
É importante relacionar esse perfil racial das mulheres brasileiras no contexto espanhol com os temas
relacionados ao colorismo negro. Curiosamente, as mulheres brasileiras negras não são as negras consideradas
de pele retinta. As negras de pele retinta são as africanas, principalmente as nigerianas. As brasileiras negras
são de tonalidade mais clara e traços mais europeizados. Entende-se por “colorismo, de maneira simplificada,
que as discriminações dependem também do tom da pele, da pigmentação de uma pessoa. Mesmo entre pessoas
negras ou afrodescendentes, há diferenças no tratamento, vivências e oportunidades, a depender do quão escura
é sua pele. Cabelo crespo, formato do nariz, da boca e outras características fenotípicas também podem
determinar como as pessoas negras são lidas socialmente. Pessoas mais claras, de cabelo mais liso, traços mais
finos podem passar mais facilmente por pessoas brancas e isso as tornaria mais toleradas em determinados
ambientes ou situações.” CULT. Quem é mulher negra no Brasil? Colorismo e o mito da democracia racial.
Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/colorismo-e-o-mito-da-democracia-racial/. Acesso em: 15
maio 2020.
274
As mulheres devem chegar à Espanha com o que eles chamam de “bolsa de viagem” que compreende dinheiro
efetivo e com reservas em hotéis para configurar que vêm a turismo. Não preenchendo esses requisitos, muitas
são não-admitidas e retornam imediatamente aos seus países de origem.
129

Conversar com mulheres em contextos de prostituição permite verificar que há nuances


e formas de exercício da prostituição bastante diversas. Nem todas as mulheres se enquadram
no perfil de traficadas, mesmo sabendo que existe uma faixa muito tênue entre o exercício da
prostituição livre e formas de exploração da prostituição. Todavia, é inegável verificar situações
de tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, mesmo que estas não tenham a percepção
desse fenômeno e não se vejam em situação de exploração.
A possibilidade de entrevistar mulheres que sofreram diversas violações de direitos
humanos em decorrência do tráfico de pessoas certamente permitiu compreender diversos
aspectos do fenômeno do tráfico. Ainda mais quando se tem a possibilidade de entrevistar
mulheres, aparentemente, bastante diferentes pelas suas histórias, seus lugares de origem,
etnias, realidades pessoais, idiossincrasias, motivações para o deslocamento, organização da
viagem, trânsito e experiência no destino. Conhecê-las e as ouvir falar na primeira pessoa,
permite se aproximar do fenômeno do tráfico de pessoas de forma singular.

2.2.1 As histórias de mulheres permeadas pela experiência do fenômeno do tráfico de


pessoas

Foram realizadas cinco entrevistas com mulheres: duas brasileiras (uma na Espanha e
outra retornada ao Brasil, em Goiânia), uma nigeriana, uma dominicana, uma venezuelana;
estas se encontravam ao norte da Espanha, em Gijón (Astúrias). Todas passaram por situação
de tráfico para fins de exploração sexual. Essas mulheres entrevistadas foram nomeadas de
Camomila275, Jasmin, Hibisco, Liz e Violeta, para preservar as suas identidades e
privacidades276. Das cinco narrativas, contar-se-ão alguns poucos trechos.
Mesmo sabendo que nem todas as mulheres entrevistadas eram brasileiras, entendeu-se
importante entrevista-las, pois muitas das condições prévias que as levaram a aceitarem viajar
para a Espanha e vivenciarem o tráfico de pessoas são bastante similares e, certamente, tirar a
nacionalidade e a rota de tráfico, impediria saber se tratar de mulher que não fosse brasileira.
Isso leva a pensar que muitas das condições de vulnerabilidade vivenciadas efetivamente se
referem a questões ligadas ao gênero e ao patriarcado presente nas sociedades.

275
Falar-se-á da história de Camomila oportunamente no capitulo 5.
276
As entrevistas são mecanismos muito interessantes quando se estabelece confiança entre entrevistadora e
entrevistada. As entrevistas funcionaram como um diálogo, que tinha como pano de fundo, a história de vida
dessas mulheres. Por meio dessas histórias foi permitido compreender suas necessidades, expectativa, sonhos,
violências sofridas vivenciadas desde seus países de origem, até os motivos que as levaram à Espanha. As
entrevistas atuais permitem dar mais sentido e realidade aos perfis descritos em estudos relacionados com o
tráfico de pessoas, principalmente contrastar as realidades antes pessoalmente identificadas e entrevistadas
(principalmente em 2006/2007 e 2009/2010).
130

2.2.1.1 Jasmin, a nigeriana de cabelos longos trançados


Então, aqui está você
estrangeiro demais para casa
estrangeiro demais para aqui.
Nunca o suficiente para ambos.
Ijeoma Umebinyuo277.

Jasmin, uma mulher nigeriana com cabelos trançados, olhar forte, porém esquivo,
desconfiado, voz suave, de 24 anos de idade, originária de Lagos, cidade mais populosa da
Nigéria, tinha como desejo terminar o seu ensino médio e viver “normal”, como ela mesma
delineou: “Quero ter um trabalho e uma vida boa”. Seu sonho não se realizava, uma vez que a
sua mãe, e de mais sete filhos, não tinha condições de bancar a finalização de seus estudos, e
estudar em uma escola pública não era uma opção. Ela trabalhava em uma loja de roupas para
pagar os seus estudos e criar a sua filha de dois anos. Ficou mais de três meses sem receber
salário. Seu desejo de ter uma vida boa, não visualizar outras opções, e o convite feito por um
amigo há cinco anos a levaram a empreender uma viagem com destino à Espanha.

“No meu país se você não vai à Universidade, você não vai ter trabalho. Eu
não gostava do meu país pois não tinha bons trabalhos. Pensei que quando
chegasse à Espanha, eu teria uma vida boa.”

Ela não sabia o que teria que fazer quando chegasse à Espanha, somente que haveria
bons trabalhos, conforme o seu amigo afirmou. Como ela não tinha dinheiro, outra pessoa
pagou a sua viagem. Ela somente teria que pagar quando chegasse à Espanha, com o seu
trabalho.
E assim foi como Jasmin aceitou migrar em direção à Espanha. O trajeto foi longo, mais
de seis meses, entre junho e dezembro, saindo de Lagos (Nigéria), passando por Níger, Líbia,
Itália, e finalmente Benidorm (Alicante), na Espanha. Saiu sem dizer nada a ninguém, nem
mesmo à sua mãe que estava cuidando de sua filha. Jasmin somente avisou a sua mãe quando
chegou à Líbia. Da Nigéria à Líbia, o trajeto foi feito em Jeeps; até a Itália, de botes (pateras).
Como ela mesma diz, o “trajeto foi muito duro.” E ela se sentiu enganada por esse amigo.
Passou diversas formas de violência e violações, além de perder amigas pelo trajeto.

“Perdi duas grandes amigas no trajeto. Uma no deserto do Saarah, de fome e


sede; a outra morreu no oceano afogada. Naquele dia, 80 (oitenta) pessoas
morreram na água. Eu pensei que iria morrer também. Não havia esperança.”

277
“So, here you are/ too foreign for home/ too foreign for here. / Never enough for both.” Ijeoma Umebinyuo,
Questions for Ada. Ijeoma é uma poeta nascida e criada em Lagos, na Nigéria. Publicou sua primeira coleção
de poemas, chamada Questions for Ada, em agosto de 2015.
131

Figura 2. Trajeto percorrido por Jasmin da Nigéria até a Espanha

Fonte: Google Maps.

Quando chegou à Itália, foi recepcionada por uma OSC, de que não recorda o nome.
“Mas lá não há quem te escute, eles não conversam com você.”278. De lá, foi levada e ficou
trabalhando um mês na casa de quem a levou279. Depois foi levada à cidade de Benidorm
(Espanha). “Quando ele chegava em casa, ele também precisava de sexo. A vida era muito
difícil.” O homem que a levou queria que ela trabalhasse em um clube na Espanha, mas ela
nunca chegou a trabalhar nesses espaços. Estando em Benidorm ela conversou com a sua mãe,
dizendo que não estava mais aguentando aquela situação. Sua mãe, que tinha uma amiga em
Barcelona, mandou ligar para essa pessoa. Jasmin, assim, foi orientada a procurar a Cruz Roja
de Alicante (Espanha), que a orientou e conduziu a Gijón (Astúrias), para os cuidados da
Fundación Amaranta Asturias, organização especializada em atender mulheres em situação de
vulnerabilidade, prostituição, violência de gênero e vítimas de tráfico.
A partir desse acolhimento, abrigamento e atenção, Jasmin pôde denunciar uma rede de
tráfico e requerer asilo. Hoje vive acolhida, com documentação para residir na Espanha. Deseja
poder ter a oportunidade de refazer a sua vida, trabalhar na Espanha. Não deseja mais voltar à

278
O relato de Jasmin reforça o que muitas OSC afirmam sobre os abrigos para migrantes chegados de pateras, em
muitos casos, serem espaços de proteção e também, em alguns casos, de aliciamento de redes de exploração.
279
O relato feito por Jasmin coincide com alguns relatos de OSC da Espanha que indicaram que os abrigos para
migrantes vindos da África muitas vezes são espaços de aliciamento para exploração na Europa.
132

Nigéria para morar. “Se eu não tivesse minha filha ali, não voltaria. Mas preciso vê-la. Eu quero
trazê-la para cá, mas é muito pequena280 e se ela estivesse aqui, não conseguiria trabalhar.
Quando ela tiver uns 13 anos vou querer trazer minha filha.”
Jasmin termina, tentando justificar, mesmo sem necessidade, porque não retornará:

A África é muito louco! (entre risos) É o mundo dos homens. Você não pode
dizer nada. Eles incomodam. [...] É diferente ser mulher e homem na Nigéria.
Você tem que se casar. Mesmo se não quiser, é obrigatório. E você tem que
fazer tudo que seu marido quer. Para ter saúde você precisa pagar, trabalhando
ou não.

E mesmo sem um pedido expresso, ela se sente no dever de dizer: “Queria dizer a todas
as mulheres que elas não tenham pressa na vida. É necessário pensar muito bem antes de fazer
coisas. [...]. Hoje ainda lembro muito dos momentos vividos e das pessoas que iam morrendo
[...].”
Pergunta-se-lhe sobre o que são direitos humanos e ela responde, depois de um longo
silêncio, que é o direito de não ser discriminado nem incomodado por ninguém. Disse que,
desde que chegou a Gijón, não deseja mais chorar. E assim, com um abraço apertado, finalizou-
se aquela entrevista. Obrigada Jasmin!

2.2.1.2 Hibisco, a dominicana de voz grave e potente

[…] Hay que saber que la tristeza no sólo existe


sino que también tiene su espacio,
(…)
y decide cambiar el orden del mundo,
ponerle un nombre a la tristeza,
etiquetarla,
mandarla a la mierda,
y seguir hacia delante,
siempre adelante,
aunque el vacío siga en el lugar de siempre,
aunque nada sea como antes,
aunque el amanecer no sea luminoso,
aunque la tristeza jamás desaparezca.
Rosa Silverio281

Hibisco, mulher alta, forte, determinada e ao mesmo tempo desconfiada, 31 anos,


originária de Santo Domingo, capital da República Dominicana, mãe de um menino de 12

280
A filha de Jasmin hoje está com 6 anos.
281
Rosa Silverio é uma poetisa dominicana de Santiago de los Caballeros. Escreveu este poema “Hay que ponerle
un nombre a esta tristeza.”
133

anos282, era estudante de Marketing (terceiro semestre) e funcionária de um Banco. O seu sonho
era finalizar a faculdade e continuar trabalhando no banco. Por diversos motivos, até por
compor uma família monoparental, contraiu muitas dívidas com cartões e empréstimos, sendo
mandada embora do seu trabalho. Decidiu, convencida por uma amiga, a vir para a Espanha
trabalhar e pagar as suas dívidas. Inicialmente, não tinha interesse em ficar na Espanha. Ela não
sabia o que faria, e se disse enganada por uma rede criminosa. Deixou o seu filho aos cuidados
da família do pai.
Ela comprou a sua própria passagem, e pagou por um passaporte falso. A sua família
não sabia o que ela iria fazer. Na verdade, até hoje ainda não sabe muito bem o que aconteceu.
Viajou para a Turquia de avião. De lá, foi de ônibus para a Grécia e depois para San Sebastian,
no norte da Espanha. Chegando à Espanha, foi obrigada a trabalhar para a rede de exploração
sexual (ano de 2016).

Figura 3. Trajetória de Hibisco de Santo Domingo até Espanha

Fonte: Google Maps.

282
O filho de Hibisco tinha 8 anos quando ela saiu de seu país.
134

Figura 4. Trajetória de Hibisco de San Sebastián até Gijón

Fonte: Google Maps.

Acabou ficando grávida, sem saber se era filho de um cliente ou de uma pessoa com
quem ela se relacionou. Foi à cidade de Gijón, e procurou a Fundación Amaranta Asturias, por
intermédio de uma amiga africana que a orientou. Está sob os cuidados de Amaranta desde
então (dois anos). Obteve os documentos para residir na Espanha. Hoje mora em uma casa com
o seu companheiro e filha. Seu maior sonho é poder cuidar dos dois filhos, trazendo para a
Espanha o seu filho que ainda está em Santo Domingo.
Disse que estava trabalhando nos cuidados de uma idosa, porém, em função de um
problema na coluna, estava de licença médica.
Perguntada sobre o que são direitos humanos, ela fica um tempo em silencio, olha para
mim e diz: “Nunca ninguém me perguntou isso!” E responde: “Que ninguém me coíba ou
proíba de fazer o que eu quiser.” Indagada sobre o que é cidadania, responde: “Sou cidadã
dominicana e resido na Espanha.”
Deseja construir a sua vida na Espanha, com os seus filhos, com bons estudos e dinheiro
para os ajudar. E também ter um bom trabalho. Em 10 anos ela se vê em um apartamento de
sua propriedade na Espanha. E voltará ao seu país somente de férias, e quem sabe, quando for
mais velha.
135

2.2.1.3 Violeta, a venezuelana de voz doce e cheia de esperança


Tengo en mis venas un alegre poema
sin curso y turbio como el mar
tan fuerte y espumante como la llovizna que
cae entre mis zapatos descalzos
Venas impregnadas
efímera la utopía
de mi cabeza malhumorada
Tan claro como el claro de luna
tan rocinante como el caballo imaginario
Mi mundo fuera del mundo
existe en lo imposible
y la belleza desnuda.
Fabiola Palomares283.

Violeta, mulher doce e simpática, aberta ao diálogo, forte e sensível, poderosa, 37 anos,
originária de Caracas, capital da Venezuela. Estudou até o segundo ano do Ensino Médio, era
microempresária, sem filhos. Descreveu-se como “uma pessoa de coisas básicas. Tudo o que
eu queria era ter meu apartamento, ter sossego, trabalhar, poder estudar alguma coisa, ter meu
cachorro, meu companheiro, eu queria ter um emprego normal.”
Quando ela percebe que a Venezuela colapsava (palavras de Violeta), começa a pensar
em possibilidades de sair de lá. Somado a esse desejo de ter uma vida melhor, Violeta tem um
familiar que precisava dela, em Oviedo, na Espanha. “Eu tenho um xxxx aqui na Espanha que
é paciente de saúde mental [...] ele tentou cometer suicídio e tal [...] e tem um namorado
espanhol”
O namorado desse familiar sempre dizia que ela tinha que estar na Espanha para o
ajudar. O companheiro sempre falava ... "ok, vem pra cá, você trabalha no que der [...].” Passado
o tempo, ela descobriu que eles trabalhavam com massagens eróticas e com prostituição. Esse
rapaz oferece que ela vá para a Espanha fazer alguns nus pela web, tipo strip-tease. Nada
aconteceria relacionado à prostituição. Ela poderia conseguir dinheiro, e enquanto isso eles
iriam processando os documentos para garantir a regularidade documental de Violeta. Ele disse
que esse processo custaria em torno de 3.000 a 5.000 euros.
O trajeto de Violeta foi em transporte aéreo de Caracas (Venezuela) para Istambul
(Turquia) e para Madrid, e em ônibus de Madrid para Oviedo (Asturias).

283
Fabiola Palomares é uma jovem poetisa venezuelana, nascida em Valera, Estado Trujillo, Venezuela. “7 poemas
de PIES DESCALZOS”.
136

Figura 5. Trajetória de Violeta de Caracas a Espanha

Fonte:. Google Maps.

Figura 6. Trajetória de Violeta de Madrid a Oviedo e Gijón

Fonte:. Google Maps.

Chegando à Espanha (em 2017), ela percebe que não havia nada de câmeras e que ela
iria se prostituir. Ele estabelece que ela moraria no mesmo apartamento que ele, que teria um
quarto para ela. Acaba se prostituindo ali, sem horário definido, tendo muitas vezes que utilizar
droga com clientes, pagando metade de tudo que fazia para o aliciador, mais o dinheiro para
fazer a documentação de residência284. Ele restringia o seu direito de cozinhar no apartamento,

284
O aliciador disse que teria que cobrar dela 10 mil euros, uma vez que ele apareceria como companheiro dela
nos documentos. Para isso, de 5000 euros ele cobraria 10 mil.
137

cada vez mais ela se sentiu deprimida, tomando muitos remédios para dormir. Violeta se
comunicava com o mundo exterior somente com os seus clientes por whatsApp e por paginas
de contatos sexuais. Recebia clientes a qualquer horario do dia ou da noite e, de vez em quando,
uma OSC285 que fazia um trabalho de prevenção contra doenças sexualmente transmissíveis,
levava camisinhas para ela. Violeta tinha três celulares para receber chamadas de clientes. Ela
se emociona em muitos momentos da conversa. Inicialmente “eu o via como meu salvador, mas
no final, ele estava me matando.”
Violeta saia para fazer compras, mas as ameaças psicológicas feitas pelo aliciador, de
que ela seria deportada para a Venezuela, uma vez que já havia passado os três meses do visto
de turista, faziam com que ela saísse muito pouco e não se comunicasse com ninguém. Ela tinha
receio de sair a qualquer lugar e ser deportada.
A percepção de Violeta sobre a situação de exploração sofrida nem sempre era percebida
de forma consciente. Ela acreditava que, ao consentir estar ali se prostituindo, excluía qualquer
delito de exploração. Muito dinheiro era repassado ao aliciador, que dizia estar fazendo os
documentos para autorização de residência dela.
Violeta consegue se libertar dessa situação de exploração quando é alertada pelo seu
familiar sobre a condição de exploração que sofria. Ele também temia por ela, pois a via muito
debilitada. Ela decide conversar com um cliente, que lhe confirma que essa situação vivida
caracterizaria coação. Depois de diversas situações de violências vivenciadas, de perceber que
não teria a documentação prometida e, inclusive, de contrair uma doença sexualmente
transmissível, ela decide procurar aquela organização que ia visita-la no apartamento.
Essa organização decide encaminhar Violeta para outra organização que a poderia
abrigar, e iniciar um atendimento mais especializado em Gijón. Ela ficou abrigada na
organização praticamente um ano e meio. Conseguiu um trabalho de faxina em uma casa e
depois em uma loja, onde trabalha até hoje. Violeta decide denunciar o seu aliciador por tráfico
de pessoas, obtendo os documentos de residência e trabalho, pelo menos até quando o processo
durar286.
Quando perguntada sobre o que são direitos humanos, ela responde em tom de pergunta:
“Valores que há que respeitar, não? Por exemplo, uma mulher não pode ser maltratada, deve

285
Tratava-se da OSC APRAMP.
286
Violeta teve direito a residência por ter denunciado o aliciador. Enquanto durar o processo ela terá esse direito
mantido. Finalizado o processo se verá se ela terá direito em função da sua colaboração e do resultado final de
uma possível condenação. Essa é uma das críticas que se fazem à legislação espanhola, que vincula o direito à
residência à colaboração da vítima e ao quão importante a colaboração for para uma possível condenação. As
OSC que atuam na proteção das vítimas lutam pelo entendimento de que a residência deveria ser concedida
independente da colaboração da vítima.
138

ser respeitado o pensamento de cada pessoa, a posição política de cada um, respeitar a saúde
[...].” Por outro lado, quando indagada sobre o que é cidadania, ela não tinha certeza sobre o
seu significado.
E sobre os seus sonhos, diz que os alcançou: “Hoje tenho meu trabalho, moro em um
apartamento sozinha [...] estou tranquila... Isso tudo graças à organização que me acolheu e a
organização que me encaminhou.” Reforça que somente falta ter a sua mãe e o seu irmão
morando com ela. E refletiu:

“As mulheres que passam mal, por todas estas histórias sempre não é por elas.
Você não vai passar mal, deixando que destruam a sua vida por ter uma bolsa
ou um sapato. A que quer uma bolsa e um sapato o faz porque quer, sozinha e
sem que ninguém a explore. Você sempre faz um sacrifício pela sua família.
Seja de onde você for.... Não acredito que exista alguém de tão pouco coração,
que passe por uma situação como as que passaram tantas mulheres, somente
pelo material ou pelo dinheiro. [...]. As que o fazem o fazem por seus filhos,
sua família. Se aproveitam disso para...”

Com um sorriso, um abraço apertado, no meio de um respeito, agradecimento profundo


e respeito pela sua história, disponibilidade e confiança, termina a conversa.

2.2.1.4 Liz, a brasileira falante


Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.
Cecília Meireles

Liz, mulher brasileira soteropolitana, migrante em São Paulo, atualmente com 42 anos.
Cursou até o primeiro ano da Faculdade de Administração de Empresas em São Paulo, mãe de
uma mulher de 20 anos. Antes de ir para a Espanha trabalhou, como ela disse, com muitas
coisas. Antes da Espanha, foi promoter de feiras, e vendia roupas de marca para ajudar a pagar
faculdade, manter a casa e criar a sua filha. Quando as dívidas não eram mais suportáveis,
acabou aceitando acompanhar alguns empresários às feiras de negócios. A agência em que
trabalhava sempre lhe oferecia esses trabalhos. Seu maior sonho era terminar a faculdade,
cuidar da filha e dos pais que moravam com ela. “Ter uma estabilidade na vida.”
A mulher que trabalhava na agência, em um desses convites, oferece trabalho na
Espanha. Ela acabou aceitando. Ficou devendo passagem (na época 2000 euros), perdeu a sua
conexão em Paris (teve que arcar com essa dívida). “Ou seja, vim através do tráfico.” Assim,
139

em 2004, ela viajou de São Paulo para Paris; depois Madrid (aéreo) e, de carro, de Madrid a
Berrón (Asturias)287.

Eu fiquei em um hotel (em Berrón) lá pagava a diária e a passagem.”


[...]
“Eu me senti enganada porque me roubaram. Eu cheguei a pagar muito mais
que 2000 euros. Fiquei doente 7 dias, tive que pagar essas diárias.”
[...]
“Eu perdi o papel que era o controle, e assim, se eu tinha que pagar 2000 euros,
acabei pagando 4000 ou 5000 euros. Eu nunca terminava de pagar.
Até que um dia eles me mandaram embora desse lugar e um cliente me apoiou
na sua casa.”

Figura 7. Trajetória de Liz de São Paulo, Paris (FR) /Madrid (ES).

Fonte: Google Maps.

Figura 8. Trajetória de Liz de Madrid a El Berrón e Gijón

Fonte:. Google Maps.

287
Essa cidade fica a 16 minutos de Gijón.
140

Enquanto estava em Berrón, perdeu o papel de controle do que devia de sua passagem,
e com isso acabou tendo que pagar muito mais do que os 2000 euros que devia. Disse que
chegou a pagar 4000 ou 5000 euros. Ela nunca terminava de pagar. Um dia a mandaram embora,
e ela acabou sendo acolhida por um cliente em sua casa. Acabou saindo de lá e morou com
outro rapaz por três anos.

“Eu vivenciei situações bastante perigosas. Tinha que ser esperta. Vi “chicas”
apanhando, perseguidas. Tive a sorte, não sei porque, mas de ter clientes que
me protegeram [...]
Sofri violência psicológica também com companheiros aqui na Espanha.”

A sua família não sabe até hoje o que ela fazia lá. Tenta de todas as formas proteger a
sua família, que sabe somente que ela foi parar em outro país288, com um problema bastante
difícil, mas não que ela trabalhava com prostituição.
Liz está há mais de 16 anos na Espanha. Já possui documentação para residir
regularmente, o que lhe permite conseguir trabalho, ter uma certa estabilidade. Há algum tempo
trabalhou em um bar de garçonete, na área de cozinha, entre outras atividades. Teve uma
sociedade em um restaurante, em que a parte da cozinha era conduzida por ela.
Após já estar situada e com trabalho, porém necessitando dinheiro para poder viajar para
visitar a sua família no Brasil289, uma amiga lhe ofereceu uma oportunidade em outro país e ela
aceitou. Nesse lugar passou muitas violências, entre sequestro, agressões, maus tratos, sendo
constantemente vigiada por câmeras etc. Foi traficada para uma organização criminosa muito
grande e perigosa. Ela não podia ir a nenhum lugar sem estar acompanhada.

“Tinha gente grande envolvida nisso. E eram pessoas que tinham contato
direto comigo. Lá eu tive momentos que não passei na Espanha.”
[...]
“Agora eu sei o que é realmente a prostituição. Com esse problema em XXX
eu vi que realmente é muito pesado e doloroso.” (grifo nosso).

Em função de relações afetivas violentas, esteve duas vezes em casas de acolhida por
violência doméstica, na Espanha. Teve apoio de algumas OSCs em diversos momentos: Cruz
Roja, APRAMP, Médicos del Mundo e Fundación Amaranta – Asturias. Atualmente, está
abrigada por Fundación Amaranta há alguns meses, desde o seu retorno à Espanha,. sem
trabalhar e sendo cuidada depois de ser resgatada.

288
Por questões de segurança, não serão revelados detalhes da história.
289
Faz cinco anos que não viaja para ver a sua família.
141

Perguntada sobre o que seriam direitos humanos, “buscar garantir a identidade da


pessoa, o direito ao trabalho.” E cidadania seria “todo o direito que a pessoa tem como ser
humano.”
Liz diz que na Europa está cheio de brasileiras na prostituição, que já houve mais, mas
que em outros países há muitas.

“Eu tive contato com meninas de 18, 19 anos em outro país e muitas delas
vêm achando que sabem o que vão passar. Mas na verdade não se sabe. Acham
que há trabalho e não há. O pior da prostituição é que a mulher aceita achando
que gosta daquilo, mas na verdade sabe que está sendo explorada
psicologicamente. E você tem que dar o que você não tem. Os homens exigem
aquilo que eles querem: a beleza, a alegria, o sorriso. Você tem que dar algo
que não é natural.”

Perguntado a ela o que achava sobre o porquê de os homens procurarem a prostituição,


ela disse que se os homens não tivessem a prostituição, se eles não tivessem esse lado animal,
eles estuprariam mais. Falando sobre a relação da prostituição com a droga e a bebida ela diz
que cada vez mais elas estão juntas. Liz disse que gostaria de ter tido a oportunidade de estudar,
de ter tido bons trabalhos, não ter se envolvido com drogas, de não ter aceitado vir à Espanha.
Deseja estar na Espanha no futuro, pois ela tem tudo que precisa com saúde, para os
seus tratamentos médicos. Ela se vê mais na Espanha do que no Brasil. Deseja tirar a
nacionalidade espanhola. Atualmente, ela tem o direito de residência definitiva. Gostaria de
poder ter uma formação na Espanha. Deseja estudar contabilidade ou trabalhar como assistente
social ou até mesmo com culinária. Vê-se com característica de ajudar os outros. Gostaria de
poder trabalhar com cozinha momentaneamente. A conversa finalizou com um abraço apertado,
depois de quase duas horas, numa noite escura e fria de Gijón.

2.2.1.5 Considerações finais sobre as entrevistas realizadas

A realidade do tráfico de mulheres é muito complexa; não é possível generalizar as


situações, nem mesmo o perfil dessas mulheres. Das mulheres entrevistadas, pôde-se perceber
que: 1. Elas só tiveram a percepção de que foram traficadas quando as condições de exploração
e violências vividas chegaram ao limite do insuportável e, em outros casos, do medo de morrer;
e 2. Apesar de terem lugares de origem diversos, com realidades muito diferentes entre si, a
principal motivação que as levou a aceitar ir para a Espanha foi a de melhorar a condição
integral de vida, seja para si (Camomila), seja para si e sua família (Hibisco, Jasmin, Liz,
Violeta). Desejavam, quando do momento da ida para a Espanha, poder retornar a seus países
com melhor condição econômica. No momento da realização da entrevista, nenhuma delas
142

desejava retornar ao seu lugar de origem, almejando construir a sua vida na Espanha. No caso
das mulheres com filhos, desejavam poder levar os seus filhos para a Espanha e ali viver290.
As histórias dessas mulheres não podem ser tidas como a generalização do que acontece
com todas as vítimas de tráfico. Entretanto, esses microcosmos permitem uma aproximação
com essas realidades para além dos números frios dos relatórios internacionais e internos, que
meramente quantificam essas pessoas, e assim, é possível dar nome, cor, nacionalidade,
história, desejos, sonhos, e escutar delas próprias as violências pelas quais passaram.
Feita a caracterização do fenômeno do tráfico de mulheres, principia-se a descrição do
Regime Internacional Complexo existente para o enfrentamento desse fenômeno social
normatizado. Inicia-se a caracterização do regime a partir de uma perspectiva histórica,
compreendendo as motivações e complexidades desse regime no decorrer da história,
principalmente do início do século XX.

290
No caso de Camomila, ela já retornou ao Brasil pelo programa de Retorno Voluntario, coordenado pela
Organização Internacional das Migrações (OIM) na Espanha e o Programa Vagalume (Galícia).
143

CAPÍTULO 3 - O REGIME INTERNACIONAL COMPLEXO DO


ENFRENTAMENTO AO TRAFICO DE MULHERES: UMA PERSPECTIVA
HISTÓRICA
O presente não é um passado em potência, ele é o
momento da escolha e da ação.
Simone de Beauvoir

3.1 Do Fenômeno ao Regime

No capítulo anterior, abordou-se o fenômeno social do tráfico de pessoas, especialmente


mulheres, com fins de exploração sexual. Procurou-se descrever aspectos da realidade das
mulheres para além dos números e cifras de vítimas de tráfico.
Neste capítulo, descreve-se como as normativas internacionais mais relevantes foram
sendo pensadas, elaboradas e postas em vigência. A intenção não é somente apresentar a
normativa, mas principalmente delinear em que contextos e quais elementos foram
fundamentais à sua concretização nos termos em que estão. Inicialmente, são abordados
aspectos fundamentais do Regime de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas em níveis global e
regionais, com ênfase nos regimes regionais da Europa e da América. Posteriormente, para a
completa compreensão do regime de governança complexo no qual está inserido o regime do
tráfico de pessoas, são abordados pontos de contato com outros regimes internacionais, como
o de migrações, de Direitos humanos, do trabalho, entre outros. A atuação das OSCs que
compõem o regime de governança do enfrentamento ao tráfico de pessoas também é analisada,
no sentido de apontar a forma da sua contribuição ao regime complexo de enfrentamento, e
introduzir a Parte II desta tese, com os estudos de caso.

3.1.1 Combate à escravidão e ao tráfico de pessoas escravizadas

Como já apontado, o fenômeno do tráfico de pessoas está vinculado à ideia da


exploração, escravização, coisificação das pessoas. Nesse sentido, verifica-se a construção de
marcos normativos importantes, que permitem a identificação de um movimento de condenação
e proibição ao tráfico de pessoas e contra a escravidão.
Esses marcos permitem perceber a conexão entre as práticas escravocratas do início do
século XIX e as atuais formas contemporâneas de escravidão.
A Liga das Nações (LDN) iniciou de forma ativa a sua crítica à escravidão e tentativa
de sua eliminação, incluindo o tráfico de escravos e as suas formas análogas (1919), “[...]
144

proibição de abusos tais como o tráfico de escravos, o tráfico de armas e de álcool, garantia da
liberdade de consciência e de religião [...].”291.
O Tratado de Versalhes (1919) também cria a Organização Internacional do Trabalho
(OIT), e tinha como vocação temática promover oportunidades para que homens e mulheres
possam ter acesso a um trabalho decente e produtivo, em condições de liberdade, equidade,
segurança e dignidade, ocupando-se, assim, do combate ao trabalho forçado e à escravidão. Os
valores e princípios básicos da OIT levavam em conta que o trabalho deve ser fonte de
dignidade; que ele não é uma mercadoria; que a pobreza, em qualquer lugar, é uma ameaça à
prosperidade de todos; e que todos os seres humanos têm o direito de perseguir o seu bem-estar
material em condições de liberdade e dignidade, segurança econômica e igualdade de
oportunidades292. Na atualidade, a agenda de trabalho decente da OIT ajuda a avançar rumo à
conquista de condições econômicas e de trabalho que ofereçam a todos os trabalhadores,
empregadores e governos uma participação na paz, na prosperidade e no progresso duradouros.
Nesse sentido, a Agenda de Trabalho Decente da OIT define como seus objetivos estratégicos
pontos que dialogam diretamente com o combate à escravidão e ao tráfico de pessoas que
possam estar sendo escravizadas. Entre eles: 1. Definir e promover normas e princípios e
direitos fundamentais no trabalho; 2. Criar maiores oportunidades de emprego e renda decentes
para mulheres e homens; 3. Melhorar a cobertura e a eficácia da proteção social para todos; e
4. Fortalecer o tripartismo e o diálogo social.
A Convenção sobre a Escravidão (1926)293 vem na pretensão de erradicar e suprimir a
escravidão e o tráfico de escravos em todo o cenário internacional por violar os princípios de
humanidade e justiça (art.2, b), e tem como principal objetivo dar continuidade à missão
civilizatória do século XIX294. Importante destacar que essa convenção é resultado das
recomendações advindas do estudo realizado pela Comissão Temporal sobre Escravidão,

291
Importante destacar que o surgimento da LDN se dá no final da I Guerra Mundial com a finalidade de fomentar
cooperação entre as nações e principalmente para garantir a paz e segurança. (Tratado de Versalhes, 1919).
292
OIT. Declaração de Filadélfia (1944). Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---
americas/---ro-lima/---ilo-brasilia/documents/genericdocument/wcms_336957.pdf. Acesso em: 17 mar. 2020.
293
BRASIL. Câmara dos Deputados. Convenção sobre a Escravidão. 1926. Disponível em: https://www2.
camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/comite-brasileiro-de-direitos-
humanos-e-politica-externa/ConvRelEsc.html. Acesso em: 10 mar. 2020. A convenção foi emendada pelo
Protocolo Aprovado pela Assembléia Geral da ONU (1953) e adotado pela Assembléia Geral da ONU (1953),
entrando em vigor internacional em 1953.
294
ALLAIN, J. The slavery convention: the travaux préparatories of the 1926 League of Nations Convention and
the 1956 United Convention. Leiden: Martinus Nihoff Publishers, 2008.
145

instituída pelo Conselho das Nações Unidas (1924) sobre as formas de trabalho forçado ou
obrigatório e as práticas escravocratas no mundo295.
Artigo 1º
Para os fins da presente Convenção, fica entendido que:
§1. A escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se
exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade.
§2. O tráfico de escravos compreende todo ato de captura, aquisição ou cessão
de um indivíduo com o propósito de escravizá-lo; todo ato de aquisição de um
escravo com o propósito de vendê-lo ou trocá-lo; todo ato de cessão, por meio
de venda ou troca, de um escravo adquirido para ser vendido ou trocado; assim
como, em geral, todo ato de comércio ou de transporte de escravos.

Esse conceito trazido pela Convenção de 1926 proporcionou uma definição ampla para
a escravidão; foi um primeiro passo para o entendimento da comunidade internacional da
necessidade de enfrentamento e eliminação dessa condição.
Em 1956, já no Marco jurídico das Nações Unidas (ONU)296, é elaborada a Convenção
Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e
Práticas Análogas à Escravatura, também chamada de Convenção Suplementar de 1956, e
introduz o conceito de instituições e práticas de efeitos análogos à escravidão, consolidando um
regime jurídico internacional sobre a matéria297.
Considera-se relevante destacar que a escravidão é considerada um dos tipos de crimes
contra a humanidade (ou crime de lesa humanidade)298, conforme estabelece o artigo 7.º do
Tribunal Penal Internacional (TPI):
1. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por ‘crime contra a
humanidade’, qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de
um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil,
havendo conhecimento desse ataque:
[...]
c) Escravidão;
[...]

295
ALLAIN, J. The slavery convention: the travaux préparatories of the 1926 League of Nations Convention and
the 1956 United Convention. Leiden: Martinus Nihoff Publishers, 2008.
296
Importante destacar que o surgimento da ONU se dá no final da II Guerra Mundial, em 1945, com a finalidade
de garantir a paz e segurança, por meio da Carta das Nações Unidas. A Carta das Nações Unidas foi assinada
em São Francisco, a 26 de junho de 1945, após o término da Conferência das Nações Unidas sobre Organização
Internacional, entrando em vigor a 24 de outubro daquele mesmo ano. Disponível em: ONU.
https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2017/11/A-Carta-das-Na%C3%A7%C3%B5es-Unidas.pdf.
Acesso em: 15 mar. 2020.
297
DECAUX, E. Les Formes contemporaines de lésclavage. Leiden: Martinus Nijhoff Publishers, 2009. Recueil
des cours: colected courses of the Hague Academy of International Law, t. 336. Disponível em:
https://referenceworks.brillonline.com/browse/the-hague-academy-collected-courses. Acesso em: 20 mar.
2020.
298
Crime contra a humanidade é um termo de direito internacional que descreve atos que são deliberadamente
cometidos como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra qualquer população civil.
146

g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada,


esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual
de gravidade comparável;
[...]
2. Para efeitos do parágrafo 1º:
[....]
c) Por ‘escravidão’ entende-se o exercício, relativamente a uma pessoa, de um
poder ou de um conjunto de poderes que traduzam um direito de propriedade
sobre uma pessoa, incluindo o exercício desse poder no âmbito do tráfico de
pessoas, em particular mulheres e crianças299; [...].

A ONU já se manifestou quanto ao alcance da categoria escravidão, estabelecendo que


diversas violações de direitos humanos que infringem a dignidade humana e condizem ao
controle e domínio de uma pessoa podem caracterizar escravidão. Nesse sentido, o grau de
restrição do direito de liberdade e de circulação; o grau de controle que a pessoa tem sobre si e
sobre os seus objetos pessoais; o grau de submissão e domínio; e a existência de consentimento
livre, não viciado, da relação entre as partes300.
Essa incorporação da escravidão, da agressão sexual e de outras modalidades descritas
no item “g”, como crimes contra a humanidade e a inclusão do tráfico de pessoas, em particular
mulheres e crianças nesse contexto de exploração indicam uma posição majoritária, no sentido
de vincular o conceito de escravidão ao tráfico de pessoas, exigindo, ainda, esforços internos
de cada Estado para a caracterização dos elementos do crime de escravidão, e de políticas
públicas no sentido de ser evitado.
Essa perspectiva mais complexa e majoritária do conceito de escravidão no âmbito das
normativas internacionais vão permitindo uma caracterização desse Regime Jurídico de
combate e de proteção das pessoas contra essas violações de direitos gerados pela escravidão
“latu sensu”.

299
ONU. Estatuto de Roma. 1998. Disponível em: http://acnudh.org/pt-br/estatuto-de-roma-del-tribunal-penal-
internacional/. Acesso em: 10 mar. 2020. Promulgado pelo Brasil, pelo Decreto no. 4.388, de 25 de setembro
de 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm. Acesso em: 25 mar.
2020.
300
Ver em: Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH). Case of Rantsev v. Cyprus and Russia
(Application. 25965/04, 07/01/2010). Disponível em: https://ec.europa.eu/anti-trafficking/sites/
antitrafficking/files/rantsev_vs_russia_cyprus_en_4.pdf. Acesso em: 20 ago. 2020. Ver em: Tribunal Penal
Internacional para a ex-Yugoslavia (TPIY: International Tribunal for the Prosecution of Persons Responsable
for Serious Violations of International Humanitarian Law Committed in the Territory of the Former Yugoslavia
since 1991. Case: PROSECUTOR v. Dragoljub KUNARAC, Radomir KOVAC and Zoran VUKOVIC,
No.: IT-96-23&IT-96-23/1-A, sentença 12/06/2002. Ver em: Corte IDH. Caso Trabalhadores da Fazenda
Brasil Verde vs. Brasil. (2016). Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/asuntos/
trabajadores_15_02_16_por.pdf. Acesso em: 20 ago. 2020.
147

3.2 Descrevendo Criticamente a Construção Normativa do Regime Internacional ao


Tráfico de Pessoas, Principalmente Mulheres e Crianças

A construção do Regime Jurídico do enfrentamento ao tráfico de pessoas está vinculada


e pensada a partir da caracterização da escravidão, principalmente do tráfico de escravos301,
conforme já foi descrito anteriormente. Nesse contexto, o tráfico de pessoas não é um fenômeno
novo, mas está diretamente ligado à exploração da pessoa, em que se mescla com práticas de
violações nas relações de trabalho, coisificação do corpo, violações de direitos humanos,
restrição de liberdade, violação do direito ao livre desenvolvimento, à integridade, dignidade, e
principalmente do direito à vida. Trata-se de um fenômeno ligado às condições de
vulnerabilidade das pessoas, à exploração das pessoas e formas de mobilidade humana forçada.
Antes de iniciar a identificação da construção do marco normativo do combate ao tráfico
de pessoas, principalmente mulheres, é importante compreender como se dá a construção do
rol da mulher na sociedade e que, de alguma maneira, permita compreender o porquê da
preponderância das mulheres traficadas. Por que as mulheres são as principais vítimas de tráfico
de pessoas identificadas? Por que, até hoje, a principal finalidade do tráfico de mulheres está
ligada à exploração do sexo?
Diversos estudiosos advertem para a submissão socialmente construída do papel da
mulher ao homem e a sua condição de subalterna e dependente. Nesse sentido, Gayle formula
o conceito de gênero, na década de 1970, como “o conjunto de disposições pelos quais uma
sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana, e no qual
satisfazem essas necessidades transformadas.”302.
Gayle ainda estabelece que o rol de subordinação da mulher é o seu gênero, indicando
a diversidade dos perfis das mulheres em função de suas características históricas e específicas.
As mulheres estariam caracterizadas por meio de uma interação entre classes, raças, culturas,
religiões, outras instituições e marcos referenciais. Entende que há uma unidade anti-histórica
e universal entre as mulheres, que ignoram completamente as suas identidades de classe ou
étnicas. Nesse sentido, a análise das causas da opressão das mulheres constitui a base de

301
Ver em: CARBALLO, Marta de la Riva. Trata de Personas: consideraciones históricas y jurídicas: estructuras,
institución y sistemas de explotación. Tese Doctoral. 2017.
302
RUBIN, G. The traffic of women: notes on the “political economy of sex”. In: RAYANA, Reiter (org.).
Towards and anthropology of Women: New York: Monthy Review Press, 1975. “The set of provisions by
which a society transforms biological sexuality into products of human activity, and in which they satisfy these
transformed needs.”
148

qualquer estigmatização do que haveria que mudar para alcançar uma sociedade sem hierarquia
pelos gêneros303.
Gayle ainda pretende compreender as causas da opressão e da subordinação das
mulheres, esclarecendo que estas somente se convertem em oprimidas em certas relações
sociais304. De outro lado, o discurso de desqualificação da mulher como sendo igual, em
qualquer circunstância e condição, permitiu uma degeneração da subordinação da mulher à
coisificação, uma naturalização de que as mulheres podem ser comercializadas, tanto como mão
de obra servil, reprodutoras e escravas, quanto como objeto sexual305.
Nesses contextos nebulosos sobre o papel da mulher e a sua subordinação no decorrer
da história, admite-se supor que a subordinação da mulher ao homem era considerada normal,
um costume, características que até hoje, em muitos âmbitos, têm sido difíceis de modificar.
Nesse sentido, Tiburi ajuda a compreender o rol de exploração da mulher vinculado à sua
subordinação em prol do bem-estar da família, e consequentemente da sociedade.

[...] as mulheres são convencidas, por meio de uma combinação perversa entre
violências e sedução, que a família e o amor valem mais do que tudo, quando,
na verdade, o amor de devoção à família serve para amenizar a escravização,
que desmontada, faria bem a todos, menos àqueles que realmente preferem
uma sociedade injusta porque se valem covardemente de seus privilégios306.

É possível, ainda, verificar que a mulher podia ser e era considerada um objeto de prazer
e, assim, ser comercializado. Nessa lógica, o tráfico de mulheres, a escravidão e o tráfico de
escravos se aproximam. Nessa sutilidade do processo de mercantilização e consequente
coisificação, para a exploração da pessoa, dificulta-se a autodeterminação do ser humano.
Essa construção de discursos somados a essa naturalização da coisificação da mulher
fez com que as normativas relacionadas à matéria do tráfico de pessoas levassem em conta esses
atributos da mulher subalterna e submissa (frágil, vulnerável, objeto de prazer do outro, entre
outras), no qual se vincula o discurso do tráfico com a prostituição. Assim, a mulher que migra
para se prostituir não o poderia fazer de forma autônoma, uma vez que ela não teria capacidade
de decidir e de discernir sobre a autonomia daquela atividade.

303
RUBIN. G. El tráfico de mujeres: notas sobre la “economía política” del sexo. 1986. Revista Nueva
Antropología, México, v. VIII, número 30, p. 95-145, nov. 1986. Disponível em: https://www.caladona.
org/grups/uploads/2007/05/El%20trafico%20de%20mujeres2.pdf. Acesso em: 2 mar. 2020.
304
Id.
305
SILVA, Waldimeiry Correa. Regime Internacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas: avanços e
desafios para a proteção dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 45.
306
TIBURI, Marcia. Feminismos em comum: para todas, todes e todos. 10. Edição. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 2019. p. 19.
149

Alguns autores denominam pânico moral307 a utilização do tráfico de pessoas como


sendo uma atividade que fere o sistema de moralidade e de bons costumes 308. Nesse contexto,
é preciso indicar como as diversas correntes feministas influenciaram e interferiram no debate
e na construção do Regime Internacional do tráfico de pessoas. “O feminismo nos ajuda a
melhorar o modo como vemos o outro. O direito de ser quem se é, expressar livremente a forma
de estar e de aparecer e, sobretudo, de se autocompreender.”309.
A compreensão da possibilidade de a atividade sexual ser normatizada como uma forma
de trabalho é palco para diversas e calorosas discussões, que estão até hoje longe de um
consenso, uma vez que as suas aproximações se encontram no âmbito da moral e dos limites
com a legalidade. Considerar-se-ão, basicamente, três modelos: abolicionista, regulamentarista
e proibicionista.

307
DAVIDA. Prostitutas, “traficadas” e pânicos morais: uma análise da produção de fatos em pesquisas sobre o
tráfico de seres humanos. Cadernos Pagu, Campinas, n. 25, jul./dez. 2005. Disponível em: https://www.
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332005000200007. Acesso em: 15 mar. 2020.
308
Por trás do sentido da expressão “pânico moral”, percebe-se a ausência da neutralidade na construção dos
discursos e, por outro lado, a tentativa de construir discursos de medo, pânico moral de que as pessoas,
principalmente mulheres do “Sul”, seriam captadas por redes criminosas.
309
TIBURI, Marcia. Feminismos em comum: para todas, todes e todos. 10. Edição. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 2019. p. 23.
150

Modelo Efeitos Países Principais pontos controversos


Proibicionista Todas as atividades envolvidas no sistema Armênia, Azerbaijão, Croácia, A criminalização de todas as atividades no sistema,
da prostituição são criminalizadas. parte dos Estados Unidos, entre na maioria das vezes, deixa ainda mais vulneráveis as
outros. mulheres vítimas de tráfico, que deveriam ser as
pessoas protegidas.
Regulamentarista A prostituição é regulamentada pelo Alemanha, Holanda, Áustria, A principal motivação para a regulamentação é o
Estado como uma profissão. O tráfico e o Grécia, entre outros. empoderamento das mulheres; removeria o estigma,
proxenetismo continuam criminalizados. garantiria direitos, acabaria com o proxenetismo e o
tráfico sexual.
Na prática, verifica-se que a legalização aumentou o
tráfico sexual.
Abolicionista A prostituição não é ilegal; com isso, Suécia, Inglaterra, Islândia, Pessoas prostituídas são reconhecidas como vítimas
garante-se a não criminalização das França, Espanha, Brasil. de um complexo sistema organizado e são, portanto,
pessoas que a exercem. automaticamente descriminalizadas. Há críticas a
A prostituição é reconhecida como uma essa modalidade, pois ela não concebe a
forma de violência, em especial uma possibilidade do exercício livre da prostituição.
forma de violência contra a mulher. Sempre será entendido como uma forma de violência
O proxenetismo e bordeis são ilegais. contra a mulher, retirando a autonomia da disposição
Qualquer forma de exploração da do próprio corpo.
prostituição de outrem é criminalizada.

Tabela 3. Modelos de interpretação da prostituição. (Elaboração Própria).


151

As diversas correntes feministas interferiram e interferem na construção do Regime


Internacional de Tráfico de Pessoas, tentando influenciar as compreensões sobre o fenômeno
da prostituição no momento da elaboração das normativas internacionais e internas.
Nessa acepção, mais adiante se observará como os atores e, em especial, as organizações
da sociedade civil, incorporam em seus valores, princípios e, especificamente, nas suas formas
de atuação com as vítimas de tráfico, os modelos de entendimento sobre a prostituição310.
Parte-se para a tentativa de apontar os principais instrumentos jurídicos internacionais
que trazem a evolução histórica do conceito formal de tráfico de pessoas, e que é fundamental
para compreender o Regime Internacional do Tráfico de Pessoas.
No final do século XIX e início do XX, percebe-se um crescimento da migração
feminina como estratégia independente. Esse fato levou ao temor de que as mulheres teriam
migrado para trabalhar como prostitutas. Tal situação, acompanhada do pânico e medo ao
tráfico de mulheres brancas, acabou gerando um movimento para mobilizar a comunidade
internacional na direção de construir medidas para combater o tráfico. Foi desenvolvido o
conceito do tráfico de brancas, uma vez que se queria atingir as mulheres brancas, americanas
e europeias que serviriam como prostitutas ou concubinas em países árabes, americanos etc.311.
E tal perspectiva, a primeira tentativa de normatização foi o Acordo para a Repressão
do Tráfico de Mulheres Brancas, de 1904. Tratava do aliciamento de mulheres para fins de
prostituição no exterior, sem maiores referências à questão do consentimento e aos meios
utilizados para o exercício da prostituição em outros países. Relevante destacar que nesse
acordo os governos se comprometem a reprimir e perseguir os agentes responsáveis pelo tráfico
e aliciamento, além das redes de exploração.
Logo em seguida, a Convenção Internacional para a Supressão do Tráfico de Escravas
Brancas312, de 1910, estabelece que:

310
MAYORGA, Claudia. Articulaciones de la exclusión: la política de atención a prostitutas inmigrantes en
Madrid: si somos americanos. Revista de Estudios Transfronterizos, Madrid, v. XII, n. 1, p. 49-74, ene.-jun.
2012.
311
Ver em: GALLAGHER, A. The international legal framework. In: THE INTERNATIONAL law of human
trafficking. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 54-143: KUSHNIR, Beatriz. Baile de máscaras:
mulheres judias e prostituição: as polacas e suas associações de ajuda mútua. Rio de Janeiro: Imago Editora,
1996; TELES, Matilde; KAEL, Verena. Aquelas mulheres. Documentário. 20min. Brasil, 2008. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=alSmYB3d8zk. Acesso em: 10 mar. 2020; LARGMAN, Esther.
Jovens polacas. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993; VINCENT, Isabel. Bertha, Sophia e Rachel: a
sociedade da verdade e o tráfico das polacas nas américas. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006. Tradução
de Alexandre Martins para “Bodies and souls”. Harper Collins Publishers, Nova Iorque, 2005.Ver ainda:
OLIVEIRA, Sayonara Farias. Cortina de fumaça. Santos: Don Muñoz, 2009. p. 21
312
A Convenção Internacional para a Supressão do Tráfico de Escravas Brancas, firmada em Paris, no dia 4 maio
de 1910, e ratificada pelo Brasil, além de ser a primeira conquista concreta do movimento abolicionista,
complementa o Acordo Internacional Para a Supressão do Tráfico de Escravas Brancas, concluído em 18 de
maio de 1904. Tal acordo, ratificado pelo Brasil em 18 de julho de 1905, estabelece, em seus três primeiros
152

Artigo 1° Quem, para satisfazer as paixões de outra pessoa, tenha procurado,


seduzido ou levado, mesmo com o seu consentimento, uma mulher ou uma
menina menor de idade, para fins imorais, será punido [...]
Artigo 2º Quem quer que, para satisfazer as paixões de outra pessoa, tenha,
por fraude ou por meio de violência, ameaças, abuso de autoridade ou
qualquer outro método de compulsão, procurado, seduzido ou levado uma
mulher ou uma menina com maior idade, para fins imorais, será punido, ainda
que os diversos atos constitutivos do delito possam ter sido cometidos em
países diferentes (tradução nossa).

Assim, depreende-se que o intuito da normativa internacional, a princípio, era mais


defender a moralidade e os “bons costumes” da época, lastreados por princípios do cristianismo,
muito mais do que se voltar à observância de questões como a da dignidade da pessoa humana
e do combate à exploração das mulheres.
Nota-se, também, que desde o início o instituto do tráfico de pessoas considera que a
pessoa traficada se encontra em situação de vulnerabilidade, admitindo-se, porém, que se afaste
a vulnerabilidade com o consentimento posterior, sendo possível que a mulher ou menina
concorde com a exploração.
Interessante perceber que a expressão “tráfico de escravas brancas” se referia a histórias
de mulheres europeias que seriam trazidas por redes internacionais de traficantes para os
Estados Unidos da América e para as colônias para trabalhar como prostitutas. Desde o século
XIX, a prática de tráfico de mulheres está conectada à prostituição e à escravidão, fatores que
representam características do debate contemporâneo sobre o tráfico313. Nesses primeiros
documentos, percebe-se a utilização de tráfico de brancas como sinônimo de prostituição
forçada, impossibilitando o questionamento sobre o respeito dos direitos das trabalhadoras
sexuais ou das migrações voluntárias314.
Posteriormente, em 1921, já no contexto histórico da Liga das Nações, pós-Primeira
Guerra Mundial, a Convenção Internacional para a Supressão do Tráfico de Mulheres e

artigos, a cooperação internacional entre os Estados partes, a fim de que estes centralizem as informações
referentes ao tráfico de mulheres ou meninas para fins imorais no exterior, bem como vigiem suas estações ou
portos de embarque e acolham tais pessoas para a identificação de quem as fez deixar o país. Convenção
Disponível em: http://hrlibrary.umn.edu/instree/whiteslavetraffic1910.html. Acesso em: 17 nov. 2019.
313
AUSSERER, Caroline. Controle em nome da proteção: análise crítica dos discursos sobre o tráfico
internacional de pessoas. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais), Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. p. 27. Disponível em: http://www2.dbd.puc-rio.br/
pergamum/biblioteca/php/mostrateses.php?open=1&arqtese=0510706_07_Indice.html. Acesso em: 19 out.
2019.
314
BERNSTEIN, Elizabeth. Militarized humanitarianism meets carceral feminism: the politics of sex, rights, and
freedom in contemporary antitrafficking campaings. Journal of Women in Culture and Society, v. 36, n. 1,
2010. Disponível em: https://glc.yale.edu/sites/default/files/pdf/militarized_humanitarianism_meets_
carceral_feminism.pdf. Acesso em: 15 mar. 2020.
153

Menores315 se remete à Convenção de 1910, mantendo a “moralidade” como bem jurídico a ser
tutelado, e dispõe que, independentemente do sexo da criança, havendo a adequação da conduta
ao estabelecido nos artigos 1.° e 2.° da convenção de 1910, considera-se o crime de tráfico de
pessoas. Há alteração do termo “tráfico de brancas” para “tráfico de mulheres e menores”.
Em 1933, a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres
Maiores316 traz em seu artigo 1.° que quem quer que, para satisfazer as paixões de outrem, tenha
aliciado, atraído ou desencaminhado, ainda que com o seu consentimento, uma mulher ou
solteira maior, com fins de libertinagem em outro país, deve ser punido. Apesar de não utilizar
mais a expressão “fins imorais”, substituindo-a por “fins de libertinagem”, o bem jurídico
objeto da norma continua o mesmo.
Já no âmbito das Nações Unidas (1945), é aprovada a Convenção para a Repressão do
Tráfico de Pessoas e do Lenocínio (1949), concluída em Lake Success, Nova Iorque317. A
“nova” convenção traz em seu preâmbulo, pela primeira vez em uma normativa internacional,
a expressão “tráfico de pessoas” (até então sinônimo de tráfico de mulheres), a expressão
“dignidade da pessoa humana”, alçando-o como valor a ser zelado, juntamente com o bem-estar
do indivíduo, da família e da comunidade. Outra mudança que merece destaque é que a
expressão “tráfico de mulheres” não é mais utilizada, ampliando-se o entendimento à “pessoa”,
bem como que os “fins de libertinagem” são substituídos por “fins de prostituição”, como fica
claro no artigo 1.°:

As Partes na presente Convenção convêm em punir toda pessoa que, para


satisfazer às paixões de outrem: 1. aplicar, induzir ou desencaminhar para fins
de prostituição, outra pessoa, ainda que com seu consentimento; 2. explorar a
prostituição de outra pessoa, ainda que com seu consentimento.

Não obstante, a normativa estende a punição também a quem “mantiver, dirigir ou


conscientemente financiar uma casa de prostituição ou contribuir para esse financiamento”,

315
A Convenção para a Supressão do Tráfico de Mulheres e Crianças, concluída em Genebra em 30 de setembro
de 1921 e ratificada pelo Brasil em 18 de agosto de 1933, baseou-se nas recomendações contidas na Ata Final
da Conferência Internacional, convocada pelo Conselho da Liga das Nações entre 30 de junho e 5 de julho de
1921.
316
A Convenção Internacional para Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores, concluída em Genova aos 8 de
outubro de 1933 e ratificada pelo Brasil em 24 de junho de 1938, foi pensada no âmbito da Liga das Nações,
dando continuidade às recomendações contidas no Relatório ao Conselho da Sociedade das Nações pelo
Comitê de Tráfico de Mulheres e Crianças sobre os trabalhos de sua Décima Segunda Sessão.
317
A Convenção foi concluída em Nova Iorque, a 21 de março de 1950. Assinada pelo Brasil, a 5 de outubro de
1951. Aprovada pelo Decreto Legislativo nº 6, de 1958. Depósito do instrumento de ratificação na ONU, a 12
de setembro de 1958. Promulgada pelo Decreto nº 46.981, de 8 de outubro de 1959. Publicada no Diário Oficial
de 13 de outubro de 1959. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/
comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/comite-brasileiro-de-direitos-humanos-e-politica-
externa/ConvRepTrafPessLenoc.html. Acesso em: 10 mar. 2020.
154

assim como “conscientemente der ou tomar de aluguel, total ou parcialmente, um imóvel ou


outro local, para fins de prostituição de outrem.” É possível verificar que não se proíbe a
prostituição em si, mas a intermediação dessa prostituição, punindo-a.
A Convenção de 1949 está ligada à perspectiva abolicionista, fazendo referência ao
tráfico para fins de exploração sexual como forma de comercialização da prostituição e
incompatível com o princípio da dignidade humana318.

Considerando que a prostituição e o mal que a acompanha, isto é, o tráfico de


pessoas para fins de prostituição, são incompatíveis com a dignidade e o valor
de pessoa humana e põem em perigo o bem-estar do indivíduo, da família e
da comunidade319.

A convenção estabelece que os Estados-parte assumam a responsabilidade de sancionar


todos aqueles que participem de alguma maneira para a promoção da prostituição de outrem, e
aquele que administre casa de prostituição com o objetivo de explorar a prostituição alheia,
independentemente do seu consentimento (artigos 1 e 2)320. Também não exige o cruzamento
de fronteiras, o que permite a caracterização do crime de tráfico de pessoas no âmbito das
fronteiras nacionais.
O artigo 5.º estabelece que os estrangeiros estarão igualmente autorizados a se constituir
parte civil, em igualdade de condições, com os nacionais, garantindo a não discriminação da
vítima, seja ela discriminação racial, origem, idade, sexo.
A Convenção prevê, ainda, que os Estados adotem medidas para a prevenção da
prostituição e para assegurar a reeducação e readaptação social das suas vítimas, bem como a
estimular a adoção dessas medidas por seus serviços públicos ou privados de caráter educativo,
sanitário, social, econômico e outros. Ela também situa dispositivo (artigo 19, §2) que incorpora
a possibilidade de repatriação das pessoas vítimas de tráfico que o desejarem ou que forem
reclamadas por pessoas que sobre elas tenham autoridade e aquelas cuja expulsão foi decretada
conforme a lei.
Apesar de a Convenção estabelecer tantas medidas para os Estados-parte, não traz, de
forma precisa, uma definição para o tráfico de pessoas. Essa ausência de definição dificulta a

318
Apesar de fazer referência ao tráfico de pessoas para fins de exploração sexual a Convenção. não traz um
conceito do que seria o tráfico de pessoas.
319
ONU. Convenção para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio: preâmbulo. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/comite-brasileiro-
de-direitos-humanos-e-politica-externa/ConvRepTrafPessLenoc.html. Acesso em: 10 mar. 2020.
320
A irrelevância do consentimento para a caracterização do tráfico é posteriormente adotada pelo Protocolo de
Palermo, que será mais adiante tratado. Mas é de extrema relevância já destacar essa percepção e disposição
na Convenção de 1949.
155

formulação e internacionalização das normativas por parte desses Estados. E ainda garante um
enfoque de combate à prostituição (que é considerada um mal e é imoral), juntamente com o
combate ao tráfico de pessoas, ainda que o deslocamento e o exercício da prostituição sejam
livres e voluntários. A adoção deste enfoque acaba por violar os direitos das pessoas que optem
livremente ou desejem migrar livremente para exercer essa atividade, mesmo que se trate de
pessoas adultas e a prostituição não seja forçada321.
Importante destacar ainda que a Convenção de 1949 limita a exploração do trabalho
apenas à esfera sexual, restringindo a identificação, persecução, atendimento e proteção das
vítimas para outras finalidades, como o trabalho forçado, casamentos forçados, adoção ilegal,
trabalho doméstico, entre outros.
Apesar da soma de esforços pela comunidade internacional para a repressão e sanção
desse delito, o baixo número de ratificações indicam o inexpressivo apoio à normativa322, talvez
pela terminologia ampla e confusa, pela ausência de mecanismos de repressão fortes e pela
repressão ao trabalho sexual exercido livremente.
Pode-se dizer que, de 1949 até os anos 2000, a configuração geopolítica do mundo
mudou consideravelmente323. Não cabe aqui analisar esse momento histórico do Pós-II Guerra
Mundial, início da chamada Guerra Fria, caracterizando a bipolaridade mundial, o fim da União
Soviética e da Alemanha Oriental, reconfigurando o mundo. Mas é importante compreender
que a revolução decorrente do fenômeno caracterizado como “globalização” afetou todas as
esferas da vida social e individual em grande parte dos Estados nacionais, principalmente depois
da década de 1970, quando o mundo passou por transformações políticas, econômicas, sociais
e culturais remodelando relações humanas, produzindo novas instituições e reconfigurando
novas lógicas.
O Estado-nação deixa de ser pensado somente a partir da ideia clássica de soberania e
do poder dela decorrente. Os processos econômicos, para além das fronteiras estatais, assentem

321
PISCITELLI, Adriana; VASCONCELOS, Marcia. Trânsitos. Cadernos Pagu, Campinas, n. 31, p. 12, 2008.
322
Dos 82 Estados-parte, somente 26 ratificações até 2019, menos da metade dos Estados-parte do sistema ONU.
ONU. Treaty Collections. International Agreement for the Suppression of the White Slave Traffic, signed
at Paris on 18 May 1904, amended by the Protocol signed at Lake Success, New York, 4 May 1949.
Disponível em: https://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=VII-7&
chapter=7&clang=_en#1. Acesso em: 20 mar. 2020.
323
Geopolítica pode ser definida como: “A geopolítica sempre se caracterizou pela presença de pressões de todo
tipo, intervenções no cenário internacional desde as mais brandas até guerras e conquistas de territórios.
Inicialmente, essas ações tinham como sujeito fundamental o Estado, pois ele era entendido como a única fonte
de poder, a única representação da política, e as disputas eram analisadas apenas entre os Estados. Hoje, esta
geopolítica atua, sobretudo, por meio do poder de influir na tomada de decisão dos Estados sobre o uso do
território, uma vez que a conquista de territórios e as colônias tornaram-se muito caras”. BECKER, Bertha K.
(2005). Geopolítica da Amazônia. Estudos Avançados, v. 19, n. 53, p. 71-86, 2005. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ea/v19n53/24081.pdf. Acesso em: 25 mar. 2020.
156

uma espécie de soberania econômica, uma vez que o Estado é incapaz de exercer controle sobre
atividades em espaço extraterritorial, diluindo a distinção entre mercado interno e externo324.
Nessa perspectiva, identifica-se uma incapacidade do Estado-nação de controle do crime e da
garantia da segurança por meio da perda do monopólio da violência física legitima325.
A revolução nos meios e formas de comunicação e transporte, na economia, nas
tecnologias, na política e nas relações sociais, também tem repercussões singulares no campo
do direito. Talvez mais do que em qualquer outra dimensão da vida social, o mundo jurídico se
viu obrigado a cruzar as fronteiras estatais e buscar respostas coletivas para problemáticas
coletivas326.
A globalização do crime internacional se dá pelos mesmos motivos que os das
instituições legítimas, seja pela possibilidade de inserir os seus produtos através do livre
comércio, seja pela diminuição da intervenção estatal, seja pelas brechas dos sistemas jurídicos,
visando sempre a obter lucro. Trocam-se técnicas de logística, mecanismos de comunicação e
até mesmo pessoas com a finalidade de obter melhores resultados. Atualmente, percebe-se que
a criminalidade, por menor que seja, não está totalmente desconectada das redes do crime
organizado. Nesse sentido, Shelley faz uma comparação interessante sobre as multinacionais e
os negócios criminosos transnacionais.

Assim como as multinacionais abrem sucursais no mundo inteiro para tirar


proveito da mão-de-obra atrativa ou dos mercados de matérias-primas, o
mesmo ocorre com os negócios ilegais. Além disso, os negócios internacionais,
tanto os legítimos quanto os ilícitos, também criam no mundo inteiro toda a
infra-estrutura necessária para a produção, o marketing e as necessidades de
distribuição. Empresas ilegais podem se expandir geograficamente para
aproveitar essas novas condições econômicas, graças à revolução nas
comunicações e no transporte internacional327.

A rede articulada possibilita a criação de uma grande estrutura de serviços-meio para a


obtenção dos melhores resultados como fornecedores de documentos falsos, prestadores de
serviços jurídicos, lavadores de dinheiro, rede de transportes, entre outros. Quando os negócios

324
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1999. p. 73.
325
Ver em: GARLAND, David. As contradições da sociedade punitiva: o caso britânico. Revista de Sociologia e
Política, Curitiba, n. 13, p. 59-80, 1999; NUNES, Camila Caldeira. Da pulverização ao monopólio da
violência: expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista.
Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, 2011. p. 65.
326
TOURRAINE, Alain. Os novos conflitos sociais. Revista Lua Nova, São Paulo, n. 17, jun. 1989. Disponível
em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451989000200002. Acesso em: 10
maio 2020.
327
SHELLEY, Louise. A globalização do crime e do terrorismo. Disponível em: http://usinfo.state.gov/
journauls/itgic/2006/ijgp/shelley.htm. Acesso em 29 ago. 2020.
157

ligados a uma modalidade do crime organizado chegam a ser grandes e estáveis, as redes se
diversificam em outras modalidades, assim como aplicam em política, em investimento, como
faria qualquer grande empresa lícita328. O êxito das redes criminosas se baseia tanto na sua
mobilidade internacional como na sua capacidade de se aproveitar das fronteiras nacionais que
definem e estabelecem os limites da ação das autoridades locais329.
De outro lado, o aprimoramento do crime organizado reflete a insuficiência dos
mecanismos de enfrentamento tradicionais individuais de cada Estado, corroborando para a
necessidade de utilização de novas formas de combate ao crime organizado transacional através
da cooperação bilateral, regional e até multilateral, e ainda por meio da cooperação técnica
policial, tecnológica, econômica e de mecanismos de comunicação330.
Naím aponta três ideias que equivocadamente são postas quando se discute a questão
do comércio ilegal e do tráfico em geral331. A primeira se refere à ilusão de que não há nada de
novo, que o comércio ilícito representa uma antiga e permanente faceta e um inevitável efeito
secundário das economias de mercado ou do comércio em geral. Ele esclarece que essa visão
ignora as importantes transformações que ocorreram na década de 1990, principalmente na vida
política e econômica, juntamente com as tecnologias revolucionárias, assim como as reformas
para promover a economia de mercado que aumentaram as possibilidades e incentivos aos
traficantes. Além disso, a tecnologia ampliou o mercado geograficamente, diminuindo custos
de transporte, distâncias, relativizando a noção do tempo, como também ampliou as espécies
de produtos que antes não existiam. A segunda ideia apontada por Naím é que o comércio ilícito
não é mais uma manifestação de delinquência. As atividades delituosas globais estão
transformando o sistema internacional, invertendo as regras, criando novos agentes e
reconfigurando o poder na política e economia internacionais332. A terceira ideia é a concepção

328
GLENNY, Misha. McMáfia: crime sem fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
329
NAÍM, Moisés. Ilícito. Como traficantes, contrabandistas y piratas están cambiando el mundo. Barcelona:
Editora Debate, 2006. p. 26. Ver também em: HIRATA, Daniel; TELLES, Vera da Silva. Cidade e práticas
urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito. Revista Estudos Avançados, v. 21, n. 61,
2007. Dossiê “Crime Organizado”
330
DORNELAS, Luciano Ferreira. Tráfico de pessoa: cooperação jurídica internacional no combate ao tráfico.
Curitiba: Edição do Autor, 2012. p. 32-33.
331
NAÍM, Moisés. Ilícito. Como traficantes, contrabandistas y piratas están cambiando el mundo. Barcelona:
Editora Debate, 2006. p. 28.
332
Ibid., p. 20-21. “Gracias a al-Qaeda, hoy el mundo sabe lo que puede hacer una red de individuos fuertemente
motivados, no vinculados por lealtad a ningún país concreto, y potenciados por la globalización. El problema
es que el mundo sigue pensando en tales redes mayoritariamente en términos de terrorismo. Sin embargo, y
como mostrarán las páginas siguientes, el afán de beneficios puede constituir un elemento motivador tan
potente como Dios. Las redes de apátridas comerciantes en productos ilícitos están cambiando el mundo tanto
como los terroristas, y probamente incluso más.”
158

de que o comércio ilícito é como um fenômeno “submerso”, tentando relegá-lo a um mundo


diferente do dos cidadãos e eleitores honestos333.
Essas são algumas das complexidades nas quais a globalização nos insere. No âmbito
dos Sistemas Penais internos, surgem novas perspectivas de criminalização, na tentativa de
responder às práticas transfronteiriças não desejadas pelos Estados.
Nesse sentido, o conceito de Criminalidade Organizada Transnacional, categoria ainda
um tanto desconhecida dos ordenamentos internos jurídico-penais contemporâneos, é resultado
de um processo de sedimentação de discursos de poder, principalmente no Congresso das
Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Criminosos, levando a escolhas
sobre a delimitação de seus tipos.
Sob tal argumento, é importante compreender os discursos utilizados como método de
manutenção ou para consecução de poder.

3.2.1 As relações de poder na construção do conceito da criminalidade organizada


transnacional

Para Foucault, o poder não se concebe como algo que existe por si só, de forma
independente334. Há relações de poder, e este se situa em todos os lugares, distribuído e sobre
toda a sociedade. O poder acontece como uma relação de forças; ele não pode ser localizado e
observado em uma instituição específica ou no Estado; assim como não se pode ceder poder a
um governante. Esse autor destaca também que é preciso não tomar o poder como um fenômeno
de dominação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre os outros ou de um grupo sobre os
outros. O poder não é algo que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detêm
exclusivamente e aqueles que não o possuem. “O poder deve ser analisado como algo que
circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali,
nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem.”335.
Segundo Foucault, existem relações de poder e não um poder uno/unitário. O poder não
está localizado em um ponto específico, mas distribuído. Ele age em todos os lugares, em todas
as pessoas, atores sociais, sobre toda a sociedade. O poder é a multiplicidade de correlações de
forças inerentes ao domínio que se exerce, e se constitui da sua organização; é o jogo que,

333
Id. “¿Como calificaríamos a una mujer que consigue proporcionar cierto bienestar material a su necesitada
familia en Albania o en Nigeria (ou até mesmo no Brasil) entrando en otro país ilegalmente (irregularmente) y
trabajando en la calle como prostituta o como vendedora ambulante de productos falsificados?” (grifo nosso).
334
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 13. edição. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
335
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. 13. edição. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
159

através de lutas e afrontamentos incessantes, transforma-as, reforça, inverte. Encontra-se nos


apoios que tais correlações de força descobrem umas nas outras, formando cadeias ou sistemas
ou, ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si. O poder se verifica nas
estratégias em que se originam, e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo
nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais. A condição de
possibilidade do poder, em todo caso, o ponto de vista que permite tornar o seu exercício
inteligível até em seus efeitos mais “periféricos”, também enseja empregar os seus mecanismos
como chave de inteligibilidade do campo social, e não deve ser procurada na existência primeira
de um ponto central, num foco único de soberania de onde partiriam formas derivadas e
descendentes. O poder, assim, está em toda parte, não porque englobe tudo, mas porque provém
de todos os lugares336.
Definir é estabelecer limites, balizar conceitos; é conferir uma compreensão,
estereotipar, produzir uma imagem que se mostra como um instrumento fundamental para a
identificação, descrição e classificação de diferentes elementos e aspectos da realidade.[...] “a
penalidade seria então uma maneira de gerir os ilegalismos, de riscar limites de tolerância, de
dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir, em parte, de tornar útil outra, de
neutralizar estes, de tirar proveito daqueles.”337.
Quando se define uma categoria como a “Criminalidade Organizada Transnacional”,
está-se validando um discurso de poder e legitimando certas políticas criminais338. Essa lógica
poderia ser utilizada para o que Teixeira designa como economia criminal339.Assim, “As
propostas conceituais no campo penal são representações de um discurso com pretensões de
cientificidade e, conforme a perspectiva acolhida, serão variáveis conforme as abordagens e os
desígnios almejados (intenções de poder).”340. Nesse sentido, sempre se está falando de
escolhas, feitas em função de um momento histórico e das relações de poder mais
representativas. Os discursos produzidos e legitimados justificam determinadas políticas
criminais.
A globalização do comércio legal e ilegal muitas vezes se conecta a questões legais
buscando a sua legitimação. Há um ancoramento do mercado internacional nos mercados

336
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 13. edição. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p. 88-92.
337
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. p.258.
338
SANTO, Davi do Espírito. Criminalidade organizada transnacional: a genealogia de um discurso de poder.
Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v. 7, n. 3, 3º quadrim. 2012. Disponível em:
www.univali.br/direitoepolitica - ISSN 1980-7791. Acesso em: 20 jul. 2017.
339
TEIXEIRA, Alessandra. Construir a delinquência, articular a criminalidade: um estudo sobre a gestão dos
ilegalismos na cidade de São Paulo. Tese (Doutorado em sociología) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, 2012. p. 199.
340
Id., SANTO.
160

locais341. Reconfigura-se um Estado novo, chamado de Estado penal com nova aparência e
novas práticas e discursos que reforçam a criminalização primária, com novas leis penais e
inovadoras técnicas de enfrentamento de novas questões criminais.
Dessa maneira, a categorização do crime organizado transnacional leva à internalização
de determinadas políticas criminais que, talvez, se fossem criadas em outro momento histórico,
teriam outra configuração e valorizariam outros ilegalismos.
Toda a argumentação sobre poder e ilegalismos não é feita para defender que o tráfico
de pessoas não deva ser criminalizado. O que está em tensionamento é a compreensão de que a
criminalização do tráfico de pessoas como uma espécie do crime organizado transnacional é
uma categoria política, ou seja, resultante de escolhas políticas feitas pelos Estados e que foi
levada à ONU para essa regulamentação.
Essas escolhas políticas tiveram, têm e terão consequências sobre a criminalização do
tráfico, especialmente sobre as políticas de segurança internacional e questões relacionadas à
mobilidade humana. A escolha de uma estrutura criminal para o tratamento de questões
relacionadas à mobilidade humana traz reflexos evidentes no delineamento do enfoque e
abordagem das políticas internacionais que tangenciam a questão migratória e principalmente
os direitos das pessoas envolvidas.
A escolha do tráfico de pessoas como um crime organizado transnacional, pois,
certamente não foi aleatória ou desprovida de interesses e responsabilidades. Embora tenham
havido resistências nas negociações, o lobby de determinadas delegações342 foi fundamental
para dar forma às decisões da Assembleia Geral343.
A escolha do tráfico de pessoas como um ilegalismo ligado ao crime organizado
transnacional é fundamental para compreender a configuração do regime internacional de
enfrentamento ao tráfico de pessoas e verificar, nos casos concretos de Brasil e Espanha, se
esses estados estão a caminho da construção de um regime com enfoque em direitos humanos.

341
BERNET, Olivier; TARRIUS, Alain Tarrius; BERNET, Olivier. Migrants internationaux et nouveaux réseaux
criminels. Transcontinentales, v. 8/9,| 2010. Disponível em: http://transcontinentales.revues.org/ 185. Acesso
em: 23 abr. 2017.
342
Em particular as delegações argentina, austríaca e italiana. Ver em: DIAS, Guilherme Mansur. Notas sobre as
negociações da “Convenção do Crime” e dos Protocolos Adicionais sobre Tráfico de Pessoas e Contrabando
de Migrantes. REMHU - Rev. Interdisciplinar Mobilidade Humana, Brasília DF, Ano XXIII, n. 45, p. 219,
jul./dez. 2015
343
DIAS, Guilherme Mansur. Migração e crime: desconstrução das políticas de segurança e tráfico de pessoas.
Tese (Doutorado Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, 2014. p. 44.
161

3.2.2 Antecedentes da Convenção do Crime Organizado Transnacional e seus Protocolos

3.2.2.1 Congressos das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de


Criminosos

Analisando as proposições feitas nos Congressos das Nações Unidas organizados pela
sua Assembleia, a essência ideológica é a da defesa social, mesmo que os títulos dos Congressos
abordassem reflexões acerca do “Tratamento dos Criminosos”. Preponderaram as propostas
repressivas, em detrimento daquelas que desejavam tratamento adequado às populações
criminalizadas.
No Primeiro Congresso das Nações Unidas Sobre Prevenção do Crime e Tratamento de
Criminosos, 1955, os debates se centraram no tratamento dos delinquentes e reclusos menores
de idade344. No Segundo Congresso, em 1960, foram formuladas recomendações acerca da
cooperação entre as polícias nacionais, tendo em vista a prevenção da delinquência de menores.
O Terceiro Congresso, em 1965, e o Quarto, em 1970, analisaram a relação entre a
criminalidade e as mudanças sociais. As negociações para a elaboração da Convenção das
Nações Unidas contra a Delinquência Organizada Transnacional e seus Protocolos começam
efetivamente a partir do Quinto Congresso das Nações Unidas Sobre Prevenção do Crime e
Tratamento de Criminosos, em 1975. Desse Congresso resulta a Declaração sobre a Proteção
de Todas as Pessoas contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou
Degradantes, e se discute sobre: crimes relacionados com obras de arte e outras propriedades
culturais; criminalidade associada ao alcoolismo e ao uso de drogas; a violência interpessoal;
criminalidade associada à migração; a fuga de desastres naturais e hostilidades; e criminalidade
feminina e terrorismo. Assim, foram considerados como “delinquência transnacional”: os
ilícitos penais de caráter financeiro (delito como negócio), a corrupção de funcionários
públicos, os crimes que afetam obras de arte e outros bens culturais, os delitos relacionados ao
abuso do álcool, ao consumo e ao tráfico de drogas, os crimes de trânsito, os vinculados à
migração e o terrorismo.
No Sexto Congresso, em 1980, os debates giraram em torno das estratégias de prevenção
fundadas nas circunstâncias sociais, culturais, políticas e econômicas dos países.

344
BRASIL. Câmara dos Deputados. Primeiro Congresso das Nações Unidas Sobre Prevenção do Crime e
Tratamento de Criminosos. http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-
permanentes/cdhm/comite-brasileiro-de-direitos-humanos-e-politica-externa/DirPrisDet.html. Acesso em: 1
maio 2017.
162

No Sétimo Congresso das Nações Unidas Sobre Prevenção do Crime e Tratamento de


Criminosos, em 1985, acentuou-se a ideia de que as atividades da delinquência organizada se
tornavam uma grave ameaça em nível mundial. No centro dos debates, estava o tema “As novas
dimensões da criminalidade e prevenção do crime no contexto do desenvolvimento: desafios
para o futuro”, numa evidente referência aos novos riscos à segurança da comunidade global.
Reconheceu-se que o crime organizado adquirira extensão geográfica sem precedentes, e se
diversificara no campo de muitas atividades lucrativas. A comunidade internacional deve
reavaliar a própria natureza e dimensões do problema e as políticas que podem servir ao objetivo
comum de lidar com isso. Os Estados também devem refletir seriamente sobre o impacto do
crime em geral, do crime transnacional organizado e, em particular, na vida e na economia de
seus cidadãos345.
No Oitavo Congresso das Nações Unidas Sobre Prevenção do Crime e Tratamento de
Criminosos, em 1990, o tema foi “Medidas nacionais e internacionais eficazes contra a
delinquência organizada e as atividades delitivas de caráter terrorista”. Analisou-se que novas
oportunidades oferecidas pela globalização do comércio e das comunicações foram exploradas
com avidez e eficácia por criminosos, deixando para trás a aplicação da lei, e trabalhando para
combinar com a inventividade, adaptabilidade e resiliência de organizações criminosas que têm
para se tornar transnacional, tanto no pensamento quanto na ação346.
Importante destacar que, ainda nesse ano, a Assembleia Geral das Nações Unidas
decidiu criar o Programa das Nações Unidas de Prevenção ao Crime e de Justiça Criminal,
projeto que levaria à constituição da Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Criminal,
vinculada ao Conselho Econômico e Social (ECOSOC) da ONU, e que tinha como temas
prioritários “crime nacional e transnacional, crime organizado, crime econômico, incluído
lavagem de dinheiro, e o papel da legislação criminal no meio ambiente.”347. Nesse momento,
no âmbito das discussões sobre crime, ainda não se inseriam as questões ligadas à mobilidade
humana.
O trabalho da Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Criminal pautou a questão do
crime organizado internacional de forma prioritária a partir daquele momento, o que levou em
1994, à Primeira Conferência Mundial sobre o Crime Organizado Transnacional, que concluiu

345
VLASSIS, D. The Global situation of transnational organized crime: the decision of the international
community to develop an international convention and the negotiation process. (Resource Material Serie n.
59). Disponível em: https://www.unafei.or.jp/publications/pdf/RS_No59/No59_33VE_Vlassis2.pdf. Acesso
em: 20 maio 2020.
346
Id.
347
BASSIONI, M. Cherif; VETERE, Eduardo. Organized crime: a compilation of U.N.: documents 1975-1998.
New York: Transnational Publishers. XVIII e Resolução 22/1992.
163

com A Declaração Política de Nápoles e o Plano de Ação Global contra o Crime Organizado
Transnacional.
No Nono Congresso, em 1995, um dos temas centrais tocou diretamente no assunto
Criminalidade Transnacional: “Medidas contra a delinquência organizada econômica de âmbito
nacional e transnacional e o papel do direito penal na Proteção do Meio Ambiente: experiências
e cooperação internacional”.
Com o Décimo Congresso, em 2000, fecha-se o “ciclo das definições” acerca da
Criminalidade Transnacional, ao se tratar da corrupção como modalidade de delinquência
organizada transnacional. A incorporação das questões de mobilidade de grupos humanos à
discussão do crime organizado foram coligadas em discussões sobre máfia e crime organizado
transnacional, e se sugeriu que fossem negociados separadamente, sendo pinçados e eleitos para
serem tratados naquelas discussões de cooperação internacional em matéria criminal: o
Protocolo contra a fabricação e uso ilícito de armas de fogo, o Protocolo contra o tráfico ilícito
de migrantes e o Protocolo para prevenir, suprimir e punir o tráfico de pessoas348.
O Protocolo contra a fabricação e uso ilícito de armas de fogo já era um tema com
acúmulo de discussões na Divisão de Prevenção e Justiça Criminal da ONU, motivo pelo qual
se decidiu pela sua discussão em conjunto com a Convenção Transnacional349.
Por sua vez, o tema do Protocolo relativo ao tráfico de pessoas foi incorporado
inicialmente por costuras políticas e articulações prévias com grupos de pressão específicos
feitos pela Argentina, que há algum tempo tentava elaborar uma Convenção contra o tráfico de
menores, sem sucesso, no âmbito da Convenção sobre os Direitos das Crianças350.
A inclusão do Protocolo contra o Tráfico Ilícito de Migrantes - também chamado de
contrabando de migrantes, deve-se às ações dos governos austríaco e italiano. A Áustria e a
Itália se encontravam em um momento de recebimento de volume considerável de imigrantes
(seja do leste, em decorrência da queda do regime socialista, além do aumento de solicitações
de refúgio e asilo por pessoas que fugiam da antiga Iugoslávia ou de imigrantes cruzando o
mediterrâneo em barcos e pateras, vindos principalmente de países africanos, e do Oriente
Médio). Nesse sentido, todas as mudanças passadas pela Europa na década de 1990 levaram a
uma equivocada associação dos estrangeiros ao aumento da criminalidade na região, o que

348
DIAS, Guilherme Mansur. Migração e crime: desconstrução das políticas de segurança e tráfico de pessoas.
Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP. 2014. p.
37.
349
Id.
350
Id.
164

gerou pânicos associados a reações anti-imigrantistas, levando a uma vinculação necessária


entre o incremento dos fenômenos migração e criminalidade.
Foram essas algumas das questões preliminares que fizeram com que a temática do
tráfico de pessoas e do contrabando de migrantes fossem sendo incorporadas à proposta da
Convenção contra o Crime Organizado Transnacional. As temáticas ligadas às diversas formas
de mobilidade humana - inclusive por meio da violação de direitos decorrente do tráfico de
pessoas – e a compreensão das causas preliminares que levam ao contrabando de pessoas, que
deveriam estar ligadas a uma questão de violação de direitos, passam a ser compreendidos como
uma aposta de enfrentamento a partir da escolha jurídico-política do combate à securitização e
criminalização dos processos de mobilidade humana e, mais especificamente, dos migrantes.
A análise do Travaux Préparatoirs das negociações para a elaboração da Convenção
contra o Crime Transnacional e seus Protocolos permite entender os interesses e intenções dos
Estados na elaboração dessas normativas internacionais e demonstra que estava em jogo a
caracterização e identificação dos tipos de crimes entendidos como organizados transnacionais.
A prioridade era a criminalização desses crimes e dos seus agentes, deixando para segundo
plano, a criação de um sistema de proteção às vítimas.
O regime jurídico criado por essa Convenção e seus protocolos não priorizam a vocação
de pensar na proteção e os direitos das vítimas. Esse regime existente surge e se desenvolve a
partir de uma lógica securitária e de criminalização internacional do crime organizado
transnacional, que incorpora a luta contra o tráfico de pessoas como uma modalidade do crime
transnacional. É um regime de combate ao tráfico de pessoas incompatível a um regime de
proteção às vítimas, mesmo que o Protocolo de Palermo mencione a proteção às vítimas. Pode-
se dizer que a escolha da incorporação do tráfico de pessoas à modalidade do crime organizado
transnacional foi uma estratégia de controle de grupos estigmatizados, como grupos de
imigrantes, mulheres, negros, entre outros.
O regime de combate ao crime organizado transnacional trata a proteção às vítimas
como algo secundário. Centra-se na proteção do Estado contra o crime transnacional; as vítimas
e a sua proteção são relegadas a segundo plano, condicionado, em muitos casos, à identificação
da vítima em denúncia de uma rede de tráfico, mais uma vez sobre a lógica da criminalização.
Sob tal lógica não é possível pensar a construção de um regime para proteger as vítimas
de tráfico. As próprias Organizações Internacionais (OIs), entendidas como atores
internacionais, atuam, muitas vezes, na linha da cooperação técnica com os Estados, na lógica
do controle ao crime organizado transnacional e da proteção aos direitos das vítimas, sob a
perspectiva do crime transnacional, em detrimento dos Direitos Humanos.
165

Nesse sentido, coincide a pesquisa de Carballo, quando afirma que realizar uma
aproximação histórica sobre o tráfico de pessoas permite entender porque as normas existentes,
fundamentalmente punitivas e criminalizantes, não incidem sobre o fim do problema do tráfico
de pessoas, problema fundante das sociedades capitalistas que muitas vezes permitem a
exploração das pessoas em benefício lucro351.
Os dois Congressos que se seguem pouco agregam à definição de Criminalidade
Transnacional, em 2005 e 2010, sobre as diretrizes para fortalecer os diversos sistemas de
justiça penal mediante coordenação e cooperação internacional, especialmente no que se refere
à delinquência organizada transnacional, os crimes financeiros, a corrupção, o tráfico de drogas,
armas, o terrorismo, entre outros352.

3.3 Marco Normativo das Nações Unidas

3.3.1 A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional

A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional e em seus


Protocolos Adicionais353 se concentrou no tráfico ilícito de armas e munições, combate ao
tráfico de drogas, ao contrabando de migrantes por via terrestre, marítima e aérea e ao tráfico
de pessoas (mulheres e crianças). Conforme dito anteriormente, essas modalidades de crime
organizado transnacional, ou seja, esses ilegalismos, foram escolhas políticas feitas pelos
Estados-parte naquele momento histórico.
Esse foi o cenário que fez emergir o conceito de Criminalidade Organizada
Transnacional e que consiste na atividade ou no conjunto de atividades, isoladas ou reiteradas,
cometidas por grupo criminoso organizado que, em transterritorialidade, envolva a prática de
infrações penais graves (com pena privativa de liberdade igual ou superior a quatro anos) ou,
qualquer que seja a pena, diga respeito aos crimes mencionados na Convenção de Palermo e
seus Anexos. A Convenção estabelece que a infração será de caráter transnacional se: a) for
cometida em mais de um Estado; b) for cometida num só Estado, mas uma parte substancial da
sua preparação, planeamento, direção e controle tenha lugar em outro Estado; c) for cometida
num só Estado, mas envolva a participação de um grupo criminoso organizado que pratique

351
CARBALLO, Marta de la Riva. Trata de personas: consideraciones históricas y jurídicas: estructuras,
institución y sistemas de explotación. Tese Doctoral. 2017. p. 32.
352
UNODC. Congressos das Nações Unidas sobre Prevenção ao Crime e Justiça Criminal (1955-2010): 55
anos de conquistas. Disponível em: http://www.unis.unvienna.org/pdf/2010-Crime_Congress/Portugese_
Poster_Book.pdf. Acesso em: 25 abr. 2017.
353
UNODC. United Nations Convention against Transnational Organized Crime and the Protocols Thereto.
Disponível em: http://www.unodc.org/unodc/en/treaties/CTOC/index.html. Acesso em: 25 abr. 2017.
166

atividades criminosas em mais de um Estado; ou d) for cometida num só Estado, mas produza
efeitos substanciais noutro Estado354.
Há entendimentos de que existem lacunas terminológicas causadas pela amplitude da
expressão “criminalidade organizada”, dando margem para questionamentos quanto à sua
aplicabilidade; e, de outro lado, que a abertura conceitual é intencionalmente funcional: serviria
para abranger uma multiplicidade de atividades de grupos criminosos organizados, em
detrimento da legalidade formal, ou seja, presta-se a legalizar práticas autoritárias e
reducionistas de garantias fundamentais e a mascarar violações aos direitos humanos355.
Um exemplo desses entendimentos da abertura conceitual funcional é a ausência de
previsão das modalidades ilícitas transterritoriais, como o terrorismo de Estado, as políticas
capitalistas predatórias praticadas sob o manto da legalidade, o genocídio dos sistemas
prisionais, os crimes ambientais, os crimes contra as relações de consumo, no conceito de crime
organizado transnacional356.
Nessa linha argumentativa de que houve uma limitação no campo do enquadramento
das modalidades de crime organizado transnacional, verifica-se o sucesso ideológico e de
mercado da incorporação da criminalidade transnacional aos discursos de poder e às
justificativas de expansão dos sistemas penais nacionais. Ao mesmo tempo em que se ampliam
as ações repressivas voltadas à criminalidade comum, agora adjetivada de organizada e
transnacional, também se expandem os círculos dos privilégios e das intangibilidades, uma vez
que outras grandes questões do mundo global não são vistas como questões criminais
transacionais. Fizeram-se escolhas, determinadas pelos jogos de forças daquele momento,
conforme apontado anteriormente357.
No ano 2000, convencionam-se três modalidades de crime organizado transnacional:
tráfico de pessoas, especialmente mulheres e crianças, luta contra a fabricação e tráfico de armas
e drogas e contrabando de migrantes, de acordo com a convenção internacional (Convenção de
Palermo) e três protocolos adicionais (Protocolos de Palermo):

354
CONVENÇÃO das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5015.htm. Acesso em: 25 abr. 2017.
355
SANTO, Davi do Espírito. Criminalidade organizada transnacional: a genealogia de um discurso de poder.
Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v. 7, n. 3, 3º quadrim. 2012. Disponível em: www.univali.br/
direitoepolitica.
356
Id.
357
SANTO, Davi do Espírito. Criminalidade organizada transnacional: a genealogia de um discurso de poder.
Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v. 7, n. 3, 3º quadrim. 2012. Disponível em: www.univali.br/
direitoepolitica.
167

• Convenção contra o Crime Organizado Transnacional (2000) – prevê a cooperação entre


os Estados-parte no combate ao crime organizado transnacional358;
• Protocolo contra a Fabricação e Tráfico Ilícito de Armas de Fogo, suas Peças e
Componentes e Munições – sugere a adoção e implementação interna de legislação para
prevenir, investigar e processar delitos relacionados à fabricação e ao tráfico ilícitos de
armas de fogo (2000)359;
• Protocolo relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial
Mulheres e Crianças, que Suplementa a Convenção das Nações Unidas contra a
Criminalidade Organizada Transnacional (2000)360; e
• Protocolo contra o Tráfico Ilícito de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea, que
Suplementa a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada
Transnacional361.

Para esta pesquisa, interessa aprofundar no Protocolo Adicional à Convenção das


Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e
Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças (também conhecido como
Protocolo de Palermo), adotado em 15 de novembro de 2000 como instrumento orientador dos
Estados para o reconhecimento do tráfico de pessoas como crime transnacional organizado; traz
em seu art. 3º definição ampla da expressão “tráfico de pessoas”, compreendendo-a como o

recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de


pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação,
ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de
vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para
obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para
fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da
prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou
serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão
ou a remoção de órgãos.

O Protocolo de Palermo determina que o consentimento dado pela vítima seja


considerado irrelevante para a caracterização do tráfico de pessoas, caso presente qualquer meio
acima listado (recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à
fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou

358
Promulgada pelo Brasil em 12 de março de 2004, com o Decreto n° 5.015.
359
Foi promulgado pelo Brasil em 26 de outubro de 2006, com o Decreto no 5.941.
360
Promulgado pelo Brasil em 12 de março de 2004, com o Decreto nº 5.017.
361
Foi promulgado pelo Brasil em 12 de março de 2004, com o Decreto nº 5.016.
168

aceitação de pagamentos ou benefícios). Aderindo ao protocolo, os Estados-parte se


comprometem a adotar ações eficazes visando a prevenir e combater o tráfico de pessoas, em
especial mulheres e crianças, lançando mão de uma abordagem interna e global, com o intuito
de proteger os direitos fundamentais das vítimas.
O Protocolo estabelece que a exploração incluirá, no mínimo, a exploração da
prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados,
escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos. Nesse
sentido, mesmo verificando que se estabelece que os Estados-parte que ratificarem o documento
internacional podem tipificar o crime do tráfico de pessoas segundo outras definições, isso
possibilita diversas interpretações divergentes, a começar pela noção de exploração362. O
Protocolo indica que o enfrentamento ao tráfico de pessoas deve seguir três grandes objetivos:
a) prevenir e combater o tráfico de pessoas, prestando uma atenção especial às mulheres e às
crianças363; b) proteger e ajudar as vítimas desse tráfico, respeitando plenamente os seus direitos
humanos; e c) promover a cooperação entre os Estados-partes de forma a atingir esses objetivos.
Há que se fazer alguns apontamentos sobre o Protocolo de Palermo e a Convenção das
Nações Unidas de 1949. Diferentemente da Convenção de 1949, Palermo estabelece o tráfico
de pessoas envolvendo adultos e adultas, pessoas maiores de 18 anos, e deve se caracterizar
pela coerção, fraude ou abuso de situação de vulnerabilidade em alguma das fases do processo
de deslocamento que tem o fim da exploração. Ademais, não trata o tráfico de pessoas como
sinônimo da prostituição, mas se refere à exploração da prostituição e amplia o rol de
finalidades da exploração, indicando, no mínimo, o trabalho forçado, a escravatura ou práticas
similares ou a servidão, além da remoção de órgãos. (artigo 3.º). Além do mais, e fundamental,
apresenta-se como um Protocolo destinado a combater e prevenir o tráfico de pessoas e também
a proteger os direitos fundamentais das vítimas, garantindo alojamento, assistência médica,
psicológica e material, oportunidades de emprego, educação e formação (art. 6.º) e a
manutenção da permanência da vítima em seu território a título temporário ou permanente (art.
7.º). Nesse sentido, Palermo rompe totalmente com a conceitualização do tráfico de pessoas da

362
Importante destacar que as consequências das ambiguidades ou falta de clareza conceitual existente em termos-
chave do Protocolo (“exploração da prostituição de outrem” ou “outras formas de exploração sexual”,
“servidão”, “outras formas de coerção”, “abuso de poder” ou de posição de vulnerabilidade” podem ser
instrumentalizados em função de interesses particulares dos Estados que ratificaram, direcionando à repressão
à imigração indocumentada e à prostituição). Ver em: PISCITELLI, Adriana; VASCONCELOS, Marcia.
Apresentação. In: PISCITELLI, Adriana; VASCONCELOS, Marcia. (org.) Trânsitos. Cadernos Pagu,
Campinas, n. 31, p. 14, jul.-dez. 2008. Ver em: ICMPD. JORNADAS TRANSATLÂNTICAS. Disponível em:
https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos-pesquisas/
jornadastransatlanticas.pdf. Acesso em: 15 abr. 2020.
363
O Protocolo de Palermo considera “criança” qualquer pessoa com idade inferior a 18 anos.
169

Convenção das Nações Unidas de 1949, que tinha uma perspectiva mais moralizante sobre a
prostituição364. Importante ressaltar que, apesar de as referências gerais aos direitos humanos
que devem ser garantidos, o Protocolo faz pouco progresso no detalhamento dos direitos das
vítimas e como eles devem ser implementados pelos Estados.

3.3.1.1 Aspectos comparativos entre os Protocolos do Tráfico de Pessoas x Contrabando


de Migrantes

Os Protocolos adicionais da Convenção contra o Crime Transnacional relativos a


Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, e
contra o Tráfico Ilícito de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea se referem a
fenômenos diferentes, mesmo que eles tenham aspectos que os inter-relacionam. Tanto o tráfico
ilícito de migrantes como o tráfico de pessoas são considerados crimes, e por aludirem ao
deslocamento de pessoas são também considerados espécies do gênero migração. Analisando a
correlação dos fenômenos tráfico de pessoas, tráfico de migrantes e a migração se percebe que
na migração se destaca o deslocamento livre, consentido e na intenção do exercício livre de
atividade remunerada.

Figura 9. Inter-relação entre Migração, Tráfico de Pessoas e Tráfico Ilícito de Migrantes

Gráfico: Elaboração própria.

364
PISCITELLI, Adriana. VASCONCELOS, Marcia. Apresentação In: PISCITELLI, Adriana; VASCONCELOS,
Marcia. (org.) Trânsitos. Cadernos Pagu, Campinas, n. 31, p. 13, jul.-dez. 2008.
170

Se no tráfico ilícito de pessoas a finalidade é a exploração do migrante no destino final,


no tráfico de migrantes, também chamado de contrabando de migrantes, pretende-se que um
terceiro facilite a entrada de outrem em outro Estado de maneira ilegal, sem a exploração desse
migrante. Essa pode ser considerada a principal diferença entre os dois fenômenos. Das
diferenças principais, pode-se destacar, no caso do tráfico de pessoas: o consentimento
irrelevante; a possibilidade da caracterização do tráfico dentro de um mesmo Estado nacional
ou ultrapassando uma ou mais fronteiras e a diferença entre os bens protegidos.
Importante destacar que nos países de fala hispana o tráfico de pessoas é denominado
“trata de personas” e o contrabando de migrantes é chamado de “tráfico de pessoas”. Muitas
vezes, esses conceitos podem ser confundidos quando utilizados por alguém que não saiba essa
forma diferente de conceituar.

Tabela 4. Quadro comparativo do tráfico de pessoas e contrabando de migrantes

Tráfico de pessoas e contrabando de migrantes

Tráfico ilícito de migrantes


Tráfico de Pessoas
(contrabando de migrantes)

Consentimento é considerado
irrelevante.
O consentimento é considerado
Vítima nunca dá o seu válido, apesar das condições da
consentimento de forma livre. migração irregular apresentar uma
Consentimento Quando consente, é por meio de série de riscos, perigos e condições
coerção, engano ou condição de degradantes. O traficante intermedia
abuso contra ela. esse processo migratório e recebe pelo
serviço (em dinheiro ou espécie).
A migração pode ser regular ou
irregular.

A finalidade do tráfico de pessoas é O contrabando finaliza quando a


Exploração a exploração da pessoa no destino pessoa migrante chega ao destino.
final. Não caracteriza exploração da pessoa.

O tráfico de pessoas pode ser


interno (dentro de um mesmo Sempre se refere a transpassar
Transnacionalidade
Estado nacional) ou ultrapassar fronteiras nacionais.
uma ou mais fronteiras.
Crime contra a pessoa. Contra: a
Bem jurídico vida, a liberdade em geral, a
Crime contra a soberania do Estado.
protegido liberdade sexual, a dignidade
humana ou integridade física.
Fonte: (Elaboração própria).
171

Apesar da distinção teórica evidente entre os dois fenômenos, nem sempre é tão simples
os diferenciar. A prática, o diálogo com as organizações da sociedade civil e o discurso dos
próprios migrantes indicam que eles se confundem e se transmutam. Essa percepção nem
sempre é evidente, e muitas vezes é percebida por aqueles que atuam diretamente com os
migrantes e vítimas de tráfico de pessoas. O que inicialmente pode ser começado como um
processo de contrabando de migrantes, no decorrer do deslocamento, muitas vezes longo, pode
se modificar para uma situação de tráfico de pessoas, com a exploração destas pessoas no
trânsito e no destino. Isso ocorre, principalmente, com mulheres e crianças. A entrevista de
Jasmin, descrita no Capítulo 2, mostra bem essa situação. Ela inicialmente saiu da Nigéria em
direção à Europa por meio de intermediários que possibilitariam esse destino. Já no trajeto,
passou por inúmeras violências e explorações. Quando da chegada à Espanha, continuou sendo
explorada por uma rede de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual.
O conjunto de normativas surge como forma de responder aos novos desafios do cenário
internacional pós-guerra fria e a passos globalizados, inserido no marco do crime organizado
transnacional. Nesse sentido, o Protocolo de Palermo permitiu o início da organização da
articulação de um regime internacional contra o tráfico de pessoas para além da dimensão
sancionadora e tradicional, como disposta na Convenção de 1949365, para uma dimensão mais
multidimensional, com enfoque migratório, de direitos humanos, criminal, do trabalho, de
segurança e de gênero. Ainda que o Protocolo de Palermo não tenha sido pensado e não seja
entendido como um documento internacional de origem nos direitos humanos (mas sim de
política criminal), ele permite o desenvolvimento dessa dimensão e o entendimento de que se
deve garantir proteção e atenção às vítimas, inclusive com a participação de diversos atores
governamentais, de organizações intergovernamentais e de organizações da sociedade civil. De
fato, como se verá, por exemplo, o Conselho da Europa caminhou nessa direção, com a
Convenção do Conselho da Europa sobre a Luta contra Seres Humanos (2005), também
conhecida como Convenção de Varsóvia 366, e a criação do Grupo de Expertos contra o Tráfico
de Seres Humanos do Conselho da Europa (GRETA) e o Comitê de Partes367.
Mesmo verificando que o Protocolo de Palermo determina que os Estados se
comprometam com a prevenção ao crime do tráfico de pessoas, a proteção e assistência às

365
Exploração sexual e prostituição forçada.
366
CONSELHO DA EUROPA. Convenção do Conselho da Europa sobre a Luta contra Seres Humanos.
2005. Disponível em: https://rm.coe.int/CoERMPublicCommonSearchServices/DisplayDCTMContent?
documentId=090000168064899a. Acesso em: 15 jun. 2020.
367
A Convenção de Varsóvia tem total adesão dos 47 membros do Conselho da Europa. Disponível em: https://
www.coe.int/en/web/conventions/full-list/-/conventions/treaty/197/signatures?p_auth=C8VCXTSf. Acesso
em: 15 jun. 2020.
172

vítimas e repressão dos traficantes, o chamado “Triplo P”: Persecução, Proteção e Prevenção,
é importante destacar o desequilíbrio entre as ações pensadas no âmbito da proteção e
assistência às vítimas de tráfico e aquelas destinadas a estabelecer medidas de cooperação entre
autoridades estatais para a persecução do crime e punição dos agentes criminosos. Isso fica
bastante claro ao analisar o Protocolo de Palermo, que dentre 20 artigos somente dedica o artigo
6 para a atenção e proteção das vítimas de tráfico.
Analisando as atas de negociação dos Travaux Préparatoirs do Protocolo de Palermo,
percebe-se o desequilíbrio entre as discussões de medidas de proteção e assistência e aquelas
destinadas à criminalização do tráfico de pessoas. Essas contendas surgiram mais como uma
reação às discussões criminais do que como um enfoque particular e cuidadoso sobre o tema368.
De todas as formas, o Protocolo de Palermo é considerado o principal instrumento
jurídico e de compromisso político em nível mundial para combater o tráfico de pessoas,
contribui para situar a temática na agenda global, definir e marcar diretrizes internacionais de
mínimos consensuados sobre os quais os atores internacionais, Estados e comunidade
internacional devem atuar no sentido de combater o tráfico. É oportuno mencionar que
atualmente 178 Estados ratificaram esse documento internacional, demonstrando a sua
relevância e aceitação para o consenso mundial369, inclusive se comprometendo-se a
internalizar e desenvolver os elementos conceituais internos necessários para responder ao
enfrentamento do tráfico de pessoas.
É inegável dizer que o Protocolo estimulou o desenvolvimento de um marco global
contra o tráfico de pessoas gerando um compromisso dos Estados alicerçado no objetivo de
prevenir, perseguir, proteger as vítimas e cooperar internacionalmente. Todavia, ainda há longo
caminho a ser percorrido. O grande desafio da erradicação do tráfico de pessoas depende das
ações práticas e políticas públicas desenvolvidas internamente. O próximo capítulo
desenvolverá dois estudos de caso: o enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil e na
Espanha, olhando com mais foco a dimensão da proteção e assistência às vítimas. Nele se
verificará em que medida esses dois países estão conseguindo cumprir o desafio do
enfrentamento ao tráfico de pessoas com enfoque em direitos.
Se o Protocolo de Palermo foi o grande start para o desenvolvimento do marco global
de enfrentamento ao tráfico de pessoas, outros espaços institucionais foram e são de extrema

368
GALLANGHER, Anne. Trafficking, smuggling and human rights: tricks and treaties. Forced Migration
Review, n. 12, p.26, Jan. 2002. Disponível em: https://www.fmreview.org/sites/fmr/files/FMRdownloads/
en/development-induced-displacement/gallagher.pdf. Acesso em: 15 maio 2020.
369
O Protocolo de Palermo conta com 178 ratificações. Ver em: https://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?
src=UNTSONLINE&mtdsg_no=XVIII-12-a&chapter=18&clang=_en. Acesso em: 23 jul. 2020.
173

relevância para compor esse complexo Regime Internacional de Enfrentamento ao Tráfico de


Pessoas, principalmente no que tange à perspectiva do enfoque em direitos humanos.
Assim, passar-se-á a descrever de forma crítica, sempre tendo como norte a criação de
normativas e de recomendações que tenham como objetivos fundamentais a proteção e
assistência das vítimas de tráfico.

3.3.2 Relatoria Especial em tema de tráfico de pessoas no âmbito do Conselho de Direitos


Humanos das Nações Unidas

Em 2004, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas 370 criou a figura do
Relator Especial sobre Tráfico de pessoas, especialmente mulheres e crianças, com mandato de
três anos, para focalizar a atenção aos aspectos de direitos humanos das vítimas371. O Relator
Especial tem a função de: a) Agir sobre as violações cometidas contra as vítimas de tráfico de
pessoas e sobre as situações em que ocorreu uma falha na proteção de seus direitos humanos
por meio de denúncias individuais; b) Realizar visitas aos países para estudar a situação in loco
e formular recomendações destinadas a prevenir e/ou combater o tráfico e proteger os direitos
humanos de suas vítimas em países e regiões específicos; e c) Apresentar relatórios anuais sobre
as atividades do mandato372.
Desde o início, fica muito claro que a Relatoria Especial teria como marco central de
seus mandatos os aspectos de direitos humanos das vítimas de tráfico. E assim, demarcam dois
princípios básicos que orientam a ação dos trabalhos: a) que os direitos humanos das pessoas
traficadas estariam no centro de todo trabalho para combater o tráfico de pessoas e proteger e
prestar assistência e reparação às vítimas; e b) que medidas de combate ao tráfico não
prejudicassem os direitos humanos e a dignidade das pessoas afetadas.
O primeiro relatório informa que, ao interpretar as disposições do Protocolo de Palermo
e as usar como base à formulação de suas recomendações, a Relatoria Especial tomaria como

370
A Comissão de Direitos Humanos da ONU foi transformada em Conselho de Direitos Humanos das Nações
Unidas a partir de 2006. É um órgão intergovernamental dentro do sistema das Nações Unidas, composto por
47 estados responsáveis pela promoção e proteção de todos os direitos humanos em todo o mundo.
CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS DA ONU. Os órgãos de direitos humanos. Disponível em:
https://www.ohchr.org/SP/HRBodies/Pages/HumanRightsBodies.aspx. Acesso em: 20 jun. 2020.
371
OFICINA DO ALTO COMISSARIADO DOS DIREITOS HUMANOS. Relatório E/CN.4/2005/71 da
Relatora Especial sobre tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças. p. 4. Disponível em:
https://www.ohchr.org/SP/Issues/Trafficking/Pages/annual.aspx. Acesso em: 15 jun. 2020.
372
O Relator Especial apresenta duas espécies de relatórios anuais: Um no âmbito do Conselho de Direitos
Humanos (HRC) e; outro no âmbito da Assembleia Geral das Nações Unidas. Os relatórios dos relatores
especiais estão disponíveis em: OFICINA DO ALTO COMISSARIADO DOS DIREITOS HUMANOS.
Relatórios anuais Relator Especial do Tráfico de Pessoas, em especial mulheres e crianças. Disponível em:
https://www.ohchr.org/SP/Issues/Trafficking/Pages/annual.aspx. Acesso em: 15 jun. 2020.
174

referência a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os principais instrumentos


internacionais de direitos humanos: o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; o
Pacto Internacional Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; Convenção contra a Tortura e
Outros Tratamentos e Sanções Cruéis, Desumanas ou Degradantes; a Convenção sobre a
eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres; a Convenção sobre os
Direitos da Criança; a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os
Trabalhadores Migrantes e suas famílias; a Convenção Complementar sobre a Abolição da
Escravidão; e a Declaração de Viena sobre crime e justiça, além das normativas regionais contra
o tráfico de pessoas373.
Esse norte paradigmático foi extremamente relevante para indicar a intenção das Nações
Unidas em construir um Regime de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas já desde 2004, quando
do início da vigência do Protocolo de Palermo, baseado e ancorado em enfoque de direitos
humanos.
Analisar os documentos produzidos pela Relatoria Especial do Tráfico de Pessoas no
decorrer dos anos permite verificar como os temas relevantes foram sendo incorporados na
perspectiva da construção de uma compreensão do fenômeno do tráfico de pessoas a partir de
um olhar respeitoso aos direitos humanos das vítimas.
Para tanto, foram elencados os relatórios desenvolvidos até o momento desde a criação
dessa figura importante dentro do enfrentamento ao tráfico de pessoas374. Ressalta-se que os
relatórios apresentados, apesar de extremamente valiosos e importantes para a geração de
conhecimento, reflexão, e representar o olhar de um especialista independente no âmbito da
ONU, não são considerados instrumentos vinculativos para decisões no âmbito da própria
organização. Mesmo assim, a figura da Relatoria Especial faz parte dos atores relevantes para
a construção do regime complexo do tráfico de pessoas por gerar reflexões e consciência sobre
diversos aspectos na proteção dos direitos das vítimas e, de alguma forma, pressionando a
incorporação dessas recomendações nas normativas internacionais e, consequentemente,
nacionais.
Com uma leitura atenta dos relatórios, pode-se constatar uma preocupação constante em
afirmar que o tráfico de pessoas constitui uma grave violação de direitos humanos com causas
multifacetadas, e que os direitos das vítimas devem estar no centro das medidas adotadas para

373
OFICINA DO ALTO COMISSARIADO DOS DIREITOS HUMANOS. Relatório E/CN.4/2005/71da
Relatora Especial sobre tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças. Disponível em:
https://www.ohchr.org/SP/Issues/Trafficking/Pages/annual.aspx. Acesso em: 15 jun. 2020.
374
Ver Relatórios Relatoria Especial em tema de tráfico de pessoas no âmbito do Conselho de Direitos Humanos
das Nações Unidas (Apêndice 5).
175

o seu enfrentamento. Priorizar preocupações como prevenção ao crime e controle da migração,


acima dos direitos humanos, distorce a natureza do problema e obscurece as soluções mais
importantes e eficazes.
Garantir direitos significa proteger as vítimas diante da exploração e danos causados,
assim como avalizar acesso à assistência, apoio a mecanismos de reparação imediatos e
adequados, e principalmente adotar medidas efetivas capazes de permitir que as vítimas do
tráfico reconstruam as suas vidas, livres de toda a ameaça de violência e exploração, para além
das etapas de recuperação e reabilitação imediatas.
O relatório de 2009 traz contribuições especialmente importantes, pois propõe a
ampliação da visão estratégica de referência para a organização das respostas dadas ao tráfico
de pessoas em nível nacional, regional e global. Ao examinar as causas do fenômeno do tráfico,
propõe buscar abordagens inovadoras para o enfrentar. Para tanto, a relatoria sugere que dos
três “P” (proteção, persecução e prevenção) utilizados como eixos estratégicos de
enfrentamento, sejam ampliados para outros oito pilares, conformando: a. Duas novas “P" que
se centram na justiça penal: penalização dos infratores e não penalização das vítimas de tráfico
e promoção da cooperação internacional; b. Três "R" centradas nas vítimas: reparação,
reabilitação e reintegração; e c. Três “C”: capacidade, coordenação e cooperação. O conjunto
desses pilares dá forma e promove uma visão coerente e exaustiva a uma resposta eficaz e
baseada nos direitos humanos para o combate ao tráfico de pessoas375.
Os dois princípios fundamentais de uma abordagem baseada nos direitos humanos
foram descritos em alguns relatórios da relatoria especial. Parte-se, como primeiro princípio,
do entendimento de que os direitos humanos das pessoas traficadas devem estar no centro de
todos os esforços para combater o tráfico de pessoas, proteger e fornecer assistência e reparação
às vítimas; e como segundo princípio, reforça que medidas para combater o tráfico de pessoas
não prejudicarão os direitos humanos e a dignidade das pessoas afetadas. Enfatiza também a
necessidade da escuta e consultas às pessoas vítimas de tráfico como elemento fundamental do
enfoque baseado em direitos humanos376.

375
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório A/HRC/10/16 da Relatoria Especial sobre o
tráfico de pessoas. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G09/111/31/PDF/
G0911131.pdf?OpenElement. Acesso em: 15 jun. 2020.
376
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório E / CN.4 / 2005/71 da Relatoria Especial sobre
o tráfico de pessoas. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G04/169/31/
PDF/G0416931.pdf?OpenElement. Acesso em: 15jun. 2020. Ver também em ALTO COMISSARIADO DAS
NAÇÕES UNIDAS. Relatório A/HRC/23/48 da Relatoria Especial sobre o tráfico de pessoas: Disponível
em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G13/122/85/PDF/G1312285.pdf? OpenElement.
Acesso em: 15 jun. 2020.
176

Outro aspecto fundamental presente nos relatórios é a responsabilidade e obrigação dos


Estados em reparar os direitos das vítimas. Esse apontamento indica que, mesmo com a parceria
de atores não governamentais para atendimento, proteção e reparação dos direitos das vítimas,
muitas vezes, por meio das organizações da sociedade civil, a responsabilidade da prestação
continua sendo do Estado. Essa responsabilidade se dá quando da estruturação de políticas
públicas promotoras de direitos, e também a contrário, quando da estruturação de políticas
restritivas ou xenófobas, que demonstrem, ao longo dos anos, serem estimuladoras ou não
restritivas de processos migratórios irregulares muitas vezes forçados. A abordagem baseada
em direitos e centrada na vítima deve estar centralizada no desenvolvimento das dimensões
legais do direito à assistência das vítimas, proteção e apoio e, principalmente, considerando-se
a extensão em que esses direitos são respeitados e protegidos na prática. Dessa maneira, por
exemplo, a prestação de assistência, proteção e apoio imediatos não deve depender da
capacidade ou disposição da vítima de cooperar com os órgãos de justiça criminal.
Os relatórios também reforçam que a compreensão internacional da natureza e alcance
do fenômeno do tráfico de pessoas tem sido ampliada consideravelmente nas últimas décadas.
Robustece a ideia de que já se aceita amplamente que tanto mulheres, homens e crianças podem
ser vítimas do tráfico de pessoas, e que as formas são as mais variadas, como possibilidade de
obter benefícios e outros ganhos pessoais. Essa percepção é fundamental, visto admitir que,
desde a perspectiva do direito internacional, seja ampliada a possibilidade da variedade de
condutas de exploração, tanto internamente como internacionalmente. De outro lado, apesar
dessa compreensão do alcance do fenômeno, alguns estados ainda não adequaram as suas
normativas internas para essa realidade.
A Relatoria Especial para o Tráfico de Pessoas aborda e reforça, de maneira especial em
seu relatório de 2014, ou seja, 10 anos após a criação dessa relatoria, a necessidade do
enfrentamento ao tráfico de pessoas através do enfoque baseado em direitos humanos.
Reconhece que nem sempre as respostas dadas ao tráfico de pessoas foram ancoradas
fundamentalmente nos direitos humanos.
Nessa linha, reforça a especificidade do tráfico, seja ele para qual finalidade for, contra
crianças e adolescentes, no sentido da adoção de medidas centradas nas necessidades
específicas desse coletivo e que se fundamentem nos princípios e disposições da legislação de
direitos humanos existente, especialmente a Convenção sobre os Direitos das Crianças.
A relatoria especial teve função importante na expansão do foco das atividades
internacionais e nacionais de combate ao tráfico nestes últimos 15 anos, além de contribuir para
maior clareza conceitual sobre aos parâmetros da definição de tráfico, partindo do conceito do
177

Protocolo de Palermo. A relatoria também foi importante na definição de quais direitos


humanos devem ser garantidos e quais obrigações imputadas aos Estados. Ter a clareza sobre
quais direitos devem ser garantidos é fundamental para se avaliar até que ponto uma situação,
iniciativa ou resposta específica está em conformidade com o direito internacional dos direitos
humanos 377.
A relatoria especial aponta em alguns relatórios que as obrigações dos Estados vão além
das exigidas imediatamente pela vítima, como acolhimento, atenção psicológica etc. Em relação
às respostas com o sistema de justiça penal, é obrigação dos Estados investigar e processar o
tráfico, assim como têm obrigação de proteger os direitos das pessoas suspeitas e o direito a um
processo justo. Nesse aspecto, reforça a percepção e apontamento em diversos relatórios, no
sentido de identificar vínculo entre corrupção e tráfico de pessoas, observando que os Estados
têm a obrigação de atuar e prevenir essa corrupção e adotar medidas para a sua eliminação.
Os relatórios apontam diversos desafios para o enfrentamento ao tráfico de pessoas
nessa perspectiva dos direitos humanos, em especial para os mandatos das relatorias especiais:
• Fortalecimento da responsabilidade dos agentes não estatais e a participação
da sociedade civil. É necessário gerir as tensões existentes entre os grupos
da sociedade civil envolvidas com o enfrentamento ao tráfico de pessoas e
os governos. É fundamental garantir espaços de participação dos atores da
sociedade civil com contribuições eficazes;
• Necessidade de envolver a participação das vítimas e dos grupos
vulneráveis ao enfrentamento do tráfico de pessoas. A escuta das pessoas,
que são o fim maior de proteção, garante um olhar sobre experiências reais,
e fundamenta as intervenções em sólidas e fáticas realidades;
• As lacunas existentes entre as obrigações dos Estados no enfrentamento ao
tráfico de pessoas, principalmente na garantia dos direitos das vítimas (o
que ele deve ou não fazer) e o que efetivamente se cumpre na prática,
mesmo sabendo que esses direitos, protegidos pelo direito internacional e
nacional, são frequentemente desconsiderados;
• No âmbito nacional, o principal desafio é que os estados fortaleçam as suas
políticas internas baseadas no enfoque em direitos. Ainda é um desafio que
os estados criem os relatores nacionais ou mecanismos equivalentes. A

377
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório A/HRC/10/16 da Relatoria Especial sobre o
tráfico de pessoas. Disponível em https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G09/111/31/PDF/
G0911131.pdf?OpenElement. Acesso em: 15 jun. 2020.
178

experiência tem mostrado que (principalmente nos países europeus), quando


esses relatores nacionais independentes existem, com um mandato com
condições de desenvolvimento de seu trabalho, geralmente desempenharam
papel importante no monitoramento da situação nacional; facilitando a
colaboração entre agências e entre governos e sociedade civil, e
supervisionando a coleta e análise de dados sobre a resposta nacional e as
tendências no tráfico;
• Os Estados devem também considerar outros meios para alcançar um
monitoramento da situação nacional, incluindo o desenvolvimento de
planos de ação nacionais contra o tráfico e o estabelecimento de grupos com
diversidade de atores para consultas, aconselhamento e apoio na
implementação das ações;
• Reforça a necessidade de se conhecer mais as realidades de outras
finalidades de exploração resultante do tráfico de pessoas. Para tanto, seria
importante desenvolver estudos relacionados com: a) práticas de
recrutamento ilegal; b) tráfico de homens para trabalho forçado e
exploração; c) tráfico para fins de mendicância forçada e atividades
criminosas; d) tráfico para fins de casamento forçado ou servidão; e) o
retorno e o risco de ser traficado novamente; e f). tráfico de pessoas para
fins de remoção de órgãos; e
• Continuar promovendo a participação da sociedade civil em todas as formas
de luta contra o tráfico, internacional e regional, incluindo discussões sobre
o mecanismo de revisão do Protocolo para prevenir, reprimir e punir o
tráfico de pessoas, especialmente mulheres e crianças.

A Relatoria especial tem cumprido função relevante na constante identificação e


promoção do fenômeno e suas mudanças, da responsabilidade dos Estados frente ao fenômeno,
e exerce papel fundamental de articulador e promotor de desafios para o enfrentamento ao
tráfico de pessoas por meio com enfoque baseado em direitos humanos. Exemplos de
incorporação das recomendações da Relatoria: 1. a participação das OSCs na efetiva atuação
no enfrentamento ao tráfico de pessoas, em diversas atividades, como no auxílio da
identificação e prestação de assistência especializada às vítimas, ou até mesmo no
monitoramento da política e ocupação de espaços institucionais de construção da política
pública especializada de tráfico; 2. Alguns Estados têm incorporado a Relatoria Nacional do
179

Tráfico de Pessoas, ator importante no monitoramento da situação do tráfico em âmbito


nacional, que garante certa transparência e escuta dos atores nacionais avalizando maior
isonomia e supervisão da resposta nacional ao tráfico; e 3. Outro exemplo importante que os
Estados vêm incorporando as suas normativas internas a partir das recomendações da relatoria
especial; é a inclusão de outras finalidades de exploração resultantes do tráfico de pessoas, que
não somente a exploração sexual.

3.3.3.A Organização Internacional do Trabalho (OIT)

A OIT, criada anteriormente à ONU, em 1919, pelo Tratado de Versailles, surgiu com
a intenção de garantir a paz universal e justiça social, melhorar as condições de trabalho do
maior número de pessoas e a adoção de um regime de trabalho humano pelas nações. Em suma,
proteger os indivíduos sob as condições de trabalho, numa perspectiva maior da garantia de
direitos humanos fundamentais. Ela se caracteriza por fomentar e criar o Direito Internacional
do Trabalho baseada na ideia do universalismo do direito dos trabalhadores, conforme a qual
os direitos trabalhistas são universais378.
Importante verificar que a OIT, mesmo desenvolvendo as suas atividades na intenção
de garantir os direitos dos trabalhadores, está inserida no contexto de avalizar os direitos
humanos fundamentais das pessoas, comprovando que atuar na particularidade da proteção
possibilita maior especificidade e intensidade na garantia de proteção379. Há que se ressaltar
que as suas Convenções garantem a definição de direitos e normativas mínimas gerais para
serem internalizadas no plano nacional, enquanto as Recomendações possuem a função de
produzir efeitos que se limitam a servir de guia na formulação de políticas, legislação e
atividades praticadas no país380. A ratificação das Convenções da OIT gera para o Estado-

378
SEITENFUS, Ricardo. Manual das organizações internacionais. 6. ed., rev., atual e ampliada. Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2016.
379
Pode-se verificar que os artigos 7º e 8º do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, da
ONU, reconhecem, de forma generalizada, o direito de toda pessoa de gozar de condições de trabalho justas e
favoráveis, cabendo à OIT a criação de normas internacionais específicas para garantir esse direito, conforme
as suas 185 Convenções. A título de exemplo, citam-se: Convenção sobre a discriminação (emprego e
ocupação) nº 111, Convenção sobre a igualdade de remuneração nº 100, Convenção Liberdade sindical e
proteção do direito de sindicalização nº 87, Convenção contra o trabalho forçado nº 29, Convenção sobre o
direito de sindicalização e negociação coletiva nº 98, Convenção contra as Piores Formas de Trabalho Infantil
nº 182, entre outras. Convenções disponíveis no site da OIT: http://www.ilo.org/public/spanish/
standards/index.htm.
380
OIT. El impacto de los convenios y recomendaciones internacionales del trabajo. Giniebra: Oficina
Internacional Del Trabajo, 2000. p. 11
180

membro duas obrigações internacionais: cumprir a convenção ratificada e se submeter ao


procedimento de controle internacional realizado pela OIT381.
É inegável que a OIT, no decorrer do tempo, criou um corpo de normas internacionais
sobre política social e proteção aos trabalhadores que possibilitam fontes de ideias e orientações
para a ampliação dessas políticas sociais. Analisando as Convenções, verifica-se a ampliação
das atividades normativas da OIT, no que se refere aos temas abordados e às categorias de
pessoas atingidas, como reflexo do dinamismo social e da necessidade de se proteger as
liberdades fundamentais, melhorar as condições de trabalho e de vida de certos grupos da
população. Nesse sentido, a OIT tem como função fundamental situar o homem que trabalha
no centro da sociedade e da vida internacional. Os direitos humanos, principalmente os do
trabalhador, somente poderão ser efetivos com uma estrutura social, política e econômica
sustentável.
Nesse contexto é que foi adotada a Declaração de Princípios e Direitos Fundamentais
no Trabalho, na Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho, em 1998, que
visa a proteger especificamente:382
- Liberdade de associação e a liberdade sindical e o direito de negociação coletiva;
- A eliminação do trabalho forçado e obrigatório;
- A abolição do trabalho infantil; e
- A eliminação da discriminação no emprego e na ocupação.
Com a Declaração dos Direitos Fundamentais no Trabalho, a OIT pretende
comprometer os Estados-Membro a respeitar e promover os princípios e direitos
comprometidos nessas quatro categorias descritas, uma vez que estabelece serem esses direitos
universais, aplicando-se a todos os países independentemente do nível de desenvolvimento
econômico em que se encontrem.
É importante destacar que se está a aludir aos direitos que dependem mais do que a mera
proteção do Estado. São direitos que geram obrigações positivas concretas ao Estado383.
Basicamente, referem-se aos direitos econômicos, sociais e culturais384. Dessa Declaração,

381
SÜSSEKIND, Arnaldo. Convenções da OIT. São Paulo: LTr, 1994.
382
Todos esses direitos já estavam expressos em normas da própria OIT. Liberdade sindical: Convenção nº 87,
Liberdade de negociação coletiva: Convenção nº 98, Eliminação do trabalho forçado ou obrigatório:
convenções nº 29 e 105, Eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação: convenções nº 100
e 111, Abolição do trabalho infantil: convenções nº 138 e 182.
383
As obrigações são positivas quando o Estado deve dar ou fazer alguma coisa e negativas, quando concretizam
numa abstenção do Estado. No caso dos direitos sociais, econômicos e culturais, para a sua efetivação é
necessário que o Estado garanta, por meio de ações, de políticas públicas, a sua concretização; por isso se diz
que a efetivação desses direitos exige uma obrigação positiva por parte do Estado.
384
ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. Editorial
Trotta, Buenos Aires, 2002.
181

destacam-se principalmente a eliminação do trabalho forçado e a abolição do trabalho infantil,


e entre as suas modalidades, a abolição da exploração sexual infantil.
Logo em seguida à adoção da Declaração de Princípios e Direitos Fundamentais no
Trabalho, a OIT, em 1999, aprovou a Convenção 182385, juntamente com a Recomendação 190,
na intenção de prever imediatas e efetivas medidas para assegurar a proibição e eliminação das
piores formas de trabalho infantil.
Importante destacar que a temática sobre o tráfico de crianças, abordada pela OIT na
Convenção 182, dá um enfoque diferente da abordagem da ONU no Protocolo de Palermo, não
deixando aquela de complementar este. Aquela pretende a elaboração e implementação de
programas de ação (elaborados e cumpridos por instituições governamentais e organizações de
empregadores e de trabalhadores) para eliminar, de maneira efetiva, as piores formas de
trabalho infantil; enquanto o Protocolo visa a prevenir, investigar e reprimir o crime organizado
transnacional, estimulando a cooperação entre os países, aparecendo o tráfico de pessoas e
especialmente de crianças como uma das formas de crime organizado transnacional.
Existe grande discussão, inclusive dentro da própria OIT, sobre se o tráfico de crianças
para fins sexuais poderia ser objeto de atuação da Organização, uma vez que não é pacífico o
entendimento de que a prostituição e a exploração sexual são consideradas formas de trabalho.
Nesse contexto, a OIT estaria regulando temáticas que estariam fora de sua área de atuação,
conforme a sua carta constitutiva de 1919386. No entanto, a importância da adoção pela OIT de
uma Convenção que trata da temática do tráfico de crianças para fins de exploração sexual se
reforça por dois argumentos: o primeiro trata da importância da OIT em indicar, através de uma
Convenção, que essas formas de tratar a infância são desumanas, impossibilitando-a de se
desenvolver plenamente para mais tarde se tornar um ser humano adulto com todas as suas
potencialidades. A OIT, nesta perspectiva, entende a criança387 como um sujeito de direitos,
não podendo ser cerceada do livre desenvolvimento social e individual. Ademais, o tráfico de
pessoas, principalmente de crianças, é consequência da violação de direitos humanos, devendo
ser combatida. O segundo aspecto pelo qual se defende a necessidade da OIT adotar essa
Convenção, faz referência à preocupação de não permitir a comercialização do “corpo” de uma
criança. Mesmo ao se considerar a prostituição como atividade profissional, a exploração sexual
deve sempre ser considerada crime, ainda mais de crianças. Não se pode imaginar a exploração

385
A Convenção 182 e seu Protocolo 190 foram adotados pela OIT em 17 de junho de 1999, passando a vigorar
internacionalmente em 19 de novembro de 2000.
386
Ver NOGUCHI, Yoshie. ILO Convention no 182 on the worst forms of child labor and the Convention on the
Rights of the Child. The International Journal of Childrens´ Rights, Amsterdam, 2002. p. 358-359.
387
Tratar-se-á como criança toda pessoa menor de 18 anos, conforme estabelece a Convenção 182 da OIT.
182

sexual como uma forma de trabalho, ainda que se possa compreender a prostituição de pessoas
adultas como atividade laboral possível388.
Assim, o grande fundamento para que a OIT trate sobre a questão do tráfico de crianças
é a proteção aos direitos humanos na infância, combatendo a imagem da criança como infratora
e afirmando a sua condição de vítima da exploração e da omissão da comunidade internacional,
do Estado e da sociedade.
A Convenção 182 da OIT expressa em seu preâmbulo que
o trabalho infantil é em grande parte causado pela pobreza” e que há a
‘necessidade de adotar novos instrumentos para a proibição e eliminação das
piores formas de trabalho infantil, prioridade de ação nacional e
internacional, incluídas a cooperação e assistência internacionais [...]’, assim
como “a eliminação efetiva das piores formas de trabalho infantil requer uma
ação imediata e abrangente que leve em conta a importância da educação
básica gratuita e a necessidade de liberam de todas essas formas de trabalho
as crianças afetadas e assegurar a sua reabilitação e sua inserção social ao
mesmo tempo em que são atendidas as necessidades de suas famílias.

Analisando esse trecho, percebe-se que o combate ao trabalho infantil necessita do


esforço de toda a comunidade internacional, e principalmente da participação efetiva dos
Estados Nacionais, no sentido de promover direitos que evitem a inserção das crianças no
trabalho e sobretudo nas piores formas de trabalho. A inexistência de políticas que garantam o
livre desenvolvimento da criança supõe a negação desse direito. O trabalho infantil enfrenta
questões sociais complexas envolvendo violações de direitos sociais de diversas categorias.
Como bem salienta Sen: “A negação da liberdade econômica, sob a forma da pobreza extrema,
torna a pessoa vulnerável a violações de outras formas de liberdade”389, dentre elas a violação
da liberdade de autodesenvolvimento enquanto pessoa na fase de desenvolvimento social e
individual.
As piores formas de trabalho infantil, conforme já citado anteriormente, estão descritas
no artigo 3.º da Convenção 182, abrangendo:
a) todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, tais como
a venda e tráfico de crianças, a servidão por dívida e a condição de servo, e o
trabalho forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em conflitos
armados;
b) utilização, recrutamento ou a oferta de crianças para a prostituição, a
produção de pornografia ou atuações pornográficas;

388
GUTIERREZ, Ana Luisa Ordóñez. Feminismo y prostitución: fundamentos del debate actual en España.
Oviedo: Trabe, 2006. Colección Gaudiosa.
389
SEN, Amartya. Development as freedom. Nova York: Alfred A. Knopf, 1999. “The denial of economic
freedom, in the form of extreme poverty, makes a person vulnerable to violations of other forms of freedom.”
183

c) utilização, recrutamento ou a oferta de crianças para a realização de


atividades ilícitas, em particular a produção e o tráfico de entorpecentes, tais
como definidos nos tratados internacionais pertinentes; e
d) o trabalho que, por sua natureza ou pelas condições em que é realizado, é
suscetível de prejudicar a saúde, a segurança ou a moral das crianças. (grifo
nosso).

Mais uma vez, fica explícita a intenção dessa Convenção em recomendar a elaboração
de políticas públicas, o que não se resume meramente a definir as piores formas de trabalho
infantil, mas que chama principalmente o Estado, os empregadores e os trabalhadores à
responsabilidade de construírem juntos, e de forma programada, ações para eliminar, combater
e prevenir as piores formas de trabalho infantil. Pode-se argumentar que essa forma de elaborar
um documento de forma proativa, em que a mera descrição das garantias não atende às
necessidades efetivas, está muito bem-inserida dentro do novo contexto dos direitos
internacionais de direitos humanos, que percebe o Estado não mais como um mero
“respeitador” de garantias (direitos civis), mas um formulador, articulador e garantidor ativo
dessas garantias (direitos sociais), através de ações concretas.
Os Estados devem estabelecer mecanismos nacionais apropriados para vigiar a
aplicação das disposições nacionais sobre a proibição e eliminação do trabalho infantil. A
legislação nacional e a autoridade competente devem determinar quem será responsabilizado,
em caso de não cumprimento das disposições nacionais a respeito do tema.
Outros documentos importantes nesse contexto do trabalho forçado são: a Convenção
nº 29/1930 (Convenção sobre o Trabalho Forçado)390 e a Convenção nº 105 (Convenção
Abolição do Trabalho Forçado)391. Aquela obriga todos os Estados-Membro que a ratifiquem a
suprimir o emprego do trabalho forçado ou obrigatório sob todas as suas formas, no mais curto
prazo possível. A Convenção estabelece que trabalho forçado é "todo trabalho ou serviço
exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual ela não se tenha oferecido
espontaneamente." Essa outra convenção estabelece que os Estados-Membro que a ratifiquem
se comprometem a suprimir o trabalho forçado ou obrigatório.
A Convenção nº 97 da OIT, Trabalhadores Migrantes (1949), também aparece no
contexto da proteção dos trabalhadores que se encontrem em mobilidade392.

390
Convenção ratificada no Brasil pelo Decreto n. 41.721, de 25.6.57.OIT. Convenção n.29/1930. Disponível em:
https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235021/lang--pt/index.htm. Acesso em: 15 jul. 2020.
391
Convenção ratificada no Brasil pelo Decreto n. 58.822, de 14.7.66. OIT Convenção n. 105/1957. Disponível
em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235195/lang--pt/index.htm. Acesso em: 15 jul. 2020.
392
OIT. Convenção Trabalhadores Migrantes. 1949. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/comite-brasileiro-de-direitos-humanos-e-politica-
externa/ConvOITTrabMig.html. Acesso em: 15 jul. 2020.
184

A Conferência da Organização Internacional do Trabalho adotou um Protocolo à


Convenção sobre Trabalho Forçado, em 2014, que embora seja sobre trabalho forçado, não
especificamente sobre tráfico de pessoas, admite que o tráfico ocorre com o objetivo de explorar
pessoas no âmbito do trabalho. Os laços estreitos entre as duas práticas constam do preâmbulo:
“Reconhecendo que o conteúdo e as formas de trabalho forçado ou compulsório mudaram e o tráfico de
pessoas para fins de trabalho forçado ou obrigatório, que pode envolver exploração sexual, é objeto de
crescente preocupação internacional e requer ações urgentes para sua eliminação efetiva.”
Esse documento é um instrumento relevante na avaliação do papel da sociedade civil.
Prevê contribuições ativas da sociedade civil ao esforço para impedir o trabalho forçado: No
artigo 1, estabelece o dever das partes de desenvolver uma política e plano de ação nacionais
para a supressão efetiva e sustentada do trabalho forçado ou obrigatório, em consulta com os
empregadores e as organizações de trabalhadores. Também no artigo 6º, dispõe que as medidas
adotadas para aplicar as suas disposições serão determinadas pelas leis ou regulamentos
nacionais ou pela autoridade competente, após consulta às organizações de empregadores e
trabalhadores envolvidos.
Nenhuma das Convenções da OIT se refere especificamente ao tráfico de pessoas. No
entanto, o Programa de Ação Especial da OIT para combater o trabalho forçado trata o tráfico
como uma das várias outras formas "modernas" de trabalho forçado. O tráfico de seres humanos
constitui uma violação não apenas das normas internacionais sobre trabalho forçado, mas
também de outras normas trabalhistas relativas a condições dignas de trabalho e direitos
fundamentais no trabalho. O combate e a prevenção do tráfico contribuem para a redução de
práticas trabalhistas coercitivas.
O principal problema enfrentado com esses instrumentos é a ausência de coerção legal
internacional, no sentido de impor o cumprimento dessas normas aos Estados exigindo a
integração das regras às quais estes se submetem quando ratificam esses instrumentos jurídicos.
Apesar dessa realidade sobre a ausência de coerção legal internacional, a OIT ainda pode ser
considerada uma das organizações com instrumentos mais invasivos que as demais OIs. A
representatividade tripartite393, com representantes de governos, de organizações de
empregadores e de trabalhadores, garante que os sindicatos atuem internamente nos Estados,
interferindo e pressionando para que mudanças normativas mais garantistas aconteçam.
Por meio dessas normativas internacionais a OIT participa da construção do Regime
Internacional Complexo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, pensando, nesse caso, na

393
OIT. Constituição. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilo-
brasilia/documents/genericdocument/wcms_336957.pdf. Acesso em: 20 ago. 2020.
185

proteção das relações de trabalho das pessoas, estejam elas ou não em processo de mobilidade
humana e, assim, evitando situações e condições laborais que exponham as pessoas à
vulnerabilidades e relações laborais forçadas e desumanas.

3.3.4 Organização Mundial das Migrações (OIM)

A OIM desempenha papel importante nesse complexo regime de enfrentamento ao


tráfico de pessoas, principalmente quando se estiver diante de processos de mobilidade forçada
ou que de alguma maneira, coloquem as pessoas em condição de vulnerabilidade social.
Nesse sentido, destaca-se a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de
Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias394, adotada pela Resolução
45/158, de 18 de dezembro de 1990, da Assembleia-Geral, entrando em vigor internacional em
2003. Essa convenção se aplica a todos os trabalhadores migrantes e aos membros das suas
famílias sem qualquer distinção, fundada nomeadamente no sexo, raça, cor, língua, religião ou
convicção, opinião política ou outra, origem nacional, étnica ou social, nacionalidade, idade,
posição econômica, patrimônio, estado civil, nascimento ou outra situação. Aplica-se a todo o
processo migratório dos trabalhadores migrantes e dos membros das suas famílias, o qual
compreende a preparação da migração, a partida, o trânsito e a duração total da estada, a
atividade remunerada no Estado de emprego, bem como o regresso ao Estado de origem ou ao
Estado de residência habitual.
A OIM, por meio de seu escritório regional para a América do Sul, realizou um
diagnóstico específico sobre a situação e a incidência do tráfico de pessoas em contextos
humanizados na América do Sul em 2019 e 2020, revelando e descrevendo importantes achados
para o enfrentamento ao tráfico de pessoas na região. O Diagnóstico aponta que em julho de
2020 havia 4,3 milhões de migrantes e refugiados venezuelanos na América Latina, o que
representa o segundo grupo mundial de pessoas em mobilidade. Salienta que os governos da
América Latina têm concedido autorizações de residência e de residência regular há mais de
395
2,5 milhões de migrantes e refugiados . Sabe-se que mobilidade humana em contextos de

394
OIM. Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e
dos Membros das suas Famílias. 1990. Disponível em: https://www.oas.org/dil/port/1990%20Conven%
C3%A7%C3%A3o%20Internacional%20sobre%20a%20Protec%C3%A7%C3%A3o%20dos%20Direitos%2
0de%20Todos%20os%20Trabalhadores%20Migrantes%20e%20suas%20Fam%C3%ADlias,%20a%20resolu
%C3%A7%C3%A3o%2045-158%20de%2018%20de%20dezembro%20de%201990.pdf. Acesso em: 15 jul.
2020.
395
OIM. Webnario de presentación del diagnóstico sobre la situación e incidencia de la trata de personas en
contextos humanitarios en América del Sur. 2020. Disponível em: https://robuenosaires.iom.int/ciclo-de-
webinarios-trata-de-personas-en-tiempos-de-covid-19. Acesso em: 30 jul. 2020.
186

precariedade potencializa o tráfico de pessoas, uma vez que as redes de tráfico encontram um
cenário ideal para captar vítimas, em função das vulnerabilidades vivenciadas.
Um dos enfoques dado ao tráfico de pessoas é o de ordem pública, que tem como
centralidade o Estado e procura controlar os fluxos migratórios justificando com a proteção de
potenciais vítimas de tráfico. Esse enfoque vulnerabiliza ainda mais as vítimas de tráfico, e
expõe os migrantes à intensificação de situações de vulnerabilidade vivenciadas. Percebe-se
uma criminalização dos migrantes em nome do controle da delinquência organizada
transnacional. Verifica-se uma perspectiva criminal e de securitização das migrações. Essa
perspectiva de enfoque de ordem pública é garantida pelo Protocolo de Palermo. A OIM possui
importância fundamental para promover diagnósticos e fomentar ações dos Estados, no sentido
de garantir os direitos dos migrantes, descontruindo esse enfoque criminalizante.

3.3.4.1 Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR)

No contexto da mobilidade humana forçada, volta-se o foco para o ACNUR, que tem
como meta o bem-estar das pessoas que buscam, solicitaram ou obtiveram proteção
internacional por meio de refúgio. Essas pessoas estão protegidas pela Convenção Relativa ao
Estatuto dos Refugiados (1951)396. São pessoas que estão em outro país e que não podem
retornar ao seu país por estarem sendo perseguidas, e temendo serem perseguidas por motivos
de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, encontram-se fora do país
de sua nacionalidade e não podem ou, em virtude desse temor, não querem se valer da proteção
desse país, ou que, se não têm nacionalidade e se encontram fora do país no qual tinham
residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não podem ou, devido ao referido
temor, não querem voltar a ele.
Embora o ACNUR não se preocupe especialmente com as vítimas de tráfico de pessoas,
as que foram traficadas para outro país podem estar em risco se forem obrigadas a retornar ao
seu país de origem. Elas podem ter escapado de seus traficantes e dado informações à polícia
ou provas no tribunal. Isso poderia muito bem colocá-las em risco de violência ou mesmo de
serem novamente recrutadas. Em alguns países, as pessoas traficadas podem estar sob risco das
autoridades ou de suas próprias famílias.

396
ACNUR. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951). Disponível em: https://www.acnur.org/
fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf. Acesso em: 20
jul. 2020.
187

Portanto, é possível que algumas dessas pessoas possam ter direito ao status de
refugiado não por terem sido traficadas no passado, mas pelos riscos que enfrentarão no futuro
se forem obrigadas a voltar para casa, o que pode estar relacionado ao fato de foram traficados.
O ACNUR reconheceu isso adotando, em 2006, Diretrizes sobre proteção internacional: a
aplicação do Artigo 1A (2) da Convenção de 1951 e/ou Protocolo de 1967 relativo ao Estatuto
dos Refugiados às vítimas de tráfico e às pessoas em risco de serem traficadas. As Diretrizes
não são juridicamente vinculativas, mas pretendem fornecer "orientações jurídicas
interpretativas para governos, profissionais da justiça, tomadores de decisão e judiciário, bem
como para funcionários do ACNUR que participam do procedimento de concessão de status de
refugiado.

3.3.5 Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e o fenômeno do tráfico de mulheres

Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs) emergiram de uma série de


cúpulas multilaterais da ONU realizadas durante os anos 1990 sobre o desenvolvimento
humano. A Declaração do Milênio e os ODMs foram adotados pelos Estados-membro da ONU
em 2000, e impulsionaram os países a enfrentarem os principais desafios sociais no início do
século XXI.

Figura 10. Objetivos Desenvolvimento do Milênio

Fonte: Agenda 2030. Disponível em: http://www.agenda2030.com.br/sobre/.

Esses oito Objetivos foram o primeiro arcabouço global de políticas para o


desenvolvimento, e contribuíram para orientar a ação dos governos nos níveis internacional,
nacional e local por 15 anos. Os ODMs reconheceram a urgência de combater a pobreza e
demais privações generalizadas, tornando o tema uma prioridade na agenda internacional de
188

desenvolvimento. O relatório “Uma vida de dignidade para todos: acelerar o progresso para os
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e avançando Agenda de desenvolvimento das
Nações Unidas para além de 2015”397 apontou os resultados alcançados e indicou a necessidade
de novos direcionamentos pós-2015398.
É nesse contexto que surgem os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS),
firmados em 2015, no âmbito da ONU, na tentativa de desenhar um plano de ação para erradicar
a pobreza, proteger o planeta e garantir que as pessoas alcancem a paz e a prosperidade. Para
tanto, foi definida a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, a qual contém o
conjunto de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
A tentativa é para garantir sustentabilidade mundial com medidas ousadas e
transformadoras. A Agenda 2030 é um plano de ação que busca fortalecer a paz universal. O
plano indica 17 ODS e 169 metas para erradicar a pobreza e promover vida digna para todos,
dentro dos limites do planeta. São objetivos e metas claras para que todos os 193 Estados-
membros da ONU ali reunidos adotem, de acordo com as suas próprias prioridades, e atuem no
espírito de uma parceria global que orienta as escolhas necessárias para melhorar a vida das
pessoas, agora e no futuro.

Figura 11. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável

Fonte: Agenda 2030. Disponível em: http://www.agenda2030.com.br/sobre/.

Os objetivos do desenvolvimento sustentável têm total relação com o fenômeno do


tráfico de mulheres, uma vez que este fenômeno pode se dar em função de vulnerabilidades
sociais, econômicas, políticas, de ausência de políticas sustentáveis para as sociedades no

397
ONU. Uma vida de dignidade para todos: acelerar o progresso para os objetivos de desenvolvimento do
milênio e avançando agenda de desenvolvimento das Nações Unidas para além de 2015. 2013. Disponível em:
http://www.unodc.org/documents/about-unodc/Post-2015-Development-Agenda/A_Life_of_Dignity_
for_All1.pdf. Acesso em: 10 jun. 2020.
398
ONU. O relatório de metas de desenvolvimento do milênio. 2015. Disponível em: http://mdgs.un.org/unsd/
mdg/Resources/Static/Products/Progress2015/English2015.pdf. Acesso em: 10 jun. 2020. Documento em
português: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2015/10/agenda2030-pt-br.pdf.
189

mundo. Estruturar políticas que estimulem a obtenção das metas estabelecidas pela Agenda
2030 auxiliará na eliminação das vulnerabilidades existentes nas sociedades e diminuição das
condições que possibilitam e estimulam o deslocamento de pessoas pelo tráfico de pessoas,
principalmente mulheres e crianças.
A temática do tráfico de pessoas, especialmente mulheres, está diretamente ligada com
o ODS 5 - Igualdade de Gênero, que pretende alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas
as mulheres e meninas399. Esse objetivo específico parte da constatação de que a violência e
exploração sexual, desigualdade no acesso e à remuneração no mercado de trabalho, divisão
desigual do cuidado não remunerado e do trabalho doméstico, e a discriminação no cargo
público permanecem enormes barreiras à igualdade de gênero.

Tabela 5. ODS 5 – Igualdade de gênero


ODS 5.1: que visa a acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres
e meninas
ODS 5.2: que visa a eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas
nas esferas pública e privada, incluindo tráfico e exploração sexual e outros tipos de violências.
ODS 8.7: cujo objetivo é a adoção de medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho
forçado, a escravidão moderna e o tráfico de pessoas, bem como o trabalho infantil em todas as
suas formas.
Fonte: Agenda 2030. Disponível em: http://www.agenda2030.com.br/sobre/.

Nessa perspectiva, o tráfico de mulheres também dialoga com diversos pontos que
compõem o ODS 5, principalmente na discussão sobre a eliminação de todas as formas de
violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas públicas e privadas, incluindo o tráfico
e exploração sexual e de outros tipos; a eliminação de todas as práticas nocivas, como os
casamentos prematuros, forçados e de crianças; a garantia de políticas de proteção social, bem
como a promoção da responsabilidade compartilhada dentro do lar e da família; a garantia da
participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em
todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública; e a garantia do
acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos.

399
ONUBrasil. Glossário de termos do objetivo de desenvolvimento sustentável 5: alcançar a igualdade de
gênero e empoderar todas as mulheres e meninas. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-content/
uploads/2017/06/Glossario-ODS-5.pdf. Acesso em: 21 ago. 2020.
190

Desenvolver e garantir a efetivação dos ODS, especialmente o ODS-5, permitirá


diminuir vulnerabilidades às quais mulheres estão submetidas e, consequentemente, reduzir a
quantidade de mulheres que sejam enganadas ou consintam em ser exploradas por sua condição
vulnerável. Ademais, por entender que o tráfico de pessoas está diretamente ligado às diversas
formas de exploração das pessoas, o ODS 8 também está intrinsicamente ligado à temática do
tráfico, uma vez que objetiva estimular a adoção de medidas imediatas e eficazes para erradicar
o trabalho forçado, a escravidão moderna e o tráfico de pessoas, bem como o trabalho infantil
em todas as suas formas.

3.4. A conformação dos Regimes Regionais de Enfrentamento ao Tráfico de Mulheres


para fins de Exploração Sexual

A complexidade inerente ao fenômeno do tráfico de pessoas e a sua caracterização como


forma de violação dos direitos humanos, segundo já analisado anteriormente, exige
compreensão, reconhecimento e criação de mecanismos de combate universais, regionais e
nacionais, seja porque se caracteriza, por vezes, como um fenômeno transfronteiriço,
produzindo condutas ilícitas entre fronteiras, seja porque tem pontos de contato com outra série
de regimes complexos (migração, trabalho, segurança, direitos humanos) que exigem olhares e
interpretações complementares e, espera-se, garantistas.
Nesse sentido, evidencia-se, neste momento, a organização normativa do enfrentamento
ao tráfico em nível regional, dando preferência às especificidades da América Latina e Europa.
No âmbito americano, analisar-se-ão as políticas desenvolvidas no âmbito da Organização dos
Estados Americanos (OEA), do Mercado Comum do Sul (Mercosul), entendido como uma
organização regional para a integração, e na União de Nações Sul-Americanas (UNASUL)400.
No âmbito europeu, analisar-se-ão o Conselho da Europa e a União Europeia, como
organização internacional de integração regional. No próximo capítulo, serão abordadas as
realidades e complexidades dos regimes nacionais do Brasil e da Espanha.

400
No dia 15 de abril de 2019, o Brasil denunciou o Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas
(UNASUL), formalizando sua saída da organização. Especificamente no âmbito do tráfico de pessoas, a
UnaSul tem como um de seus objetivos específicos: “A coordenação entre os organismos especializados dos
Estados membros, levando em conta as normas internacionais, para fortalecer a luta contra o terrorismo, a
corrupção, o problema mundial das drogas, o tráfico de pessoas, o tráfico de armas pequenas e leves, crime
organizado transnacional e outras ameaças, bem como desarmamento, não proliferação de armas nucleares
e armas de destruição em massa e desminagem. A promoção da cooperação entre as autoridades judiciárias
dos Estados Membros da UNASUL.” UNASUR. Página web. Disponível em: https://www.unasursg.org/.
Acesso em: 25 ago. 2020.
191

A Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), organização


econômica intergovernamental (1961) criada com a finalidade de estimular o progresso
econômico e o comércio mundial, possui atuação importante na temática do tráfico de pessoas
desde 2003401. Por isso, serão analisados documentos importantes e aspectos relevantes para a
compreensão do regime internacional do tráfico de pessoas.
Pretende-se considerar a evolução das normativas relativas ao tráfico de mulheres para
fins de exploração sexual, analisando-a de maneira transversal e complexa regional, sempre
levando em conta que o tráfico de pessoas é um fenômeno social complexo, que exige pontos
de interconexão com outros regimes internacionais (migração, trabalho, direitos humanos,
crime organizado), além de ser um delito intricado, que envolve diversas modalidades delitivas
interconectadas (ameaças, agressões sexuais, falsificação de documentos, lavagem de dinheiro,
coações, privações de liberdade, entre outros).
A regionalização dos regimes permite a formulação de medidas que visam a combater
o tráfico de pessoas a partir das particularidades do fenômeno em cada região. No caso da
América Latina, por exemplo, caracteriza-se como uma região com países de destino, de origem
e de trânsito, além de ter tráfico internacional e interno de pessoas. Talvez pela característica
invisível do fenômeno, não se tem uma base de dados estatísticos precisos na região. Existem
estudos realizados por alguns países individualmente, tentando identificar a realidade interna.
Mas não se verificam estudos regionais com diagnósticos precisos ou até mesmo indicadores
de uma base de dados comum que permitam verificar registro de casos, com seguimento e
detalhamento das suas manifestações.
Além disso, a subnotificação de casos se deve à natureza do crime, que pode envolver
ameaças às vítimas e às suas famílias pelos traficantes ou até mesmo a tipificação inadequada
do crime, uma vez que o crime de tráfico de pessoas é composto por multiplicidade de atos, que
podem envolver o cometimento de outros delitos relacionados, como sequestro, exploração
sexual comercial em qualquer uma de suas variantes (abuso sexual, estupro, pornografia e
outros), além de todas as possíveis formas de participação. Isso poderia tornar invisíveis os
crimes de tráfico de pessoas porque os órgãos de investigação tendem a “qualificar” ou
"tipificar" o tráfico de pessoas como outros crimes relacionados402.

401
OSCE. La lucha contra la trata de personas. Disponível em: https://www.osce.org/es/Combating-human-
trafficking. Acesso em: 20 jun. 2020.
402
UNODC. Diagnóstico de las capacidades nacionales y regionales para la persecución penal del delito de trata
de personas en América Central. 2009. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/human-
trafficking/Diagnostico_regional_XCAS261.pdf. Acesso em: 20 jun. 2020.
192

Como já apontado anteriormente, existem causas estruturais e fatores de risco, além de


circunstâncias, que andam de mãos dadas com as histórias de vida de cada uma das vítimas de
tráfico de pessoas da região da América Latina. Esses elementos pessoais são influenciados por
aspectos estruturais, como educação, cultura, e padrões de comportamento que refletem
sociedades patriarcais, com relações desequilibradas entre os sexos, como machismo, violência
física, psicológica e sexual. A pobreza, exclusão e ausência de políticas estatais nos países da
região, especialmente na saúde, educação e trabalho, são gatilhos para o tráfico de pessoas em
busca de melhores condições de vida403. No caso das mulheres, negras e de famílias
monoparentais, as causas estruturais e elementos pessoais são extremamente relevantes para o
gatilho de uma situação de migração e, em muitos casos, com uma situação de migração
forçada, em especial, tráfico de pessoas.

3.4.1 A conjuntura regional na América Latina para o enfrentamento ao tráfico de pessoas

Antes de analisar a temática do enfrentamento ao tráfico de pessoas na Organização dos


Estados Americanos (OEA) e no Mercosul, verifica-se que a realidade regional no âmbito
político, social, econômico e principalmente de respeito aos direitos humanos estimula e
condiciona as instituições regionais, especificamente, no caso, a OEA e o Mercosul, a pensarem
e desenvolverem ações e normativas relativas ao enfrentamento do tráfico de pessoas.
Nesse sentido, conhecer a realidade regional é fundamental. A OEA, por exemplo,
elabora anualmente um relatório por meio de sua Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) no qual mapeia e monitora a situação dos direitos humanos nos Estados da
região, com ênfase especial nos direitos e questões priorizados pela CIDH, entre eles, a
institucionalidade democrática, institucionalidade em direitos humanos, acesso à justiça e
segurança cidadã404.
Analisando o último relatório (2019)405, percebe-se, de forma geral, a identificação de
altos níveis de violência de gênero contra mulheres e meninas na região, incluindo restrições
ao exercício de seus direitos reprodutivos. Da mesma forma, observa-se a prevalência de atos

403
Id.
404
CIDH. Relatórios anuais. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/informes/anuales.asp. Acesso em: 2 jul.
2020.
405
CIDH. Informe Anual 2019 de la CIDH. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/docs/anual/2019/
indice.asp. Acesso em: 2 jul. 2020. Foram recebidas informações referentes a 32 Estados da região, mas
somente 15 Estados membros enviaram respostas a CIDH.: Argentina, Bahamas, Bolívia, Brasil, Chile,
Colômbia, Equador, El Salvador, Guiana, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Paraguai e Peru.
193

de violência, incluindo crimes de ódio contra pessoas LGBTI, devido à sua orientação sexual,
expressão e/ou identidade de gênero ou as suas características sexuais406.
Quanto aos direitos dos migrantes, relata-se especialmente a situação da migração
forçada do povo venezuelano, que equivale a mais de 4.600.000 pessoas, que foram forçadas a
deixar o seu país como consequência de violações maciças dos direitos humanos, bem como da
grave crise de alimentos e saúde que tem enfrentado o país. A CIDH relata a sua preocupação
com as medidas adotadas por alguns Estados para restringir a mobilidade e o acolhimento da
população venezuelana, estabelecendo uma série de requisitos administrativos ou maiores
controles policiais e de imigração nas fronteiras, além de rejeições e expulsões coletivas. Essa
situação tem impacto especial na possibilidade de as pessoas solicitarem asilo e há casos de
reagrupamento familiar de famílias venezuelanas - além de potencialmente vulnerar essas
populações para que iniciem processos de mobilidade forçada, seja via contrabando de
migrantes, seja via tráfico de pessoas.
A CIDH expõe também a situação da migração forçada das pessoas do Triângulo Norte
da América Central por meio de caravanas em direção ao México e os Estados Unidos.
Preocupa a CIDH o uso da força pela polícia com o objetivo de dissuadir essas caravanas, bem
como sobre os obstáculos que enfrentam para deixar os seus países, como bloqueios formados
por agentes de segurança e filtros policiais, solicitar documentos de identidade nos pontos de
fronteira407.
No âmbito específico do tráfico de pessoas, o relatório aponta por país as seguintes
informações: 1. No México, o Estado realizou treinamento sobre violência contra mulheres e
tráfico de seres humanos, que atingiram cerca de 3.000 funcionários públicos 408; 2. No
Paraguai, a Comissão Interamericana também recebeu informações sobre crianças e
adolescentes enviados por suas famílias para servirem em outras casas, por meio da prática
conhecida como "criadazgo", em troca de sustento e educação. Informa que 46.993 crianças
poderiam estar nessa situação. no Paraguai. Nesse sentido, o Estado assumiu o compromisso de
atacar a questão por meio de campanhas educacionais, além de incluir o "criadazgo" na figura
legal do tráfico de pessoas409; 3. No Peru, houve uma alteração do Código Penal referente às
sanções pelo crime de Exploração Sexual, a fim de proteger, com ênfase especial em mulheres,
meninas, meninos e adolescentes. Também foi incorporada uma penalidade de multa ao crime

406
Ibid., p. 295.
407
Id.
408
Ibid., p.392.
409
CIDH. Informe Anual 2019 de la CIDH. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/docs/anual/2019/
indice.asp. Acesso em: 2 jul. 2020. p. 399.
194

de trabalho forçado. O Peru aprovou também o III Plano Nacional de Combate ao Trabalho
Forçado 2019-2022, que leva em consideração a situação especial de vulnerabilidade dos
migrantes; e 4. Em Trinidade e Tobago, criou-se um novo grupo de trabalho de inteligência
para melhorar as investigações, o treinamento de funcionários públicos e o estabelecimento de
um "Memorando de Entendimento" entre a Unidade Antitráfico e a Autoridade da Criança, que
busca proporcionar maior proteção às meninas e meninos vítimas desse crime. Além disso, as
autoridades de Trinidad e Tobago resgataram 69 vítimas e sobreviventes do crime de tráfico de
seres humanos, e detiveram 6 pessoas que supostamente estavam envolvidas na prática do
crime.
Em relação ao Brasil, a CIDH reforça a preocupação no número prevalente de
assassinatos de mulheres por gênero no Brasil, bem como os atos de violência contra
trabalhadores rurais. No mesmo sentido, a Comissão observa com extrema preocupação a
situação crítica da violência contra defensores dos direitos humanos, em particular quilombola
e defensores indígenas. Por fim, a Comissão observa com consternação a série de desastres
ambientais que causaram a perda de vidas, e o impacto na saúde de milhares de pessoas, como
o caso da cidade de Brumadinho (MG), o crescente desmatamento e incêndios que afetaram a
região amazônica ao longo de 2019 e os derramamentos de óleo registrados no nordeste do país
a partir de novembro. Todos esses fatos levam à vulneração de direitos e as coloca em risco
social. A Comissão reforça a sua preocupação com as altas taxas de mortalidade policial contra
jovens afrodescendentes. Embora eles representem 54% da população, das 6.220 baixas
policiais registradas no período 75,4% eram afrodescendentes, 99,3% eram homens e 77,9%
tinham entre 15 e 29 anos. Assim, fica evidente o racismo institucional, acentuado por práticas
amplamente expandidas, como o uso de perfis raciais e a perseguição policial seletiva a pessoas
negras.
No âmbito do direito da infância, é positiva a aprovação da Lei nº 13.811, de 2019, que
modifica a redação do art. 1.520 do Código Civil Brasileiro para proibir qualquer exceção ao
casamento de menores de 16 anos, medida que pode ser vista como uma tentativa de evitar
casamentos forçados e violências de diversas formas contra adolescentes.
Essa breve contextualização da região americana indica a potencialidade existente para
situações de tráfico de pessoas e contrabando de migrantes. Vários atores interatuam para o
enfrentamento desse fenômeno, entre eles os Estados, as Organizações Internacionais como a
OEA, e as agências especializadas da ONU, como OIT, OIM, UNODC, ONU Mulheres,
Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), o Mercosul, considerado como uma
organização regional para a integração, e a sociedade civil.
195

A OEA possui instrumentos regionais sobre a matéria, sendo um ator impulsionador do


enfrentamento ao tráfico de pessoas na região. Por meio de seus documentos, tem promovido o
tema sempre na tentativa de contribuir para a visualização, sensibilização e prevenção, tendo
como eixo fundamental o fomento dos direitos humanos das vítimas e a cooperação hemisférica
para o enfrentamento ao tráfico de pessoas.

3.4.1.1 O enfrentamento ao tráfico de pessoas no âmbito da OEA

O primeiro documento relevante no âmbito dessa organização internacional referente ao


enfrentamento ao tráfico de pessoas é a Resolução n. 1776/2001, que estabeleceu apoio à
Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional, instando todos os
Estados-membro da OEA à internalização da Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional e de seu Protocolo para Prevenir, Reprimir e Punir o Tráfico de
Pessoas, Especialmente Mulheres e Crianças, bem como de seu Protocolo contra a Fabricação
e o Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, Suas Peças e Componentes e Munições410. Nesse mesmo
ano, o Plano de Ação da Terceira Cúpula das Américas, para fortalecer a democracia, criar
prosperidade e realizar o potencial humano propôs, dentro da seção de “Justiça, Estado de
Direito e Segurança do Indivíduo”, entre outras ações, implementar estratégias coletivas para
intensificar a capacidade institucional dos Estados no intercâmbio de informações e evidências,
elaborando acordos internacionais sobre assistência jurídica mútua, quando necessário;
desenvolver e difundir relatórios nacionais e fortalecer a cooperação, com o apoio técnico e
financeiro das organizações multilaterais e bancos multilaterais de desenvolvimento, quando
apropriado, para combater conjuntamente formas emergentes de atividade criminosa
transnacional, incluindo o tráfico de pessoas, a lavagem de dinheiro e bens oriundos de
atividades criminosas, bem como o crime cibernético; promover, quando necessário, e em
conformidade com a legislação nacional, a adoção de técnicas de investigação previstas na
Convenção das Nações Unidas sobre o Crime Organizado Transnacional411.
Em 2003, a Assembleia Geral da OEA aprovou a Resolução n. 1948/2003 sobre o
“Combate ao Delito do Tráfico de Pessoas, especialmente mulheres, adolescentes e
crianças”,412 reafirmando que o tráfico de pessoas, especialmente mulheres, adolescentes e

410
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Resolução n. 1776/2001. Disponível em:
http://www.oas.org/juridico/portuguese/2001/agres1776.htm. Acesso em: 15 jul. 2020.
411
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Plano de ação da Terceira Cúpula das Américas
(2001). Disponível em: http://www.ftaa-alca.org/Summits/Quebec/plan_p.asp. Acesso em: 15 jul. 2020.
412
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Resolução n. 1948/2003. Disponível em:
http://www.oas.org/juridico/portuguese/ag03/agres1948.htm. Acesso em: 15 jul. 2020.
196

crianças, é uma forma contemporânea de escravidão, requerendo: 1. Que a Secretaria


Permanente da Comissão Interamericana de Mulheres (CIM) facilitasse o intercâmbio de
informação e melhores práticas entre os Estados-membro para combater o delito do tráfico de
pessoas, e continuasse os estudos de pesquisa para incluir outros Estados-membro; e
apresentasse ao Conselho Permanente um relatório sobre as atividades realizadas pela CIM com
relação ao tráfico de pessoas, especialmente mulheres e crianças nos Estados-membro; e 2. Que
fosse nomeado um “Coordenador da OEA encarregado da questão do tráfico de pessoas,
especialmente de mulheres, adolescentes e crianças”, sediado junto à Secretaria Permanente da
CIM para atuar como ponto focal na facilitação do intercâmbio de informação e esforços dos
Estados-membro, a fim de prevenir e combater o tráfico de pessoas, especialmente mulheres,
adolescentes e crianças.
Em 2004, a Assembleia Geral, por meio da Resolução n. 2019/2004413, com mesmo
nome da anterior, “Combate ao crime de tráfico de pessoas, especialmente mulheres,
adolescentes e crianças”, solicitou que: 1. Fosse nomeado um coordenador da OEA para a
questão do tráfico de pessoas; 2. Que os Estados assinassem e/ou ratificassem, conforme o caso,
a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional e o Protocolo para
Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, Especialmente Mulheres e Crianças, adotando
as medidas nacionais necessárias para implementar os seus instrumentos; 3. Instou os Estados-
membro a que concluíssem os seus processos internos para determinar se assinariam e
ratificariam a Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores; 4. Que os
Estados-membro adotassem as medidas necessárias para implementar as recomendações para
combater o crime de tráfico de pessoas, especialmente mulheres, adolescentes e crianças, a fim
de aprimorar os seus sistemas jurídico, judicial e administrativo, e considerar o estabelecimento,
quando apropriado, de um mecanismo nacional para prevenir e combater o crime de tráfico de
pessoas e proteger as vítimas; 5. Recomendou a realização uma reunião de autoridades
nacionais sobre esse assunto, com o objetivo de estudar mecanismos de cooperação integral
entre os estados para garantir proteção e assistência às vítimas, prevenção do crime e repressão
a seus criminosos, tendo em mente o respeito pelos direitos humanos das vítimas; e 6. Solicitou
que fosse apresentado um relatório anual sobre as atividades realizadas pelos vários órgãos da
OEA para tratar da questão do tráfico de pessoas e sobre os desenvolvimentos no Hemisfério,

413
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Resolução n. 2019/2004. Disponível em:
http://www.oas.org/juridico/english/ga04/agres_2019.htm. Acesso em: 15 jul. 2020.
197

levando em consideração as informações fornecidas pelos Estados-membros incluindo o


progresso na aplicação da lei, na prevenção e na proteção e assistência às vítimas de tráfico414.
Essas três resoluções iniciais da Assembleia Geral foram fundamentais para indicar que
essa organização internacional regional estava envolvida no enfrentamento desse fenômeno,
incitando que os Estados ratificassem as normativas internacionais e criassem mecanismos de
prevenção, repressão e assistência às vítimas e, ao mesmo tempo, criando mecanismos regionais
de monitoramento desse fenômeno e do engajamento dos estados nesse enfrentamento.
A Assembleia Geral na Resolução n. 2118/05 renovou o mandato de realização de uma
reunião de autoridades nacionais em matéria de tráfico de pessoas com o tema “Combate ao
delito de tráfico de pessoas”. Também foi aprovada a Resolução n. 2148/05 sobre o “Combate
à exploração sexual comercial e ao contrabando e ao tráfico de crianças e adolescentes no
Hemisfério”.
Em 2006, a I Reunião de Autoridades Nacionais em Matéria de Tráfico de Pessoas foi
bastante relevante para a reflexão e percepção do que os Estados entendiam pelo fenômeno do
tráfico de pessoas e para o estabelecimento de recomendações para os Estados. Nesse sentido,
reforçou-se que a pobreza, a desigualdade e a exclusão social no hemisfério eram fatores que
aumentavam a vulnerabilidade das pessoas, especialmente mulheres, meninas e meninos, a se
tornarem vítimas de tráfico; que o tráfico de pessoas viola os direitos humanos das vítimas e
afeta a sociedade em geral, podendo levar ao colapso de famílias e comunidades e facilitar o
crescimento do crime organizado e outras atividades ilegais, além de privar os países de capital
humano e, assim, impedir o desenvolvimento, e aumenta os custos de saúde pública e prejudica
a aplicação da lei, que é agravada pela falta de recursos e casos de corrupção. A Reunião
solicitou que as recomendações feitas aos Estados sempre adotem o enfoque integral e
transversal de enfrentamento ao tráfico de pessoas; propôs que se estabeleça uma contribuição
para o esboço de uma estratégia de cooperação internacional; reconheceu o papel da sociedade
civil no combate a todos os aspectos do tráfico de pessoas; e recomendou que os Estados-
membro contribuam no diálogo constante com essas organizações415.

414
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Resolução n. 2019/2004. Disponível em:
http://www.oas.org/juridico/english/ga04/agres_2019.htm. Acesso em: 15 jul. 2020.
415
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Conclusiones y recomendaciones de la I Reunión de
Autoridades Nacionales en Materia de Trata de Personas. Disponível em: http://docplayer.es/97232409-
Conclusiones-y-recomendaciones-de-la-reunion-de-autoridades-nacionales-en-materia-de-trata-de-
personas.html. Acesso em: 15 jul. 2020. Ver também: ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS.
Resolução n. 2256/2006. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2006/4309.
pdf?view=1. Acesso em: 15 jul. 2020.
198

Em 2009, a Assembleia Geral da OEA realizou a II Reunião de Autoridades Nacionais


em Matéria de Tráfico de Pessoas416, na qual se aprovou a Resolução n. 2348/2007417 -
“Esforços de cooperação hemisférica para combater o tráfico de pessoas e Segunda Reunião de
Autoridades Nacionais em Matéria de Tráfico de Pessoas” e reiterou o compromisso de
combater o delito do tráfico de pessoas, com base em um enfoque integral, que levasse em conta
a prevenção do tráfico, o processo judicial de seus autores, a proteção, a assistência e o respeito
dos direitos humanos das vítimas, bem como o fortalecimento da cooperação internacional na
matéria, a implementação do Protocolo de Palermo e outros instrumentos internacionais
relevantes. Essa recomendação reforçou a necessidade de que: a. apoiassem os esforços no
sentido de redigir legislação modelo sobre o tráfico de pessoas, em consonância com o
Protocolo de Palermo, para que os Estados-membro possam utilizar como referência para a
formulação ou modificação de sua própria legislação sobre a matéria; b. os Estados
desenvolvessem mecanismos de cooperação que permitissem a repatriação das vítimas do
tráfico de pessoas, garantindo a sua segurança e integridade; c. realizasse um estudo sobre a
viabilidade de estabelecer um mecanismo de revisão entre os Estados para verificar o progresso
alcançado no combate ao tráfico de pessoas. Propôs-se também a elaboração de uma proposta
de plano de trabalho, levando em conta os avanços alcançados na esfera sub-regional, bem
como no âmbito universal, evitando a duplicidade de esforços e gerando maior coordenação418.
Nas recomendações da II Reunião de Autoridades, houve ainda o reconhecimento do
trabalho desenvolvido pelas organizações da sociedade civil e das suas iniciativas em prol do
fortalecimento das capacidades nacionais; recomendou-se, entre outros aspectos, que se
priorizasse o enfoque centrado na vítima e assegurasse o respeito aos seus direitos humanos,
segurança e bem-estar em todos os momentos.
A Assembleia Geral aprovou a Resolução n. 2511/2009, que previu a “Proteção dos
solicitantes da condição de refugiado e dos refugiados nas Américas” exortando os Estados-
membro a que verificassem o possível vínculo entre o tráfico de pessoas e a proteção
internacional dos refugiados, e que os instassem a conceder às vítimas do tráfico de pessoas e
outras que não pudessem regressar aos respectivos países de origem, de conformidade com a
sua legislação interna, algum tipo de proteção subsidiária, ou proteção internacional como

416
ORGANIZAÇÃO ESTADOS AMERICANOS. II Reunião de Autoridades Nacionais em Materia de
Tráfico de Pessoas. Disponível em: https://www.oas.org/csh/portuguese/traficopessoas.asp. Acesso em: 15
jul. 2020.
417
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Resolução 2348/2007(XXXVII-O.2). Disponível em:
http://www.oas.org/pt/council/AG/ResDec/. Acesso em: 15 jul. 2020.
418
Resolução n. 2348/2007, 3.
199

refugiados àqueles que reunissem os requisitos estabelecidos na definição de refugiado da


Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e seu respectivo Protocolo de 1967. Essa
resolução reconheceu a responsabilidade dos Estados em oferecer proteção internacional aos
refugiados e às vítimas de tráfico de pessoas.
A Assembleia Geral, na Resolução n. 2456/09419 - “Esforços hemisféricos para
combater o tráfico de pessoas: conclusões e recomendações da Segunda Reunião de
Autoridades Nacionais em Matéria de Tráfico de Pessoas”, recomendou a elaboração de uma
proposta de Plano de Trabalho levando em conta os avanços realizados na esfera sub-regional,
gerando maior coordenação.
Nesse mesmo ano de 2009, a Comissão de Segurança Hemisférica do Conselho
Permanente da OEA iniciou a organização de reuniões da sociedade civil para discutir a
temática do enfrentamento ao tráfico de pessoas. Assim é que naquele ano aconteceu a I
Reunião preparatória da Sociedade Civil420, recomendando de maneira geral e transversal que,
na luta contra o tráfico de pessoas, prevalecesse uma abordagem de direitos humanos e uma
perspectiva de gênero e não apenas a luta contra o crime organizado. Da mesma forma, no
centro de toda política deve estar o ser humano, a sua dignidade e a restituição de seus
direitos421.
Em função dessa recomendação, a Assembleia Geral, na Resolução 2551/2010422,
endossou o I Plano de Trabalho contra o Tráfico de Pessoas no Hemisfério Ocidental e que
orientou as ações desses Estados e da Secretaria-Geral da OEA em seu empenho de ajudar os
Estados no combate ao tráfico de pessoas no período de 2010-2012. Ficou a critério de cada
Estado-membro decidir sobre a implementação integral do Plano de Trabalho ou de partes dele.
O I Plano orientou em três dimensões: atividades em prevenção, em instauração de ação penal
e em proteção.

419
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Resolução n. 2456/09 (XXXIX-O/09). Disponível em:
http://www.oas.org/pt/council/AG/ResDec/. Acesso em: 15 jul. 2020.
420
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Conclusões e recomendações da Reunião Preparatória da
Sociedade Civil para a Segunda Reunião de Autoridades Nacionais em Tráfico de Pessoas, de 3 a 4 de março
de 2009 Washington, D.C. RTP-II / doc.7 / 09. Disponível em: http://www.
oas.org/pt/council/CSH/topics/tratapersonas.asp. Acesso em: 15 jul. 2020.
421
Na III Reunião de Autoridades (2012), apresenta-se um Compêndio de intervenções de organizações da
sociedade civil para combater o tráfico de pessoas RTP-III / Doc.9 / 12 rev. 1. Disponível em:
http://www.oas.org/pt/council/CSH/topics/tratapersonas.asp. Acesso em: 15 jul. 2020. Na IV Reunião de
Autoridades, apresentam-se Resultados do Fórum Virtual de Consulta com Organizações da Sociedade Civil
sobre o Plano de Tráfico de Tráfico de Pessoas no Hemisfério Ocidental, em preparação para a Quarta Reunião
de Autoridades Nacionais em Tráfico de Pessoas (Compêndio de contribuições compiladas pelo moderador,
Luciana Campello) RTP-IV / doc.7 / 14. Disponível em: http://www.oas.org/pt/council/ CSH/
topics/tratapersonas.asp. Acesso em: 15 jul. 2020.
422
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Resolução n. 2551/2010 (XL-O10). Disponível em:
http://www.oas.org/pt/council/AG/ResDec/. Acesso em: 15 jul. 2020.
200

Em 2012, foi realizada a III Reunião de Autoridades Nacionais em Matéria de Tráfico


de Pessoas423, reforçando que o Plano de Trabalho contra o Tráfico de Pessoas no Hemisfério
Ocidental (2010-2012) continuava a ser o marco de referência para orientar as ações dos
Estados-membro e da Secretaria-Geral da OEA; reconheceu a contribuição dos organismos
internacionais, regionais e da sociedade civil na prevenção e combate desse delito, bem como
na promoção dos vínculos de cooperação entre esses organismos e os Estados-membro, exigiu
que se considere a vítima no centro de todos os processos e que se orientem programas de
atenção integral que possibilitassem a sua reinserção social, laboral e econômica em um
verdadeiro desenvolvimento do projeto de vida.
É relevante ressaltar a apresentação do relatório apresentado pelo Brasil sobre o
andamento da implementação do “Plano de Trabalho contra o Tráfico de Pessoas”, no qual
expôs as políticas públicas desenvolvidas, destacando a Política Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas, junto com os seus I e II Planos Nacionais de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas nos seus três eixos estratégicos: prevenção ao tráfico; atenção às vítimas, repressão ao
tráfico e responsabilização dos seus autores. No âmbito da proteção às vítimas, o Brasil
estabeleceu a política de criação de Núcleos e Postos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
(NETP e PAHHM) como sendo os principais atores das políticas públicas de Estado para
garantir atendimento e proteção inicial dos direitos das vítimas e potenciais vítimas. Reforçou
que, em 2012, havia 15 Núcleos em funcionamento, com a função de executar ações nas áreas
de prevenção ao tráfico de pessoas, responsabilização de seus autores e atendimento às vítimas.
Destacou ainda a participação da sociedade civil e o apoio de organismos internacionais, o que
demonstrou o comprometimento do Governo brasileiro com a promoção da intersetorialidade
da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas424.
Em 2014, a IV Reunião de Autoridades Nacionais em Matéria de Tráfico de Pessoas foi
realizada em Brasília (Brasil), momento bastante relevante e importante do combate ao tráfico
de pessoas no âmbito da OEA. Os discursos dos representantes do Brasil (Secretário Nacional
de Justiça e Diretora do Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação /
Ministério da Justiça) foram relevantes, uma vez que o Brasil era tido como um referencial de

423
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. III Reunião de Autoridades Nacionais em Matéria de
Tráfico de Pessoas. Disponível em: https://www.oas.org/csh/portuguese/traficopessoas.asp#III. Acesso em:
15 jul. 2020.
424
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Apresentação dos relatórios sobre o andamento da
implementação do plano de trabalho contra o Tráfico de Pessoas no Hemisfério Ocidental 2010-2012 (Brasil)
RTP-III/INF.16/12. Disponível em: https://www.oas.org/csh/portuguese/traficopessoas.asp#III. Acesso em: 15
jul. 2020.
201

política pública construída e em desenvolvimento, no âmbito do enfrentamento ao tráfico de


pessoas425.
Nessa reunião foi aprovado o II Plano de Trabalho para Combater o Tráfico de Pessoas
no Hemisfério Ocidental (2015-2018)426 e promulgada a Declaração Interamericana para
enfrentar o tráfico de pessoas, denominada “Declaração de Brasília”427, destacando-se como
uma carta relevante de compromissos assumidos pelos Estados-membro.
O II Plano de Trabalho para Combater o Tráfico de Pessoas no Hemisfério Ocidental
constituiu uma referência que orienta as ações dos Estados e da Secretaria-Geral da OEA no
empenho em ajudar os Estados no enfrentamento ao tráfico de pessoas no período de 2015-
2018. Fica a critério de cada país a implementação desse Plano, em conformidade com o
ordenamento jurídico interno. As ações estão dispostas em várias diretrizes: prevenção,
repressão e a punição, atendimento e proteção das vítimas. Aponta indicadores de referência
para a verificação de cumprimento por meio de monitoramento. Deve ser entendido como um
documento referencial para os países-membro da OEA e que aderiram a Palermo.
Em 2018, foi realizada a V Reunião de Autoridades em Matéria de Tráfico de Pessoas,
quando também foi apresentado o Relatório de Progresso II Plano de Trabalho para Combater
o Tráfico de Pessoas no Hemisfério Ocidental 2015-1018, quando se aprovou a Declaração do
México e se sintetizaram esforços hemisféricos para enfrentar o tráfico de pessoas. Entre os
esforços dispostos no âmbito da proteção às vítimas, promover assistência psicológica, social,
médica e assistência jurídica adequada, além de oportunidades educacionais e de emprego para
facilitar a recuperação e reintegração das vítimas do tráfico de pessoas e, quando apropriado,
seus dependentes, além de promover o acesso à assistência jurídica gratuita para vítimas de
tráfico de pessoas, incluindo a proteção de seus direitos humanos como migrantes, quando
apropriado, e de seus direitos legais antes dos procedimentos judiciais e administrativos
pertinentes.

425
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Discurso do Secretário Nacional de Justiça, Ministério
da Justiça Paulo Abrão Abertura da IV Reunião de Autoridades Nacionais em Matéria de Tráfico de Pessoas
RTP-IV/INF. 6/14. Disponível em: https://www.oas.org/csh/portuguese/traficopessoas. asp#III. Acesso em: 15
jul. 2020.
426
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Segundo Plano de Trabalho para Combater o Tráfico
de Pessoas no Hemisfério Ocidental 2015-2018 (Aprovado na terceira sessão plenária, realizada em 5 de
dezembro de 2014) RTP/doc.4/14 rev. 1. Disponível em: https://www.oas.org/csh/
portuguese/traficopessoas.asp#III. Acesso em: 15 jul. 2020.
427
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Declaração Interamericana para Enfrentar o Tráfico
de Pessoas “Declaração de Brasília” (Aprovada na terceira sessão plenária, realizada em 5 de dezembro de
2014) RTP/doc.5/14 rev. 1. Disponível em: https://www.oas.org/csh/portuguese/ traficopessoas.asp#III.
Acesso em: 15 jul. 2020.
202

Todo esse corpo normativo construído aponta para um esforço da OEA no combate ao
tráfico de pessoas, instando os Estados-membro a esforços individuais e coletivos. Apresenta-
se uma perspectiva multidisciplinar de enfrentamento ao tráfico, com uma ação coordenada e
devidamente amparada em políticas públicas e estratégias de cooperação internacional e
fortalecimento institucional.
O Sistema Interamericano também conta com uma série de instrumentos internacionais
de direitos humanos que visam a garantir e revelar direitos humanos. Entre eles: 1) A
Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto San José da Costa Rica, que prevê o
livramento da escravidão, servidão involuntária ou trabalho forçado428; e 2) Convenção
Interamericana para a Prevenção, Erradicação e Punição da Violência contra a Mulher –
Convenção de Belém do Pará, que estabelece no artigo 2º, a violência física, sexual e
psicológica como sendo formas de violência contra a mulher429. Esses instrumentos têm relação
direta com a proteção das vítimas de tráfico de pessoas.
Destacam-se os mecanismos regionais que garantem a efetivação desses direitos e até
mesmo a indenização por eventual violação. Entre eles, aparecem: 1) A Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, prevista nos artigos 33(a) e 34 da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos; 2) A Corte Interamericana de Direitos Humanos, prevista nos artigos
33(b) e 52 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos; e 3) Comissão Interamericana
sobre Mulheres, prevista no artigo 10 da Convenção de Belém do Pará430.

3.4.1.2 O Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) e o enfrentamento ao tráfico de pessoas

Desde 1996, os temas relacionados à mobilidade humana fazem parte da agenda do


MERCOSUL, principalmente após a criação da Reunião de Ministros do Interior do
MERCOSUL, pelo Conselho do Mercado Comum (CMC) através da Decisão 07, em 1996,
com a finalidade de debater temas sobre migrações, de segurança e outros competentes por
esses ministérios para coordenar políticas e elaborar mecanismos comuns tendentes a
aprofundar a integração regional produziu avanços significativos, entre eles: a adoção de

428
Convenção Americana sobre Direitos Humanos: Artigo 6º Proibição da escravidão e da servidão. 1. Ninguém
poderá ser submetido a escravidão e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos
em todas as suas formas. 2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório. [...] –
grifo nosso.
429
Artigo 2. “b). [...] tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no lugar de trabalho[...].”
430
A pesquisa optou por não adentrar na análise dos casos da CIDH e da Corte IDH na matéria de tráfico de
pessoas, uma vez que foge do escopo da tese. Ver em: CAMPOS, Bárbara Pincowsca Cardoso. A
jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos em matéria consultiva: desenvolvimentos
recentes. Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, Fortaleza, v. 5, n. 5, p. 35-42, 2004.
Disponível em: http://revista.ibdh.org.br/index.php/ibdh/article/view/62/63. Acesso em: 25 ago. 2020.
203

Declarações e Acordos multilaterais tendentes a facilitar a liberdade de circulação e a proteção


dos direitos humanos dos nacionais dos Estados-parte e Associados431, e a proteger a
cooperação regional, a fim de combater o tráfico ilícito de migrantes e o tráfico de pessoas.
Em 2001, é aprovada a Declaração de Assunção sobre o tráfico de pessoas e o tráfico
ilícito de migrantes432, que prevê a adoção de medidas concentradas em nível regional, assim
como o fortalecimento da cooperação entre os países para combater com maior eficácia essa
atividade criminal de caráter tipicamente transnacional.
Estabelece que os Estados garantam o pleno respeito aos direitos humanos dos
migrantes e de suas famílias; assumam o compromisso de adotar medidas legislativas
necessárias para tipificar como delito o tráfico de pessoas e o tráfico de migrantes. Fixa ainda
mecanismos de cooperação regional em matéria de assistência técnica e capacitação para a
investigação e detecção de organizações dedicadas ao tráfico de pessoas e ao tráfico de
migrantes; e promove o intercâmbio de informações e a cooperação orientada à assistência
técnica e capacitação de recursos humanos para o tratamento das vítimas dos traficantes de
pessoas e de migrantes, especialmente mulheres e crianças.
Em 16 de dezembro de 2004, foram aprovados dois acordos na XXVII Reunião do
CMC, em Belo Horizonte: O “Acordo contra o Tráfico Ilícito de Migrantes, entre os Estados
Partes do MERCOSUL” e o “Acordo contra o Tráfico Ilícito de Migrantes, entre os Estados
Parte do MERCOSUL433, Bolívia e Chile”434. Ambos têm a finalidade de prevenir e combater
o tráfico ilícito de migrantes e promover a cooperação e intercâmbio de informações entre os
Estados-parte e proteger as vítimas desses delitos.
Nesse mesmo ano, na perspectiva de garantir os direitos dos migrantes da região, foi
aprovada a Declaração de Santiago sobre Princípios Migratórios (2004), dispondo dentre outros
temas, sobre a “responsabilidade dos Estados Parte e Associados do MERCOSUL, de trabalhar

431
Atualmente, o bloco regional é composto como Estados Parte: pela República da Argentina, a República
Federativa do Brasil, a República do Paraguai, a República Oriental do Uruguai e a República Bolivariana da
Venezuela. A República da Bolívia, a República do Chile, a República da Colômbia, a República do Equador
e a República do Peru, Guiana e Suriname, compõe na qualidade de Estados Associados.
432
Essa Declaração foi subscrita pelo Ministro do Interior da Argentina, o Ministro da Justiça da República
Federativa do Brasil, o Ministro do Interior da República do Paraguai, o Ministro do Interior da República
Oriental do Uruguai, pelo Ministro de Governo da República da Bolívia e o Ministro do Interior da República
do Chile.
433
BRASIL. Acordo sobre Tráfico Ilícito de Migrantes entre os Estados Partes do Mercosul. Decreto nº 7.953,
de 12 de março de 2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2013/decreto/D7953.htm. Acesso em: 15 jul. 2020.
434
Decisão do Conselho do Mercado Comum nº37/04 (MERCOSUL/CMC/DEC Nº 37/94. Disponível em:
http://www.sice.oas.org/Trade/MRCSRS/Decisions/dec3704p.asp. Acesso em: 15 jul. 2020.
204

de forma coordenada no combate e prevenção do tráfico de pessoas e dos abusos inerentes à


imigração clandestina na região.”
Em 2005, foi acolhida a Declaração de Montevidéu contra o tráfico de pessoas no
Mercosul e Estados Associados435 pelos Presidentes dos Estados-parte e Estados Associados,
através do Comunicado Conjunto dos Presidentes do MERCOSUL e Estados Associados no
dia 9 de dezembro de 2005, na XXIX Reunião do Conselho do Mercado Comum. Propôs-se
prevenir e combater o tráfico de pessoas na região; impulsionar a tipificação penal do delito do
tráfico de pessoas nas legislações internas de cada Estado que subscrevessem a Declaração;
desenvolver o fortalecimento institucional para melhorar a eficiência e eficácia das estruturas
organizativas dedicadas ao controle migratório, prevenção, assistência às vítimas e combate às
redes organizadas; adotar ações que protejam e assistam às vítimas de tráfico de pessoas; gerar
campanhas de difusão em meios massivos de comunicação tendentes a conscientizar a
sociedade e alertar potenciais vítimas; incentivar capacitações para formação de funcionários e
agentes públicos; e propiciar a cooperação regional para erradicar o delito do tráfico.
Em 2006, foi proposto o Plano de Ação do Mercosul para a Luta contra o Tráfico de
Pessoas, em Buenos Aires, e teve como objeto criar um mecanismo operativo e eficiente de
cooperação, coordenação e seguimento contra o tráfico de pessoas na tentativa de pontuar
respostas integrais ao problema dentro do território dos países do MERCOSUL e Associados.
A Reunião de Ministras e Altas Autoridades da Mulher do MERCOSUL (RMAAM),
órgão do MERCOSUL que reúne as máximas autoridades em matéria de gênero da região, teve
especial atenção em gerar sinergias entre os Estados da região, que facilitem a definição de uma
política regional de enfrentamento ao tráfico de mulheres e garanta uma abordagem regional,
integral e integrada do fenômeno436. Nesse sentido, a RMAAM definiu, no âmbito da sua Mesa
Técnica sobre Violência de Gênero, elaborar ferramentas que, a partir de uma perspectiva de

435
Foi subscrita pelos representantes de Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai, Bolívia, Chile, Peru, Equador,
Colômbia e Venezuela.
436
A partir da Resolução do Conselho do Mercado Comum N° 24/02 de dezembro de 2011, é reconhecido o
fortalecimento da institucionalidade e hierarquias dos mecanismos nacionais que ali participam, e cria-se a
Reunião de Ministras e Altas Autoridades da Mulher do MERCOSUL (RMAAM). A RMAAM tem por
principal função assessorar e propor ao Conselho do Mercado Comum (CMC) medidas, políticas e ações em
matéria de igualdade de gênero. A RMAAM é o principal fórum de coordenação política entre as máximas
autoridades dos mecanismos para o avanço da mulher, dirigida a promover e facilitar a geração de condições
para um exercício pleno dos direitos das mulheres na região, onde se debatem, promovem e facilitam a
definição de políticas públicas regionais para as mulheres e a igualdade de gênero. A RMAAM está integrada
por representantes governamentais dos cinco Estados Partes, assim como os estados associados: Bolívia, Chile,
Colômbia, Equador e Peru, e assessoram, como representantes da sociedade civil, várias organizações não
governamentais. Ver em: MERCOSUL. Guia Mercosul de atenção a mulheres em situação de tráfico de
pessoas para fins de exploração sexual. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/human-
trafficking/GLO-ACT/BR_Guia_MERCOSUL_Trafico_Mulheres_PORT_Completo_para_IMPRESSAO.
pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
205

gênero, orientassem o fortalecimento do trabalho conjunto para o enfrentamento a esse


fenômeno, suas causas e consequências sobre a vida das mulheres437.
Sua primeira contribuição foi a realização de diagnósticos nacionais em cada um dos
Estados-parte do MERCOSUL e um diagnóstico regional, que foram publicados em maio de
2012 no marco da RMAAM, em Buenos Aires-Argentina438.
Esses diagnósticos indicaram a necessidade de contar com uma ferramenta
especificamente dirigida a orientar o trabalho técnico, conceitual e operacional de todas aquelas
pessoas e organismos que atuam em situações de tráfico de mulheres, especialmente na atenção
direta a mulheres em situação de tráfico para fins de exploração sexual. Para tanto, o Conselho
do Mercado Comum (CMC) aprovou dois instrumentos que fortalecem a ação conjunta de
políticas regionais para enfrentar o problema.
Inicialmente, aprovou a criação de um “Mecanismo de Articulação para a Atenção a
Mulheres em Situação de Tráfico Internacional de Pessoas”439 (MERCOSUL/CMC/
DEC.N°32/12), que permite articular uma Rede MERCOSUL para oferecer especial atenção a
mulheres garantindo que recebam apoio, e estabelecer mecanismos de comunicação,
intercâmbio e articulação de ações entre todos os Estados-parte.
Também recomendou adotar e aplicar o “Guia MERCOSUL de atenção a mulheres em
situação de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual” (MERCOSUR/CMC/REC
No.09/12)440. Esses documentos têm auxiliado na atuação conjunta os estados do Mercosul na
atuação em situações identificadas como tráfico de pessoas, principalmente mulheres, crianças
e adolescentes441.
O Instituto de Políticas Públicas de Direitos Humanos do MERCOSUL (IPPDH)442
desenvolve diversas ações no âmbito dos direitos humanos, e vem ao longo dos anos

437
AURELIANO, Anna Carolina da Conceição. A perspectiva de gênero para o enfrentamento ao tráfico
internacional de pessoas no Mercosul. Maestría en Derecho de las Relaciones Internacionales y de la
Integración en América Latina. Universidad de la Empresa, Montevideo, Uruguai, 2019.
438
MERCOSUL. O tráfico de mulheres com fins de exploração sexual no MERCOSUL. Disponível em:
www.mercosurmujeres.org. Acesso em: 20 jul. 2020.
439
MERCOSUL. Mecanismo de articulação para atenção a mulheres em situação de tráfico internacional
de pessoas. Disponível em: http://www.cartillaciudadania.mercosur.int/oldAssets/uploads/DEC_026-
2014_PT_Mec%20artic%20mulheres%20trafico%20internacional.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
440
MERCOSUL. Guia Mercosul para a atenção às mulheres em situação de tráfico de pessoas com fins de
exploração sexual. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/human-trafficking/GLO-ACT/BR_
Guia_MERCOSUL_Trafico_Mulheres_PORT_Completo_para_IMPRESSAO.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
441
No Brasil, atualmente o ponto focal dessa atuação é o Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos.
442
O Instituto de Políticas Públicas de Direitos Humanos do MERCOSUL (IPPDH) é um órgão do MERCOSUL
criado em 2009 pelo Conselho do Mercado Comum por meio da Decisão nº 14/09 de 23 de julho, 2009.
Funciona como instância de cooperação técnica, pesquisa aplicada e coordenação de políticas públicas de
direitos humanos dos países que compõem o bloco regional. A migração foi um tema permanente nas ações e
pesquisas realizadas no IPPDH desde a sua criação em 2009. No último período, foram agregados os temas
206

promovendo ações na área das migrações regionais. Implantou, especificamente no âmbito do


enfrentamento ao tráfico de pessoas, entre 2015 e 2017, o Projeto “Cooperação humanitária
internacional para migrantes, apátridas, refugiados e vítimas de tráfico de pessoas”, com o apoio
financeiro do governo brasileiro443. Esse projeto contemplou um conjunto ações, incluindo
estudos transversais sobre a questão da segurança alimentar, pesquisas sobre a migração
haitiana, diálogos inter-regionais para troca de experiências e divulgação de boas práticas em
âmbito do MERCOSUL e Estados associados, entre outros.
Em 2019, foi apresentado o relatório “Migração, direitos sociais e políticas contra o
tráfico de pessoas nas fronteiras do MERCOSUL” (2019), o caso das cidades da “Tríplice
Fronteira”, elaborado em conjunto com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime
(UNODC)444. Esse relatório analisa vários aspectos do problema de tráfico de pessoas na área
conhecida como a "Tríplice Fronteira", que une as cidades de Puerto Iguazú (Argentina), Foz
do Iguaçu (Brasil) e Ciudad del Leste (Paraguai).

3.4.2 O enfrentamento ao tráfico de pessoas no âmbito da Europa

3.4.2.1 Marco da União Europeia

O Tratado da União Européia445 estabelece em seu artigo 29446, como um dos objetivos
da União Europeia (U), “facultar aos cidadãos um elevado nível de proteção num espaço de
liberdade, segurança e justiça, mediante a instituição de ações em comum entre os Estados-
Membro no domínio da cooperação policial e judiciária em matéria penal e a prevenção e
combate do racismo e da xenofobia.”, “[...] prevenindo e combatendo a criminalidade,
organizada ou não, em especial o terrorismo, o tráfico de seres humanos e os crimes contra as
crianças, o tráfico ilícito de droga e o tráfico ilícito de armas, a corrupção e a fraude [...]” (grifo
nosso), através de maior cooperação policial e judicial, e da harmonização das normas penais
dos Estados-Membro.

refúgio, apatridia e tráfico de pessoas, em linha com os avanços e interesses que se impõem na região com base
no processo de Cartagena +30 e na Declaração e Plano de Ação do Brasil (2014).
443
O Projeto foi analisado e aprovado na XCVII Reunião Ordinária do Grupo Mercado Comum (GMC), realizada
entre 15 e 16 de abril de 2015 em Brasília (MERCOSUL / GMC / ATA No. 01/2015).
444
IPPDH. Migración, derechos sociales y políticas contra la trata de personas en las fronteras del
MERCOSUR. 2019. Disponível em: https://www.mercosur.int/documento/migracion-derechos-sociales-y-
politicas-contra-la-trata-de-personas-en-las-fronteras-del-mercosur/. Acesso em: 20 jul. 2020.
445
UE. Tratado da União Européia. 1992. Disponível em: https://www1.europarl.europa.eu/about-
parliament/files/in-the-past/ep-and-treaties/maastricht-treaty/pt-resolution-on-the-results-of-the-
intergovernmental-conference-19920407.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
446
Modificado pelo Tratado de Amsterdã de 1997. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-
content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:11997M/TXT&from=PT. Acesso em: 20 jul. 2020.
207

A UE implicou inúmeras complexidades às relações resultantes dessa criação jurídica,


social, cultural, econômica e política, com diversas consequências. Entre elas, destaca-se a
possibilidade da livre circulação das pessoas nacionais e todas aquelas geograficamente
localizadas nos países da UE. Se o limite territorial desses países não foi ampliado, a percepção
de suas fronteiras, sim, uma vez que não existe restrição à circulação de pessoas entre esses
países.
Se, por um lado, a livre circulação das pessoas diminui as formas de controle fronteiriço
entre esses países e possibilita o aumento da migração intrarregional, por outro exigiu a criação
de mecanismos de controle para a prevenção e combate das redes criminosas de tráfico de
pessoas e de imigração irregular, exigindo, ainda, que esses mecanismos e procedimentos sejam
constantemente avaliados e revistos, muitas vezes, inclusive, utilizando-se dessas justificativas
de combater o crime, para realizar controles das mobilidades humanas “indesejadas”.
No que tange aos direitos humanos, existem três instrumentos regionais europeus
principais: 1) a Convenção Europeia sobre Direitos Humanos; 2) o Tratado Social Europeu; e
3) a Convenção Europeia para Prevenção de Tortura e Tratamento ou Punição Desumana ou
Degradante, que preveem especificamente:
A Convenção Europeia sobre Direitos Humanos (CEDH)447 prevê em seu artigo 4º, uma
série de proibições ao trabalho escravo ou forçado, livramento da tortura ou tratamento
desumano ou degradante e direito à liberdade e segurança pessoal. O Tratado Social Europeu448
foca o direito de trabalhadores migrantes e suas famílias à proteção e assistência e direito ao
trabalho. A Convenção Europeia para Prevenção de Tortura e Tratamento ou Punição
Desumana ou Degradante449 estabelece o livramento de tortura ou tratamento ou punição
desumana ou degradante.
Assim como no sistema regional interamericano, o europeu também conta com a
existência de diversos mecanismos regionais intergovernamentais que garantem a efetivação
desses direitos ou até mesmo a reparação, no caso de eventual violação. Entre eles, aparecem:
1) Comissão Europeia de Direitos Humanos; 2) Tribunal Europeu dos Direitos Humanos; 3)
Comitê Europeu de Prevenção da Tortura; 4) Organização de Segurança e Cooperação na

447
Adotada em 04 de novembro de 1950. Disponível em: http://www.hri.org/docs/ECHR50.html. Acesso em: 20
jul. 2020.
448
Disponível em: http://www.coe.fr/eng/legaltxt/35e.htm. Acesso em: 20 jul. 2020.
449
Disponível em: http://www.penlex.org.uk/pages/eurocpt.html. Acesso em: 20 jul. 2020.
208

Europa (OSCE)450; 5) Tribunal Europeu de Justiça, nos casos que envolvam a União
Europeia451.
Especificamente no âmbito do tráfico de pessoas, algumas diretivas da União Europeia
são fundamentais e vinculativas para os Estados-membro: 1. Diretiva 81/2004 do Conselho da
União Europeia, de 29 de abril de 2004452, relativa à emissão de uma autorização de residência
para nacionais de terceiros países vítimas de tráfico de pessoas ou que tenham sido objeto de
uma ação para ajudar imigração ilegal e/ou cooperar com as autoridades competentes. A
diretiva prevê que as pessoas que não sejam cidadãos de um Estado-membro da UE, mas
tenham sido traficadas para um Estado da UE e que estejam cooperando com as autoridades,
recebam permissões de residência por períodos limitados. Durante o período em que residem
em um Estado-membro da UE com base nessa licença, essas pessoas têm certos direitos para
as ajudar em suas vidas diárias e recuperação; 2. Diretiva 2011/36/UE do Parlamento Europeu
e do Conselho, de 5 de abril de 2011453, relativa à prevenção e à luta contra o tráfico de seres
humanos e à proteção das vítimas. Essa diretiva adota uma abordagem abrangente e integrada
centrada nos direitos humanos e nas vítimas e integra a dimensão do gênero. Previa que os
Estados se adequassem até 6 de abril de 2013. A diretiva se centra não apenas no aspeto da
aplicação da lei, mas visa também a prevenir a criminalidade e assegurar que as vítimas de
tráfico de seres humanos tenham a possibilidade de recuperar e de se reintegrar na sociedade.
Já no preâmbulo, estabelece o papel da sociedade civil como parceira dos Estados na iniciativa
de formulação de políticas, campanhas de informação e conscientização, programas de pesquisa
e educação e em treinamento, bem como em monitorar e avaliar o impacto de medidas de
combate ao tráfico. Em seu artigo 19, menciona o estabelecimento de relatores nacionais ou
mecanismos equivalentes; 3) No âmbito da proteção às vítimas, a Diretiva 2012/29/UE do
Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012 , estabelece normas mínimas

450
A OSCE tem origem na Conferência sobre a Segurança e a Cooperação na Europa, em 1975 (CSCE) e possui
atualmente 56 Estados participantes, entre eles os países da UE, Rússia, Ásia Central, Canadá e Estados Unidos
da América. Sua missão é facilitar a resolução de conflitos existentes ou pendentes de solução nos quais estão
implicados alguns dos Estados participantes, através da cooperação e coordenação. Disponível em:
http://es.wikipedia.org/wiki/osce . Acesso em: 5 jul. 2020.
451
A pesquisa optou por não adentrar na análise dos casos da CIDH e da Corte IDH na matéria de tráfico de
pessoas, uma vez que foge ao escopo da tese.
452
UE. Diretiva 2004/81/CE. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=
CELEX:32004L0081&from=PT. Acesso em: 5 ago. 2020.
453
UE. Diretiva 2011/36 / UE. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=
CELEX:32011L0036&from=EN. Acesso em: 5 ago. 2020.
209

relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade e substitui a Decisão-
Quadro 2001/220/JAI do Conselho454.
Das Diretivas da UE, a mais relevante para garantir a proteção das vítimas de tráfico é
a 2011/36/UE. A perspectiva de assegurar que as vítimas de tráfico de pessoas tenham a
possibilidade de recuperar e de se reintegrar na sociedade é tida como marco para a cobrança
desses aspectos internamente nos Estados-membro da UE.
Além desses documentos vinculativos, é importante mencionar a Declaração de
Bruxelas sobre Prevenção e Combate ao Tráfico de Pessoas (2002). Não é um documento
vinculativo, mas essa declaração resultou de uma conferência organizada pela OIM, em
cooperação com o Parlamento Europeu e a Comissão Europeia.
Foi lançada a Estratégia da UE para a erradicação do tráfico de seres humanos (2012 -
2016), que teve como objetivo fornecer base para as atividades da UE em relação ao tráfico de
pessoas. Teve como meta fornecer um quadro coerente para iniciativas planejadas, definir
prioridades e preencher lacunas455.

3.4.2.2 Marco do Conselho da Europa

O Conselho da Europa está constituído atualmente por 47 Estados-membro, com o


objetivo principal de conseguir a união estreita entre os seus membros (artigo 1º do Estatuto do
Conselho da Europa). Possui uma série de Recomendações que se propõem a direcionar as
Políticas e legislação de seus Estados-membros.
Antes do Protocolo de Palermo, o Conselho já descrevia medidas contra o tráfico de
pessoas. A Recomendação 1325456, de 23 de abril de 1997, define, em seu §2º o tráfico de
mulheres e a prostituição forçada; no §3º, considera o tráfico de mulheres e a prostituição
forçada como formas de tratamento desumano ou degradante.

454
UE. Diretiva 2012/29/UE. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-
content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32012L0029&from=PT. Acesso em: 2 ago. 2020.
455
UE. Estratégia da União Europeia para a erradicação do tráfico de seres humanos 2012 2016. /*
COM/2012/0286 final */. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=
CELEX:52012DC0286&from=PT. Acesso em: 20 jul. 2020.
456
O tráfico de mulheres e a prostituição forçada são definidos como: “any legal or illegal transporting of women
and/or trade in them, with or without their initial consent, for economic gain, with the purpose of subsequent
forced prostitution, forced marriage, or other forms of forced sexual exploitation. The use of force may be
physical, sexual and/or psychological, and includes intimidation, rape, abuse of authority or a situation of
dependence.”. Disponível em: www.coe.int. Acesso em: 15 jul. 2020.
210

Na Recomendação R(2000) 11, de 19 de maio de 2000457, o Comitê dos Ministros define


o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, ampliando o conceito desse crime.
Com a Recomendação 1545458, de 21 de janeiro de 2002, a Assembleia Consultiva
considera importante a adoção de um Código de Conduta, e solicita que cada Estado-membro
adote a penalização do turismo sexual, a criação de centros de acolhimento para vítimas, a
introdução de políticas de inserção e reabilitação das vítimas.
Interessante notar que a definição internacional de tráfico de pessoas, previsto no artigo
3º, alínea a), constante no Protocolo de Palermo é reconhecida pelo Comitê de Ministros do
Conselho da Europa, conforme se verifica no Documento nº 9553, de 21/09/2002459.
Com a Recomendação Rec (2001)460, de 31 de outubro de 2001, ficam estabelecidos
alguns conceitos para fim de proteção da criança contra a exploração sexual, os quais definem
a exploração sexual, a pornografia infantil, a prostituição infantil e o tráfico de crianças.
Nessas recomendações da Assembleia Consultiva, percebe-se que a problemática do
tráfico internacional de pessoas vinha adquirindo uma dimensão importante nas discussões
internacionais e intra-europeias, possibilitando reflexões e criação de medidas por parte dos
Estados-membro no âmbito interno.
Até o momento, a normativa mais relevante do Conselho da Europa é a Convenção do
Conselho da Europa relativa à Luta contra o Tráfico de Seres Humanos461, adotada em
Varsóvia, a 16 de maio de 2005, também chamada de Convenção de Varsóvia 462 ou Convenção
n. 197. Ela entrou em vigor em 1 de fevereiro de 2008, após a sua décima ratificação. Enquanto
se baseia nos instrumentos internacionais existentes, a Convenção vai além dos padrões
mínimos neles acordados e fortalece a proteção oferecida às vítimas. A Convenção possui um
amplo escopo de aplicação, abrangendo todas as formas de tráfico (nacional ou transnacional,
vinculado ou não ao crime organizado), e acolhendo todas as pessoas que são vítimas de tráfico

457
O conceito do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual: “the procurement by one or more natural or
legal persons and/or the organization of the exploitation and/or transport or migration – legal or illegal – of
persons, even with their consent, for the purpose of their sexual exploitation, inter alia by means of coercion,
in particular violence or threats, deceit, abuse of authority or of a position of vulnerability”. Disponível em:
www.coe.int. Acesso em: 15 set. 2006.
458
Disponível em: www.coe.int.
459
Id.
460
Id.
461
CONSELHO DA EUROPA. Convenção do Conselho da Europa relativa à Luta contra o Tráfico de Seres
Humanos. 2005. Disponível em: https://www.mdm.org.pt/wp-content/uploads/2017/10/ Conven%
C3%A7%C3%A3o-do-Conselho-da-Europa-Relativa-%C3%A0-Luta-contra-o-Tr%C3%A1fico-de-Seres-
Humanos.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
462
CONSELHO DA EUROPA. Ratificações da Convenção sobre a Ação contra o Tráfico de Seres Humanos.
2005. Disponível em: https://www.coe.int/en/web/conventions/full-list/-/conventions/treaty/197/ signatures.
Acesso em: 9 ago. 2020.
211

(mulheres, homens ou crianças). As formas de exploração cobertas por ela são, no mínimo,
exploração sexual, trabalho ou serviços forçados, escravidão ou práticas semelhantes à
escravidão, servidão e remoção de órgãos.
A principal contribuição da Convenção é o seu olhar sobre a perspectiva de direitos
humanos e foco na proteção das vítimas. Em seu preâmbulo, o tráfico de pessoas é definido
como uma violação dos direitos humanos e uma ofensa à dignidade e integridade do ser
humano. Prevê uma série de direitos para as vítimas de tráfico, em particular o direito de serem
identificadas como vítimas, protegidas e assistidas, a fim de receber um período de recuperação
e reflexão de, pelo menos, 30 dias, a que seja concedida uma autorização de residência
renovável, e receber compensação pelos danos sofridos.
De forma resumida, a Convenção prevê: 1. Abordagem dos direitos humanos; 2.
Estrutura completa para proteção e assistência às vítimas de tráfico de seres humanos
(condições de vida que garantam a sua acomodação de subsistência e assistência material,
segurança e proteção, assistência médica, jurídica, tradução e interpretação, educação e
treinamento); 3. Estabelecimento do período de recuperação e reflexão (pelo menos 30 dias);
4. Autorização de residência devido a situação pessoal ou colaboração; e 5. Direito da
compensação da vítima.
Aspecto importante para a garantia dos direitos violados das vítimas é o papel da
sociedade civil explicitamente reconhecido, em termos gerais, no Artigo 35, intitulado
“Cooperação com a sociedade civil”. Estabelece que cada Estado deve incentivar as autoridades
estatais e funcionários públicos a cooperar com organizações não governamentais e outras
organizações relevantes e membros da sociedade civil, no estabelecimento de parcerias
estratégicas com o objetivo de alcançar o objetivo dessa Convenção. Segundo essa disposição,
é um dever e não uma escolha incentivar a cooperação entre agências estatais e ONGs. Essa
parceria estratégica implica o estabelecimento de estruturas cooperativas através das quais os
atores estatais cumpram as suas obrigações sob a Convenção, coordenando os seus esforços
com a sociedade civil. Isso pode incluir um diálogo regular envolvendo todos os atores, com a
implementação prática dos objetivos da Convenção através da “conclusão de memorandos de
entendimento entre autoridades nacionais e organizações não-governamentais para fornecer
proteção e assistência às vítimas de tráfico.”
Esse artigo da convenção fornece a base legal para o estabelecimento de um órgão de
referência nacional. Essa Referência Nacional é como um Mecanismo de Referência Nacional
(MRN), uma estrutura cooperativa através da qual os atores estatais cumprem as suas
obrigações de proteger e promover os direitos humanos de vítimas de tráfico, coordenando os
212

seus esforços em parceria estratégica com a sociedade463. Cada Estado define a estrutura de seu
MRN. O objetivo básico de um MRN é garantir que os direitos humanos das pessoas traficadas
sejam respeitados e fornecer às vítimas um meio eficaz de encaminhamento para os serviços.
Além disso, os MRNs podem servir para ajudar a melhorar as políticas e procedimentos
nacionais em uma ampla variedade de aspectos relacionados às vítimas, como residência,
regulamentos sobre repatriação, indenização e proteção de testemunhas. Os MRNs podem
estabelecer planos de ação nacionais e estabelecer análises referenciais para determinar se os
objetivos estabelecidos foram alcançados464.
São dez princípios e boas práticas que devem guiar a criação dos Mecanismos de
Referência Nacionais: 1. Proteger os direitos das vítimas deve ser uma prioridade para todos
que lutam contra o tráfico de pessoas; 2. Uma infraestrutura de combate ao tráfico de pessoas
deve se basear em ampla definição para ser capaz de responder rapidamente às suas diferentes
modalidades; 3. Os serviços de assistência e proteção às vítimas devem ser acessíveis a todas
as categorias de vítimas de tráfico; 4. Um mecanismo de proteção deve incluir ampla gama de
serviços especializados voltados para as necessidades específicas de cada pessoa; 5. Serviços
de proteção às vítimas baseados nos direitos humanos podem ajudar a garantir um julgamento
eficaz; 6. A luta contra o tráfico de pessoas requer abordagem multidisciplinar e inter-setorial,
que inclui a participação de todos os atores governamentais relevantes e da sociedade civil; 7.
A estrutura para combater o tráfico de pessoas deve ser baseada e construída sobre a capacidade
nacional disponível para promover um senso de propriedade e sustentabilidade; 8 Os princípios
orientadores de um MRN incluem transparência e julgamento de responsabilidades e
competências claras, de acordo com os diferentes mandatos de todos os atores envolvidos; 9.
MRNs são elementos básicos da cooperação regional e internacional eficazes no combate ao
tráfico de pessoas e na assistência às vítimas; e 10. O processo de implementação de um MRN
deve ser subsumido a um processo global de democratização para garantir a sua
responsabilidade e legitimidade465.
Outro importante aspecto da Convenção é o sistema de monitoramento criado para
supervisionar a implementação das obrigações nela contidas, que consiste em dois pilares: o

463
OSCE. Mecanismos nacionales de derivación: aunando esfuerzos para proteger los derechos de las víctimas
de trata de personas. 2007. Disponível em: https://www.osce.org/files/f/documents/5/a/13973.pdf. Acesso em:
20 jul. 2020.
464
Mais adiante, no capítulo em que se abordará o caso de estudo da Espanha, será analisado o papel exercido pelo
Relator Nacional de la Trata de Personas.
465
OSCE. Mecanismos nacionales de derivación: aunando esfuerzos para proteger los derechos de las víctimas
de trata de personas. 2007. Disponível em: https://www.osce.org/files/f/documents/5/a/13973.pdf. Acesso em:
20 jul. 2020.
213

Grupo de Peritos em Ação contra o Tráfico de Seres Humanos (GRETA) 466 e o Comitê das
Partes467. A Convenção não se restringe aos Estados- membro do Conselho da Europa; Estados
terceiros e a União Europeia também têm a possibilidade de se tornarem Parte da Convenção.
GRETA é responsável por monitorar a implementação da Convenção do Conselho da
Europa sobre Ação contra o Tráfico de Seres Humanos pelas Partes. Esse grupo se reúne em
sessões plenárias três vezes por ano; realiza visitas, elabora e publica relatórios de países
avaliando medidas legislativas e outras tomadas pelas Partes para dar cumprimento às
disposições da Convenção. Além disso, o GRETA publica regularmente relatórios gerais sobre
as suas atividades 468.
Pensando em medidas para fortalecer a implementação da obrigação de fornecer
proteção internacional às vítimas de tráfico, O GRETA emitiu, em 2020, a “Nota de Orientação
sobre o direito das vítimas de tráfico e pessoas em risco de serem traficadas à proteção
internacional.”469. Essa nota destaca os critérios que podem dar direito às vítimas de tráfico,
bem como àquelas em risco de serem traficadas, a proteção internacional, incluindo proteção
complementar. A orientação enfatiza que deve haver a possibilidade de as supostas vítimas de
tráfico solicitarem asilo enquanto estão em processo de identificação. Também ressalta o
princípio da não punição das vítimas de tráfico por crimes que foram obrigadas a cometer.
Outra Convenção relevante no âmbito do Conselho da Europa é a Convenção do
Conselho da Europa para a proteção das crianças contra a exploração sexual e abuso sexual,
2007, também chamada de Convenção de Lanzarote ou Convenção 201. Ela aborda, entre
outras, questões relacionadas ao tráfico, em especial a exploração sexual de crianças. Inclui
várias disposições que reconhecem o papel e a contribuição da sociedade civil470.

466
GRETA será explicado a seguir.
467
Sobre o Comitê das Partes
O Comitê das Partes da Convenção do Conselho da Europa sobre a Ação contra o Tráfico de Seres Humanos é
composto pelos representantes no Comitê de Ministros do Conselho da Europa dos Estados membros Partes
da Convenção e por representantes das Partes da Convenção, que não são membros do Conselho da Europa. O
Comitê das Partes pode, com base no relatório e nas conclusões do Grupo de Peritos em Ação contra o Tráfico
de Seres Humanos (GRETA), fazer recomendações a uma Parte sobre as medidas a serem tomadas como
seguimento ao Relatório da GRETA. CONSELHO DA EUROPA. Committee of the Parties. Disponível em:
https://www.coe.int/en/web/anti-human-trafficking/committee-of-the-parties. Acesso em: 15 jul. 2020.
468
CONSELHO DA EUROPA. General reports on GRETA’s activities. Disponível em: https://www.coe.int/
en/web/anti-human-trafficking/general-reports. Acesso em: 20 jul. 2020. Os relatórios de avaliação do GRETA
são o resultado de informações coletadas de uma variedade de fontes (Estados Parte, organizações sociedade
civil). Contêm uma análise da situação de cada uma das Partes em relação às ações de combate tráfico de seres
humanos e sugestões de como o país pode se fortalecer na implementação da Convenção e lidar com os
problemas identificados.
469
CONSELHO DA EUROPA. Guidance note on the entitlement of victims of trafficking, and persons at risk of
being trafficked, to international protection. 2020. Disponível em: https://rm.coe.int/guidance-note-on-the-
entitlement-of-victims-of-trafficking-and-persons/16809ebf44. Acesso em: 20 jul. 2020.
470
CONSELHO DA EUROPA. Convenção de Lanzarote.2 007. Disponível em: https://rm.coe.int/168046e1d8.
Acesso em: 15 jul. 2020. A Espanha ratificou essa Convenção em 2010.
214

A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra


as Mulheres e a Violência Doméstica (2011) estabelece definições importantes e descreve uma
série de medidas que devem ser tomadas pelos Estados-membro para tentar diminuir as
desigualdades de gênero, e consequentemente, a violência de gênero471.

3.4.2.3. Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE)

Em 2003, a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) criou um


Representante Especial e Coordenador de Combate ao Tráfico de Pessoas para ajudar os
Estados participantes a desenvolver e implementar políticas eficazes de combate a esse tipo de
tráfico. O Escritório do Representante Especial promove uma abordagem baseada nos direitos
humanos e centrada na vítima para advogar por elas472.
O Plano de Ação da OSCE contra o Tráfico de Pessoas (2003) é a estrutura para as
atividades da OSCE de apoio às iniciativas de combate ao tráfico dos Estados participantes.
Inclui recomendações essenciais para a ação em nível nacional, conhecidas como “3 Ps”:
Prevenção, incluindo conscientização e gerenciamento das causas básicas; Processo judicial,
abrangendo investigação e cooperação com forças policiais internacionais; e Proteção dos
direitos das vítimas, contendo assistência e compensação. O Plano declara no seu Preâmbulo:
“Reconhecendo que, embora a responsabilidade primária pelo combate e prevenção ao tráfico de seres
humanos esteja nos Estados participantes, a ligação desse fenômeno ao crime organizado transnacional
exige cooperação em nível internacional e regional, envolvendo o setor privado e as ONGs”473.
A OSCE acrescentou um quarto "P" - um capítulo sobre parcerias - destacando a
necessidade de cooperação reforçada com organizações internacionais e outros parceiros,
incluindo questões relacionadas à aplicação da lei, Mecanismos de Referência Nacionais
(NRMs) e trabalho conjunto entre instituições públicas e o setor privado. Nessa perspectiva de
reforçar a cooperação entre os atores envolvidos no enfrentamento ao tráfico de pessoas, ainda
mais na linha da assistência e proteção às vítimas, e argumentando que a inclusão da sociedade
civil é essencial para a implementação de qualquer estratégia viável de combate ao tráfico de

471
CONSELHO DA EUROPA. Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência
Contra as Mulheres e a Violência Doméstica. 2011. Disponível em: https://rm.coe.int/ 168046253d. Acesso
em: 15 jul. 2020.
472
OSCE. Combating human trafficking. Disponível em: https://www.osce.org/combating-human-trafficking.
Acesso em: 20 jul. 2020.
473
OSCE. Decision No. 557/Rev.1* Osce Action Plan to Combat Trafficking in Human Beings. Disponível
em: https://www.osce.org/files/f/documents/c/f/15944.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
215

pessoas, em 2018, a OSCE publica o documento “The critical role of civil society in combating
trafficking in human beings”474.
Recentemente, 2020, a OSCE lançou o estudo. “Leveraging innovation to fight
trafficking in human beings: a comprehensive analysis of technology tools”475, que faz um
balanço das ferramentas e iniciativas tecnológicas desenvolvidas para combater o tráfico de
seres humanos em suas diferentes formas. Também analisa como a tecnologia pode ser mal
utilizada para facilitar o tráfico de seres humanos, trazendo recomendações. Entre as várias
recomendações apresentadas: 1. Os governos devem considerar o aumento de recursos e
treinamento para legisladores, policiais, provedores de serviços, OSCs e universidades para
entender as diversas maneiras pelas quais a tecnologia está sendo mal utilizada por traficantes;
2. É possível utilizar a tecnologia para prevenir, interromper e contornar traficantes; 3. As novas
tecnologias podem oferecer novos meios de denúncia para vítimas de tráfico e outros atores; 4.
A tecnologia pode auxiliar na avaliação de risco, permitindo a identificação de áreas de risco
para maior vigilância, por exemplo, as redes de fornecimento no setor privado; 5. A tecnologia
pode auxiliar no monitoramento proativo de situações nas quais as pessoas podem estar em
risco de exploração; e 6. A tecnologia pode ser utilizada para agregação e análise de dados que
possam levar à identificação de tendências e padrões de tráfico de pessoas. Essa estratégia pode
ser importante, no sentido de dar respostas ao crime de tráfico humano e garantir alocação
eficiente de recursos humanos e financeiros476.

3.5 O Regime Internacional Complexo

Descrever as normativas que compõem o regime do tráfico de pessoas não é suficiente


para dizer que elas totalizam o regime de enfrentamento. Os últimos anos vêm demonstrando o
surgimento e a disseminação de novas formas de criação de regras flexíveis ou voluntárias,
desenvolvidas por organizações intergovernamentais e atores privados, entre estes, as
organizações da sociedade civil. Como consequência, a governança do tráfico de pessoas
evoluiu de um regime centrado no estado para um regime transnacional complexo, no qual os
atores públicos e privados compartilham responsabilidades sobre várias tarefas de governança
global, incluindo compartilhamento de informações, definição de padrões de monitoramento e

474
OSCE. The critical role of civil society in combating trafficking in human beings. 2018. Disponível em:
https://www.osce.org/files/f/documents/b/3/405197_0.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
475
OSCE. Leveraging innovation to fight trafficking in human beings: a comprehensive analysis of technology
tools. 2020. Disponível em: https://www.osce.org/files/f/documents/9/6/455206_1.pdf. Acesso em: 20 jul.
2020.
476
Ibid., p. 50-58.
216

de avaliação. Nem sempre os estados estão dispostos a aceitar essa nova configuração de forças
e de criação de normas e, por isso, muitas vezes, o jogo de interesses e de poder acabam gerando
disputas de regimes, como é o caso da disputa do regime do crime versus regime migratório,
ou regime migratório versus regime do trabalho ou ainda regime migratório versus regime
direitos humanos.
É importante reforçar mais uma vez que, dada à natureza multidimensional do problema
do tráfico de pessoas - que não constitui apenas um crime, mas principalmente, uma violação
dos direitos humanos -, exige uma resposta também multidimensional e complexa, envolvendo,
muitas vezes, questões relacionadas às relações de trabalho e migração.
O conceito de Regime Internacional nasceu na década de 1970, na Teoria Política e de
Relações Internacionais. Pode-se entender por regime internacional como conjuntos de
princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisão, explícitos ou implícitos, em
torno dos quais as expectativas de atores convergem em uma dada área das relações
internacionais477, ou ainda como instituições sociais que definem práticas, atribuem papéis e
guiam a interação dos ocupantes de tais papéis em uma determinada temática 478. Esses
conceitos iniciais davam conta de estudar e abordar os regimes como entidades autônomas e
independentes. A mudança de diversas características mundiais, principalmente pós-guerra fria,
proporcionou e exigiu o aumento da cooperação entre instituições, organizações, garantindo
maior interação e vínculos normativos cada vez mais sobrepostos. Nessa perspectiva, começa-
se a estudar e identificar as interações institucionais e a complexidade decorrente desses
regimes para a política mundial479.
Em 2004, Raustiala e Victor contribuem com o conceito de regime complexo, como
“um coletivo de regimes parcialmente sobrepostos e não hierárquicos” que governam uma
determinada área de temática480. Esses autores perceberam que os regimes complexos são
cheios de inconsistências e conflitos jurídicos porque as regras em um regime raramente são
coordenadas com regras sobrepostas em regimes relacionados. Essas inconsistências, muitas
vezes, acabam exigindo interpretação da norma. Sabe-se que interpretação de norma, por

477
KRASNER, S. D. International regimes. Ithaca: Cornel University Press, 1983. p. 2.
478
YOUNG, O. R. International governance: protecting the environment in a stateless society. Ithaca: Cornell
University, 1994. p. 3.
479
Ver em: OBERTHUR, Sebastian. Regime-interplay management: lessons from environmental policy and
law. 2015. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/303518693_Regime-interplay_
Management_Lessons_from_Environmental_Policy_and_Law. Acesso em: 15 ago. 2020.
480
RAUSTIALA, K.; VICTOR, D. The regime complex for plant genetic resources. International Organization,
v. 58, p. 277-309, 2004. Disponível em: https://pages.ucsd.edu/~dgvictor/publications/
Faculty_Victor_Article_2004_Regime%20Complex_International%20Organization.pdf. Acesso em: 15 ago.
2020.
217

abranger aspectos subjetivos, pode gerar inconsistências e, em alguns casos, desviar da intenção
final ou até mesmo utilizar a interpretação que mais interesse a uns em detrimento de outros.
É fundamental pensar e compreender a complexidade o Regime Internacional do tráfico
de pessoas para arrazoar uma construção que priorize a proteção e atenção às vítimas por meio
de um enfoque em direitos.

3.5.1 Regime Internacional complexo do tráfico de pessoas

Analisando o já abordado nesta tese, ao olhar para o regime complexo do enfrentamento


ao tráfico de pessoas se percebe que ele priorizou a criminalização do crime do tráfico,
sobrepondo-se desde o princípio às normativas internacionais de direitos humanos, das
regulações de trabalho e migração481. Somado a isso, desde o Protocolo de Palermo, marco
mundial do enfrentamento ao tráfico de pessoas, o regime tem sido conduzido por um conjunto
de instituições e atores parcialmente sobrepostos e não hierárquicos482. Muitas dessas
instituições, de âmbito globais, exercem as suas competências temáticas independentes, porém
se sobrepondo, em pontos, com a temática do tráfico de pessoas.

Figura 12. Regime Complexo do Tráfico de Pessoas

Fonte: Elaboração própria, baseado no texto de Laura Gómes-Mera483.

481
EDWARDS, Alice. Traffic in human beings: at the intersection of criminal justice, human rights,
asylum/migration and labor, Denver Journal of International Law & Policy, v. 36, 2007. Disponível em:
https://digitalcommons.du.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1268&context=djilp. Acesso em: 12 ago. 2020
482
RAUSTIALA, K.; DAVID, G. Victor. The regime complex for plant genetic resources. International
Organization, v. 3, p. 148, 2004.
483
MERA, Laura Gómez. The global governance of trafficking in persons: toward a transnational regime complex.
Journal of Human Trafficking, 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/23322705.2016. 1278344.
Acesso em: 15 ago. 2020.
218

O esquema acima mostra o Regime do Tráfico de Pessoas e as suas sobreposições com


os Regimes Internacionais do Trabalho, das Migrações, do Crime Organizado e dos Direitos
Humanos484. Compreender essas sobreposições e potenciais inconsistências jurídicas auxiliam
na construção e interpretação desse regime complexo. Em função dessas inconsistências e
tentando aprofundar sobre esses achados admitindo uma outra dimensão de análise, Alter e
Meunier perceberam ainda que as sobreposições de regimes permitem que os atores estatais e
não estatais se envolvam em estratégias interinstitucionais, como “mudança de regime”,
selecionando, conforme os seus interesses, qual a melhor arena de disputa para obter os fins485.
Como visto, esses regimes sobrepostos desenvolveram diretrizes e recomendações não
vinculativas sobre a implementação de políticas de enfrentamento ao tráfico de pessoas,
destinadas principalmente aos estados486.
A descrição das normativas dispostas neste capítulo, desde o âmbito global das Nações
Unidas passando ao âmbito regional europeu e americano, indica a complexidade na densidade
e sobreposição entre as instituições internacionais legítimas na construção de normativas e
parâmetros para o enfrentamento ao tráfico de pessoas no Mundo. Essa complexidade
ultrapassa o que tradicionalmente se entende por Regimes Internacionais, e exige uma nova
forma de compreender a disposição dessas normas, o grau de cooperação e sua competição no
âmbito institucional da governança global ao tráfico.

484
Id.
485
ALTER, K.; MEUNIER, S. The politics of international regime complexity. Perspectives on Politics, v. 7, n.
1, p. 13-24, 2009. Disponível em: https://faculty.wcas.northwestern.edu/~kal438/KarenJAlter2/
International_Regime_Complexity_files/AlterMeunierComplexityPOP2009.pdf. Acesso em: 15 ago. 2020.
Ver em: BUSCH, M. Overlapping institutions, forum shopping, and dispute settlement in international trade.
International Organization, v. 61, p. 735–761, 2007. doi:10.1017/S0020818307070257. Ver em: HELFER,
L. Regime shifting: the TRIPS agreement and new dynamics of international intellectual property lawmaking.
Yale Journal of International Law, v. 29, n. 1, p. 1-83, 2004.
486
Nesse sentido, analisar-se-á a dinâmica global e interestatal, dando destaque ao papel desempenhado pelas
organizações da sociedade civil na governança do tráfico de pessoas, especialmente nos estudos de caso do
Brasil e da Espanha e, suas possíveis implicações no âmbito das ações da governança global para o
enfrentamento.
219

Figura 13. Regimes Complexos Global e Regionais

Regime Global

Regime Regional europeu Regime Regional


(União Europeia, Conselho americano (OEA,
da Europa, OCDE) Mercosul)

Fonte: elaboração própria.


Aparentemente, novos arranjos de governança, que indicam iniciativas de múltiplas
partes interessadas e parceiras, operam por meio de códigos voluntários e padrões não
vinculativos487. Essas novas iniciativas regulatórias ou estimuladoras de regulamentação
formam uma constelação descentralizada, mas cada vez mais densa e interligada de arranjos de
regulamentação privada e público-privada, valendo-se de muitas fontes de conhecimento e
contando com soft law, que envolve e complementa as estruturas regulatórias tradicionais
baseadas no Estado 488.
Nesse contexto, pode-se dizer que o regime do tráfico de pessoas evoluiu inicialmente
de um conjunto de regras centradas no Estado para um regime complexo transnacional cada
vez mais fragmentado e descentralizado. Esse regime foi sendo conduzido por uma densa
variedade de iniciativas públicas e privadas, que criaram e criam regras vinculativas e não
vinculativas (soft law) que abordam os estados, organizações intergovernamentais e atores não
estatais.
Nesse sentido, Gomez-Mera faz uma analogia interessante à tipologia de redes de
governança transnacionais desenvolvida por Andonova et al. (2017)489. A tipologia de
Andonova caracteriza as iniciativas transnacionais de governança conforme dois critérios: tipos
de atores envolvidos e as funções de governança nas quais se engajam. Nessa primeira
dimensão, distingue-se entre redes de governança pública (aquelas criadas por e para atores

487
Abbott, K., & Snidal, D. (2009a). Strengthening international regulation through transnational new governance:
Overcoming the orchestration deficit. Vanderbilt Journal of Transnational Law, 42, p. 531. Disponível em:
https://www.econstor.eu/bitstream/10419/41589/1/635597918.pdf. Acesso em: 15 ago. 2020.
488
Abbott, K., & Snidal, D. (2009a). Strengthening international regulation through transnational new governance:
Overcoming the orchestration deficit. Vanderbilt Journal of Transnational Law, 42, p.531. Disponível em:
https://www.econstor.eu/bitstream/10419/41589/1/635597918.pdf. Acesso em: 15 ago. 2020.
489
MERA, Laura Gómez. The global governance of trafficking in persons: toward a transnational regime complex,
Journal of Human Trafficking, p. 8, 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/23322705.
2016.1278344. Acesso em: 15 ago. 2020.
220

governamentais subnacionais, como cidades ou governos locais, legisladores ou juízes, assim


como organizações governamentais internacionais que atuam independentemente dos estados).
As redes privadas de governança transnacional são aquelas estabelecidas por e para atores não
estatais, em que entrariam as organizações da sociedade civil. Podem estar presentes iniciativas
de governança híbrida que envolvem a participação entre atores transnacionais públicos e
privados490. Na segunda dimensão, que retrata funções de governança, identificam-se três:
compartilhamento de informações; capacitação e implementação e definição de regras.
A atuação coordenada e cooperada é essencial porque o fenômeno do tráfico de pessoas
é muito complexo e multifacetado, não podendo ser resolvido sozinho. O regime complexo do
tráfico de pessoas se compõe da disseminação de acordos interestaduais por meio dos atores
estatais, mas também da proliferação e desenvolvimento de iniciativas transnacionais não
vinculativas que ampliaram a governança do tráfico de pessoas, internacionalmente e,
principalmente, internamente.
Compreender as formas de atuação dos atores e participantes da construção do Regime
complexo de enfrentamento ao tráfico de pessoas é importante para compreender como o jogo
de forças entre atores atua, quais escolhas de enfoque feitas e porquê e, muitas vezes, analisar
as consequências dessas atuações na construção do Regime, especialmente no atendimento e
proteção das vítimas.

3.5.2 A atuação das organizações da sociedade civil no regime complexo de enfrentamento


ao tráfico de pessoas

O Regime complexo de enfrentamento ao tráfico que vem sendo construído a partir da


perspectiva da governança global conta com a participação de diversos atores, entre eles as
organizações da sociedade civil. Mesmo sabendo que esses atores não são considerados
legítimos no campo do Direito Internacional, como os Estados e as Organizações
Internacionais, eles vêm ocupando e exercendo, cada vez mais, um papel relevante para a
construção do Regime de enfrentamento ao tráfico de pessoas, principalmente no âmbito da
atenção e prevenção. Realizar um estudo sobre o Regime complexo do Brasil e da Espanha,
especialmente a atuação desses atores não governamentais no conjunto da construção do
enfrentamento ao tráfico, permite verificar a importância, os prejuízos, os avanços e os desafios

490
Nessa perspectiva, o próximo capítulo identificará e analisará diversas modalidades de redes de governança,
apresentar-se-á várias modalidades dessas redes de governança no âmbito do Brasil e da Espanha, que atuam
no âmbito da governança para enfrentamento ao tráfico de pessoas.
221

da atuação desses atores para a construção do regime complexo do tráfico de pessoas,


principalmente mulheres, nos microssistemas brasileiro e espanhol.
No âmbito da construção do regime complexo do tráfico de pessoas, é importante
identificar e reconhecer como as estratégias das organizações intergovernamentais (OIGs), das
OSCs podem contribuir para a eficácia e o aprimoramento do Regime antitráfico, utilizando
principalmente mecanismos de cooperação. Muitas vezes guiados por valores e princípios
compartilhados, esses atores podem tirar proveito das sobreposições institucionais (sejam dos
atores globais, regionais ou internos) para trocar informações, criar e reformular questões,
difundir normas, auxiliar no desenvolvimento de instrumentos legais complementares e de
procedimentos infralegais que complementam e garantem direitos das vítimas491.
Por outro lado, conforme analisa Aradau492, algumas OSCs se utilizam dos mesmos
mecanismos de apropriação dos discursos e dos enfoques dados ao enfrentamento ao tráfico de
pessoas (securitização e criminalização das vítimas), entrando no campo institucional para
governar o tráfico de pessoas, contrariando, muitas vezes, o real interesse das vítimas e se
distanciando assim da garantia de direitos. Aradau aponta que a securitização do tráfico de
pessoas é articulada a partir de várias posições e interesses institucionais para a constituição de
um “regime de verdade”493. Para que esse regime se sustente, os atores responsáveis pela
institucionalidade do regime antitráfico criam formas particulares de conhecimento para
fabricar a ameaça que a migração representa; a partir dessa ameaça e no interesse de conter essa
migração, vão se palestrando os “pânicos morais”, primeiro pelos atores políticos, somados à
mídia e, em muitos casos, por OSCs e ativistas antitráfico.
Nesse sentido, em defesa da segurança ou de uma (in)segurança imaginária494, como as
instituições não são mais capazes de oferecer certeza e segurança, o que se pode fazer é -

491
MERA, Laura Gómez. The global governance of trafficking in persons: toward a transnational regime complex,
Journal of Human Trafficking, p. 8, 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/23322705.
2016.1278344. Acesso em: 15 ago. 2020.
492
ARADAU, Claudia. Rethinking trafficking in women, New York: Palgrave Macmillan, 2008.
493
Um regime de verdade se refere a como representações e intervenções bem-informadas sobre o tráfico de
pessoas o tornam legítimo, em função das relações de poder que o sustentam.
494
Uma vez que a própria modernidade traz, em si mesma, tempos de profundas incertezas, com poucas seguranças
e respostas: veja-se Giddens, quando explora os limites do saber, sobre a natureza do ser e a impossibilidade
de obter respostas e Bauman, argumentando sobre as condições da globalização que produzem uma incerteza
contínua, onde não se permite qualquer espaço seguro e sem risco, estimulando medo sobre ameaças e
segurança pessoa. Ver em: Giddens, Anthony. As conseqüências da modernidade. Tradução de Raul Fiker.
São Paulo: Editora UNESP, 1991. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/
pluginfile.php/4118660/mod_resource/content/1/ANTHONY%20GIDDENS%20-%20As%
20Consequencias%20da%20Modernidade.pdf. Acesso em: 20 ago. 2020. Ver em: BAUMAN, Zygmunt.
Modernidade e ambivalência. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1999.
Disponível em: https://fotografiaeteoria.files.wordpress.com/2015/05/bauman-z-modernidade-e-
ambivalencia.pdf. Acesso em: 10 abr. 2020.
222

principalmente pelos tomadores de decisões, que já não podem garantir previsibilidade,


segurança e controle- fingir o controle do incontrolável, em todas as dimensões da vida social.
Aradau analisa como as OSCs, por meio de seu prévio trabalho com temas ligados à
violência de gênero, exploração sexual foram sendo consideradas como detentoras de
conhecimento para caracterizar os perfis das vítimas de tráfico, e assim essas instituições foram
se inserindo no enfrentamento ao tráfico de pessoas, principalmente no âmbito da prevenção,
atenção e proteção das vítimas. Da análise, depreende-se uma reflexão bastante importante, e
que questiona substancialmente a atuação de muitas das OSCs: estariam estas organizações
identificando e descrevendo os perfis das mulheres vítimas de tráfico conforme a realidade que
se apresenta? Ou estimula-se a “padronização” de perfis que interessem para a caracterização
de uma mulher/vítima que seja diferente do migrante irregular e gere comoção e necessidade
de ser protegida?495.
Nessa perspectiva, aliviar o sofrimento das mulheres vítimas de tráfico foi e é defendido
e praticado por várias OSCs envolvidas em campanhas antitráfico, com a finalidade de desafiar
práticas que consideram as mulheres traficadas como migrantes ilegais e prostitutas estrangeiras
envolvidas em negócios ilícitos. O sofrimento foi incorporado irremediavelmente ao perfil das
vítimas para interromper a securitização do tráfico de pessoas, que transforma as mulheres em
outras pessoas perigosas, como migrantes ilegais, prostitutas e/ou criminosas. A utilização dos
“corpos sofridos” das mulheres deve funcionar como “indutor de solidariedade”496. Por esse
enfoque, quanto mais sofridos os corpos, mais vítimas de tráfico elas são. Se por um lado essa
intenção pode ser lida como uma estratégia de atuação na defesa das vítimas, por outro, ela
acaba por dar elementos para excluir todos os outros perfis que também devem ser protegidos
pelos estados por caracterizarem vítimas de tráfico.
Esse perfil bastante fragilizado não se encaixa em todos os perfis de vítimas de tráfico497:
nem todas as vítimas são totalmente coagidas ou enganadas, mesmo que elas nunca tivessem
imaginado as condições de exploração sob as quais teriam que trabalhar. Muitas sabiam que
estavam indo para ser prostitutas; outras foram recrutadas para trabalhar na indústria de serviços
ou entretenimento, mas forçadas a se prostituir. Ademais, muitas dessas mulheres, independente
da forma como foram levadas ao destino, acabam se tornando migrantes irregulares ou
trabalhando na prostituição, principalmente por não conseguirem acesso a outras oportunidades

495
ARADAU, Claudia. Rethinking trafficking in women. New York: Palgrave Macmillan, 2008. p. 86.
496
BOUTELLIER, Hans. The convergence of social policy and criminal justice. European Journal on Criminal
Policy and Research, v. 9, p. 361–380, 2001.
497
Os capítulos 2 e 3 já descreveram um pouco a impossibilidade de abordar um único perfil para as vítimas de
tráfico.
223

de trabalho. Essas mulheres nem sempre são vistas com os mesmos olhos que as vítimas de
tráfico que se enquadram naquele padrão estabelecido; nem sempre são vistas como
merecedoras da mesma proteção.
As ambiguidades e a impossibilidade objetiva de “medir” a dor fazem das OSCs espaços
de complementação e solidez de conhecimento para caracterizar as mulheres vítimas. De
alguma maneira, poder-se-ia considerar como esse conhecimento gera uma “categoria vítima”,
que pode ser conhecida, tratada, utilizada e instrumentalizada conforme esse conhecimento.
A crítica que pode ser feita às OSCs é a de, muitas vezes, fazer parte desse “jogo” de
construir perfis de vítimas e induzir, mesmo que inconscientemente, a exclusão daqueles perfis
que não se enquadram na “categoria vítima”, e que certamente estão sendo tratadas como
migrantes irregulares, acabando por enquadrar mulheres ao perfil que deve ser rechaçado, por
serem consideradas “perigosas”. Assim, ao invés de proteger todas as vítimas, elas estão
servindo de instrumento de exclusão de tantas outras.
Nesse sentido,
O fracasso das abordagens humanitárias é, portanto, essencialmente um
fracasso para consertar a fronteira entre quem é considerado perigoso e quem
não é considerado perigoso. Discursos alternativos encontram o limite de
práticas excepcionais - a maioria das mulheres ainda é deportada, mesmo
quando a deportação é reestilizada como "retorno voluntário". Eles também
estão sujeitos a formas de confinamento, colocadas em abrigos de reabilitação
e reintegração que pareçam mais adequados para a contenção do perigo do
que cuidar da vida das mulheres. A insegurança das mulheres é uma
construção ambígua que não anula a necessidade de estabelecer os limites do
perigo e do não perigo. Além disso, a promessa emancipatória de segurança
sempre deixa de fora outros: vítimas de tráfico que não se enquadram no
imaginário de sofrimento físico, passividade e deficiência. A insegurança das
vítimas de tráfico também deixa de fora as inseguranças de outras categorias
de pessoas que afeta imediatamente498.

Acredita-se que as OSCs de combate ao tráfico de pessoas não conseguiram desafiar o


imaginário da fronteira e sua posição de atuação como um limite entre a segurança da
comunidade interna e a insegurança que está do outro lado da fronteira. Mulheres retornando
para as suas casas em seus países de origem continuam sendo, em muitos casos, a principal

498
“The failure of humanitarian approaches is thus essentially a failure to fix the border between who counts as
dangerous and who counts as non-dangerous. Alternative discourses encounter the limit of exceptional
practices – the majority of women are still deported, even when deportation is restyled as ‘voluntary return’.
They are also subjected to forms of confinement, placed in shelters for rehabilitation and reintegration that
appear more appropriate for the containment of danger than care for the life of women. The insecurity of
women is an ambiguous construction that does not cancel the need to establish the boundaries of danger and
non-danger. Moreover, the emancipatory promise of security always leaves out particular others: victims of
trafficking who do not fit the imaginary of physical suffering, passivity and impairment. The insecurity of
victims of trafficking also leaves out the insecurities of other categories of people it immediately affects.” Ver
em: ARADAU, Claudia. Rethinking trafficking in women. New York: Palgrave Macmillan, 2008. p. 86.
224

estratégia para a qual outras práticas são ajustadas, mesmo que contra o desejo da mulher
atendida.
Em muitos casos, os direitos das mulheres traficadas significam mais vigilância de
migrantes irregulares ou requerentes de asilo. Acabam, por assim dizer, sendo
instrumentalizadas para replicar uma fronteira e um limite de “perigo”, permitindo as reflexões:
esse conhecimento e experiência sobre as vítimas de tráfico pode e está remodelando a
configuração das práticas de segurança? Há mulheres vítimas de tráfico que estão fora dessa
proteção por não configurarem esse perfil estabelecido? Criando-se uma “categoria vítima”,
estar-se-ia diante de um dispositivo de segurança, caraterizado por uma rede trançada por um
conjunto de práticas, discursos e técnicas que partem da “categoria vítima” e da formação de
conhecimentos capazes de regular e organizar quem pode e quem não pode acessar os direitos
dos estados? Estariam as vítimas disciplinando, sendo úteis à caracterização da securitização
dos estados?
Esse dispositivo de segurança possui três linhas principais: poder, conhecimento e
subjetividade. As representações e intervenções são implantadas conforme os jogos de poder, a
mobilização de saberes e a constituição de assuntos. Analisando tal dispositivo, pode-se dizer
que se trata de assumir outra teoria do poder, formatar outra chave de interpretação histórica e
avançar em direção a outra concepção do poder; neste caso, o poder de controlar a locomoção
das pessoas. Há os desejáveis e os indesejáveis. Deve-se compreender esse poder com as
estratégias em que se originam, e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo
nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais. Trata-se de uma
multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio. Enseja empregar os seus
mecanismos como chave de inteligibilidade do campo social, no qual não deve ser procurado
um ponto central, um foco único de soberania de onde partiriam formas derivadas e
descendentes. O poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a reações desiguais e
móveis, vindo de baixo: não há no princípio das relações de poder uma oposição binária e global
entre os dominadores e os dominados. As grandes dominações são efeitos hegemônicos
continuamente sustentados pela intensidade de todos os afrontamentos499.
Foucault, em sua genialidade e na construção do entendimento sobre poder, ressalta que
as relações de poder são, ao mesmo tempo, intencionais e não subjetivas, o que não quer dizer
que resulte da escolha ou da decisão de um sujeito individualmente500. Além disso, reforça que
onde há poder, há resistência. O poder tem um caráter estritamente relacional das correlações

499
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1987.
500
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
225

de poder. Os pontos de resistência estão presentes em toda a rede de poder, e comumente são
pontos de resistências móveis e transitórios, que introduzem na sociedade clivagens que se
deslocam, rompem unidades e suscitam reagrupamentos, percorrem os próprios indivíduos,
recortando-os e os remodelando, traçando neles, em seus corpos e almas, regiões irredutíveis501.
O dispositivo de segurança permite analisar como uma diversidade de atores intervém
na problematização do tráfico de pessoas e compreender o papel que muitas das OSCs
desempenham no campo dominado pelos profissionais de segurança. Como já ressaltado,
apesar de o discurso desses atores desafiarem a securitização do tráfico de pessoas, muitas vezes
eles aparecem como parceiros desse sistema, gerando o conhecimento necessário para
estabelecer padrões de pessoas que podem gerar riscos e devem ser indesejados. Porém, nem
sempre esses perfis são tão estanques e definidos502.
Aqui cabe uma reflexão: 1. as OSCs entendem que assumem mais protagonismo no
enfrentamento ao tráfico de pessoas atuando como “parceiras” (nos processos de identificação
das vítimas, no atendimento e proteção das vítimas), junto aos profissionais de segurança nessa
lógica da securitização das fronteiras? E/ou 2. encontram nesses espaços de atuação uma forma
de contribuir para o enfrentamento ao tráfico de pessoas, inclusive pela existência de, muitas
vezes, financiamento estatal para manutenção de suas atividades? E/ou entendem o seu papel
importante no enfrentamento ao tráfico de pessoas, e por isso cada vez mais se verifica o
interesse de OSCs na atuação dessa temática, fazendo um contraponto e diálogo construtivo de
política pública com as autoridades? Até que ponto as pautas e interesses próprios de cada OSC
determinam o interesse social e vocação para atuar no enfrentamento ao tráfico de pessoas?
Talvez por isso não seja à toa que o número de OSCs tenha aumentado nos últimos anos,
principalmente na Europa, onde e quando o tema tem trazido “interesse” das autoridades
estatais e europeias503. De outro lado, será que o desejo de controlar os indesejáveis não tenha
colocado o tráfico de pessoas como um tema a ser priorizado nas agendas internacionais e
internas já desde o Protocolo de Palermo, levando a uma corrida por parte dos atores internos
na mobilização pelo tema do tráfico de pessoas?
Essas reflexões/questionamentos com as quais a pesquisa depara não possuem resposta
definitiva. O que, sim, pode ser constatado é que as OSCs têm conseguido entrar no campo do

501
Id.
502
ARADAU. Claudia. Trafficking in women: human rights of human risks? Canadian Woman Studiesiles=
Cahiers de la Femme, v. 22, n. 3-4, 2003. Disponível em: https://cws.journals.yorku.ca/index.php/cws/
article/view/6413. Acesso em: 15 abr. 2020.
503
O interesse das autoridades se dá pelo entendimento da necessidade de proteção às vítimas ou pela necessidade
de controle das fronteiras, dando força à análise do dispositivo de segurança?
226

tráfico de pessoas, participando dos processos de construção de políticas (de forma mais
institucionalizada ou não) e propondo configurações de conhecimento que são úteis para a
gestão do tráfico. Também é certo que as OSCs têm construído as suas participações no
enfrentamento ao tráfico de pessoas pelo menos nestes 20 anos, desde o Protocolo de Palermo,
buscando ocupar espaços, individuais ou coletivos, institucionais ou não, na tentativa de
participar da construção das políticas públicas, proteger e atender as vítimas de tráfico de
pessoas, conforme a configuração da política pública de cada país.
A percepção que se tem como pesquisador é de que há diversas configurações de
organizações, com interesses e “egos” diversos, com vários posicionamentos sobre a
prostituição, organizações laicas e confessionais. Certamente, as suas atuações estão pautadas
conforme as suas configurações e valores. Algumas dessas OSCs, com certeza, não percebem
como funciona o dispositivo de segurança, e assim acabam sendo levadas pelo processo; outras,
percebendo ou não, querem estar à frente da atuação no atendimento, proteção e prevenção, e
acabam incorporando esse papel de “fornecedoras” de conhecimento para a configuração da
categoria de vítima a ser protegida; outras ainda acreditam que a sua atuação é importante para
a garantia do respeito aos direitos das vítimas de tráfico de pessoas.
Esse jogo de forças e de busca por espaços de poder não é simples de ser percebido. O
próprio dispositivo de segurança leva em conta esses jogos de poderes e de contraposição de
forças. Esta pesquisa não pretende descrever, identificar ou analisar as OSCs nessa perspectiva,
porém, entende ser fundamental demonstrar que uma percepção crítica da atuação das OSCs no
enfrentamento ao tráfico de pessoas.
A percepção da construção da política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas,
especialmente a realidade da Espanha e do Brasil, perpassa por como as OSCs, de forma geral,
vêm atuando, muitas vezes como um contraponto (em relação aos interesses do Estado) para a
sinalização de violências institucionais, métodos que violam direitos, ausências de normativas
e procedimentos conforme disposições internacionais globais e regionais e atores precursores
da própria política. Também permite a ponderação de possíveis debilidades e desafios da
própria atuação dessas organizações, no sentido de promover a sua reflexão crítica para uma
atuação em defesa dos direitos e interesses das vítimas de tráfico, mesmo que isso seja um
rompimento com um sistema que se auto nutre por meio do invisível dispositivo de segurança.
Para além desse debate sobre a força política desempenhada por esses atores não
governamentais, há uma discussão relevante sobre o papel ocupado por essas organizações,
principalmente aquelas que assumem papel de prestadora de serviços sociais, no âmbito da
227

apropriação das funções do Estado, como será demonstrado, principalmente, no caso da


Espanha504.
Cabe, neste momento, introduzir o conceito de “ator social” trazido por Touraine, ao
conferir importância aos sujeitos na história, definidos como agentes dinâmicos, produtores de
reivindicações e demandas. O autor defende que o mundo moderno está cada vez mais ocupado
com um sujeito que age e se reconhece como ator, com apelo à liberdade e à gestão responsável
de sua própria vida. O sujeito inventa a sociedade civil frente ao Estado, acionando a sua
capacidade de construção, invenção e também de resistências505.
Para Touraine, a democracia não se materializa unicamente no conjunto de garantias
institucionais e formais, mas representa a luta dos sujeitos, na sua cultura e liberdade, contra a
lógica dominadora existente. Nessa perspectiva, a democracia deve criar espaços para a
participação cada vez mais perceptível, e ao mesmo tempo garantir o respeito às diferenças
individuais e ao pluralismo. Assim, os movimentos sociais necessitam de contextos de relativa
abertura democrática para se desenvolverem. Dentre os movimentos sociais categorizados por
Touraine, interessa aqui a categoria que tem como objetivo a defesa dos direitos das pessoas,
especialmente mulheres506. Ao contrário das forças políticas, que possuem demandas
universalistas, os movimentos sociais geralmente reivindicam os direitos, os interesses e a
cultura de um determinado ator social e, portanto, são defensores da diversidade social e
cultural507.
Percebe-se que os estados vão retrocedendo no campo das políticas sociais, deslocando
a sua ação para setores da sociedade, “fortalecendo” o papel das OSCs como parceiras na
implementação de projetos e programas sociais numas perspectivas de flexibilização e
descentralização para o poder local, partilhando responsabilidades e custos das políticas
sociais508.
Compreender o papel das OSCs nessa redefinição do Estado e da sociedade civil, a
partir, principalmente, da década de 1990, é fundamental para estudar e compreender as
estratégicas de mobilização dessas organizações no âmbito do enfrentamento ao tráfico de
mulheres, principalmente da proteção internacional.

504
FERNANDES, R. C. Privado, porém público: o terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará, 1994.
505
TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. 9.ed. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 394.
506
TOURAINE, Allain. Palavra e sangue: política e sociedade na América Latina. São Paulo, Unicamp.1989.
507
TOURAINE, Alain, ¿Podremos vivir juntos? Iguales y diferentes. Madrid: PPC Editorial, 1997.
508
[...] O modelo neoliberal da Boa Governança, termo utilizado pelo Consenso de Washington, propõe que a
propriedade será gerada pelo relacionamento orgânico e interdependente da economia de mercado, do Estado
e da sociedade civil. Ver em: SZAZI, Eduardo. Terceiro setor: regulação no Brasil. São Paulo: Peirópolis,
2001.
228

Importante destacar como as Organizações Internacionais têm valorizado a importância


do labor desses atores para o fortalecimento do desenvolvimento sustentável509, ressaltando o
valor de sua variada experiência, conhecimentos especializados e capacidade de ação para o
exame e implementação do desenvolvimento sustentável de forma ampla.
Sob esse enfoque, é importante pontuar que a sociedade civil tem se mostrado
fundamental na elaboração e continuidade das políticas públicas, seja por levar ao Estado as
demandas, seja por expor à opinião pública a necessidade de atendimento de suas demandas,
seja por expor as falhas e virtudes na realização das políticas públicas, seja pela sua própria
atuação. “Na prática, o que ocorre é que derrubados os muros altos que separavam a
Administração Pública da sociedade, esta passa a participar da concepção, da decisão e da
implementação das políticas públicas.”510.
No âmbito do enfrentamento ao tráfico de pessoas, como visto, a ONU, a UE e o
Conselho da Europa destacam, entre eles a Relatoria Especial do Tráfico de Pessoas, a
necessidade de envolver a sociedade civil em todas as áreas de enfrentamento, dentre as quais:
1.Desenvolvimento de políticas e legislação; 2.Prevenção, incluindo campanhas de informação
e outras intervenções de conscientização; 3.Identificação das vítimas de tráfico de pessoas;
4.Proteção das vítimas de tráfico de pessoas, incluindo um amplo escopo de serviços de apoio,
até mesmo durante processos criminais; e 5.Treinamento e capacitação para todas as partes
interessadas relevantes no combate ao tráfico.
Mas quem são essas Organizações da Sociedade Civil (OSCs)? Embora o discurso
político ofereça muitos termos usados de maneira intercambiável, ainda não existe uma
definição distinta universalmente aceita. Por exemplo, a ONU se refere à sociedade civil como
o "terceiro setor", enquanto a Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia oferece
uma terminologia que destaca tanto a função da sociedade civil como de controle em relação
às instituições estatais, incluindo governo e parlamento, e como parte integrante de uma
sociedade pluralista:

509
ONU. Agenda 21 Global. Cap. 27: Fortalecimento do papel das organizações não governamentais: parceiros
para um desenvolvimento sustentável. Disponível em: https://www.mma.gov.br/responsabilidade-
socioambiental/agenda-21/agenda-21-global. Acesso em: 1 abr. 2019.
510
PEREZ, Marcos Augusto. A participação da sociedade na formulação, decisão e execução das políticas
públicas. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São
Paulo: Saraiva, 2006. p. 171.
229

as organizações da sociedade civil ajudam a ‘dar voz’ às pessoas sobre


questões que lhes são importantes, ajudam os detentores de direitos,
monitoram as atividades dos governos e parlamentos, dão aconselhamento aos
formuladores de políticas e responsabilizar as autoridades por suas ações511.

O espaço da sociedade civil é o lugar que os atores da sociedade civil ocupam


dentro da sociedade; o ambiente e estrutura em que sociedade civil opera; e as
relações entre civis atores da sociedade, do Estado, do setor privado e do setor
público512.

A Organização para Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE) indica que, embora


exista um reconhecimento bem-documentado da sociedade civil como uma pedra angular das
instituições e procedimentos democráticos em toda a área da OSCE, a definição do conceito de
sociedade civil coloca certos desafios. Nessa perspectiva, é fundamental verificar o alcance
amplo e diverso da sociedade civil, que inclui não apenas órgãos formalmente constituídos, mas
também movimentos sociais. Isso se reflete em uma declaração política do Parlamento da UE:
“como a esfera da associação não coercitiva entre o nível individual e o estatal. Essa definição
abrange ONGs formalmente organizadas, movimentos sociais mais vagamente estruturados e
ativistas individuais.”513.
No âmbito dos estados que participam da OSCE, há uma ampla variedade de formas
que criam o ambiente regulatório para a caracterização da sociedade civil. Embora cada Estado
estabeleça internamente os seus requisitos legais, verificou-se os seguintes princípios
amplamente aplicáveis na maioria dos Estados Participantes da OSCE514: 1. As OSCs
registradas precisam ter uma estrutura transparente, em termos de gerenciamento de finanças e
procedimentos de tomada de decisão; 2. Os Estados precisam direcionar as suas atividades para
o bem-estar social comum ou para a proteção dos direitos humanos e dos valores democráticos,
sem ter interesse no lucro financeiro; e 3. Parte de seu trabalho deve ser baseada na
voluntariedade, por exemplo, o trabalho dos membros do conselho.
Especificamente na Espanha, o Terceiro Setor de Ação Social (TSAS) é a área formada
pelas entidades privadas, voluntárias e sem fins lucrativos que, decorrentes de livre iniciativa
cidadã, funcionam de forma autônoma e solidária para, através de ações de interesse geral,

511
THE EUROPEAN UNION AGENCY FOR FUNDAMENTAL RIGHTS. Challenges facing civil society
organisations working on human rights in the UE. 2017. p. 13. Disponível em: https://fra.europa.eu/sites/
default/files/fra_uploads/fra-2018-challenges-facing-civil-society_en.pdf. Acesso em: 15 set. 2020.
512
Id.
513
EUROPEAN PARLIAMENT. Directorate-General for External Policies. Policy Department, Shrinking space
for civil society: the UE response. 2017. p. 8. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/RegData/
etudes/STUD/2017/578039/EXPO_STU(2017)578039_EN.pdf. Acesso em: 15 set. 2020.
514
OSCE. The critical roel of civil society in combating trafficking in human beings. 2018. Disponível em:
https://www.osce.org/secretariat/405197. Acesso em: 10 out. 2020.
230

promover o reconhecimento e o exercício dos direitos sociais para alcançar a coesão e inclusão
social em todas as suas dimensões e prevenir que certos grupos sociais sejam excluídos de
níveis suficientes de bem-estar515. Trata-se de um setor consolidado, com dimensões muito
semelhantes às de outros países vizinhos da Espanha, e que experimentou crescimento muito
significativo, especialmente nas últimas duas décadas, principalmente vinculado ao
desenvolvimento da sociedade civil na Espanha. Percebe-se que esse setor ocupa um papel
importante na sociedade espanhola, não apenas na prestação de suporte e atendimento às
pessoas mais vulneráveis, mas como canal de participação das pessoas e ator-chave no design
e construção de políticas sociais, especialmente na área de serviços sociais. O crescimento
significativo das OSCs e ou seu papel ativo em relatar e atender às necessidades e problemas
sociais contribuíram para tornar antigos e novos riscos sociais mais visíveis, na medida em que
estes excederam a capacidade e o alcance do Estado de Bem-Estar Social516.
Especificamente na Espanha, são consideradas organizações da sociedade civil517:
Artigo 2.
1. As entidades do Terceiro Setor de Ação Social são aquelas organizações de
privado, decorrente do cidadão ou da iniciativa social, sob diferentes
modalidades, que respondem a critérios de solidariedade e participação social,
para fins de interesse geral e ausência de lucro, que promovem o
reconhecimento e exercício de direitos civis, bem como os direitos
econômicos, sociais ou culturais de
pessoas e grupos que sofrem de condições vulneráveis ou que estão em risco
de exclusão social.
2. De qualquer forma, as entidades do Terceiro Setor de Ação Social são as
associações, fundações, bem como as federações ou associações que as
integram, desde que cumprir as disposições desta Lei. Para a representação e
defesa de seus interesses de maneira mais efetiva e de acordo com a Lei
Orgânica 1/2002, de 22 de março, que regulamenta direito de associação e
com seus regulamentos específicos, as entidades do Terceiro Setor de A Ação
Social pode formar associações ou federações que, por sua vez, podem ser
agrupadas cada.

Apesar da legislação espanhola não estabelecer critérios objetivos e legais que indiquem
quais organizações da sociedade civil espanholas devem ser consideradas especializadas em
tráfico de pessoas e mensurem o grau e especialidade destas organizações, principalmente para

515
MINISTERIO DE SANIDAD, SERVICIOS SOCIALES E IGUALDAD. II Plan Estratégico del Tercer
Sector de Acción Social, 2013-2016. p. 19. Disponível em: https://www.mscbs.gob.es/ssi/familiasInfancia/
ongVoluntariado/docs/Plan-Estrategico-TS.pdf. Acesso em: 15 set. 2020.
516
PLATAFORMA DE ONG DE ACCIÓN SOCIAL. El Tercer Sector de Acción Social en España 2019:
nuevos horizontes para un nuevo contexto sociopolítico. 2020. p.10. Disponível em: https://www.
plataformaong.org/ARCHIVO/documentos/biblioteca/1583424466_informe-poas-completo.pdf. Acesso em:
15 fev. 2020.
517
Ver em: BOE. Ley 43/2015, de 9 de octubre, del Tercer Sector de Acción Social. Disponível em:
https://www.boe.es/buscar/pdf/2015/BOE-A-2015-10922-consolidado.pdf. Acesso em: 15 out. 2020.
231

fins de exploração sexual, editais de prestação de serviços de atenção, acolhida e proteção, do


Ministério da Igualdade, estabelecem os seguintes critérios:
pessoas jurídicas sem fins lucrativos cujos estatutos indiquem, entre os seus
fins e objetivos, a proteção, assistência ou assistência laboral, educativa,
informativa, médica, jurídica ou psicológica a pessoas vítimas de tráfico para
efeitos de exploração sexual ou comprovar com credibilidade experiência no
desenvolvimento e implementação de projetos para atender este grupo518.

As bases desses editais estabelecem uma série de documentos que permitam as


comprovações exigidas.
No Brasil, como rapidamente destacado anteriormente, são consideradas OSCs,
conforme o Marco Regulador Organização Sociedade Civil (MROSC):519

Artigo 2º
I - Organização da sociedade civil:
a) entidade privada sem fins lucrativos que não distribua entre os seus sócios
ou associados, conselheiros, diretores, empregados, doadores ou terceiros
eventuais resultados, sobras, excedentes operacionais, brutos ou líquidos,
dividendos, isenções de qualquer natureza, participações ou parcelas do seu
patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, e que os
aplique integralmente na consecução do respectivo objeto social, de forma
imediata ou por meio da constituição de fundo patrimonial ou fundo de
reserva;
b) as sociedades cooperativas previstas na Lei no 9.867, de 10 de novembro
de 1999; as integradas por pessoas em situação de risco ou vulnerabilidade
pessoal ou social; as alcançadas por programas e ações de combate à pobreza
e de geração de trabalho e renda; as voltadas para fomento, educação e
capacitação de trabalhadores rurais ou capacitação de agentes de assistência
técnica e extensão rural; e as capacitadas para execução de atividades ou de
projetos de interesse público e de cunho social.
c) as organizações religiosas que se dediquem a atividades ou a projetos de
interesse público e de cunho social distintas das destinadas a fins
exclusivamente religiosos.

Falava-se do Regime Complexo, e se mencionava a atuação de cada um dos atores no


enfrentamento ao tráfico de pessoas. As OSCs atuam principalmente de forma cooperativa, e
podem compensar as repercussões negativas das instituições que se sobrepõem 520, das
normativas que ainda não garantem os direitos das vítimas violados de forma completa, e as

518
MINISTERIO DE LA IGUALDAD. Delegación del Gobierno contra la Violéncia de Género. Subvenciones
“Trata de Mujeres y Niñas con fines de explotación sexual”. Disponível em: https://violenciagenero.
igualdad.gob.es/otrasFormas/trata/subvenciones/home.htm. Acesso em: 15 out. 2020.
519
Ver em: BRASIL. Conceito de sociedade civil organizada: marco regulador organização sociedade civil.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13019.htm. Acesso em: 20
nov. 2019.
520
Como, por exemplo, quando atores da sociedade civil se articulam e cooperam para retornar uma vítima de
tráfico de pessoas, mesmo que os Estados (tanto de origem como de destino) não participem de forma
institucional e, essa cooperação permita que as falhas no retorno, que é responsabilidade dos Estados, não viole
ainda mais os direitos da vítima retornada.
232

consequências do comportamento não cooperativo dos estados dentro do regime complexo521.


Nesse sentido, o impacto da complexidade do regime na governança global depende da
interação entre repercussões sistêmicas e dos tipos de estratégias seguidas por atores estatais e
não estatais em regimes sobrepostos522.
Reforça-se que a governança é uma configuração pela qual se tenta produzir resultados
eficazes para a sustentabilidade das relações, na qual a ordenação somente funciona se for aceita
pela maioria dos atores envolvidos. O consenso das decisões é uma das características mais
importantes e interessantes garantidas pela governança. É claro que as instâncias
governamentais nem sempre utilizam o consenso para estabelecer as suas diretrizes, que muitas
vezes também vêm impostas ou direcionadas por interesses globais. Porém, a participação das
OSCs tem ocupado, por meio da pressão e da participação em espaços institucionais de
participação523 e, em outros casos, espaços criados informalmente para articulação,
monitoramento e criação de propostas de ações e políticas no enfrentamento ao tráfico de
pessoas524.
As OSCs têm atuado em diversas frentes no enfrentamento ao tráfico de pessoas. Esses
atores têm emergido como protagonistas na proteção e assistência das vítimas de tráfico,
desempenhando medidas tanto internas como internacionais (identificação, proteção, atenção,
advocacy, lobbying, cooperação, entre outras). A construção do enfrentamento ao tráfico de
pessoas está sendo promovida e tensionada pelas OSCs e pelas redes por elas criadas ou das
quais participam.
A caracterização da governança global, dentro do novo paradigma da “sociedade
global”, é fundamental para compreender a passagem de lógicas de poder. De um lado, está a
lógica tradicional do Estado soberano, único e absoluto, ator legítimo a exercer o poder, tanto
no plano nacional quanto no internacional; de outro, surge a lógica das várias esferas de poder,
transnacional e supranacional, que se exercem, muitas vezes, simultaneamente. Nessa nova
configuração, o poder é exercido entre Estados e outros atores e se tornam necessárias novas
instituições, caracterizadas por regimes internacionais.

521
MERA, Laura Gómez. The global governance of trafficking in persons: toward a transnational regime complex.
Journal of Human Trafficking, 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/23322705.2016. 1278344.
Acesso em: 15 ago. 2020.
522
Aqui se poderia levar em conta os Regimes Refugio, Migratório, Tráfico de Pessoas, Direitos Humanos etc.
523
Veja-se o caso da CONATRAP (Brasil) e do Fórum contra o tráfico de pessoas (Espanha).
524
Internamente, na Espanha, pode-se mencionar: Rede Espanhola contra la Trata de Personas, Red Gallega contra
la Trata de Personas e Red Catalana contra la Trata de Personas. Outra experiência interessante é a rede de
OSCs localizadas em diversos países, denominada Aliança Global Contra o Tráfico de Mulheres (GAATW),
rede de mais de 80 OSCs de todas as regiões do mundo, que compartilham uma profunda preocupação com
mulheres, crianças e homens cujos direitos humanos foram violados pelo tráfico de pessoas.
233

A governança global surge independentemente das atividades dos Estados: “ela se


distingue também pela existência de uma infinidade de atores, muitos deles não estatais, que
contam com suas próprias estruturas e processos de decisão.”525. A ideia de governança
compreende a construção de regras que possam contribuir para a solução de conflitos e
promover a cooperação entre vários atores526. Refere-se à emergência e reconhecimento de
princípios, normas, regras e procedimentos, que tanto provêm padrões aceitáveis de
comportamento público como são seguidos suficientemente para produzir regularidades
comportamentais527. A governança apresenta algumas características: a) Seu caráter
instrumental, o que significa que ela é um meio, instrumento, ferramenta capaz de produzir
resultados eficazes diante de problemas e desafios globais; b) A participação ampliada nos
processos de decisão, envolvendo tanto a dimensão estatal quanto organizações internacionais,
empresas transnacionais e OSCs; c) A busca do consenso e da persuasão nas relações e ações,
muito mais do que a coerção e a obrigação de cumprir; e d) Sua dimensão institucional, ou seja,
sua relação com arranjos de natureza institucional, na medida em que a construção da
governança envolve o estabelecimento e operação de regras, as instituições sociais capazes de
designar papeis e guiar a interação de agentes, facilitar a cooperação e diminuir os problemas
de ação coletiva num mundo cada vez mais interdependente528.
Contudo, a governança é um sistema democrático de leis e instituições (formais ou
informais) que vão garantir a opinião e a igualdade perante a lei. O progresso está, portanto,
ligado à regulação estabelecida por mecanismos de consenso democrático, traduzida em
instrumentos normativos capazes de assegurar a concórdia e a paz.
Internamente, a cooperação dos Estados com as OSCs pode assumir múltiplas formas e
exibir vários graus de formalização. O grau de envolvimento dessas organizações varia de país
para país. Uma dessas formas é envolver as OSCs e promover a sua participação nos processos
de elaboração de leis e políticas liderados pelas autoridades públicas; também podem participar
da elaboração de planos de ação nacionais. Há países que reconhecem as OSCs como membros
de pleno direito na construção das políticas públicas; em outros países, elas desempenham um
papel consultivo ou como observadoras. A forma e as modalidades de participação e

525
MATIAS, Eduardo Felipe P. A humanidade e suas fronteiras: do Estado soberano à sociedade global. São
Paulo: Paz e Terra, 2005. p. 462.
526
GONÇALVES, Alcindo. Governança global. In: GONÇALVES, Alcindo; COSTA, José Augusto Fontoura.
Governança global e regimes internacionais. São Paulo: Almedina, 2011.
527
KEOHANNE, Robert O.; NYE JR, Joseph S. Introduction. In: NYE, Joseph S.; DONAUHE, John D. (ed.).
Governance in a globalizing world. Washington, DC: Brooking Press, 2000. p. 12.
528
YOUNG, Oran R. International governance: protecting the environment in a stateless society. Ithaca: Cornell
University Press, 1994. p. 15.
234

engajamento afetam consideravelmente a sua capacidade de contribuir de maneira


significativa529.
Embora as estruturas formalizadas de cooperação entre governos e OSCs permitam um
papel consideravelmente maior dos representantes da sociedade civil na área de revisão e
implementação de políticas, algumas OSCs relataram que nem sempre essa cooperação é fácil
e transparente. Às vezes, as contribuições desses atores aos documentos de política não são
levadas em conta, e seguem uma mera formalidade; outras vezes, os prazos dados para uma
devolutiva de consulta feita são curtos. Relatam ainda a falta de transparência na seleção
relacionada à participação nos quadros formalizados de cooperação, na participação de eventos
ou reuniões relevantes, e falta de transparência quanto à existência de recursos ou à falta de
garantia de financiamento para implementar medidas concretas dos planos de ação nacionais.
Muitas vezes, as OSCs estabelecem as suas próprias plataformas ou Redes da sociedade
civil para desenvolver ações conjuntas, como advocacia conjunta, campanhas comuns,
intervenções conjuntas e projetos comuns, além de iniciar pesquisas, atividades destinadas a
desenvolver estratégias comuns e influenciar políticas e leis530.
Interessante notar que o grupo de peritos GRETA (Conselho da Europa) mantém um
diálogo regular com a sociedade civil dos países do Conselho da Europa. No caso da Espanha,
durante as fases de avaliação da Convenção de Varsóvia, o GRETA inicia o seu trabalho de
avaliação em uma reunião com OSCs, o que enriquece o diálogo anteriormente à visita das
instituições governamentais531.
O engajamento da sociedade civil no enfrentamento ao tráfico de pessoas precisa ser
entendido dentro de um processo mais amplo de fortalecimento das instituições democráticas e
do Estado de direito. Nesse sentido, é necessário envolvimento significativo das OSCs em todas
as funções de enfrentamento.

529
OSCE. The critical role of civil society in combating trafficking in human beings. 2018. Disponível em:
https://www.osce.org/files/f/documents/b/3/405197_0.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
530
Podem ser consideradas a experiência tanto das OSCs da Espanha e do Brasil: Red Contra la Trata de Personas,
Plataforma europeia contra o tráfico de pessoas, Coletivo pessoas migrantes Europa Leste America Latina,
RENATE – Red religiosa europeia, COADNET (Redes Católicas), Rede Intereclesial contra o tráfico, Global
Alliance Against Traffic in Women (GAATW), Coalition Against Trafficking in Women (CATW) e outras
redes de OSCs que serão descritas no caso de estudo da Espanha.
531
A Espanha passa, entre setembro/2020 e junho/2021, pelo processo de monitoramento do Convênio de Varsóvia
(Conselho da Europa). As OSCs já foram ouvidas por meio da Red Española contra la Trata de Personas
(informação obtida por meio de entrevista). PROYECTO ESPERANZA. GRETA recuerda que España debe
seguir combatiendo todas las formas de trata. Disponível em: https://www. proyectoesperanza.org/greta-
recuerda-que-espana-debe-seguir-combatiendo-todas-las-formas-de-trata/. Acesso em: 15 set. 2020.
235

3.5.2.1 As redes Global Alliance Against Traffic in Women (GAATW) e Coalition Against
Trafficking in Women (CATW)

Uma das formas de cooperação e organização que as OSCs utilizam para fortalecimento,
coordenação e atuação é se estabelecer em redes. Existem muitas redes de OSCs que têm como
temática o enfrentamento ao tráfico de pessoas. Procurou-se trazer e descrever essas duas redes
pois elas, apesar de terem a temática do tráfico como tema central, cada uma tem um olhar
diferente sobre o fenômeno, a prostituição e a exploração das pessoas. Essas posições acabam
por direcionar a sua atuação.
Nos anos 1990, as mudanças políticas, econômicas e sociais mundiais estimularam o
debate sobre o tráfico de pessoas, principalmente por pressão de OSCs e movimentos
feministas, aprofundando o debate sobre a prostituição. Redes de organizações, como a
Coalition Against Trafficking in Women (CATW) e a Global Alliance Against Traffic in Women
(GAATW), com posicionamentos diferentes, vieram a influenciar o desenho das políticas de
enfrentamento ao tráfico, e a prostituição se tornou um ponto de tensão no interior do debate.
A organização não governamental Coalition Against Trafficking in Women (CATW)
surge, em 1993, como a primeira organização no mundo a enfrentar o tráfico internacional de
pessoas e a exploração sexual comercial de mulheres e crianças em todo o mundo. É a primeira
rede mundial para lutar contra o tráfico de pessoas em nível internacional, com uma linha
abolicionista. O objetivo da CATW é se envolver na defesa, educação, serviços às vítimas e
programas de prevenção para as vítimas do tráfico e da prostituição na Ásia, África, América
Latina, Europa e América do Norte532. A perspectiva da rede é de que a prostituição deve ser
entendida como um mal, uma violência de gênero e dos direitos humanos.
De outro lado, a Rede Global Alliance Against Traffic in Women (GAATW) é composta
por organizações da sociedade civil de todas as regiões do mundo, que compartilham uma
profunda preocupação pelas mulheres, crianças e homens cujos direitos humanos foram
violados pelo tráfico de pessoas. A GAATW está empenhada em trabalhar por mudanças nos
sistemas e estruturas políticas, econômicas, sociais e legais que contribuem para a persistência
do tráfico de pessoas e outras violações de direitos humanos, no contexto de movimentos
migratórios para diversas finalidades, incluindo segurança do trabalho e subsistência.
Em particular, a GAATW aborda as diversas questões decorrentes do tráfico de pessoas,
conforme atualmente definido no Protocolo de Palermo. Nesse contexto, trata dos aspectos
centrais do tráfico de pessoas: trabalho forçado e serviços em todos os setores da economia

532
CATW. Site oficial. Disponível em: https://catwinternational.org/about/. Acesso em: 15 out. 2020.
236

formal e informal, bem como a organização pública e privada do trabalho. É uma rede
apartidária, independente de governos, questões comerciais ou afiliações religiosas. No entanto,
os seus membros são autônomos e livres para entrar em afiliações de sua escolha, desde que
não sejam contraditórios aos Princípios Básicos do GAATW.
A missão da GAATW consiste em garantir que os direitos humanos das mulheres
imigrantes sejam respeitados e protegidos pelas autoridades e agências internacionais. Almejam
a incorporação dos padrões de direitos humanos previstos nos Tratados de Direitos Humanos,
principalmente os da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional
e o seu protocolo adicional contra o tráfico de pessoas, principalmente mulheres e crianças.
A GAATW foi fundada em 1994, na conferência de Chiang Mai, Tailândia em que os
participantes estavam preocupados com o discurso e ativismo construídos em torno do tráfico
de mulheres. A aliança nasceu de uma decisão coletiva de entender os elementos do tráfico sob
a perspectiva de direitos humanos, a fim de melhorar a vida das mulheres traficadas (GAATW,
2016).
Mesmo que não se pretenda tomar posicionamento sobre nenhuma das duas redes
descritas, entende-se importante dizer que, certamente, os seus posicionamentos, trazidos e
construídos pelas OSCs que as integram, repercutem na atuação interna de cada Estado.
Os estudos de caso de governança do Brasil e da Espanha para o enfrentamento ao
tráfico de pessoas que serão desenvolvidos nos próximos capítulos, parecem oportunos para
verificar, em duas práticas distintas, como se articulam os atores e que espaços institucionais
ou não são ocupados na construção desse Regime complexo, desde perspectivas mais micro
(estatais), até identificação, proteção das vítimas, mapeamento do tráfico e monitoramento.
Se este capítulo apresentou a configuração do regime complexo do tráfico de pessoas
dando ênfase nas mulheres, apontando os principais atores interestatais e o seu corpo normativo
e recomendativo, nos próximos capítulos (4 e 5) serão descritos os regimes complexos do Brasil
e da Espanha.
237

PARTE 2
ESTUDOS DE CASOS BRASIL E ESPANHA
238

CAPÍTULO 4 - O BRASIL E O REGIME COMPLEXO DO TRÁFICO DE PESSOAS,


EM ESPECIAL DE MULHERES

A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que


encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a
nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a
minha pele. Preto é o lugar onde eu moro. Carolina de Jesus
(Quarto de Despejo, 1960).

A partir do capítulo quatro, tem início a segunda parte desta Tese, que abrange os dois
estudos de casos: os Regimes Complexos do tráfico de pessoas no Brasil e na Espanha, como
forma de ilustrar as hipóteses formuladas na tese.
Nesse sentido, este capítulo tem a finalidade de identificar como o regime Internacional
complexo de Enfrentamento ao tráfico de pessoas foi sendo incorporado internamente pelo
Brasil e como se encontra nesse momento.
Trata-se de um olhar sobre um processo em construção. A intenção não é comparar os
dois modelos, no sentido de valorar se um é melhor que outro, até porque não é possível valorar
enfrentamentos diferentes, conformação de políticas públicas diversas. Pretende-se
compreender como esses dois países foram encontrando, no jogo de forças dos atores atuantes
na temática, principalmente governamentais e da sociedade civil, caminhos para o
enfrentamento ao tráfico de pessoas e, se esses estados estão no caminho da construção de um
enfrentamento ao tráfico de pessoas, especialmente no que tange a atenção e proteção às
vítimas, com enfoque em direitos humanos.
O olhar sobre o processo de construção desse regime internamente também possibilita
identificar e perceber a participação das organizações da sociedade civil em cada um desses
Estados e descrever como esses atores pressionam, articulam, monitoram, atendem e promovem
a proteção das vítimas, às vezes em parceria com Poder Público, às vezes, pressionando para
que a atenção seja prestada pelo próprio Estado. A atuação dessas organizações também recebe
diversas críticas, o que será incorporado na análise.
Conforme já indicado no problema de pesquisa, entre outros aspectos, a escolha do
Brasil e da Espanha se dá pela diversidade de modelos adotados para a atenção e proteção das
vítimas e porque na Espanha encontram-se diversas vítimas de tráfico brasileiras, o que permite
uma análise da atuação das redes de atores internas, tanto do Brasil como da Espanha e numa
perspectiva de articulação internacional, principalmente quando se fala do retorno dessas
vítimas ao Brasil.
239

4.1 A Internalização do Tráfico de Pessoas pelos Estados Nacionais: o caso Brasil

Já foram abordadas as normativas internacionais que desde 2000 estimularam os países


a aderirem à Convenção contra o Crime Transnacional e seus protocolos adicionais, entre eles
o Protocolo de Palermo. A adesão do Estado o obriga a internalizar aqueles preceitos à sua
realidade interna, exigindo a adaptação de sua legislação interna, a criação de políticas públicas
seja para a responsabilização dos agentes, prevenção e para a atenção e proteção das vítimas.
Nesse sentido, é importante pensar em políticas públicas como uma forma de concretizar
direitos humanos, principalmente direitos sociais533. Por políticas públicas pode-se entender
como um conjunto de programas e de ações governamentais estáveis no tempo, moldadas de
forma relacional, implementadas e avaliadas, dirigidas à realização de direitos e de objetivos
social e juridicamente relevantes, notadamente plasmados na distribuição e redistribuição de
bens e posições que concretizem oportunidades para cada pessoa viver com dignidade e exercer
seus direitos, assegurando-lhe recursos e condições para a ação, assim como a liberdade de
escolha para fazer uso desses recursos534. Deve-se levar em conta a importância da
implementação da política pública como sendo um processo complexo que envolve interação
entre diversos atores, cada qual com seus valores, crenças, ideias, gerando disputas nesse campo
em construção535. À medida que o conteúdo jurídico da dignidade humana amplia-se conforme
novos direitos vão sendo reconhecidos e agregados ao rol dos direitos fundamentais, a garantia
de tais direitos torna-se cada vez mais uma questão complexa, que exige maior atuação do
Estado e maior aparato de garantias536 Pensar o enfrentamento ao tráfico de pessoas nessa
perspectiva exige uma opção política pela construção de direitos e pelo respeito às pessoas
vítimas acima de qualquer outro interesse ou enfoque.

533
BUCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In: BUCI, Maria Paula Dallari (org.).
Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 01-49.
534
MASSA-ARZABE, Patrícia Helena. Dimensão jurídica das políticas públicas. In: BUCCI, Maria Paula Dallari
(org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 01-49.
535
FREY, Klaus. Políticas públicas: um debate conceitual e reflexões referentes à prática da análise de políticas
públicas no Brasil. Planejamento e Políticas Públicas, Brasília, DF, n. 21, p. 211-260, jun. 2000. Disponível
em: http://www.ipea.gov.br/ppp/index.php/PPP/article/viewFile/89/158. Acesso em: 18 set. 2020. Ver em:
LOTTA, Gabriela Spanghero. Implementação de políticas públicas: o impacto dos fatores relacionais e
organizacionais sobre a atuação dos burocratas de nível de rua no Programa Saúde da Família. Tese
(Doutorado) - Universidade de São Paulo, 2012. Disponível em: https://gabrielaslotta.files.wordpress.com/
2012/09/tese-doutorado-gabriela-lotta.pdf. Acesso em: 12 out. 2020. Ver em: LOTTA, Gabriela (org.). Teorias
e análises sobre implementação de políticas públicas no Brasil. ENAP, 2019. Disponível em:
https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/4162/1/Livro_Teorias%20e%20An%C3%A1lises%20sobre%20I
mplementa%C3%A7%C3%A3o%20de%20Pol%C3%ADticas%20P%C3%BAblicas%20no%20Brasil.pdf.
Acesso em: 15 nov. 2020.
536
BUCCI, Maria Paula Dallari. Buscando um conceito de políticas públicas para a concretização dos direitos
humanos. In: BUCCI, Maria Paula Dallari et al. Direitos humanos e políticas públicas. Cadernos Polis, São
Paulo, 2001.
240

Sob tal enfoque, o horizonte nesta pesquisa é o de analisar se o Brasil e a Espanha estão
no caminho da construção do enfrentamento ao tráfico de pessoas sob a perspectiva do enfoque
em direitos e, consequentemente, da priorização das pessoas, neste caso, das mulheres vítimas
de tráfico.
Inicia-se com a descrição e análise crítica do regime complexo de governança do Brasil
para o enfrentamento ao tráfico de pessoas e, posteriormente, da Espanha.

4.1.1 O Regime complexo de governança do Brasil para o enfrentamento ao tráfico de


pessoas, em especial mulheres

O fenômeno do tráfico de pessoas no Brasil passou a ser percebido inicialmente pelas


organizações da sociedade civil de defesa dos direitos da criança e adolescente que vinham
intuindo, através de sua atuação no enfrentamento à exploração sexual, um fenômeno que
estava atingindo mulheres, crianças e adolescentes, mas que apresentava características
diversas da exploração sexual e que necessitava de uma atuação governamental537.
Em 2002, ainda antes da ratificação do Protocolo de Palermo pelo Brasil, a Pesquisa
sobre o Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual no Brasil
–(PESTRAF), visibilizou de forma nacional a problemática e estimulou a procura por respostas
institucionais para o enfrentamento desse fenômeno 538. Considera-se uma pesquisa precursora
da necessidade da ratificação do Protocolo de Palermo e da criação da política pública brasileira
nesse campo. Nesse sentido, é importante perceber a importância da atuação das OCSs e a
capacidade de identificação de um fenômeno que parecia novo naquele momento. Esse é um
dos aspectos que devem ser valorizados na atuação das OSCs no Brasil.
A PESTRAF foi um dos pontos de partida para os trabalhos da Comissão Parlamentar
Mista de Inquérito (CPMI) do Congresso Nacional no decorrer de 2003 e 2004. Por sua vez, a
Frente Parlamentar dos Direitos da Criança e do Adolescente imprimiu um esforço concentrado
na criação de uma Rede Nacional pela Infância e Adolescência, em 2005, na perspectiva de
disseminar a criação de Frentes Parlamentares similares em cada Assembleia Legislativa

537
BENDELAC, Leticia; TERESI, Verônica Maria. La trata de mujeres en Brasil: análisis sobre los principales
aspectos de la política pública nacional de combate a la trata de personas. 2015. p. 12-26. (Cadernos Temáticos
sobre Tráfico de Pessoas: V. 5) Ver também: LEAL, Maria Lúcia Pinto. A Mobilização das ONGs no
Enfrentamento da Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes. 1. ed. Brasília: Editora UnB,
2014. v. 1. 388p. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/article/view/12869. Acesso
em: 15 agosto. 2020.
538
PESTRAF. Pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes brasileiras para fins de exploração
sexual no Brasil. Disponível em: http://www.andi.org.br/sites/default/files/legislacao/ Pestraf_2002.pdf.
Acesso em: 1 mar. 2020.
241

(estadual) e em cada Câmara Municipal dos municípios brasileiros. Naquele ano, a Frente
Parlamentar lançou o Manual de Formação e Ação de Frentes Parlamentares em defesa dos
Direitos da Criança e Adolescente e iniciou uma mobilização intensa dos congressistas para
aprovação de matérias legais que garantissem o enfrentamento de todas as formas de violência
contra crianças e adolescentes, principalmente a exploração sexual.
A partir desse momento percebeu-se que o Brasil era um país de origem, uma vez que
vítimas de tráfico brasileiras são encontradas em outros países 539, de trânsito e de destino de
vítimas. Verificou-se a necessidade de implementação de políticas públicas fundamentais para
o enfrentamento desse crime com dimensões transnacionais.
Percebe-se que, talvez em função da atuação provocativa e instigadora das organizações
da sociedade civil, principalmente do âmbito do enfrentamento à exploração sexual contra
crianças e adolescentes, é que o enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil sempre teve, de
uma maneira ou outra, a atuação das OSCs. 540
Em 2004, a ratificação brasileira da Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional e seus respectivos protocolos adicionais já mencionados, apontaram
a intenção do Brasil em cooperar para o combate ao crime organizado transnacional, ao tráfico
de pessoas, contrabando de migrantes e tráfico de armas e drogas.541
Por outro lado, como aponta Bela Feldman-Bianco, o Brasil vinha naquele momento,
construindo seu alinhamento às políticas globais (2003-2010), aparentemente em conexão com
os fortes investimentos feitos pelo governo brasileiro em prol de transformar o país em
importante global player. Neste contexto elencam-se a coordenação da MINUSTAH – Missão
das Nações para a Estabilização do Haiti (2004-2017), o protagonismo do Brasil no
MERCOSUL e na criação da UNASUL (União dos Países Sul-Americanos), em 2008. Além
disso o Brasil adere à Convenção Internacional para a Supressão do Financiamento do
Terrorismo542 e a Convenção contra o Crime Organizado Transnacional e especialmente, o

539
Passados 20 anos desse momento inicial de identificação do fenômeno do tráfico de mulheres, crianças e
adolescentes, houve mudanças consideráveis nos fenômenos migratórios do Brasil. Entre eles, pode-se verificar
a caracterização do Brasil como país de destino e de trânsito, principalmente a partir de 2010, dos fluxos de
migrantes, refugiados entre outros, colombianos, haitianos, sírios, venezuelanos, congoleses, bengalês, entre
outros. CONARE. Refúgio em números, 2019, 4ª edição. Disponível em: https://www.acnur.
org/portugues/wp-content/uploads/2019/07/Refugio-em-nu%CC%81meros_versa%CC%83o-23-de-julho-
002.pdf. Acesso em: 30 fev. 2020.
540
Mais adiante será destacado esse aspecto de forma mais específica.
541
BRASIL. DECRETO Nº 5.017, DE 12 DE MARÇO DE 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção
das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do
Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças.2004. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5017.htm. Acesso em: 15 maio 2020.
542
BRASIL. Planalto. Decreto n. 5640/2005. Promulga a Convenção Internacional para Supressão do
Financiamento do Terrorismo, adotada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 9 de dezembro de 1999
242

Protocolo de Palermo (2004). Aponta ainda, a autora que, esse alinhamento brasileiro
proporcionou alinhavar parcerias com a UNODC, OIM e International Centre for Migration
Policy Development (ICMPD) uma vez que estas “têm atuado na padronização e disseminação
de visões hegemônicas sobre o fenômeno migratório e na consolidação de lógicas policialescas
e securitizadas de “governança internacional das fronteiras”, formuladas a partir de nações
centrais”. Reforça que, estratégias comumente utilizadas por imigrantes tendem a ser
redefinidas em termos de contrabando de migrantes, tráfico de pessoas e imigração ilegal.”543.
Essas ratificações impulsionaram o poder público a desenvolver ações com o objetivo
de criar mecanismos que pudessem equacionar o enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil,
valendo-se, em muitos casos, da expertise dos atores544 da sociedade civil que já vinham
acompanhando empiricamente situações de tráfico de pessoas em várias regiões do Brasil. Suas
contribuições foram relevantes para o início da construção de uma política pública que
conseguisse enfrentar o tráfico de pessoas a partir de diagnósticos realizados desde a prática e
do experimentado pela atuação das OSCs. Assim foi como, a partir de 2004 inicia-se o processo
de construção de uma política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil.
Importante destacar que, no início a discussão sobre o tráfico era basicamente voltada
para o tráfico para fins de exploração sexual. Com o passar dos anos, em função de diferentes
demandas na agenda de direitos humanos no Brasil, principalmente a agenda do trabalho
escravo e forçado, agenda bastante desenvolvida no Brasil, começou-se a dar enfoque às outras
modalidades do tráfico de pessoas545. Guilherme Dias e Bela Feldman-Bianco apontam ainda
que a escolha de estrutura criminal para questões relacionadas à mobilidade humana resulta no
tensionamento entre a questão migratória, securitização e o campo da justiça criminal
produzindo uma visão hegemônica, violência e desrespeito aos direitos humanos546.

e assinada pelo Brasil em 10 de novembro de 2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/


ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5640.htm. Acesso em: 15 out. 2020.
543
FELDMAN-BIANCO, Bela. O Brasil frente ao regime global de controle das migrações: direitos humanos,
securitização e violências. Travessia - Revista do Migrante, Ano XXXI, n. 83, maio-ago. Disponível em:
https://www.academia.edu/38205710/O_Brasil_frente_ao_regime_global_de_controle_das_migra%C3%A7
%C3%B5es_pdf?email_work_card=title. Acesso em: 15 ago. 2020.
544
Atores sociais foram conceituados por Touraine (1985) ao conferir importância aos sujeitos na história,
definidos como agentes dinâmicos, produtores de reivindicações e demandas e não simples representantes de
papéis atribuídos de antemão pelo lugar que ocupariam no sistema de produção.
545
MINISTERIO PÚBLICO FEDERAL. Diálogos da cidadania: enfrentamento ao trabalho escravo. 2014. p. 29.
Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/trabalho-
escravo/cartilha-trabalho-escravo-pfdc. Acesso em: 15 out. 2020.
546
DIAS, Guilherme Mansur. Migração e crime: desconstrução das políticas de segurança e tráfico de pessoas.
Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP. 2014. Ver
também: FELDMAN-BIANCO, Bela. O Brasil frente ao regime global de controle das migrações: direitos
humanos, securitização e violências. Travessia - Revista do Migrante, Ano XXXI, n. 83, maio-ago. 2018.
Disponível em: https://www.academia.edu/38205710/O_Brasil_frente_ao_regime_global_de_ controle_
das_migra%C3%A7%C3%B5es_pdf?email_work_card=title. Acesso em: 15 ago. 2020.
243

No contexto migratório brasileiro, a construção da nova lei migratória, Lei n.


3.445/2017, - que foi uma conquista dos movimentos sociais de migrantes, organizações e
refugiados, e há muitos anos demandavam uma legislação com foco nos direitos humanos para
desconstruir a normativa da Lei de Estrangeiros (Lei n. 6.815/1980), da época da ditadura
militar – sofreu reflexos com a tentativa do Brasil se tornar um global player e com a inclusão
das “novas ameaças” estabelecidas pela comunidade internacional como o terrorismo,
narcotráfico, tráfico de pessoas e a migração irregular, gerando uma série de pessoas
indesejáveis547.

4.2 A Construção da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil

4.2.1 A política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas e os planos nacionais de


enfrentamento ao tráfico de pessoas

A temática das políticas públicas como campo de pesquisa é antiga548, porém, a partir
da década de 90, com a redemocratização do Brasil e da Constituição de 1988, foram realizadas
tentativas para criar políticas públicas universais e estáveis, como é o caso do Sistema Único
de Saúde (SUS)549 e, mais recentemente, em 2005, o Sistema Único da Assistência Social

547
DOMENECH, Eduardo. Las políticas de migración en Sudamérica: elementos para el análisis crítico del control
migratorio y fronterizo. Dossiê: “Mobilidade Humana: Perspectivas e desafíos”. Terceiro Milênio. Revista
Crítica de Sociologia e Política, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2015. Ver também FELDMAN-BIANCO, Bela. O Brasil
frente ao regime global de controle das migrações: direitos humanos, securitização e violências. Travessia -
Revista do Migrante, Ano XXXI, n. 83, maio-ago. 2018. Disponível em: https://www.
academia.edu/38205710/O_Brasil_frente_ao_regime_global_de_controle_das_migra%C3%A7%C3%B5es_
pdf?email_work_card=title. Acesso em: 15 ago. 2020.
548
Ver em: DYE, Thomas. Understanding public policy. New Jersey: Englewood Cliffs, Prentice-Hall. 1975.
Ver também em: SMITH, Kevin B.; LARIMER, Christopher W. The public policy theory primer. Boulder-
CO: Westview Press. 2009. Dye descreve políticas públicas como sendo “o que o governo escolhe fazer ou
não fazer”. Por outro lado, Smith e Larimer, definem como “Não há definição de políticas públicas precisa e
universal [...]. Há uma visão comum de que as políticas públicas envolvem o processo de fazer escolhas e os
resultados das escolhas; de que o que faz as políticas públicas realmente “públicas” é que essas escolhas se
baseiam nos poderes coercitivos do Estado, e que, em sua essência, política pública é uma resposta a um
problema percebido.”
549
O Sistema Único de Saúde (SUS) é um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo,
abrangendo desde o simples atendimento para avaliação da pressão arterial, por meio da Atenção Primária, até
o transplante de órgãos, garantindo acesso integral, universal e gratuito para toda a população do país. Com a
sua criação, o SUS proporcionou o acesso universal ao sistema público de saúde, sem discriminação. A atenção
integral à saúde, e não somente aos cuidados assistenciais, passou a ser um direito de todos os brasileiros, desde
a gestação e por toda a vida, com foco na saúde com qualidade de vida, visando a prevenção e a promoção da
saúde. A gestão das ações e dos serviços de saúde deve ser solidária e participativa entre os três entes da
Federação: a União, os Estados e os municípios. A rede que compõe o SUS é ampla e abrange tanto ações
quanto os serviços de saúde. Engloba a atenção primária, média e alta complexidades, os serviços urgência e
emergência, a atenção hospitalar, as ações e serviços das vigilâncias epidemiológica, sanitária e ambiental e
assistência farmacêutica. Ver em: BRASIL. Ministério da Saúde. O que é o Sistema Único de Saúde (SUS)?
Disponível em: http://www.saude.gov.br/sistema-unico-de-saude. Acesso em: 15 ago. 2020.
244

(SUAS)550. Essas e outras políticas públicas apresentam, ainda hoje, uma série de desafios para
sua implementação, desenvolvimento, monitoramento e avaliação.
As variáveis que atuam em uma política pública são diversas e complexas, com a
finalidade de garantir grandes ou médias políticas, desburocratizadoras e principalmente
trazendo uma alternativa na aproximação das aspirações populares para a gestão pública. Nessa
linha, as políticas públicas aparecem como uma alternativa de aprimorar nossas democracias –
que em muitos casos garantem-se de forma finalista pelo voto popular (democracia
representativa) – mas que se vêm afastando da sua finalidade primordial que é a de representar
o interesse popular cada vez mais complexo, e que não deve, nem pode, se resumir ao momento
da eleição (democracia participativa)551.
Percebe-se que a construção de políticas públicas possibilita pensar e reconstruir
“espaços” (engenharias institucionais) que atendam características da temática objeto da
mesma, os vetores relevantes, os atores e os interesses a serem contemplados, impossibilitando
utilizar modelos prontos, estruturas fechadas, na tentativa de obter os melhores resultados, que,
deve ser, a garantia de direitos.
Inicialmente são descritos e analisados os principais instrumentos e atores que compõem
a política nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas, principalmente no que se refere a
política de assistência e garantia de direitos das vítimas. Como já dito, o processo de construção

550
O Sistema Único de Assistência Social (Suas) é um sistema público que organiza os serviços, benefícios,
programas e projetos da Política de assistência social no Brasil. Com um modelo de gestão participativa, ele
articula os esforços e os recursos dos três níveis de governo, isto é, municípios, estados, Distrito Federal e a
União, para a execução e o financiamento da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), envolvendo
diretamente estruturas e marcos regulatórios nacionais e locais. O Suas organiza as ações da assistência social
em dois tipos hierarquizados de proteção social. A primeira é a Proteção Social Básica, destinada à prevenção
de riscos sociais e pessoais, por meio da oferta de programas, projetos, serviços e benefícios a indivíduos e
famílias em situação de vulnerabilidade social. A segunda é a Proteção Social Especial, destinada a famílias e
indivíduos que já se encontram em situação de risco e que tiveram seus direitos violados por ocorrência de
abandono, maus-tratos, abuso sexual, uso de drogas, entre outros. No Suas também há a oferta de Benefícios
Assistenciais, prestados a públicos específicos de forma integrada aos serviços, contribuindo para a superação
de situações de vulnerabilidade. O Suas também gerencia a vinculação de entidades e organizações de
assistência social ao Sistema, mantendo atualizado o Cadastro Nacional de Entidades e Organizações de
Assistência Social (CNEAS) e concedendo certificação a entidades beneficentes. Coordenado pelo Ministério
da Cidadania, o Sistema é composto pelo poder público e sociedade civil, que participam diretamente do
processo de gestão compartilhada. Nesse modelo de gestão, as ações e a aplicação de recursos do Suas são
negociadas e pactuadas nas Comissões Intergestores Bipartite (CIBs) e na Comissão Intergestores Tripartite
(CIT). Esses procedimentos são acompanhados e aprovados pelo Conselho Nacional de Assistência Social
(CNAS) e pelos Conselhos Estadual e Municipal de Assistência Social, que desempenham um importante
trabalho de controle social. Criado a partir das deliberações da IV Conferência Nacional de Assistência Social
e previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), o Suas teve suas bases de implantação consolidadas
em 2005, por meio da sua Norma Operacional Básica do Suas (NOB/Suas), que apresenta claramente as
competências de cada órgão federado e os eixos de implementação e consolidação da iniciativa. Ver em:
BRASIL. Ministério Da Cidadania. O que é o SUAS? Disponível em: http://mds.gov.br/ assuntos/assistencia-
social/o-que-e. Acesso em: 15 ago. 2020.
551
BOAVENTURA, S. AVRITZER, L. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
245

da política nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas iniciou em 2004, com a ratificação


do Protocolo de Palermo552. O texto da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas foi elaborado pela Secretaria Nacional de Justiça (SNJ), do Ministério da Justiça,
juntamente com as Secretaria Especial de Direitos Humanos553 e com a Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres554. No total, a elaboração da Política contou com a participação de
11 ministérios, além do Ministério Público do Trabalho e do Ministério Público Federal (MPF)
e aproximadamente 50 organizações da sociedade civil em todo o ciclo de formulação,
implementação, monitoramento e avaliação555.
O processo de construção da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas,
primeiro documento normativo dessa política pública, mostrou seus impactos positivos, tanto
em relação ao diálogo promovido entre os diversos atores, governamentais e da sociedade civil,
quanto ao aumento do número de ações de combate, prevenção e atendimento. A Política previu
três grandes eixos de atuação: prevenção ao tráfico de pessoas, repressão ao tráfico de pessoas
e responsabilização de seus autores e atenção às vítimas, em conformidade com as disposições

552
Em 2004, ano em que o Brasil ratificou o “Protocolo de Palermo” (Decreto nº 5.017), o tema do tráfico de
pessoas esteve presente no desembolso do Plano Plurianual da União de 20042007, com a previsão de ações
de capacitação dos profissionais da rede de atenção e da realização de diagnósticos e pesquisas, de modo mais
ampliado, em todo o país. PORTAL BRASILEIO DE DADOS ABERTOS. Plano Pluri-Anual 2004-2007.
Disponível em: http://dados.gov.br/dataset/plano-plurianual-2004-2007. Acesso em: 20 ago. 2020.
553
A Secretaria Nacional de Direitos Humanos (SNDH) foi criada na estrutura regimental do Ministério da Justiça
MJ, em 1997, em substituição à Secretaria dos Direitos da Cidadania (SDC) a quem cabia formular, normatizar
e coordenar - em todo o Brasil - a política de defesa dos direitos da criança e do adolescente e defender os
direitos das pessoas portadoras de deficiência. A SNDH foi criada e ampliou as competências da SDC passando
a se responsabilizar também por: coordenar, gerenciar e acompanhar a execução do Programa Nacional de
Direitos Humanos, promover a cooperação com os Organismos Internacionais, e coordenar a escolha e entrega
do Prêmio Nacional de Direitos Humanos. Em 1999, a antiga Secretaria Nacional de Direitos Humanos
(SNDH) foi transformada em Secretaria de Estado dos Direitos Humanos - (SEDH), atribuindo a seu titular o
status de ministro de Estado, com prerrogativa de assento nas reuniões ministeriais. Com a criação da Secretaria
de Estado dos Direitos da Mulher (SEDIM), em 2002, no âmbito do Ministério da Justiça - MJ, as ações de
defesa e garantia dos direitos da mulher saíram da competência da SEDH e passaram a ser de responsabilidade
da SEDIM. Isso permitiu que os dois órgãos pudessem atuar de maneira mais eficiente e eficaz em suas
respectivas áreas. Em 2003, no governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva criou-se a Secretaria Especial
dos Direitos Humanos - SEDH, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SEPM e a Secretaria
Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – - SEPPIR. As três Secretarias Especiais integraram a
estrutura da Presidência da República exercendo seus titulares de fato e de direito, os cargos de Ministro/a de
Estado. Em 2015, a pasta dos Direitos Humanos foi unificada com as secretarias de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial e de Políticas para as Mulheres na reforma ministerial pela presidente Dilma Rousseff
formando o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (MMIRDH). Em 2018, no
Governo Bolsonaro, a pasta foi transformada em Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos,
englobando também as políticas indígenas, por meio da Fundação Nacional do índio (FUNAI).
554
Id.
555
Importante destacar que nesse período foram desenvolvidas ações de capacitação, investigações e campanhas
de conscientização que contaram com a aproximação com uma ampla rede de parceiros institucionais,
nacionais e globais envolvidos com a matéria, tais como o UNODC e a Organização Internacional do Trabalho
(OIT), que ampliaram naquele período o escopo da parceria com o Brasil. Ver em: UNODC. Relatório de
Avaliação dos Resultados II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. 2018. Disponível
em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/ anexos/relatorio-de-avaliacao-ii-
plano-final-agosto2018.pdf. Acesso em: 15 jun. 2020.
246

e indicações do Protocolo de Palermo e os primeiros relatórios da Relatoria Especial da ONU,


já abordado no capítulo 3.
Interessante destacar o diálogo promovido entre os diversos atores, governamentais e da
sociedade civil, da possibilidade de escuta aos atores não governamentais e da metodologia de
construção participativa dessa política. Naquele momento (2005/2006), depois de terem sido
realizadas diversas reuniões com essa variedade de atores, foi ainda disponibilizado, no site do
Ministério da Justiça, por quase um mês, um correio eletrônico para que os interessados,
estivessem no Brasil ou no exterior, pudessem enviar contribuições para a construção dessa
política556.
Após a finalização daquele prazo para envio das contribuições, houve uma
sistematização e foi realizado um seminário em Brasília com a participação de diversos atores,
entre Ministérios envolvidos, pesquisadores, organizações intergovernamentais, organizações
da sociedade civil que atuavam na temática para fechamento de uma proposta de Política
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil.
Assim é que, em 2006, o Brasil elaborou a Política Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas557 e instituiu o Grupo de Trabalho Interministerial, que foi o Grupo
responsável pela elaboração do I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas558.
Em 2008, foi promulgado o I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
(PNETP), por meio do Decreto no. 6.347, de 8 de janeiro de 2008, que tinha como objetivo
prevenir e reprimir o tráfico de pessoas; responsabilizar os seus autores; e garantir atenção às
vítimas, nos termos da legislação em vigor e dos instrumentos internacionais de direitos
humanos. No Relatório de Implementação do I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de

556
A título de curiosidade, relembro como pesquisadora e ativista que naquele momento, 2005-2006, em que
estava finalizando o Mestrado em Direito Internacional, a Comissão Municipal de Enfrentamento a Violência
Sexual contra Crianças e Adolescentes do Município de Santos e o Programa de Pós-graduação da Unisantos,
dois espaços dos quais eu fazia parte, realizamos uma Reunião para elaborar propostas concretas para a
construção dessa política nacional. Esse documento final foi enviado ao Ministério da Justiça e incorporado às
propostas enviadas pelo Brasil e exterior.
557
BRASIL. Ministério da Justiça. Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil.
Decreto nº 5.948, de 26 de outubro de 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2006/Decreto/D5948.htm. Acesso em: 6 jul. 2020.
558
Os membros do Grupo de Trabalho Interministerial foram designados conforme Portaria Conjunta nº 631, de
13 de março de 2007. que foi assinada pelo Ministério de Estado da Justiça, o Secretário Especial de Direitos
Humanos e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Foram designados membros: I- Secretaria
Especial de Direitos Humanos; II- Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres; III- Secretaria de Políticas
de Promoção de Igualdade Racial; IV- Casa Civil; V- Ministério da Justiça; VI- Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome; VII – Ministério da Saúde; VIII- Ministério do Trabalho e Emprego; IX- Ministério
do Desenvolvimento Agrário; X- Ministério da Educação; XI- Ministério das Relações Exteriores; XII-
Ministério do Turismo; XIII- Ministério da Cultura; XIV- Advocacia-Geral da União.
247

Pessoas estão dispostos os resultados de cada uma dessas ações para cada prioridade 559. O
material apresenta uma consolidação das ações realizadas no período de execução do I Plano
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, contemplando ações específicas para as
perspectivas da prevenção, responsabilização e repressão dos agentes e atenção às vítimas. O I
Plano durou dois anos (2008/2010) e trouxe a elaboração de recomendações para a construção
do II Plano
As principais conclusões do I Plano560, foram: 1) o enfrentamento ao tráfico de pessoas
foi incluído na agenda do Governo como uma política pública permanente, aprovada pelo
Decreto n. 5.948, de 26 de outubro de 2006; 2) os estudos e pesquisas sobre a temática
aumentaram significativamente. Até 2006, só existia a PESTRAF (2002). Depois de instituída
a Política Nacional, foram realizados, com recursos do Governo Federal, diversos estudos e
pesquisas sobre o fenômeno; outros estavam em andamento. 3) as campanhas informativas,
realizadas e apoiadas pela sociedade e governos municipais, estaduais e federal possibilitaram
uma maior percepção e compreensão desse crime pela população; 4) houve um aumento do
número de denúncias sobre o crime, o que resultou em inquéritos instaurados e condenações.
Pode-se dizer que os canais disponibilizados pelo Governo, a exemplo do Disque 100,
proporcionaram à população mais informações sobre a existência desse fenômeno, o exercício
do direito de denunciar um crime que viola a dignidade da pessoa humana, exercendo sua plena
cidadania; 5) os serviços de atenção às vítimas desse crime foram ampliados, especialmente nos
serviços de atendimento às mulheres, às crianças e aos adolescentes vítimas de violência; 6) o
atendimento às pessoas em situação de tráfico passou a ser oferecido pelos serviços de saúde
(SUS), integrando as áreas de prevenção, atenção, promoção da saúde e vigilância
epidemiológica. 7) o setor saúde também trabalhou na melhoria da qualidade da informação
com a implantação, em janeiro de 2009, da Ficha de Notificação/Investigação de violência
doméstica, sexual e/ou outras violências; 8) houve um significativo investimento no
enfrentamento ao tráfico de pessoas, especialmente pela inclusão da temática no Programa

559
BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório Final da Execução do Plano Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas. 1. edição. Brasília, DF: Secretaria Nacional [do] Ministério da Justiça, 2010. Disponível
em: http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos-relatorios/
etprelatorioplanonacional.pdf. Acesso em: 15 ago. 2020.
560
Id.
248

Nacional de Segurança com Cidadania (PRONASCI)561 e no Plano Nacional de Políticas para


as Mulheres, entre outros562.
As principais recomendações para a elaboração do II PNETP foram: 1) Que o Plano
fosse implementado por um período superior a 2 anos, dada a complexidade de seu objeto.
Fazia-se necessária a definição de processos de monitoramento e modelos de indicadores que
acompanhassem e avaliassem sistematicamente a implementação do Plano; 2) Que o Governo
Federal transformasse o Grupo Assessor em Comitê Nacional permanente, cujo objetivo
principal seria monitorar e avaliar políticas públicas de enfrentamento ao tráfico de pessoas; 3)
Que o Comitê Nacional fosse composto, paritariamente, por organizações governamentais,
representantes da sociedade civil e de organismos internacionais; 4) Que fossem ampliados os
recursos em cada Ministério, para o desenvolvimento da política e dos planos nacionais de
enfrentamento ao tráfico de pessoas; 5) Que fossem recomendados aos governos estaduais e
municipais a elaboração e implementação de planos de enfrentamento ao tráfico de pessoas,
assim como criação de comitês de articulação e acompanhamento desses planos; 6) Que
houvesse uma articulação e/ou integração com outras políticas e planos correlatos; 7) Que se
realizassem campanhas permanentes de sensibilização e informação sobre o tema; entre
outros563.
A elaboração do II PNETP levou em conta essas recomendações e, em 2013 entrou em
vigor, tendo validade até dezembro de 2016. O processo de elaboração do II Plano Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas também passou por um período de consulta pública, para
o qual foi disponibilizado um canal de comunicação virtual pelo Ministério da Justiça, onde
qualquer pessoa, no Brasil ou não, podia enviar colaborações para a construção do II Plano. O
material recolhido na etapa de consulta pública deu origem ao documento base para o II Plano.
Esse material compilado foi levado ao II Encontro Nacional da Rede de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas, realizado em novembro de 2011, em Recife-PE, onde estiveram presentes
diversos segmentos do governo e da sociedade civil para destacar as prioridades do II Plano.

561
CERQUEIRA, Daniel. Política nacional de segurança pública orientada para a efetividade e o papel da
Secretaria Nacional. In: IPEA. Atlas da Violência. 2017. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/
bitstream/11058/9448/1/Atlas_da_violencia_2017.pdf. Acesso em: 15 ago. 2020. Ver em: BRASIL. Lei n.
11.530, de 24 de outubro de 2007. Institui o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania -
PRONASCI e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2007/Lei/L11530.htm. Acesso em: 15 ago. 2020.
562
BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório final da execução do Plano Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas. 1. edição. Brasília, DF: Secretaria Nacional [do] Ministério da Justiça, 2010. Disponível
em: http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos-relatorios/
etprelatorioplanonacional.pdf. Acesso em: 15 ago. 2020.
563
Id.
249

Foi um momento de intensos debates, com disputas desde óticas de poder públicas e das
organizações da sociedade civil.
O Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) responsável pela elaboração da proposta do
II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas foi criado no âmbito da Secretaria
Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça, por meio da Portaria nº 1.239, de 27 de junho de
2011. A Coordenação Tripartite da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
teve o papel de coordenar a gestão estratégica e integrada da Política Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e do II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas564. A coordenação foi composta: Ministério da Justiça (Secretaria Nacional de Justiça,
Secretaria Nacional de Segurança Pública, Departamento de Polícia Federal e o Departamento
de Polícia Rodoviária Federal); Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República;
Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República. Com a aprovação do II Plano
foi também instituído o Grupo Interministerial de Monitoramento e Avaliação do II Plano
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, responsável pelo acompanhamento da
implementação das 115 metas neste previstas, podendo propor ajustes técnicos e de prioridades,
coletar, difundir e disseminar informação entre os organismos implementadores e para toda a
sociedade565.
Blanchette e Silva realizaram um trabalho de etnografia nos debates sobre a formação
da política de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil e defendem que a atual narrativa
brasileira está mais calcada em mitos e estereótipos sobre o fenômeno do tráfico de pessoas no
Brasil. Explicam que a produção de dados é equivocada e mal interpretada, que equipara a
prostituição à exploração sexual e consequentemente ao tráfico de pessoas e, que parece estar
mais voltada a atender pressões morais globais, principalmente sobre a prostituição. Observam

564
Coordenação Tripartite foi instituída pelo Decreto Nº 7.901, de 4 de fevereiro de 2013. Grupo Interministerial
e Monitoramento e Avaliação do II PNETP. BRASIL. Ministério da Justiça. Grupo Interministerial de
Monitoramento e Avaliação do II PNETP. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-
de-pessoas/politica-brasileira/gi-monitoramento. Acesso em: 15 ago. 2020.
565
O Grupo Interministerial tem previstas reuniões quadrimestralmente e desses encontros são produzidos
relatórios sobre o progresso da implementação das metas. O GI é integrado por membros, titulares e suplentes,
dos seguintes órgãos: I - Ministério da Justiça; II - Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da
República; III - Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República; IV - Casa Civil da Presidência
da República; V - Ministério da Defesa; VI - Ministério das Relações Exteriores; VII - Ministério da Educação;
VIII - Ministério da Cultura; IX - Ministério do Trabalho e Emprego; X - Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome; XI - Ministério da Saúde; XII - Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão;
XIII - Ministério do Turismo; XIV - Ministério do Desenvolvimento Agrário; XV - Secretaria Geral da
Presidência da República; XVI - Advocacia-Geral da União; e XVII - Secretaria de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial da Presidência da República. Ver em: Coordenação Tripartite foi instituída pelo Decreto Nº
7.901, de 4 de fevereiro de 2013. Grupo Interministerial e Monitoramento e Avaliação do II PNETP. BRASIL.
Ministério da Justiça. Grupo Interministerial de Monitoramento e Avaliação do II PNETP. Disponível
em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/ politica-brasileira/gi-monitoramento. Acesso
em: 15 ago. 2020.
250

que, em muitos casos, o que se chama de tráfico de mulheres, se refere a mulheres que foram
trabalhar conscientes e por livre e espontânea vontade no exterior. Criticam ainda quanto a
participação da sociedade civil na construção da política, afirmando que houve poucas e curtas
reuniões públicas acerca da nova política, limitando assim, a participação desses atores 566.
Destacam que se produziram quatro narrativas hegemônicas sobre tráfico de pessoas no Brasil:
a primeira destaca à necessidade do país em cumprir suas responsabilidades internacionais, se
apropriando das normativas sem fazer críticas. A segunda narrativa, cria perfis que separam as
brasileiras entre as que podem viajar e as que não podem viajar por serem vulneráveis (negras
e pobres). A terceira, se alinha à teoria feminista que considera a prostituição como exploradora,
e degradante, associando à prostituição às atividades como o tráfico de drogas; a quarta
narrativa refere-se a construção de histórias de mulheres brasileiras que são classificadas como
prostitutas ao migrarem para o exterior, estereotipando tanto a prostituição como as mulheres
brasileiras567. Muito do apontado por Banchette e Silva caminham na mesma direção do
apontado por Aradau, anteriormente analisado.
A implementação do II PNETP contou com o incremento de uma Gestão Integrada para
o Enfretamento ao Tráfico de Pessoas, marcada pela atuação cooperada entre quatro instâncias:
a Comissão Tripartite (composta pela Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SPM),
pela Secretaria Especial de Direitos Humanos (SDH) e a Coordenação Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, do Ministério da Justiça), pelo Grupo Interministerial
(GI) composto por 23 órgãos pela execução das metas do II PNETP e pelo Comitê Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (CONATRAP)568, um órgão consultivo que tem o
objetivo de garantir o controle social da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas.
O II PNETP passou por um processo de avaliação final pelo Grupo Interministerial (GI),
instância responsável pelo monitoramento e avaliação do conjunto de linhas operativas,
atividades e metas do II PNETP no quadriênio de 2013-2016569. Foram avaliadas 115 metas,

566
BLANCHETTE, Thaddeus Gregory; SILVA, Ana Paula da. Mulheres vulneráveis, mulheres más: uma análise
antropológica de narrativas hegemônicas sobre o tráfico de pessoas no Brasil. In: FERREIRA, Ademir Paceli
et al. A experiência migrante: entre deslocamentos e reconstruções. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. p. 331,
342.
567
Ibid., p. 331.
568
O Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (CONATRAP), originariamente, instituído pelo
Decreto nº 7.901, de 04 de fevereiro de 2013, encontra-se atualmente regido pelo Decreto nº 9.833, de 12 de
junho de 2019. BRASIL. Ministério da Justiça. CONATRAP. Disponível em: https://www.justica.gov.br/ sua-
protecao/trafico-de-pessoas/politica-brasileira/conatrap. Acesso em: 15 ago. 2020.
569
UNODC. Relatório de Avaliação dos Resultados II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas. 2018. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/
publicacoes/anexos/relatorio-de-avaliacao-ii-plano-final-agosto2018.pdf. Acesso em: 15 jun. 2020.
251

subdivididas em 14 atividades, em 5 Linhas Operativas e as principais recomendações para o


III PNETP foram: 1. que seja elaborado e implementado o III Plano Nacional de Enfretamento
ao Tráfico de Pessoas com metas e ações condizentes com os cenários sociais, políticos e
econômicos do Brasil, passíveis de mensuração de resultados e com um sistema de
monitoramento permanente, pactuando entre os diversos responsáveis e corresponsáveis da
gestão da política; 2. que o governo federal, em suas diversas pastas, assuma, como prioridade,
a implementação das ações designadas na nova Lei Geral do Tráfico de Pessoas (Lei nº 13.344,
de 6 de outubro de 2016) e da Lei de Migrações (Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017); 3. que
o governo federal assegure a adequação do modelo de gestão integrada da Política Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas às reformas ministeriais e à transição de governo, após as
eleições de 2018, de modo que não se perca a essência do compartilhamento de
responsabilidades e tomadas de decisões, como as adotadas no sistema integrado do II Plano
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que permitiu a construção de um GI para
monitoramento e avaliação dos resultados; 4. que sejam fortalecidas as ações da Coordenação
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, no âmbito da Secretaria Nacional de Justiça
e Cidadania, do Ministério da Justiça e Segurança Pública; 5. que sejam fortalecidas as ações
da comissão triparte de enfrentamento ao tráfico de pessoas, tradicionalmente formada pela
Secretaria Especial de Direitos Humanos e a Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres;
6. que, no desenho do III Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, sejam
garantidos destaques às peculiaridades de grupos vulneráveis nas ações para o enfrentamento
ao tráfico de pessoas no Brasil, com cuidados para as questões etno-raciais, de gênero, de
orientação sexual, geracionais e de origem territorial, garantindo-se direitos e proteção da
população migrante, das populações periféricas e de grupos sociais tradicionais, como
indígenas, quilombolas, ribeirinhos, entre outros; 7. que a temática do tráfico de pessoas seja
prioritária nas agendas que abordem outras formas de violência, tais como a violência
doméstica, a exploração de jovens pelo narcotráfico, o racismo e o extermínio do jovem negro,
a violência sofrida pela população LGBTT, a xenofobia, a ausência de ações para a proteção de
prostitutas autônomas, sem a vitimização dessas profissionais, dentre outros temas abordados
nas pastas do governo federal; 8. que sejam desenvolvidas ações para fortalecimento do Comitê
Nacional de Enfretamento ao Tráfico de Pessoas (CONATRAP)570, de modo a assegurar a
perenidade das reuniões, a participação social nos processos decisórios da política,
especialmente no seu monitoramento e avaliação; 9. que sejam ampliados os canais de parcerias

570
Mais adiante, falar-se-á do CONATRAP e de sua relevância para o enfrentamento ao tráfico de pessoas.
252

e de consultas às diversas organizações da sociedade civil sobre as estratégias nacionais de


enfrentamento ao tráfico de pessoas; 10. que sejam enveredados esforços para o fortalecimento
e a ampliação dos Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Postos Avançados de
Atendimento Humanizando ao Migrante, garantindo bases para a descentralização das ações de
enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil; 11. que haja priorização na geração, integração
e gestão dos dados nacionais em enfrentamento ao tráfico de pessoas, de modo que seja
construído um observatório nacional para o enfrentamento ao tráfico de pessoas para equalizar
as informações e sua mensuração; 12. que ocorra maior interlocução com a agenda das
migrações e do refúgio, de modo a assegurar a garantia de direitos e proteção do migrante e/ou
refugiado no Brasil, sem que o tema do tráfico de pessoas seja utilizado como argumento para
desenvolvimento de medidas que impeçam o direito à mobilidade humana; 13. que seja
garantida a prioridade da proteção integral da criança e do adolescente, considerando o contexto
dos casos de trabalho infantil, exploração sexual, exploração da mendicância, exploração pelo
narcotráfico e adoção ilegal, e compreendendo a pauta da proteção da infância e da adolescência
como prioritária para o combate ao tráfico de pessoas; 14. que seja reforçada a agenda de
combate ao trabalho análogo ao escravo no âmbito da gestão do governo federal e sua
harmonização com as ações para o enfrentamento ao tráfico de pessoas, previstas no novo
marco legal; 15. que seja adotada uma estratégia nacional para a construção de ações de
responsabilização e prevenção voltadas às cadeias produtivas; 16. que sejam enveredados
esforços para mudar a tendência de enfrentamento maior do tráfico internacional em detrimento
do tráfico interno; 17. que sejam fortalecidas as políticas sociais, no âmbito do Sistema Único
da Assistência Social (SUAS), voltadas à população em situação de vulnerabilidade,
compreendendo as desigualdades sociais e econômicas como pilares da persistência do tráfico
de pessoas no Brasil; 18. que sejam adotadas estratégias nacionais para inclusão do atendimento
humanizado à vítima no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS); 19. que sejam ampliadas as
ações desenvolvidas na Semana Nacional e Internacional do Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas, marcada no dia 30 de julho, com lançamento de campanhas nacionais e outras
estratégias compartilhadas em todo o Brasil; e 20. que sejam asseguradas as ações necessárias
para o cumprimento de todos os tratados internacionais de direitos humanos pactuados pelo
Brasil, garantindo avanços nas políticas de defesa e promoção dos direitos humanos e o
destaque, na agenda, do tema do enfrentamento ao tráfico de pessoas571.

571
UNODC. Relatório de Avaliação dos Resultados II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas. 2018. p. 203-206. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/
publicacoes/anexos/relatorio-de-avaliacao-ii-plano-final-agosto2018.pdf. Acesso em: 15 jun. 2020.
253

Na execução do II PNETP é que se alcança o mais importante marco nacional, no que


se refere à legislação, no enfrentamento ao tráfico de pessoas que foi a sanção da Lei 13.344,
de 6 de outubro de 2016, que estabelece a prevenção e punição ao tráfico interno e internacional
de pessoas e a proteção às vítimas, incorporando desde princípios e diretrizes, novos
dispositivos penais e processuais penais, além de dispor de aspectos relativos à concessão
migratória para pessoas estrangeiras vítimas de tráfico. Essa legislação permite um maior
alinhamento com o Protocolo referencial de Palermo572.
Essas recomendações para o III PNETP indicaram que a avaliação do II Plano foi
construída com a participação de atores que compõem o enfrentamento ao tráfico de pessoas
no Brasil. Essa percepção se verifica na convocação da construção de um Plano que pensou o
enfrentamento e especialmente a prestação da assistência às vítimas, seja garantida pelo poder
público, mas que, solicita que os canais de diálogo, de participação, de monitoramento e de
avaliação do Plano sejam construídos e potencializados com outros atores, especialmente as
organizações da sociedade civil. O pedido pela capacitação e aprimoramento do SUS e SUAS,
além da rede nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas, para o atendimento dado às
vítimas indica que o Brasil entendeu, naquele momento, positivamente a forma de assistência
organizada e gerenciada pelo poder público, seja pelos governos estaduais ou governos
municipais. Além disso, pede o cumprimento dos tratados internacionais de direitos humanos
pactuados pelo Brasil, garantindo políticas de defesa e de promoção de direitos baseados nesse
enfoque de direitos humanos. Como a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas e seus respectivos Planos são entendidos como uma política de Estado e não de
governo, as recomendações sugeriram que, independentemente do governo que assumisse em
2018, era fundamental assegurar a adequação do modelo de gestão integrada da Política
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas às reformas ministeriais e à transição de
governo. Esse aspecto também é bastante relevante para a construção dessa política, uma vez
que, garante certa solidez e garantia de continuidade. Aspecto fundamental refere-se à
solicitação da manutenção de ações para o fortalecimento do CONATRAP, na intenção de
garantir a perenidade das reuniões, a participação social nos processos decisórios da política,
especialmente no seu monitoramento e avaliação do Plano.
O Decreto nº 9.440/2018 aprova do III PNETP, com vigência de 4 anos (2018-2022),
sob a condução do Grupo Interministerial de Monitoramento e Avaliação do III Plano Nacional

572
Neste momento, é importante pontuar a importância dessa normativa do II PNETP; porém, mais adiante será
abordada a trajetória das normativas de tráfico de pessoas no Brasil.
254

de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que somente foi criado em 2019573, com seis objetivos:
I - monitorar e avaliar a execução do III Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas; II - propor ajustes na definição da prioridade para a implementação das suas metas; e
III - produzir e enviar relatórios de progresso sobre a implementação das metas sob sua
responsabilidade, semestralmente, à sua Secretaria-Executiva. Importante destacar que houve
uma perda na gestão integrada no monitoramento e avaliação da implementação da política
nacional, especialmente o III PNETP, uma vez que antes esse processo era conduzido entre
Comissão Tripartite, o Grupo Integrado e o CONATRAP.
Além disso, o III Plano definiu seis eixos temáticos, entre eles: I - gestão da política; II
- gestão da informação; III - capacitação; IV - responsabilização; V - assistência à vítima; e VI
- prevenção e conscientização pública. E estabelece que as metas serão implementadas por meio
de ações articuladas nas esferas federal, estadual, distrital e municipal e contarão com a
colaboração de organizações da sociedade civil e de organismos internacionais, indicando a
complexidade do regime de governança do enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil.
A descrição da política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil,
construída de 2004 até 2018 (IIIPNETP), aponta no sentido de uma continuidade e certa
priorização do tema na agenda pública no Brasil. Com todas as críticas que podem e serão
destacadas no decorrer do capítulo, evidencia-se o delineamento da política do tráfico às outras
políticas públicas do Brasil (saúde, assistência, política da mulher, política da infância),
reforçando a multidimensionalidade, interdisciplinaridade e, principalmente, a complexidade
do tráfico. Outro aspecto a ser considerado é a necessidade de desenvolver ações desde a
prevenção, responsabilização e atenção e proteção às vítimas. Nenhuma dimensão pode ser
negligenciada. Evidencia-se a construção de espaços de governança da política de
enfrentamento ao tráfico no sentido de garantir institucionalidade, destacando-se o
CONATRAP.

4.2.2 O Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (CONATRAP)

O CONATRAP foi instituído pelo Decreto nº 7.901, de 4 de fevereiro de 2013,


vinculado ao Ministério da Justiça, com a missão de articular a atuação dos órgãos e entidades

573
BRASIL. Planalto. Grupo Interministerial de Monitoramento e Avaliação do III PNETP. Decreto nº 9.796, de
20 de maio de 2019. Disponível em: https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/710516492/decreto-
9796-19. Acesso em: 15 ago. 2020. O Grupo Interministerial será integrado por um representante titular, e
respectivo suplente, dos seguintes órgãos: I - Ministério da Justiça e Segurança Pública; II - Ministério da
Mulher, da Família e dos Direitos Humanos; III - Ministério das Relações Exteriores; IV - Ministério da
Economia; V - Ministério da Educação; VI - Ministério da Cidadania; VII - Ministério da Saúde.
255

públicas e privadas no enfrentamento ao tráfico de pessoas. Inicialmente sua composição era


de 26 membros, sendo sete representantes de governo; sete representantes de organizações da
sociedade civil ou especialistas em enfrentamento ao tráfico de pessoas574; um representante a
ser indicado pelos Núcleos Estaduais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e pelos Postos
Avançados de Atendimento Humanizado ao Migrante formalmente constituídos; um
representante a ser indicado pelos comitês estaduais e do Distrito Federal de enfrentamento ao
tráfico de pessoas; e um representante de cada um dos dez Conselhos Nacionais de políticas
públicas.
O CONATRAP foi pensado como um espaço de construção e de monitoramento da
política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil. A escolha feita pelo Brasil
em 2013 por facilitar a participação das organizações da sociedade civil reforçou um espaço de
atuação diverso daquele tradicionalmente composto pelas OSCs (atendimento e proteção) e
indicou uma mudança na forma de atuação desses atores no enfrentamento ao tráfico de pessoas
no Brasil. Se antes essas organizações que inicialmente identificaram um fenômeno social que
exigia uma atuação do poder público brasileiro, neste Comitê, entre outras ações, encontrou-se
um espaço para a construção dessa política pública.
Lima questionou a participação dos/das sujeitos/sujeitas, com seu poder de fala e
presença, nos rumos da Política Nacional e principalmente dos espaços institucionais de
participação. “Grupos considerados como vulneráveis, como movimentos das trabalhadoras do
sexo e transgêneros, em sua diversidade, tem uma participação tímida; quem participa
ativamente são os organismos executores das políticas públicas no Brasil” E ainda “As vozes
das mulheres na construção das políticas de tráfico, assim como a escuta das suas falas, não
podem ser desconsideradas; o que é questionável é a influência real na condução das políticas
públicas de enfrentamento.”575.
Reduzindo-se ainda mais a diversidade da participação, a estrutura de composição deste
comitê foi modificada pelo Decreto nº 9.833, de 12 de junho de 2019 576. Essa alteração

574
A segunda gestão do CONATRAP foi composta, de 28 de maio de 2018 até 2020, pelas seguintes organizações
da sociedade civil: O Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (CAMI-SP), o Instituto Migrações e Direitos
Humanos (IMDH-DF), a Universidade Federal de Santa Catarina, Projeto Resgate -GO, Associação Brasileira
de Defesa da Mulher da Infância e da Juventude (ASBRAD -Guarulhos), Associação de Travestis, Transexuais
e Transgêneros de Goiás (ASTARL-GO), Núcleo de Estudos de Gênero Pagu (PAGU- Campinas) e Jovens
com Uma Missão (JOCUM Brasil).
575
LIMA. Thiago Pereira. Gênero, tráfico sexual de mulheres e políticas públicas: uma análise da experiência
da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência Da República (SPM/PR). Tese (Doutorado) -
Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão, 2017. p. 172-173.
576
BRASIL. Planalto. Decreto n. 9833, de 12 de junho de 2019. Dispõe sobre o Comitê Nacional de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas (CONATRAP). 2019. D.O.U., Brasília, DF, 13 jun. 2019.
256

preocupa, com relação à participação efetiva e representativa da sociedade civil, uma vez que
se diminui a participação de 7 representantes da sociedade civil mais um membro representante
dos Comitês Estaduais e do DF de ETP, para três representantes de OSCs ou de conselhos de
políticas públicas, que exerçam atividades relevantes e relacionadas ao enfrentamento ao tráfico
de pessoas. Essa diminuição de representantes da sociedade civil ao que parece, diminui a
possibilidade de escuta, articulação e de legitimação de outros olhares sobre o tráfico de pessoas
no Brasil, principalmente daqueles que, muitas vezes, acabam acessando esses atores num
primeiro momento577.
Esse espaço institucional exerce funções relevantes na construção, monitoramento e
articulação da política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil. São algumas
das atribuições do CONATRAP, em matéria de enfrentamento ao tráfico de pessoas: I - propor
estratégias para a gestão e a implementação das ações da Política Nacional de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas - PNETP, aprovada pelo Decreto nº 5.948, de 26 de outubro de 2006, e
dos planos nacionais de enfrentamento ao tráfico de pessoas; II - propor a elaboração de estudos
e pesquisas e incentivar a realização de campanhas relacionadas ao enfrentamento ao tráfico de
pessoas; III - fomentar e fortalecer a expansão da rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas,
em especial dos Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e dos Postos Avançados de
Atendimento Humanizado ao Migrante; IV - articular suas atividades àquelas dos Conselhos
Nacionais de Políticas Públicas que tenham interface com o enfrentamento ao tráfico de
pessoas, para promover a intersetorialidade das políticas; V - articular e apoiar tecnicamente os
comitês estaduais, distrital e municipais de enfrentamento ao tráfico de pessoas na definição de
diretrizes comuns de atuação, na regulamentação e no cumprimento de suas atribuições.
Com todas as críticas que se poderiam fazer ao CONATRAP, este era um espaço
democrático, paritário de participação das OSCs na construção da política pública do tráfico de
pessoas. Essa diminuição de representantes e a quebra paridade indica uma mudança na forma
de compreender a construção da política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas no

O CONATRAP é integrado pelos seguintes membros: a) Secretário Nacional de Justiça do Ministério da Justiça e
Segurança Pública, que o presidirá; b) Ministério das Relações Exteriores; c) Ministério da Cidadania; d)
Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos; e e) três representantes de organizações da sociedade
civil ou de conselhos de políticas públicas, que exerçam atividades relevantes e relacionadas ao enfrentamento
ao tráfico de pessoas.
577
As eleições de 2020 elegeram as seguintes OSC: Associação 27 Million Brasil – São Paulo (SP); Associação
Brasileira de Defesa da Mulher da Infância e da Juventude (ASBRAD) – Guarulhos (SP); Instituto EcoVida –
Macapá (AL). Ver em: https://legado.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/selecao/resultado-
preliminar-das-eleicoes-virtuais.pdf?fbclid=IwAR3a4hC7RX1Eg2G0OHyOMFPeN4TvhRRHPYW-
vdzebprN4yXIYVi3vAfKq5s. Acesso em: 15 ago. 2020.
257

Brasil, reduzindo um espaço institucional de participação direta de construção da política


pública.
A linha do tempo a seguir, auxilia na visualização dos principais momentos e
instrumentos do Brasil no enfrentamento ao tráfico de pessoas.

Figura 14. Linha do Tempo Política Pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil.

Figura de Elaboração Própria.

A linha do tempo da política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil


permite a verificação gráfica da temática do tráfico de pessoas na agenda pública do Brasil.
Para uma política relativamente nova, compreendendo a criação do Protocolo de Palermo
(2000) como sendo o ponto de partida da discussão internacional contemporânea da temática,
somado as ações com reflexo em todos os entes federativos no Brasil, pode-se afirmar que essa
política tem uma capilaridade e uma dimensão importantes no âmbito das políticas públicas
brasileiras.

4.2.3 A Legislação Interna sobre Tráfico de Pessoas no Brasil

Desde a internalização do Protocolo de Palermo em 2004, a legislação interna brasileira


sobre o tráfico internacional e interno de pessoas passou por várias alterações578, até a Lei n.
13.344/2016, que criou um novo paradigma do enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil.
O art. 16 da nova lei revoga os artigos 231 e 231-A do Código Penal, passando a vigorar o
seguinte tipo penal:

578
Vide Apêndice 6.
258

Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar


ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou
abuso, com a finalidade de:
I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;
II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;
III - submetê-la a qualquer tipo de servidão;
IV - adoção ilegal; ou
V - exploração sexual.
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
§ 1o A pena é aumentada de um terço até a metade se:
I - o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções
ou a pretexto de exercê-las;
II - o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com
deficiência;
III - o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de
coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de
superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função;
ou
IV - a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional.
§ 2o A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não
integrar organização criminosa.

Apesar das várias modificações legislativas, até a legislação atual, o Brasil não previa o
tráfico de pessoas para outras modalidades de exploração que não fossem a “prostituição ou
outra forma de exploração sexual”. Diversos grupos feministas defensores dos direitos das
trabalhadoras do sexo questionavam a palavra “prostituição”, mas somente em 2016 esse termo
é retirado, passando a deixar-se somente a exploração sexual.
Alguns autores compreendem que as estratégias nacionais estimuladas pelas
organizações internacionais, voltam-se à prevenção e controle da migração internacional de
brasileiras e brasileiros considerados das camadas pobres, racializadas e potenciais aspirantes
ao trabalho sexual, assim como às ações policiais repressivas sobre a prostituição em diversas
cidades do Brasil579.
A Lei n. 13.344/2016 prevê, de forma taxativa: I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes
do corpo; II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; III - submetê-la a
qualquer tipo de servidão; IV - adoção ilegal; ou V - exploração sexual580. Apesar do avanço

579
FELDMAN-BIANCO, Bela. O Brasil frente ao regime global de controle das migrações: direitos humanos,
securitização e violências. Travessia - Revista do Migrante, Ano XXXI, n. 83, p. 21, maio-ago. 2018 apud
PISCITELLI, A. Criminalização das migrações, tráfico de pessoas e violência. Apresentado no painel
Migrações, Deslocamentos e Violência. Coord. Bela Feldman-Bianco. IV EMBRA (Encontro de Antropologia
México e Brasil), Campinas, Unicamp, out. 2017.
580
É importante destacar que essa alteração legislativa também foi resultado da pressão dos movimentos sociais e
as organizações da sociedade civil e de duas Comissões Parlamentares de Inquérito: uma na Câmara de
Deputados e outra no Senado Federal. Ver em: BRASIL. Câmara dos Deputados. Relatório final da Comissão
Parlamentar de Inquérito Destinada a investigar o Tráfico de Pessoas no Brasil, suas causas,
consequências e responsáveis no período de 2003 a 2011, compreendido na vigência da Convenção de
Palermo. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-
temporarias/parlamentar-de-inquerito/54a-legislatura/cpi-trafico-de-pessoas-no-brasil/relatorio-final-
259

na ampliação das modalidades de finalidades do tráfico de pessoas, a legislação, com seu rol
taxativo de modalidades, não permite a ampliação de outras formas de exploração, conforme
prevê o Protocolo de Palermo, o que limita a atuação no enfrentamento. Um exemplo seria o
caso de se identificar uma situação de exploração de pessoas para fins de mendicância ou mula
de drogas. Ficando caracterizado, não poderia ser enquadrada no tipo penal do tráfico de
pessoas.
Outro aspecto importante da Lei é o silencio em relação a irrelevância do consentimento
dado pela vítima para a caracterização do crime. O Protocolo de Palermo estabelece
diferentemente que, preenchendo-se os elementos do crime do tráfico de pessoas (ação, meio,
fim), caracteriza-se o tráfico de pessoas mesmo que haja consentimento dado pela vítima. Essa
omissão do legislador brasileiro pode ser entendida pela Justiça como havendo consentimento
dado pela vítima, não se caracteriza o tráfico de pessoas. Nesse sentido, já há decisão
entendendo o consentimento irrelevante somente quando houver “grave ameaça, violência,
coação, fraude ou abuso.”581.
A Lei n. 13.344/2016, estabelece princípios e diretrizes importantes para a construção
de um enfrentamento ao tráfico de pessoas ancorado no respeito às vítimas. Entre eles, 1. não
discriminação por gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, nacionalidade, raça,
religião, situação migratória, etc.; 2. transversalidade das dimensões de gênero, orientação
sexual, origem étnica ou social, procedência, raça e faixa etária nas políticas públicas; 3. atenção
integral às vítimas diretas e indiretas, independentemente de nacionalidade e da colaboração
em investigações ou processos judiciais e, 4. proteção integral da criança e adolescente. Esses
princípios indicam o interesse formal do Brasil em caminhar na linha da construção de um
enfrentamento com enfoque em direitos, colocando a proteção da vítima, no centro da política.
A efetividade desses princípios, porém, nem sempre são garantidos.
A Lei ainda estabelece diretrizes que indicam a intenção de continuar construindo um
enfrentamento ao tráfico de pessoas por meio de uma política pública de Estado. Entre eles: I -
fortalecimento do pacto federativo; II - articulação com organizações governamentais e não
governamentais nacionais e estrangeiras; III - incentivo à participação da sociedade em

aprovado-e-parecer-da-comissao/relatorio-final-aprovado-e-parecer-da-comissao. Acesso em: 27 ago. 2020.


Ver em: BRASIL. Senado Federal. CPI do Tráfico de Pessoas. Disponível em: http://www.senado.gov.br/
noticias/especiais/traficodepessoas/. Acesso em: 27 ago. 2020.
581
TRF1 REGIÃO. Processo: 0005165-44.2011.4.01.3600. Disponível em: https://rtrf1.emnuvens.com.br/
trf1/article/view/145/108. Acesso em: 23 ago. 2020. Ver análise em: SILVA, Waldimeiry Correa. El actual
régimen jurídico brasileño contra la trata de seres humanos: aprendizaje y retos en tiempos complejos. In:
SANTOS, Martín; OSTOS, J. D. L. La tutela de la víctima de trata: una perspectiva penal, procesal e
internacional. [S. L.]: J.M. BOSCH EDITOR, 2019. p. 259-298. Disponível em: https://elibro.net/es/ereader/
universidadcomplutense/121207?page=259. Acesso em: 20 fev. 2020.
260

instâncias de controle social e das entidades de classe ou profissionais na discussão das políticas
sobre tráfico de pessoas; IV - estruturação da rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas,
envolvendo todas as esferas de governo e organizações da sociedade civil; V - fortalecimento
da atuação em áreas ou regiões de maior incidência do delito, como as de fronteira, portos,
aeroportos, rodovias e estações rodoviárias e ferroviárias; VI - estímulo à cooperação
internacional; [...] VIII - preservação do sigilo dos procedimentos administrativos e judiciais,
nos termos da lei; IX - gestão integrada para coordenação da política e dos planos nacionais de
enfrentamento ao tráfico de pessoas582.
Nessa perspectiva, as diretrizes traçadas demonstram a necessidade da articulação dos
atores governamentais e das OSCs, a articulação entre eles mesmos e as diversas esferas
federativas, a necessidade do diálogo da política do tráfico de pessoas com as outras políticas
públicas afins, a garantia da prevenção das vítimas etc.
A Lei 13.344/2016 estabelece orientações na linha da prevenção, repressão e
atendimento às vítimas.
A prevenção deve ser implementada por medidas intersetoriais e de construção de
políticas públicas transversais, em áreas como a de saúde, assistência, educação, segurança
pública e justiça, dentre outras, juntamente com a criação de campanhas socioeducativas e de
conscientização, com consequência direta em incentivo à mobilização e à participação da
sociedade civil583.
Para garantir a proteção e atendimento às vítimas diretas e indiretas584, estabelece as
medidas a seres garantidas no artigo 6, sem qualquer condicionalidade: I - assistência jurídica,
social, de trabalho e emprego e de saúde; II - acolhimento e abrigo provisório; III - atenção às

582
CAMARA. Artigo 3. Lei 13.344/2016. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2016/lei-
13344-6-outubro-2016-783708-publicacaooriginal-151187-pl.html. Acesso em: 28 ago. 2020.
583
Art. 4º Lei 13.344/2016. A prevenção ao tráfico de pessoas dar-se-á por meio: I - da implementação de medidas
intersetoriais e integradas nas áreas de saúde, educação, trabalho, segurança pública, justiça, turismo,
assistência social, desenvolvimento rural, esportes, comunicação, cultura e direitos humanos; II - de campanhas
socioeducativas e de conscientização, considerando as diferentes realidades e linguagens; III - de incentivo à
mobilização e à participação da sociedade civil; e IV - de incentivo a projetos de prevenção ao tráfico de
pessoas.
584
Diferentemente do que possa parecer, há diversos níveis de vítimas de tráfico de pessoas. Conforme o grau de
violência sofrida e as consequências psíquicas ou físicas vivenciadas a assistência deve ser prestada. Vítimas
diretas do tráfico são aquelas que sofrem diretamente a violência decorrente da exploração do aliciador ou
recrutador. São aquelas que acabam tendo todos os efeitos físicos e psicológicos resultantes da situação de ser
traficada. Vítimas indiretas do tráfico são pessoas próximas à vítima que acabam sofrendo as consequências
do tráfico de pessoas. Muitas vezes acabam sendo ameaçados pelas redes de tráfico de pessoas, ou até mesmo
sofrendo represálias. Geralmente as vítimas indiretas ou ocultas, como são chamadas, são pessoas da família
ou da rede social próxima da vítima direta. Ver em: TERESI, Verônica; HEALY, Claire. Guia de referência
para a rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil. Brasília, DF: Ministério da Justiça, Secretaria
Nacional de Justiça, 2012. Disponível em: http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-
pessoas/publicacoes/anexos/cartilhaguiareferencia.pdf. Acesso em: 20 ago. 2020.
261

suas necessidades específicas, especialmente em relação a questões de gênero, orientação


sexual, origem étnica ou social, procedência, nacionalidade, raça, religião, faixa etária, situação
migratória, atuação profissional, diversidade cultural, linguagem, laços sociais e familiares ou
outro status; IV - preservação da intimidade e da identidade; V - prevenção à revitimização no
atendimento e nos procedimentos investigatórios e judiciais; VI - atendimento humanizado; VII
- informação sobre procedimentos administrativos e judiciais.
Indica ainda que a atenção às vítimas dar-se-á compreendendo os aspectos de
recuperação física e psicológica, com a interrupção da situação de exploração ou violência, a
sua reinserção social, a garantia de facilitação do acesso à educação, à cultura, à formação
profissional e ao trabalho e, no caso de crianças e adolescentes, a busca de sua reinserção
familiar e comunitária e que se a vítima estiver no exterior, tratando-se de tráfico internacional,
a assistência imediata a vítimas brasileiras estará a cargo da rede consular brasileira e será
prestada independentemente de sua situação migratória, ocupação ou outro status.
Aspecto importante sobre a autorização de residência foi dado com a nova Lei de
Migração, nº. 13.445/17, previsto no artigo 30 e regulamentada somente em 2020, pela Portaria
87/2020585.
Art. 30. A residência poderá ser autorizada, mediante registro, ao imigrante,
ao residente fronteiriço ou ao visitante que se enquadre em uma das seguintes
hipóteses:[...] II - a pessoa: [...] g) tenha sido vítima de tráfico de pessoas, de
trabalho escravo ou de violação de direito agravada por sua condição
migratória586.

A Portaria 87/2020 foi um passo importante para garantir residência àquelas vítimas de
tráfico estrangeiras que decidam permanecer no Brasil. Porém, analisando detalhadamente a
portaria verificam-se ali alguns dispositivos que podem dificultar o acesso das vítimas a esse
direito587.

585
Portaria MJ n. 97/2020. Dispõe sobre a concessão e os procedimentos de autorização de residência à pessoa
que tenha sido vítima de tráfico de pessoas, de trabalho escravo ou de violação de direito agravada por sua
condição migratória. Ver em: BRASIL. Portaria Nº 87, de 23, de março de 2020.Disponível em: https://
www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-87-de-23-de-marco-de-2020-249440047. Acesso em: 15 ago. 2020.
586
BRASIL. Câmara dos Deputados. Lei de Migração no Brasil. Lei 13.445/2017. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm#:~:text=1%C2%BA%20Esta%
20Lei%20disp%C3%B5e%20sobre,pol%C3%ADticas%20p%C3%BAblicas%20para%20o%20emigrante..
Acesso em: 20 ago. 2020.
587
Analisando a Portaria, percebe-se:
Art. 2º Caberá à autoridade migratória competente, por meio de juízo discricionário, avaliar e decidir o
requerimento. § 1º A decisão deverá levar em conta a apresentação dos documentos mencionados no art. 5º
desta Portaria e considerar, sempre que possível, a efetiva colaboração do imigrante com as autoridades para
elucidar o crime do qual foi vítima e o grau de violação de direito ao qual foi submetido. (grifo nosso). A
expressão “sempre que possível” e “efetiva colaboração” podem ser interpretadas de formas diversas. Isso pode
causar limitações ao direito de residência. Por outro lado, o artigo 5 do mesmo dispositivo estabelece a lista de
documentos que devem instruir o requerimento de residência. Sabe-se que muitos das vítimas de tráfico
262

A repressão e responsabilização do tráfico de pessoas deve operar-se por meio da


cooperação de órgãos de justiça e segurança nacionais e internacionais, da formação de equipes
conjuntas de investigação (sejam da justiça estadual ou da justiça federal) e integração de
políticas de repressão a crimes correlatos e responsabilização de seus autores, além de conferir
à polícia e ao Ministério Público maiores poderes de investigação, conforme disposto no artigo
11588.
Esses documentos formam o principal arcabouço legal atual que determinam os
princípios, diretrizes e ações de prevenção e repressão ao tráfico e pessoas e de atenção às
vítimas. Esses documentos devem ser incorporados de forma transversal a outras políticas e
programas nacionais, como o Plano Nacional de Violência contra a Mulher, o Plano Nacional
de Erradicação do Trabalho Escravo, entre outras.
Nesse sentido, é importante destacar que, pelo caráter transversal e multidisciplinar
necessário para o enfrentamento ao tráfico de pessoas, há necessidade de as ações serem
pensadas e executadas conjuntamente. A política foi pensada para que o governo federal, desde
cada um dos Ministérios e respectivas secretarias afins, coordenasse ações conjuntas e

estrangeiras encontram-se indocumentados, o que pode ser um empecilho para conseguir a autorização de
residência.
588
Art. 11. O Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), passa a vigorar acrescido
dos seguintes arts. 13-A e 13-B:
“Art. 13-A. Nos crimes previstos nos arts. 148 , 149 e 149-A , no § 3º do art. 158 e no art. 159 do Decreto-Lei no
2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal) , e no art. 239 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto
da Criança e do Adolescente) , o membro do Ministério Público ou o delegado de polícia poderá requisitar, de
quaisquer órgãos do poder público ou de empresas da iniciativa privada, dados e informações cadastrais da
vítima ou de suspeitos.
Parágrafo único. A requisição, que será atendida no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, conterá:
I - o nome da autoridade requisitante;
II - o número do inquérito policial; e
III - a identificação da unidade de polícia judiciária responsável pela investigação.”
“Art. 13-B. Se necessário à prevenção e à repressão dos crimes relacionados ao tráfico de pessoas, o membro do
Ministério Público ou o delegado de polícia poderão requisitar, mediante autorização judicial, às empresas
prestadoras de serviço de telecomunicações e/ou telemática que disponibilizem imediatamente os meios
técnicos adequados – como sinais, informações e outros – que permitam a localização da vítima ou dos
suspeitos do delito em curso.
§ 1º Para os efeitos deste artigo, sinal significa posicionamento da estação de cobertura, setorização e intensidade
de radiofrequência.
§ 2º Na hipótese de que trata o caput , o sinal:
I - não permitirá acesso ao conteúdo da comunicação de qualquer natureza, que dependerá de autorização judicial,
conforme disposto em lei;
II - deverá ser fornecido pela prestadora de telefonia móvel celular por período não superior a 30 (trinta) dias,
renovável por uma única vez, por igual período;
III - para períodos superiores àquele de que trata o inciso II, será necessária a apresentação de ordem judicial.
§ 3º Na hipótese prevista neste artigo, o inquérito policial deverá ser instaurado no prazo máximo de 72 (setenta e
duas) horas, contado do registro da respectiva ocorrência policial.
§ 4º Não havendo manifestação judicial no prazo de 12 (doze) horas, a autoridade competente requisitará às
empresas prestadoras de serviço de telecomunicações e/ou telemática que disponibilizem imediatamente os
meios técnicos adequados – como sinais, informações e outros – que permitam a localização da vítima ou dos
suspeitos do delito em curso, com imediata comunicação ao juiz.”
263

articuladas junto com os governos estaduais, municipais, organismos intergovernamentais e


organizações da sociedade civil.
Mesmo antes da ratificação de Palermo, foram desenvolvidas ações por alguns
ministérios, no sentido de se aproximar da identificação do fenômeno do tráfico de pessoas e
conhecer a expressão deste no Brasil. Descrever-se-á algumas destas ações, elencadas pela
importância e reflexo destas no caminho da construção do enfrentamento ao tráfico de pessoas
no Brasil.

4.3 O Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas: olhares interministeriais

4.3.1 Ministério da Justiça – Secretaria Nacional de Justiça (SNJ)

O Ministério da Justiça foi um Ministério precursor no enfrentamento ao tráfico de


pessoas quando já em 2001, através da Secretaria Nacional de Justiça (SNJ), articulou, uma
parceria com o Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC) para
desenvolver um projeto nacional de prevenção e enfrentamento ao crime de Tráfico de Seres
Humanos no Brasil. O projeto “Medidas de Combate ao Tráfico de Seres Humanos”589 que
atuou até agosto de 2005 nos Estados do Ceará, Goiás, Rio de Janeiro e São Paulo 590 e
estabeleceu como objetivos iniciais: 1) compilar a legislação nacional e os acordos
internacionais sobre Tráfico de Seres Humanos – TSH; 2) capacitar os operadores de Justiça
sobre particularidades na investigação e aplicação da lei nos casos de tráfico; 3) criar um banco
de dados com informações sobre os casos de TSH (perfil das vítimas, localidades de maior
incidência do tráfico de pessoas, perfil das organizações criminosas, dados sobre os processos
de investigação e responsabilização referente ao tráfico); 4) realizar campanha de
sensibilização. Nesse sentido, criou-se, ainda em 2004, a campanha “Tráfico internacional de
mulheres – Denuncie”, que durou dois meses e depois com a distribuição de panfletos junto aos
passaportes emitidos pela Polícia Federal; 5) Implantar escritórios Regionais de prevenção e
combate ao tráfico de pessoas em Goiás, Rio de Janeiro, São Paulo e Ceará onde formaram-se
redes de entidades parceiras para iniciar o trabalho de atendimento. Esse foi um primeiro
embrião dos Núcleos Estaduais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e os Comitês Estaduais

589
O projeto foi um piloto, coordenado pela SNJ em parceria com o Escritório do UNODC, de acordo com o
Programa Global contra o Tráfico de Seres Humanos das Nações Unidas (GPATHB).
590
Os Estados escolhidos para o projeto piloto são: Ceará e Goiás (locais de origem de grande parte das vítimas
de tráfico) e Rio de Janeiro e São Paulo (por possuírem os principais aeroportos internacionais do país).
264

de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que foram instituídos anos depois (2007) com os
Planos Nacionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.
A Secretaria Nacional de Justiça iniciou com a realização de pesquisas para conhecer
um pouco mais sobre a temática no Brasil. Nesse momento financiou a realização de três
pesquisas: A primeira referiu-se ao levantamento de casos, inquéritos e processos judiciais
registrados nos Tribunais de Justiça Federal e nas superintendências da Polícia Federal dos
quatro Estados do projeto piloto, entre dezembro de 2000 e janeiro de 2003. A segunda
pesquisa, realizada 2005, “Indícios de tráfico de pessoas no universo de deportadas e não
admitidas que regressam ao Brasil via aeroporto de Guarulhos”, foi feita em parceria com a
Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania de São Paulo, o Escritório das Nações Unidas contra
Drogas e Crime (UNODC), Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, a Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (ANVISA), Receita Federal, a Empresa Brasileira de Infra-Estrutura
Aeroportuária (Infraero), a Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da
Juventude (ASBRAD)591, dentre outros592. O objetivo da pesquisa era detectar brasileiras
vítimas de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, que retornaram ao Brasil pelo
aeroporto de Guarulhos na condição de deportadas ou não admitidas. Em 2006 foi lançada a
terceira pesquisa, “Tráfico de Seres Humanos para Fins de Exploração Sexual no Rio Grande
do Sul” com o propósito de realizar um mapeamento das rotas de tráfico internacional de
pessoas no Estado, aprofundando a PESTRAF realizada em 2002593.
Nesses anos iniciais, a Secretaria Nacional de Justiça realizou cursos de capacitação em
São Paulo (2003), Ceará (2004), Goiás (2004) e Rio de Janeiro (2005). Colaborou também com
a realização das oficinas regionais para policiais promovido pela Secretaria Nacional de
Segurança Pública (SENASP), OIT, Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), Polícia
Federal, Academia Nacional de Polícia, Ministério Público, Ministério Público Federal,
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) e outros parceiros.

591
Em 2006 foi aberto o Posto de Atendimento Humanizado de Migrantes, dentro do aeroporto de Guarulhos,
coordenado pela ASBRAD (Associação Brasileira de Defesa da Mulher, Infância e da Juventude), que
pretendia “acolher todos os brasileiros deportados e não admitidos que chegam pelo aeroporto de Guarulhos e
assistir aqueles brasileiros identificados como vítimas de tráfico de pessoas, principalmente mulheres e
transgêneros, encaminhando-os â rede de proteção social existente.” A OSC ASBRAD realizou naquele
momento duas capacitações no sentido de fornecer uma formação sobre o padrão internacional de violação aos
direitos humanos conhecido como tráfico internacional de pessoas e sobre o fenômeno das migrações, tanto
regular como irregular. Ver: SNJ. II Capacitação sobre Tráfico de Pessoas e Imigração Irregular. Brasília,
DF: SNJ, 2007. p. 19-20. Apostila de Curso.
592
SNJ. Relatório Indícios de tráfico de pessoas no universo de deportadas e não admitidas que regressam ao Brasil
via aeroporto de Guarulhos. Brasília, DF: Ministério da Justiça, 2006.
593
SNJ. Relatório: o tráfico de seres humanos no Estado do Rio Grande do Sul. Brasília, DF: Ministério da Justiça,
2006
265

Desde 2006, compete a Coordenação-Geral de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e


Contrabando de Migrantes (SNJ/MJ) a missão de coordenar a Política Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, aprovada pelo Decreto n. 5948/2006. Nesse sentido,
abrange os processos de trabalho que visam, prioritariamente, fomentar a articulação das
instâncias de gestão integrada da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas,
instituída por meio do Decreto nº 5.948, de 26 de outubro de 2006, para implementação das
ações de enfrentamento ao tráfico de pessoas, além de coordenar o processo de planejamento,
elaboração, implementação, monitoramento e avaliação dos Planos Nacionais de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Além disso, abrange também o fomento de iniciativas
voltadas ao enfrentamento ao tráfico de migrantes. Esta coordenação-geral também é
responsável por coordenar a Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas composta
pelos Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP), Postos de Atendimento
Humanizado ao Migrante (PAAHM) e Comitês de enfrentamento ao tráfico de pessoas do
Brasil.
A Coordenação-Geral se utiliza de um modelo de governança para sua atuação que
compreende no Grupo Interministerial de Monitoramento e Avaliação do III Plano (Decreto n.
9796/2019, o CONATRAP, a Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas,
composta pelos NETP, PAAHM e Comitês Estaduais de enfrentamento ao tráfico de pessoas
594
e, os órgãos colegiados dos quais participa. A Coordenação-Geral participa continuamente
dos trabalhos desenvolvidos por outros órgãos colegiados, em função da transversalidade do
tema. Entres eles: Conselho Deliberativo do Programa Federal de Assistência a vítimas e
testemunhas ameaçadas – CODESF-PROVITA595; Comissão Intersetorial de Enfrentamento à
violência sexual contra crianças e adolescentes – CIEVSCA596; Comissão Nacional de
Erradicação do Trabalho Infantil – CONAETI597; Comissão Nacional para Erradicação do
Trabalho Escravo (CONATRAE), vinculada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos; Comitê Nacional do Ministério Público de Combate ao Trabalho em Condições
Análogas à de Escravo e ao Tráfico de Pessoas (CONATETRAP), vinculado ao Conselho
Nacional do Ministério Público598.

594
Ibid., p. 12.
595
Regulamentado pela Lei n. 9807/1999 e Decreto n. 3518/2000.
596
Decreto n. 11/2007.
597
Portaria MTb n. 952, de 08/07/2003.
598
BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório de Gestão da Coordenação-Geral de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas e Contrabando de Migrantes: Relatório de Gestão 2019/2020. Brasília, DF: Ministério da Justiça,
2020.
266

O orçamento destinado à implementação da Política Nacional de Enfrentamento ao


Tráfico de Pessoas, do Ministério da Justiça de 2014 até 2019 foi sendo consideravelmente
reduzido o que pode estar, de alguma maneira, diminuindo a capacidade de atuação do
Ministério ou, estimulando a parceria da atuação do MJ com outros atores, entre eles, com
organizações intergovernamentais que financiem projetos de interesse da política nacional de
enfrentamento ao tráfico de pessoas.

Tabela 6. Orçamento Ministério da Justiça para Política Nacional tráfico de pessoas

AÇÃO DE GOVERNO 20I7 - POLÍTICA NACIONAL DE JUSTICA


PLANO ORÇAMENTÁRIO EXERCÍCIO
2014 2015 2016 2017 2018 2019

IMPLEMENTAÇÃO PNETP
R$1.400.000 R$1.700.000 R$555.000 R$587.332 R$356.360 R$639.246

Fonte: Relatório de Gestão da Coordenação-Geral de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e


Contrabando de Migrantes 2020.

Nesse sentido, é interessante verificar na planilha abaixo, as parcerias construídas, desde


2012, com organizações internacionais para o apoio e fortalecimento do enfrentamento ao
tráfico de pessoas no Brasil. Importante notar que, os projetos propõem a vinculação de
mecanismos de “gerenciamento” ou de controle dos fluxos migratórios e vinculam identificação
das vítimas com necessidade de fortalecimento do número de investigações e condenações. A
perspectiva dos projetos está diretamente ligada a perspectiva securitária do enfrentamento ao
tráfico de pessoas, conforme determina o Protocolo de Palermo, o que, teoricamente, afastaria
a perspectiva do enfoque em direitos, priorizando as vítimas599.

599
Não houve acesso às parcerias anteriores firmadas entre o Brasil e outras OIs na temática do tráfico de pessoas.
267

Tabela 7. Parcerias governo Brasileiro com OIs para o fortalecimento do enfrentamento ao


tráfico de pessoas no Brasil

ORG. PROPONENTE - OBJETIVO PERÍODO FINANCIADOR


PROJETO
OIT Elaboração do Plano de Cooperação Trilateral 2001-2004 OIT
Programa de Prevenção e (2005), o qual estabelece políticas de combate à
Eliminação da Exploração exploração sexual de crianças e adolescentes na
Sexual de Crianças e tríplice fronteira do Sul do Brasil.
Adolescentes na fronteira
Argentina/Brasil/Paraguai
OIT Promover ações integradas de atores nacionais e 2003-2006 OIT
Projeto Tráfico de Seres internacionais para desenhar e implementar
Humanos I políticas para combater o tráfico de pessoas para
fins de exploração sexual no Brasil, e entre o
Brasil e Espanha, Portugal, Itália, Alemanha,
Holanda e Estados Unidos.
ICMPD Fortalecer a capacidade do governo brasileiro 2012-2017 UE
Migrações para melhor gerir os fluxos migratórios, com
Transfronteiriças: foco na assistência e na integração de grupos
fortalecendo a capacidade vulneráveis, como retornados, migrantes e
do governo brasileiro para potenciais vítimas de tráfico.
gerenciar novos fluxos
migratórios (MT-Brasil)
PNUD-UNODC Parceria SNJ e PNUD para fornecer suporte à 2015/2017 PNUD
Carta Acordo SNJ para finalizar o II PNETP e preparar o III
PNETP. Produtos: Avaliação do II PNETP;
Relatório Nacional de Dados II PNETP;
Metodologia para o III PNETP.
UNODC Assistência às autoridades governamentais e 2017/2020 UNODC e UE
GLO.ACT sociedade civil em mais de 13 países
selecionados, apoiando respostas efetivas ao
tráfico de pessoas no âmbito da assistência, pelo
fortalecimento da identificação,
encaminhamento e mecanismos de suporte.
ICMPD Fortalecer a capacidade do governo brasileiro em 2018-2020 Departamento de
“Atenção Brasil” todas as esferas, identificação, proteção e Estado dos
referenciamento de vítimas de tráfico de pessoas. Estados Unidos
Aumentar o número de investigações, acusações
e condenações.
268

UNODC Melhorar a resposta da justiça criminal regional 2019/2022 Departamento de


TRACK4TIP ao tráfico de pessoas nos fluxos migratórios dos Estado dos
países beneficiários, por meio de uma abordagem Estados Unidos.
multidisciplinar e centrada na vítima, com ações
regionais e nacional para identificar, prevenir e
processar casos.
FIIAPP, OIM, FRONTEX. Contribuir para maior grau de segurança, 2020-2024 UE
EUROFRONT: Programa respeito e proteção dos direitos humanos, como
de Gestão Integrada de para o desenvolvimento social e econômico da
Fronteiras na América América Latina.
Latina
Fonte: Ministerio da Justiça600..

Essas parcerias do Brasil com organizações internacionais compõe a complexidade do


regime do enfrentamento ao tráfico de pessoas que, por meio de seus projetos, auxiliam no
enfrentamento ao tráfico ao mesmo tempo que condicionam aspectos do enfrentamento
entendidos como relevantes para esse apoio, entre eles, pode ser destacado, gerir e criar
mecanismos de controle das fronteiras e dos fluxos migratórios, melhorar a efetividade da
responsabilização dos traficantes. Percebe-se, que nem sempre esses apoios das OIs têm como
meta principal a garantia do direito das vítimas.

4.3.2 Ministério da Justiça – Secretaria Nacional de Segurança Pública (SNSP)

A Secretaria Nacional de Segurança Pública, ligada ao Ministério da Justiça601,


realizou em 2004, em parceria com a Organização Internacional do Trabalho, a Secretaria
Nacional de Direitos Humanos, a Secretaria de Políticas para as Mulheres, a Secretaria Nacional
de Justiça, a Polícia Federal e a Procuradoria da República, o Seminário Nacional sobre Tráfico
de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual, reunindo policiais civis,
militares, rodoviários federais e operadores do direito, objetivando iniciar a capacitação dos
profissionais de segurança pública e à implementação de uma política pública de enfrentamento
ao tráfico de pessoas em todo o país.

600
BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório de Gestão da Coordenação-Geral de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas e Contrabando de Migrantes: Relatórios de Gestão 2016/2020. Brasília, DF: Ministério da
Justiça, 2020.
601
Ver em: BRASIL. Ministério da Justiça. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-
pessoas. Acesso em: 5 mar. 2020.
269

Implantou-se o Projeto de Educação a Distância, denominado “Segurança Pública e


Educação ao Alcance de Todos” (2005) que tinha a função de capacitar os profissionais da
segurança pública de todo o Brasil. A Academia Nacional de Polícia (ANP) participou da
elaboração do Manual “Tráfico de Pessoas para Fins de Exploração Sexual”, que foi publicado
pela então Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, utilizado no primeiro curso de
capacitação à distância coordenado pela SNSP. Ademais, a coordenação de Altos Estudos de
Segurança Pública incluiu o tema de Tráfico de Pessoas para Fins de Exploração Sexual nos
cursos de formação profissional de policiais federais.
Desde 2004 a Polícia Federal tem realizado operações policiais de inteligência na área
do tráfico de pessoas, muitas vezes em conjunto com as polícias de países receptores de vítimas
brasileiras, resultando na prisão de vários suspeitos tanto no Brasil quanto no exterior.
A Polícia Rodoviária Federal tem competência específica de atuação focada na
importância social da criança e do adolescente602. Fiscaliza o trânsito de crianças, adolescentes
e adultos sem a devida documentação pelas rodovias, realizando operações específicas em áreas
vulneráveis à exploração sexual e ao trabalho escravo. Desenvolve, desde 2003 o “Projeto
Mapear” que consiste no levantamento de todos os pontos vulneráveis a Exploração Sexual de
Crianças e Adolescentes visando subsidiar a implementação de Políticas Públicas e auxiliar nas
ações organizadas pela Sociedade e outros entes e associações. Conseguiu mapear mais de 1200
pontos de exploração sexual de crianças e adolescentes nas rodovias federais, em parceria com
as redes de proteção social locais603.

602
A competência da PRF está disposta no artigo 144, II, parágrafo 2º, da Constituição Federal e Decreto Lei nº
1.655/95. Estabelece que a PRF deve “IX- efetuar a fiscalização e o controle do tráfego de menores nas rodovias
federais, adotando as providências cabíveis contidas na Lei nº8.069 de 13/06/1990.”
603
O projeto Mapear classifica os espaços como: 1. PONTOS VULNERÁVEIS são ambientes ou estabelecimentos
nos quais os agentes da Polícia Rodoviária Federal identificam características que apresentam um cenário
suscetível ou propenso à ESCA, ou seja, de VULNERABILIDADE; 2. PONTOS COM INDÍCIOS são aqueles
nos quais o agente identificou indícios, recebeu informações, dados denúncias ou ocorrências passadas, mas
não conseguiu confirmar a situação apontada; 3. PONTOS CONFIRMADOS são aqueles nos quais um agente
confirmou a presença de crianças e adolescentes em situação comprovada de exploração sexual, realizou a
repressão do ilícito e encaminhou as vítimas ao Conselho Tutelar. Ver em: NAMÃOCERTA. Projeto mapear:
mapeamento dos pontos vulneráveis à exploração sexual de crianças e adolescentes. Disponível em:
http://www.namaocerta.org.br/pdf/6ee/MarciaVieira_ProjetoMapear.pdf. Acesso em: 15 jul. 2020.
270

4.3.3 Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos604

A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) estabeleceu, em 2004, a


Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher através do Plano Nacional de
Políticas para as Mulheres, assumindo ações nas áreas de prevenção, enfrentamento e
assistência. Nesse contexto, como uma das ações criou as Delegacias Especializadas de
Atendimento à Mulher (DEAMs), que têm competência, entre outras temáticas, para atuar nos
casos de tráfico interno envolvendo mulheres.
Em 2005 lançou a Central de Atendimento à Mulher (através do telefone 180) que até
hoje recebe denúncias, orienta e encaminha para os órgãos competentes os casos de violência
contra a mulher, inclusive os que envolvam o tráfico de mulheres. Os últimos dados disponíveis
indicam, em 2018, a denúncia de 103 casos de tráfico de mulheres e, até junho de 2019, 16
casos605.
A Secretaria Especial de Direitos Humanos – SEDH (2003)606 coordenou o Programa
Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes que visa o
enfrentamento à exploração sexual comercial e o tráfico de crianças e adolescentes para os
mesmos fins. O Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência
Sexual contra Crianças e Adolescentes no Território Brasileiro (PAIR) visava fortalecer as
redes locais através de ações integradas, possibilitando a articulação e a integração dos serviços
existentes, associada à participação social na construção dos processos. O PAIR constituiu e
testou uma metodologia de atenção consolidada em Planos de Ação que serão replicados em

604
Importante destacar que no site do Ministério não aparece nada relacionado às políticas para mulheres (2019-
2020). Ver em: https://www.gov.br/mdh/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres. Acesso em: 4 abr. 2020.
O que será descrito nesta seção se refere ao período de 2003 a 2018, quando existia a Secretaria Nacional de
Políticas para as Mulheres (SNPM). Fundada em 2003, a Secretaria possuía status de ministério e era vinculada
à Presidência da República. Deixou de ter status de ministério, em outubro de 2015, sendo incorporada ao então
recém-criado Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (MMIRDH), unindo a
Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a Secretaria de Direitos Humanos e a Secretaria de
Políticas para as Mulheres. Em 2016, o presidente interino Michel Temer extinguiu o MMIRDH e atribuiu suas
funções ao Ministério da Justiça, que passou a se chamar oficialmente Ministério da Justiça e Cidadania. No
governo atual (2019- ) foi criado o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que incorporou
essa pasta.
605
BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Dados referentes ao Ligue 180.
Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2019/agosto/balanco-anual-ligue-180-recebe-
mais-de-92-mil-denuncias-de-violacoes-contra-mulheres. Acesso em: 15 set. 2020.
606
A Secretaria Especial dos Direitos Humanos – SEDH foi criada pela Lei no 10.683, de 28 de maio de 2003. Foi
criada como órgão da Presidência da República e tinha por atribuições articular e implementar as políticas
públicas voltadas para a promoção e implementação dos direitos humanos. Composta por órgãos colegiados e
executivos, assessorias e grupos de trabalho temáticos que auxiliavam o Secretário Especial dos Direitos
Humanos na implementação da Política Nacional de Direitos Humanos, a SEDH atua de acordo com as
diretrizes do Programa Nacional de Direitos Humanos. Foi incorporado pelo Ministério da Mulher, da Família
e dos Direitos Humanos. Ver em: BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br. Acesso em: 15 jul. 2020.
271

regiões do país. Em 2006, a metodologia do PAIR foi disseminada em 43 municípios de 11


unidades da Federação.
O atual Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos coordena o Disque
Denúncia Nacional (Disque 100)607, que recebe denúncias de violação de direitos de crianças e
adolescentes, principalmente de violações ligadas aos direitos sexuais e reprodutivos. Recebe
também denúncias de tráfico de pessoas sendo estas enviadas imediatamente à Divisão de
Direitos Humanos da Polícia Federal para investigações. Anualmente, tem sido publicado um
Relatório Anual da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, por meio do qual foi possível
obter os dados relativos ao número de denúncias de tráfico de pessoas608.
Analisando dados indicados, percebe-se uma diminuição expressiva das denúncias
sobre tráfico de pessoas em 2019, porém, não se tem dados e informações dos motivos do
porquê dessa diminuição. Isso também é possível de ser verificado nos dados do Disque 180,
já indicados.

Tabela 8. Número de denúncias de tráfico de pessoas registradas pelo Disque 100 -Brasil - 2016 a
2019
Número de denúncias de tráfico de pessoas registradas pelo Disque 100
Brasil - 2016 a 2019
Tipo de violação 2016 2017 2018 2019
Tráfico de pessoas 106 226 159 62
Fonte: Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos/MMFDH609.

O Relatório de Avaliação do II PNETP indica que 10 (dez) Centros de Referência


Especializados de Atendimento à Mulher foram qualificados para promoverem atenção às
vítimas do tráfico de pessoas e integrados à rede de atenção e proteção dessas vítimas610.

607
BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Disque 100. Disponível em:
https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/ouvidoria/balanco-disque-100. Acesso em: 4 mar. 2020.
608
BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Balanço Disque 100. Disponível em:
https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/ouvidoria/balanco-disque-100. Acesso em: 15 ago. 2020.
609
BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório de Gestão da Coordenação-Geral de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas e Contrabando de Migrantes: relatório de gestão 2019/2020. Brasília, DF: Ministério da Justiça,
2020.
610
Em 2015, “a SPM firmou convênio com o Projeto Fronteiras: atendimento humanizado às mulheres em situação
de tráfico de pessoas e outras formas de violência, coordenado pela Associação Brasileira de Defesa da Mulher
da Infância e da Juventude (ASBRAD). Foram capacitados cerca de 500 profissionais pertencentes à rede de
proteção à mulher vítima do tráfico de pessoas e outras formas de violência, o que inclui Centros de Referência
Especializados no Atendimento à Mulher, CRAS e CREAS, em 10 cidades brasileiras: Tabatinga/AM,
Oiapoque/AP, Pacaraima/RR, Ponta Porã/MS, Corumbá/MS, Foz do Iguaçu/PR, Bonfim/RR, Brasileia/AC,
Jaguarão/RS e Santana do Livramento/RS, com o envolvimento de técnicos de serviços especializados no
atendimento à mulher em situação de violência, além dos serviços da assistência social, da segurança pública
e da saúde.” Ver em: UNODC. Relatório de Avaliação dos Resultados II Plano Nacional de Enfrentamento
272

Esse Ministério também é responsável pela participação do Brasil na RMAAM –


Reunião de Ministras e Altas Autoridades do Mercosul e por criar condições para a efetivação
do Protocolo Mecanismo de Articulação para Atenção a Mulheres em Situação de Tráfico
Internacional de Pessoas, criado em 2014611.

4.3.4 Ministério da Cidadania

O Ministério da Cidadania é um dos Ministérios essenciais, principalmente no âmbito


das suas Secretaria do Desenvolvimento Social e Secretaria Nacional da Assistência Social, no
que se refere a assistência dada às vítimas de tráfico. A Política Nacional de Assistência Social
(PNAS) foi aprovada em 2004 e a Norma Operacional Básica da Assistência Social –
NOB/SUAS em 2005, criando o Sistema Único de Assistência Social (SUAS)612. Ele reorganiza
os serviços, programas e ações da assistência social em diferentes níveis de proteção (básica e
especial), conforme as complexidades das situações e demandas do público alvo.
O SUAS tem como fundamento a proteção das pessoas, no que se refere à preservação
das vidas no sentido de prover condições mínimas para a construção de direitos. Parte da
antítese do assistencialismo, para garantir o reconhecimento de direitos. A solidariedade é
entendida como um valor do Estado e da sociedade civil, que deve garantir direitos a todos os
usuários da proteção social. Nessa perspectiva, ela é política de proteção social não-
contributiva, pela universalidade no acesso e pela gestão compartilhada entre os entes
federativos. A política da assistência social adota como diretrizes a centralidade nos territórios
de vida das pessoas e na matricialidade sócio-familiar como bases para o redesenho e
ressignificação das medidas de proteção social.

ao Tráfico de Pessoas. 2018. p. 43-44. Disponível em: https://www. justica. gov.br/sua-protecao/trafico-de-


pessoas/publicacoes/anexos/relatorio-de-avaliacao-ii-plano-final-agosto2018.pdf. Acesso em: 15 jun. 2020.
611
A pesar de esse Protocolo já existir há alguns anos, não foi identificado nenhum caso junto à rede, que tivesse
utilizado esse Protocolo de Articulação. O caso a que se teve conhecimento, de vítimas brasileira de tráfico de
pessoas para fins de exploração laboral, que precisou ser trazida ao Brasil, veio por meio do Núcleo de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas-RJ(NETP-RJ) e foi conduzido pelas autoridades argentinas (Programa
Nacional de Rescate y Acompañamiento a las personas damnificadas por el delito de Trata de Personas), pela
OIM (Programa de Apoio ao Retorno Voluntário e à Reintegração), e NETP-RJ, que a recepcionou no
aeroporto Internacional Tom Jobim juntamente com uma psicóloga da Caritas Arquidiocesana (Programa de
Atendimento aos Resgatados do Trabalho Escravo (PARTES) e deu continuidade a um Plano de Atendimento
Individualizado. ICMPD. Guia assistência e referenciamento de vítimas de tráfico de pessoas. Atualizado
de acordo com a Lei n. 13.344/2016. 2020. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/
pgr/documentos/Guia_Assistencia_ICMPD_versao_digital_simples_FINAL.pdf. Acesso em: 15 ago. 2020.
612
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Política Nacional de Assistência Social
PNAS/ 2004. Disponível em: http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/
Normativas/PNAS2004.pdf. Acesso em: 15 ago. 2020.
273

A proteção social constitui um conjunto de ações, atenções, benefícios e auxílios cujo


objetivo é reduzir e prevenir o impacto das circunstâncias sociais e naturais decorrentes do ciclo
da vida, das condições de sobrevivência daqueles em maior situação de vulnerabilidade social.
Conforme o PNAS, há duas formas de proteção social: a proteção social básica e a especial. A
proteção social básica é destinada à população em situação de vulnerabilidade e risco social.
Tem como objetivo prevenir situações de risco por meio do desenvolvimento de potencialidades
e fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários613. Essa assistência é fornecida
diretamente pelos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) ou indiretamente pelas
entidades e organizações de assistência social autorizados, além da perspectiva de um trabalho
em parceria.
A proteção social especial614 é destinada a famílias e indivíduos que se encontram em
situações de risco pessoal e social pela ameaça ou violação de direitos. A proteção social
especial está hierarquizada por níveis de complexidade, em serviços de proteção social especial
de média e alta complexidade. Essa assistência é garantida pelo Centro de Referência
Especializado de Assistência Social (CREAS), que se constitui como um polo coordenador,
articulador e de referência da proteção especial de média complexidade. Nesse tipo de
assistência são contempladas as ações de combate ao trabalho infantil e enfrentamento do abuso
e exploração sexual de crianças e adolescentes, por exemplo. Os serviços de proteção social de
alta complexidade devem garantir proteção integral para famílias e indivíduos que se encontrem
sem referência, com vínculos familiares rompidos, em situação de ameaça ou violação efetiva
de direitos.
No que se refere ao atendimento das vítimas de tráfico de pessoas, o atendimento no
âmbito do SUAS se dá pela prevenção e pelo atendimento psicossocial e jurídico, considerando
sua especialidade de garantir seguranças sociais como a acolhida, o direito ao convívio e
convivência social, o direito à sobrevivência por meio do acesso a programas de transferência
de renda. A prevenção realiza-se através de ações desenvolvidas no âmbito da proteção social
básica (CRAS), com a manutenção dos vínculos familiares e comunitários, inserção social,
desenvolvimento da autoestima e aumento da condição econômica do beneficiário. O
atendimento psicossocial e jurídico é oferecido também pelos CREAS, visando reparar a
situação de violação de direitos, resgatando e fortalecendo os vínculos familiares e
comunitários, proporcionando um atendimento integral do indivíduo.

613
Ibid., p. 33.
614
Ibid., p. 36.
274

A rede socioassistencial do SUAS soma-se à Rede Nacional de Enfrentamento ao


Tráfico de Pessoas para o atendimento às vítimas diretas e indiretas. Mais adiante abordar-se-á
especialmente sobre a forma como a assistência às vítimas de tráfico de pessoas é oferecida no
Brasil.

4.3.5. Ministério da Saúde (MS)

No período de vigência do II PNETP, o MS desenvolveu estratégias para fortalecer a


capacidade de atendimento das vítimas do tráfico de pessoas no âmbito do SUS, em sua maioria
sistematizadas em publicações para orientação ao atendimento615. Contudo, ainda não existem
indicadores se essas estratégias foram incorporadas nos atendimentos do SUS e o número de
unidades integradas à rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas.
Outro instrumento importante para identificar situações de violência resultante do
tráfico de pessoas é a Ficha de notificação de violência doméstica, sexual e outras violências
616
estabelecida para disparar as ações de proteção e atendimento e as ações de
responsabilização dos autores. As informações geradas por essa ficha de notificação
compulsória são importantes pois consegue mapear, em âmbito local, a partir de cada serviço
que tenha contato com uma vítima de tráfico, permitindo tanto a criação de políticas de
atendimento como de prevenção. Esse poderoso instrumento não está sendo utilizado com a sua
potencialidade.

4.3.6 Ministério das Relações Exteriores (MRE)

O MRE vem participando do combate ao tráfico de pessoas e à violência sexual


participando de diversos espaços de discussão em âmbito multilateral regional, bilateral e
nacional617. Dispõe de rubrica orçamentária na área de assistência consular para custear a
repatriação de nacionais brasileiros em situação de desvalimento e vulnerabilidade no exterior,

615
BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde, migração e tráfico e violência contra as mulheres: o que o SUS
precisa saber. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 2013.
616
BRASIL. Ministério da Saúde. Ficha de Notificação de Violência. Secretaria de Vigilância em Saúde.
Disponível em: https://www.saudedireta.com.br/docsupload/1332106192ficha_notificacao.pdf. Acesso em: 15
set. 2020.
617
RODRIGUES, Gilberto M. A. Cooperación internacional, asistencia consular y derechos humanos de las
víctimas de trata: ¿un cambio de paradigma? In: MALAMUD, Andrés; FLÓREZ, Fernando Carrillo (org.).
Migrações, coesão social e governação. 1. ed. Lisboa: Instituto de Ciencias Sociais, 2011. v. 1, p. 55-69.
275

dentre as quais, vítimas de tráfico de pessoas. Em abril de 2016, o valor destinado para esse
custeio era da ordem de R$ 61.737,43618.
Os consulados brasileiros no exterior devem ter uma relação atualizada de serviços para
o atendimento emergencial de vítimas brasileiras de tráfico de pessoas. Os consulados sediados
nos países com expressiva comunidade brasileira mapearam e elaboraram listas de entidades e
casas de abrigo em suas jurisdições. Além disso, os consulados têm realizado consulados
itinerantes, que representam oportunidade de fortalecer os serviços consulares brasileiros no
exterior relacionados ao tema do tráfico de pessoas, uma vez que alcançam comunidades
brasileiras em localidades onde não há sede física das repartições consulares. Dados da
avaliação do II PNETP indicou que durante os consulados itinerantes, foram realizadas
palestras sobre temas de interesse da comunidade, entre os quais o tema do enfrentamento ao
tráfico de pessoas visando o cumprimento desta meta. Foram realizados 220 consulados
itinerantes no exterior em 2013; realizaram-se 163 missões itinerantes em 2014; em 2015, foram
realizadas 9 missões (redução em decorrência de cortes orçamentários). Foram realizadas 23
missões desse gênero, alcançando comunidades brasileiras619.
O Protocolo de Palermo dispõe mecanismos que asseguram a cooperação entre os países
no sentido de garantir segurança física às vítimas, independente da eventual colaboração das
vítimas para processar os traficantes, ficando, porém, a critério dos governos nacionais
estabelecerem a forma de proteção a essas vítimas, a concessão de vistos temporários ou de
residência permanente às vítimas quando ameaçadas no país de origem.
Muitos países garantem proteção às vítimas, através do instituto de testemunha
protegida e de concessão de residência (seja ela temporária ou permanente), somente para
aquelas vítimas que colaborem com as investigações policiais e da Justiça, contrariando
disposição do Protocolo de Palermo que não estabelece a proteção da vítima atrelada a qualquer
colaboração620. O Brasil desvincula a concessão de residência à colaboração com as autoridades
policiais e judiciárias.
Não se pode deixar de destacar a cooperação do Brasil com Organizações Internacionais
que vem possibilitando o fortalecimento das ações nacionais no combate à exploração sexual e

618
UNODC. Relatório de Avaliação dos Resultados II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas. 2018. p. 37. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/
publicacoes/anexos/relatorio-de-avaliacao-ii-plano-final-agosto2018.pdf. Acesso em: 15 jun. 2020.
619
Ibid., p. 45.
620
Conforme artigo 7º, alínea 1. “Além de adotar as medidas em conformidade com o artigo 6 do presente
Protocolo, cada Estado Parte considerará a possibilidade de adotar medidas legislativas ou outras medidas
adequadas que permitam às vítimas de tráfico de pessoas permanecerem no seu território a título temporário
ou permanente, se for o caso; […].”
276

ao tráfico de pessoas, principalmente através da UNODC, USAID, ICMPD, OIT, OIM,


UNODC, etc. Desde 2002, a USAID iniciou sua participação apoiando à PESTRAF no
Nordeste. Participa do Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento da
Violência Sexual Infanto-Juvenil no território brasileiro (PAIR), em parceria com a Secretaria
Nacional de Assistência Social, a Secretaria Especial de Direitos Humanos, Ministério da
Saúde, Ministério da Justiça, OIT e a ONG Partners of America, na perspectiva de fortalecer
redes locais de enfrentamento à violência sexual infanto-juvenil.
Ressalte-se ainda a cooperação internacional das polícias no sentido de investigar,
desvendar e processar as redes organizadas do tráfico. Nesse sentido, o Brasil possui adidos
policiais de países destino de pessoas brasileiras, como no caso do adido policial espanhol, para
auxiliar na cooperação para o enfrentamento do tráfico de pessoas, ficando com a função de
serem os elos entre as polícias de seus respectivos países e as polícias brasileiras. Essa
cooperação já possibilitou a apreensão de várias organizações criminosas que promoviam o
tráfico de mulheres para fins de exploração sexual e continua sendo um mecanismo essencial
de cooperação para o desmantelamento de novas redes.
Foi realizada uma conversa informal com o Consulado do Brasil na Espanha, em Madri
e verificou-se que o Consulado é provocado algumas vezes para atuar no retorno de uma pessoa
vítima de tráfico. Nestes casos, o Consulado é acionado pelas organizações da sociedade civil
que ali atuam para solucionar, na maior parte das vezes, questões relacionadas à documento
dessa pessoa621. Em outros casos, o próprio consulado tem conhecimento de uma situação de
tráfico de mulheres e aciona a rede que ele tem conhecimento na Espanha. 622 Por outro lado, o
Consulado informou não ter orçamento específico para financiar o retorno de vítimas de tráfico
ao Brasil. Assim, o Consulado encaminha para a rede assistencial espanhola que organiza, se
assim desejar a vítima, seu retorno com orçamento das políticas assistenciais espanholas ou das
organizações especializadas responsáveis por essas ações.

621
Em novembro de 2019, fui contactada por uma Organização da Sociedade Civil espanhola para auxiliar no
retorno de uma mulher que estava na Espanha, em Santiago de Compostela que tinha um bebê de um mês, sem
documentos para retornar ao Brasil. Articulei o contato do consulado com a OSC para a emissão do passaporte
da criança, assim como articulamos o retorno dessa mulher a sua cidade de origem, com o PAAHM de
Guarulhos e o Projeto Resgate, em Goiânia.
622
A título de curiosidade e de percepção pessoal como pesquisadora, há 10 anos, quando estive no consulado do
Brasil em Madrid, conversando sobre a necessidade da atuação mais presente do consulado nesses casos de
mulheres vítimas de tráfico, a recepção era limitada entendendo limitações à atuação do consulado nesses
casos. Hoje, em função de toda a construção da política pública, a atuação mais proativa do consulado, inclusive
com as atuações itinerantes do Consulado do Brasil pela Espanha, aproximou a atuação e a percepção da
realidade das mulheres brasileiras vítimas de tráfico na Espanha.
277

4.4 O Pacto Federativo no Brasil e o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas

No Brasil, é importante compreender o enfrentamento ao tráfico de pessoas como uma


questão federativa, que envolve todos os entes federativos brasileiros na formulação,
proposição e execução das políticas públicas. A Constituição brasileira de 1988 definiu um
novo arranjo da república federativa, descentralizando e alterando parte das competências,
funções e recursos do Estado brasileiro, pautado na concepção de um federalismo cooperativo
entre os entes federados.
Por federalismo entende-se o “sistema baseado na distribuição territorial de poder e
autoridade entre instâncias de governo, constitucionalmente definida e assegurada, de tal forma
que os governos nacionais e Estados federados sejam independentes na sua esfera própria de
ação.”623.
Pode-se caracterizar o federalismo como um sistema estatal de estruturas não
centralizadas, com competências particulares e compartilhadas e com a cooperação dos entes
federados que possibilitam uma ação mais integrada e completa.
No caso do Brasil, caracteriza-se por uma federação trina – formada por três entes
federados, a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios, a partir da CF de 1988, com
competências próprias e comuns. Um dos aspectos fundamentais de uma Federação é a
existência de mecanismos de relacionamento entre os entes federados verticais (União-Estados-
Municípios) e horizontais (Estados-Estados, Municípios-Municípios). Esses mecanismos são
elos essenciais tanto para a coordenação quanto para a cooperação federativa624.
O Brasil tem experiências no desenvolvimento de relações intergovernamentais em
algumas áreas, podendo ser destacada a área da educação, da saúde, da assistência social, por
meio da implementação do SUS e mais recentemente, do SUAS. Em todas essas experiências
acumuladas, diferentes entre si, as características comuns são: 1) a União exerce algum papel
de coordenação, mas os Estados e municípios guardam seu espaço de autonomia e de poder
decisório sobre suas opções de políticas públicas; 2) a existência de um alto grau de
relacionamento técnico entre as partes envolvidas625.
A descentralização do sistema de competências possibilitou o fortalecimento da
capacidade decisória dos entes federativos garantindo maior eficácia e equidade às ações e

623
AFFONSO, Rui de Britto Álvarez; SILVA, Pedro Luiz Barros (org.). Descentralização e políticas sociais.
Maria Hermínia Tavares de Almeida. Federalismo e Políticas Sociais. São Paulo: FUNDAP, 1996.p. 14.
624
RODRIGUES, Gilberto Marcos Antônio. Relações internacionais federativas no Brasil. DADOS–Revista de
Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 1021, 2008.
625
Id.
278

ainda, a atenção mais direta, específica e particular às necessidades de cada ente federativo.
Essa nova configuração do sistema de competências instituído indica, por exemplo, que os
planos nacionais instituidores de políticas públicas estabeleçam obrigações para todos os
estados federados, seja no âmbito nacional, distrital, estadual e municipal ampliando ainda a
participação de outros atores.
No âmbito da política de enfrentamento ao tráfico de pessoas, percebe-se que a
descentralização possibilitou uma institucionalidade essencial para que os entes federativos
pudessem desenvolver ações levando em conta suas particularidades e especificidades. A
institucionalidade subnacional em forma de NETPs, ou Programa ou Política de enfrentamento
ao tráfico de pessoas, Plano Estadual ou Comitê Estadual pode ser verificada no Apêndice 7.
Analisando essa institucionalidade verificada, percebe-se como cada Estado foi criando
sua capilaridade subnacional, inclusive com as nomenclaturas que melhor atendiam as
necessidades e expectativas locais. Percebe-se também como, em alguns espaços, essa
institucionalidade se insere dentro da temática de migrações e refúgio (Ceará, Maranhão, Goiás)
e até mesmo de combate ao trabalho escravo (Minas Gerais e Rio de Janeiro), indicando como
essa governança de temas interagem e vão formando esse regime complexo de normas,
institucionalidades e atores. Permitir que os entes federativos mais próximos às vítimas tenham
certa autonomia no desenvolvimento das políticas de assistência, ou de identificação dessas
vítimas é um aspecto importante e que merece destaque para garantir o pronto atendimento e
garantir o restabelecimento de direitos violados.
Essa nova configuração do sistema de competências instituído pela Constituição de
1988 indica, por exemplo, que os planos nacionais instituidores de políticas públicas
estabeleçam obrigações para todos os entes subnacionais, seja no âmbito federal, distrital,
estadual e municipal ampliando ainda a participação de outros atores 626. Essa particularidade
pode ser notada analisando-se, por exemplo, o Plano Nacional de Enfrentamento à Violência
Sexual Infanto-juvenil que estabelece a necessidade de Criação dos Planos Estaduais e
Municipais de enfrentamento à violência sexual infanto-juvenil627. Importante destacar que os

626
Conforme destaca Sailer: “Algunos autores han aludido a la ausencia de un verdadero discurso sobre la
descentralización que socialice y sea socializado, es decir, que sensibilice no sólo a políticos sino al conjunto
de la sociedad sobre la importante necesidad de reconfigurar el “espacio” institucional en el que operan tanto
el Estado como los niveles más autónomos de participación y decisión.” Ver em: SAILER, José Carlos Illán.
Los procesos de descentralización y los retos para la ayuda internacional. Madrid: FIIAPP, 2006. p.14.
627
SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS. Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Contra
Crianças e Adolescentes. p. 43. Disponível em: https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/sedh/
08_2013_pnevsca.pdf. Acesso em: 15 ago. 2020.
279

Planos Nacionais se colocam como meta para estimular a criação de políticas públicas estaduais
e municipais de enfrentamento ao tráfico de pessoas.
Importante destacar que, em alguns casos, os recursos iniciais para instalação dos
Núcleos e Postos vieram provenientes de Convênios firmados com o Ministério da Justiça628.
A estrutura inicial era financiada e o funcionamento e manutenção (telefone, internet, corpo
técnico) ficava a cargo do ente federativo correspondente. No estado do Amazonas, por
exemplo, o convênio foi firmado entre o Ministério da Justiça e a Secretaria de Estado de Justiça
e Direitos Humanos – SEJUS (que ficava responsável pelo repasse financeiro para a estrutura
do posto) e posteriormente, a SEJUS assinava convenio com a respectiva Prefeitura Municipal,
na garantia de manutenção de corpo técnico para atendimento do Posto629.
Essa estratégia de convênios entre Ministério da Justiça e os Estados interessados em
implantar um NETP ou PAAHM foi importante para a disseminação destes espaços
institucionais de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil, principalmente no I e II PNETP.
A rede nacional conseguiu formar 17 NETPs localizados nos estados do Acre, Alagoas, Amapá,
Amazonas, Bahia, Ceará, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio de
Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e no Distrito Federal. Além disso, a rede chegou a contar
com 17 PAAHMs, dos quais 13 estavam no estado do Amazonas, nos municípios de Manaus
(portos, aeroporto e rodoviária), Itacoatiara, Humaitá, Manacapuru, Parintins, Coari, Tabatinga,
Presidente Figueiredo, São Gabriel da Cachoeira, Novo Airão, Iranduba. Os demais estão
localizados em Fortaleza/CE, Belém/PA, Rio de Janeiro/RJ e São Paulo/SP. Não é possivel
avaliar de forma simples e genérica os motivos pelos fechamentos de vários destes espaços
institucionais de enfrentamento ao tráfico de pessoas. Porém, uma explicação pode ser a de que
a maioria dos Estados e Municipios não criaram previsão orçamentária específica para a

628
O relatório semestral de cada ator da Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas possui uma
pergunta específica sobre a existência atual ou no passado de convênio firmado pelo Estado e o Ministério da
Justiça, para a efetivação dos atores estaduais no enfrentamento ao tráfico de pessoas. “1.4. A Política e/ou
Programa de ETP já teve Convênio com a CETP/DEJUS/SNJ/MJ? Cite qual nº, período de vigência, objeto e
orçamento previsto.”. Ver em: BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório da Rede Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-
pessoas/redes-de-enfrentamento/11o-relatorios-semestrais-da-rede-de-nucleos-de-enfrentamento-ao-trafico-
de-pessoas-netp-e-dos-postos-avancados-de-atendimento-humanizado-ao-migrante-paahm. Acesso em: 20
ago. 2020.
629
UNODC. Projeto: BRA/X63: suporte à Secretaria Nacional de Justiça para o aprimoramento da implementação
da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Relatório Produto 01: Levantamento técnico do
funcionamento e metodologia da rede atual de Postos Avançados de Atendimento Humanizado aos Migrantes,
com foco principal nas estruturas em portos e rodoviárias. 2014). (No prelo).
280

manutenção destes equipamentos, ocasionando potencial dificulade da manutenção do


equipamento630.

4.5 Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil

Partindo da descentralização e transversalidade das políticas é que foi pensada, criada e


organizada a Rede Nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas, levando em conta as
particularidades regionais e o trabalho conjunto a ser desenvolvida com as políticas públicas de
proteção e assistência.
Nesse sentido, a partir do I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas se
previu a criação de atores descentralizados para melhor cooperação, articulação e criação das
redes locais para pensar estratégias de acolhida e atenção especializadas às vítimas de tráfico
de pessoas. O I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas previu a criação dos
Núcleos Estaduais de Prevenção e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETPs), dos Postos
Avançados de Atendimento Humanizado ao Migrante (PAAHMs), assim como dos Comitês
Estaduais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas631.
As competências dos Núcleos e dos Postos estão dispostas na Portaria SNJ n. 31/2009:

Art. 2º Compete aos Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas632:


I - Articular e planejar o desenvolvimento das ações de enfrentamento ao tráfico de pessoas, visando à
atuação integrada dos órgãos públicos e da sociedade civil;
II - Operacionalizar, acompanhar e avaliar o processo de gestão das ações, projetos e programas de
enfrentamento ao tráfico de pessoas;
III - Fomentar, planejar, implantar, acompanhar e avaliar políticas e planos municipais e estaduais de
enfrentamento ao tráfico de pessoas;
IV - Articular, estruturar e consolidar, a partir dos serviços e redes existentes, um sistema estadual de
referência e atendimento às vítimas de tráfico de pessoas;
V - Integrar, fortalecer e mobilizar os serviços e redes de atendimento;

630
Conforme dados do Ministério da Justiça, hoje a Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas é
composta por 17 NETP em 16 Estados e 9 PAAHM, localizados em 5 Estados. Sabe-se que somente os Estados
do Pará, Ceará e Bahia têm previsão orçamentária para a política de enfrentamento ao tráfico de pessoas.
631
A composição da Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas está disponível
em:http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/redes-de-enfrentamento. Acesso em: 29 abr.
2020. O funcionamento dos NETP e dos Postos está regulamentado na Portaria nº 31, de 20 de agosto de 2009,
alterada pela Portaria nº 41, de 06 de novembro, de 2009.
632
BRASIL. Ministério da Justiça. Portaria SNJ n. 31 de 20 de agosto de 2009. Disponível em:
https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/redes-de-enfrentamento/nucleos-de-
enfrentamento. Acesso em: 15 ago. 2020.
281

VI - Fomentar e apoiar a criação de Comitês Municipais e Estaduais de Enfrentamento ao Tráfico de


Pessoas;
VII - Sistematizar, elaborar e divulgar estudos, pesquisas e informações sobre o tráfico de pessoas;

VIII - Capacitar e formar atores envolvidos direta ou indiretamente com o enfrentamento ao tráfico de
pessoas na perspectiva da promoção dos direitos humanos;
IX - Mobilizar e sensibilizar grupos específicos e comunidade em geral sobre o tema do tráfico de pessoas;

X - Potencializar a ampliação e o aperfeiçoamento do conhecimento sobre o enfrentamento ao tráfico de


pessoas nas instâncias e órgãos envolvidos na repressão ao crime e responsabilização dos autores;
XI - Favorecer a cooperação entre os órgãos federais, estaduais e municipais envolvidos no enfrentamento
ao tráfico de pessoas para atuação articulada na repressão a esse crime e responsabilização dos autores;
XII - Impulsionar, em âmbito estadual, mecanismos de repressão ao tráfico de pessoas e conseqüente
responsabilização dos autores;
XIII - Definir, de forma articulada, fluxo de encaminhamento que inclua competências e responsabilidades
das instituições inseridas no sistema estadual de disque denúncia;
XIV - Prestar auxílio às vítimas do tráfico de pessoas, no retorno a localidade de origem, caso seja solicitado;
XV - Instar o Governo Federal a promover parcerias com governos e organizações estrangeiras para o
enfrentamento ao tráfico de pessoas;
XVI - Articular a implementação de Postos Avançados a serem instalados nos pontos de entrada e saída de
pessoas, a critério de cada Estado ou Município.

Art. 4° Compete aos Postos Avançados:


I - Implementar e consolidar uma metodologia de serviço de recepção a brasileiros(as) não admitidos ou
deportados(as) nos principais pontos de entrada;
II - Fornecer informações sobre:
a) documentos e procedimentos referentes a viagens nacionais e internacionais;
b) direitos e deveres de brasileiros(as) no exterior;
c) direitos e deveres de estrangeiros(as) no Brasil;
d) serviços consulares; e
e) quaisquer outras informações necessárias e pertinentes;

III - Prestar apoio para:


a) localização de pessoas desaparecidas no exterior;
b) orientações sobre procedimentos e encaminhamentos para as redes de serviço.
Fonte: Retirado do Guia de Referência para rede de enfrentamento ao tráfico pessoas633.

633
TERESI, Verônica; HEALY, Claire. Guia de referência para a rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas
no Brasil. Brasília, DF: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Justiça, 2012. Disponível em:
http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos/cartilhaguiareferencia.pdf.
Acesso em: 20 ago. 2020.
282

Esses atores são fundamentais para o estímulo da capilaridade da política do tráfico de


pessoas nos estados e municípios, seja na linha da prevenção, da assistência às vítimas, do
enfrentamento ao tráfico, da cooperação entre os atores. Muitas vezes, é a partir da
institucionalização desses espaços pelos Estados e Municípios que a política de enfrentamento
ao tráfico passa a ser incorporada nas ações específicas desses entes federativos, disseminando
ações no enfrentamento ao tráfico de pessoas e conectando a temática com as outras políticas
públicas sociais, como assistência, saúde, educação, moradia, entre outras.
A estratégia de pensar atores estaduais, regionais e municipais se insere de acordo com
as grandes e diversas dimensões territoriais brasileiras. Pensar políticas locais certamente foi
acertado para obter mais proximidade com as diversidades existentes.
Os NETPs são unidades administrativas pensadas a partir do Poder Executivo Estadual
para o desenvolvimento de políticas públicas de enfrentamento ao tráfico de pessoas. Os
Núcleos são responsáveis por articular política e tecnicamente a implementação da Política
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, trabalhando para a criação de política e plano
estaduais. Eles têm abrangência prioritariamente estadual e atuam na articulação de órgãos
públicos e atores sociais envolvidos no enfrentamento ao tráfico634. Os NETPs apoiam ainda o
encaminhamento das vítimas para os serviços assistenciais como abrigos, para serviços de apoio
psicológico, auxílio ao retorno à cidade de origem e implementam ações de enfrentamento ao
tráfico de pessoas junto com órgãos públicos e a sociedade civil. Têm competência ainda na
área de desenvolvimento de pesquisas sobre o tráfico de pessoas, e na formação, capacitação e
sensibilização de órgãos e do público sobre o tráfico. São os responsáveis por criar e estimular
o funcionamento dos Comitês Estaduais e Regionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.
Atualmente, o Brasil conta com o funcionamento de 17 NETPs, em 16 Estados-subnacionais635.
Os PAAHM são unidades administrativas do Poder Executivo Municipal e foram
concebidos para funcionar em espaços de grande circulação de pessoas e prestar atendimento
imediato ao migrante deportado ou não-admitido no país de destino, atender pessoas
identificadas como vítimas de tráfico no exterior ou pessoas que apresentem indícios de tráfico
de pessoas e que retornam ao Brasil, além de funcionar em estreita articulação com o NETP do
seu Estado. Atuam ainda na prevenção, orientando o migrante em partida ou chegada (no caso
de deportados ou não-admitidos) sobre seus direitos e as precauções necessárias para prevenir

634
A única exceção de NETP municipal é o de Ipojuca/PE.
635
Informação sobre os Postos. Disponível em: http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/redes-
de-enfrentamento/nucleos-de-enfrentamento. Acesso em: 29 abr. 2020. Os NETPs estão localizados: Acre,
Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Ceará, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio
de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e no Distrito Federal.
283

situações de exploração ou tráfico636. Os Postos estão situados nos aeroportos, portos fluviais e
rodoviárias brasileiras. Atualmente, o Brasil conta com o funcionamento de 9 Postos em 5
Estados-subnacionais637.
Os Comitês de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas devem se caracterizar por serem
espaços de articulação plurais e democráticos de representantes do poder público, setor privado
e sociedade civil para o estabelecimento de prioridades e na construção de uma agenda comum
de ações no enfrentamento ao tráfico de pessoas. Os Comitês devem também trabalhar
diretamente com os NETPs, possibilitando que esses encontrem na rede de atores parceiros
fundamentais para o atendimento às vítimas de tráfico, realizando os encaminhamentos
necessários. Os comitês, compostos por atores públicos e não governamentais devem atuar em
rede, de forma intersetorial, auxiliando e completando a atuação dos NETP. Os Comitês têm o
objetivo de atuar como um canal de diálogo com representantes da sociedade e dos Governos
estaduais e municipais para promover a abordagem multissetorial na gestão da rede local.
Muitas vezes, os comitês participam de forma ativa na organização da rede local de atendimento
e do estabelecimento do fluxo referencial conforme a possibilidade real de serviços e atores. Os
Comitês foram pensados para terem dimensão estadual, mas já houve a existência de Comitê
Regionais no Estado de São Paulo638.

636
Os Postos foram criados inicialmente para atender as vítimas de tráfico de pessoas que chegavam deportadas
de outros países, mas com o aumento da chegada de migrantes ao Brasil e da mudança deste perfil migratório,
os postos viram a necessidade de ampliar sua atuação para atender essas novas demandas.
637
Informação sobre os Postos. Disponível em: http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/redes-
de-enfrentamento/postos-avancados. Acesso em: 29 abr./2020. A Rede de PAAHMs já foi composta por 17
PAAHMs, dos quais 13 estão no estado do Amazonas. Os PAAHM estão localizados nos municípios de
Manaus (portos, aeroporto e rodoviária), Itacoatiara, Humaitá, Manacapuru, Parintins, Coari, Tabatinga,
Presidente Figueiredo, São Gabriel da Cachoeira, Novo Airão, Iranduba. Os demais estão localizados em
Fortaleza/CE, Belém/PA, Rio de Janeiro/RJ e São Paulo/SP. Na atualidade, são 9 Postos, cinco deles no
Amazonas: três deles localizado em Manaus (aeroporto, porto e rodoviária), mais Itacoatiara e Fluvial de
Parintins. Os outros três estão nos aeroportos internacionais do Ceará, Pará, Rio de Janeiro, São Paulo.
638
Atualmente, existem 19 Comitês Estaduais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil: Comitê Estadual
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de Acre – CEETRAP, Comitê Estadual de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas do Estado de Alagoas, Comitê Intersetorial de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e
Atenção aos Refugiados e Migrantes do Estado do Amazonas, Comitê Estadual de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas do Estado da Bahia – CEPETP, Comitê Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado
do Ceará, Comitê Distrital de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Distrito Federal, Comitê
Interinstitucional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de Goiás, Comitê Estadual de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Maranhão, Comitê Estadual de Atenção ao Migrante,
Refugiado e Apátrida, Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Erradicação ao trabalho Escravo –
COMITRATE, Comitê Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Pará - CTETP/PA,
Comitê Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Paraná, Comitê Estadual de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de Pernambuco, Comitê Estadual de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas e Erradicação do Trabalho Escravo do Estado do Rio de Janeiro, Comitê de Atenção aos Migrantes,
Refugiados, Apátridas e Vítimas do Tráfico de Pessoas do Estado do Rio Grande do Sul – COMIRAT/RS,
Comitê Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo - COETRAE/SP, Comitê Estadual de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas - CETP/SP, Comitê Estadual para Refugiados – CER, Comitê Estadual de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas do Estado de Mato Grosso do Sul - CETRAP/MS, Comitê Estadual de Prevenção e
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de Mato Grosso - CETRAP/MT, Comitê Estadual de
284

O Mapa da figura 15 dispõe a conformação da atual Rede Nacional de Enfrentamento


ao Tráfico de Pessoas no Brasil.

Figura 15. Mapa da Rede Atual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil

Fonte: Elaboração própria. Site do MJ

Conjeturar sobre rede de atores para o enfrentamento ao tráfico de pessoas é pensar mais
do que meramente a existência de atores, serviços. Para que haja rede é necessário que haja
intencionalidade de proposição para a articulação de serviços, sempre na perspectiva da
complementariedade entre os serviços. A rede se forma pela prática da construção e do diálogo
permanente que pense sua manutenção e aprimoramento.
Pensando a rede de forma metafórica, poder-se-ia representa-la como fios que
correspondem às relações entre sujeitos e organizações, que representam, por outro lado, as
malhas ou nós. Cada nó é importante para a configuração do tecido, mas o tecido somente se

Enfrentamento ao Tráfico e Desaparecimento de Pessoas da Paraíba - CETDP/PB, Comitê Estadual de


Enfrentamento ao abuso, exploração sexual e tráfico de crianças e adolescente do Estado de Roraima.
285

forma quando os nós estão unidos entre si por fios e linhas. As funções são interdependentes: a
união e a sustentação são necessárias para a formação do tecido. Em um primeiro momento,
não há diferenças hierárquicas entre fios e nós: igualdade de complementariedade entre ambos
é necessário para a regularidade entre as malhas favoráveis e receptiva para a democratização
das relações entre os sujeitos coletivos, que se contrapõe a matriz piramidal639.
Pode-se dizer que

Rede é um conjunto de nós interconectados. Nó é o ponto no qual uma curva


se entrecorta. Concretamente, o que um nó é, depende do tipo de redes
concretas de que falamos. [...] Redes são estruturas abertas capazes de
expandir de forma ilimitada, integrando novos nós desde que consigam
comunicar-se dentro da rede, ou seja, desde que compartilhem os mesmos
códigos de comunicação640.

Para se garantir essa proteção e assistência integral duradoura, é necessária a existência


e a atuação em conjunto da rede de serviços locais, regionais e internacionais (no caso de tráfico
internacional de pessoas), que consigam abranger as complexidades dos impactos sofridos pelas
vítimas durante e após o processo de exploração. Para o acompanhamento, encaminhamento e
eventual atendimento às vítimas, devem atuar os Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas, os Postos Avançados, os Núcleos da Mulher nas Casas do Migrante, CREAS, CRAS
e outros serviços especializados em atender as vítimas de tráfico em todas as modalidades de
exploração.
Mas o que compreende a proteção e atendimento à vítima de tráfico de pessoas? A Lei
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Lei 13.344/2016) estabelece, no artigo 6º, que a
proteção e o atendimento à vítima, direta ou indireta, do tráfico de pessoas devem compreender:

I - assistência jurídica, social, de trabalho e emprego e de saúde;


II - acolhimento e abrigo provisório;
III - atenção às suas necessidades específicas, especialmente em relação a
questões de gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência,
nacionalidade, raça, religião, faixa etária, situação migratória, atuação
profissional, diversidade cultural, linguagem, laços sociais e familiares ou
outro status;
IV - preservação da intimidade e da identidade;
V - prevenção à revitimização no atendimento e nos procedimentos
investigatórios e judiciais;
VI - atendimento humanizado;

639
GOMES, Maria do Rosario Corrêa de Salles. Redes: el tejer de la protección social. In: CARBALLO, Marta;
GARCÍA, Jorge; TERESI, Verônica (org.). Seminario Internacional Articulación de la Red Hispano-
brasileña en el contexto de la atención a las brasileñas víctimas de trata Madrid, 2009. IUDC. Disponível
em: https://pt.scribd.com/document/16498425/Memoria-SeminarioTrata-Dec08. Acesso em: 10 set. 2020.
640
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 6. ed. Tradução de Roneide Venacio Majer com a colaboração de
Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 2011. p. 566-567. (A era da informação: economia,
sociedade e cultura, vol. 1).
286

VII - informação sobre procedimentos administrativos e judiciais.

Pela leitura deste documento, percebe-se que as ações de proteção às vítimas


transcendem a interrupção da exploração e da violência decorrente do crime. Devem ter como
meta a reintegração social, a garantia de facilitação do acesso à educação, à cultura, à formação
profissional e ao trabalho e, no caso de crianças e adolescentes, a busca de sua reinserção
familiar e comunitária, além da não revitimização em todos os momentos do restabelecimento.
A lei traz de forma expressa a garantia do atendimento humanizado641.
Mais adiante, abordar-se-á, especialmente, o Atendimento Humanizado. Porém é
importante conceituá-lo.

A atenção humanizada é o ponto mais importante a ser perseguido por uma


política de atendimento. Ela se caracteriza, sobretudo, pela capacidade da
equipe técnica de reconhecer a pessoa atendida como sujeito de direitos, e de
colaborar para que a própria reconheça sua cidadania e conheça seus direitos.
Os esforços e investimentos públicos voltados para o atendimento às vítimas
do tráfico de pessoas devem se pautar no respeito à dignidade humana,
conceito que deve ser traduzido na atuação técnica. A valorização das
potencialidades humanas e o respeito à vontade das pessoas atendidas devem
ser objetivos prioritários do atendimento. O Atendimento Humanizado
procura reduzir o distanciamento entre a pessoa atendida e a equipe técnica
para que ambas as partes se coloquem como corresponsáveis na identificação
de soluções e de encaminhamentos642.

Nesse sentido, é importante conhecer e identificar a Rede de Enfrentamento à Violência


Contra a Mulher de cada localidade, que reúne ações e serviços de diversos setores. Juntos esses
serviços devem buscar construir um sistema para ampliar e melhorar a qualidade do
atendimento às mulheres em situação de violência. Entre as instituições e serviços essenciais
dessa rede estão: 1. Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher (DEAMs); 2. Centros
de Referência de Atendimento à Mulher; 3. Casas-Abrigo; 4. CREAS (Centro de Referência
Especializado da Assistência Social); 5. CRAS (Centros de Referência da Assistência Social); 6.
Órgãos da Defensoria Pública; Serviços de Saúde Especializados para o Atendimento dos Casos
de Violência Contra a Mulher 643.

641
FEREIRA, Ofélia da Silva. Guia de atuação no enfrentamento ao tráfico de pessoas: orientações para
Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e aos Postos Avançados de Atendimento Humanizado ao
Migrante. Brasília, DF: Ministério da Justiça. 2013. p. 108.
642
Id.
643
No que se refere ao atendimento das vítimas de tráfico de pessoas, no âmbito do SUAS (Sistema Único da
Assistência Social) se dá pela prevenção e pelo atendimento psicossocial e jurídico. A prevenção realiza-se
através de ações desenvolvidas no âmbito da proteção social básica (CRAS), com a manutenção dos vínculos
familiares e comunitários, inserção social, desenvolvimento da autoestima e aumento da condição econômica
do beneficiário. O atendimento psicossocial e jurídico é oferecido pelos CREAS, visando reparar a situação de
violação de direitos, resgatando e fortalecendo os vínculos familiares e comunitários, proporcionando um
atendimento integral do indivíduo.
287

Integrar as políticas públicas permite também criar uma rede de proteção e promoção
que tenha como norte fundador os princípios de direitos humanos aos quais o Brasil se
comprometeu na ratificação dos tratados de direitos humanos. A integração das políticas
públicas leva consigo a articulação das redes de serviços e de atores envolvidos na garantia
dessas políticas. Nesse sentido, é fundamental ter em conta o Fluxograma do Processo de
Atendimento e Referenciamento da rede de Núcleos e Postos de enfrentamento ao tráfico de
pessoas, que deve nortear o fluxo de atendimento e referenciamento, havendo ou não
caracterização do tráfico de pessoas, conforme o perfil da pessoa atendida, seja mulher, LGBT,
estrangeiro, criança e adolescente644. De outro lado, a avaliação do II Plano não consegue
aprofundar nos motivos pelos quais não se viu implementado o protocolo de atendimento e
referenciamento.
A assistência não se esgota no atendimento e na provisão das necessidades imediatas ou
emergenciais das vítimas, ela se estende por meio de uma articulação intersetorial, que se
transversaliza no conjunto das políticas públicas, com o intuito de atender a integralidade de
direitos do sujeito e assegurar-lhe sua cidadania.
O III PNETP, na sua meta 5.3 instiga o fortalecimento das redes locais de acolhimento
a vítimas de tráfico nos Municípios, para a adoção de práticas de respeito às perspectivas de
gênero e orientação sexual, às crianças e aos adolescentes, com o desenvolvimento de uma
experiencia local, com vistas à construção de um modelo de integração de política públicas.
Para tanto, é importante o papel dos Núcleos e Postos (quando houver) pelo estímulo ao diálogo
com diversos serviços municipais que prestam atenção direta a pessoas em situação de
vulnerabilidade como os CREAS, CRAS, Postos de Saúde, Conselhos Tutelares, Centros de
Referência da Mulher, guarda Municipal, entre outros645, tentando e estimulando a conformação
de uma rede de atores locais.
Para o acompanhamento, encaminhamento e eventual atendimento às vítimas, devem
atuar os Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, os Postos Avançados de

644
ANJOS, Verônica dos. Fluxograma do processo de atendimento e referenciamento da rede de Núcleos e
Postos de ETP. Disponível em: http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/redes-de-
enfrentamento/fluxograma.pdf/view. Acesso em: 10 dez. 2014. Importante destacar a existência de diretrizes
gerais de atendimento previstas no Protocolo nacional para atendimento à vítima criado e implementado, no
período do II PNETP. No entanto, avaliação do II Plano, não encontrou indícios da implementação do protocolo
no âmbito dos Estados e municípios. Ver em: UNODC. Relatório de Avaliação dos Resultados II Plano
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. 2018. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-
protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos/relatorio-de-avaliacao-ii-plano-final-agosto2018.pdf. Acesso
em: 15 jun. 2020.
645
ICMPD. Guia assistência e referenciamento de vítimas de tráfico de pessoas. 2020. Disponível em:
http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/Guia_Assistencia_ICMPD_versao_digital_simples_FINAL.pdf.
Acesso em: 12 ago. 2020.
288

Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e outros serviços especializados em atender as vítimas de


tráfico em todas as modalidades. Para isso, o atendimento prestado às vítimas de tráfico tem
competências compartilhadas e complementares. Assim, no Brasil, além da Rede Nacional de
ETP, pode-se destacar:

4.5.1 Assistência às vítimas no âmbito do Sistema Único da Assistência Social (SUAS)

O Brasil conta com serviços especializados criados no âmbito do SUAS que atendem,
entre outras, as demandas das vítimas do tráfico de pessoas646:
Os serviços ofertados no âmbito da Proteção Social Especial de Média Complexidade
do SUAS, que realiza atendimento especializado às famílias e aos indivíduos em situação de
risco pessoal e social e violação de direitos são: o Serviço de Proteção e Atendimento
Especializado a Famílias Indivíduos (PAEFI)647, principalmente pela unidade de referência:
Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS).
De outro lado, há serviços ofertados no âmbito da Proteção Social Especial de Alta
Complexidade do SUAS, que realiza o acolhimento temporário a indivíduos e/ou famílias
afastados do núcleo familiar e/ou comunitários de origem. São o Serviço de Acolhimento
Institucional648 denominados unidades de acolhimento.
Importante que se destaque que nem sempre esses serviços têm vagas para as vítimas
de tráfico de pessoas e, muitas vezes não possuem especificidades para algumas vítimas, por
exemplo, com filhos ou população LGBTI.

4.5.2 Assistência às vítimas no âmbito dos serviços especializados de atendimento à


mulher

Esses serviços atendem exclusivamente a mulheres e possuem especialidade no tema de


violência contra as mulheres. Importante destacar que esses serviços não são específicos para
atendimento das vítimas de tráfico de pessoas, mas foram criados para o enfrentamento da
violência contra a mulher. Inclui os seguintes serviços:

646
Disposto na Resolução nº 109, de 11 de novembro de 2009. Aprova a Tipificação Nacional de Serviços Sócio-
assistenciais. Disponível em: http://www.mds.gov.br/suas/resolucao-cnas-no109-2009-tipificacao-nacional-
de-servicos-socioassistenciais. Acesso em: 20 ago. 2020.
647
Atende famílias e indivíduos que vivenciam violações de direitos incluindo, entre outras situações, o Tráfico
de Pessoas.
648
Atende famílias e indivíduos com vínculos familiares rompidos ou fragilizados a fim de garantir a proteção
integral, incluindo o acolhimento de indivíduos refugiados ou em situação de tráfico de pessoas (sem ameaça
de morte) que poderá ser desenvolvido em local específico, a depender da incidência da demanda.
289

- Centros Especializados de Atendimento à Mulher em situação de violência (Centro de


Referência de Atendimento à Mulher, Núcleos de Atendimento à Mulher em Situação de
Violência, Centros integrados da Mulher), Serviços de Abrigamento (Casas Abrigo, Casas de
Acolhimento Provisório/Casas de Passagem), Delegacias Especializadas de Atendimento à
Mulher, Núcleos da Mulher nas Defensorias Públicas, Promotorias Especializadas, Juizados
Especiais649 em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
- Centros de Referência Especializados da Assistência Social (CREAS): na ausência dos
Centros de Referência de Atendimento Especializado às Mulheres em situação de violência, os
CREAS deverão assumir o papel oferecendo atendimento adequado e direcionado a mulheres
em situação de tráfico de pessoas através de atendimento individual e oferecendo atenção e
proteção social especial.
- Central de Atendimento às Mulheres – Ligue 180: central de atendimento telefônico
que recebe relatos de violência contra mulheres, reclamações sobre os serviços da rede,
orientam as mulheres sobre seus direitos e os serviços da Rede que podem utilizar.
- Central Disque 100
- Consulados do Brasil no exterior: o serviço de atenção para as brasileiras que se
encontrem no exterior.

Um dos grandes desafios do Brasil é inserir o atendimento às mulheres em situação de


tráfico de pessoas no trabalho realizado pela Rede Especializada de Atendimento à Mulher no
Brasil e incluir uma articulação com as principais instituições e serviços dos países de destinos
das mulheres brasileiras em situação de tráfico de pessoas, criando uma rede transnacional de
atendimento e apoio às vítimas.
Como já mencionado, o MERCOSUL, por meio da Reunião de Ministras e Altas
Autoridades da Mulher do MERCOSUL – RMAAM, em 2014, elaboraram um “Guia
MERCOSUL de atenção a mulheres em situação de tráfico de pessoas para fins de exploração
sexual” e assinaram, no mesmo ano, o Protocolo Mecanismo de Articulação para Atenção a
Mulheres em Situação de Tráfico Internacional de Pessoas650. Esse mecanismo de articulação
estabelece a intenção de colaboração e cria mecanismos de atuação com enfoque em direitos

649
É importante ressaltar que apesar de fazer parte da rede (que também atende tráfico), os juizados são exclusivos
para casos de violência doméstica.
650
MERCOSUL. Guia Mercosul para a atenção às mulheres em situação de tráfico de pessoas com fins de
exploração sexual. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/human-trafficking/GLO-ACT/BR_
Guia_MERCOSUL_Trafico_Mulheres_PORT_Completo_para_IMPRESSAO.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
290

humanos para os atendimentos feitos a mulheres, crianças e adolescentes, procedentes de países


do âmbito do MERCOSUL.
Outro desafio no Brasil para atendimento das vítimas de tráfico é a ausência de serviços
para atender pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, pessoas trans e intersex
(LGBTIQ+). Principalmente no que se refere a necessidade de abrigamento, não há serviços
públicos especializados ou preparados para atender essa demanda já identificada, uma vez que
as pessoas LGBTIQ+ são um grupo vulnerável ao tráfico de pessoas e a exploração no mercado
do sexo651.
Aponta-se para uma deficiência cada vez mais evidente na perspectiva da garantia de
serviços de saúde que permitam autonomia quanto aos direitos sexuais reprodutivos às mulheres
vítimas de tráfico. Em que medida uma mulher vítima de violência sexual decorrente do tráfico
de pessoas poderia abortar?
Outro aspecto relevante do atendimento às vítimas de tráfico é compreender o
enfrentamento ao tráfico de pessoas como uma questão local, que envolve todos os entes
federativos brasileiros na formulação, proposição e execução das políticas públicas, mas que
deve ter espaço central nas discussões locais. Nesse sentido, os municípios são fundamentais
para a execução das políticas públicas, principalmente de prevenção e assistência às vítimas.
Por todos esses elementos expostos, verifica-se que a assistência e referenciamento das
vítimas de tráfico de pessoas no Brasil é regulado por uma política pública complexa que se
caracteriza pela sua transversalidade, multidisciplinariedade e interdisciplinaridade. Nesse
sentido, a transversalidade visa garantir que o enfrentamento ao tráfico de pessoas perpasse
pelas mais diversas políticas públicas setoriais. A intersetorialidade, por sua vez, compreende
ações em duas dimensões: uma envolvendo parcerias entre organismos setoriais e atores em
cada esfera de governo (ministérios, secretarias, coordenadorias etc.); e outra, implica uma
maior articulação entre políticas nacionais e locais em diferentes áreas (saúde, assistência,
justiça, educação, trabalho, segurança pública, etc.). A intersetorialidade permite considerar as
vítimas em sua totalidade, nas suas necessidades individuais e coletivas, indicando que ações
requerem parcerias com outros setores, do âmbito da Educação, Trabalho e Emprego,
Habitação, Assistência Social, Serviços Policiais, entre outros. Também está diretamente

651
Importante destacar que o único serviço de abrigamento para pessoas LGBT é o Projeto Casulo. O PROJETO
CASULO é uma Casa de Passagem, coordenado pela Beth Fernandes, que visa a autonomia das vítimas e busca
possibilitar a visibilidade deste ser como cidadão pensando em direitos sexuais e direitos humanos. O
PROJETO CASULO é uma ação política idealizada pelo ativismo e militância da luta LGBT. Ver em:
MEMORIA LGBTQ+. Proteção e acolhimento no Projeto Casulo. Disponível em: https://www.
memorialgbt.org/post/2013/11/20/protecao-e-acolhimento-no-projeto-casulo. Acesso em: 15 ago. 2020.
291

vinculada ao conceito de “rede”, que requer articulação, relações horizontais entre parceiros e
interdependência de serviços para garantir a integralidade da atenção.
Identificada e contextualizada a Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas,
cabe fazer uma análise sobre a expectativa da assistência prestada às vítimas e a realidade das
políticas públicas sociais no Brasil.
Os dados de atendimentos apresentados pela Rede Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas, começaram a ser computados a partir de 2014, quando se estabeleceu um
modelo de Relatório Semestral de Atividades da Rede de Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas (NETP) e dos Postos Avançados de Atendimento Humanizado ao Migrante
(PAAHM). A partir deste documento, todos os atores que compõe a rede nacional de
enfrentamento ao tráfico de pessoas, devem preencher esse relatório semestralmente. Em 2014,
a rede registrou 358 casos, sendo as principais modalidades encontradas, o tráfico para trabalho
em condições análogas a de escravo, para exploração sexual e para exploração laboral da
prostituição. Em 2015, foram acompanhados 954 casos. Em 2016, foram acompanhados pela
rede 515 possíveis casos de tráfico de pessoas, ou seja, situações com indícios do crime e que
podem envolver mais de uma vítima. Em 2017, foram acompanhados 114 casos pelos NETPs.
Não há dados dos PAAHMs. Em 2018, foram acompanhados 109 casos pelos NETPs. Também
não há dados dos PAAHMs. Em 2019, foram acompanhados 237 casos pelos NETPs. Cabe
destacar que, esses casos, muitas vezes estão sendo atendidos por outras instituições parceiras
da rede e são acompanhados também pelos Núcleos e/ou Postos652. Os dados obtidos pela Rede
Nacional não permitem verificar a qualidade desses dados cm relação ao gênero da pessoa
atendida, a idade e nem mesmo se houve referenciamento à rede local.
Esses são os dados oficiais de atendimento da Rede específica de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas. Os CREAS, unidades públicas estatais provedoras de serviços referenciais
da Assistência Social, para atendimento de situações de tráfico de pessoas indicam outros
números de atendimentos.
A Planilha e gráfico 3 indicam os Registros Mensais de Atendimento (RMA) das
pessoas vítimas de tráfico de pessoas atendias nos CREAS, entre 2012-2019653. Os dados de
2012 até 2016, indicam um total de atendimentos acima de 670 por ano, porém, a partir de

652
Todos os dados aqui descritos estão nos Relatórios Semestrais da Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas. Ver em: BRASIL. Ministério da Justiça. Relatórios de Núcleos e Postos. Disponível em:
https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/redes-de-enfrentamento/1o-relatorio-semestral-
da-rede-de-nucleos-e-postos. Acesso em: 20 ago. 2020.
653
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. VISDATA. Atendimento CREAS (Centro de Referência
Especializado de Assistência Social). Disponível em: https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/vis/dash/painel.
php?d=83. Acesso em: 20 ago. 2020.
292

2017, percebe-se um decréscimo significativo, que poderia ser explicado pela diminuição
orçamentária resultante da Emenda Constitucional n. 85/2016, que mais adiante será abordada.

Gráfico 3. Número de vítimas de tráfico atendidas CREAS (2012-2019)

Vitimas de Tráfico Atendidas CREAS (2012-2019)


1903ral 1903ral

1902ral
1902ral 1902ral
1902ral
1902ral 1901ral
1901ral 1901ral
1901ral 1901ral
1901ral

1900ral

1900ral
1905ral 1905ral 1905ral 1905ral 1905ral 1905ral 1905ral 1905ral

janeiro fevereiro março abril maio junho julho


agosto setembro outubro novembro dezembro

Fonte: Elaboração própria 654.

Tabela 9. Número de vítimas de tráfico atendidas CREAS (2012-2019).


Número de vítimas de tráfico atendidas CREAS
2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
janeiro 40 64 66 66 110 23 15 20
fevereiro 44 69 124 48 37 30 23 53
março 37 77 46 61 70 47 26 164
abril 87 83 89 41 76 38 42 30
maio 52 60 70 67 116 31 31 38
junho 49 62 76 68 174 19 39 39
julho 52 69 66 55 110 31 36 35
agosto 70 62 128 107 36 51 43 50
setembro 138 79 175 58 39 36 19 45
outubro 127 51 119 41 21 36 54 30
novembro 82 84 114 34 37 22 25 35
dezembro 67 24 64 27 24 31 24 5
845 784 1137 673 850 395 377 544
Fonte: Elaboração própria655.

654
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. VISDATA. Atendimento CREAS (Centro de Referência
Especializado de Assistência Social). Disponível em: https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/vis/dash/painel.
php?d=83. Acesso em: 20 ago. 2020.
655
Id.
293

Analisando os dados relativos a pessoas atendidas, separadas por sexo 656, percebe-se o
número de homens em situação de tráfico de pessoas, mesmo sem ficar claro qual a modalidade
de tráfico a que se refere o atendimento. No caso dos atendimentos às mulheres, o maior número
de vítimas se refere à faixa etária de 18 a 59 anos.

Gráfico 4. Número de Atendimentos de Vítimas de Tráfico atendidas CREAS


(mulheres/homens) 2012-2019

Número de vítimas deTráfico Atendidas CREAS (mulheres


/homens)
1903ral
1903ral
1902ral 1902ral 1902ral 1902ral
1902ral 1901ral 1901ral1901ral
1901ral 1901ral
1901ral 1901ral
1900ral
1901ral 1901ral
1901ral 1900ral1900ral
1901ral 1900ral 1900ral 1900ral 1900ral
1900ral 1900ral
1900ral 1900ral
1900ral
1900ral
2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
Vitimas de Tráfico Atendidas 2012-2019 (homens/ mulheres)

Homens (0 a mais de 60 anos) Mulheres (0 a mais de 60 anos) TOTAL

Fonte: Portal Censo SUAS657.

Tabela 10. Número de Atendimentos de Vítimas de Tráfico atendidas CREAS


(mulheres/homens) 2012-2019

Fonte: Portal Censo SUAS658.

656
Os dados não permitem a identificação das pessoas LGBTQI+. Somente se conseguem os dados por sexo
masculino/feminino.
657
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. Portal Censo SUAS. Disponível em: https://aplicacoes.
mds.gov.br/sagirmps/portal-censo/. Acesso em: 20 ago. 2020.
658
Id.
294

Pelos dados coletados por Estados, apesar de apresentarem problemas nos valores totais
por ausência de valores em alguns Estados, verifica-se um maior número de atendimentos nos
Estados da Bahia, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, Rio
de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo.

Tabela 11. Censo SUAS Número de Atendimentos por Estado

Fonte: Censo SUAS659.

Os dados coletados do Censo SUAS permitem olhar que há demanda de tráfico de


pessoas e onde há atendimentos de vítimas de tráfico de pessoas. Esses dados apesar de
necessários, são insuficientes para analises relevantes nessa temática. Os dados existentes não
são capazes de produzir políticas públicas de atendimento?
Esses dados reportam os seguintes questionamentos: esses dados permitem a obtenção
de um diagnóstico sobre o fenômeno do tráfico de pessoas no Brasil? Quais modalidades de
tráfico de pessoas estão sendo atendidas? Quem são as pessoas atendidas por modalidade de
exploração e por idade? Será que os CREAS estão preparados para compreender a conceituação

659
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. Portal Censo SUAS. Disponível em: https://aplicacoes.
mds.gov.br/sagirmps/portal-censo/. Acesso em: 20 ago. 2020.
295

do tráfico de pessoas nas suas mais diversas modalidades e, consequentemente, identificar essas
demandas de forma correta? Esses casos estão ingressando ao PAEFI encaminhadas por quais
serviços? Essas vítimas estão sendo encaminhadas para outros serviços? A Rede Nacional de
Enfrentamento ao tráfico de pessoas, se existente nessa localidade, está inserida na rede de
atores possíveis para referenciamento? Qual é a qualidade do atendimento oferecido, quando
não se consegue analisar que tipo de atendimento está sendo ofertado e qual o percurso desses
atendimentos pela rede local de serviços?660.
Em algumas entrevistas realizadas com atores brasileiros do enfrentamento a tráfico de
pessoas questionou-se a ausência de diagnóstico sobre o tráfico de pessoas no Brasil, a falta de
conhecimento geral dos atores sobre a temática, falta de capacidade para identificar uma
possível vítima e falta de condições para um efetivo atendimento. Uma OSC relevante no
contexto do ETP no Brasil questionou a qualidade dos atendimentos prestados às vítimas de
tráfico. Há previsão dos direitos e a existência dos serviços, mas o serviço efetivamente
prestado, a saúde, assistência, o plano de abrigamento e desabrigamento, o acesso aos
benefícios legais deveriam funcionar. Nesse sentido, questionava-se a qualidade da política
pública existente e sua vinculação com a condição de pobreza e de redução das políticas
públicas sociais no Brasil.
Tais questionamentos permitem argumentar que ainda há muito que ser melhorado na
qualidade dos dados existentes sobre as demandas de atendimentos de tráfico de pessoas. Não
há preocupação na política pública de assistência sobre a identificação das diferentes violações
de direitos sofridos pelas pessoas que se enquadram nas modalidades de tráfico de pessoas; nem
mesmo no cuidado da identificação do tipo de violação sofrido por cada indivíduo atendido no
CREAS vítima de tráfico. Nesse sentido, essas limitações nos dados permitem apontar que o
sistema de coleta dos Registros Mensais de Atendimento dos CREAS deve ser melhorado para
dar um panorama mais exato do que está acontecendo de fato em relação ao tráfico de pessoas
de forma geral (Brasil) e específica em cada localidade, permitindo, a partir disso, criar políticas
públicas específicas ou ações dentro das políticas existentes, que garantam mais efetividade.
Parece que se precisa aprofundar no instrumental existente para que ele possa fornecer as

660
Em algumas entrevistas realizadas a atores brasileiros do enfrentamento a tráfico de pessoas questionaram a
ausência de diagnóstico sobre o tráfico de pessoas no Brasil, a falta de conhecimento geral dos atores sobre a
temática, falta de capacidade para identificar uma possível vítima e falta de condições para um efetivo
atendimento. Uma OSC relevante no contexto do ETP no Brasil questionou a qualidade dos atendimentos
prestados às vítimas de tráfico. Há previsão dos direitos e a existência dos serviços, mas a saúde, assistência,
o plano de abrigamento e desabrigamento, o acesso aos benefícios legais deveriam funcionar. Nesse sentido,
questionava-se a qualidade da política pública existente e sua vinculação com a condição de pobreza.
296

informações relevantes para a construção, monitoramento e identificação dos casos de tráfico


de pessoas.
No caso da pesquisa deste trabalho, olhando os dados fornecidos pelo Censo Suas, posso
dizer que há demanda de tráfico, mas não é possível verificar especificamente, quais os casos
são de mulheres para fins de exploração sexual, nem mesmo onde eles estão sendo identificados
e atendidos. Imaginando que esses dados pudessem ser recortados, facilitaria o mapeamento
das regiões com casos de tráfico de mulheres, meninas e adolescentes para fins de exploração
sexual, permitindo a articulação da rede especializada de tráfico de pessoas, se houvesse
(NETP, PAAHM e Comitê), mais a rede de serviços de atendimento à mulher, dispondo de
ações pontuais no sentido de construir mecanismos preventivos e de atendimento especializado
para os casos identificados e, até mesmo, melhorar a demanda de serviços em função da
demanda.
A capilaridade da Assistência Social e os instrumentais existentes podem ser
ferramentas importante para o enfrentamento ao tráfico de pessoas, e principalmente para
pensar ações de atenção e prevenção ao tráfico. Para tanto, é fundamental que se reforce a
necessidade da mudança desses instrumentais, a capacitação destes serviços para a
compreensão do fenômeno do tráfico de pessoas, e principalmente o aumento de orçamento
para que se possa continuar e melhorar a política de assistência social, no sentido de garantir
proteção e atendimento integral às vítimas.
Voltando à rede nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas, cabe destacar que,
principalmente a partir de 2017, com a avaliação do II PNETP, verifica-se o fechamento de
diversos PAAHMs e ou a falta de estrutura e investimentos para a continuidade e
aprimoramento do trabalho desenvolvido por estes e pelos NETPs, podendo impossibilitar a
atenção às vítimas de tráfico de pessoas ou a precarização desses atendimentos, com falta de
profissionais, falta de estrutura institucional do serviço, falta de ações preventivas, falta de
estrutura para atendimentos, falta de investimento para ações de prevenção, capacitações, para
articulações com a rede local, entre outras deficiências661.
Especificamente no caso dos PAAHM, levantamento técnico do funcionamento e
metodologia da rede de Postos Avançados de Atendimento Humanizado aos Migrantes,
realizada em 2014, onde já se apontava para as diversidades desses serviços em função de suas
distintas institucionalidades (ligadas as Secretarias de Justiça e Cidadania, às Secretarias de

661
UNODC. Relatório de Avaliação dos Resultados II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas. 2018. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/
anexos/relatorio-de-avaliacao-ii-plano-final-agosto2018.pdf. Acesso em: 15 jun. 2020.
297

Assistência Municipais, à Guarda Municipal), pela previsão ou não de orçamento, pela


diversidade na constituição das equipes de atendimento (multidisciplinares ou não), entre outros
elementos, evidenciava dificuldades de atendimento e sinalizando possíveis dificuldades para
o futuro do funcionamento e articulação da rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas662.
Percebe-se que a Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e a diminuição
dos atendimentos nos CREAS, pode ser um reflexo do que já vem acontecendo com as políticas
sociais no Brasil, principalmente a partir da Emenda Constitucional n. 95/2016663, decisiva para
intensificar a precarização das políticas sociais e, mais recentemente, com a pandemia de
COVID-19. A EC-95 rompe com o pacto social do bem-estar e proteção social assinado em
1988, na Constituição Federal. A austeridade defendida pelo governo, interrompe o que vinha
sendo implantado. Enfraquece e limita os investimentos em políticas sociais, fragilizando toda
a rede de proteção social. Com a nova regra, o gasto primário do governo federal fica limitado
por um teto definido pelo montante gasto no ano anterior, reajustado pela inflação acumulada,
medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Sabe-se que esse índice
é insuficiente para contemplar o crescimento da população, o que leva a uma redução dos gastos
sociais.
Nesse sentido, os efeitos dessa EC estão sendo sentidos a curto, médio e longo prazo.
Se congela a possibilidade de que cresça a capacidade orçamentaria para suportar a ampliação
dos serviços porque as demandas aumentam. Somado a isso, no cenário atual, com a pandemia,
a intensificação do quadro de vulnerabilidades da população é muito explicito, portanto
aumentam as demandas e, portanto, envolveria maior capacidade orçamentária. Ao contrário,
há uma precarização das políticas sociais e principalmente a intensificação dessa precarização.
Pode-se argumentar que as diversas formas de violência contra a mulher começam na falta de
infraestrutura dessas cidades e na ausência dos serviços e políticas públicas.
No Brasil, uma das conquistas mais importantes na defesa dos direitos das mulheres, foi
a construção do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (2004), com o objetivo de
diminuir as desigualdades de gênero, considerando a diversidade de raças e etnias que compõem
o território nacional. Esse plano destacou-se pela articulação e mobilização em torno das ações
governamentais, que coordenadas, apoiavam o desenvolvimento das políticas públicas,

662
UNODC. Projeto: BRA/X63: suporte à Secretaria Nacional de Justiça para o aprimoramento da
implementação da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Relatório Produto 01:
Levantamento técnico do funcionamento e metodologia da rede atual de Postos Avançados de Atendimento
Humanizado aos Migrantes, com foco principal nas estruturas em portos e rodoviárias. 2014.(No prelo).
663
BRASIL. Emenda Constitucional n. 95/2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/emendas/emc/emc95.htm. Acesso em: 15 set. 2020.
298

buscando o equilíbrio dos direitos humanos e constitucionais para mulheres, com olhares para
todas as regiões brasileiras.
No âmbito dos serviços que compõe SUAS e SUS, verifica-se, uma fragilidade
estrutural e de condição de desenvolvimento do trabalho das equipes, justamente pelo
estrangulamento orçamentário a partir de 2017. Esse panorama aponta para a urgência no
resgate da institucionalidade desses atores fundamentais para a política nacional de
enfrentamento ao tráfico de pessoas que articulam localmente as ações de enfrentamento ao
tráfico no Brasil e principalmente se articulam com as redes locais de atores, especialmente de
assistência e de saúde, buscando atendimento para as vítimas de tráfico identificadas, sejam
elas mulheres, homens ou crianças664.
Esta pesquisa não tem a solução para essas questões, mas percebe a urgência no
apontamento dessa necessidade. A situação de ausência de serviços públicos essenciais, de
dificuldade de acesso das populações aos serviços, principalmente longe dos grandes centros
urbanos e nas regiões de fronteira exige um olhar ainda mais cuidadoso para as situações de
vulnerabilidades e violências, entre elas, o tráfico de pessoas665.
Para que o atendimento e a proteção prestada às vítimas estejam de acordo com o
previsto em lei, é fundamental que as redes sejam fortalecidas pelo Estado e seus entes
federativos.

4.6 A Dimensão da responsabilização do Tráfico Internacional de Pessoas

O Brasil ainda não possui um sistema de informações integrado para a compreensão dos
dados relativos às condenações relativas ao crime do tráfico de pessoas. Assim, para se obter
dados relativos a procedimentos, processos e condenações, é necessário procurar os dados com
cada ator que compõe as instituições responsáveis pela responsabilização do tráfico de pessoas.
(polícias, Ministério Público, Defensorias, Judiciário).
Ademais, há escassez de dados nos processos envolvendo tráfico de pessoas no que diz
respeito à vítima, o que tem impossibilitado estabelecer padrões seguros de perfis nos
processos. A pesquisa de Dornelas traz achados relevantes sobre elementos que procuram

664
SPOSATI, Aldaíza. Descaminhos da seguridade social e desproteção social no Brasil: DOI:10.1590/1413-
81232018237.10202018.
665
ASBRAD. Achados das fronteiras no âmbito do projeto fronteiras. 2017.
299

construir os perfis das vítimas especialmente nos processos judiciais e que serão analisados a
seguir666.

4.6.1 Informações da Polícia Federal

A competência para o processo e julgamento no Poder Judiciário do crime de tráfico de


pessoa decorre do artigo 109, inciso V, da Constituição Federal é da Justiça Federal, uma vez
que cabe a esta a competência para os crimes previstos em tratado ou convenção internacional,
como é o caso do tráfico internacional de pessoas. A justiça comum estadual é competente para
o tráfico interno de pessoas. Com relação à atuação da Polícia Federal no enfrentamento ao
tráfico de pessoa o amparo normativo é a Lei nº 10.446 de 2002, que dispõe sobre as infrações
penais de repercussão interestadual ou internacional que exigem repressão uniforme, para os
fins do disposto no inciso I, do § 1º do artigo 144 da Constituição Federal. Internamente, é
atribuição da Unidade de Repressão ao Tráfico de Pessoas da Divisão de Direitos Humanos
(URTP/DDH) coordenar e articular todos os esforços nacionais e internacionais para a
prevenção e repressão ao tráfico de pessoas pela Polícia Federal667.
A Polícia Federal disponibilizou o Relatório de Atuação da Polícia Federal no Combate
aos Crimes Violadores dos Direitos Humanos/2019, em que constam algumas estatísticas
relacionadas ao crime de tráfico de pessoas, sem identificar para quais modalidades de tráfico
se referem os dados668:

Tabela 12. Dados vítimas tráfico de pessoas - Unidade de Repressão ao Tráfico de Pessoas
URTP/PF
Vítimas de crime de tráfico de pessoas resgatadas, acompanhadas ou identificadas (segundo faixa etária)
Criança ou Criança ou Adulto Adulto do
adolescente do sexo adolescente do sexo do sexo
Período feminino masculino sexo feminino masculino Total
2018 6 5 30 60 101
2019 2 17 10 54 83

Fonte: Ministério da Justiça 669.

666
DORNELAS, Luciano. A persecução penal do tráfico internacional de seres humanos no Brasil:
organização, interações e decisões. Tese (Doutorado) - Centro Universitário de Brasília, 2019. p. 24.
667
RIBEIRO, Marcos L. S. O papel da polícia federal na Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.
Revista Brasileira de Ciências Políticas, Brasília, DF, v. 8, n. 1, p. 151-182, jan./jun. 2017. Edição Especial.
668
Importante destacar que todos esses dados foram obtidos a partir do Relatório de Gestão da Coordenação-Geral
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes. Relatório de Gestão 2019/2020. Ver em:
BRASL. Ministério da Justiça. Relatório de Gestão da Coordenação-Geral de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas e Contrabando de Migrantes: relatório de gestão 2019/2020. p. 46-47.
669
Id.
300

Os dados da Tabela 10 parecem indicar que o número de mulheres adultas e homens são
os mais identificados nas modalidades de tráfico interestadual e internacional de pessoas.
Percebe-se também um elevado número de homens identificados, possivelmente na modalidade
de tráfico de pessoas para fins de trabalho escravo.

Tabela 13. Relatório Atuação da Polícia Federal no Combate aos Crimes Violadores dos Direitos
Humanos/2019
Número de indiciamentos realizados por ano de instauração, segundo as Infrações Penais tipificadas
concomitantes ao Art. 149 do CPB – Redução à Condição Análoga à de Escravo, Brasil – 2010 a 2019
Ano da Autuação
Infração Penal Descrição Total
2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
Art. 149-A CPB Tráfico de pessoas 0 0 0 0 0 0 3 2 10 15
Tráfico Internacional
Art. 231 CPB de Pessoas 5 0 2 2 0 0 1 0 0 10
Fonte: Ministério da Justiça.670

O número de indiciamentos aumentou consideravelmente em 2019, mesmo com o


número de vítimas menor, conforme Tabela 11. Pode-se perceber que a alteração do tipo penal
do tráfico de pessoas, em 2016, também pode ter contribuído para uma resposta no sentido do
aumento dos indiciamentos.

Tabela 14. Número de inquéritos instaurados (SISCART ), indiciamentos, indiciados e


Inquéritos com indiciamento (SINIC ) pela Polícia Federal

Número de inquéritos instaurados (SISCART671), indiciamentos, indiciados e Inquéritos com


indiciamento (SINIC672) pela Polícia Federal no Art. 149-A do CPB – Tráfico de Pessoas, Brasil
– 2014 a 2019
Ano de instauração
Origem dos Dados Ação Total
2014 2015 2016 2017 2018 2019
SisCart Inquéritos 1 0 3 56 53 79 192
Indiciamentos 0 0 7 10 14 16 47
SINIC Indiciados 0 0 7 10 14 16 47
Inquéritos 0 0 4 6 6 10 26
Fonte: Ministério da Justiça.673

670
Id.
671
O Sistema Cartorário (SISCART) de uso obrigatório na Polícia Federal, instituído pela Portaria nº 1.083 de 29
de abril de 2010, do Diretor-Geral de Polícia Federal. O SISCART, facilita a atualização automática do módulo
“Inquérito Policial” do Sistema Nacional de Procedimento (SINPRO), cujo objetivo é a automatização do
controle dos procedimentos cartorários tais como inquérito policial, investigação policial preliminar, carta
precatória, mandados de prisão e notícias de crime enviadas para Polícia Federal. A Corregedoria-Geral de
Polícia Federal é a unidade responsável pela gestão de ambos os sistemas: SISCART e SINPRO. Ver em:
RIBEIRO, Marcos L. S. O papel da polícia federal na Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas. Revista Brasileira de Ciências Políticas, Brasília, DF, v. 8, n. 1, p. 151-182, jan./jun. 2017. Edição
Especial.
672
SINIC: Sistema de Informações Criminais.
673
BRASL. Ministério da Justiça. Relatório de Gestão da Coordenação-Geral de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas e Contrabando de Migrantes: relatório de gestão 2019/2020. p. 46-47.
301

As planilhas e dados permitem algumas reflexões:


1. Analisando os dados de vítimas resgatadas, acompanhadas ou identificadas, percebe-
se como esse número diminui quando do indiciamento de processos.
2. Também não é possível diferenciar de quais modalidades de tráfico referem-se os
dados apresentados.
3. Por outro lado, a partir de 2017, em função da Promulgação da Lei n. 13.344/2016,
percebe-se um aumento no número de inquéritos e indiciamentos, pelo aumento de modalidades
do tráfico de pessoas ao tipo penal.

4.6.2 Defensoria Pública da União (DPU)

A DPU, por meio de seu grupo de trabalho de assistência às vítimas de tráfico de pessoas
da Defensoria Pública da União, elaborou, em 2019, um Guia Prático sobre tráfico de
pessoas674.
Os dados da DPU referente as medidas para a proteção legal e reparação civil de danos
materiais e morais indicam que todos os casos que chegaram à DPU foram devidamente
atendidos.
A DPU registrou a seguinte prestação de assistência, conforme indicado no Relatório de
Avaliação do II PNETP: Os dados apresentados são bastante pequenos em função do número
de vítimas identificadas pela Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e pelos
atendimentos da assistência social.

Tabela 15. Número de Assistências Prestadas pela DPU em casos de tráfico de pessoas
(2012/2015).
ANO Assistência
2012 5
2013 9
2014 3
2015 17
Fonte: Elaboração própria675.

674
DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO. Guia Prático sobre tráfico de pessoas. 2019. Disponível em:
https://www.unodc.org/documents/human-trafficking/GLO-ACT/DPU_ANTI-TIP_GUIDE.pdf. Acesso em:
20 set. 2020.
675
UNODC. Relatório de Avaliação dos Resultados II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas. 2018. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/
anexos/relatorio-de-avaliacao-ii-plano-final-agosto2018.pdf. Acesso em: 15 jun. 2020. p. 40.
302

4.6.3 O lugar das mulheres no sistema de responsabilização do tráfico

Importante destacar o estudo realizado por Luciano Dornelas (2019), que analisa, entre
outros aspectos, as decisões da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e da Justiça
Federal nos casos de tráfico internacional de pessoas, entre 2004 a 2015. Apesar do estudo não
ter tido a possibilidade de analisar inquéritos e processos já no âmbito da legislação atual do
tráfico de pessoas (Lei n. 13.344/2016), traz apontamentos relevantes, inclusive sobre
percepções do judiciário referente ao fenômeno do tráfico de pessoas676.
Seu estudo parte, inicialmente, da análise dos dados do Ministério Público Federal
(MPF)677, que focou nos inquéritos policiais “concluídos”678. A pesquisa no sistema de dados
do Ministério Público Federal apontou a existência de 195 considerados concluídos. Destes,
54% por cento concluídos, apenas 38 (19,5%) o foram por oferecimento de denúncia e 157
(80,5%), por pedido de arquivamento. Os 157 casos de arquivamento se deram: 42,2% pela
ausência de provas; 14,5% pela extinção da punibilidade e, 7,2% atipicidade. Nesse sentido, a
pesquisa evidencia a necessidade de redução do tempo de investigação como forma de conferir
mais efetividade à responsabilização dos agentes. Quanto menor o tempo de investigação, maior
a probabilidade de oferecimento de denúncia. É como se o inquérito tivesse um tempo útil para
garantir uma premissa decisória positiva. Ademais, as sucessivas dilações de prazo do inquérito
policial acarretam prejuízos para a elucidação dos fatos. Além disso, ao se cruzar a existência
de pedido de dilação de prazo com o tipo de sentença, percebe-se, um aumento das sentenças
absolutórias (não condenatórias) quando há dilação de prazo679.
Analisando as entrevistas qualitativas realizadas com membros do Ministério Público
Federal há coincidência de que a especialização das Delegacias e Varas é um caminho à
melhoria de apuração dos crimes e que é imperativa a necessidade de melhoria da prova pela
Polícia Federal e a adoção de critérios na apuração do tráfico de pessoas.
Ainda na informação qualitativa colhida, a pesquisa aponta que os magistrados
percebem a vulnerabilidade das vítimas a partir da questão econômica e que esta aparece como
principal elemento formador de sua convicção para atestar a vulnerabilidade (premissa
decisória). Esse elemento é muito importante, pois a caracterização da vulnerabilidade das

676
DORNELAS, Luciano. A persecução penal do tráfico internacional de seres humanos no Brasil:
organização, interações e decisões. Tese (Doutorado) - Centro Universitário de Brasília, 2019.
677
O MPF é responsável por propor as ações penais para condenação de traficantes internacionais de pessoas.
678
Entendeu-se por “inquérito concluído” aquele procedimento investigatório no qual houve oferecimento de
denúncia ou pedido de arquivamento.
679
DORNELAS, Luciano. A persecução penal do tráfico internacional de seres humanos no Brasil:
organização, interações e decisões. Tese (Doutorado) - Centro Universitário de Brasília, 2019. p. 192.
303

vítimas pode fazer com que o consentimento dado por ela seja considerado irrelevante para a
caracterização do crime de tráfico de pessoas (principalmente agora, que não fica expresso na
lei a irrelevância do consentimento para a caracterização do crime de tráfico de pessoas).
Ademais, a vulnerabilidade, como já foi abordado no primeiro capítulo, pode ser verificado por
diversos elementos que não só a questão econômica. Essa percepção de vincular o econômico
à vulnerabilidade, certamente traz limitações na compreensão da complexidade que envolve os
casos de tráfico de pessoas, principalmente mulheres. Essa perspectiva reforça ainda mais a
necessidade de o tráfico de pessoas ser tratado sob a perspectiva mais ampla dos direitos
humanos, como crime contra a dignidade da pessoa humana se sobressaindo da abordagem de
um crime contra a liberdade individual e pessoal.
As entrevistas realizadas durante as pesquisas de campo também sugerem que a
deficiência de integração entre os atores (polícia, Ministério Público, Magistratura) dificulta a
gestão de atividades. As interações organizacionais, se precedidas às decisões, podem evitar
lacunas, incoerências e retrabalho, constituindo-se em importante ferramenta de governança e
evitando práticas nocivas às políticas públicas de enfrentamento ao tráfico de pessoas.
Observa-se que em nenhum momento se percebe importante a interação com a rede
assistencial e de proteção à vítima. É como se o sistema judicial funcionasse a parte,
distanciando-se a responsabilização da absoluta necessidade de proteção e atenção da vítima.
Sabe-se que os casos de tráfico de pessoas envolvem recuperação e restabelecimento dos
direitos violados das vítimas. Essa dimensão é primordial. Talvez se houvesse mais parceria
entre os atores da rede de apoio às vítimas, seja da assistência social, saúde e o sistema
judiciário, haveria maior interesse, participação e principalmente colaboração da vítima, por
sentir-se amparada e protegida e, assim, consequentemente, maior possibilidade da condenação
dos traficantes. Interessante notar que, Guia de Referência elaborado especialmente para a
atuação da Polícia Federal, no âmbito da atuação de situações envolvendo tráfico de pessoas,
indica a Rede Nacional de Núcleos e Postos de enfrentamento ao tráfico de pessoas e nos locais
em que não houver representantes da rede, contatar a rede assistencial do Ministério do
Desenvolvimento Social (CREAS)680.
O que motivou a abertura do Inquérito Policial de possível situação de tráfico de
pessoas. Foram analisados 75 inquéritos com essas informações. Desses, 29 (vinte e nove)

680
BRASIL. Ministério da Justiça. Guia de enfrentamento ao tráfico de pessoas. Lucicleia Souza e Silva
Rollemberg, Marcos Leôncio Souza Ribeiro, Raul Miranda Menezes. Brasília, DF, 2016. p. 35. Disponível em:
https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/guia-de-etp-parceria-dpf.pdf. Acesso
em: 15 ago. 2020.
304

iniciaram pela “Notitia crimis de pessoa não identificada como vítima”, 11 (onze) pelo
“desdobramento de outra investigação interna em que se apura crime análogo”, 8 (oito) casos
pela “Notitia crimis de pessoa identificada como vítima”, 6 (seis) casos de “noticia crimes
anônima”, 4 (quatro) casos pela provocação de “Autoridade policial (corporação policial)
estrangeira”, e depois aparecem também, a “Notícia crime do Núcleo de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas do Ceará”, “Conselho Tutelar”, “Consulados do Brasil no exterior”, “ Ligue
180 - Secretaria Especial de Proteção da Mulher/Ministério da Justiça”, entre outros. Percebe-
se que a notícia crime de pessoa que não se identifica como vítima é a maior motivadora do
início de investigações, mostrando a importância da denúncia quando do conhecimento de uma
possível situação de tráfico de pessoas. Aparecem as redes de proteção e canais de denúncia
relevantes como Ligue 180, Conselho Tutelar, NETP como espaços relevantes e motivadores
de investigações681.
Interessante destacar que dos crimes cometidos por mais de um réu, somente em 45,5%
dos casos houve caracterização de associação ou organização criminosa682, indicando que, ao
contrário do que se pretende assinalar, o crime do tráfico de pessoas nem sempre está vinculado
ao crime organizado transnacional. Isso pode indicar, de outra forma, que o tráfico de pessoas
se trata muito mais de um crime de violação de direitos e de exploração das pessoas do que um
crime ligado ao crime organizado transnacional.
O estudo de Dornellas também aponta para os perfis das vítimas de tráfico nos processos
judiciais. A pesquisa conseguiu relacionar 173 vítimas de 52 processos. Os processos com
maior número de vítimas aparecem no Estado de Goiás. A idade informada corresponde à idade
da vítima na época do aliciamento. Em 129 processos pesquisados em campo havia qualificação
com a informação da idade da vítima. Enquanto os picos de aliciamento ocorrem com vítimas
em idade geralmente aos 19 (dezenove) e 22 (vinte e dois) anos, o maior número de vítimas
situa-se na idade entre 19 e 24 anos683.

681
DORNELAS, Luciano. A persecução penal do tráfico internacional de seres humanos no Brasil:
organização, interações e decisões. Tese (Doutorado) - Centro Universitário de Brasília, 2019. p. 205.
682
Ibid., p. 206.
683
Ibid., p. 237-239.
305

Gráfico 5. Distribuição do número de vítimas por idade na época do aliciamento

Fonte: Dornelas Luciano.684.

A pesquisa indica que é

preciso reconhecer uma carência de metodologia dos operadores do direito


que lidam diretamente com as vítimas, os quais não se preocupam com o
alinhamento de políticas públicas voltadas à prevenção e que requerem dados
das vítimas para o direcionamento dos serviços aos locais mais vulneráveis e
às pessoas mais suscetíveis à ação dos aliciadores685.

Quanto ao gênero, todas as vítimas identificadas nos processos pesquisados nesta tese
são mulheres, a exceção de 7 (sete) travestis, sendo 2 (dois) da Bahia, 2 (dois) de Goiás, 1 (um)
do Ceará, 1 (um) do Pará e 1 (um) de São Paulo. Quanto à cor, somente 26% (46/173) das
respostas apareciam preenchidas. Destas, mais da metade das vítimas (52,2%) são de cor
branca, aproximadamente 40% (39,1%) são de cor parda e o restante (8,7%), de cor preta.

Tabela 16. Distribuição do número de vítimas por cor ou raça e UF

Fonte: Distribuição do número de vítimas por cor ou raça e UF686.

684
Ibid., p. 239.
685
Ibid., p. 242.
686
Ibid., p. 243.
306

Outro aspecto analisado bastante interessante foi a de identificar nos processos a questão
da percepção da vulnerabilidade como um elemento crítico para a compreensão do fenômeno
do tráfico de pessoas, permitindo determinar condições que favorecem um aliciamento.
Somente 46,2% das vítimas possuíam informação sobre a existência de algum sinal evidente de
vulnerabilidade em relação ao aliciador durante o aliciamento687.
A vulnerabilidade de origem pode estar ligada a uma complexa interação de fatores
relacionados a desproteções, ausências e inclusive violências institucionais. Pode-se
argumentar que, os sistemas penais são ineficazes, em muitos casos, na proteção das mulheres
contra a violência, uma vez que as revitimiza, ressaltando a desigualdade de classes e a
desigualdade de gênero. O sistema penal, não apenas é um meio ineficaz para a proteção das
mulheres contra a violência, como também duplica a violência institucional exercida contra
elas688.
A ausência ou número baixo de denúncias pode ser interpretado pelo maltrato
institucional e os procedimentos pouco amigáveis aos quais as mulheres têm que se submeter
quando decidem revelar as condições de exploração às quais foram submetidas. Esses
procedimentos deixam de lado as questões culturais que levam muitas mulheres a negar as
próprias situações que vivenciam, seja porque receiam represálias das redes, de suas famílias,
das autoridades policiais e judiciais (que podem deter ou deportar, no caso de mulheres
estrangeiras), ou até mesmo pelo estigma provocado pelo fato de terem sido exploradas.689 Em
outros casos ainda, o silencio das vítimas pode estar motivado pela dificuldade de aceitar o
fracasso da tentativa migratória, porque os sonhos buscados não se concretizaram ou pela
existência de uma família sob sua responsabilidade de sustento 690.
O maltrato institucional também pode ser percebido pela homogeneização abstrata das
“vítimas de tráfico”. Mesmo sabendo que essas mulheres compartilham perfis e elementos
comuns no engano, na coação, exploração etc., isso não determina uma condição de categoria
de pessoa.

687
Id.
688
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como
sujeito de construção da cidadania. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/
view/15645/14173. Acesso em: 15 ago. 2020. Ver também, ALVAREZ, Marcos Cesar; TEIXEIRA,
Alessandra; MATSUDA, Fernanda Emy; SALLA, Fernando; MARQUES, Gorete. A vítima no processo penal
brasileiro: um novo protagonismo no cenário contemporâneo? Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 86,
p. 247-288, 2010.
689
RAMOS, Nuria Cordero. Trata con fines de explotación sexual: derechos humanos que maltratan a las humanas.
Gazeta de Antropología, v. 30, n. 3, artículo 09, 2014. Disponível em: http://hdl.handle.net/ 10481/33816.
Acesso em: 15 fev. 2020.
690
AGUSTIN, Laura María. Tráfico y prostitución: experiencia de mujeres africanas. Bilbao: Likiniano Elkartea,
2003. p. 73-74.
307

Cada uma deve ser atendida na sua individualidade: com nome próprio,
identidade, origem e situações jurídicas, sociais, familiares e culturais
particulares, que devem ser reconhecidas nas práticas institucionais. A
negação pela abordagem normativa e institucional das particularidades
culturais de cada uma das mulheres que sofrem em situação de exploração
sexual, acarreta um maltrato acrescido que se especifica em comportamentos
por parte dos órgãos e forças de segurança do Estado, como a desvalorização,
exclusão, discriminação, qualificação negativa, desqualificação e subjugação
com base em uma cultura patriarcal prevalecendo a abordagem
normativista691.

Percebe-se que o sistema penal não previne novas violências, não escuta os diversos
interesses das vítimas, não contribui para a compreensão da própria violência sexual e a gestão
do conflito e, muito menos, para a transformação das relações de gênero. Ademais, o sistema
penal duplica a vitimização feminina porque as mulheres são submetidas a julgamento. O
julgamento não é igualitário, ele seleciona autores e vítimas, muitas vezes, de acordo com sua
reputação pessoal. No caso das mulheres, de acordo com sua reputação sexual, estabelece o
grupo das mulheres consideradas "honestas" (do ponto de vista da moral sexual dominante),
que podem ser consideradas vítimas pelo sistema, e as mulheres "desonestas" (das quais a
prostituta é principal estereótipo), que o sistema abandona na medida em que não se adequam
aos padrões de moralidade sexual impostas pelo patriarcalismo à mulher; e nessas perspectivas,
o sistema penal atua como um fator de dispersão e uma estratégia excludente, recriando as
desigualdades e preconceitos sociais692.
Verifica-se que no crime do tráfico de mulheres, acontece algo semelhante ao que ocorre
nos crimes de violência sexual: a vítima termina sendo a acusada pelo ocorrido. Isso acontece
na hora de julgar delitos como estupro e abuso sexual. O eixo da investigação desvia-se do
acusado em direção à vítima e continua com a análise da sua conduta, além de seus antecedentes
pessoais, principalmente tudo aquilo relativo à sua vida sexual, no sentido da desqualificação.
Acredita-se que muitos dos achados da pesquisa de Dornelas, que sinalizam para o baixo
número de condenações, inclusive pela ausência “voluntária” da própria vítima, podem também

691
RAMOS, Nuria Cordero. Trata con fines de explotación sexual: derechos humanos que maltratan a las humanas.
Gazeta de Antropología, v. 30, n. 3, artículo 09, 2014. Disponível em: http://hdl.handle.net /10481/33816.
Acesso em: 15 fev. 2020. “Cada una ha de ser atendidas en su individualidad: con nombre propio, identidad,
procedencia y situaciones jurídicas, sociales, familiares y culturales particulares, que han de ser reconocidas
en las prácticas institucionales. La negación por parte del enfoque normativo e institucional de las
particularidades culturales de cada una de las mujeres que padecen situaciones de explotación sexual, provoca
un mal trato añadido que se concreta en comportamientos por parte de los cuerpos y fuerzas de seguridad del
Estado, como desvalorización, exclusión, discriminación, calificación negativa, descalificación y
sojuzgamiento fundamentados en una cultura patriarcal imperante el enfoque normativista.”
692
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como
sujeito de construção da cidadania. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/
view/15645/14173. Acesso em: 15 ago. 2020.
308

estar vinculados a esse processo de violência institucional ao qual essas mulheres se percebem
inseridas, mesmo que seja de forma inconsciente. Nesse sentido, cabe a reflexão sobre qual
papel o sistema judicial vem ocupando nesses processos de responsabilização do tráfico de
pessoas? Há a preocupação de se proteger as vítimas, garantir segurança física, mental,
pensando essas pessoas, principalmente mulheres (no âmbito dos processos estudados), como
vítimas de violência? Se por um lado, a vítima está sendo reclamada dentro do discurso penal,
no sentido de contribuir para a responsabilização dos traficantes, sendo, muitas vezes,
instrumentalizada para garantir a condenação, por outro lado, esse mesmo sistema não lhe
garante, no mínimo, uma escuta qualificada que compreenda as complexidades que estão
presentes no fenômeno do tráfico de pessoas, nem mesmo nos desejos, aspirações e
restabelecimento dos seus direitos vulnerados e violados693.
Parece pertinente trazer a discussão feita por David Garland, quando desenvolve um
modelo de análise do papel da punição na sociedade moderna. É a percepção de Garland sobre
a importância da cultura e seus diferentes âmbitos e símbolos, de pensar a punição como uma
instituição social, (assim como a família, a escola, o governo e o mercado), instituições que
agregam uma gama de variáveis e fatores que influenciam o funcionamento social, que reside
a principal contribuição deste pensador para uma sociologia da punição e que permite refletir
sobre o papel que está sendo ocupado pelas vítimas no processo penal de tráfico de pessoas. O
argumento é que as práticas penais falam à sociedade não somente sobre crime e castigo, mas
servem para estruturar um raciocínio que organiza e define o mundo que conhecemos por meio
daquilo que entendemos como bom e ruim, moral e imoral, normal e anormal, ordem e
desordem; permitindo que se aprenda a julgar, a preservar a ordem e a comunidade, conforme
os padrões determinados694. Tudo que escape desse padrão, é, no mínimo questionado ou tem
sua credibilidade diminuída.

[...] as práticas penais estabelecem uma armação cultural estruturante, e suas


declarações e ações servem como uma grade interpretativa a partir da qual as
pessoas avaliam a conduta e fazem julgamentos morais sobre suas próprias
experiências. A punição, portanto, atua como um mecanismo social regulador
em dois distintos aspectos: ela regula a conduta diretamente por meio da ação
social física, mas também regula significados, pensamentos, atitude – e
conduta – mediante um meio de significação um tanto diferente695.

693
Nos países em que a concessão de status de vítima de tráfico está condicionada à colaboração com as autoridades
policiais e judiciárias, fica ainda mais evidente essa instrumentalização da vítima, em detrimento dos seus
interesses e restabelecimento.
694
GARLAND, David. Punishment and modern society: a study in social theory. Oxford, Claredon Press, 1995.
695
Ibid., p.252.
309

Nessa perspectiva, o sistema penal vem atuando como um fator de dispersão da


fenomenologia do tráfico de pessoas e de sua complexidade vivenciada por essas mulheres
vítimas e, consequentemente as excluindo, seja por não garantir efetivamente um espaço amplo,
seguro e efetivo de escuta e proteção, seja por recriar as desigualdades e preconceitos sociais
das quais elas foram e continuam sendo vítimas. A título de reflexão, mesmo que a condenação
de todos os traficantes se verificasse, essas mulheres não teriam seus direitos restabelecidos.
Considera-se importante pensar essa dimensão da responsabilização a partir desta perspectiva
crítica do sistema judicial, para pensar e inserir a dimensão da responsabilização como uma
dimensão relevante e fundamental na continuidade e aprimoramento da construção do regime
complexo do tráfico de pessoas com enfoque em direitos humanos696.

4.7 Orçamento para a Política Pública do Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas

Pensar a implantação da política pública do enfrentamento ao tráfico de pessoas é


necessariamente pensar nos mecanismos existentes para sua concretização e especialmente
pensar no planejamento feito pelo Estado697. Sabe-se que o planejamento é uma das mais
importantes ferramentas da administração pública. O conceito de planejar está intimamente
ligado à necessidade de se ter conhecimento prévio das atitudes a serem tomadas e das ações a
serem desempenhadas698.
Ressalta-se também que nem sempre é fácil mensurar ou quantificar quanto do
orçamento público está sendo destinado à política de enfrentamento ao tráfico de pessoas uma
vez que muitas ações se dão no âmbito de serviços que atendem diversas demandas, como por
exemplo os CREAS699, no âmbito da assistência social e os serviços de saúde, no âmbito do
SUS700. Pode-se destacar: organizações da sociedade civil e de redes que trabalham na atenção,

696
Essa reflexão foi amparada no capitulo Brasil, mas serve para o caso da Espanha.
697
Ver o artigo 174 da CF: “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na
forma da lei, as funções de [...] planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o
setor privado”.
698
GIACOMONI, James. Orçamento público. 15. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2010.
699
“As vítimas do tráfico de pessoas foram incluídas como público beneficiário a ser atendido pelos CREAS,
sendo garantidas todas as provisões previstas para esse serviço conforme Tipificação Nacional de Serviços
Socioassistenciais. Ver em: UNODC. Relatório de avaliação dos tesultados II Plano Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. 2018. p. 37-39. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-
protecao/ trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos/relatorio-de-avaliacao-ii-plano-final-agosto2018.pdf. Acesso
em: 15 jun. 2020.
700
“Estratégia para a incorporação do tema do tráfico de pessoas no atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS)
criada. No período de vigência do II PNETP, o MS desenvolveu estratégias para fortalecer a capacidade de
atendimento das vítimas do tráfico de pessoas no âmbito do SUS, em sua maioria sistematizadas em
publicações para orientação ao atendimento.” Ver em: UNODC. Relatório de avaliação dos tesultados II
Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. 2018. p. 41-42. Disponível em:
310

na proteção e na assistência especializada às vítimas do tráfico de pessoas apoiadas técnica e


financeiramente701; serviços de acolhimento institucional assegurados pela política de
assistência social para pessoas vítimas de tráfico criados e fortalecidos, em parceria com setores
governamentais e não governamentais; em 2019, 4052 unidades informaram que estão aptas
para acolher vítimas do tráfico de pessoas702.
Em contrapartida, analisando os relatórios de avaliação do II PNETP703 e o Relatório de
Gestão da Coordenação Geral de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Ministério da
Justiça704, pode-se identificar a disposição expressa de alguma dotação orçamentária específica
para a política de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil: verifica-se dotação
orçamentária para custear o retorno das vítimas às comunidades às quais desejem regressar 705;
orçamento específico para a implementação da política nacional de enfrentamento ao tráfico de
pessoas da Coordenação-Geral de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Contrabando de
Migrantes706.
Ainda analisando o Relatório da Avaliação de Resultados do II PNETP percebem-se
alguns pontos: Há somente 9 (nove) menções ao orçamento público, no sentido de solicitar mais
comprometimento para a efetivação das ações para o enfrentamento ao tráfico de pessoas, seja
na linha da prevenção (desenvolvimento de mais pesquisas), seja na proteção e atendimento
(para ampliação da Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e para retorno das
vítimas aos seus lugares de origem), seja na responsabilização (havendo ausência de
planejamento e dotação orçamentária para a repressão no sentido de mapear rotas de tráfico de
pessoas).
Ademais, nas recomendações para a elaboração do III PNETP muitos pontos exigem
mais do que vontade política para a efetiva execução. Sem planejamento e dotação orçamentária

https://www.justica.gov.br/sua-protecao/ trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos/relatorio-de-avaliacao-ii-
plano-final-agosto2018.pdf. Acesso em: 15 jun. 2020.
701
Ibid., p.38.
702
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. Censo SUAS 2019.
703
UNODC. Relatório de avaliação dos resultados II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas. 2018. p. 36-44. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-
pessoas/publicacoes/ anexos/relatorio-de-avaliacao-ii-plano-final-agosto2018.pdf. Acesso em: 15 jun. 2020.
704
BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório de gestão da Coordenação-Geral de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas e Contrabando de Migrantes: relatório de gestão 2019/2020. p. 5,50,54.
705
O MRE dispõe de rubrica orçamentária na área de assistência consular para custear a repatriação de nacionais
brasileiros em situação de desvalimento e vulnerabilidade no exterior, dentre as quais, vítimas de tráfico de
pessoas. Em abril de 2016, o valor destinado para esse custeio era da ordem de R$ 61.737,43. Ver em: UNODC.
Relatório de Avaliação dos Resultados II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. 2018.
Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos/relatorio-de-
avaliacao-ii-plano-final-agosto2018.pdf. Acesso em: 15 jun. 2020. p.37.
706
BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório de gestão da Coordenação-Geral de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas e Contrabando de Migrantes: relatório de gestão 2019/2020. p. 5.
311

para sua efetivação, esses pontos, que foram contemplados no III PNETP podem não se
concretizar. Alguns exemplos: 1. esforços para o fortalecimento e a ampliação dos Núcleos de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Postos Avançados de Atendimento Humanizando ao
Migrante; 2. priorização na geração, integração e gestão dos dados nacionais em enfrentamento
ao tráfico de pessoas, de modo que seja construído um observatório nacional para o
enfrentamento ao tráfico de pessoas para equalizar as informações e sua mensuração; 3.
Fortalecimento das políticas sociais, no âmbito do Sistema Único da Assistência Social (SUAS)
(voltadas à população em situação de vulnerabilidade, compreendendo as desigualdades sociais
e econômicas como pilares da persistência do tráfico de pessoas no Brasil) e no âmbito do
Sistema Único de Saúde (SUS), no sentido de adotar estratégias nacionais para inclusão do
atendimento humanizado à vítima do tráfico de pessoas.
Importante destacar também que os entes federativos, especialmente os Estados devem
planejar e dispor de previsão orçamentaria para a efetivação de suas políticas específicas de
enfrentamento ao tráfico de pessoas, conforme já abordado anteriormente. Ressalta-se que
somente os Estados do Pará, Bahia e Ceará dispõem na atualidade de previsão orçamentária
específica para o enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil.
312

4.8 Breves Conclusões Parciais do Capitulo 4: avanços e desafios da política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas

A Tabela 17 permite verificar como foi sendo desenvolvida a política pública do tráfico de pessoas no Brasil, levando em conta os
governos federais respectivos.

Tabela 17. Política Pública brasileira de enfrentamento ao tráfico de pessoas x governos (2000/2020).

Fernando Henrique Cardoso Luiz Inacio Lula da Silva Dilma Roussef Michel Temer Jair Messias Bolsonaro
1995-2003 2003-2011 2011-2016 2016-2019 2019-
PSDB PT PT PMDB Sem Partido

Fernando Henrique Luiz Inácio Lula da Silva Dilma Rousseff Michel Temer Jair Messias Bolsonaro
Cardoso

O governo assinou o - Ratificação da - Aprovação do II - Aprovação do III - Institui o Grupo


Protocolo de Palermo e Convenção contra o PNETP PNETP Interministerial de
iniciou a discussão da Crime Transnacional Monitoramento e
temática e a realização de - Aumento das -Aprovação da Lei Avaliação do III
cooperações relevantes - Ratificação do capacidades e 13.344/2016 (Lei PNETP (diminuindo o
para indicar a realidade Protocolo de Palermo mecanismos de Tráfico) grau de governança
do tráfico de pessoas no governança no pela diminuição da
Brasil. - Criação Secretaria de enfrentamento ao tráfico - Aprovação Lei 13.345- participação de atores
Políticas para Mulheres de pessoas. CONATRAP 2016 (Lei Migrações)
313

(Centros de Referência em número e


da Mulher) - Continuação da -Redução orçamentária diversidade)
expansão de NETP e para o enfrentamento ao
- Criação do SUAS Postos tráfico de pessoas - Altera a composição
do CONATRAP,
- Disque 100 - Verifica-se uma diminuindo a
diminuição no número de representação de atores
- Disque 180 PAAHM localizados não governamentais.
principalmente no Estado
-Aprovação Política do Amazonas. Institui a Portaria n.
Nacional de ETP 87/2020, sobre
autorização de
- Aprovação do I PNETP residência a pessoas
vítimas de tráfico,
trabalho escravo ou
- Criação da Rede violação de direito
Nacional de agravada por sua
Enfrentamento ao condição migratória.
Tráfico de Pessoas
(NETP/PAAHM/Comitê
s)

Fonte: Elaboração própria.


314

É inegável que o Brasil vem construindo uma política pública de enfrentamento ao


tráfico de pessoas e que diversos avanços foram conquistados, apesar de ainda existirem
inúmeros desafios707.
O enfoque de enfrentamento dado pelo Brasil leva em conta as agendas de securitização
das fronteiras e criminalização dos migrantes. Apesar disso, a promulgação da Lei 13.344 /
2016, resultado de muita pressão das organizações da sociedade civil, indica um salto
qualitativo no enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil. Além de inserir outras
modalidades de exploração, aproximando-se mais ao Protocolo de Palermo, inclui uma seção
específica indicando em que compreende a proteção e assistência das vítimas, além de indicar
como deve ser desenvolvida a prevenção da criminalidade, antes somente contemplado na
Política Nacional (2006) e pelos PNETP (2008 e 2013). A inclusão das medidas protetivas e
assistenciais garantem maior força legal, permitindo a cobrança e a construção de modelos de
assistência mais voltados aos direitos humanos das vítimas.
Por outro lado, pode-se afirmar que, desde 2016, há uma estagnação político-
institucional derivada do contexto de instabilidade causado pela retirada da presidente Dilma
Rousseff (2016) e a formação de um novo governo Temer (2016-2018) que não manteve a
temática como prioridade na agenda política nacional e de certamente dar, certamente, mais
ênfase na securitização das fronteiras708.
Ademais, desde 2016 verifica-se o governo central, seja o de Temer (2016-2018) ou de
Bolsonaro (2019-), conduzindo a um retrocesso acentuado nos direitos humanos,
principalmente devido à falta de continuidade das medidas previstas para o enfrentamento ao
tráfico de pessoas, à falta de dotação orçamentária geral para as políticas assistenciais e da saúde
(principalmente pela A PEC 55/2016), e, especificamente, da pasta da Coordenação-Geral de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes (CGETP). Essa indiferença
certamente colocou em risco todos os avanços anteriormente apresentados e constitui uma
ameaça à eficácia jurídica Lei Antitráfico.
Os governos, principalmente a partir de Luís Inácio Lula da Silva e da ratificação de
Palermo e outras normativas internacionais ligadas à temática do crime transnacional,

707
PISCITELLI, Adriana; LOWENKROWN, L. Categorias em movimento: a gestão de vítimas do tráfico de
pessoas na Espanha e no Brasil. Ciência e Cultura, v.67, n. 2, p. 33-38, 2015. Disponível em: http://
cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252015000200012. Acesso em: 15 set.
2020.
708
FELDMAN-BIANCO, Bela. O Brasil frente ao regime global de controle das migrações: direitos humanos,
securitização e violências. Travessia - Revista do Migrante, Ano XXXI, n. 83, p. 22, maio-ago. 2018 apud
PISCITELLI, A. Criminalização das migrações, tráfico de pessoas e violência. Apresentado no painel
Migrações, Deslocamentos e Violência. Coord. Bela Feldman-Bianco. IV EMBRA (Encontro de Antropologia
México e Brasil), Campinas, Unicamp, out. 2017.
315

alinharam as políticas internas com as políticas globais de combate ao tráfico de drogas, crime
organizado e ao terrorismo internacional e, assim, ao regime global de controle das
migrações709.
No governo Dilma, percebem-se dicotomias de atuação. De um lado, iniciativas
importantes na formulação do Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos
Migrantes no Brasil, que tinham como referência as políticas migratórias da Argentina e do
Uruguai (consideradas exemplares) e que acabam cedendo, em alguns aspectos para as políticas
de securitização, principalmente após o IMPEACHMENT. Por outro lado, e ao mesmo tempo,
o governo parecia seguir as orientações das OIs como OIM, UNODC e ICMPD no que se refere
à proteção das pessoas e proteção às fronteiras. Verifica-se, por exemplo, na ENAFRON
(Estratégia Nacional de Fronteiras), que intercruzava políticas de segurança nas fronteiras710.
O governo Temer além de dar continuidade às políticas de securitização, ainda
federalizou e militarizou a escala local (Rio de Janeiro) no que se refere à “guerra às drogas” e
estadual (Roraima), no que se refere à imigração venezuelana e à proteção de fronteiras. A
aprovação da Lei de Migrações e de Tráfico de Pessoas foi consequência do já andamento
desses projetos no governo Dilma. Ainda se afastou dos movimentos sociais e restringiu sua
participação indicando uma certa ausência de diálogo e da compreensão sobre a importância da
participação desses atores na construção das políticas públicas como a migratória e do tráfico
711
de pessoas. A redução de orçamento específico para o enfrentamento ao tráfico de pessoas
também indica a não priorização da agenda, especialmente no que se refere à Coordenação
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, no Ministério da Justiça, que tem uma
vinculação direta com a Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e o potencial
acompanhamento direto das vítimas de tráfico de pessoas. A redução do número de PAAHM
pode ser consequência dessa não priorização da temática na agenda pública e na redução de
orçamentos.
O governo Bolsonaro, mesmo sem apresentar um programa governamental, continua na
mesma linha de securitização das fronteiras e militarização das mesmas e redução de direitos,
com caracterização cada vez mais xenofóbica e preconceituosa em relação ao estrangeiro. É
evidente a ausência de diálogo com os movimentos sociais e organizações da sociedade civil,
onde houve a revogação de diversos espaços paritários de participação social (Conselhos,

709
FELDMAN-BIANCO, Bela. O Brasil frente ao regime global de controle das migrações: direitos humanos,
securitização e violências. Travessia - Revista do Migrante, Ano XXXI, n. 83, maio-ago. 2018.
710
Id.
711
Id.
316

Comissões, Comitês) ou, diminuição de atores que compõe esses espaços. No âmbito do tráfico
de pessoas, a alteração da composição do CONATRAP, foi radicalmente reduzida,
principalmente na representação de atores não governamentais.
Em 2018, a ONU propôs a assinatura de um acordo mundial sobre as Migrações, o Pacto
Global para Migração Segura, Ordenada e Regular. O Pacto Global não é vinculativo e
fundamenta-se em valores de soberania do Estado, compartilhamento de responsabilidade e
não-discriminação de direitos humanos. Pretende melhor gerenciar a migração internacional,
enfrentar seus desafios e fortalecer os direitos dos migrantes, contribuindo para o
desenvolvimento sustentável. Reconhece que é necessária uma abordagem cooperativa para
otimizar os benefícios gerais da migração, além de mitigar seus riscos e desafios para indivíduos
e comunidades nos países de origem, de trânsito e de destino712. O Brasil havia sinalizado a sua
entrada ao Pacto Global em 2018. O governo Bolsonaro decidiu retirar o Brasil deste Pacto
significando a supressão dos direitos humanos da política migratória a favor da agenda da
securitização e criminalização dos migrantes, incluindo os refugiados e, consequentemente, o
crescente controle e vigilância sobre quem pode atravessar as fronteiras nacionais e permanecer
no Brasil713.
Considera-se fundamental que os atores sociais participem e ocupem os espaços
institucionais da governança da política do tráfico de pessoas. Devem reforçar a vigilância e o
acompanhamento das políticas públicas relacionadas às migrações, tráfico de pessoas e refúgio,
para evitar e denunciar situações de securitização dos deslocamentos das pessoas.
Cada vez mais os atores locais devem se apropriar do seu poder local e da sua capacidade
de construção de políticas locais, a partir das realidades vivenciadas, assumindo a
potencialidade de seu conhecimento, da capacidade de articulação e de construtor de práticas
mais eficazes e garantidoras principalmente para as vítimas de tráfico de pessoas. Entende-se
que essa é uma das principais ações para se aprimorar, garantir efetivamente o atendimento
humanizado das vítimas.

712
ONU. Pacto global para migração segura, ordenada e regular. Disponível em: https://news.un.org/pt/
story/2018/12/1650601. Acesso em: 15 out. 2020.
713
FELDMAN-BIANCO, Bella. Democracia y derechos humanos amenazados: políticas migratorias nacionales
y política globales en Brasil, de Lula a Bolsonaro (2002-2019). Desde la Región, n. 57, 2019. Disponível em:
https://www.academia.edu/41523451/Democracia_y_Derechos_Humanos_amenazados_Politicas_
migratorias_nacionales_y_politicas_globales_en_Brasil_de_Lula_a_Bolsonaro_2002_2019_. Acesso em: 15
out. 2020.
317

O fortalecimento da Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, seja na


ampliação da rede, seja na capacitação da rede existente, juntamente às Políticas públicas da
saúde e assistência são fundamentais para que se consiga avançar na construção de uma política
pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas que pense, organize e efetive atenção garantista.
318

CAPÍTULO 5 - A ESPANHA E O REGIME COMPLEXO DO TRÁFICO DE


MULHERES
Sonhar o sonho impossível,
Sofrer a angústia implacável,
Pisar onde os bravos não ousam, (...)
Alcançar a estrela inatingível:
Essa é a minha busca.
Dom Quixote

Este capítulo tem a finalidade de identificar como o regime complexo de Enfrentamento


ao tráfico de pessoas vem sendo construído na Espanha e como se encontra nesse momento.
Assim como no caso do Brasil, trata-se de um olhar sobre um processo em construção. A
Espanha que sempre se caracterizou por ser um país de trânsito e destino, vêm apresentando
indícios de também ser país de origem, o que modifica sensivelmente seu olhar sobre o
fenômeno do tráfico e sua forma de enfrentamento.
A internalização das várias convenções e acordos internacionais, globais e regionais
conduziu à modificação do quadro normativo e das políticas públicas de enfrentamento ao
tráfico de pessoas na Espanha. Houve a ratificação da Convenção contra o Crime Organizado
Transnacional e especialmente do Protocolo de Palermo em 2002. Ademais, o contexto europeu
no qual a Espanha está inserida exige a ratificação das normativas já abordadas no capitulo 3,
especialmente do Conselho da Europa e União Europeia714.

5.1 A Internalização do enfrentamento ao tráfico de pessoas

Se por um lado o Protocolo de Palermo (e a Convenção contra o Crime Organizado


Transnacional, na qual o Protocolo se insere) aborda a questão do tráfico, especialmente na
perspectiva da luta contra o crime organizado transnacional, os outros instrumentos regionais
europeus (Convenção de Varsóvia, Diretiva Europeia/2011) introduzem uma série de medidas
e obrigações legais sob uma ótica do respeito e garantia dos direitos das vítimas, principalmente

714
No âmbito do Conselho da Europa: 1. Convenio del Consejo de Europa (2005) para la acción contra la trata de
seres humanos. (2009) (Convenio de Varsovia) Grupo GRETA/Grupo de Peritos del Consejo de Europa em
accion contra TSH; 2. Convenio del Consejo de Europa para la Protección de los Niños Contra la Explotación
y el Abuso Sexual de octubre de 2007, ratificado 2009. (Convención de Lanzarote); 3. Convención sobre
Prevención y Combate a la Violencia contra la Mujer y la Violencia Domestica. União Europeia: 1. Estrategia
de la UE para la erradicación de la trata de seres humanos; 2. Directiva 2011/36/UE del Parlamento Europeo y
del Consejo (2011) relativa a la prevención y lucha contra la trata de seres humanos y a la protección de las
víctimas; 3. Directiva 2004/81/CE del Consejo, relativa a la expedición de un permiso de residencia a
nacionales de terceros países que sean víctimas de la trata de seres humanos o hayan sido objeto de una acción
de ayuda a la inmigración ilegal que cooperen con las autoridades competentes.
319

no âmbito da assistência e proteção das vítimas de tráfico. Em outras palavras, partiu-se, no


âmbito global, de uma perspectiva basicamente fundada na investigação e repressão do crime,
e procurou-se introduzir um quadro de garantias e direitos para as vítimas, com uma abordagem
centrada nas suas necessidades individuais de assistência e proteção, com base no respeito pelos
seus direitos humanos e na interseccionalidade de gênero. Também cabe reforçar a importância
das recomendações da Relatoria Especial em tema de tráfico de pessoas no âmbito do Conselho
de Direitos Humanos das Nações Unidas para a incorporação de medidas na perspectiva dos
direitos das vítimas.
A Espanha é considerada principalmente um país de trânsito e destino do tráfico,
especialmente de mulheres e meninas715 para fins de exploração sexual. No entanto, não se
conhece a real extensão do fenômeno. Embora o Centro de Inteligencia contra el Terrorismo y
el Crimen Organizado, dependiente de la Secretaría de Estado de Seguridad del Ministerio del
Interior (CITCO) produze dados oficiais716 sobre o número de vítimas discriminadas por sexo
e nacionalidade, há duas questões importantes a serem entendidas: 1. a invisibilidade do tráfico
de pessoas ainda é bastante grande, principalmente nas vítimas com irregularidade documental,
ou seja principalmente as estrangeiras717; 2.a identificação formal das vítimas detectadas
continua a ser um desafio, uma vez que, muitas vezes, a responsabilidade pelo processo recai
sobre a própria vítima, sabendo que se lhe garante o “permiso de residencia”718, principalmente
quando ela aceita colaborar com a polícia719.
Pelos dados do Relatório do CITCO, de 2014 a 2018, foram identificadas 25 mulheres
brasileiras vítimas de tráfico para fins de exploração sexual e não aparecem casos de pessoas
vítimas de tráfico brasileiras para outras modalidades. Obviamente não se deseja que o número
de mulheres brasileiras seja elevado, mas esse número parece ser bastante aquém da realidade

715
O objeto da tese abordará o contexto das mulheres acima de 18 anos. Porém é importante que se mencione que
a proteção das vítimas de tráfico menores de idade tem outros dispositivos legais e procedimentais.
716
CITCO. Centro de Inteligencia contra el Terrorismo y el Crimen Organizado, dependiente de la Secretaría de
Estado de Seguridad del Ministerio del Interior. Trata de seres humanos en España. Balance estadístico
2014-18. Disponível em:
http://www.interior.gob.es/documents/10180/8736571/Balance+Ministerio+FINAL+ 2014-18.pdf/2051e1f9-
5248-49e0-ab48-ae9dee5e53bc. Acesso em: 15 set. 2020.
717
O Acordo de Schengen, convenção entre países europeus sobre uma política de abertura das fronteiras e livre
circulação de pessoas entre os países signatários. Estabelece duas categorias de imigrantes: os “comunitários”
(pessoas que pertencem a países do espaço Schengen e, os “estrangeiros” (todos os imigrantes que não sejam
originários de um país signatário).
718
“Permiso de residencia” é a autorização para permanecer residente na Espanha. Essa autorização pode ser
conseguida em algumas condições, mas esta fica condicionada à colaboração da vítima com as autoridades
policiais e judiciais até o final do processo. Se, por exemplo, o juiz entender que a vítima não colaborou de
forma suficiente, pode-se retirar a autorização de residência. Se, por qualquer outro motivo, não houver a
condenação do traficante, a autorização também pode ficar prejudicada.
719
Mais adiante, abordar-se-ão as condições em que se garante o direito de residência para as vítimas de tráfico na
Espanha.
320

das organizações especializadas que atendem na Espanha. Pode-se argumentar, levando em


conta o diálogo feito com as OSCs especializadas e entrevistadas, que o número de pessoas
vítimas, e especialmente mulheres que se encerem dentro do perfil de vítimas de tráfico de
pessoas atendidas pelas organizações especializadas na Espanha, ultrapassam o número de
vítimas identificadas pelo CITCO, justamente porque as organizações atendem as mulheres em
contextos de violência, prostituição e exploração sexual, independentemente de
condicionalidades impostas pela normativa espanhola para a caracterização formal de uma
vítima. Ademais, muitas vezes o contexto da violência decorrente do tráfico de pessoas nem
sempre é inicialmente detectada, exigindo uma escuta humanizada e qualificada, o que exige
tempo, atenção e preparo por parte das OSCs de atenção.
Mesmo que não seja objeto desta pesquisa, é importante destacar que a Espanha vem
subestimando as outras finalidades do tráfico, como a exploração do trabalho, a mendicância, a
servidão doméstica, casamentos forçados, entre outros. Da mesma forma, não leva em conta
como as vítimas de tráfico, sejam homens, mulheres, meninos, meninas e transexuais vivenciam
o tráfico, as consequências e suas vulnerabilidades, nem permite identificar medidas de
proteção e assistência adequadas às necessidades individuais720.
O Grupo de Peritos do Conselho da Europa (GRETA), encarregado de acompanhar e
avaliar a aplicação da Convenção de Varsóvia nos diversos Estados, alerta no seu relatório sobre
a Espanha721 para as consequências de se concentrar no combate ao tráfico de seres humanos
exclusivamente para fins de exploração sexual de mulheres e meninas. Assim, o GRETA insta
as autoridades espanholas a adotarem medidas que garantam que o combate ao tráfico e as ações
desenvolvidas sejam globais, visando todas as vítimas deste crime para todas as formas de
exploração no quadro legislativo e político, inclusive por meio de um plano de ação nacional
abrangente contra o tráfico de pessoas.
Destaca-se, no que se refere à classificação do crime de tráfico de pessoas, a Lei
Orgânica 5/2010, de 22 de junho, incorpora no artigo 177 bis do Código Penal uma definição
do crime de tráfico de pessoas que supera a anterior confusão entre este crime e o de
contrabando de pessoas722.

720
ACCEM. La otra cara de la trata: informe diagnóstico sobre otras formas de trata que afectan a las mujeres.
2019. Disponível em: https://www.accem.es/publicacion-la-otra-cara-de-la-trata/. Acesso em: 15 fev. 2020.
721
CONSELHO DA EUROPA. Report concerning the implementation of the Council of Europe Convention on
Action against Trafficking in Human Beings by Spain - II Rodada de Avaliações. 2018. p. 21.
722
Antes da alteração legal de 2010, havia uma confusão entre o crime do tráfico de pessoas e o contrabando de
migrantes. O artigo 318 bis, do CP espanhol, regulava o contrabando de imigrantes. “(1) Aquele que, direta ou
indiretamente, promova, favoreça ou facilite o tráfico ilegal ou a imigração clandestina de pessoas desde o
trânsito ou com destino à Espanha, será castigado com a pena de 4 a 8 anos de prisão. (2) Se o propósito do
tráfico ilegal ou a imigração clandestina seja a exploração sexual de pessoas, serão castigados com pena de 5
321

Artigo 177 bis.


1. Quem se encontrar em território espanhol, seja de Espanha, em
trânsito ou a ele destinado, com uso de violência, intimidação ou
engano, ou abusando é punido com pena de cinco a oito anos de prisão.
de uma situação de superioridade ou necessidade ou vulnerabilidade da
vítima nacional ou estrangeira, ou através da entrega ou recebimento de
pagamentos ou benefícios para obter o consentimento da pessoa que
tem o controle sobre a vítima, irá capturar, transportar, transferir, acolhe
ou recebe, incluindo a troca ou transferência de controle sobre essas
pessoas, para qualquer um dos seguintes fins:
a) A imposição de trabalhos ou serviços forçados, escravatura ou
práticas análogas à escravatura, servidão ou mendicância.
b) Exploração sexual, incluindo pornografia.
c) Exploração para a realização de atividades criminosas.
d) A extração de seus órgãos corporais.
e) A celebração de casamentos forçados.
Existe uma situação de necessidade ou vulnerabilidade quando a pessoa
em questão não tem alternativa, real ou aceitável, senão submeter-se ao
abuso. [...]723 (tradução nossa).

a 10 anos de prisão.[...]” A grande falha daquela normativa encontrava-se no ponto (2).gerando confusão entre
o conceito do contrabando de migrantes e o conceito do tráfico de pessoas com fins de exploração sexual.
723
Artículo 177 bis.
1. Será castigado con la pena de cinco a ocho años de prisión como reo de TRATA DE SERES HUMANOS el
que, sea en territorio español, sea desde España, en tránsito o con destino a ella, empleando violencia,
intimidación o engaño, o abusando de una situación de superioridad o de necesidad o de vulnerabilidad de la
víctima nacional o extranjera, o mediante la entrega o recepción de pagos o beneficios para lograr el
consentimiento de la persona que poseyera el control sobre la víctima, la captare, transportare, trasladare,
acogiere, o recibiere, incluido el intercambio o transferencia de control sobre esas personas, con cualquiera de
las finalidades siguientes:
a) La imposición de trabajo o de servicios forzados, la esclavitud o prácticas similares a la esclavitud, a la
servidumbre o a la mendicidad.
b) La explotación sexual, incluyendo la pornografía.
c) La explotación para realizar actividades delictivas.
d) La extracción de sus órganos corporales.
e) La celebración de matrimonios forzados.
Existe una situación de necesidad o vulnerabilidad cuando la persona en cuestión no tiene otra alternativa, real o
aceptable, que someterse al abuso.
2. Aun cuando no se recurra a ninguno de los medios enunciados en el apartado anterior, se considerará TRATA
DE SERES HUMANOS cualquiera de las acciones indicadas en el apartado anterior cuando se llevare a cabo
respecto de menores de edad con fines de explotación.
3. El consentimiento de una víctima de TRATA DE SERES HUMANOS será irrelevante cuando se haya recurrido
a alguno de los medios indicados en el apartado primero de este artículo.
4. Se impondrá la pena superior en grado a la prevista en el apartado primero de este artículo cuando:
a) se hubiera puesto en peligro la vida o la integridad física o psíquica de las personas objeto del delito;
b) la víctima sea especialmente vulnerable por razón de enfermedad, estado gestacional, discapacidad o situación
personal, o sea menor de edad.
Si concurriere más de una circunstancia se impondrá la pena en su mitad superior.
5. Se impondrá la pena superior en grado a la prevista en el apartado 1 de este artículo e inhabilitación absoluta de
seis a doce años a los que realicen los hechos prevaliéndose de su condición de autoridad, agente de ésta o
funcionario público. Si concurriere además alguna de las circunstancias previstas en el apartado 4 de este
artículo se impondrán las penas en su mitad superior.
6. Se impondrá la pena superior en grado a la prevista en el apartado 1 de este artículo e inhabilitación especial
para profesión, oficio, industria o comercio por el tiempo de la condena, cuando el culpable perteneciera a una
organización o asociación de más de dos personas, incluso de carácter transitorio, que se dedicase a la
realización de tales actividades. Si concurriere alguna de las circunstancias previstas en el apartado 4 de este
322

Para além de uma definição do crime de tráfico nas suas várias formas, o Código Penal
de 2010 incluiu modalidades agravadas derivadas da concomitância de uma situação de grave
perigo para a vítima, com fins lucrativos, presença de vítimas menores ou especialmente
vulneráveis, adesão dos autores a organizações ou associações criminosas, ou quando são
autoridades ou agentes da autoridade ou funcionários públicos. Também se estabelece o
princípio de não julgamento das vítimas de tráfico pelos crimes que possam ter cometido na
situação de exploração sofrida. Ademais, incorpora o aspecto fundamental da irrelevância do
consentimento dado pela vítima para a caracterização do crime de tráfico de pessoas.
A legislação interna determina ainda, em relação à ação penal contra o crime de tráfico
de pessoas, por meio da Lei Orgânica 1/2015, de 30 de março, para reforçar a proteção
específica atualmente prevista pelo Código Penal às vítimas de tráfico de pessoas: 1. a
regulamentação do confisco dos efeitos, bens, instrumentos e produtos de atividades
criminosas; 2. a revisão do artigo 57 do Código Penal, permite impor, em caso de prática do
crime de tráfico de seres humanos, as proibições do artigo 48 (privação de direitos: a privação
do direito de residir em determinados locais, a proibição de aproximação a vítima e a proibição
de comunicar com a vítima); 3. a incorporação do tráfico de seres humanos entre os crimes
constantes do parágrafo segundo do artigo 132.1 do Código Penal, quanto ao início do cálculo
do prazo para prescrição de crimes quando a vítima for menor, de forma que o referido cálculo
começa quando a maioridade é atingida; 4. incorpora o gênero como motivo de discriminação
na circunstância agravante da prática do crime.

artículo se impondrán las penas en la mitad superior. Si concurriere la circunstancia prevista en el apartado 5
de este artículo se impondrán las penas señaladas en este en su mitad superior.
Cuando se trate de los jefes, administradores o encargados de dichas organizaciones o asociaciones, se les aplicará
la pena en su mitad superior, que podrá elevarse a la inmediatamente superior en grado. En todo caso se elevará
la pena a la inmediatamente superior en grado si concurriera alguna de las circunstancias previstas en el
apartado 4 o la circunstancia prevista en el apartado 5 de este artículo.
7. Cuando de acuerdo con lo establecido en el artículo 31 bis una persona jurídica sea responsable de los delitos
comprendidos en este artículo, se le impondrá la pena de multa del triple al quíntuple del beneficio obtenido.
Atendidas las reglas establecidas en el artículo 66 bis, los jueces y tribunales podrán asimismo imponer las
penas recogidas en las letras b) a g) del apartado 7 del artículo 33.
8. La provocación, la conspiración y la proposición para cometer el delito de TRATA DE SERES HUMANOS
serán castigadas con la pena inferior en uno o dos grados a la del delito correspondiente.
9. En todo caso, las penas previstas en este artículo se impondrán sin perjuicio de las que correspondan, en su caso,
por el delito del artículo 318 bis de este Código y demás delitos efectivamente cometidos, incluidos los
constitutivos de la correspondiente explotación.
10. Las condenas de jueces o tribunales extranjeros por delitos de la misma naturaleza que los previstos en este
artículo producirán los efectos de reincidencia, salvo que el antecedente penal haya sido cancelado o pueda
serlo con arreglo al Derecho español.
11. Sin perjuicio de la aplicación de las reglas generales de este Código, la víctima de TRATA DE SERES
HUMANOS quedará exenta de pena por las infracciones penales que haya cometido en la situación de
explotación sufrida, siempre que su participación en ellas haya sido consecuencia directa de la situación de
violencia, intimidación, engaño o abuso a que haya sido sometida y que exista una adecuada proporcionalidad
entre dicha situación y el hecho criminal realizado.
323

5.1.1 Sistema de proteção às vítimas de tráfico, principalmente às mulheres estrangeiras

O sistema jurídico espanhol para proteção, principalmente quando se fala de pessoas


estrangeiras724, especialmente mulheres, é extraordinariamente complexo e disperso. Desloca-
se entre direito penal, direito processual, proteção internacional, regulamentações
administrativas e lei de estrangeiros. Essa dispersão gera insegurança jurídica e de compreensão
por parte dos atores públicos e da sociedade civil responsáveis pela assistência, proteção e
orientação jurídica às vítimas. Além da insegurança e dificuldade de compreensão sobre todas
as variáveis por parte das próprias vítimas.
Nesse sentido, a legislação espanhola incorporou modificações à proteção dada às
vítimas (Lei Orgânica 4/2000, de 11 de Janeiro, artigo 59 bis), garantindo o acesso das vítimas
a uma assistência integral, independentemente da sua situação administrativa, regulamentando
a concessão de um período de recuperação e reflexão725, que permite às vítimas estrangeiras em
situação irregular afastarem-se da influência dos traficantes, iniciar o período e processo de
recuperação e tomar uma decisão sobre a cooperação com as autoridades competentes para a
investigação do crime, período exigido pela Convenção de Varsóvia (Conselho da Europa). A
partir do momento em que se inicia o processo de identificação (detecção) de uma possível
vítima de tráfico726, esta fica protegida da aplicação de medidas sancionatórias (principalmente
deportação ao seu país de origem) decorrentes da sua situação irregular no país e é autorizada,
em caso de aceitação do prazo de restauração e reflexão, permanência temporária no país, o que
permite a garantia de acesso a medidas integrais de assistência, segurança e proteção. Ainda

724
Importante destacar que na Espanha quando se fala de proteção às vítimas está se falando do reconhecimento
formal e da proteção jurídica e assistencial, garantindo-se o direito a residência e trabalho, além de outros
direitos formalmente garantidos.
725
Houve uma prorrogação da duração mínima do período de recuperação e reflexão, que vai de 30 a 90 dias,
durante o qual a vítima pode decidir se coopera com as autoridades na investigação do crime.
726
Na Espanha ele chamam a pessoa que é encontrada e pode ser uma vítima de tráfico de “presunta víctima de
trata”. Ainda não se definiu o conceito de “presunta víctima” nem mesmo dos “indícios razoáveis” para
determinar se pode-se conceder os benefícios de uma vítima identificada formalmente pelas autoridades. Essa
incerteza pode levar a enormes disparidades na atuação da Administração e as vítimas ficam expostas a
arbitrariedades. É comum que as autoridades exijam “certezas” ou “evidências” para poder identificar as
vítimas formalmente. Por outro lado, ainda, se a declaração da vítima não evidencia essa “certeza” desejada
pelas autoridades, em muitas ocasiões ela pode não ser reconhecida como vítima, insinuando suspeitas de
fraude à imigração. Em muitos casos, se verifica a dependência da identificação formal do conteúdo que a
vítima possa ou queria contribuir de dados e informações precisas, detalhadas e objetivas dos criminosos. Ver
em: RED ESPAÑOLA CONTRA LA TRATA DE PERSONAS. Informe de la Red Española contra la
Trata de Personas para la coordinadora europea de lucha contra la trata: visita oficial a España (26 y 27
de febrero 2015). 2015. p. 14. Disponível em: https://www.proyectoesperanza.org/wp-content/uploads/
2019/06/2015_INFORME-RECTP-para-COORDINADORA-EU-CONTRA-LA-TRATA.pdf. Acesso em: 15
fev. 2020.
324

prevê, (artigo 143.1) a possibilidade de o Delegado ou Subdelegado do Governo competente


determinar ex officio a isenção de responsabilidade da vítima em atendimento à sua situação
pessoal, o que permite apresentar um pedido de autorização de residência e de trabalho em
circunstâncias excepcionais, independente da colaboração da vítima com as autoridades
policiais e judiciais727. Deste Regulamento da Lei Orgânica 4/2000 (art.140), garantiu-se e
promoveu-se a adoção de um Protocolo-Quadro para a Proteção de Vítimas de Tráfico de
Pessoas (2011)728, que estabelece as bases de coordenação e atuação das instituições e
administrações com competências na matéria, bem como o alcance e a forma de participação
de organizações com experiência credenciada no acolhimento e / ou proteção de vítimas de
tráfico de pessoas, que desenvolvam programas financiados pelas Administrações Públicas para
a sua assistência e proteção. Seu âmbito de aplicação estende-se a todas as vítimas do crime de
tráfico de pessoas, sem qualquer discriminação em razão do sexo, nacionalidade ou situação
administrativa no caso de supostas vítimas estrangeiras.
Corrobora-se que esse Protocolo-Quadro se aplica a todo território espanhol,
independente da aprovação de protocolos autonômicos para garantir o seu desenvolvimento nos
aspectos relacionados com as competências das Comunidades Autónomas, em particular no que
se refere às disposições estabelecido pelo Protocolo-Quadro relativo à assistência e proteção às
vítimas, à comunicação e cooperação interinstitucional no território e à participação de
organizações especializadas, bem como à aplicação das disposições relativas às vítimas
menores de idade729.

727
As autorizações de residência e de trabalho pela colaboração com as autoridades ou por circunstâncias
excepcionais ainda gera práticas dispares, gerando incertezas. Algumas vezes se considera ser suficiente a
denúncia da vítima com informação objetiva satisfatória para iniciar uma investigação policial e judicial e, sua
disponibilidade para continuar colaborando na medida que for necessário; em outro casos, se exige que a
investigação policial ou judicial tenha obtido resultados positivos concretos (prisão dos presuntos autores,
apertura de processos, condenação) Ver em: RED ESPAÑOLA CONTRA LA TRATA DE PERSONAS.
Informe de la Red Española contra la Trata de Personas para la coordinadora europea de lucha contra
la trata: visita oficial a España (26 y 27 de febrero 2015). 2015. p. 21.Disponível em: https://www.
proyectoesperanza.org/wp-content/uploads/2019/06/2015_INFORME-RECTP-para-COORDINADORA-
EU-CONTRA-LA-TRATA.pdf. Acesso em: 15 fev. 2020.
728
Assinado pelos Ministérios da Saúde, Serviço Social e Igualdade, Interior, Justiça, Emprego e Assistência
Social em colaboração com a Procuradoria-Geral da República e o Conselho Geral do Poder Judiciário. Como
complemento ao Protocolo-Quadro e para garantir o desenvolvimento dos aspectos relacionados com a
atribuição de poderes dos governos autonômicos, espera-se a aprovação de protocolos autônomos. No entanto,
nem todas as comunidades os desenvolveram e a aplicação do protocolo-quadro em si é territorialmente muito
desigual. Ver em: MINISTERIO DE IGUALDAD. Protocolo-Quadro para a Proteção de Vítimas de
Tráfico de Pessoas 2011. Disponível em: https://violenciagenero.igualdad.gob.
es/otrasFormas/trata/normativaProtocolo/marco/docs/protocoloTrata.pdf. Acesso em: 15 fev. 2020.
729
Nem todas as comunidades desenvolveram seus Protocolos-Marco e a aplicação do protocolo-quadro em si é
territorialmente muito desigual. (Galicia, Catalunha, Navarra, Extremadura e Madrid). Ver em: MINISTERIO
DE IGUALDAD. Protocolos de Coordenação Interinstitucional. Disponível em:
https://violenciagenero.igualdad.gob.es/otrasFormas/trata/normativaProtocolo/marco/home.htm. Acesso em:
20 set. 2020. As OSC entrevistadas para esta pesquisa afirmaram a existência de interlocutores sociais, tanto
325

Importante indicar essa diferença entre as vítimas comunitárias e estrangeiras uma vez
que, as vítimas comunitárias se encontram em condição administrativa regular, tendo direito a
residência e trabalho, não se aplicando a pena de deportação por não estarem em condição de
irregularidade administrativa (para estas, não se aplica a Lei de Estrangeiros). Diferentemente,
as mulheres estrangeiras, como, por exemplo, as brasileiras, estando irregulares, podem sofrer
a penalidade de serem deportadas para seu país de origem, caso não sejam formalmente
identificadas como vítimas de tráfico. Nestes casos, entende-se que a mulher não é vítima de
tráfico e sim uma imigrante irregular. Para que possam ter acesso à proteção e assistência como
vítimas de tráfico, tanto as mulheres comunitárias como as estrangeiras, devem ser identificadas
formalmente como vítimas de tráfico pelas autoridades policiais e lhe seja concedido o período
de reflexão, seja pelas autoridades policiais, seja pelo Delegado ou Subdelegado do Governo,
no caso de situação pessoal da vítima.
Percebe-se que no procedimento de identificação formal das vítimas ainda falta um
enfoque baseado na proteção dos direitos das vítimas. Percebe-se a adoção de um enfoque de
persecução e criminalização da imigração irregular e de persecução do delito. Interessante notar
que, na Convenção de Varsóvia, único instrumento que traz uma definição de vítima de tráfico,
não apresenta nenhuma condicionalidade das impostas pela legislação espanhola para a
caracterização da vítima. “Vítima é toda pessoa física que seja objeto de tráfico de pessoas,
segundo a definição desse mesmo artigo.”730.
Há que se reforçar ainda, que quando se fala em identificação formal da vítima não se
leva em conta que a identificação de uma vítima deve ser entendida dentro de uma dimensão
de processo em construção. Muitas vezes a própria vítima não se percebe como vítima, mesmo
que ela apresente todos os indícios objetivos de vítima, seja na captação, no meio ou na
finalidade exploratória. Não compreender a identificação como um processo, implica no

na Policia Nacional e Guardia Civil, (polícias com competências diversas em função do território espanhol),
porém, nem sempre essa relação com as OSC funciona satisfatoriamente na prática, havendo dificuldades de
cooperação, colaboração, comunicação de uma potencial vítima a OSC especializada. Uma das organizações
entrevistadas ressaltou dois casos bastante complexos acompanhados por elas (na Galicia e nas Ilhas Canárias),
que tiveram a intimidação das vítimas para que denunciassem as redes de tráfico que as levaram à Espanha,
mesmo quando as vítimas não tinham desejo de continuar denunciando.
730
Para os fins deste Acordo: a) A expressão "tráfico de seres humanos" designa o recrutamento, transporte,
transferência, acomodação ou recepção de pessoas através ameaças de recurso à força, recurso à força ou
qualquer outra forma de obrigação, por meio de sequestro, fraude, engano, abuso de autoridade ou de um
situação de vulnerabilidade ou oferecendo ou aceitando pagamentos ou vantagens de obter o consentimento de
uma pessoa que tem autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, pelo menos, a
exploração da prostituição alheia ou outras formas exploração sexual, trabalho ou serviços forçados, escravidão
ou práticas semelhantes à escravidão, servidão ou extração de órgãos [...].
e) o termo "vítima" designa qualquer pessoa física submetida à tráfico de seres humanos conforme definido neste
artigo. (artigo 4, Convenio de Varsovia).
326

desrespeito para com um processo de restabelecimento da própria identidade e dos direitos da


mulher.
No gráfico 6, procura-se apontar as possibilidades legais na Espanha para garantir
proteção de uma vítima de tráfico de pessoas estrangeira.

Gráfico 6. Procedimento derivação de potencial vítima de tráfico estrangeira não comunitária


em situação documentação irregular

Fonte: Elaboração Própria.

Identificam-se três possibilidades de garantir proteção às vítimas de tráfico de pessoas


na Espanha. A primeira, refere-se à colaboração da vítima com as autoridades policiais e
judiciais, mesmo que seja depois de um período de reflexão e recuperação (no mínimo 90 dias,
renováveis)731. No entanto, este procedimento não parece estar protegendo adequadamente as

731
Sabe-se que ese período de 90 dias ainda é insuficiente. A falta de confiança das vítimas, a exigência de
cooperação com as autoridades policiais e judiciais e as condições em que é concedida, faz com que
dificilmente as vítimas adiram a ela ou, se o fizerem, que o prazo estabelecido permita uma vítima em estado
de estresse pós-traumático e extrema vulnerabilidade física e psicológico se recupere. Conforme o Ministério
do Interior, em 2013 foram oferecidos 736 períodos de recuperação e reflexão, dos quais 603 foram rejeitados
pelas vítimas. Ver em: YERGA, S. Víctimas de trata de seres humanos: un reto para la Abogacía Española.
2015. Consejo General de la Abogacía Española. Disponível em: https://www.abogacia.es/
actualidad/noticias/victimas-de-trata-de-seres-humanos-un-reto-para-la-abogacia-espanola/. Acesso em: 20
set. 2020.
327

potenciais mulheres vítimas de tráfico, como se pode verificar pelo baixo número de mulheres
que se beneficiam do período de recuperação e reflexão732.
Considera-se uma modalidade bastante controversa pois a garantia de status de vítima
não deveria estar condicionada a colaboração com autoridades. Se o tráfico de pessoas é uma
violação de direitos, e a proteção é uma forma de iniciar a reparação destes direitos violados,
condicionar o direito de residência à colaboração desta com as autoridades é absolutamente
contrário ao que pretende, principalmente quando há confusão de funções das autoridades que
devem investigar/identificar formalmente uma vítima: o mesmo policial que deve investigar o
crime e levá-lo a justiça no âmbito da condenação de traficantes, é aquele que cumpre a função
administrativa de identificar formalmente uma vítima de tráfico.
Na Espanha ocorre uma distorção em função dos papéis desempenhados por alguns
atores responsáveis pela identificação formal das vítimas de tráfico. O policial que deve
investigar o crime e levá-lo à justiça é o mesmo responsável pelo ato de administrativo de
identificação formal de vítima de tráfico. Ou seja, o mesmo ator é, polícia investigativa e,
simultaneamente, o órgão administrativo que deve cumprir a função de identificar formalmente
a vítima. Provavelmente, se essas duas funções fossem claramente diferenciadas quanto a quem
é competente para elas, não ocorreriam todas as disfunções que ocorrem. Observa-se ainda que
uma vítima pode ser detectada por uma entidade especializada ou por uma entidade não
especializada, mas a identificação formal como vítima deve ser feita pela polícia. Por outro
lado, esta formalidade está em desacordo com a Convenção do Conselho da Europa que
descarta o condicionamento da identificação formal da vítima à denúncia ou colaboração, nem
mesmo ao fornecimento de informação detalhada sobre os traficantes733.
Essa distorção indica uma visão utilitarista da figura do imigrante, para controlar as
fronteiras. Garante-se a proteção desde que haja denúncia. Nota-se um total descompasso entre
o que se propaga como proteção e o que efetivamente é proteção no âmbito dos direitos
humanos.
A própria Rede Española contra la Trata de Personas, considera que o enfoque
prioritário que as autoridades adotam na hora de trabalhar com as vítimas, continua sendo, em
muitos casos, o da persecução penal e das redes de imigração irregular734.

732
NUÑO, Laura. La trata de seres humanos con fines de explotación sexual: propuestas para un cambio de
paradigma en la orientación de las políticas públicas. Revista de Derecho Político, n. 98, p. 179, enero-abril
2017.
733
Aspectos apontados das entrevistas realizadas com diversos atores espanhóis: Proyecto Esperanza, Fundación
Cruz Blanca, Cáritas Espanhola, Fundación Amaranta-Gijón, Proyecto Vagalume.
734
RED ESPAÑOLA CONTRA LA TRATA DE PERSONAS. Informe de la Red Española contra la Trata de
Personas para la coordinadora europea de lucha contra la trata: visita oficial a España (26 y 27 de febrero
328

A segunda modalidade para se garantir proteção refere-se a garantir a condição de vítima


por situação pessoal, ou seja, a condição de vulnerabilidade em que se encontra a vítima exige
que ela tenha condições particulares de acolhida e assistência, garantindo-lhe a identificação
formal de vítima, mesmo sem colaborar com as autoridades policiais e judiciais. Para tanto, é
necessário que o Delegado ou Subdelegado do Governo determine a isenção de
responsabilidade da vítima (por estar em situação de irregularidade documental) em
atendimento à sua situação pessoal, garantindo-lhe direito a residência e de trabalho em
circunstâncias excepcionais, independente da sua colaboração. É importante que essa pessoa
esteja sendo assessorada por uma OSC especializada que identifique essa situação pessoal e
faça o requerimento ao delegado do governo, principalmente garantindo-lhe direito a residência
e trabalho735. Essa modalidade pode se dar ainda no momento da detecção da possível vítima
ou após o período de reflexão e recuperação.
A terceira modalidade é a da proteção internacional, por meio de pedido de asilo, onde
há um fundado temor de sofrer perseguição por motivos de gênero se houver retorno ao seu
país de origem. Nesses casos, as solicitações não se baseiam unicamente na condição de vítima
de tráfico, mas na trajetória de violência de gênero vivenciada e no risco ao que enfrentaria a
vítima no caso de retorno ao seu país de origem736. Essa modalidade existe na Espanha desde
2016, a partir da Diretiva (2013/33/UE) que estabelece um vínculo entre a proteção
internacional e o tráfico de pessoas no que se refere às condições de acolhida, e determina que
as vítimas são pessoas vulneráveis que podem ter necessidades particulares (art. 46)737.
Importante que se destaque que o Protocolo de Palermo já previa essa possibilidade,
observando que as disposições do referido protocolo não afetam os direitos e obrigações dos
estados membros, “em particular quando a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados é

2015). 2015. p. 5. Disponível em: https://www.proyectoesperanza.org/wp-content/uploads/2019/


06/2015_INFORME-RECTP-para-COORDINADORA-EU-CONTRA-LA-TRATA.pdf. Acesso em: 15 fev.
2020.
735
As entrevistas feitas às OSCs indicaram que muitas vezes é concedido o direito de residência, sem direito ao
trabalho, o que é percebido como uma violação de direitos, uma vez que impede o restabelecimento, a retomada
da vida desta vítima.
736
Havendo esse risco de retorno, poderia estar em vulnerabilidade o princípio de non refoulement, pedra angular
do direito internacional dos refugiados.
737
SANTOS, Begoña. Las víctimas de trata en España: el sistema de acogida de protección internacional.
Anuario CIDOB de la Inmigración, 2019, p. 144. Disponível em:
https://www.cidob.org/es/articulos/anuario_cidob_de_la_inmigracion/2019/las_victimas_de_trata_en_espana
_el_sistema_de_acogida_de_proteccion_internacional. Acesso em: 20 set. 2020. Ver em: CEAR-Euskadi:
retos en el avance hacia una efectiva protección de las mujeres y niñas en situación de trata en Euskadi desde
un enfoque de protección internacional. #Refugiadas. Eds.: Ane Garay y Ana Ferri. 2019.
329

aplicável 1951 e seu Protocolo de 1967, bem como o princípio de não repulsão consagrados
nos referidos instrumentos.”738.
Contempla-se como uma das situações de vulnerabilidade em que se encontrem
requerentes ou beneficiários de proteção internacional, estabelecendo, para esses casos, a
necessidade de conceder tratamento diferenciado às pessoas que efetuem esses
requerimentos739.
Importante ressaltar que GRETA, em seu relatório de avaliação da Espanha em 2018740
instou a Espanha a priorizar a identificação de vítimas de tráfico entre requerentes de asilo e
imigrantes irregulares. Embora a Diretiva contra o tráfico adote uma abordagem baseada nos
direitos humanos e leve em conta a perspectiva de gênero (art. 1), a internalização na Espanha
precisa de ambas as abordagens, de acordo com o relatório de avaliação sobre a aplicação da
Diretiva (2013/33/UE), o que gera deficiências na sua aplicação. A Espanha enfrenta o tráfico
a partir de uma estrutura de direito penal e controle de migração741.
Quanto à possibilidade de requerer proteção internacional, a Diretiva contra o tráfico
(art. 11) estabelece que, “assim que as autoridades competentes tenham indícios razoáveis para
acreditar que o migrante é vítima de tráfico ou quando o migrante é identificado como vítima
de tráfico, os Estados-membro têm a obrigação de o informar da possibilidade de solicitar
proteção internacional.”742. Por outro lado, ainda se percebe o redirecionamento dos pedidos de
asilo de mulheres potenciais vítimas de tráfico para a Lei de Estrangeiros, seja pela ausência de
capacitação das autoridades em identificar a situação de vinculação tráfico/asilo, seja porque

738
Ver em: Parágrafo 1 do artigo 14 do Protocolo de Palermo. “Artigo 14. 1. Nenhuma disposição do presente
Protocolo prejudicará os direitos, obrigações e responsabilidades dos Estados e das pessoas por força do direito
internacional, incluindo o direito internacional humanitário e o direito internacional relativo aos direitos
humanos e, especificamente, na medida em que sejam aplicáveis, a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967
relativos ao Estatuto dos Refugiados e ao princípio do non-refoulement neles enunciado.”
739
Essa legislação tenta dar resposta a algumas normativas europeias que estabelecem o Sistema Europeu Comum
de Asilo (SECA), que são regulamentados principalmente pela: Diretiva de Acolhida (Diretiva 2013/33/UE),
que estabelece: 1. as vítimas de tráfico de pessoas são pessoas vulneráveis que podem ter necessidades
particulares de acolhida (Art. 21); 2. Essas necessidades devem ser avaliadas e assistência adequada garantida
(Art. 22). Diretiva de Procedimentos (Diretiva 2013/32/UE), que estabelece: os Estados Membros avaliarão
(se o requerente for um requerente que necessite de garantias processuais especiais (artigo 24.º, n.º 1) e, se for
caso disso, é prestado apoio adequado para que possa usufruir dos direitos e cumprir as obrigações desta
diretiva (artigo 24.º, 3). O direito de asilo está regulado na Espanha desde a Ley n. 12/2009.
740
GRETA-Group of Experts on Action against Trafficking in Human Beings. Report concerning the
implementation of the Council of Europe Convention on Action against Trafficking in Human Beings
by Spain: second evaluation round.. Estrasburgo: Consejo de Europa, 2018.
741
SCHERRER, Amandine et al. Trafficking in human beings from a Gender Perspective Directive
2011/36/EU: European Implementation Assessment. Bruselas: Parlamento Europeo, 2016. p.2 15.
742
STOYANOVA, Vladislava. Victims of human trafficking: a legal analysis of the guarantees for ‘vulnerable
persons’ under the Second Phase of the UE Asylum Legislation. In: BAULOZ, C. (ed.). Seeking Asylum in
the European Union: selected Protection Issues Raised by the Second Phase of the Common European
Asylum System. Leiden: Martinus Nijhoff Publishers, 2015. p. 58-108.
330

não se percebe a ligação da violência do tráfico com a possibilidade da proteção permitida pelo
asilo. O procedimento é complexo, difícil de provar a situação de violência vivenciada e o risco
do retorno, ficando difícil a concessão do asilo.
Importante destacar que, atualmente, as mulheres traficadas que procuram asilo podem
usar os dois regulamentos simultaneamente, uma vez que não são excludentes, mas
complementares. Especificamente, a de estrangeiros prioriza a colaboração com as autoridades
da vítima de tráfico, enquanto a de proteção internacional protege contra o risco de retorno743.
O procedimento de intervenção oferecido às pessoas solicitantes de asilo ou beneficiárias de
proteção internacional se concretiza em um itinerário de acolhida e integração744.
Percebe-se, analisando esse complexo sistema espanhol que, o fracasso de identificar
corretamente e formalmente uma vítima de tráfico constitui em si uma violação dos direitos e
obrigações derivados da Diretiva 2011/36/UE745. Sem essa identificação formal e a obtenção de
uma situação administrativa regular prejudica o acesso a direitos efetivos (totais ou parciais).
Nesse sentido, a violação do direito de identificação, ou a detecção tardia, a confusão entre os
fenômenos do tráfico de pessoas, contrabando de migrantes, migrantes em geral ou a não
identificação de "evidência razoável" para a caracterização do tráfico de pessoas, podem gerar
violações de direitos. Aparentemente, os direitos mais violados são aqueles relacionados ao
campo jurídico. Muitas vezes dependem da condicionalidade de proteção pela denúncia. Pode
ocorrer a instrumentalização das vítimas para se conseguir uma condenação, muitas vezes as
revitimizando em um processo judicial. Verifica-se, em muitos casos, a má proteção no
processo judicial, sem a preservação do sigilo da identidade, entre outros746.
Por outro lado, no que refere à assistência judiciária, destaca-se a aprovação do Real
Decreto-Lei n.º 3/2013, de 22 de fevereiro, que reconhece o direito à assistência jurídica gratuita
às vítimas de violência de gênero e tráfico, em todos os processos judiciais e administrativos

743
MONTALBÁN, Inmaculada. Trata sexual de mujeres: nuevas claves para el derecho de asilo. Madrid,
2017. Disponível em: http://www.poderjudicial.es/stfls/CGPJ/FORMACI%C3%93N%20CONTINUA/
PLAN%20ESTATAL/MATERIALES%20DOCENTES/FICHERO/CU17083%2001%20Montalban%20Hue
rtas%20I.pdf. Acesso em: 25 set. 2020.
744
MINISTERIO DEL TRABAJO, Migraciones y seguridad Social: Sistema de Acogida de Protección
Internacional: Manual De Gestión. 2018. Disponível em: http://extranjeros.inclusion.gob.es/es/
Subvenciones/AreaIntegracion/proteccion_internacional/sociosanitaria_cetis_2019/documentos/Manual__ges
tion.pdf. Acesso em: 20 set. 2020.
745
SANTOS, Begoña. Las víctimas de trata en España: el sistema de acogida de protección internacional. Anuario
CIDOB de la Inmigración, 2019. p. 144. Disponível em: https://www.cidob.org/es/articulos/
anuario_cidob_de_la_inmigracion/2019/las_victimas_de_trata_en_espana_el_sistema_de_acogida_de_protec
cion_internacional. Acesso em: 20 set. 2020.
746
DEFENSOR DEL PUEBLO. La trata de seres humanos en España: víctimas invisibles. Madrid: Defensor
del Pueblo, 2012. Disponível em: https://www.defensordelpueblo.es/wp-content/uploads/2015/05/2012-09-
Trata-de-seres-humanos-en-Espa%C3%B1a-v%C3%ADctimas-invisibles-ESP.PDF. Acesso em: 15 set. 2020.
331

decorrentes de sua condição de vítima, independentemente dos recursos de que dispõe. Este
direito é reconhecido a todas as vítimas do tráfico de pessoas, independentemente da sua origem
ou situação administrativa, de acordo com o disposto no artigo 22.º da LO 4/2000, de 11 de
janeiro, que reconhece o direito dos estrangeiros que se encontrem em Espanha para assistência
jurídica gratuita nos processos em que participam, nas mesmas condições que os espanhóis. O
Estatuto da Vítima de Crime, previu a constituição de um catálogo geral dos direitos processuais
de todas as vítimas de crime, que dá resposta jurídica e social ao vítimas e suas famílias, e
também dá atenção específica às vítimas mais vulneráveis, como vítimas de tráfico e menores
de idade747.
Apesar de todas essas garantias, verificam-se ainda alguns problemas relacionados, por
exemplo, a ausência de tradutores ou más práticas, prejudicando a compreensão dos passos do
processo ou até mesmo do que está sendo dito, violando direito das vítimas.
Quanto à assistência à saúde, o Sistema Nacional de Saúde e Real Decreto garante, desde
2013, a prestação de cuidados de saúde às vítimas de tráfico de pessoas em período de
recuperação e reflexão. Além disso, na prática, a Secretaria-Geral de Saúde transferiu a todas
as Comunidades Autônomas uma interpretação comum, de modo que seja entendida como
“vítima de tráfico pessoas ”qualquer pessoa física para a qual haja evidência razoável de que
foi traficada após um processo de identificação realizado pelas autoridades policiais
correspondentes, usando a Protocolo-quadro para a proteção das vítimas de tráfico de seres
humanos para seu credenciamento.
No âmbito da assistência social, a garantia de uma melhor atenção oferecida às vítimas
está condicionado a inserção do “tráfico de pessoas” como uma das modalidades de violência
de gênero no âmbito da Comunidades Autônomas, possibilitando que as vítimas de tráfico
possam usufruir dos direitos de vítima de violência de gênero, inclusive com acesso a apoio
econômico. Somente essas comunidades autônomas conseguem efetivamente garantir
programas de assistência integral às suas vítimas. As Comunidades Autônomas de Cantabria,
Canarias, Madrid, Aragón, Galicia e Cataluña inserem o tráfico de pessoas nessa condição.
Nesse sentido, o acesso a recursos vem condicionado a categoria de entrada de proteção social.
Uma das reinvindicações das OSCs e especialmente da Red Española contra la trata de
personas é a de que haja uma padronização e que todas as Comunidades Autônomas o façam,

747
Foi elaborada um Guia para auxiliar e capacitar os profissionais do direito. Ver em: CONSEJO GENERAL DE
JUSTICIA. Guía de criterios de actuación judicial frente a la trata de seres humanos. 2018. Disponível
em: http://www.poderjudicial.es/cgpj/es/Poder-Judicial/Consejo-General-del-Poder-Judicial/En-Portada/El-
CGPJ-presenta-una-Guia-de-criterios-de-actuacion-judicial-para-detectar-e-investigar-la-trata-de-seres-
humanos-con-fines-de-explotacion. Acesso em: 15 set. 2020.
332

unificando assim a assistência e as possibilidades de acesso a recursos econômicos. Os direitos


garantidos às vítimas formalmente identificadas na Espanha, dispostos no Protocolo-quadro
para a proteção das vítimas de tráfico de seres humanos são: acomodação adequada e segura;
ajuda material (subsistência); assistência psicológica; assistência médica (RD 1192/2012, de 3
de agosto); serviço de interpretação; assistência jurídica;
Se a pessoa está em situação irregular: concessão do período de recuperação e reflexão
e isenção de responsabilidade; autorização de residência e trabalho (filhos menores extensíveis).
A partir dessas considerações sobre o sistema de proteção espanhol atual, parece
fundamental, em primeiro lugar, que se desvincule a proteção das vítimas da política de
estrangeiros e do contrabando de pessoas e, que se centre na exploração sofrida. Se há uma
situação de tráfico, ela deve ser protegida independente de qualquer outra questão. A Diretiva
da UE que garante essa proteção aponta para essa necessária desvinculação da colaboração das
vítimas. Ademais, o estatuto de proteção não é um prêmio pela delação, mas uma resposta
necessária a partir da perspectiva de proteção dos direitos748.
Em um segundo lugar, a proteção de uma vítima é consequência da identificação de uma
pessoa que pode ser potencialmente vítima de tráfico e não, ao que muitas vezes se faz acreditar,
da denúncia interposta por ela. Ademais, é fundamental que se defina a exploração e que
visualize que a exploração pode se dar em diversas modalidades, exploração sexual, laboral,
laboral no serviço doméstico, na construção.
Percebe-se, ainda, pelo sistema de proteção às vítimas, que o enfrentamento ao tráfico
de pessoas na Espanha está ainda muito vinculado à modalidade da exploração sexual e isso
fica bastante evidente quando olhamos a política pública construída até o presente momento e
que pode ser rapidamente elencadas pelo I Plan Integral de Lucha contra la Trata de Seres
Humanos com Fines de Explotación Sexual (2009/2012); Protocolo Marco de Protección de
las victimas de trata de seres humanos (2011); II Plan Integral de Lucha contra la Trata de
Seres Humanos com Fines de Explotación Sexual (2015/2018); Sistema de Proteção
Internacional (2016).
Mesmo com a definição penal adequada à normativa internacional, percebe-se que na
Espanha ainda há deficiências no que se refere ao enfrentamento ao tráfico de pessoas por
qualquer outra modalidade que não seja a da exploração sexual. Percebe-se, analisando os
Planos Integrais, as normativas, os recursos destinados, que falta uma abordagem integral, à

748
MESTRE I MESTRE, Ruth M. La protección cuando se trata de trata en el Estado español. Rev. Inter. Mob.
Hum., Brasília, DF, Ano XIX, n. 37, p. 27-42, jul./dez. 2011. Disponível em: https://www.redalyc.org/
articulo.oa?id=407042014003. Acesso em: 3 maio 2020.
333

todas as modalidades de exploração. As medidas de proteção e assistência, por exemplo, estão


direcionadas praticamente de forma exclusiva, às vítimas de exploração sexual, principalmente
mulheres e meninas. Somente a Fundación Cruz Blanca coordena um abrigo para homens
vítimas de exploração sexual, oferecendo seis lugares749.
Pode-se argumentar que, em função da complexidade do fenômeno do tráfico de
pessoas, não abordar de forma integral e contemplando todas as formas de tráfico interno e
internacional pode-se estar contribuindo para uma maior vulnerabilidade das vítimas e,
consequente violação de direitos. Ou, por outro lado, na verdade não há intenção de enfrentar a
temática de forma a eliminar o tráfico, mas sim, utilizar o tráfico principalmente controlar as
fronteiras e para criminalizar migrantes.
Outro aspecto fundamental a ser levado em conta no enfrentamento ao tráfico de pessoas
na Espanha é a necessidade de uma efetiva coordenação entre os diversos níveis institucionais
e das comunidades autônomas.
A linha do tempo traz os principais instrumentos de enfrentamento ao tráfico de pessoas
na Espanha, que serão abordados, de forma crítica, a seguir.

Figura: 17. Linha do Tempo da Política Pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas na


Espanha

Fonte: Elaboração Própria.

749
Em entrevista realizada com a Fundación Cruz Banca, comentou-se que esse abrigo para homens foi montado
pela inexistência de um serviço nesses moldes na Espanha. Esse serviço é mantido com fundos próprios da
entidade. O poder público não tem editais para financiar esse tipo de serviço.
334

Essa linha do tempo permite verificar como a Espanha vem construindo sua política de
enfrentamento ao tráfico de pessoas juntamente com as normativas europeias mais relevantes e
norteadoras da política interna.

5.1.2 Os Planos Integrais de Luta contra o Tráfico de Mulheres para fins de Exploração
Sexual na Espanha

O processo de construção da política de enfrentamento ao tráfico foi sendo


profundamente influenciado pelas normativas europeias e principalmente pela pressão feita
pelas organizações da sociedade civil especializadas que prestavam e prestam atenção direta às
vítimas. Apesar de outros atores contribuírem para o desenvolvimento deste regime complexo,
como as Organizações Internacionais (OIT,OIM, UNODC) por meio de seus Programas e
Projetos, na Espanha750, entende-se que a participação das organizações da sociedade civil foi
e é fundamental para a formulação, monitoramento, execução e avaliação da política nacional
de enfrentamento ao tráfico de pessoas, veja-se principalmente pela atuação da Red Española
contra la Trata de Personas (RECTP), que mais adiante será particularmente abordada.
É claro que essa percepção do avanço na construção da política não elimina todas as
críticas e interesses existentes tanto por parte do Estado, como por parte das OSCs, conforme
já descrevemos anteriormente quando da análise do Regime Complexo e da atuação das OSCs,
no capitulo 3.
O I Plano Integral751 pretendeu ser o primeiro instrumento de planejamento, de caráter
integral na luta contra o tráfico de pessoas com fins de exploração sexual. Estabeleceu que o
fenômeno do tráfico de pessoas deveria ser abordado a partir de quatro pontos de vista: a
perspectiva de gênero, como uma violação de direitos fundamentais, como um fato
transnacional que requer a cooperação internacional e, como um delito que precisa da atuação
policial e judicial. Percebe-se que ele já incorporou a perspectiva proposta pelo Convênio de
Varsóvia. Ele foi elaborado pelo Ministério da Igualdade, naquele momento recém-criado na
estrutura ministerial espanhola e contou com contribuições das organizações da sociedade civil

750
Nesse sentido a OIM desenvolve um projeto de Retorno Voluntário que é financiado pelo Poder Público
Espanhol. IOM Spain. Proyectos de Retorno Voluntario. Disponível em: https://spain.iom.int/es/proyectos-
de-retorno-voluntario. Acesso em: 20 set. 2020.
751
MINISTERIO DE IGUALDAD. Plan Integral contra la Trata de Seres Humanos. 2010. Disponível em:
https://tbinternet.ohchr.org/Treaties/CEDAW/Shared%20Documents/ESP/INT_CEDAW_NGO_ESP_61_18
795_S.pdf. Acesso em: 14 set. 2020.
335

e pelas Comunidades Autônomas752. O Plano contou com as seguintes linhas de atuação:


medidas de sensibilização, prevenção e investigação, medidas de educação e treinamento,
medidas de assistência e proteção às vítimas, medidas legislativas e processuais, e, medidas de
coordenação e cooperação. Foi criado um grupo interministerial constituído por representantes
do Ministério das Relações Exteriores e Cooperação, Ministério da Justiça, Ministério do
Interior, Ministério da Saúde e Política Social, Ministério do Trabalho e Imigração, Ministério
da Igualdade, esse sendo o coordenador.
O I Plano já determinava a elaboração de um Protocolo de Atuação e Coordenação entre
as Polícias, o “Ministério Fiscal” (Ministério Público) e órgãos judiciais que contemplassem
medidas de informação e proteção das vítimas e testemunhas. No âmbito da assistência, o Plano
determinava que, tanto o governo central como as Comunidades Autônomas, melhorassem os
serviços de atenção às vítimas, primando os programas das OSCs para que incluíssem a atuação
de mediadoras e mediadores interculturais753 para o apoio às vítimas, além de estimular a criação
de unidades móveis para a atenção de vítimas em isolamento e a criação de centros de acolhida
com programa de atenção integral específica (psicossocial, médico e legal).
Fica evidente a opção política assistencial proposta pela Espanha que, diferentemente
do Brasil754, escolhe garantir a atenção integral das vítimas de tráfico, principalmente por meio
das OSCs especializadas755. É a partir do I Plano que começam a ser elaborados os Editais (do
governo central e das comunidades autônomas) para a execução dessa prestação de atenção
integral e proteção por parte das OSCs.
É oportuno tecer algumas reflexões sobre o atendimento prestado às vítimas de tráfico
de pessoas pelas OSCs especializadas na Espanha. Não se pretende analisar especificamente
nenhuma organização, nem mesmo tecer generalizações. Mas é importante identificar e analisar
a partir de onde ou o que devem oferecer as organizações e como o fazem. A assistência
garantida por estas entidades deve ser aquela estabelecida no Protocolo-Quadro756. O que pode

752
As Comunidades Autônomas na Espanha são os entes políticos como os estados no Brasil.
753
É sempre importante lembrar que a maioria das mulheres vítimas de tráfico na Espanha são estrangeiras e não
falam espanhol. A intermediadora cultural é fundamental para estabelecer uma relação de confiança com a
vítima.
754
Conforme descrito no capítulo 4, o Brasil optou por garantir a atenção das vítimas por meio de um modelo
público de assistência.
755
Verifica-se também, a existência de serviços públicos municipais, porém menos especializados que as OSCs
de atenção às vítimas do tráfico de pessoas.
756
Direitos garantidos às vítimas formalmente identificadas na Espanha: acomodação adequada e segura; Ajuda
material (subsistência); Assistência psicológica; Assistência médica (RD 1192/2012, de 3 de agosto); Serviço
de interpretação; Aconselhamento jurídico; Situação irregular: período de recuperação e reflexão, isenção de
responsabilidade; autorização de residência e trabalho (filhos menores extensíveis); Retorno voluntário;
Autorização de residência e trabalho; direitos processuais/judiciais.
336

diferenciar é a forma como essa assistência é garantida, ou seja, como cada organização
constitui/estabelece seu trabalho, uma vez que fica a cargo de cada organização, gerando uma
ausência de padronização das atividades e principalmente, do enfoque de trabalho realizado.
Pode-se perceber, que algumas organizações podem atuar de forma mais paternalista em relação
à vítima; outras atuam de maneira a dar mais empoderamento à essa vítima. Essas questões
subjetivas que envolvem a “maneira de ser” de cada organização pode, ao invés de cumprir com
sua função de garantir direitos e os restabelecer, continuar e aprofundar a vulneração dos
direitos, revitimizando, não empoderando e nem mesmo garantindo que elas possam decidir
sobre o que desejam para suas vidas. Será que a assistência oferecida vem atendendo as
necessidades das vítimas? Será que as mulheres realmente têm o direito de decidir o que
desejam para suas vidas? Ou será que o atendimento está condicionado ao que o modelo, às
vezes restritivo e que têm como fundo a criminalização e a exclusão dessas mulheres permite?
Até que ponto há uma análise crítica sobre o atendimento oferecido às vítimas? Até que ponto
se critica e se buscam alternativas, para além do posto na normativa? Até que ponto se está
fazendo incidência política para propor mudanças no que restringe e dificulta o acesso à
direitos?757.
Muitas vezes o enfoque de atuação dado por cada organização também leva em conta a
posição desta com relação à sua compreensão sobre a prostituição, simplificando aqui, de forma
bastante generalista, no grupo das organizações abolicionistas ou regulamentaristas. Entende-
se que é importante oferecer acolhida, atenção, escuta qualificada e humanizada partindo da
individualidade de cada mulher, de suas circunstâncias e entendimentos. Somente assim, pode-
se garantir que ela se sinta efetivamente acolhida nas suas necessidades. Essa preocupação é
bastante relevante pois pode acabar vulnerando mulheres que não se encontrem em situação de
tráfico de pessoas, mas que, em nome de uma compreensão moralista sobre o fenômeno, leve
a uma generalização e violação de outros direitos e, até mesmo, da utilização do discurso do
enfoque da criminalização e da segurança estatal, para limitar, dificultar e restringir o direito
das pessoas migrantes, em nome da compreensão de uma violência de gênero. Dessa reflexão

757
Estudo interessante realizado pela organização Mulheres em Zona de Conflito “Proyecto “Prevención,
Persecución, Protección y Asistencia: Estrategias de intervención con Víctimas y Supervivientes de Trata en
Andalucía y Ceuta” (2014), com a participação das mulheres atendidas, indica como estas mulheres, muitas
vezes, desejariam um outro tipo de assistência por parte das organizações que as atendem. Como exemplo:
“Nesse sentido, uma mulher cita sua recusa em morar em casa de acolhida, preferindo viver por conta própria
mesmo que não esteja nas melhores condições, mencionando que está cansada de ter o auxílio de organizações
que pedem para ela ter que contar constantemente sua história”. Ver em: MUJERES EN ZONA DE
CONFLICTO. Proyecto “Prevención, Persecución, Protección y Asistencia: estrategias de intervención
con Víctimas y Supervivientes de Trata en Andalucía y Ceuta. 2014. Disponível em: http://www.mzc.es/
investigacion/wp-content/uploads/sites/6/2016/11/EstudioTrataMZC.pdf. Acesso em: 15 set. 2020.
337

surgem outras como, em que medida a experiencia e a capacidade de análise da realidade social
identificada nas situações de tráfico de pessoas atendidas pelas OSCs se transformam em
elementos de capacidade e conhecimento para melhorar o trabalho das equipes e do
atendimento prestado às mulheres vítimas? Em que medida a atuação destas organizações tem
especializado seu atendimento, em detrimento de um voluntariado? Em que medida há
efetivamente modelos de intervenção social com essas vítimas? Em que medida se mede se a
intervenção feita está resultando em mulheres com direitos efetivamente restabelecidos e
garantidos?
Outro aspecto importante do serviço prestado pelas organizações e ressaltado por muitas
delas nas entrevistas realizadas é a falta de indicadores que consigam medir e fazer um
seguimento efetivo do trabalho desenvolvido pelas OSCs. Hoje os indicadores são, em grande
parte, quantitativos (medem o número de atendimentos, número de mulheres abrigadas, número
de mulheres acompanhadas aos serviços de saúde, etc.) e fazem um controle econômico em
função da subvenção concedida pelo poder público. Porém eles não conseguem medir a
qualidade do serviço prestado. Não se consegue saber se uma mulher está sendo efetivamente
atendida na sua integralidade.
Mesmo antes do I Plano verifica-se a articulação das OSCs, seja a nível nacional como
na Red Española contra la Trata de Personas (RECTP) (2004/2005), como no âmbito das
comunidades autônomas como a Red Gallega contra la Trata de Personas (2008) ou a Xarxa
Catalana sobre la Trata de Personas (2008), entre outras.
Outro objetivo do I Plano foi a de estabelecer e fortalecer mecanismos de coordenação
e vínculos efetivos com OSCs e instituições comprometidas na luta contra o tráfico de pessoas
e na assistência às vítimas. Nessa perspectiva, propôs-se como ação específica, a criação de um
Fórum contra o tráfico de pessoas integrado pelas Administrações Públicas, as OSC e outras
instituições importantes. Dessa ação, foi instituído o Fórum Social contra o tráfico para fins de
exploração sexual, em 14/07/2009758, que funciona até hoje como um mecanismo de governança
do modelo de enfrentamento ao tráfico de pessoas espanhol.
Após o I Plano, verifica-se um lapso de tempo até a aprovação do II Plano o que permitiu
uma avaliação do I Plano tanto por parte do poder público como das organizações

758
O objetivo do Fórum é promover o intercâmbio de informações e pontos de vista entre organizações
especializadas no atendimento às vítimas de tráfico para fins de exploração sexual e administrações com
competências na matéria (Ministérios, Comunidades Autónomas e esfera local), a fim de melhorar a
colaboração entre todos os atores envolvidos, com foco na promoção e proteção dos direitos humanos, , além
de realizar o seguimento do Plano Integral de Luta contra o tráfico de mulheres e meninas com fins de
exploração sexual, realizando um relatório anual. O Fórum é composto por uma série de atores governamentais
e não governamentais, assim como do Relator Nacional contra la trata de seres humanos.
338

especializadas que realizavam e realizam atenção direta às vítimas de tráfico na Espanha. O II


Plano incorporou um diagnóstico baseado nos resultados da aplicação do I Plano, que incluiu
as observações e recomendações das administrações e instituições que participaram de sua
implementação, as contribuições da sociedade civil759 por meio das entidades representadas no
Fórum Social contra o Tráfico para fins de exploração sexual, bem como as enviadas pelas
Comunidades Autónomas, Federação Espanhola de Municípios e Províncias (FEMP). Da
mesma forma, incluiu as conclusões e recomendações formuladas pelos diferentes organismos
nacionais e internacionais que acompanham e avaliam as políticas existentes sobre o tema na
Espanha. Especificamente, foram levadas em conta as observações e recomendações feitas pelo
Defensor do Povo760 e pelo Grupo de Peritos sobre Tráfico de Seres Humanos (GRETA) do
Conselho da Europa no Relatório sobre a Aplicação pela Espanha da Convenção do Conselho
da Europa Ação contra o tráfico de seres humanos emitida em setembro de 2013761.
Nesse sentido, avaliou-se positivamente: 1. a melhoria dos processos de colaboração e
comunicação entre instituições públicas e privadas e o avanço na realização de uma intervenção
integral; 2. a melhoria da proteção das vítimas e da repressão ao crime, como consequência das
importantes reformas jurídicas empreendidas, bem como da formalização dos procedimentos,
através do estabelecimento de instruções e protocolos, e da especialização de profissionais; 3.
o aumento das informações e dados relativos ao tráfico de pessoas, sendo necessário intensificar
as ações nessa área para garantir a coleta de dados estatísticos confiáveis. 4.a promoção da
consciência social sobre o tema.
Dentre as várias recomendações762, cabe destacar: 1. Necessidade da melhoria da
assistência e proteção às vítimas através da revisão dos procedimentos para que a vítima se

759
Ao final da execução do I Plano, a RECTP elaborou um documento avaliando sua execução, elaborando
recomendações para a criação do II Plano. Esse relatório foi levado em conta para a elaboração do II Plano.
RECTP. Aportaciones para la elaboración del Nuevo Plan contra la Trata. 2013. Disponível em: https://
www.proyectoesperanza.org/wp-content/uploads/2019/06/2013_Aportaciones-RECTP-al-Gobierno.pdf.
Acesso em: 20 set. 2020.
760
DEFENSOR DEL PUEBLO. La trata de seres humanos en España: víctimas invisibles. Madrid: Defensor
del Pueblo, 2012. Disponível em: https://www.defensordelpueblo.es/wp-content/uploads/2015/05/2012-09-
Trata-de-seres-humanos-en-Espa%C3%B1a-v%C3%ADctimas-invisibles-ESP.PDF. Acesso em: 15 set. 2020.
761
GRETA. Relatório sobre a Aplicação pela Espanha da Convenção do Conselho da Europa Ação contra o tráfico
de seres humanos emitida em setembro de 2013. Ver em: https://www.proyectoesperanza. org/wp-
content/uploads/2019/05/2013_GRETA-Evaluation-Report-Spain-Summary-Informe-Evaluaci% C3%B3n-
Espa%C3%B1a-Resumen.pdf. Acesso em: 20 set. 2020.
762
Foram levadas em conta as recomendações da Administração Pública (central e Comunidades Autonomas e
Municipios – Federação de Municipios, das OSCs pertencentes ao Fórum Social contra o tráfico de pessoas
para fins de exploração sexual, o Defensor do Povo), Grupo de Expertos do GRETA e os Relatorios TIP (EUA).
Ver em: MINISTERIO DE SANIDAD, SERVICIOS SOCIALES E IGUALDAD. Plan Integral de lucha
contra la Trata de Mujeres y Niñas con fines de explotación sexual. (2015-2018). p. 46-49. Disponível em:
https://violenciagenero.igualdad.gob.es/planActuacion/ planContraExplotacionSexual/docs/
Plan_Integral_Trata_18_Septiembre2015_2018.pdf. Acesso em: 15 set. 2020.
339

torne o elemento central contra outras prioridades, como o controle da imigração irregular ou a
repressão ao crime; 2. a definição de um catálogo de direitos das vítimas de tráfico e uma melhor
implementação dos instrumentos legais estabelecidos para a proteção das vítimas (período de
restabelecimento e reflexão, concessão de autorização de residência e trabalho em
circunstâncias excepcionais); 3. necessidade de melhorar a coordenação com as Comunidades
Autónomas no que se refere a assistência e proteção das vítimas; 4. uma revisão do sistema de
funcionamento do Fórum Social contra o tráfico para fins de exploração sexual como
mecanismo de participação e cooperação entre Administrações Públicas e organizações
especializadas; 5. reforçar a abordagem dos direitos humanos em face dos objetivos da polícia
e da imigração; 6. nomear um coordenador nacional ou relator, chave para garantir uma
assistência integral e multidisciplinar, conforme exigido pelo artigo 19.º da Diretiva 2011/36 /
UE; 7. revisar a proteção oferecida tanto no sistema de imigração quanto em relação à proteção
internacional (asilo). Da mesma forma, insistiu-se na atenção especial que deve ser oferecida
(identificação, assistência e proteção) às vítimas menores de idade; 8. definir procedimentos de
colaboração e participação de organizações especializadas na intervenção com as vítimas,
incluindo a sua participação nos processos de identificação e na avaliação da concessão de
períodos de reestabelecimento e reflexão.
O II Plano Nacional apresentou quatro grandes linhas de prioridades: 1. Fortalecimento
da prevenção e detecção do tráfico; 2. Identificação, proteção e assistência às vítimas de tráfico
de pessoas; 3. Análise e aprimoramento de conhecimentos para uma resposta efetiva ao tráfico
para exploração sexual; 4. Perseguição mais ativa aos traficantes763.

763
MINISTERIO DE SANIDAD, SERVICIOS SOCIALES E IGUALDAD. Plan Integral de lucha contra la
Trata de Mujeres y Niñas con fines de explotación sexual. (2015-2018). p. 46-49. Disponível em: https://
violenciagenero.igualdad.gob.es/planActuacion/planContraExplotacionSexual/docs/Plan_Integral_Trata_18_
Septiembre2015_2018.pdf. Acesso em: 15 set. 2020.
Na linha de prioridades 2, e do objetivo específico 4: Fortalecer os mecanismos de identificação, assistência e
proteção às vítimas de tráfico, identificam-se uma série de propostas de ações no sentido de melhorar a
informação das vítimas quanto aos seus direitos e aos procedimentos pelos quais estarão envolvidas. Nesse
sentido, destacam-se: 1. Elaboração de um modelo único de ficha de informações sobre seus direitos, redigido
em linguagem simples e compreensível, que as autoridades policiais entregam após a identificação da vítima
de tráfico; 2.Elaboração de instruções para o desenvolvimento do procedimento de identificação formal de
possíveis vítimas de tráfico para fins de exploração sexual, que levem em conta as contribuições de
organizações especializadas desde o momento da detecção.
No objetivo específico 6: Medidas destinadas a abordar as situações mais vulneráveis, destacam-se, para vítimas
estrangeiras em situação irregular: 1. assegurar uma análise especializada dos pedidos de autorização de
residência e trabalho em circunstâncias excepcionais com base na situação pessoal da vítima; 2. Melhoria da
informação prestada, se for caso disso, às vítimas de tráfico de pessoas estrangeiras sobre o conteúdo básico
do direito de solicitar proteção internacional e o procedimento, em língua que compreendam. No âmbito do
programa de proteção internacional, destacam-se: 1. Melhor coordenação entre a Oficina de Asilo e Refúgio e
as autoridades policiais durante a fundamentação de um pedido de proteção internacional em que haja
evidências razoáveis de tráfico de pessoas; 2. editais para o acolhimento e integração de requerentes e
beneficiários de proteção internacional.
340

O II Plano Nacional estabeleceu um sistema de acompanhamento e avaliação por meio


de dois órgãos: a Conferência Setorial para a Igualdade, órgão de reunião, deliberação e
cooperação entre a Administração Geral do Estado e as Comunidades Autónomas em matéria
de política de igualdade, incluindo o apoio ao vítimas de tráfico para fins de exploração sexual;
e o Fórum Social contra o tráfico para fins de exploração sexual, que inclui, para além dos
departamentos ministeriais com responsabilidades na execução do Plano, uma representação da
administração autónoma, a Federação Espanhola de Municípios e Províncias e as organizações
com experiência na assistência e proteção de vítimas. Utilizou-se de relatórios de avaliação
anuais e ao final do II Plano, uma avaliação final recolhendo a informação sobre os quatro anos
de vigência do Plano764.
Destacam-se na avaliação final do II Plano, ao que tange os objetivos e prioridades
relevantes para este estudo, em relação à assistência às vítimas, percebe-se que os esforços na
área de informação e assistência criaram uma rede assistencial sólida tanto em recursos
materiais e profissionais como sua manutenção e capacitação por meio de mecanismos de
coordenação e cooperação e instrumentos para formalizar a referida coordenação para nível dos
agentes envolvidos nos territórios. Além disso, essa rede de recursos melhora a identificação,
proteção e assistência às vítimas e houve um aumento do financiamento voltado

Na prioridade 5: Coordenação e cooperação entre Instituições e a participação da sociedade civil, em seu objetivo
específico 10: Promover a coordenação e participação no tráfico para exploração sexual, destacam-se: 1.
acompanhamento da aplicação do Protocolo-Quadro de Proteção às Vítimas de Tráfico para Exploração
Sexual, através da Comissão de Acompanhamento; 2. colaboração com as Comunidades Autônomas na luta
contra o tráfico para fins de exploração sexual através da Conferência Setorial para a Igualdade para uma
melhor proteção e assistência às suas vítimas e, em particular, para facilitar a sua mobilidade dentro do
território; 3. envolver as Comunidades Autônomas na atualização do Guia de Recursos existente para
assistência às vítimas de tráfico para exploração sexual; 4. promover o desenvolvimento do Protocolo-Quadro
para a Proteção das Vítimas do Tráfico a nível regional, no âmbito da Conferência Setorial sobre Igualdade; 5.
promover as funções das Unidades de Coordenação e Violência contra a Mulher nas Delegações e Sub-
delegações do Governo e Direções Insulares, em relação ao combate ao tráfico para fins de exploração sexual;
6. colaboração com a Federação Espanhola de Municípios e Províncias para promover a participação de
entidades locais no desenvolvimento de medidas de prevenção e detecção do tráfico para fins de exploração
sexual; 7. promoção da participação de organizações especializadas na assistência integral às vítimas de tráfico
e organizações que trabalham com crianças no Fórum Social contra o Tráfico para Exploração Sexual; 8.
revisão do sistema operacional do Fórum Social contra o Tráfico para Fins de Exploração Sexual, a fim de
torná-lo mais operacional; 9. participação do Fórum Social contra o Tráfico para Fins de Exploração Sexual
no Acompanhamento do Plano Integral de Enfrentamento ao Tráfico de Mulheres e Meninas para Fins de
Exploração Sexual 2015-2018; 10. incentivo à participação de organizações especializadas no atendimento
integral às vítimas de tráfico de seres humanos, nas reuniões da Comissão de Acompanhamento do Protocolo-
Quadro de Proteção às Vítimas de Tráfico, em relação às questões que levantem em relação às suas âmbito de
ação; 11. colaboração entre todas as instituições envolvidas para o cumprimento do disposto no artigo 19.º da
Diretiva 2011/36 / UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril, no que respeita às funções de
Relator Nacional para o Tráfico de Pessoas Humanos
764
MINISTERIO DE IGUALDAD. Evaluación del Plan Integral de Lucha Contra la Trata de Mujeres y
Niñas con fines de explotación sexual (2015-2018). 2020. Disponível em: https://violenciagenero.igualdad.
gob.es/otrasFormas/trata/normativaProtocolo/planIntegral/docs/INFORMEFINALEvalPITrataDGVGNoGap
sVDef.pdf. Acesso em: 20 set. 2020.
341

especificamente para os serviços de identificação/detecção e atenção a mulheres vítimas de


tráfico765..
Em termos de colaboração e abordagem, o II Plano conseguiu introduzir o tráfico como
eixo de ação em muitas instituições além de gerar uma dinâmica de colaboração eficaz quanto
ao processo de intervenção com vítimas de tráfico, alcançando progresso na formalização de
diretrizes comuns para a comunicação e a cooperação no processo de proteção às vítimas,
visando garantir atendimento adequado e encaminhamento, por meio de instruções, protocolos
e outros sistemas de cooperação. O II Plano permitiu um envolvimento e colaboração mais ativa
da sociedade civil nas prioridades de proteção das vítimas de tráfico e prevenção crime através
da participação multinível de organizações especializadas no atendimento e proteção de
vítimas, seja no atendimento direto, seja nas instâncias institucionais de participação.
No processo de finalização desta tese, em novembro de 2020, soube-se que o Relator
Nacional contra o Tráfico de Pessoas está coordenando a elaboração de um novo Plano
Estratégico contra o tráfico de pessoas, juntamente com Ministério Público (Fiscalía), Polícia
Nacional, Ministério do Interior e Ministério da Igualdade. O Plano pretende ser mais amplo
do que os Planos anteriores inclusive abordando todas as finalidades contra o tráfico de pessoas.
Não foi possível obter acesso ao conteúdo do mesmo, mas ele está na fase de consulta à RECTP
para seus comentários e contribuições766.

5.1.3 A Espanha e o financiamento da política de enfrentamento ao tráfico de pessoas

A Espanha estabeleceu, dentro do seu Plano Integral (2015-2018), uma previsão


orçamentária específica por áreas de prioridades estabelecidas no Plano, fragmentada conforme
a área de competência das ações dentro da política e das ações do Plano Integral.
O Ministério da Saúde, Serviço Social e Igualdade, financia, com incidência na dotação
do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRPF), programas de assistência e
proteção a vítimas de tráfico e exploração sexual, incluindo atendimento a vítimas de
exploração sexual infantil, realizados por Organizações Sociedade Civil. Nesse sentido, a
Delegação do Governo para a Violência de Gênero (Ministério da Igualdade) monitora os

765
Idem.
766
Informação recebida dos atores espanhóis.
342

recursos existentes para o atendimento às vítimas de tráfico para fins de exploração sexual, a
fim de ter um Guia de Recursos atualizado a cada seis meses767.
O Ministério do Emprego e Segurança Social também incorporou nos seus Programas
cofinanciados pelo Fundo Europeu de Asilo, Migração e Integração (FAMI), prioridades para
o desenvolvimento de programas que visam o acolhimento integral de vítimas de tráfico de
pessoas, sensibilização, a criação de redes de apoio e outras ações que visem a erradicação do
tráfico para fins de exploração laboral ou sexual.
O Secretariado Geral de Imigração e Emigração do Ministério do Trabalho e Segurança
Social desenvolve o programa de retorno voluntário de assistência social a imigrantes em
situação de vulnerabilidade, proporcionando, quando desejado voluntariamente pela vítima, o
seu regresso ao seu país de origem.

Tabela 18. Orçamento Espanhol do Plano Integral 2015-2018

Prioridades Total Ministérios (2015-2018)


Prioridade 1: Reforço da Prevenção e Detecção 5.727.551,48 €
Prioridade 2: Identificação, proteção e assistência das vítimas 19.253.154,24 €
Prioridade 3: Conhecimento e análise do tráfico de pessoas 2.867.648,00 €
Prioridade 4: Persecução mais ativa dos traficantes 55.359.804,00 €
Prioridade 5: Coordenação interinstitucional e participação da 20.903.000,00 €
sociedade civil
Orçamento Total 2015 - 2018: 104.111.157,72 €
Fonte: Plan Integral 2015/2018.768.

Interessante notar a distribuição orçamentária por prioridades do Plano. A prioridade 4,


relativa à persecução do crime de tráfico de pessoas, representou mais da metade do orçamento
da política. Por outro lado, o orçamento previsto para as prioridades 2 e 5, relativas a
proteção/assistência e coordenação institucional e participação da sociedade civil juntas,
praticamente não chegaram ao orçamento da prioridade 4. A análise do quanto se investiu em
cada prioridade da política pública, certamente está ligado à prioridade que se pretende dar
àquelas ações especificas.

767
Importante reforçar a reflexão feita por diversas OSCs entrevistadas no sentido de apontar que não há critérios
“mínimos comuns” do que se deve oferecer por uma OSC.
768
MINISTERIO DE SANIDAD, SERVICIOS SOCIALES E IGUALDAD. Plan Integral de lucha contra la
Trata de Mujeres y Niñas con fines de explotación sexual. (2015-2018). p. 109. Disponível em:
https://violenciagenero.igualdad.gob.es/planActuacion/planContraExplotacionSexual/docs/Plan_Integral_Tra
ta_18_Septiembre2015_2018.pdf. Acesso em: 15 set. 2020.
343

5.2 Relatoria Nacional contra o Tráfico de Seres Humanos

A previsão da Relatoria Nacional do Tráfico de Pessoas está na Diretiva 2011/36/UE e


no artículo 29.4 do Convênio do Conselho da Europa, relativa à prevenção e luta contra o tráfico
de seres humanos e à proteção das vítimas. Os documentos atribuem ao Relator Nacional ou
mecanismo equivalente, nomeado em cada Estado Membro, a função de avaliar a evolução do
tráfico de pessoas, a quantificação dos resultados das ações de combate ao tráfico, incluindo as
formas de cooperação com as respectivas organizações da sociedade civil presentes neste
campo. Entre as suas funções estabelece também a de participar na Rede de Oradores Nacionais
e Mecanismos Equivalentes a nível Europeu.
Nesse sentido, a Espanha, por meio do seu Secretário de Estado de Seguridad, em 3 de
abril de 2014, nomeou o Diretor de Gabinete do Secretário de Estado da Segurança como
Relator Nacional sobre o Tráfico de Seres Humanos. Desde 2014 o Relator Nacional convoca
reuniões institucionais, com representantes dos diversos ministérios envolvidos, da
Procuradoria de Imigração, das Forças e Órgãos de Segurança do Estado e do Conselho Geral
da Magistratura. Conta também com a participação da sociedade civil, representada pela
RECTP. Atualmente, essas reuniões acontecem de forma semestral. Além dessas reuniões, o
Relator Nacional ainda realiza reuniões bilaterais com diversos atores, entre eles, a RECTP.
A reunião realizada em fevereiro/2020 com o Ponto Focal da Relatoria Nacional para o
Tráfico de Seres Humanos, permitiu conhecer um pouco mais sobre a dinâmica realizada pela
Relatoria e suas funções769. O relatório anual apresentado pelo Relator serve para auxiliar no
monitoramento da construção da política de enfrentamento ao tráfico de pessoas. Apesar do
relator ser um representante da Secretaria de Estado da Segurança Espanhola, sua dinâmica de
trabalho e de consultas aos atores envolvidos em todas as frentes do enfrentamento ao tráfico,
seja nas reuniões institucionais (todos os atores), seja nas reuniões bilaterais (com cada setor de
atores individualmente), permitem uma perspectiva neutral da política e da incorporação das
necessidades de cada ator em sua dinâmica e área específica.
As reuniões bilaterais são fundamentais para se levantar e preparar os assuntos e pontos
a serem abordados nas reuniões periódicas institucionais. Nesse sentido, pode-se perceber que
o processo de construção do enfrentamento ao tráfico de pessoas na Espanha está bastante

769
Foi realizada uma reunião com o Ponto Focal da Relatoria Nacional contra o Tráfico de Pessoas, Enrique López
Villanueva. A reunião não pôde ser gravada pois não houve autorização institucional para tanto.
344

vinculado ao trabalho desenvolvido pela RECTP. Por isso é fundamental explicar esse ator, seu
contexto e dimensões na construção do enfrentamento na Espanha770.

Foi estabelecido, por vontade do próprio relator, em 2014, que se daria uma
dupla dinâmica: uma reunião periódica institucional com todos os atores
incluída a RCTP e, logo, uma dinâmica prévia de reuniões bilaterais entre o
relator e o ponto focal com a RCTP. Essas reuniões servem para verificar a
situação, para preparar assuntos para levar à reunião institucional, entre
outros. Neste momento, as reuniões foram reduzidas e também a relatoria
institucional, todo mundo se reúne duas vezes ao ano. Mas acho que as
reuniões bilaterais entre o relator e a rede são quatro vezes ao ano. Entre uma
reunião institucional temos a nossa da Rede com o Relator.” - Entrevista OSC
que participa das reuniões com Relator Nacional pela RECTP.

Apesar do comentário positivo em relação a atuação do Relator, acredita-se ser bastante


importante que órgãos como estes, que têm a função de avaliar a evolução das políticas, analisar
os resultados das ações e pensar as formas de cooperação e articulação dos atores, devem
apresentar configurações mais coletivas, paritárias e diversas.

5.3. A Red Española contra la Trata de Personas (RECTP)

A RECTP, criada em 2005, é formada por organizações nacionais e internacionais que


atuam no campo da luta contra o tráfico de pessoas na Espanha. A Rede atua na perspectiva dos
direitos humanos de acordo com os instrumentos jurídicos nacionais e internacionais aplicáveis
na Espanha771. Considera o tráfico de pessoas uma violação gravíssima dos direitos humanos e,
em particular, do direito à vida, à integridade física e a não sofrer tratamento cruel, humano ou
degradante.
A Rede promove um diálogo permanente entre a administração pública e a sociedade
civil na perspectiva de desenvolver ações de acordo com os quatro princípios norteadores que

770
“Entonces se establecio por voluntad del propio relator, en 2014, que iba a haber una doble dinámica: una
reunión periodica institucional con todos los actores incluida la Red Española contra la Trata y luego, una
dinámica previa de reuniones bilaterales entre el relator y el punto focal con la Red Española contra la trata.
Para verificar como esta la situación, para preparar o proponer temas de cara a reunion institucional, tal. Ahora
mismo, se han reducido estas reuniones y también la relatoria institucional, todo el mundo se reúne dos veces
al año. Pero creo que las reuniones bilaterales entre el relator y la red me parece que son 4 veces al año. Como
entre medias de una y otra.”
771
A RECTP é composta por mais de 30 entidades. São elas: Antena Sur contra la Trata, AIETI, APRAMP, CEAR,
CONFER, Fapmi-Ecpat, Federação de Mulheres Progressistas, Fundação Cruz Blanca, Fundação Tierra de
Hombres, Fundação APIP-ACAM, IEPALA, Médicos do Mundo, Mulheres em Zona de Conflito, Projeto
Esperanza, Rede Cantábrica, Xarxa Catalana sobre tráfico de pessoas e Women's Link Worldwide. As
organizações colaboradoras da Rede Antitráfico são: ACCEM, ACNUR, Anistia Internacional, Cáritas
Española, Cruz Vermelha Espanhola, IOM, Save the Children e Villa Teresita.
345

devem reger o assunto: prevenção, punição, proteção e reparação às vítimas e com base na não
discriminação.
A RECTP tem como objetivos principais a contribuição para a elaboração de propostas
e estratégias de atuação no combate ao tráfico, assim como estabelecer um diálogo permanente
com os atores públicos para melhorar a eficácia das políticas públicas de prevenção, proteção
dos direitos das vítimas, coordenar e promover a colaboração entre os membros da Rede para
elaborar medidas que garantam a prevenção do tráfico de pessoas, proteção, assistência e
reparação às vítimas do tráfico de pessoas. A Rede está dividida em alguns grupos de trabalho:
1. Grupo de Incidência Política; 2. Identificação de vítimas e grupo de referência e; 3. Grupo
de Sensibilização772.
A atuação da RECTP no âmbito do advocacy é inegável para visibilizar o tema do tráfico
na agenda pública.
Em 2008, a Rede elaborou um Guia Básico para a identificação, derivação e proteção
das vítimas de tráfico com fins de exploração, quando ainda não existia nem mesmo o I Plano
Integral na Espanha773. Pode-se dizer que o I Plano também é resultado da articulação, pressão
e diálogo da RECTP com o poder público, demonstrando a importância e necessidade da
criação dessa política pública.
Há anos, a Rede defende a necessidade de adotar uma Lei Integral para combater o
tráfico de pessoas, caracterizado por uma abordagem abrangente que englobe todas as
modalidades de tráfico, envolvendo todas as vítimas afetadas774.
A RECTP tem uma configuração e atuação independente do governo. Ela é voluntária
e se organiza de forma horizontal. Quase que ao mesmo tempo do início do enfrentamento ao

772
A presente pesquisa não teve a intenção de analisar profundamente a RECTP para verificar como ela desenvolve
suas atividades, como ela funciona, como e quem pode pertencer a ela, a transparência de suas atividades e
democratização das informações no âmbito da própria rede.
773
RED ESPAÑOLA CONTRA LA TRATA. Guía básica para la identificación, derivación y protección de
las personas víctimas de trata con fines de explotación. 2008. Disponível em: http://www.cruzroja.es/pls/
portal30/docs/PAGE/2006_3_IS/BIBLIOTECA/GUIA%20BASICA%20PARA%20LA%20IDENTIFICACI
ON%20Y%20DERIVACION%20DE%20VICTIMAS%20DE%20TRATA.PDF. Acesso em: 15 set. 2020.
774
Nesse sentido, aparentemente, essa Lei somente abordará aspectos relacionados a finalidade da exploração
sexual. “A intenção é colocar as vítimas do tráfico como sujeitos de plenos direitos, desenvolvendo medidas
para prevenir e processar as redes criminosas, bem como proteger e recuperar integralmente essas mulheres e
meninas. Tudo isto acompanhado de planos de formação para funcionários públicos com o objetivo de facilitar
a identificação e o atendimento às vítimas de tráfico com uma abordagem inclusiva, intercultural e de proteção.
O acordo governamental entre o PSOE e o PODEMOS enfoca o tráfico para exploração sexual, considerando-
o uma violação dos direitos humanos e uma das formas mais cruéis de manifestação da violência contra as
mulheres". EL CONFIDENCIAL. Irene Montero prepara una ley contra la trata y renuncia a las políticas
abolicionistas (25/02/2020). Disponível em: https://www.elconfidencial.com/espana/ 2020-02-25/montero-
igualdad-ley-trata-renuncia-politicas-abolicionistas_2468415/?utm_source=
facebook&utm_medium=social&utm_campaign=BotoneraWeb&fbclid=IwAR3h0jXFX6V2jhhZZ-
13xkaqAjZokJPwuq4p-rWrd8rk-ZZr8NhyNLgIyPQ. Acesso em: 25 fev. 2020.
346

tráfico de pessoas na Espanha (desde 2004/2005), a rede vem atuando na perspectiva de


colaborar para a construção do enfrentamento ao tráfico de pessoas, sempre encaminhando
relatórios ao Governo e às instâncias de monitoramento das normativas europeias, como a
coordenadora europeia e a relatora especial do tráfico de pessoas.
Ao longo destes anos, a rede tem comunicado ao governo suas preocupações derivadas
da falta de um enfoque claro no âmbito dos direitos humanos e na proteção das vítimas na luta
contra o tráfico de pessoas na Espanha, bem como em relação à implementação e
monitoramento do Plano Integral contra o Tráfico para Exploração Sexual. Percebe e promove
a necessidade das reformas legislativas necessárias, exercendo pressão sobre as instituições para
a transposição dos instrumentos internacionais relevantes ratificados pela Espanha. Neste
contexto, também tem avaliado as reformas legislativas para a adequação dos tratados
internacionais ratificados pela Espanha: a Reforma do Código Penal, da Lei de Asilo e de
Estrangeiros.
A Rede também tem atuado para melhorar as políticas e procedimentos em diferentes
âmbitos relacionados com as vítimas de tráfico para institucionalizar melhoras no âmbito da
proteção integral das vítimas) identificação, derivação a serviços adequados, assistência,
proteção e reparação dos direitos).
A RECTP manifestou sua preocupação quanto a elaboração de Planos sem um respaldo
jurídico que garanta suas ações e os faça exigíveis. Essa ponderação foi anterior ao II Plano
Integral (2015-2018), porém ainda hoje (2020) é uma preocupação da rede, uma vez que ainda
recomendam ao Governo a elaboração de uma Lei Integral contra o Tráfico de Pessoas, que
incorpore, de forma definitiva o enfoque em Direitos Humanos, a perspectiva de gênero e da
infância, que aborde todos os tipos de tráfico e todas as vítimas, que contemple todas as atuações
encaminhadas a proteção e recuperação das vítimas e que estabeleça um marco de obrigações
vinculantes, não dependentes do governo de plantão, e com uma disposição orçamentária clara
e comprometida. A Rede sustenta que a Lei Integral contribuiria para estabelecer um norte para
todas as administrações públicas, em seus diferentes níveis (nacional, autonômica e local),
assegurando a coordenação e coerência de todas as atuações e estabelecendo estândares
mínimos em todas as Comunidades Autônomas775.

775
RED ESPAÑOLA CONTRA LA TRATA DE PERSONAS. Informe de la Red Española contra la Trata de
Personas para la coordinadora europea de lucha contra la trata: visita oficial a España (26 y 27 de febrero
2015). 2015. p. 7. Disponível em: https://www.proyectoesperanza.org/wp-content/uploads/
2019/06/2015_INFORME-RECTP-para-COORDINADORA-EU-CONTRA-LA-TRATA.pdf. Acesso em: 15
fev. 2020. A RECTP pede que a Lei Integral contra o Tráfico de Pessoas estipule que todas as comunidades
autônomas devem inserir o tráfico de pessoas como uma forma de violência de gênero, padronizando esse
347

Nas entrevistas realizadas com as organizações da sociedade civil e todas as


entrevistadas compõe a RECTP reforçaram a importância das organizações para a detecção,
identificação, atenção e proteção das vítimas de tráfico.

Se não estivessem as OSCs praticamente não se detectaria nem se


identificariam vítimas, principalmente na dificuldade atual. As mulheres não
se identificam como vítimas. O processo de evolução da prostituição revela
que os clubes estão fechando e desaparecendo por pressão social.
Desaparecem os clubes, mas os pisos multiplicaram. A calle também está
desaparecendo. A prostituição está cada vez mais invisível. Para as
organizações e para os Corpos e Forças de Segurança.776 (entrevista OSC
especializada na Espanha).

As organizações são as que ainda têm acesso aos pisos, pois realizam um trabalho
sanitário, de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e isso permite que se possa
acessar essas mulheres.

5.4 Avanços e desafios da política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas

Com todas as críticas que podem ser feitas ao enfoque dado pela Espanha na política de
enfrentamento ao tráfico de pessoas, é inegável perceber uma evolução considerável na
construção da política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas. Há 14 anos atrás, quando
analisava por primeira vez esse mesmo processo de construção, o Brasil e a Espanha estavam
em momentos muito parecidos de construção de políticas de enfrentamento ao tráfico de
pessoas. Os dois países estavam elaborando, mesmo que com realidades, configurações de
estado e metodologias diferentes, seus I Planos que conduziriam aos primeiros passos de
enfrentamento ao tráfico de pessoas777.
No Brasil, a criação do Comitê Interministerial para a criação do I Plano foi resultado
de uma longa e democrática discussão para a elaboração da Política Nacional de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas, com uma fase de consulta pública à sociedade civil, o que possibilitou

entendimento e garantindo os mesmos direitos à todas as vítimas, independentemente de onde estiverem no


território espanhol.
776
“Si las OSC no estuvieran presentes, prácticamente no se detectarían o identificarían víctimas, especialmente
en la dificultad actual. Las mujeres no se identifican como víctimas. La evolución de la prostitución revela que
los clubes cierran y desaparecen por la presión social. Los clubes desaparecen, pero los pisos se han
multiplicado. La calle también está desapareciendo. La prostitución es cada vez más invisible. Para las
organizaciones y para los Cuerpos y Fuerzas de Seguridad.”
777
Ver em: TERESI, Verônica Maria. A cooperação internacional para o enfrentamento ao tráfico de
mulheres brasileiras para fins de exploração sexual: o caso Brasil - Espanha. Dissertação (Mestrado) -
UniSantos. 2007. Disponível em: http://biblioteca.unisantos.br/tede/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=61.
Acesso em: 10 set. 2020.
348

garantir a participação dessa na composição do Comitê Interministerial que elaborou o Plano.


Na Espanha o Plan Nacional de Acción contra la Trata de Personas estava sendo elaborado
pela Vice-Presidência, através de um grupo interministerial formado principalmente pelo
Ministério do Interior, Ministério da Justiça, Ministério da Educação e Ministério do Trabalho.
A sociedade civil estava aguardando a proposta que seria elaborada pelo governo para iniciar
os debates sobre aquela proposta. Sua participação limitou-se a entrega de um documento com
sugestões para a discussão do grupo que elaborou o Plano.

5.5 O Trabalho em rede: a cooperação internacional entre OSCs para retorno de mulheres
brasileiras na rota Brasil-Espanha

Após descrever como o Brasil e a Espanha têm construído seus regimes complexos
internos de enfrentamento ao tráfico de pessoas, parece oportuno e interessante verificar uma
prática que está sendo desenvolvida no âmbito da atenção às vítimas e que envolve a cooperação
das OSCs.
Há uma articulação entre as organizações que prestam atenção direta, que se encontram
em origem e destino, criando redes de atenção com a finalidade de realizar retornos mais
humanizados. Dessas práticas se consegue partilhar experiências e criar metodologias de
atenção. Essa tendência, muitas vezes é motivada pela necessidade específica surgida nos casos
concretos de atendimentos. Esse fenômeno se verifica também entre entidades espanholas e
brasileiras. Durante parte da pesquisa realizada na Espanha, pudemos ter acesso alguns atores
que compõem a RECTP e que vem articulando entidades espanholas e coordenando ações
conjuntas contra o enfrentamento ao tráfico já há bastante tempo.
Já há dez anos atrás, o elevado número de brasileiras em situação de prostituição
e/exploração sexual e/ou vítimas de tráfico, provocou a necessidade da articulação dessa rede
de atores espanhóis com os atores brasileiros. Naquele momento ainda se estava criando e
organizando a Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil, juntamente
com a articulação da rede SUAS. As OSCs ainda prestavam atendimento direto às vítimas ou,
em último caso, eram os atores que estavam capacitando e auxiliando na construção dessas
redes, principalmente no que se refere ao atendimento humanizado das vítimas778.

778
FEREIRA, Ofélia da Silva. Guia de Atuação no Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Orientações para Núcleos
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e aos Postos Avançados de Atendimento Humanizado ao Migrante.
Brasília, DF: Ministério da Justiça, 2013. p. 108.
349

Na perspectiva de possibilitar essa articulação, intercâmbio e troca de experiências entre


os atores espanhóis e brasileiros se realizou o “Seminário Internacional Articulación de la Red
Hispano-Brasileña en el contexto de la Atención a las brasileñas victimas de trata” (2008).
Deste seminário resultaram 22 propostas para melhorar a atuação dos atores na atenção das
vítimas de tráfico brasileiras no contexto espanhol e um Guia contendo os principais atores na
Espanha e no Brasil, responsáveis por atendimento e proteção às vítimas, entre eles, OSCs,
poder público, corpos de segurança, consulado.
Esse seminário permitiu que as redes se conhecessem e que trocassem experiencias e
demandas de origem e de destino. Quais as necessidades da rede de destino para poder
encaminhar uma vítima de tráfico ou uma migrante da forma mais humanizada possível? Quais
as necessidades da rede de origem para poder recepcionar e dar continuidade no atendimento
(se assim a mulher o desejar) a uma vítima de tráfico ou uma migrante da forma mais
humanizada possível? Este seminário foi muito importante para a percepção de que se é
fundamental estabelecer redes entre os países de destino e os respectivos países de origem. Cada
rede tem suas necessidades específicas e realidades de políticas específicas.
Outra questão essencial diretamente ligada com o tema da cooperação entre Brasil-
Espanha no que se refere à atenção e retorno das vítimas é de que estamos falando de retornos
de vítimas que desejam voltar ao Brasil, ou, em última análise, não podem refazer suas vidas
na Espanha por diversos motivos, entre eles, porque não conseguem regularizar sua situação
administrativa, não conseguindo trabalhar, nem se capacitar, nem mesmo tendo ajuda
econômica do Estado para sobreviver. Estamos diante daquelas mulheres que não são ou não
foram identificadas formalmente como vítimas de tráfico de pessoas. Relatos das OSCs
entrevistadas indicam que esse contingente de mulheres brasileiras atendidas são a grande
maioria. Muitas delas encaixam no perfil de vítimas de tráfico, mas, ou porque não desejam
colaborar com as autoridades espanholas ou porque mesmo colaborando, suas informações não
são suficientes para garantir a identificação formal, ou porque não preenchem os requisitos para
pedir asilo ou não se enquadram na condição de excepcionalidade anteriormente analisadas,
acabam ficando em condição de irregularidade documental. Nessas condições, mesmo que se
tente um tempo permanecer, muitas delas acabam retornando por não terem expectativa de
refazerem suas vidas na Espanha779. O posicionamento sobre os processos de retorno
voluntários nem sempre são vistos como garantidores de direitos das vítimas.

779
Tendo tido a oportunidade de conversar com muitas mulheres nessa condição de desejarem permanecer na
Espanha, mas não poderem por estarem em condição irregular é bastante angustiante. Ver a decepção dessas
350

Houve uma época em que houve muito retorno voluntário. Eu nunca fui muito
partidário de devolver uma pessoa. Se a pessoa está aqui é porque ali
previamente havia um processo migratório que lhe serviu aos traficantes para
captá-la. Não se está falando de mulheres sequestradas nas ruas. [...] Uma
mulher que inicia seu processo migratório e que é captada e traficada para
Espanha deve ser dada a opção de retornar ou de ficar. Devem ser dadas
ferramentas para que ela possa desenvolver esse processo migratório780.

Também estamos falando das mulheres que, por estarem em situação de irregularidade
documental, acabam sendo enquadradas na Lei de Estrangeiros e ficam, muitas vezes, nos
Centros de Internamento de Estrangeiros (CIE) até serem deportadas. Algumas delas eram
anteriormente atendidas por alguma OSC, seja por questões de saúde, seja por qualquer
acompanhamento que ali tinham. Sendo de conhecimento da OSCs que esta mulher foi detida
por irregularidade documental, pode-se tentar articular o retorno da mesma, da forma mais
humanizada possível. Nestes casos, a entidade deve tentar conseguir informações com a polícia
sobre o dia, o aeroporto pelo qual esta mulher será deportada e assim, articular com a rede de
atores brasileiros para a recepção e eventual atenção no Brasil.
No caso das mulheres que retornam por um “Programa de Retorno Voluntário”, a
organização desse retorno é feita pela OSC. Geralmente a passagem é financiada pelo Programa
de Retorno Voluntario coordenado pela OIM e financiado pela Espanha. Previamente ao
retorno, a OSC entra em contato com o PAAHM e/ou alguma organização da sociedade civil
no Brasil e articula o retorno e a possível recepção da vítima e encaminhamento ao seu lugar
de origem.
Muitas questões precisam ser resolvidas previamente. Se a mulher retornada não
permanecer na cidade do aeroporto onde ela retornará, é preciso saber se: ela já tem a passagem
até origem; se ela terá dinheiro para pagar seu retorno à origem; ou se o PAAHM terá que
organizar esse retorno à origem, inclusive buscando o financiamento para o mesmo. Geralmente
a OSC envia previamente um relatório técnico de atendimento para que a rede brasileira possa
se preparar para a acolhida781.

mulheres que desejam ali refazer suas vidas e perceber que são tolhidas dessa possibilidade é, no mínimo,
angustiante e doloroso. Ninguém deveria ser impedido de permanecer em um lugar que deseje ficar.
780
Entrevista OSC falando sobre os retornos voluntários realizados. “Hubo un momento en que hubo muchos
retornos voluntarios. Nunca he sido muy partidario de la devolución de una persona. Si la persona está aquí es
porque anteriormente hubo un proceso migratorio que sirvió a los traficantes para captarla. No estamos
hablando de mujeres secuestradas en la calle. [...] Una mujer que inicia su proceso migratorio y es captada y
tratada a España debe tener la opción de regresar o quedarse. Hay que darle herramientas para que pueda
desarrollar este proceso migratorio.”
781
Importante que se diga que pouquíssimos casos de retorno de brasileiras seguem esse padrão. Muitas acabam
retornando sem que a rede brasileira acompanhe ou tenha conhecimento do caso, principalmente aquelas que
decidem voltar sem apoio de OSC.
351

Quando as vítimas são retornadas por estarem nos CIEs, e quando e se as OSCs ficam
sabendo, precisam conseguir a informação de quando e por onde essa vítima retornará, fazendo
o contato com os atores brasileiros. Nesses processos de retorno, a Policia Nacional deve
comunicar o Consulado do Brasil (em Madri ou Barcelona) daquela deportação. Seria muito
importante se o Consulado do Brasil fizesse esse contato com a Rede Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de pessoas, mas nunca aconteceu, uma vez que o Consulado somente
recebe a informação da deportação após o retorno782. Toda vez que um estrangeiro é deportado
é feita uma comunicação ao respectivo consulado. Porém, foi destacado pela autoridade
consular que os expedientes de deportação chegam, muitas vezes, depois da deportação e, não
indicam que aquela pessoa pode ser vítima de tráfico, impossibilitando uma atenção mais
particular por parte do consulado783.
Ademais, a ausência de conhecimento do próprio consulado brasileiro na Espanha de
que se está diante de uma vítima de tráfico, impossibilita a comunicação e articulação com as
autoridades brasileiras responsáveis pela atenção interna (MRE, polícias de imigração
brasileiras, OSCs), na tentativa de prestar uma atenção especializada quando do retorno dessa
vítima ao Brasil
Outro aspecto que deve ser levado em consideração no que se refere à atenção das
vítimas envolve a articulação das sub-redes nacionais, para a atenção qualificada das vítimas
de tráfico ou mulheres em condição de vulnerabilidade que retornam ao Brasil.

5.5.1 Fluxo de cooperação inter-redes

A atenção qualificada nos aeroportos e, principalmente nos aeroportos de Guarulhos e


do Rio de Janeiro, principais aeroportos de entrada e saída do país, é fundamental. O
conhecimento destes serviços pela rede de atores espanhola é necessário para garantir uma
recepção qualificada da mulher retornada. Por outro lado, é fundamental que os aeroportos

782
Informação confirmada no Consulado do Brasil em Madri.
783
Entende-se o motivo pelo qual não há nenhuma informação no expediente quando se tratar de possível vítima
de tráfico, até porque ela é deportada pela infração da legislação de estrangeiros e não por ser vítima de tráfico.
Porém, considera-se que a informação da brasileira no CIE deve ser dada antes do retorno, até para que o
Consulado possa verificar possível necessidade da migrante, antes do retorno. Por exemplo, muitas vezes essas
mulheres são apreendidas e levadas para o CIE com a roupa do corpo. Todas as suas coisas não são levadas até
essa mulher, que retorna sem nada. Quando a OSC toma conhecimento dessa mulher no CIE, geralmente suas
coisas podem ser encaminhadas para retornar com ela. Mas isso somente ocorre quando a OSC fica sabendo
dessa retenção e, a polícia informa quando essa mulher retornará.
352

brasileiros tenham capacidade de articular e organizar o retorno humanizado de uma vítima de


tráfico ou de uma migrante em condição vulnerável com as redes locais.
A cooperação inter-redes somente funciona quando se tem conhecimento prévio e se
articula antes do retorno da vítima para que a rede brasileira possa se preparar e organizar os
serviços e se adaptar aos potenciais demandas dessa mulher esperada. Nesse sentido, o lugar de
cooperação ocupado pelas organizações da sociedade civil vem sendo determinante para a construção
de solidariedades, cooperações e políticas sociais, tanto no âmbito local quanto no internacional. Os
novos espaços de articulação, discussão e atuação trazem para a cena mundial “novos atores” que
passam a contracenar com os Estados e com organizações em uma relação de autonomia e
interdependência784.
O âmbito da atenção às vítimas de tráfico é essencial no trabalho desenvolvido de forma
cooperada para evitar maiores violações aos direitos dessas vítimas que, muitas vezes, já se
encontram em situação de vulnerabilidade.
Muitas vezes, a incompreensão do fenômeno envolvendo o crime de tráfico de mulheres
para fins de exploração sexual, aliado a uma legislação que não atenda essa condição particular
da vítima, resulta pela reiterada violação dos direitos dessas mulheres.
Entende-se que a atenção às vítimas brasileiras deve ser prestada tanto no país de destino
como no país de origem (no caso do retorno), revelando mais um motivo da necessidade de
atenção cooperada.
A rede de atores espanhóis precisa informar a rede de recepção qualificada dos
aeroportos para que o retorno e a organização desse fluxo de atendimento e deslocamento da
vítima internamente (se assim for) seja realizado da maneira mais humanizada possível.

784
Ver em: BADIE, Bertrand. Um mundo sem soberanía: os Estados entre o artifício e a responsabilidade.
Lisboa: Instituto Piaget, 2000. Ver ainda em: ECHART, Enara. Um novo ator nas relações entre a Europa e a
América Latina: a participação das forças sociais globais. In: MILANI, Carlos R. S.; GILDO DE LA CRUZ,
María Gabriela (org.). A política mundial contemporânea: atores e agendas na perspectiva do Brasil e do
México. Salvador: EDUFBA, 2010.
353

Figura 16. Fluxo de Retorno de vítima de tráfico Espanha-Brasil


ESPANHA BRASIL

ORGANIZAÇÃO Estabelecer contato prévio para articular retorno


SOCIEDADE CIVIL
ESPANHA

POLÍCIA DE RECEPÇÃO
IMIGRAÇÃO QUALIFICADA SUB-REDE DE
CONSULADO
BRASILERIA AEROPORTOS ATENÇÃO
BRASIL ESPANHA
PAAHM /NETP (CREAS/CRAS/OSC)

Informar quando do retorno da vítima


POLICIA NACIONAL
ESPANHOLA

Fonte: Elaboração Própria.

A experiência de Camomila é bastante interessante e permite evidenciar a organização


da rede espanhola com a rede brasileira de atenção, neste caso, principalmente articulando-se a
rede de organizações da sociedade civil.
354

5.5.2 A experiência de retorno de Camomila

Atravessei o mar, um sol


Da América do Sul me guia
Trago uma mala de mão
Dentro uma oração, um adeus
Eu sou um corpo, um ser, um corpo só
Tem cor, tem corte
E a história do meu lugar, ô
Eu sou a minha própria embarcação
Sou minha própria sorte
(música Um Corpo no Mundo -Luedji Luna)

Camomila, mulher morena como ela se autodeclara, originária de Naviraí, Mato Grosso
do Sul, é hoje uma mulher de 40 anos, solteira, vive em Goiânia (GO) com seu cãozinho
“Pulguinha”. Há quatro anos (2016) retornou da Espanha pela articulação do programa
Vagalume (Santiago de Compostela-ES) com o Projeto Resgate (GO) financiado pelo Programa
de Retorno Voluntário. Apesar de ter uma família adotiva que a criou, não mantém contato,
desde antes do seu retorno.
Ela diz que não teve infância. Revelou diversas formas de violência vivenciadas após o
falecimento de sua mãe adotiva: violência psicológica e abusos sexuais (“tocamentos”, como
ela diz) sofridos de quem a tinha que cuidar. Começou a trabalhar muito nova, com 14 anos, no
serviço doméstico. Com 15 anos viajou sozinha para o Paraná, para trabalhar de doméstica.
Cuidava da casa de uma senhora e em um ateliê de costura. Foi “com uma mochila”. Depois
trabalhou em uma sorveteria. De lá foi trabalhar em Guarulhos também como doméstica e
cuidadora de duas crianças. Em contato com sua irmã adotiva, que estava morando em Minas
Gerais, decidiu morar com ela e estudou dois anos em uma escola particular. Por diversas
dificuldades acabou voltando para Campo Grande, estava com 19 anos e conseguiu trabalho
em uma usina de cana de açúcar.
Nessa ocasião, morava sozinha, terminou ensino médio por meio de supletivo.
Trabalhava de dia e estudava à noite. “Houve uma época da minha vida que eu me quedei a
base de nissin miojo. Era comida mais barata, e ovo.”
Foi nessa época, 2002, que Camomila recebeu o primeiro convite para ir para a Espanha.
“Eu conheci uma moça que me disse que vinha pra Espanha pra trabalhar e ela me contou a
verdade.... vinha para prostituição só que tinha que dizer que era para uma fábrica de couro”.
“Acabei não vindo. Prestei vestibular para educação física, minha paixão, e fiquei no Brasil.
“Quando foi em 2003 acabei decidindo vir porque eu não dava conta de trabalhar, pagar o
aluguel, pagar ônibus, livros, fotocópias de livros e essas coisas.”
355

O plano de Camomila era ficar seis meses, guardar dinheiro e montar uma academia de
ginástica no Brasil. Ela acabou ficando 13 anos na Espanha. “Sim, eu sabia, mas eu não
imaginava que era o inferno que era.” [...] “Eu sei que tardei 15 dias pra chegar nos homens e
pra chegar nos homens tive que meter coca. Foi quando eu comecei a me drogar. Horrível!”
A dívida de Camomila era de 1700 euros, mais os 90 euros por semana para o piso onde
morava. Ela trabalhava no clube morava em um apartamento, disponibilizado pelo dono do
clube, com mais seis mulheres. Foi ameaçada pelo dono do clube para pagar a dívida ou ele
mataria sua família. Demorou três meses para pagar sua dívida.
Camomila saiu de Campo Grande (MS), São Paulo, Paris (França), Bilbao (Espanha),
Cantábria (carro).

Figura: 18. Trajeto Camomila: Campo Grande (MS) – São Paulo (SP) – Paris (FR).

Fonte: Elaboração Própria. Google Maps


356

Figura: 20. Trajeto Camomila: Paris (FR) – Bilbao (ES).

Fonte: Elaboração Própria. Google Maps

Figura: 19. Trajeto Camomila: Paris (FR) – Bilbao (ES).

Fonte: Elaboração Própria. Google Maps

Após pagar a sua dívida, ficou mais quatro meses na prostituição: de La Veja (Cantábria)
para Pontevedra (Galícia) e depois para Tarragona (Catalunha), em clubes da mesma dona.
Uma vez em situação de irregularidade documental, não restavam muitas opções para trabalhar.
357

Figura: 21. Localidades onde Camomila exerceu prostituição.

Fonte: Elaboração Própria. Google Maps

Camomila teve alguns relacionamentos na Espanha, abusivos. Trabalhou em um bar,


em uma churrascaria, como camareira em um clube, quando foi autuada pela polícia por estar
em situação irregular e teve uma ordem de expulsão expedida (2005). 785
A partir desse
momento, Camomila não conseguia mais nenhum tipo de trabalho, tendo que voltar a se
prostituir. Com receio de ser autuada novamente, ficou em Santiago de Compostela. Passou a
não aceitar aquela condição, entrou em depressão e acabou conhecendo o Programa Vagalume
(Santiago de Compostela) por intermédio de uma moça brasileira que estava com ela em um
clube.
Como ela disse, juntou bastante dinheiro com a prostituição, chegou a juntar nove mil
reais e mandou para o Brasil, gastando logo em seguida esse dinheiro. Chegou a ajudar sua irmã
adotiva com dinheiro. O que ganhava, gastava: com coisas para ela e com cocaína.

[...] tu vai se esfriando, teu coração vai virando pedra, entende? Tem um
momento que você para, sabe de tanta gente que quer te fazer dano, tu vai
virando pedra, aí você começa a trabalhar, começa a ver que o dinheiro tá
entrando e vai te dando a gana de ter mais dinheiro, mais dinheiro e mais
dinheiro.

785
Nesses procedimentos de expulsão, a polícia dá ordem de expulsão, mas nesse primeiro momento é dado um
prazo para que o imigrante em situação irregular saia do país. A partir daí, se a pessoa foi autuada novamente,
pode ser retida em um Centro de Internamento de Estrangeiros (CIE) e ser deportado.
358

Uma época trabalhou em um clube, dormia lá. “Trabalhava e dormia, só isso. Chegava
às 6hs da manhã, dormia, acordava e saia. Comia só a noite. No almoço eu estava dormindo.”
Em um de seus relacionamentos foi pedida em casamento. Nessa época ela teve que
voltar ao Brasil para pegar seus documentos para poder casar. Revela que sua família, vendo-a
em outra condição, a tratou melhor, afinal, “ela vai estar na Espanha, vai estar em outro país.”
No retorno, Camomila ingressa no Espaço Schengen por Porto (Portugal). Seus planos não
deram certo. Um pouco depois de retornar, seu relacionamento terminou.
Sua condição financeira foi piorando, pois ela não conseguia trabalhar pela situação de
irregularidade documental. Entre relacionamentos abusivos, ela retomou o contato com o
Programa Vagalume pedindo ajuda. Acabou sendo acolhida em várias OSCs encaminhadas
pelo Programa Vagalume. Em muitos momentos pensou em retornar ao Brasil, mas acabava
sempre desistindo. Ela queria mesmo ficar na Espanha e refazer sua vida lá. Já em 2016 ela
procura o Programa Vagalume novamente pedindo ajuda para retornar ao Brasil.
Camomila nunca desejou realmente voltar ao Brasil, mas sem documentação para
permanecer e com uma ordem de expulsão aberta, ela poderia ser deportada a qualquer
momento. Camomila se encontrava, naquele momento, com um quadro de depressão,
indecisão, se sentindo culpada pela situação que estava passando786. Assim, iniciaram-se os
trâmites para organizar o retorno dela. Foi solicitada uma vaga no Programa de Retorno
Voluntário, coordenado pela OIM e seu retorno foi articulado pelo Programa Vagalume. A
recepção de Camomila no Brasil, foi realizada pelo NETP de Goiânia e pelo Projeto Resgate,
que prestou apoio a Camomila. Ela foi recepcionada em Goiânia e se iniciou um
acompanhamento e restabelecimento da mesma. Ela foi levada para uma pensão e se garantiu
uma ajuda de custo mensal para pagar seu aluguel e manutenção. Essa ajuda e custo foi mantida
por um ano e meio. Curiosamente, essa ajuda de custo não vinha do Estado brasileiro e sim de
fontes próprias da OSC Resgate.
Além disso, iniciou-se um acompanhamento para inserir Camomila laboralmente. Ela
começou a trabalhar em uma empresa prestadora de serviços de limpeza, por intermédio da
irmã de uma mulher brasileira que está na Espanha. Permanece nesse trabalho por quase dois
anos. Camomila ainda sofre com questões da depressão e acaba pedindo as contas, fica um
tempo sem trabalho e hoje trabalha na área de limpeza de um Pet Shop. Há alguns anos iniciou
um curso de estética (financiado pela OSC Resgate), mas por não conseguir administrar o tempo
do trabalho e estudo, deixou o curso.

786
PROGRAMA VAGALUME. Relatório elaborado pela equipe técnica do Programa Vagalume sobre situação
de A.J.A. 2016.
359

Camomila está no Brasil porque não lhe foram garantidas condições legais de
permanecer na Espanha. Não há dúvidas de que Camomila foi vítima de tráfico, mesmo que,
com o passar dos anos na Espanha, sua condição de vítima foi sendo modificada e ela passou a
exercer prostituição de forma “autônoma”, de alguma maneira ocultando aquela situação de
tráfico.
A história de Camomila desperta muitas reflexões e dúvidas, em vários âmbitos na
proteção e atenção. Estaria a Espanha cumprindo com suas obrigações de garantir o
restabelecimento de suas vítimas de tráfico? Estaria a Espanha protegendo e atendendo suas
vítimas por meio de um enfoque em direitos humanos? A impossibilidade de permanência de
Camomila na Espanha não estaria violando seus direitos? No caso de Camomila fica evidente
perceber que a atual normativa que exige a colaboração da vítima com as autoridades
espanholas, mesmo sem se levar em conta o receio da vítima em ter seus familiares ameaçados,
vulnerabiliza, violenta, criminaliza as mulheres sejam vítimas de tráfico ou estejam vítimas de
tráfico naquele momento. Teria Camomila deixado de ser vítima de tráfico de pessoas por não
dever mais dinheiro a uma rede de tráfico? Em que momento as vítimas se libertam de uma
rede de tráfico? Em que momento elas podem ser entendidas como
empoderadas/sobreviventes?
A atenção prestada pelas OSCs tem suas limitações, principalmente as limitações que o
Estado impõe, como é o caso da criminalização das migrantes. É possível falar de sobrevivente
quando essa atuação das OSCs não consegue restabelecer os direitos das vítimas? Quando uma
vítima é considerada sobrevivente? Em que momento ela deixa de ser vítima e passa a ser
sobrevivente? No resgate? Na possibilidade do direito à residência ou trabalho? Quando
consegue uma ajuda econômica? Quando se consegue a condenação do traficante? Ou quando
se consegue uma indenização pelos danos sofridos? São questões às quais não encontro
respostas fáceis.
Talvez, e somente a título de reflexão, no caso de Camomila, se ela tivesse tido o direito
a residir e trabalhar na Espanha, sua vida, trajetória e restabelecimento seria muito diferente.
Camomila disse que na Espanha: “eu me sentia bem na Espanha. Queria ter conseguido meus
papéis, minha documentação, queria construir minha vida lá. [...]. Queria poder entrar em uma
auto-escola, queria poder conduzir, queria poder voltar a estudar.”
De outro lado, o Brasil tem cumprido as suas responsabilidades de garantir direitos de
seus cidadãos? Camomila foi vítima de uma série de violências desde a infância, sem que
nenhum ator público tenha interferido para garantir seus direitos. Sofreu abusos psíquicos,
sexuais, fez viagens interestaduais de ônibus sozinha, foi vítima de trabalho infantil (trabalho
360

doméstico, em um ateliê de costura) sem que ninguém a percebesse, como se fosse invisível.
Nenhum ator público percebeu? Viu, escutou essa menina? Ela passou invisível por diversas
violências institucionais toda a sua infância e adolescência. Ser vítima de tráfico foi mais uma
das violências sofridas por ela. Quais vulnerabilidades se deseja elencar? Quais delas são
consideradas para caracterizar a vulnerabilidade que leva ao tráfico de pessoas?
Em que medida pode-se verificar que Camomila foi atendida levando-se em conta um
enfoque em direitos?
Pode-se dizer que, no caso de Camomila, a cooperação entre as OSCs e a Rede Nacional
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil, foi fundamental para pensar e coordenar o
seu retorno de maneira a acompanhar essa mulher-menina que sempre foi invisível.

5.6 Breves conclusões finais do Capitulo 5: avanços e desafios da política pública de


enfrentamento ao tráfico de pessoas

Este capítulo permitiu identificar o regime de enfrentamento ao tráfico de pessoas que


vem sendo construído na Espanha, apontando seus avanços e desafios. Através da Tabela 16,
pode-se analisar como cada governo foi contribuindo para a construção de um regime complexo
de enfrentamento ao tráfico de pessoas, é inegável perceber que a Espanha vem construindo
uma política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas e que diversos avanços foram
conquistados.
No entanto, apesar da constatação de grandes avanços, na regulamentação e na prática
de proteção das vítimas, verifica-se uma forte tensão derivada dos diferentes enfoques vigentes
que distorcem a proteção efetiva dos direitos humanos. Por um lado, a abordagem de migração
e segurança, a luta contra a migração irregular e o crime organizado não só prejudica o objetivo
de proteger as vítimas do tráfico, como impede que o fenômeno seja encarado em toda a sua
complexidade, amplitude e alcance. Por outro lado, a dispersão regulatória, a distribuição de
competências e poderes dificultam ainda mais o trabalho daqueles atores que devem assistir e
proteger as vítimas.

Tabela 19. Política Pública espanhola de enfrentamento ao tráfico de pessoas x governos


(2000/2020).
361

José Maria Aznar Mariano Rajoy Pedro Sanchez


José Luiz R. Zapatero
1996-2004 2011-2018 2018-
2004-2011
PP PP PSOE
PSOE

José Maria Aznar José Luiz Rodriguez Zapatero Mariano Rajoy Pedro Sanchez
1996-2004 2004-2011 2011-2018 2018-Atual
O governo assinou e ratificou o - Espanha adere Convênio de - Diretiva 2011/36/UE sobre - Anteprojeto de Lei Orgânica
Protocolo de Palermo Varsóvia (2009) prevenção e luta contra tráfico de Integral de Liberdade Sexual,
- Alteração Normativa Tráfico e pessoas e proteção às vítimas por parte do Governo Central, a
Estrangeiros (2010) - Protocolo Marco de proteção às
tentativa de incorporar o tráfico
- Lei de Asilo (2009) vítimas de tráfico de pessoas (2011)
de pessoas como uma forma de
-I Plano Integral de Lucha Contra la - Diretivas 2012/29/EU e 2013/33/UE
violência de gênero (2020)
Trata de Seres Humanos com Fines de que estabelecem normas mínimas
Explotación Sexual (2009-2012) relativas aos direitos, ao apoio e à
- Fase de elaboração do Plano
- Diretiva 2011/36/UE sobre proteção das vítimas da criminalidade
prevenção e luta contra tráfico de - Relator Nacional do Tráfico de Estratégico contra o tráfico de
pessoas e proteção às vítimas Pessoas pessoas (2020)
-II Plano Integral de Lucha Contra la
Trata de Seres Humanos com Fines de
Explotación Sexual (2015/2018)
-Lei Estatuto de Vítima

Fonte: Elaboração Própria


362

Questiona-se se as normas estão sendo aplicadas de maneira efetiva para garantir os


direitos das vítimas. Se por um lado as normas existem, por outro, elas próprias criam brechas
que acabam prejudicando o direito das vítimas, muitas vezes, fendas estas criadas para atender
abordagens diversas da garantia de direitos. Nesse sentido, o procedimento de identificação
formal das vítimas é um exemplo de fenda no direito espanhol. A lei garante a proteção às
vítimas, mas estabelece um mecanismo que acaba por colocar em xeque a efetiva garantia de
proteção e assistência às vítimas de tráfico. Em nome da criminalização do tráfico, as vítimas
nem sempre vêm em primeiro lugar. Se a Espanha deseja aprimorar sua política de
enfrentamento ao tráfico em uma perspectiva de direitos humanos, entre outros aspectos,
precisa colocar a pessoa a ser protegida como prioridade e centralidade da ação de todos os
agentes envolvidos no processo de forma permanente. Para tanto, é necessário primordialmente
desvincular definitivamente a identificação das vítimas da colaboração, além de modificar o
ator responsável pela identificação formal, deve permitir efetivamente e facilitar a presença de
uma organização especializada no momento da identificação de uma vítima, assim como em
todos os momentos que a vítima entender necessário.
Ademais, outro aspecto que deve ser considerado é a limitação da abordagem da política
pública desenvolvida: muito foi feito para o enfrentamento do tráfico de mulheres para fins de
exploração sexual, mas ainda há muito a se fazer para as outras modalidades, mesmo elas sendo
reconhecidas pela normativa interna.
Entende-se que a proposta de Lei Integral que englobe todas as modalidades de
exploração do tráfico de pessoas e determine as competências, limites e participação dos atores
responsáveis pelo enfrentamento ao tráfico de pessoas e, principalmente, atores do âmbito da
proteção e assistência às vítimas é o principal e próximo passo a ser dado pela Espanha,
inclusive porque são recomendações dadas pela própria UE e grupo GRETA em seu último
informe de avaliação da Espanha (2018).
Na perspectiva do atendimento às vítimas mulheres outra mudança fundamental que
deve ser priorizada pela Espanha é o reconhecimento do tráfico de pessoas como uma forma de
violência de gênero por todas as Comunidades Autônomas, o que permitiria inserir as vítimas
de tráfico a programas e benefícios de uma vítimas de violência de gênero, melhorando sua
capacidade de se reorganizar e reconstruir, inclusive com benefícios financeiros que permitiram
o início do restabelecimento e empoderamos econômico dessas mulheres.
Os últimos passos dados na construção deste enfrentamento ao tráfico de pessoas foram:
1. o compartilhamento do Anteprojeto de Lei Orgânica Integral de Liberdade Sexual, por parte
do Governo Central com a RECTP. Essa proposta responde em parte aos anseios dos atores que
363

atuam no enfrentamento ao tráfico de pessoas: não aborda todas as modalidades do tráfico de


pessoas, não desvincula a identificação formal da vítima à colaboração com a política
(principalmente as mulheres estrangeiras), entre outros aspectos; 2. a elaboração de um novo
Plano Estratégico contra o tráfico de pessoas. Esse documento ainda não é público, mas espera-
se principalmente que o Plano abarque todas as modalidades de tráfico e que, principalmente
modifique a identificação formal das vítimas, garantindo-lhes proteção e atenção efetivas,
principalmente independentemente da sua condição administrativa e a médio e longo prazo.
364

CAPÍTULO 6 - A CAMINHO DA CONSTRUÇÃO DE UM REGIME BASEADO NO


ENFOQUE EM DIREITOS HUMANOS?

A essência dos Direitos Humanos é o direito a ter direitos.


Hannah Arendt

A luta pelos direitos humanos na humanidade não foi, nem é linear787. Enfrentar um
fenômeno como o do tráfico de mulheres exige mais do que legislações tipificando crimes ou
criando protocolos de atuação. A luta pelos direitos das vítimas de tráfico passa principalmente
por uma mudança na forma de compreender e analisar a desigualdade e a falta de equidade para
com as mulheres na ordem internacional, nas relações econômicas, nas relações de produção.
Exige uma análise histórica e crítica mais estrutural do sistema socioeconômico ao que estamos
inseridos, que nos permita compreender as contradições existentes e refletir sobre suas práticas.
A desigualdade não será solucionada enquanto houver exploração e, para que não haja
exploração é importante superar o modelo capitalista e suas mais perversas consequências. Na
lógica atual naturaliza-se a exploração de um país sobre o outro, de um gênero sobre o outro,
de uma classe sobre a outra, de uma cor sobre a outra, vulnerando pessoas e gerando
exploradores e explorados.
Analisar o fenômeno do tráfico de pessoas de forma fragmentada, desviando e
priorizando dimensões economicistas, jurídicas, em detrimento das dimensões históricas,
sociais e políticas impede que olhemos conscientemente de frente para a construção de
caminhos que promovam a reflexão, a dialética. Ou seja, que no mínimo, permitam visibilizar
as contradições do sistema.
Ter consciência de que esse é o plano de fundo no qual o enfrentamento ao tráfico de
pessoas acontece é resiliente e ao mesmo tempo estimulante. Resiliente porque nos coloca
diante das limitações existentes, sem gerar expectativas e romantizações sobre a realidade e o
enfrentamento, permitindo potencializar as ações, no que se pode, nesse momento, modificar.
A construção se dá a passos pequenos, sempre tendo como centro almejado, a pessoa humana
no gozo pleno de direitos. Esse pano de fundo é a faísca necessária para aqueles que sonham e
almejam com um outro mundo possível. Um mundo que se preocupe e valorize por cada vida
humana.

787
ARENDH. Hannah. Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. Tradução Roberto
Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Ver também: BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad.
Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
365

Nesse sentido, pensar um regime que se baseia no enfoque de direitos é colocar a pessoa
humana no centro, e sua dignidade como valor a ser perseguido. É um regime que organiza e
comanda todas as práticas nessa direção. É garantir uma visão interdisciplinar centrada na
complexidade, na multidimensionalidade e na multicausalidade sobre o fenômeno do tráfico de
pessoas.
A abordagem baseada em direitos humanos pode ser definida como um “marco
conceitual para o processo de desenvolvimento humano que, do ponto de vista teórico, se baseia
nas normas, princípios e padrões internacionais de Direitos Humanos, e do ponto de vista
operacional está orientado para a promoção e proteção dos Direitos Humanos”788 Também pode
ser conceituado como “a discussão jurídica e os esforços por traduzir as normas (internacionais
de direitos humanos) em ações de política institucional e de controle social.”789. Seu principal
objetivo é, por meio da elaboração de políticas públicas, permitir avanços na realização
progressiva dos direitos humanos.
O enfoque em direitos exige alguns compromissos que levem ao desenvolvimento
humano, uma sociedade livre de violência e exploração, sendo fundamental as relações
pautadas pelo respeito, apoio mútuo, solidariedade e não-discriminação. Nesse sentido, o
enfoque em direitos defende a realização de transformações políticas, jurídicas e de paradigma
para a ação coletiva, seja para combater o problema, quanto para promover proteção e atenção
integral às vítimas de tráfico, gerando uma política antitráfico em nível global, com a primazia
dos direitos humanos790.
No âmbito do tráfico de pessoas, o enfoque em direitos coloca a dignidade humana como
o principal bem a ser protegido, com os direitos humanos das pessoas traficadas sendo o centro
de todos os esforços para prevenir e reprimir o crime, proteger, assistir e reparar os danos das
vítimas. Nessa perspectiva, o enfrentamento ao tráfico se dá, a partir de ações pós-violação,
mas principalmente, na garantia do exercício dos direitos humanos791.

788
DE BLAS, Alícia García. El comienzo es siempre hoy: incorporando el enfoque basado en derechos humanos
a la educación para el desarrollo. Red EnDerechos. 2012. p. 18. Disponível em: https://www.intered.org/es/
recursos/recursos-educativos/el-comienzo-es-siempre-hoy-incorporando-el-enfoque-basado-en-derechos.
Acesso em: 15 set. 2020. “un marco conceptual para el proceso de desarrollo humano que desde el punto de
vista teórico está basado en las normas internacionales, principios y estándares de Derechos Humanos y desde
el punto de vista operacional está orientado a la promoción y la protección de los Derechos Humanos”
789
GÜENDEL, Ludwing: Por una gerencia social con enfoque de derechos. 2003. p. 2. Disponível em:
www.iigov.org/documentos/?p=3_0108. Acesso em: 15 out. 2020.
790
ALVAREZ, V. et al. El enfoque de derechos: una oportunidad para dar protección real y efectiva a las víctimas
de trata. In: AGULLO, Esteban Tomás et al. (coord.). Mujeres e inclusión social: Investigación y estrategias
de Innvación y transformación social, 2020. p. 43-45.
791
RAMOS, Nuria Cordero. Trata con fines de explotación sexual. Derechos humanos que maltratan a las
humanas. Gazeta de Antropología, 30, 09, 2014. Disponível em: https://digibug.ugr.es/handle/10481/33816.
Acesso em: 15 out. 2020.
366

Essa abordagem exige uma visão crítica/comprometida dos direitos humanos, exigindo
a obrigação dos Estados de fornecer mecanismos eficientes para evitar a impunidade e criar
proteção efetiva para as pessoas exploradas. Para tanto é necessário um ambiente institucional,
normativo e cultural claramente orientado para as pessoas, particularmente aquelas mais
vulneráveis pelas condições de pobreza e exclusão, protegidas da exploração e do tráfico de
pessoas. A ética dos direitos humanos contempla no outro, um ser merecedor de igual respeito,
dotado do direito a desenvolver suas potencialidades humanas de forma livre, leve, autônoma
e plena792.
O olhar a partir da teoria crítica dos direitos humanos busca compreender as situações
de discriminação, assim como as bases estruturais que as produzem. No âmbito do tráfico de
pessoas, a teoria crítica dos direitos humanos permite alargar a perspectiva de análise, tornando
mais complexa a visão oferecida pela abordagem normativa, proporcionando outros elementos
que vão além, como garantias reais e eficazes793. Significa interromper o processo de tráfico de
pessoas permitindo que a pessoa deixe de ser coisificada ou tratada como mercadoria de
consumo ou intercâmbio, já que isto viola seus direitos inerentes e subtrai sua condição humana.
Significa criar mecanismos que garantam a dignidade do ser humano como inalienável.
Percebe-se como este enfoque de direitos é diverso do enfoque normativo, em que predomina
a centralidade do Estado, onde o tráfico de pessoas é uma ameaça a sua segurança nacional.
Neste não é possível colocar a pessoa como o centro de todas as ações. O Estado está acima de
qualquer interesse ou direito pessoal e deve proteger seu território e suas fronteiras794.
Como essa abordagem dos direitos tem a centralidade na pessoa humana, para a garantia
da efetividade dos direitos exige estratégias que contemplem a igualdade social, a discriminação
positiva, a participação e o empoderamento como orientadores das políticas públicas. Somente
com essa abordagem é possível garantir resultados melhores e mais sustentáveis no combate ao
tráfico de pessoas, especialmente para mulheres com fins de exploração sexual795.
O enfoque em direitos percebe o tráfico de pessoas como uma violação dos direitos
humanos e assim, uma ameaça à segurança humana, tendo como perspectiva a inclusão social

792
ÁLVAREZ, Vanesa. et. All. La trata de personas desde el Enfoque de Derechos: de la definición teórica a la
acción práctica. FES. Federación Española de Sociología. 2016. Disponível em: http://www.fes-
sociologia.com/files/congress/12/papers/5346.pdf. Acesso em: 15 out. 2020
793
GALLARDO, Helio. (2010). Teoría crítica y derechos humanos. una lectura latinoamericana. Revista de
Derechos Humanos y Estudios Sociales (REDHES), año II, 4. Disponível em:
http://www.derecho.uaslp.mx/Documents/Revista%20REDHES/N%C3%BAmero%204/Redhes4-03.pdf.
Acesso em: 20 out. 2020.
794
SILVA, Waldimeiry Correa. Regime internacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas: avanços e
desafios para a proteção dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
795
ABRAMOVICH, Victor. Una aproximación al enfoque de derechos en las estrategias y políticas de desarrollo.
Revista de la CEPAL, Santiago, n. 88, p. 35-50.
367

das vítimas. Essa abordagem pretende favorecer o empoderamento das mulheres como titulares
de direitos e a realização das responsabilidades dos titulares de obrigações, gerando espaços de
advocacy, mobilização e participação que transformam as relações de poder796.
A perspectiva da orientação estratégica no Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas é
fundamental para a construção das políticas públicas internas em cada estado nacional. Os
direitos humanos violados pelo tráfico de pessoas têm sua proteção pelo atual Direito
Internacional dos Direitos Humanos
A proibição do tráfico de pessoas está incluída no primeiro documento sobre direitos
humanos elaborado pela ONU, onde estão listados os direitos básicos e as liberdades
fundamentais a que todo ser humano tem direito, sem qualquer discriminação: a Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948797. Além dessa normativa várias outras foram sendo
incorporadas ao ramo do Direito Internacional dos Direitos Humanos, criando entre outros
aspectos, obrigações aos Estados para a implementação de direitos.
Nesse sentido, os direitos humanos são “valores não negociáveis” que representam um
produto social ou histórico derivado das lutas sociais. Os direitos positivos, entendidos como
aqueles que podem ser exigidos juridicamente, vêm sendo ampliados desde a concepção dos
direitos clássicos (civis e políticos) para outros de natureza econômica, social, cultural e
ambiental798.
Particularmente falando dos direitos humanos ligados a violação de direitos decorrentes
do tráfico de pessoas, podem ser elencados os seguintes documentos garantidores:

796
ÁLVAREZ, Vanesa. et. al. La trata de personas desde el enfoque de derechos: de la definición teórica a la
acción práctica. FES. Federación Española de Sociología. 2016. Disponível em: http://www.fes-sociologia.
com/files/congress/12/papers/5346.pdf. Acesso em: 15 out. 2020.
797
Santos Martín Ostos, J. D. L. La tutela de la víctima de trata: una perspectiva penal, procesal e internacional.
J.M. BOSCH EDITOR, 2019. p. 159. Disponível em: https://elibro.net/es/ereader/universidadcomplutense/
121207?page=157. Acesso em: 15 fev. 2020.
798
MERCADO, Claudia Giménez; ADARME, Xavier Valente. El enfoque de los derechos humanos en las
políticas públicas: ideas para un debate en ciernes. Cuadernos del CENDES, v.27, n.74, p. 54, mayo-agosto,
2010.
368

Tabela 20. Normativas internacionais do ramo do Direito Internacional dos Direitos Humanos
Nível global
2000 Protocolo para Prevenir, Reprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, Especialmente Mulheres e
Crianças, que complementa a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional.
(Protocolo de Palermo)
2000 Protocolo Opcional da Convenção sobre os Direitos da Criança sobre a venda de crianças,
prostituição infantil e pornografia infantil
2000 Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional
1990 Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e
Membros de Suas Famílias
1989 Convenção sobre os Direitos da Criança
1989 A Convenção sobre os Direitos da Criança
1984 A Convenção Contra a Tortura e outras Penas e Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes
1979 Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulher
1979 A Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
1967 O Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados
1967 O Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados
1966 Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966
1966 Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos
1965 Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial
1948 A Convenção sobre a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio
Nível regional
2011 Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (art. 5), 2000, e a Diretiva 2011/36 / UE do
Parlamento Europeu e do Conselho sobre a prevenção e o combate ao tráfico de seres humanos e
a proteção das vítimas
2005 Convenção do Conselho da Europa Contra o tráfico de seres humanos (Convenção Europeia sobre
o Tráfico Carta dos Seres Humanos)
2002 Associação do Sul da Ásia para a Cooperação Regional, Convenção sobre Prevenção e combate
ao tráfico de mulheres e crianças para fins de prostituição
1969 A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose)
1950 Convenção Europeia de Direitos Humanos (Convenção de Roma)
1948 Declaração Americana de Direitos e deveres do Homem
1986 A Carta Africana de Direitos do Homem e dos Povos
1994 A Carta Árabe de Direitos Humanos (ainda não entrou em vigor).
Fonte: Elaboração própria.
369

As normativas se complementam e se especializam com outras fontes de direito


internacional, como costumes, princípios gerais e decisões de tribunais internacionais, que
também podem ser relevantes para determinar o que exatamente é exigido dos Estados na luta
contra o tráfico de pessoas. Nesse sentido, percebe-se como os tribunais internacionais foram
relevantes para fundamentar e orientar ações governamentais e dos outros atores envolvidos na
construção do regime complexo e enfrentamento ao tráfico de pessoas799.
Além de todos os direitos resultantes desses documentos, são fundamentais para o
enfrentamento ao tráfico de pessoas as seguintes dimensões já abordadas neste trabalho: 5 P
(prevenção, persecução, proteção, penalização dos infratores, promoção da cooperação); 3 R
(reparação, reabilitação e reintegração das vítimas) e 3C (capacidade, cooperação e
coordenação)800. Em 2011, a Relatoria Especial da ONU destacava para a direção de uma
abordagem de direitos humanos, que as vítimas deveriam estar no centro de todos os esforços
para combater, proteger, assistir e reparar as vítimas e, que ainda, nenhuma medida para
combater o tráfico de pessoas poderia prejudicar os direitos humanos e a dignidade das pessoas
afetadas. Reforçou-se a necessidade da escuta e consultas às pessoas vítimas de tráfico como
elemento fundamental do enfoque baseado em direitos humanos e a responsabilidade e
obrigação dos Estados em reparar as vítimas801. A obrigação na atenção, proteção e reparação
das vítimas, assim como na responsabilização dos agentes é sempre do Estado, mesmo que haja
parceria de atores não governamentais para atendimento, proteção e reparação dos direitos das
vítimas.

799
Ver em: SILVA, Waldimeiry Correa. Regime Internacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas: avanços
e desafios para a proteção dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p.38.
800
Protocolo de Palermo, Convênio de Varsóvia (2005) e Relatoria Especial em tema de tráfico de pessoas no
âmbito do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (2011-2014 e 2019). Como já descrito no capítulo
3, o relatório da Relatoria Especial de 2009, traz contribuições especialmente importantes pois propõe a
ampliação da visão estratégica de referência para a organização das respostas dadas ao tráfico de pessoas a
nível nacional, regional e global.
801
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório E / CN.4 / 2005/71 da Relatoria Especial
sobre o tráfico de pessoas. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G04/
169/31/PDF/G0416931.pdf?OpenElement. Acesso em: 15 jun. 2020. Ver também em ALTO
COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório A/HRC/23/48 da Relatoria Especial sobre o tráfico
de pessoas: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G13/122/85/PDF/G1312285.
pdf?OpenElement. Acesso em: 15 jun. 2020.
370

6.1 Princípios do Enfoque em Direitos

As normativas internacionais de direitos humanos são, de alguma maneira, enunciados


que permitem a internalização para a implementação de políticas públicas garantistas, exigindo
ações concretas do Estado e da sociedade.
A universalidade e equidade podem ser considerados os primeiros princípios
importantes pelos quais se pretende o acesso universal aos direitos, preservando e respeitando
a diversidade e a não-discriminação dos atores envolvidos nos processos de elaboração pública.
Nesse sentido, a universalidade só se constrói aceitando e contemplando a diversidade802.
O princípio da participação e empoderamento das comunidades exige atores reflexivos
e críticos dispostos a envolver-se ativamente na resolução das questões públicas. Esse princípio
redimensiona o conceito de cidadania para além da sua vertente política, incorporando-a ao
plano social e econômico. O enfoque em direitos permite a construção de uma nova relação
Estado-sociedade, capaz de transcender as hierarquias e que se oriente para uma visão mais
integral e, de alguma maneira compartilhada, de gestão pública. No enfrentamento ao tráfico
de pessoas, é por meio da participação que se verifica a interação dos atores governamentais e
da sociedade civil, mais especificamente, Estado e organizações da sociedade civil. Nesse
contexto, a sociedade é concebida como um tecido formado pela multiplicidade de redes
geradoras de laços de pertencimento que limitam a integração social803.
Pensar em participação é identificar como se dá a capacidade de incidir nas decisões
fundamentais através de um conjunto de processos (associação, reunião, informação), que se
prolongam no tempo, exigem interesse dos atores responsáveis e envolvidos na construção de
algo comum804.
A prestação de contas e a exigibilidade garantem a responsabilidade dos titulares de
deveres, além dos processos de monitoramento e avaliação que permitem verificar os avanços
e retrocessos dos objetivos propostos. Para tanto, requerem-se mecanismos accessíveis,
transparentes e principalmente eficazes de exigibilidade. Nesse contexto, entre outras coisas, a
informação é um elemento fundamental para a tomada de decisões como processo
coletivo/participativo805.

802
GÜENDEL, Ludwing: Por una gerencia social con enfoque de derechos. 2003. p. 8. Disponível em:
www.iigov.org/documentos/?p=3_0108. Acesso em: 15 out. 2020.
803
Ibid., p. 10.
804
MERCADO. Claudia Giménez. ADARME, Xavier Valente. El enfoque de los derechos humanos en las
políticas públicas: ideas para un debate en ciernes. Cuadernos del CENDES, v. 27, n.74, p. 69, mayo-agosto,
2010.
805
Idbid., p. 73.
371

A integralidade e a progressividade são elementos fundamentais ligados à necessidade


de interrelação dos direitos e, a necessidade do Estado de garantir o avanço máximo possível,
na forma de recursos que permitam o exercício dos direitos. A característica da
interdependência dos direitos e sua concretização efetiva dependem da visão integral de seu
exercício como fundamento para a execução de políticas públicas equitativas.806.
A Relatoria Especial de Tráfico de Pessoas, em 2014, reforçou a necessidade do
enfrentamento ao tráfico de pessoas através do enfoque baseado em direitos humanos.
Reconheceu que nem sempre as respostas dadas ao tráfico de pessoas foram ancoradas
fundamentalmente nos direitos humanos. Por outro lado, a relatoria foi fundamental para a
construção e definição de quais direitos humanos devem ser garantidos e quais obrigações
devem ser imputadas aos Estados. Ter a clareza sobre quais direitos devem ser garantidos é
fundamental para se avaliar até que ponto uma situação, iniciativa ou resposta específica está
em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos e, cobrar as
responsabilidades dos Estados807.
A Relatoria Especial, ainda em 2014, apontou esferas de trabalho importantes para o
movimento de luta contra o tráfico de pessoas, especialmente mulheres: direito das vítimas a
assistência, proteção e apoio; direito das vítimas de acessar reparações; os direitos humanos na
resposta da justiça penal. Nesse sentido, os Estados estão obrigados a prestar assistência e apoio
imediatos às vítimas de tráfico. Essa prestação de assistência, proteção e apoio imediatos não
deve estar condicionado à capacidade ou vontade da vítima de colaborar ou cooperar com os
órgãos da justiça penal, demonstrando que não deve haver qualquer vinculação de acolhida,
stricto sensu e, a colaboração da vítima com autoridades.
Além disso, a identificação das vítimas deve ser feita de forma rápida e precisa para
evitar a negação da efetividade dos direitos. A demora na identificação de uma vítima ou a
criminalização desta, por exemplo, por ter ingressado a um país para trabalhar de forma
irregular, ou dedicar-se à prostituição, vulnera e viola os direitos dessas mulheres.
A identificação das vítimas é essencial para a efetivação de seus direitos. Se as vítimas
não são identificadas com rapidez e precisão, os Estados negam efetiva e permanentemente os
direitos que legalmente lhes correspondem. Nesse sentido, os Estados devem criar abordagens

806
MERCADO, Claudia Giménez; ADARME, Xavier Valente. El enfoque de los derechos humanos en las
políticas públicas: ideas para un debate en ciernes. Cuadernos del CENDES, v. 27, n.74, p. 65, mayo-agosto,
2010.
807
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório A/HRC/10/16 da Relatoria Especial sobre o
tráfico de pessoas. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G09/111/31/
PDF/G0911131.pdf?OpenElement. Acesso em: 15 jun. 2020.
372

mais rigorosas e colaborativas para identificar as vítimas, principalmente com uma maior
cooperação entre atores governamentais e da sociedade civil que atuam nesse momento do
enfrentamento ao tráfico de pessoas.
A identificação está diretamente ligada ao direito das vítimas de tráfico de receber
reparação pelos danos sofridos. A própria Relatoria Especial identificou que as pessoas
traficadas muitas vezes carecem da reparação ou apoio necessário para ter acesso a reparação o
que pode, muitas vezes, colocar essa pessoa novamente na linha da vulnerabilidade ao tráfico
de pessoas. Para tanto, é fundamental que os Estados tenham previsão legal para garantir a
reparação efetiva pelos danos que lhes foram infligidos. “Em essência, as vítimas de tráfico
devem receber reparações adequadas pelos danos sofridos, incluindo restituição, indenização,
recuperação, satisfação e garantias de não repetição.”808.
No que se refere à resposta da justiça penal na responsabilização dos traficantes, não
deve haver conflito entre os direitos das vítimas e as respostas do sistema de justiça penal.
Muitas vezes, as vítimas de tráfico são utilizadas como instrumentos de investigação criminal
e não como titulares de direitos, com direito a proteção, apoio e reparação.
A perspectiva de utilização e incorporação do enfoque em direitos, ampliando o olhar e
a proposta inicial do Protocolo de Palermo, que partiu de uma lógica de securitização e
criminalização, permite melhorar o conceito a respeito dos parâmetros da definição do tráfico
de pessoas e ampliar: a identificação e a reflexão sobre as diferentes formas de exploração
relacionadas com o tráfico de pessoas e; a consideração de diferentes vias e agentes que
poderiam ou deveriam desempenhar um papel na prevenção ou uma resposta ao tráfico de
pessoas.
O Protocolo de Palermo traz referencias gerais dos direitos humanos de forma bastante
limitada. Também inclui uma série de obrigações que podem ser interpretadas como destinadas
a proteger as vítimas. A inclusão do enfoque em direitos trouxe uma nova perspectiva para a
compreensão do tráfico de pessoas, como uma violação de direitos humanos.
As políticas públicas podem ser entendidas como um produto do Estado que vem
moldado em formas legais e técnico-administrativas, reflexo de um processo prévio de relações
de poder complexas, e que devem ser orientadas por um marco normativo e operacional que

808
Interessante perceber que essa compensação pode ser concedida às vítimas por meio de procedimentos legais,
sejam eles civis ou criminais. Também pode ser concedido por meio de fundos de compensação administrados
pelo estado ou outras formas, conforme o entendimento de cada Estado. ALTO COMISSARIADO DAS
NAÇÕES UNIDAS. Relatório A/HRC/10/16 da Relatoria Especial sobre o tráfico de pessoas. Disponível
em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UN.DOC/GEN/G09/111/31/ PDF/G0911131.pdf?OpenElement.
Acesso em: 15 jun. 2020.
373

promova o exercício universal, integral e progressivo dos direitos humanos809. A formulação de


políticas públicas que partam do enfoque em direitos deve ter como objetivo principal a
promoção e proteção de direitos.

6.2 Reflexões para uma Intervenção na Perspectiva do Enfoque em Direitos

Podem ser destacados elementos importantes para a reflexão sobre a intervenção e


atenção para com as mulheres vítimas de tráfico: 1. analisar a realidade na perspectiva dos
direitos e do paradigma humanista; 2. usar uma abordagem global e aplicar a perspectiva de
gênero na intervenção; 3 considerar a intervenção social como um processo; 4. reconhecer a
mulher como sujeito de direitos, portadora de competências e corresponsável pelas soluções; 5
compreender a relação e o vínculo como eixo fundamental da intervenção; 6. realizar uma
abordagem interdisciplinar e socioeducativa a partir do trabalho em equipe; 7. garantir a
especialização das equipas profissionais através de processos formativos que permitam a
aquisição de conhecimentos e o desenvolvimento de competências; 8. aplicar as metodologias
de apoio e acompanhamento social e; 9. contribuir para a construção do imaginário social e um
uso cuidadoso da linguagem810. Pode-se dizer que esses são pontos importantes para se
conseguir realizar um atendimento humanizado.
A atenção humanizada é o ponto mais importante a ser perseguido por uma
política de atendimento. Ela se caracteriza, sobretudo, pela capacidade da
equipe técnica de reconhecer a pessoa atendida como sujeito de direitos, e de
colaborar para que a própria reconheça sua cidadania e conheça seus direitos.
Os esforços e investimentos públicos voltados para o atendimento às vítimas
do tráfico de pessoas devem se pautar no respeito à dignidade humana,
conceito que deve ser traduzido na atuação técnica. A valorização das
potencialidades humanas e o respeito à vontade das pessoas atendidas devem
ser objetivos prioritários do atendimento. O Atendimento Humanizado
procura reduzir o distanciamento entre a pessoa atendida e a equipe técnica
para que ambas as partes se coloquem como corresponsáveis na identificação
de soluções e de encaminhamentos811.

809
SALAMANCA, Luis. La política publica como la ciencia de la intervención del gobierno en la vida social: el
estado de la cuentión en la literatura. Politeia, Caracas, n. 17, p. 223-282. Disponível em: https://www.
scienceopen.com/document?vid=fe3c8923-f0e7-4952-854f-36ad4faca538. Acesso em: 15 out. 2020.
810
Álvarez, V. (et al.). La trata de personas desde el enfoque de derechos: de la definición teórica a la acción
práctica. FES. Federación Española de Sociología. Disponível em: http://www.fes-sociologia.com/files/
congress/12/papers/5346.pdf. Acesso em: 15 out. 2020. Ver também em: SICAR-Asturias. Nuestra manera
de ver las cosas: experiencia de sistematización de la práctica. 2004. Disponível em: http://www.
fundacionamaranta.org/wpcontent/uploads/2014/10/experiencia-y-sistematizacion-de-la-practica.pdf y
http://www.fundacionamaranta.org/wp-content/uploads/2014/10/reflexion-ysistematizacion-de-la-
practica.pdf. Acesso em: 15 out. 2020.
811
FEREIRA, Ofélia da Silva. Guia de atuação no enfrentamento ao tráfico de pessoas: orientações para
Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e aos Postos Avançados de Atendimento Humanizado ao
Migrante. Brasília, DF: Ministério da Justiça, 2013. p. 108.
374

A abordagem realizada deve ser abrangente, composta por diversos nuances analíticos,
como: direitos humanos, gênero, multiculturalidade, inter-geracionalidade, exclusão social e
contextual. Essa abordagem abrangente e multigarantia permite, por um lado, uma visão
interdisciplinar voltada para a complexidade, multidimensionalidade e interseccionalidade que
envolve o problema do tráfico de mulheres.
Outro aspecto relevante que deve ser levado em conta na hora do atendimento às vítimas
para evitar a “homogeneização abstrata das vítimas de tráfico”. Os atores responsáveis pelo
atendimento às vítimas muitas vezes, compartilham perfis e elementos comuns das vítimas
como o engano, a coação, a exploração, mas muitas vezes essas características não implicam a
consideração de uma categoria standard. Cada mulher deve ser atendida na sua individualidade,
com idiossincrasias específicas: nome, identidade, lugar de origem e situações jurídicas, sociais,
familiares e culturais particulares, que devem ser reconhecidas nas práticas institucionais812.
A negação desta forma de abordagem acarreta um maltrato acrescido com a
desvalorização, exclusão, discriminação, qualificação negativa, desqualificação e subjugação
com base em uma cultura patriarcal prevalecendo a abordagem normativista.

[...] Nesse sentido, é imprescindível a necessidade de reivindicar, com a


mediação das instituições, possibilidades de uma vida digna para as mulheres
e meninas atingidas, dando-lhes voz e protagonismo nos processos de luta por
sua emancipação. O objetivo das ações transformadoras será o resgate de sua
autonomia, com base no direito das mulheres de tomar suas próprias decisões
em assuntos que afetam seu corpo e suas condições de vida813.

A intervenção e atenção às vítimas de tráfico baseada nos direitos humanos exige um


constante aprimoramento dos atores envolvidos nessa função.
Após analisar de maneira mais teórica o conceito e os elementos que constituem o
enfoque em direitos, é importante verificar, em que medida o Brasil e a Espanha estão
construindo um regime de enfrentamento ao tráfico de pessoas baseado no enfoque em direitos
humanos.

812
CORDERO, Nuria. Trata con fines de explotación sexual: derechos humanos que mal-tratan a las humanas,
2014. p. 9. Disponível em: https://digibug.ugr.es/handle/10481/33816. Acesso em: 15 out. 2020
813
Id., p. 9 “Desde el enfoque crítico de los derechos humanos prevalece la importancia de generar procesos
hermenéuticos que dignifique la atención a las mujeres y generen una comprensión más profunda y singular
de las situaciones que están viviendo. En este sentido, resulta imperiosa la necesidad de reclamar, con la
mediación de las instituciones, posibilidades de vida digna para las mujeres y niñas afectadas, dándoles voz y
protagonismo en los procesos de lucha por su emancipación. El objetivo de las acciones transformadoras será
devolverles la autonomía, partiendo del derecho de las mujeres de tomar sus propias decisiones en asuntos que
afectan sus cuerpos y sus condiciones de vida.”
375

6.3 O Brasil está a Caminho da Construção de um Regime Baseado no Enfoque em


Direitos Humanos?

Como foi visto no capitulo quatro desta pesquisa, o Brasil vem construindo uma política
pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas, apontando diversos avanços conquistados,
desde alterações normativas no sentido da padronização internacional e a construção de Planos
Nacionais criando obrigações no âmbito da prevenção, repressão e responsabilização do crime
e principalmente atenção às vítimas de tráfico e, principalmente da incorporação da temática
nas políticas públicas já existentes, como SUAS e o SUS. Também foi possível analisar uma
série de desafios postos na efetivação desta política de enfrentamento ao tráfico.
Não se pode deixar de perceber o atual momento em que se analisa essa política, seja
no contexto mundial e nacional de uma pandemia que chegou sem dar aviso prévio e que
acabam por enfraquecer ainda mais as políticas públicas básicas que já passavam por um
desmonte, principalmente a partir de 2016, com as reformas trabalhista, previdenciária e a
Emenda Constitucional n. 85/2016 já abordadas anteriormente.
As Organizações Internacionais que aqui desenvolvem cooperação há mais de 15 anos,
especificamente na temática do tráfico de pessoas, trazem consigo uma agenda própria que
claramente determina ações que acabam por conduzir enfoques de abordagem da temática do
tráfico de pessoas. Nesse sentido, pode-se perceber uma disposição em desenvolver ações no
âmbito da securitização das fronteiras, conforme se verifica na planilha dos projetos financiados
por essas organizações disposta no capitulo quatro.
A promulgação da Lei 13.344 / 2016, trouxe um salto qualitativo no enfrentamento ao
tráfico de pessoas no Brasil, seja por inserir outras modalidades de exploração para além da
exploração sexual, seja por criar um novo paradigma no enfrentamento, incluindo uma seção
específica sobre a proteção e assistência das vítimas, além de indicar como deve ser
desenvolvida a prevenção da criminalidade. A inclusão das medidas protetivas e assistenciais
garantem maior força legal, permitindo a cobrança e a construção de modelos de assistência
mais voltados aos direitos humanos das vítimas. Esses aspectos devem ser valorados
positivamente no sentido da construção de uma política que leva em conta os direitos das
vítimas e a premente necessidade de efetivar essa proteção por parte do Estado. Acredita-se que
um dos pontos mais frágeis e prejudiciais da normativa brasileira é a de não deixar expressa a
irrelevância do consentimento dado pela vítima. Levando em conta alguns indícios de perfis
das vítimas e o estudo trazido por Dornelas indicando a ausência da percepção dos profissionais
do direito sobre a vulnerabilidade como condicionante para prejudicar o consentimento dado
376

pela vítima, percebe-se que essa omissão da normativa, e do atual entendimento de que somente
há caracterização do tráfico com o consentimento irrelevante quando houver “grave ameaça,
violência, coação, fraude ou abuso” pode gerar diversas violações de direitos. Além disso, esse
entendimento contraria a própria disposição do Protocolo de Palermo, aderido pelo Brasil.
Soma-se a percepção das OSCs de que a rede de atores responsáveis por fazer valer os
direitos garantidos na normativa deve “funcionar”.
A legislação de 2016 melhorou a possibilidade de atuar para os direitos dessas
pessoas, tanto no Marco Migratório como do tráfico de pessoas. Mas não basta
estar no papel. É necessário que a rede funcione, que a rede da saúde funcione,
que a rede da assistência funcione plenamente, que a gente tenha espaços de
acolhimento, assistência jurídica, acesso aos benefícios, que haja realmente
uma responsabilização. É um conjunto que já está posto. É necessário fazer
com que isso funcione. (Entrevista realizada com OSC brasileira).

O III PNETP avança positivamente, quando traz em seus princípios, elementos


importantes para garantir e orientar a construção da política pública no sentido do enfoque em
direitos. Nesse sentido, a obrigatoriedade da política ser construída levando em conta a não
discriminação por gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, nacionalidade, raça,
religião, situação migratória; utilizando a transversalidade das dimensões de gênero, orientação
sexual, origem étnica ou social, procedência, raça e faixa etária nas políticas públicas; e
prevendo atenção integral das vítimas diretas e indiretas, independentemente de nacionalidade
e da colaboração em investigações ou processos judiciais.
Também é relevante destacar que o enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil tem
se aproximado da agenda de enfrentamento ao trabalho escravo, que é uma agenda construída
há bastante tempo no Brasil, mais até do que da agenda do tráfico de pessoas, tendo um
reconhecimento importante a nível interno e internacional 814. Essa aproximação permitiu
reforçar a compreensão do fenômeno do tráfico de pessoas como sendo uma forma de
exploração das pessoas, diversificando-o da agenda das migrações e da criminalização destas.
Essa aproximação foi importante inclusive para a percepção de outras modalidades do tráfico,
como o trabalho forçado e trabalho doméstico. Destaca-se que a agenda do enfrentamento ao
trabalho escravo no Brasil tem também muita participação e atuação da sociedade civil e das
OSCs.

814
Destaca-se que a CONATRAE (Comissão Nacional de Enfrentamento ao Trabalho Escravo) foi criada em 2003
e representa uma esfera oficial de acompanhamento, monitoramento e coordenação do Plano Nacional para a
Erradicação do Trabalho Escravo. A CONATRAE, diferentemente do CONATRAP, conseguiu manter sua
paridade, sem redução de OSCs que a compõe em 2019.
377

Algumas entrevistas realizadas a atores nacionais governamentais e de organizações da


sociedade civil, além de diversos diálogos estabelecidos com pesquisadores e pesquisadoras
que são referência do tráfico de pessoas no Brasil permitem adentrar em análises da
micropolítica do tráfico e que consegue verificar para além da formalidade da política pública
instituída. A realidade percebida pelas organizações que atendem vítimas de tráfico e em alguns
casos de violência doméstica815 é a de que a população está cada vez mais invisível e vulnerável.
Falar de garantia de direitos em um país onde três milhões de brasileiros não
tem certidão de nascimento, onde as pessoas, neste momento de pandemia não
sabem pedir o auxílio emergencial e uma mulher não sabe como fazer um
Boletim de Ocorrência eletrônico em uma situação de violência doméstica,
mostra como é essa ferida enorme que existe no Brasil. O Brasil é um país
desigual. [...] O abismo social proporciona todo tipo de oportunidades. Tráfico
de pessoas para todas as finalidades, trabalho infantil, venda de pessoas [...] A
questão da sobrevivência é e já está sendo observada com bastante dificuldade.
(Entrevista realizada com OSC brasileira).

Nas entrevistas e no diálogo com os atores da rede surgiram alguns questionamentos


sobre a atuação da Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil, criada
especialmente no âmbito desta política pública. Questiona-se, neste momento de
vulnerabilidade das políticas sociais, como e quais atores estão efetivamente funcionando? Em
que medida funcionam? Que tipo de serviço prestam? Estão conseguindo atender e proteger as
vítimas atendidas? Com que rede atuam?

Muitos Postos não mais funcionam realmente. Os NETP se perderam dentro


da estrutura dos Estados e salvo alguns, suas atuações estão pulverizadas em
qualquer agenda de direitos humanos. Todo mundo está fazendo outras coisas
do que cuidando exatamente do tema do tráfico, muitas vezes até por falta de
Recursos Humanos. (pesquisadora especialista tráfico de pessoas).

O Brasil nunca teve fluxos de proteção super organizados. Isso acontece pela
própria estrutura de proteção social do Brasil. Não acho que seja uma
particularidade da política pública do tráfico. (pesquisadora especialista
tráfico de pessoas).

A fala de uma integrante de OSC é bastante simbólica sobre o momento em que vive a
política de atenção no Brasil.

815
Em algumas entrevistas foi destacado que vem sendo percebida a proximidade da violência doméstica com o
tráfico de pessoas. Muitas mulheres atendidas por violência doméstica e, muitas delas migrantes, também são
identificadas como vítimas de tráfico principalmente para trabalho escravo. Essa identificação é percebida
quando da realização do atendimento humanizado.
378

Minha opinião sincera é que está tudo posto. Se a gente não tirar do papel o
que está posto pela OIM, pela UNODC, pelo MPF, MPT, Defensoria Pública,
não vamos avançar. A invenção da roda virá agora no pós-pandemia. Temos
que avançar no que não foi feito. Talvez nas coisas mais simples. O que já está
posto não está sendo suficiente para garantir direitos de ninguém.
Temos que repensar, avaliar e partir com humildade. Temos que reconhecer
que, como a coisa está, ela nunca foi suficiente para garantir direitos. Ela
nunca saiu realmente do papel. Essa é a grande verdade. Falta vontade política.
(Entrevista realizada com OSC brasileira).

O Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988, assume uma versão municipalista.


Tudo acontece no Município. Talvez seja o momento da construção de um grande pacto
nacional olhando para os municípios como os principais territórios onde as políticas devem ser
prioritariamente desenvolvidas. É preciso um olhar garantista para os Municípios. Sem isso,
nenhuma política pública, nem mesmo a do tráfico de pessoas, conseguirá se desenvolver na
perspectiva do enfoque de direitos. É olhando para os Municípios que se consegue verificar as
mais tênues vulnerabilidades das pessoas.
As rodoviárias vão continuar sem observar se as crianças estão viajando
sozinhas, se aquele que está viajando com a criança, tem o documento dela ou
não, é nas rodoviárias que se deve atuar para fazer chegar o conhecimento das
mudanças do Estatuto da Criança e do Adolescente. (Entrevista realizada com
OSC brasileira).

No âmbito do atendimento, a escolha do Brasil foi inserir o atendimento as vítimas no


sistema público de proteção, sendo ofertado, principalmente pelo SUAS e pelo SUS. Nesse
sentido, é preciso fortalecer esses sistemas de proteção, patrimônios da sociedade brasileira e
que são, no âmbito do enfrentamento ao tráfico de pessoas, as grandes instituições da linha de
frente do atendimento. Veja-se, nesse contexto, a importância da capilaridade da atuação dos
agentes comunitários de saúde. Eles atuam na ponta, na casa das pessoas, observando e
potencialmente podem identificar vítimas e serem a ponta do fluxo de atendimento. O Brasil já
possui uma organização de política para o atendimento, mas ela precisa funcionar para garantir
o direito das pessoas, e em especial, das vítimas de tráfico. A estrutura dos serviços já existe,
falta agora dar mais qualidade aos atendimentos. Nesse sentido, cabe reforçar que o III PNETP
também orienta como deve ser prestada essa proteção e atenção, compreendendo que deve
haver a preservação da intimidade e da identidade; prevenção à revitimização no atendimento
e nos procedimentos investigatórios e judiciais; deve-se buscar o atendimento humanizado e,
deve ser prestada informação sobre procedimentos administrativos e judiciais de interesse da
vítima.
379

Como posto nas entrevistas, talvez, o caminho da construção do que se entende como
necessário para garantir os direitos das vítimas e, especialmente no contexto deste trabalho, das
mulheres vítimas, já está posto formalmente, devendo ser garantido na prática dos
atendimentos.
Outro aspecto que deve ser levado em conta para verificar se o Brasil vem construindo
sua política no âmbito do enfoque em direitos leva em conta os espaços de governança criados
permitindo a participação de atores diversos. Nesse sentido, percebe-se, como já foi dito, do
retrocesso nas Comissão Tripartite e no Grupo Interministerial e CONATRAP, este último com
sua redução de membros, principalmente na representação de atores não governamentais,
prejudicando essa diversidade necessária para atender as mais diversas características e
necessidades de olhares para o enfrentamento. A construção do enfoque em direitos deve pensar
sempre na ampliação, em agregar outros olhares. A restrição indica retrocesso.
No âmbito da responsabilização dos traficantes, percebe-se, mesmo que a legislação
impeça a obrigatoriedade de colaboração das vítimas, uma tentativa de criminalizar a mulher
vítima e uma dificuldade na persecução ao crime, exigindo repensar aspectos e a condução dos
procedimentos investigatórios e judiciais 816. A não criminalização é uma forma de garantir
plenitude nos direitos das vítimas.
Ainda levando em conta a governança de atores que atuam no enfrentamento ao tráfico
de pessoas é importante destacar a importância da atuação das OSCs que no Brasil ocupam um
espaço coadjuvante de capacitação de atores públicos, realização de pesquisas, advocacy e, na
atualidade, em menor número, atendimento às vítimas. Sua atuação é de extrema relevância
uma vez que foram estas organizações quem, antes mesmo do início da construção da política
pública, já identificavam um fenômeno que estava relacionado à exploração, mas se
diferenciava da exploração sexual. Sua expertise deve ser valorizada e aproveitada.
A principal relevância da atuação das OSCs é a de permitir que não haja
estigmatização dos grupos (migrantes, mulheres, LGBTI, entre outros).
Por outro lado, as OSCs precisam trabalhar com mais profissionalismo. No
Brasil, temos dificuldade de ver as OSCs com estruturas mais
organizadas/empresariais. É uma questão cultural. (pesquisadora especialista
tráfico de pessoas).

Com tudo o exposto, acredita-se que o Brasil teve momentos de importante construção
da política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas com enfoque em direitos. A

816
DORNELAS, Luciano. A persecução penal do tráfico internacional de seres humanos no Brasil:
organização, interações e decisões. Tese (Doutorado) - Centro Universitário de Brasília, 2019.
380

atualidade exige atenção e pressão de todos os atores responsáveis pelo enfrentamento,


principalmente das OSCs, dentre elas, as que compõe o CONATRAP para alertar, prevenir e
impedir retrocessos do até aqui construído. Além disso, verifica-se que ainda é necessário muito
para garantir que as vítimas de tráfico no Brasil tenham plenitude de direitos. Destacam-se: a
priorização da temática nas agendas de construção de políticas públicas; pensa-se na
necessidade de realizar diagnósticos locais para identificação das formas localizadas de tráfico
de pessoas; capacitar os atores públicos locais e sociedade civil para identificação das vítimas
e atendimento humanizado; estabelecer mais diálogo/proximidade/confiança entre autoridades
e serviços de atendimento, para melhor compreensão do fenômeno e articulação dos
atendimentos; ampliar a Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas,
principalmente nos portos marítimos, portos fluviais e rodoviárias e pensar as estruturas de
atendimento integradas à rede de proteção social de cada localidade no Brasil; garantir o
atendimento humanizado, pensando no restabelecimento dos direitos humanos na integralidade
das mulheres e, é preciso pensar os fluxos de atendimento a partir das redes locais existentes,
construído com as redes de atendimento.

6.4 A Espanha está a Caminho da Construção de um Regime Baseado no Enfoque em


Direitos Humanos?

É inegável perceber que a Espanha vem construindo uma política pública de


enfrentamento ao tráfico de pessoas, principalmente de mulheres e que diversos avanços foram
conquistados ao longo desde 18 anos, desde a adesão ao Protocolo de Palermo. Para auxiliar a
compreensão e aumentar a capacidade de análise, realizaram-se entrevistas com atores
nacionais governamentais e de organizações da sociedade civil, além de diversos diálogos
estabelecidos com pesquisadores e pesquisadoras que são referência do tráfico de pessoas na
Espanha. Esses diálogos, trazidos em algumas poucas citações extraídas em muitas horas de
entrevistas, permitem adentrar em análises da micropolítica do tráfico e que consegue verificar
para além da formalidade da política pública instituída.
Pode-se constatar grandes avanços, como os II Planos Nacionais, a alteração normativa
ampliando as modalidades de exploração, a adesão a Convenção de Varsóvia e outras normas
europeias, a criação do Protocolo Marco de Proteção às Vítimas, a compreensão do tráfico de
mulheres como uma forma de violência de gênero por algumas comunidades autônomas,
ampliando as possibilidades de proteção, entre outras medidas.
381

Por outro lado, na prática da proteção às vítimas, verifica-se uma incongruência


derivada dos diferentes enfoques vigentes na Espanha que distorcem a proteção efetiva dos
direitos humanos. Por um lado, a abordagem de controles migratórios e segurança, a luta contra
a migração irregular e o crime organizado; por outro, a tentativa de garantir direitos às vítimas
formalmente identificadas. A disputa destes regimes gera os problemas do sistema de proteção
espanhol.
O ponto central de análise do modelo espanhol é o procedimento de identificação formal
das vítimas, como já foi analisado no capitulo cinco. Em nome da criminalização do tráfico, as
vítimas nem sempre vêm em primeiro lugar.
[...] uma senhora pode ter um medo absolutamente legítimo e justificável de
denunciar. 2. Uma senhora que, por exemplo, acabou de chegar aqui e ainda
não foi submetida a exploração, mas o crime de tráfico já foi cometido porque
era essa a intenção, pode mesmo não ter informações relevantes. Então nunca
se pode condicionar essa identificação a essa colaboração, porque se aquela
senhora fosse identificada, se ela pudesse ter acesso a uma licença devido a
uma situação pessoal, por exemplo. É aqui que as distorções são geradas.
Como entidade propomos e oferecemos o enfoque nos Direitos Humanos, para
facilitar, colaborar e contribuir para um processo de recuperação integral da
pessoa. [...] São processos que demoram, são longos e lentos. É importante ter
isso em mente. Também processos de integração, do nosso ponto de vista,
integrais, que realmente haja uma equipe de profissionais que, sob diferentes
perspectivas, e diferentes competências, abordam e colaboram e apoiam o
caso e de uma forma que não é fácil, coordenada817.

Nesse sentido, sem a identificação formal a vítima não acessa ao direito de residência e
trabalho, mas pode, sendo identificada por uma OSC, ser atendida no âmbito dos direitos
assistenciais.
Por outro lado, a detecção de uma possível vítima de tráfico por uma entidade
que trabalha no tráfico é suficiente para que essa vítima tenha acesso a toda
uma série de direitos no sentido de acomodação, assistência psicológica,
assistência jurídica, ou seja, direitos que têm que fazer do ponto de vista
assistencial.
Isso ocorre, por exemplo, nossa organização trabalha 24 horas por dia e
trabalhamos em rede com muitas organizações, por exemplo, Médicos del
817
OSC especializada na Espanha “ […] una señora puede tener un miedo absolutamente legitimo y justificable
de denunciar. 2. Uno señora que por ejemplo acaba de llegar aquí y todavía no ha sido sometida a explotación
pero ya se ha consumado el delito de trata porque esa era la intención, puede no tener ni siquiera informacion
relevante. Entonces tu no puedes nunca condicionar esa identificación con esa colaboración, porque si esa
señora fuera identificada, si podría acceder a un permiso por situación personal, por ejemplo. Entonces es
donde se genera las distorciones. Como entidad proponemos y ofrecemos es el enfoque en Derechos Humanos,
facilitar, colaborar y aportar para lograr un proceso de recuperación integral de la persona. Eso significa que el
enfoque de atención a los casos de emergencia pero algunas veces los casos de medio y a largo plazo que
entendemos haber más de estos casos por la situacion de vulnerabiliad de la persona. Sea porla situacion de
vulnerabilidad de la persona en consecuencia del delicto, sea por condiciones personales de la persona, son
perfiles muy vulnerables desde origen. Son procesos que llevan tiempo, son largos y lentos. Eso es importante
tenerlo en cuenta. Tambien procesos de integración, desde nuestro punto de vista, integral, que haya realmente
un equipo de profesionales que desde diferentes ópticas, y diferentes competencias, aborden y colaboren y
apoyen el caso y de una manera que no es fácil, coordinada.”
382

Mundo está no campo, então eles detectam, nos chamam e nós valoramos. Se
houver indícios razoáveis, somos livres para hospedar essas vítimas. Por
exemplo, a Comunidad de Madrid não exige que todos os casos por nós
atendidos sejam encaminhados por eles ou que identifiquem quem é ou não
vítima de tráfico, porque aí está a entidade especializada. (entrevista OSC
especializada na Espanha)818.

Uma conquista importante das OSCs e da RECTP foi sua participação nos processos de
identificação formal das vítimas, apesar de que nem sempre as autoridades vêm cumprindo,
nem sempre elas são chamadas a participar desse procedimento.
Neste processo formal de identificação, de acordo com as normas espanholas,
devemos participar. Essa também é uma conquista do RECTP. Manifestamos
boas práticas que temos estado especificamente na Comunidade de Madrid,
[...] gerou uma dinâmica em que participamos sistematicamente nestas
entrevistas de identificação e outras e que facilitou a abertura da vítima,
confiança, tranquilidade e Tomamos isso como exemplo, para trabalhá-lo
quando o Ministério do Interior pelo Secretário de Estado e Segurança, em
uma instrução, detalhou a colaboração entre as Forças de Segurança e os
Organismos especializados justamente no processo de identificação819.
(entrevista OSC especializada na Espanha).

Quando se analisa o sistema de proteção às vítimas de tráfico, percebe-se que, mesmo


com avanços, ainda há muitas desproteções.
A proteção depende de como você a chama. Falando de forma muito geral,
uma questão de proteção social, que é do meu ponto de vista, para mulheres
vítimas de exploração sexual, é muito, quer dizer, está agindo bem. [...]
Falando em proteção física e riscos, proteção quando já estamos falando sobre
graus de envolvimento da vítima, e ver se a lei de proteção a testemunhas pode
ser aplicada ... etc. Mas depois de falar assim, vemos que este sistema não é
um verdadeiro sistema de proteção, que tem muitas deficiências. Em primeiro
lugar, na Espanha, todo o sistema de proteção de testemunhas em processos
judiciais não tem orçamento. Ou seja, os profissionais que interagem com a
vítima são financiados, mas se estamos falando de facilidades como poder
econômico para uma relocação e reassentamento, ajuda financeira porque
você muda a sua vida, e eles não existem. Não há ajuda financeira para vítimas
de tráfico.
818
“Luego ya otra cosa buena en España que esperemos que no cambie, la detección de una posible víctima de
trata por parte de una entidad que este trabajando en trata es suficiente para que esa victima pueda acceder a
toda una serie de derechos en el sentido de alojamiento, asistencia psicológica, asistencia jurídica, o sea,
derechos que tienen que ver desde el punto de vista asistencial. Esto se da, por ejemplo, nuestra organización
trabajo 24 horas y nosotras trabajando en red con muchas organizaciones, por ejemplo, Médicos del Mundo
esta en terreno, entonces detectan, nos llaman y lo valoramos. Si hay indicios razonables, nosotras tenemos la
libertad de acoger a esas víctimas. Por ejemplo, la Comunidad de Madrid no nos exige que todos los casos que
atendemos sean derivados por ellos o que ellos identifiquen quien es víctima de trata o no, porque para eso la
entidad especializada esta.”
819
“En este proceso de identificación formal, según la normativa española, debemos participar. Eso también es un
logro de la RECTP. Nosotros manifestamos buenas prácticas que ha habido específicamente en la Comunidad
de Madrid, […] generando una dinámica en que sistemáticamente participábamos en estas entrevistas de
identificación y demás y eso facilitaba en la apertura de la víctima, la confianza, la tranquilidad y eso lo
tomamos como ejemplo, para trabajarlo cuando el Ministerio del Interior por la Secretaria de Estado y
Seguridad, en una instrucción, que detallaba la colaboración entre las Fuerzas de Seguridad y las
Organizaciones especializadas precisamente en el proceso de identificación.”
383

No final das contas, a única alternativa que eles estão lhe dando é, se você é
vítima de tráfico para fins de exploração sexual é ir para uma casa de acolhida
[...] legalmente, o sistema não foi projetado para proteger as vítimas. E é o que
dizem os magistrados. É um sistema meramente instrumental para a
colaboração da vítima ou testemunha durante o processo penal. Mas, por
exemplo, se no julgamento oral, a defesa e os traficantes dizem que precisam
saber a identidade da vítima, pois do contrário pode haver desamparo.
Portanto, judicialmente é bem possível que o anonimato da vítima seja
levantado. Porque o que o sistema judiciário está interessado em garantir é
que, perante uma discussão ilegal, [...] é melhor responder a este pedido e que
não possam recorrer a um tribunal constitucional por violação dos direitos
constitucionais do arguido, por isso levantamos o anonimato e aí são mil
coisas técnicas que parecem bobagens, mas quando você começa a procurar
[...] Na prática, a justiça falha sistematicamente820. (entrevista OSC
especializada na Espanha).

Esse trecho extraído de uma das entrevistas realizadas mostra como as vítimas podem
ser disputadas dentro dos sistemas de criminalização x proteção. A proteção e garantia dos
direitos das vítimas é previsto formalmente, mas, muitas vezes, a dificuldade no olhar
humanizado e garantista prejudica a defesa dos direitos dessas mulheres.
Como descrito no capítulo cinco, a Espanha possui um sistema de subvenções a OSCs
para a prestação do atendimento e acompanhamento das vítimas de tráfico de pessoas. Nesse
sentido, é importante verificar a percepção sobre a importância do trabalho desempenhado e,
de alguma maneira, a crítica subjetiva a outras organizações que podem não atuar com a mesma
perspectiva de análise crítica sobre sua atuação.
Sou uma entidade prestadora de serviços, por isso recebo financiamento do
Estado, não tenho uma visão crítica de nada, recebo fundos, executo-os dentro
do prazo que o financiador me deu, justifico a despesa preparada e dou ao
ministério o que ele quer , ou seja, tantas mulheres cuidadas, porque nem
mesmo, quantas mulheres encontraram trabalho…. Quantas mulheres foram
atendidas? 200, ok. E você não vai me perguntar há quanto tempo ele está na
casa de acolhida? Se eles saíram cumprindo os objetivos ou não? Se eles
conseguiram trabalho ou não? Não te interessa.

820
“Hablando de protección física y de riesgos, una protección cuando ya hablamos de grados implicación de la
víctima, y ver si se le puede aplicar la ley de protección a testigos… etc. Pero después hablando así, vemos que
este sistema no es un verdadero sistema de protección, que tiene un montón de deficiencias. Primera de toda,
que en España todo el sistema de protección de testigos en procesos judiciales no tiene presupuesto. O sea, se
financia a unos profesionales que interactúan con la víctima, pero si estamos hablando de facilidades como
poder económico para una reubicación y reasentamiento, ayudas económicas porque cambias de vida, y no
existen. No hay ayudas económicas para victimas de trata. Afinal la única alternativa que te están dando es, si
eres victimas de trata para fines de explotación sexual es irte a una casa de acogida y si eres todo lo demás,
pues nada, no hay nada, Es muy deficitaria y luego por… jurídicamente, el sistema no esta pensado para
proteger a las víctimas. Y eso lo dicen los magistrados. Es un sistema meramente instrumental para que una
victima o un testigo colabore durante el proceso penal. Pero por ejemplo, si en el juicio oral, la defensa y los
tratantes dicen que necesitan conocer la identidad de la víctima, porque sino se puede producir una indefección.
Entonces judicialmente es muy posible que se levante el anonimato de la victima. Porque al sistema judicial lo
que le interesa garantizar es que, frente a un argumento ilegal, […] es mejor atender a esta petición y que no
puedan recurrir a tribunal constitucional por violar derechos constitucionales del acusado, entonces levantamos
el anonimato y luego faltan mil cosas técnicas que parecen tonterías, pero cuando empiezas a mirar […]. En la
práctica falla la justicia sistemáticamente.”
384

[...] trabalhamos a partir de uma área que é de promoção de direitos e teremos


sempre uma visão crítica do nosso trabalho e também do contexto. O que
queremos é promover os direitos das vítimas de tráfico e facilitar o acesso
efetivo a esses direitos. Aí vamos ter que ter uma visão crítica, vamos ver o
que funciona e o que não funciona. Veremos os problemas e onde não. Vamos
colocar isso nos espaços de diálogo que temos. Faremos propostas e
recomendações construtivas, mas também revisaremos como funciona. Isso
também tem seus processos e dificuldades821. (entrevista OSC especializada
na Espanha).

Sobre a governança da construção e monitoramento da política do tráfico de pessoas a


percepção geral das OSCs dos espaços formais de participação é de construção e participação
coletiva conforme suas ponderações.
São espaços para a análise da realidade, mas também para podermos formular
propostas de recomendações. Por exemplo, a partir das reuniões com o relator,
aliás, devido às análises que fizemos e experiências anteriores e tal, nossa
proposta foi, devemos trabalhar uma instrução que isto o regule. Em seguida,
o relator decidiu que seria formado um grupo de trabalho onde essa instrução
seria negociada e elaborada. E estava lá na Secretaria de Estado e Segurança,
a Policía e a Guardia Civil, o Relator e dois representantes que foram em
nome da Rede Espanhola contra o Tráfico822.

Sobre o atendimento oferecido pelas OSCs e não pelo Estado, a reflexão proposta foi
no sentido de que nem todas as OSCs tem consciência da sua função social e do trabalho que
devem desenvolver para modificar a vida e restabelecer direitos a partir do impacto profundo
da reconstrução solidária, empática dos direitos dessas mulheres.
Acho que seria uma atenção, e não quero ser presunçoso, mas uma atenção
muito deficiente, porque infelizmente, pelo menos pela experiência que temos
na Espanha, muitos dos recursos que são disponibilizados, nas atenções que
são prestados, têm uma duração e âmbito muito limitados em termos de
impacto. E nós também dissemos isso. Uma coisa é prestar serviço de
alojamento por 3 meses, que é o que acontece, por exemplo no sistema asilo,
que depende do Estado, e outra coisa é que não se trata de cobrir o processo,
não é depois de 6 meses, você já terminou a sua obrigação no âmbito do asilo,

821
“Soy una entidad prestadora de servicios, entonces recibo financiamiento del Estado, no tengo una visión crítica
de nada, recibo fondos, los ejecuto dentro del plazo que me dio el financiador, justifico el gasto preparado y le
doy al ministerio lo que quiere, es decir, tantas mujeres cuidadas, porque ni siquiera, cuántas mujeres
encontraron trabajo…. ¿Cuántas mujeres fueron atendidas? 200, está bien. ¿Y no me vas a preguntar cuánto
tiempo lleva en el hogar de acogida? ¿Salieron al blanco o no? ¿Consiguieron trabajo o no? No te interesa. [...]
trabajamos desde un área que es la promoción de derechos y siempre tendremos una visión crítica de nuestro
trabajo y también del contexto. Lo que queremos es promover los derechos de las víctimas de la trata y facilitar
el acceso efectivo a esos derechos. Entonces tendremos que tener una visión crítica, veremos qué funciona y
qué no. Veremos los problemas y donde no. Pongamos eso en los espacios de diálogo que tenemos. Haremos
propuestas y recomendaciones constructivas, pero también repasaremos cómo funciona. Esto también tiene sus
procesos y dificultades.”
822
“Son espacios de análisis de la realidad, pero también de poder formular recomendaciones propuestas, por
ejemplo, de las reuniones con la relatoría, efectivamente, por el análisis que hacíamos y experiencia previa y
tal, nuestra propuesta fue, hay que trabajar una instrucción que esto lo regule. Entonces desde la relatoría se
deicidió que se iba a crear un grupo de trabajo donde se iba a negociar y elaborar esa instrucción. Y estuvo ahí
en la secretaria de estado y de Seguridad, estuvieron de policía y guardia civil, la relatoría y dos representantes
que fuimos en nombre de la Red Española contra la Trata.”
385

de providenciar alojamento, e aí todas essas pessoas vão parar na rua e você


não liga.
Nem quero idealizar. Também não é verdade, e voltamos à questão de
depender de que tipo de entidade estamos falando de que perspectiva, porque
se você como entidade, você está trabalhando camuflado com a
Administração, sem dar qualquer contribuição física com qualquer
recomendação e se limita a fornecer um teto e comida para dar sessões
psicológicas, para proporcionar tal, sem ter uma avaliação do impacto real que
isso está tendo na pessoa e sem modular a sua ação, você está fazendo o
mesmo.
Eu acredito que se você trabalhar a partir de uma abordagem de direitos
humanos e a promoção de direitos das entidades, se você tiver um impacto
muito mais profundo, você pode realmente garantir esse processo de
recuperação integral, certo? E aquela conquista de uma recuperação e uma
autonomia de uma vida e de um futuro823.

Sobre críticas a atuação das OSCs reflete-se de maneira bastante interessante, de alguma
maneira concordando com a crítica que foi feita no capitulo três e que levava em conta as
reflexões de Claudia Aradau824.

[...] Que uma entidade trabalhe com uma abordagem baseada em direitos
requer uma visão crítica e requer monitoramento por parte do estado e requer
responsabilidade atual e, além de você ser responsável e criticar a si mesmo
de vez em quando, requerendo que o estado seja responsável. Este trabalho é
muito chato. E tenso [...] muito complexo. Muito delicado. Aí pode haver a
concorrência desleal, que por outro lado para a administração e principalmente
muitas vezes para as forças de segurança é ótimo, gente que entra no assunto
sem saber, que só pretende prestar serviços e ficar bem com todos e que ele se
curvará constantemente aos pedidos e à visão das forças de segurança e da
administração. [...] Então, é aí que eu digo, entidades que nunca propõe ou
criticam, que nunca recusam nada e que fazem o papel de fantoches da polícia

823
“yo creo que seria una atención y no quiero ser presuntosa, pero una atención muy deficitaria, porque por
desgracia, por lo menos por la experiencia que tenemos en España, muchos de los recursos que se proveen, en
las atenciones que se proveen, tienen una duración y un alcance muy limitado en términos de impacto. Y esto
lo hemos dicho también. Una cosa es prestar servicios de alojamiento durante 3 meses, que es lo que pasa, por
ejemplo en el sistema de asilo, que depende del Estado, y otra cosa es, que no se trata de cubrir el expediente,
no se trata de que despues de 6 meses tu ya has terminado tu obligación según el marco del asilo, de dar
alojamiento, y que luego todas estas personas terminen en la calle y te dé igual. Tampoco quiero idealizar.
Tampoco es verdad, y volvemos al tema de dependiendo de que tipo de entidad estamos hablando que
perspectiva, porque si tu como entidad, estás trabajando, mimetizada con la Administración, sin hacer ningún
aporte físico con ninguna recomendación y te limitas a proveer de techo y comida a proveer a x seciones
psicológicas, a proveer tal, sin tener una evaluación de que impacto real esta teniendo eso en la persona y sin
modular tu acción, estas haciendo lo mismo. Yo creo que si se trabaja desde un enfoque de derechos humanos
y de promoción de derechos desde las entidades si se tiene un impacto mucho más profundo que realmente
puede garantizar ese proceso de recuperación integral no? Y ese logro de una recuperación y de una autonomía
de una vida y de un futuro.”
824
ARADAU. Claudia. Trafficking in women: human rights of human risks?. Canadian Woman Studiesiles
Cahiers de la Femme, v. 22, n. 3-4, 2003. Disponível em: https://cws.journals.yorku.ca/index.php/cws/
article/view/6413. Acesso em: 15 abr. 2020.
386

ou dos interesses de certos policiais com uma determinada visão, prejudicam


muito825.

Eu vou ser crítico. Acho que em outro momento as organizações éramos mais
unidas porque havia menos recursos. E os recursos não foram decisivos para
o funcionamento das organizações. Agora que há mais financiamento, nos
tornamos um pouco competitivos em relação aos outros. Informações agora,
fluem menos do que antes. As Administrações estão dando recursos para
entidades que não têm capacidade ou sustentabilidade ao longo do tempo826.

Construir um regime de enfrentamento baseado em direitos humanos implica na


governança dos atores, entre eles, Estado e as OSCs. Governança que exige um ocupar espaços
de disputas formais e informais, que devem levar em conta o papel institucional de cada um e,
principalmente o interesse e os direitos das vítimas a serem protegidas.
Nesse sentido, reforça-se um lugar de disputa informal, a RECTP que, desde 2004 vem
ocupando um espaço de construção, de monitoramento e proposição de políticas públicas para
o enfrentamento ao tráfico de pessoas. É claro que as disputas por espaços ocupados dentro da
própria rede e por fazer parte desta Rede existem. Apesar da crítica feita no capitulo 3 sobre a
atuação das OSCs, elas ocupam um lugar fundamental na construção deste regime espanhol. A
percepção por parte das organizações da importância da atuação em rede é percebida por elas

Porque todas somos conscientes de que sozinha tem muito menos impacto,
você sai como uma entidade individual, sozinho e aí tem situações muito
delicadas que se você for respaldado por uma rede inteira tem um impacto
maior e é mais estratégico, certo? Vejo que aqui vamos nós, comparando
outras plataformas, outras redes, o grau de diálogo que a rede espanhola tem
alcançado, nos últimos 15 anos, e o grau de impacto e capacidade de
influenciar e propor temas e avançar sobre temas e tal, foi muito significativo.
Ou seja, tudo pode ser melhorado e sobretudo tendo em conta que a Rede
Espanhola não é uma rede com estatuto legal, portanto não pode contratar
ninguém nem dispensar ninguém, pelo que é um trabalho realmente
colaborativo e horizontal entre as entidades que estamos e bem, eu acho827.

825
“Que una entidad trabaje desde un enfoque de derechos exige una visión critica y exige un monitoreo por parte
del estado y exige actual con responsabilidad y además de que tu rindas cuentas y te hagas criticas de vez en
cuando, exigirle al Estado que rinda cuentas. Esta labor es muy molesta. Y tensa [… ] muy compleja. Muy
delicada que te puede llevar condiciones. Entonces puede haber una competencia desleal, que por otro lado a
la administración […] Entonces, ahí es donde te digo, entidades que nunca plantean, que nunca sean críticas,
que nunca se nieguen a nada y que hagan el rol de marioneta de la policía o de intereses de determinados
policías de determinada visión, pues perjudican muchísimo.”
826
“Voy a ser crítico. Creo que en su momento las organizaciones éramos más unidas porque había menos fondos.
Y los fondos no eran determinantes para el funcionamiento de las organizaciones. Ahora como hay algo más
de fondos, nos hemos convertido en un poco competitivas de otras. La información ahora mismo, fluye menos
que antes. Las administraciones están dando recursos a entidades que no tienen capacidad o sostenibilidad en
el tiempo.”
827
“Porque todas somos conscientes de que si tu primero tienes mucho menor impacto se vas como entidad
individual, solo y luego hay situaciones muy delicadas que si estas amparada por toda una red, pues tiene mayor
impacto y es más estratégico no? Veo que ahí vamos, comparando otras plataformas, otras redes, el grado de
interlocución que ha conseguido la red española, en estos últimos 15 años, y el grado de impacto y de capacidad
387

Com tudo o exposto, acredita-se que a Espanha teve momentos de importante


construção da política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas com enfoque em direitos.
A Espanha possui um desafio importante na construção do enfrentamento ao tráfico de pessoas:
avançar na construção de uma Lei Integral protetiva leve em conta todas as modalidades de
exploração e ao mesmo tempo, não adote enfoque de criminalização dos migrantes.
A harmonização das normas relacionadas a Lei de Estrangeiros, Tráfico de Pessoas,
Protocolo Marco são fundamentais para promover a atenção, proteção e restituição de direitos.
A última proposta do Anteprojeto de Lei Orgânica Integral de Liberdade Sexual, não responde
integralmente ao que é necessário para a construção de um regime que se baseie em direitos.
Por outro lado, a proposta de um Plano Estratégico contra o tráfico de pessoas que leve em
conta todas as modalidades de tráfico precisa modificar a forma de identificação formal das
vítimas, garantindo-lhes proteção e atenção efetivas, a médio e longo prazo, principalmente
independentemente da sua condição administrativa.
Além disso, verifica-se que ainda é necessário muito para garantir que as vítimas de
tráfico na Espanha tenham plenitude de direitos.

6.5 Breves Conclusões Parciais do Capitulo 6: a Caminho da Construção de um Regime


Baseado no Enfoque em Direitos Humanos

Finalizando este capítulo, considera-se importante reforçar que políticas construídas


com o enfoque em direitos exige um olhar para os direitos humanos na perspectiva da
construção de uma sociedade mais igualitária, justa e solidária. Essas políticas somente podem
ser construídas por meio da maior participação de atores possíveis, garantindo diversidade,
complexidade e tolerância aos processos e aos resultados.
Neste capitulo foram apresentados alguns princípios e reflexões para que se possa
intervir na realidade do fenômeno do tráfico de pessoas com enfoque em direitos. O Brasil e a
Espanha são exemplos de países que iniciaram essa construção e já com normativas garantistas.
Por outro lado, se no Brasil aparentemente as normativas são garantistas, a efetiva
garantia da norma deixa a desejar e os direitos continuam existindo apenas no plano formal. O
Brasil necessita colocar em pratica suas normativas garantistas, criando os mecanismos e

de incidir y proponer temas y avanzar en temas y tal, ha sido muy significativo. O sea que todo es muy
mejorable y sobretodo teniendo en cuenta que la Red Española no es una red con estatus legal, por lo tanto
tampoco puede contratar a nadie ni puede liberar a nadie, asi que es un trabajo realmente colaborativo y
horizontal entre las entidades que estamos y bueno, me parece.”
388

condições físicas, econômicas, procedimentais, para acessar esses direitos, além de uma
conscientização de todos os atores que atuam direta ou indiretamente na atenção e proteção das
vítimas.
Com relação a Espanha, é necessário primordialmente alterar o procedimento de
identificação formal das vítimas, desvinculando realmente a proteção e atenção da colaboração
das vítimas com as autoridades policiais e judiciais. Esse é o primeiro passo para que se
verifique uma intenção de caminhar no sentido de aprimorar o regime baseado em direitos. Essa
modificação pode e deve vir junto com uma Lei Integral de apoio às vítimas de tráfico,
facilitando a compreensão dos atores e principalmente das vítimas, integrando a atenção e
proteção à todas as modalidades do tráfico de pessoas e aprimorando os mecanismos e
possibilidades de garantir direitos às vítimas de tráfico, principalmente as mulheres.
Outro aspecto importante é o de pensar como garantir padrões de atenção e proteção
oferecidas pelas OSC especializadas em atenção e subvencionadas pelo Estado. Garantir
direitos é uma obrigação do Estado e, mesmo que essa atenção que garante direitos seja
oferecida por uma OSC, é fundamental que se estabeleçam critérios estândares para evitar
subjetivismos, pautas próprias das organizações que podem, de alguma maneira, restringir
direitos das vítimas.
Finaliza-se este capítulo apontando-se que, talvez, a nível internacional, o caminho mais
seguro e rápido para garantir proteção efetiva às vítimas seria a criação de um estatuto de
proteção internacional semelhante ao do refugiado, guiado por princípios semelhantes que
obrigasse os Estados a garantir direitos por meio de atenção e proteção 828 Claro que, para isso,
deveria ser elaborado, no âmbito da ONU e, na perspectiva dos direitos humanos, uma
normativa que reconhecesse o tráfico de pessoas como uma violação de direitos humanos, para
além da caracterização do crime organizado transnacional, dando centralidade à proteção das
vítimas. Esta pesquisa deixa esta reflexão e contribuição no sentido de incentivar outras
pesquisas que possam pensar a partir daqui.

828
MESTRE I MESTRE, Ruth M. La protección cuando se trata de trata en el Estado español. Rev. Inter. Mob.
Hum., Brasília, DF, Ano XIX, n. 37, p. 27-42, jul./dez. 2011. Disponível em: https://www.redalyc.org/
articulo.oa?id=407042014003. Acesso em: 3 maio 2020.
389

CAPÍTULO 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chega-se ao final desta pesquisa com a única certeza de que caberiam aqui, muitas
outras pesquisas e outras reflexões possíveis. De todas formas, esta pesquisa procurou
responder a possível existência de um processo de construção de um regime internacional para
as vítimas de tráfico de mulheres, a partir do enfoque em direitos.
Para tanto, foi necessário compreender o fenômeno do tráfico de pessoas,
principalmente mulheres, exigindo compreender dimensões históricas, sociais econômicas e
políticas e garantir visibilizar as contradições existentes nas abordagens do enfrentamento.
Constatar as incoerências nos processos de enfrentamento pode auxiliar na compreensão da
complexidade dos fenômenos, mesmo que não se obtenha soluções para essas contradições.
Nessa lógica, pensar o fenômeno do tráfico de pessoas como uma forma de escravidão
moderna permite refletir sobre a desigualdade e a falta de equidade das mulheres no âmbito
internacional e interno dos países. Pensar o tráfico sem compreender os elementos fundantes
do tráfico de mulheres leva a incompreensões e ao enfrentamento limitado e equivocado do
fenômeno.
Entendeu-se que exige questionar a estrutura do sistema socioeconômico vigente. No
contexto capitalista vigente, que atende à globalização econômica, onde tudo circula como
mercadoria livre, observou-se que o capital desenvolve uma nova estratégia que intensifica o
comercio de pessoas como um negócio transnacional. Os Estados, por outro lado, criam
políticas setoriais, focalizadas em modalidades de tráfico específicas (como a exploração
sexual) com políticas de intervenção que acolhem princípios de defesa dos seus territórios e de
controle e repressão à migração, transformando o problema social, econômico, em delito
(jurídico). Considera-se, conforme analisado, como um problema social que atinge as mulheres,
deixando-se de combater a partir de suas causas fundantes, como a mercantilização das pessoas,
a masculinidade (demanda da prostituição), a desigualdade de gênero, a desigualdade de raça,
a falta de equidade com as mulheres, que gera inúmeras vulnerabilidades.
O tráfico acontece porque os Estados falham na sua obrigação de garantir direitos
fundamentais, muito antes da ocorrência do tráfico na vida dessas mulheres. A desigualdade no
capitalismo não se resolve enquanto exista exploração. A exploração se dá de um país sobre
outro, de um gênero sobre outro, de uma classe sobre outra, sem tréguas.
A pesquisa procurou analisar as questões de fundo que permeiam esse fenômeno.
Observar algumas estratégias e as políticas adotadas pelos países ricos como a repressão da
mobilidade das pessoas intensificam as desigualdades mundiais aumentando a vulnerabilidade
390

para o tráfico de pessoas, em especial mulheres. Verificou-se como análises reducionistas do


fenômeno do tráfico, podem criminalizar e estigmatizar as mulheres migrantes e trabalhadoras
sexuais por meio até dos movimentos sociais, deixando de lado a luta pelo direito das pessoas,
especialmente das mulheres.
Compreender o fenômeno do tráfico de pessoas deve garantir que as pessoas sejam
priorizadas e a dignidade humana seja almejada como valor que organiza todas as ações dos
Estados. Essa é a finalidade proposta pelo regime com enfoque em direitos humanos, que invoca
a ética de todas as partes envolvidas na construção das políticas. Para tanto, é impossível não
pensar e desenvolver políticas transversais, interinstitucionais, integrais, propondo sempre a
construção e manutenção de estruturas colegiadas, transdisciplinares, descentralizadas e
plurais. Ademais, analisar o enfrentamento ao tráfico de pessoas e a construção de um regime
de proteção às vítimas reforça para a necessidade da governança como instrumento legítimo e
importante na construção desse processo, onde a participação das OSC se dá de forma
protagonista, conforme se verificou nos estudos de caso.
Outro aspecto de contribuição da pesquisa foi apontar, aprofundar e refletir sobre a
atuação das OSC, destacando sua relevância e atuação para o tensionamento com os Estados na
construção da proteção e atenção das vítimas, mesmo se levando em conta as críticas pertinentes
feitas a esses atores, especialmente no capitulo 3 (3.5.2). A luta dos movimentos sociais, das
OSCs e das redes de atores que reivindicam direitos é fundamental para garantir direitos, mas
nunca serão suficientes para eliminar a desigualdade de nossas sociedades.
Os estudos de caso do Brasil e da Espanha permitiram analisar dois exemplos de
enfrentamento diversos, até pela posição geopolítica que possuem e, que permitiram verificar
duas construções de políticas diferentes: um do Norte e um do Sul. Um com uma política de
atenção totalmente pública e o outro com uma atenção prestada principalmente por OSC
especializadas. Não cabe aqui analisar novamente os modelos, mas cabe apontar que os dois
países vêm tentando cumprir as obrigações internacionais relativas à temática do tráfico de
pessoas, às quais se comprometeram na adesão de Palermo e outras normativas regionais.
Mesmo assim, ainda há problemas quanto a construção de um regime interno que tenha enfoque
em direitos. Isso não se verifica pela ausência de normas no âmbito da proteção dos direitos,
mas como dito anteriormente, pelo jogo de forças existentes entre regimes internacionais
relacionados ao regime complexo do tráfico de pessoas, como é o caso do regime internacional
do crime transnacional, ou do regime internacional de refúgio, ou regime internacional do
trabalho. A persecução do crime ainda é um enfoque bastante utilizado, em detrimento do
enfoque em direitos, pela sobreposição da priorização da criminalização.
391

Ademais, verificou-se no desenvolvimento do trabalho, especialmente entre os capítulos


três e cinco, como o processo de construção dos marcos regulatórios do tráfico de pessoas
contaram e contam com o forte compromisso de atores estatais, atores intergovernamentais e
não estatais na luta contra o tráfico de pessoas, mesmo que este compromisso e cooperação
entre os atores nem sempre tenham as vítimas como fim maior da proteção e atenção. Verificou-
se, assim, a governança global do tráfico de pessoas em direção à construção de um regime
complexo.
Quando se analisou a conformação do Regime Internacional Complexo do
enfrentamento ao tráfico de mulheres desde uma perspectiva histórica foi possível constatar
como o fenômeno do tráfico de pessoas foi sendo incorporado à construção da criminalidade
organizada transnacional e de como essa apropriação foi sendo utilizada para a criminalização
dos grupos migrantes e principalmente das mulheres.
Por outro lado, a pesquisa mostrou como o Regime complexo do tráfico de pessoas foi
criando mecanismos globais de disputa e também de diálogo com diversos atores, entre eles, as
OSCs e foi incorporando a perspectiva dos direitos humanos como uma dimensão fundamental
para a proteção dessas pessoas e principalmente, para a construção de um regime que tenha as
vítimas na sua centralidade de atuação. A mentalidade que foi gerando a necessidade de
incorporar uma nova visão estratégica de referência para a organização do enfrentamento ao
tráfico no âmbito, principalmente interno, indica essa percepção e orientação (5 “P”+ 3 “R” +
3 “C”). Reforça-se que a Relatoria Especial em tema de tráfico de pessoas, no âmbito do
Conselho de Direitos Humanos da ONU, foi fundamental para essa mudança de enfoque e de
orientação, inclusive para a orientação da criação de mecanismos internos, com características
colegiadas, para o monitoramento interno da situação do tráfico de pessoas, garantindo
transparência, escuta e diálogo entre os atores nacionais.
Assim, mesmo ainda não sendo possível experimentar toda a proteção e atenção
necessária por meio de políticas públicas para as vítimas, essa mudança de mentalidade para o
enfoque em direitos, juntamente com a criação desses espaços colegiados (mesmo com todas
as críticas descritas na pesquisa) e, com a orientação da necessidade de escuta dos atores
governamentais e não governamentais, percebe-se que se está diante da tentativa da construção
de um regime internacional baseado em direitos humanos.
Por outro lado, a pesquisa também permitiu a reflexão sobre a necessidade de criação
de um regime internacional mais protetivo. Talvez se chegue em um momento em que se
estabeleça um Regime Especial de Proteção às vítimas de tráfico internacional de pessoas,
similar ao que acontece com o Regime Internacional do Refúgio, ressalvadas todas as
392

particularidades dos dois fenômenos. Entendendo que o tráfico é principalmente um fenômeno


violador de direitos humanos pela exploração a qual são submetidas as pessoas, somado a que
também é considerado um crime organizado transnacional, compondo como demonstrado no
trabalho um Regime Complexo, caberia pensar na necessária proteção das vítimas de tráfico
internacional, levando em conta suas particularidades e necessidades e independentemente da
caracterização do crime do tráfico. Nesse sentido, as características da complexidade do
fenômeno do tráfico podem levar a compreensão da comunidade internacional da necessidade
da criação de um Regime Protetivo especial que interaja com todos os outros regimes que o
compõe. Nesse sentido, as vítimas poderiam ser consideradas sujeitos de necessária proteção
internacional e os Estados teriam que criar mecanismos de proteção, como fazem para o
Refúgio, garantindo proteção desde a identificação dessa pessoa no seu território nacional.
Reconhece-se que essa reflexão não terá espaço para ser aprofundada nessa pesquisa, mas fica
aqui a ponderação para potenciais discussões, reflexões e pesquisas futuras.
A reflexão acima leva a pensar que se não houver uma normativa internacional global
que estabeleça o tráfico de pessoas como uma violação de direitos humanos, trazendo a temática
para a discussão no regime internacional dos direitos humanos, ficará sempre a critério dos
estados determinar até que ponto o regime interno de construção da política de tráfico levará
em conta o enfoque em direitos humanos. E, essa discricionariedade levará a continuidade da
violação dos direitos das pessoas e principalmente das mulheres vítimas, O que sabemos é que,
passados 20 anos da elaboração do Protocolo de Palermo, ainda, na prática dos Estados, há
muitas resistências para garantir direitos em detrimento da repressão ao crime. Isso ficou
bastante evidente nos estudos de caso do Brasil e da Espanha.
Os estudos de caso foram importantes para a demonstração de se e como os Estados
vêm incorporando a construção de um regime de enfrentamento ao tráfico de pessoas. A
pesquisa evidenciou que o Brasil vem construindo um regime interno de enfrentamento ao
tráfico de pessoas. O enfoque de enfrentamento dado leva em conta as agendas de securitização
das fronteiras e criminalização dos migrantes. Apesar disso, a promulgação da Lei 13.344/2016,
resultado de muita pressão das organizações da sociedade civil, indica um salto qualitativo no
enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil. Além de inserir outras modalidades de
exploração, aproximando-se mais ao Protocolo de Palermo, inclui uma seção específica
indicando em que compreende a proteção e assistência das vítimas, além de indicar como deve
ser desenvolvida a prevenção da criminalidade, antes somente contemplado na Política
Nacional (2006) e pelos PNETP (2008 e 2013). A inclusão das medidas protetivas e
assistenciais garantem maior força legal, permitindo a cobrança e a construção de modelos de
393

assistência mais voltados aos direitos humanos das vítimas. Com isso, o Brasil possui um
regime normativo que permite a proteção das vítimas. Por outro lado, a pesquisa indicou falhas
importantes na concretização efetiva desta proteção e atenção, quando da análise dos serviços
da Rede Nacional de Enfrentamento a Tráfico de pessoas e da Rede SUAS e SUS, responsáveis
de forma coordenada pelo atendimento das vítimas. Além destas falhas, apontou problemas no
campo da responsabilização dos agentes e da ausência de proteção, cuidado e restituição aos
prejuízos das vítimas. Assim, ainda há muito que se fazer pela construção do regime que tenha
como enfoque os direitos humanos. Nesse sentido, de forma despretensiosa, as reflexões
permitiram algumas sugestões/recomendações:
• Recomenda-se que a institucionalidade da política pública seja um dos pontos
centrais para a continuidade qualitativa da Rede Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas;
• Como visto, a governança do regime de enfrentamento ao tráfico de pessoas no
Brasil está sofrendo restrições com a diminuição dos atores que compõe o
CONATRAP, principalmente as OSCs. É fundamental que esse espaço e outros
sejam ampliados para aumentar o diálogo e a participação de todos os atores
relevantes para a construção dessa política;
• Seria importante, para seguir a orientação da Relatoria Especial do Tráfico (ONU),
que se criasse um espaço coletivo, paritário e autônomo que pudesse analisar, os
avanços e desafios da política de enfrentamento ao tráfico no Brasil. Um espaço de
discussão e de monitoramento da política;
• Pensa-se que a realização de diagnósticos sobre a situação do tráfico de pessoas no
Brasil deve ser feita a nível local, no máximo, regional, respeitando cada
particularidade local. Esse tipo de abordagem garantiria que se ganhasse com o
estudo e análise das especificidades de cada região. Os diagnósticos seriam mais
específicos e conseguiriam compreender as realidades locais e garantir uma
atuação, principalmente no âmbito no atendimento e proteção mais efetivos;
• No âmbito da responsabilização, aos atores do âmbito do direito devem ser mais
capacitados sobre o fenômeno do tráfico de pessoas, dos elementos fundantes do
tráfico de pessoas, especialmente mulheres, permitindo uma melhor compreensão
e condução das investigações e processos judiciais. Acredita-se que, compreender
o fenômeno do tráfico de pessoas levará a uma melhor compreensão sobre a questão
da irrelevância do consentimento nos casos de tráfico e da necessidade da utilização
394

de mecanismos de antecipação de colheita de provas para não revitimizar as


vítimas;
• Cada vez mais, os atores locais devem se apropriar do seu poder local e da sua
capacidade de construção de políticas locais, a partir das realidades vivenciadas,
assumindo a potencialidade de seu conhecimento, da capacidade de articulação e
de construtor de práticas mais eficazes e garantidoras principalmente para as
vítimas de tráfico de pessoas. Entende-se que essa é uma das principais ações para
se aprimorar, garantir efetivamente o atendimento humanizado das vítimas.
• O fortalecimento da Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, seja
na ampliação da rede, seja na capacitação da rede existente, juntamente às Políticas
públicas da saúde e assistência são fundamentais para que se consiga avançar na
construção de uma política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas que
pense, organize e efetivize atenção garantista.

A Espanha também vem construindo um regime interno de enfrentamento ao tráfico de


pessoas, desde a incorporação interna do Protocolo de Palermo em 2002. Como foi apresentado,
o contexto europeu força o enfoque de enfrentamento da securitização das fronteiras e
criminalização dos migrantes. Nesse sentido, questiona-se se as normas estão sendo aplicadas
de maneira efetiva para garantir os direitos das vítimas. Se por um lado as normas existem, por
outro, elas próprias criam brechas que acabam prejudicando o direito das vítimas, Exemplo
disso é o procedimento de identificação formal das vítimas. O primeiro passo para o início da
proteção e atenção das vítimas com enfoque em direitos deve ser a modificação do
procedimento de identificação formal das vítimas.
Nessa linha, apontam-se algumas sugestões/recomendações:

• É necessário primordialmente: 1. desvincular definitivamente a identificação das


vítimas da colaboração; 2. modificar o ator responsável pela identificação formal;
3. garantir e facilitar a presença de uma organização especializada no momento da
identificação de uma vítima, assim como em todos os momentos que a vítima
entender necessário.
• Ampliar o foco de construção de políticas públicas resultantes da exploração do
tráfico de pessoas, para além da modalidade do tráfico de pessoas para fins de
exploração sexual. Entende-se que a proposta de Lei Integral que englobe todas as
395

modalidades de exploração do tráfico de pessoas e determine as competências,


limites e participação dos atores responsáveis pelo enfrentamento ao tráfico de
pessoas e, principalmente, atores do âmbito da proteção e assistência às vítimas é o
principal e próximo passo a ser dado pela Espanha, inclusive porque são
recomendações dadas pela própria UE e grupo GRETA em seu último informe de
avaliação da Espanha (2018).
• Na perspectiva do atendimento às vítimas mulheres outra mudança fundamental
que deve ser priorizada pela Espanha é o reconhecimento do tráfico de pessoas
como uma forma de violência de gênero por todas as Comunidades Autônomas, o
que permitiria inserir as vítimas de tráfico a programas e benefícios de uma vítimas
de violência de gênero, melhorando sua capacidade de se reorganizar e reconstruir,
inclusive com benefícios financeiros que permitiram o início do restabelecimento e
empoderamos econômico dessas mulheres.
• A Espanha precisa criar uma Política Pública integral que atenda e proteja a todas
as vítimas das diversas modalidades de tráfico reconhecidas pela legislação. Esta
pesquisa finaliza no momento em que essa temática é uma das mais debatidas e
requeridas pelos atores da sociedade civil, entre elas e principalmente, pela RECTP.
• A pesquisa mostrou que o modelo de atenção e proteção espanhol privilegia a
atuação das organizações da sociedade civil. É inquestionável a importância da
atuação destas entidades para a prestação destes serviços. Por outro lado, é
importante que se tenha muito claro que a garantia de direitos deve ser
responsabilidade do Estado. Apesar de parecer óbvio, essa percepção coloca as
OSCs como atores fundamentais no processo do enfrentamento ao tráfico de
pessoas e, da prestação da atenção e proteção, mas também as coloca,
principalmente pelas suas características organizacionais, como atores importantes
na incidência política pela luta na garantia de direitos. Ou seja, elas devem ocupar
um espaço de construção e disputa pela maior garantia de direitos às vítimas,
mesmo que isso signifique, em muitos momentos, contrapor-se aos interesses do
Estado.
• Outro ponto relevante para a atuação das OSCs é a de que o Estado deveria criar
melhores indicadores de qualidade para o atendimento das vítimas e tráfico.
Indicadores estes que pudessem, de alguma maneira, mensurar a qualidade do
atendimento prestado para além da quantidade de pessoas ou de atendimentos
396

realizados. Esse ponto tão específico indica importante passo na construção do


regime com enfoque em direitos, uma vez que passa a compreender a atenção
prestada por meio dos resultados qualitativos na garantia e restabelecimento dessas
vítimas.

Finaliza-se esta pesquisa apontando que esta trouxe muitas reflexões e sugeriu algumas
recomendações que podem ser ideias iniciais a serem aprimoradas para a construção do
enfrentamento ao tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, a partir de uma perspectiva
de direitos, especialmente nos modelos brasileiro e espanhol, rompendo com o modelo da
criminalização e securitização dos Estados.
As mulheres vítimas de tráfico não podem esperar. A necessidade da continuidade e
aprimoramento da construção de um regime protetivo é mais que urgente!
397

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15 jun. 2020.

UNODC. Trafficking in persons: global patterns. Disponível em: http://www.unodc.


org/pdf/traffickinginpersons_report_2006ver2.pdf. pg. 45. Acesso em: 15 mar. 2019.

UNODC. United Nations Convention against Transnational Organized Crime and the
Protocols Thereto. Disponível em: http://www.unodc.org/unodc/en/treaties/
CTOC/index.html. Acesso em: 25 abr. 2017.

VINCENT, Isabel. Bertha, Sophia e Rachel: a sociedade da verdade e o tráfico das polacas
nas Américas. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006.

VLASSIS, D. The Global situation of transnational organized crime, the decision of the
international community to develop an international convention and the negotiation process.
Resource Material Serie, n. 59. Disponível em: https://www.unafei.or.jp/
publications/pdf/RS_No59/No59_33VE_Vlassis2.pdf. Acesso em: 20 maio 2020.
441

WEBER, Max. A política como vocação. Discurso pronunciado na Universidade de Munique


em 1918, publicado em 1919 por Duncker & Humblodt, Munique.

WEIJERS, M. LAP-CHEW L. Trafficking in women, forced labour and slavery-like practices.


In: MARRIAGE, domestic labour and prostitution. Utrecht and Bangkok: The Foundation
Against Trafficking in Women (STV)/The Global Alliance Against Trafficking in Women
(GAATW), 1997. Disponível em: http://lastradainternational. org/lsidocs/1137-
Trafficking%20in%20women%20Wijers-Lap%20Chew.pdf. Acesso em: 15 jan. 2020.

YERGA, S. Víctimas de trata de seres humanos: un reto para la Abogacía Española. 2015.
Consejo General de la Abogacía Española. Disponível em: https://
www.abogacia.es/actualidad/noticias/victimas-de-trata-de-seres-humanos-un-reto-para-la-
abogacia-espanola/. Acesso em: 20 set. 2020.

YOUNG, Oran R. International governance: protecting the environment in a stateless society.


Ithaca: Cornell University Press, 1994. p. 3,15.

ZARUR, George. Repensando o conceito de matrifocalidade. Disponível em:


http://www.dan.unb.br/images/doc/Serie015empdf.pdf. Acesso em: 15 abril de 2020.
442

Anexos
e
Apêndices
443

Anexo 1. Número de nacionais brasileiros expulsos da Espanha para Brasil


444

Anexo 2. Comitê de Ética da UFABC. Parecer n.3.612.959


445
446
447

Apêndice 1. Formulário para entrevistas

Roteiro para entrevistas atores governamentais do Brasil


Universidade Federal do ABC
Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais

Dia da Entrevista Local


Nome
Instituição
Função

A. Sobre o Regime Internacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas


➢ Qual é o Marco Normativo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas?
➢ Quais os principais avanços e deficiências deste marco para o enfrentamento ao
tráfico de pessoas nas linhas de repressão, responsabilização e atenção?
➢ Em que medida ele auxilia na proteção às vítimas?
➢ Quais os Marcos normativos Regionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas?
➢ Há correlação entre o fenômeno da migração e o tráfico de pessoas? Quais?

B. Sobre a Política Pública interna de enfrentamento ao tráfico de pessoas


➢ O que existe de política interna de enfrentamento ao tráfico de pessoas no
Brasil/Espanha?
➢ Quais os avanços da política e quais as deficiências?
➢ Especificamente na política de atenção às vítimas, o que o Brasil/Espanha tem
desenvolvido como política interna para proteção e atenção das vítimas?
➢ É suficiente para garantir o atendimento?

C. Sobre a Proteção das Vítimas de Tráfico

➢ Qual o modelo de proteção pensado pelo Brasil/Espanha?


➢ Como se garante proteção às vítimas de tráfico?
➢ Quais as principais demandas das vítimas?
➢ É possível atender todas essas demandas das vítimas?
➢ O que precisa mudar para que se possa melhorar a proteção das vítimas?
➢ No caso de uma vítima que precise ou deseje retornar. É possível garantir-lhe
proteção? Em destino? Em origem? Como isso se articula e verifica?

D. Sobre a atuação específica da OSC

➢ Qual é papel das OSCs na construção, monitoramento e atuação na política?


➢ O que o Estado poderia fazer que ele faz melhor que as OSCs?
➢ O que as OSC fazem melhor que o Estado?
➢ Qual a principal crítica que pode ser feita a atuação das OSCs?

Roteiro para entrevistas com mulheres vítimas de tráfico


448

Universidade Federal do ABC


Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais
Dia da Entrevista
Nome da entrevistada
Local

A. Sobre a trajetória de vida


➢ Onde você nasceu no?
➢ Em que cidades você morou?
➢ Onde você morava quando veio para a Espanha?
➢ Você tem filhos? Quantos anos?
➢ Até que série você estudou?
➢ O que você fazia? Estudava, trabalhava?
➢ Qual era seu trabalho?
➢ Qual era seu maior sonho no seu pais de origem
➢ Quem falou sobre a possibilidade de vir a Espanha?
➢ Como foi esse convite?
➢ Alguém te ajudou a vir?
➢ Como foi essa ajuda?
➢ Você teve que pagar alguma coisa para alguém?
➢ Você acha que foi enganada nesse processo? Por quem?
➢ Sua família sabe o que você iria fazer na Espanha?
➢ Qual seu maior sonho hoje?

B. Sobre sua ida para a Espanha


➢ Quando você veio para a Espanha?
➢ Porque você decidiu vir?
➢ Como você veio para cá?
➢ Você sabia para onde você vinha? Para onde você veio?
➢ Qual era seu maior desenho quando você veio?
➢ Você tem documentos na Espanha?

C. Sobre a percepção das Organizações da Sociedade Civil


➢ Quando essa organização entrou na sua vida?
➢ Como ela chegou até você?
➢ O que ela ofereceu? Atendimento jurídico, médico, trabalho, moradia? Outros?
➢ Você tem acesso a saúde gratuita na Espanha?
➢ Você tem documentos “papéis” na Espanha?
➢ Você pode trabalhar na Espanha?
➢ Qual a importância da Organização da Sociedade Civil para sua vida na
Espanha?
➢ Quem deveria oferecer assistência? (Estado ou OSC?) ou tanto faz?
➢ O que são Direitos Humanos?
➢ O que é cidadania?
D. Sobre o futuro
➢ O que você deseja para o futuro?
➢ Você deseja voltar ao Brasil?
449

Roteiro para entrevistas Organização Sociedade Civil ou Rede de OSC

Universidade Federal do ABC


Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais

Dia da Entrevista Local


Nome
OSC/ Rede
Função

E. Sobre o Regime Internacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas


➢ Qual é o Marco Normativo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas?
➢ Quais os principais avanços e deficiências deste marco para o enfrentamento ao
tráfico de pessoas nas linhas de repressão, responsabilização e atenção?
➢ Em que medida ele auxilia na proteção às vítimas?
➢ Quais os marcos Regionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas?
➢ Há correlação entre o fenômeno da migração e o tráfico de pessoas? Quais
pontos de contato?

F. Sobre a Política Pública interna de enfrentamento ao tráfico de pessoas


➢ O que Brasil/Espanha existe de política interna de enfrentamento ao tráfico de
pessoas?
➢ Quais os avanços da política e quais as deficiências?
➢ Especificamente na política de proteção e atenção às vítimas, o que o
Brasil/Espanha tem desenvolvido como política interna para proteção das vítimas?
➢ É suficiente?

G. Sobre a Proteção das Vítimas de Tráfico

➢ Como se garante proteção às vítimas de tráfico?


➢ Quais as principais demandas das vítimas?
➢ É possível atender todas essas demandas?
➢ No caso de uma vítima que precise ou deseje retornar. É possível garantir-lhe
proteção? Em destino? Em origem? Como isso se articula e verifica?
➢ O que precisa mudar para que se possa melhorar a proteção das vítimas?

H. Sobre a atuação específica da OSC (somente para OSC)

➢ Qual é papel das OSCs na construção, monitoramento e atuação na política?


➢ Quais as linhas de atuação da OSC? Qual dessas linhas é a mais importante?
➢ A OSC participa de alguma rede de OSCs?
➢ Qual a principal fortaleza e debilidade enfrentado por vocês na proteção às
vítimas?
➢ Como seria a proteção as vítimas sem a atuação das OSCs?
➢ Qual a principal crítica que pode ser feita a atuação das OSCs?
450

D.1 Perguntas Específicas para Redes:


(Red Española, Red Gallega, Red Catalana e GAATW)

➢ Qual a importância de participar de uma Rede OSCs?


➢ Em que medida auxilia no trabalho da proteção às vítimas?
➢ Em que medida esse trabalho em rede conseguiu algum avanço na proteção das
vítimas? Há como se medir isso?
451

Apêndice 2. Termo de Consentimento para Participação Entrevista

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

O (A) Sr(a)____________________________________________________________
RG no ____________________________________, nascido(a) em_____________________,
do sexo ___________________________, residente
à_______________________________________________________________________na
cidade de _________________________, está sendo convidado(a) a participar do estudo
Tráfico Internacional de mulheres: a caminho de um Regime internacional para proteção das
vítimas de tráfico com enfoque em Direitos Humanos. O objetivo deste estudo é propor uma
reflexão sobre a proteção internacional das mulheres vítimas de tráfico, baseada na governança
global e Marco dos Direitos Humanos, uma vez que o regime de enfrentamento ao tráfico
internacional de pessoas é focado na criminalização das pessoas e no Estado. Nesse sentido, a
problemática da pesquisa focaliza a construção da proteção internacional das mulheres vítimas
de tráfico de pessoas a partir do enfoque baseado nos Direitos Humanos. Minha abordagem
privilegia as organizações da sociedade civil, especialmente localizadas na Espanha e no Brasil,
por ocuparem espaços distintos dentro do arranjo de forças das institucionalidades internas de
cada país e, que vem, minimamente, conseguindo pautar a proteção das vítimas no âmbito dos
Estados.
Pretende-se realizar uma entrevista com um roteiro pré-estabelecido e com a sua gravação. A
pesquisa não pretende provocar nenhum tipo de risco, porém, pode-se provocar algum tipo de
cansaço ou até mesmo algum tipo de constrangimento pelo tema em si que está sendo abordado
e objeto da pesquisa.
Não há benefício direto para o participante. Somente no final da pesquisa poderemos concluir
e contribuir para a construção da proteção internacional das mulheres vítimas de tráfico de
pessoas a partir do enfoque baseado nos Direitos Humanos, aspecto que será de benefício de
todos os atores, principalmente das organizações da sociedade civil e das mulheres vítimas de
tráfico.
Em qualquer etapa do estudo, você terá acesso a profissional responsável pela pesquisa para
esclarecimento de eventuais dúvidas. O principal investigador é o Verônica Maria Teresi. que
pode ser encontrado no Endereço: Alameda da Universidade, s/n - Anchieta, São Bernardo do
Campo - SP, Telefone(s) (005511) 2320-6120. Se você tiver alguma consideração ou dúvida
sobre a ética da pesquisa, entre em contato com o Comitê de Ética em Pesquisa da UFABC,
localizado na Avenida dos Estados, 5001, Bloco A, Torre 1, 1° andar, Santo André, SP -
telefone: (005511) 3356-7632, e-mail: cep@ufabc.edu.br.

• É garantida a liberdade da retirada de consentimento a qualquer momento e deixar de


participar do estudo.
• É garantido deixar de responder a qualquer das perguntas do questionário sempre que
desejar, como por exemplo, quando se perguntar sobre fatos pessoais, questões da vida
pessoal, ou até, sobre a situação ou condição em que veio para o exterior, com a
possibilidade de prosseguir com o restante das perguntas.
• As informações obtidas serão analisadas, não sendo divulgado a identificação de
nenhum participante.
• Você tem direito de ser mantido atualizado sobre os resultados da pesquisa.
• Não há despesas pessoais para o participante em qualquer fase do estudo. Também não
há compensação financeira relacionada à sua participação. Se existir qualquer despesa
adicional, ela será absorvida pelo orçamento da pesquisa.
452

• Em caso de dano pessoal comprovadamente causado pelos procedimentos deste estudo,


você tem direito de solicitar indenizações legalmente estabelecidas.
• Os dados e os materiais coletados serão utilizados somente para esta pesquisa.

Acredito ter sido suficientemente esclarecido a respeito das informações que li ou que foram
lidas para mim, descrevendo o estudo “Tráfico Internacional de mulheres: a construção de um
Regime de proteção internacional das vítimas de tráfico com enfoque em Direitos Humanos”
Eu ME INFORMEI com a pesquisadora Verônica Maria Teresi sobre a minha decisão em
participar nesse estudo. Ficaram claros para mim quais são os propósitos, os procedimentos a
serem realizados, seus desconfortos e riscos, as garantias de confidencialidade e de
esclarecimentos permanentes. Ficou claro também que minha participação é isenta de despesas.
Concordo voluntariamente em participar deste estudo e poderei retirar o meu consentimento a
qualquer momento, antes ou durante o mesmo, sem penalidades, prejuízo ou perda de qualquer
benefício que eu possa ter adquirido.

Assinatura do participante Data / /

Declaro que obtive de forma apropriada e voluntária o Consentimento Livre e Esclarecido deste
entrevistado para a participação neste estudo. Sendo que uma via deste documento deve ficar
com o participante e outra em posse do pesquisador.

Assinatura do responsável pelo estudo Data / /


453

Apêndice 3. Lista de atores entrevistados

BRASIL
ATORES BRASILEIROS
ATOR GOVERNAMENTAL SOCIEDADE CIVIL
Defensoria Pública da União ASBRAD 829

Coordenação Nacional do Tráfico de PROJETO RESGATE na Espanha


Pessoas

Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de


Pessoas (conversas informais com PR, SP
e RJ)
Posto Humanizado de Atenção ao
Migrante (ASBRAD)

Consulado Brasil na Espanha

ESPANHA
ATORES ESPANHOIS
ATOR GOVERNAMENTAL SOCIEDADE CIVIL830

Ministerio de la Igualdad (Mirian Cáritas Española (Madrid)


Benterrak)
Policia Nacional (2018) – conversa Fundación Amaranta Asturias (Gijón)
informal
Relator Nacional de la Trata de Personas Fundación Cruz Blanca (Madrid)
– conversa informal
Médicos del Mundo (Madrid)
Proyecto Esperanza (Madrid)
Proyecto Resgate (España)
Proyeto Vagalume (Santiago de
Compostela)
Sicar-Catalunia (Barcelona)

829
No Brasil, a estratégia proposta para identificar as OSCs foi a de consultar os espaços de participação
legitimados pela Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil, nesse caso o
CONATRAP e os Comitês Estaduais e Regionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Nesse sentido, as
três OSCs entrevistadas pertencem a CONATRAP e duas delas ASBRAD e Projeto Resgate (fevereiro/março
2020), pertencem aos Comitês Estaduais de seus Estados. Ver em: http://www.justica.gov.br/sua-
protecao/trafico-de-pessoas/politica-brasileira/anexos_contrap/relacao_comites_etp_mar2016.pdf. Acesso
em: 15 out. 2019. Além disso, a OSC ASBRAD participa da Rede GAAT, rede importante para a pesquisa por
sua formatação com organizações de diversas partes do Mundo.
830
As organizações Fundación Cruz Blanca, Cáritas Española, Fundación Amaranta Asturias (Gijón) e Proyecto
Esperanza, pertencem a Red Española contra la Trata de Personas; a organização Sicar-Catalunia (Barcelona),
pertence a Red Catalaña contra la Trata de Personas e o Programa Vagalume (Santiago de Compostela),
pertence a Red Gallega contra la Trata de Personas.
454

ESPECIALISTAS
Grazziela Rocha (Brasil)
Guilherme Mansur (Brasil)
Maria Elena Sopeña Vallina (Espanha)
Waldimeiry Correa da Silva (Espanha)
Clara Corbera (Espanha)

Mulheres entrevistadas:
Nome831 Nacionalidade
Camomila Brasil
Hibisco República Dominicana
Jasmin Nigeria
Liz Brasil
Violeta Venezuela

Quatro delas se encontravam na Espanha e uma delas havia retornado ao Brasil


(Camomila). As entrevistas com as mulheres que se encontravam na Espanha, foram mediadas
pela organização Fundación Amaranta - Astúrias. A mulher brasileira que se encontrava no
Brasil já era conhecida da pesquisadora, uma vez que seu retorno voluntário ocorrido em 2016
teve a intermediação da pesquisadora na articulação com os atores brasileiros (Projeto Resgate
e Posto Humanizado de Atendimento ao Migrante e Projeto Resgate) e espanhóis (Proyecto
Vagalume e OIM).

831
Para efeitos de garantir anonimato, serão criados nomes fictícios.
455

Apêndice 4. Cronograma de Execução das entrevistas realizadas

Cronograma de Execução atividades relacionadas as entrevistas


Identificação Atores 12/08/2019 02/12/2019
Realização Entrevistas 20/01/2020 30/09/2020
Atores Brasileiros
Entrevista Atores Espanhóis 11/02/2020 30/09/2020
Entrevistas Mulheres 10/02/2020 31/05/2020
456

Apêndice 5 - Relatoria Especial em tema de tráfico de pessoas no âmbito do Conselho de


Direitos Humanos das Nações Unidas

Ano Sessão Título Título temático Nomenclatura

2019 41° período de Relatório da Relatora Inclusão social de vítimas e A/HRC/41/46


sessões (CDH) Especial sobre tráfico de sobreviventes de tráfico de
pessoas, especialmente pessoas
mulheres e crianças, Maria
Grazia Giammarinaro
2018 38° período de Relatório da Relatora Identificação precoce, A/HRC/38/45
sessões (CDH) Especial sobre tráfico de encaminhamento e
pessoas, especialmente proteção de vítimas ou
mulheres e crianças, Maria possíveis vítimas de tráfico
Grazia Giammarinaro de pessoas em movimentos
migratórios mistos
2017 35° período de Relatório da Relatora Fortalecer os padrões A/HRC/35/37
sessões (CDH) Especial sobre tráfico de voluntários das empresas
pessoas, especialmente para prevenir e combater o
mulheres e crianças, Maria tráfico de pessoas e a
Grazia Giammarinaro exploração do trabalho,
especialmente nas cadeias
de suprimentos
2016 32° período de Relatório da Relatora Tráfico de pessoas em A/HRC/32/41
sessões (CDH) Especial sobre tráfico de situações de conflito e pós-
pessoas, especialmente conflito: protegendo
mulheres e crianças, Maria vítimas de tráfico e pessoas
Grazia Giammarinaro em risco de tráfico,
especialmente mulheres e
crianças
2015 29° período de Relatório da Relatora Agenda que define o A/HRC/29/38
sessões (CDH) Especial sobre tráfico de trabalho do Relator
pessoas, especialmente Especial
mulheres e crianças, Maria
Grazia Giammarinaro
Segunda reunião consultiva A/HRC/29/38/Add.2
sobre o fortalecimento de
parcerias com relatores
nacionais sobre tráfico de
pessoas e mecanismos
equivalentes
2014 26° período de Relatório da Relator Exercício de avaliação do A/HRC/26/37
sessões (CDH) Especial sobre tráfico de trabalho do mandato em
pessoas, especialmente seu décimo aniversário
mulheres e crianças, Joy
Ngozi Ezeilo
Anexo Reforço das A/HRC/26/37/Add.1
parcerias com os relatores
nacionais sobre tráfico de
pessoas e mecanismos
equivalentes, reunião de
Berlim
457

Anexo - Exercício de A/HRC/26/37/Add.2


avaliação do trabalho do
mandato em seu 10º
aniversário

2013 23° período de Relatório da Relator Integração de uma A/HRC/23/48


sessões (CDH) Especial sobre tráfico de abordagem baseada em
pessoas, especialmente direitos humanos em
mulheres e crianças, Joy medidas para desencorajar
Ngozi Ezeilo a demanda que promove
todas as formas de
exploração de pessoas,
especialmente mulheres e
crianças, e que leva ao
tráfico de pessoas
2012 20° período de Relatório da Relator Uma abordagem baseada A/HRC/20/18
sessões (CDH) Especial sobre tráfico de nos direitos humanos para a
pessoas, especialmente administração da justiça
mulheres e crianças, Joy criminal em casos de
Ngozi Ezeilo tráfico de pessoas
2011 17° período de Relatório da Relator O direito a um remédio A/HRC/17/35
sessões (CDH) Especial sobre tráfico de eficaz para as pessoas
pessoas, especialmente traficadas
mulheres e crianças, Joy
Ngozi Ezeilo
Anexo - Consulta sobre o A/HRC/17/35/Add.5
papel dos mecanismos
regionais e sub-regionais
nos esforços internacionais
para combater o tráfico de
pessoas, especialmente
mulheres e crianças,
convocada pela SR sobre
tráfico de pessoas,
especialmente mulheres e
crianças (Dakar, 4 e 5 de
outubro de 2010)
Anexo - Consulta sobre o A/HRC/17/35/Add.6
direito à reparação efetiva
de vítimas de tráfico,
convocada pela SR sobre
tráfico de pessoas,
especialmente mulheres e
crianças (Bratislava, 22 e 23
de novembro de 2010)
2010 14° período de Relatório da Relator Cooperação regional e sub- A/HRC/14/32
sessões (CDH) Especial sobre tráfico de regional na promoção de
pessoas, especialmente uma abordagem baseada
mulheres e crianças, Joy nos direitos humanos para
Ngozi Ezeilo combater o tráfico de
pessoas
2009 10° período de Relatório da Relator Mandato do Relator A/HRC/10/16
sessões (CDH) Especial sobre tráfico de Especial sobre tráfico de
pessoas, especialmente pessoas, especialmente
mulheres e crianças
458

mulheres e crianças, Joy


Ngozi Ezeilo

2008 Não há relatórios apresentados

2007 4° período de Relatório da Relatora Casamento forçado no A/HRC/4/23


sessões (CDH) Especial sobre tráfico de contexto do tráfico de
pessoas, especialmente pessoas, especialmente
mulheres e crianças, Sigma mulheres e crianças
Huda

2006 62° período de Relatório da Relatora Demanda por exploração E/CN.4/2006/62


sessões (CDH) Especial sobre tráfico de sexual comercial e tráfico
pessoas, especialmente
mulheres e crianças, Sigma
Huda

2005 61° período de Relatório da Relator Mandato do Relator E/CN.4/2005/71


sessões (CDH) Especial sobre tráfico de Especial sobre tráfico de
pessoas, especialmente pessoas, especialmente
mulheres e crianças mulheres e crianças

Quadro: Relatórios Relator Especial sobre tráfico de pessoas. 832

832
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatórios da Relatoria Especial sobre o tráfico de
pessoas. Disponível em: https://www.ohchr.org/SP/Issues/Trafficking/Pages/annual.aspx. Acesso em: 15 jun.
2020.
459

Apêndice 6. Alterações legislativas sobre tráfico de pessoas no Brasil (1940-2016)

Código Penal 1940 Redação dada pela Lei Redação dada pela Lei Lei n.
nº 11.106, de 2005 nº 12.015, de 2009 13.344/2016
(art. 16)
Art. Tráfico de mulheres Tráfico internacional Tráfico internacional Art. 149-A.
231 de pessoas de pessoa para fim de Agenciar,
exploração sexual
aliciar, recrutar,
Promover ou facilitar a Promover, intermediar Promover ou facilitar a transportar,
entrada, no território ou facilitar a entrada, no entrada, no território transferir,
nacional, de mulher que território nacional, de nacional, de alguém que comprar, alojar
nele venha exercer a pessoa que venha nele venha a exercer a ou acolher
prostituição, ou a saída exercer a prostituição ou prostituição ou outra
de mulher que vá exercê- a saída de pessoa para forma de exploração pessoa,
la no estrangeiro: exercê-la no estrangeiro: sexual, ou a saída de mediante grave
Pena - reclusão, de três a Pena - reclusão, de 3 alguém que vá exercê-la ameaça,
oito anos. (três) a 8 (oito) anos, e no estrangeiro. violência,
multa. Pena - reclusão, de 3 coação, fraude
§ 1º - Se ocorre qualquer (três) a 8 (oito) anos.
das hipóteses do § 1º do § 1º - Se ocorre qualquer ou abuso, com a
art. 227833: das hipóteses do § 1º do § 1 º Incorre na mesma finalidade de:
Pena - reclusão, de art. 227: pena aquele que
quatro a dez anos. Pena - reclusão, de 4 agenciar, aliciar ou I - remover-lhe
(quatro) a 10 (dez) anos, comprar a pessoa
órgãos, tecidos
§ 2º - Se há emprego de e multa traficada, assim como,
violência, grave ameaça tendo conhecimento ou partes do
ou fraude, a pena é de § 2º Se há emprego de dessa condição, corpo;
reclusão, de 5 (cinco) a violência, grave ameaça transportá-la, transferi-
12 (doze) anos, além da ou fraude, a pena é de la ou alojá-la. II - submetê-la
pena correspondente à reclusão, de 5 (cinco) a
a trabalho em
violência 12 (doze) anos, e multa, § 2º A pena é
além da pena aumentada da metade condições
§ 3º - Se o crime é correspondente à se: análogas à de
cometido com o fim de violência. I - a vítima é menor de escravo;
lucro, aplica-se também 18 (dezoito) anos;
multa. II - a vítima, por
III - submetê-la
enfermidade ou
deficiência mental, não a qualquer tipo
tem o necessário de servidão;
discernimento para a
prática do ato; IV - adoção
III - se o agente é
ascendente, padrasto,
ilegal; ou
madrasta, irmão,
enteado, cônjuge, V - exploração
companheiro, tutor ou sexual.
curador, preceptor ou
empregador da vítima,

833
Art. 227 - Induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem:
Pena - reclusão, de um a três anos.
§ 1o Se a vítima é maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, ou se o agente é seu ascendente, descendente,
cônjuge ou companheiro, irmão, tutor ou curador ou pessoa a quem esteja confiada para fins de educação, de
tratamento ou de guarda: (Redação dada pela Lei nº 11.106, de 2005)
Pena - reclusão, de dois a cinco anos.
460

ou se assumiu, por lei Pena - reclusão,


ou outra forma, de 4 (quatro) a
obrigação de cuidado,
proteção ou vigilância;
8 (oito) anos, e
ou multa.
IV - há emprego de
violência, grave ameaça § 1o A pena é
ou fraude. aumentada de
§ 3º Se o crime é um terço até a
cometido com o fim de metade se:
obter vantagem
econômica, aplica-se I - o crime for
também multa. cometido por
Art. Tráfico interno de Tráfico interno de
231-A pessoas pessoa para fim de
funcionário
exploração sexual público no
exercício de
-- Promover, intermediar Promover ou facilitar o suas funções ou
ou facilitar, no território deslocamento de alguém a pretexto de
nacional, o dentro do território
recrutamento, o nacional para o exercê-las;
transporte, a exercício da prostituição
transferência, o ou outra forma de II - o crime for
alojamento ou o exploração sexual: cometido
acolhimento da pessoa Pena - reclusão, de 2
contra criança,
que venha exercer a (dois) a 6 (seis) anos.
prostituição: adolescente ou
Pena - reclusão, de 3 § 1 Incorre na mesma pessoa idosa ou
(três) a 8 (oito) anos, e pena aquele que com
multa. agenciar, aliciar, vender deficiência;
ou comprar a pessoa
Parágrafo único. Aplica- traficada, assim como,
se ao crime de que trata tendo conhecimento III - o agente se
este artigo o disposto dessa condição, prevalecer de
nos §§ 1º e 2º do art. 231 transportá-la, transferi- relações de
deste Decreto-Lei. la ou alojá-la. parentesco,
domésticas, de
§ 2º A pena é
aumentada da metade coabitação, de
se: hospitalidade,
I - a vítima é menor de de dependência
18 (dezoito) anos; econômica, de
II - a vítima, por
autoridade ou
enfermidade ou
deficiência mental, não de
tem o necessário superioridade
discernimento para a hierárquica
prática do ato; inerente ao
III - se o agente é
exercício de
ascendente, padrasto,
madrasta, irmão, emprego, cargo
enteado, cônjuge, ou função; ou
companheiro, tutor ou
curador, preceptor ou IV - a vítima do
empregador da vítima,
tráfico de
ou se assumiu, por lei
ou outra forma, pessoas for
obrigação de cuidado, retirada do
proteção ou vigilância; território
461

ou nacional.
IV - há emprego de
violência, grave ameaça
ou fraude. § 2o A pena é
§ 3º Se o crime é reduzida de um
cometido com o fim de a dois terços se
obter vantagem o agente for
econômica, aplica-se primário e não
também multa.
integrar
organização
criminosa
462

Apêndice 7. Institucionalidade do enfrentamento ao tráfico de pessoa nos entes subnacionais

Programa e ou Política de Plano Estadual Comitê de Prevenção Estadual ou


Estado Núcleos de ETP
ETP de ETP Regional
Portaria nº 070, de 11 de junho
Acre 2015
2015
não x

Amazonas834 2011 Lei nº 950/2006 de 16/03/2006 não sim

Amapá835 Decreto nº 0783/2012 não não Decreto nº 0932/2012


O Plano Estadual
ETP é uma
conquista da Decreto n°12.387 de 14 de setembro de
Bahia 2011 Decreto 13.210/2011
sociedade e do 2010
Governo no Estado
da Bahia
Programa Estadual de
Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas, por meio do Decreto
Estadual N. 32.915, de 21 de
Decreto Estadual N. 32.915, de
Ceará 21 de dezembro de 2018
dezembro de 2018, foi alterado não sim
para Programa Estadual de
Atenção ao Migrante, Refugiado
e Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas

834
O Ministério da Justiça assinou o convenio Nº: Convênio 753518/2010 Período de Vigência: 2010 a 2014. Objeto do Convênio: Implantação de 01 núcleo de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas e de 13 Postos Avançados de Atendimento Humanizado ao Migrante. Orçamento: R$ 501.852,70 (Quinhentos e um mil, oitocentos e cinquenta de
dois reais e setenta centavos. Ver em: MINITERIO DA JUSTIÇA. Relatório do Amazonas. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-
pessoas/redes-de-enfrentamento/11o-relatorios-semestrais-da-rede-de-nucleos-de-enfrentamento-ao-trafico-de-pessoas-netp-e-dos-postos-avancados-de-atendimento-
humanizado-ao-migrante-paahm. Acesso em: 20 ago. 2020.
835
Convenio assinado até 2013.
463

Gerência de ETP e Apoio ao


Distrito Decreto n. 34.320/2013 e Comitê Distrital de Enfrentamento ao
Migrante. Decreto n. não
Federal836 39.807/2019
Decreto n. 36.178/2014 Tráfico de Seres Humanos

Comitê Estadual de Atenção ao Migrante,


Refugiado e Apátrida, Enfrentamento ao
Goiás 2008. Portaria 069/2019 não não Tráfico de Pessoas e Erradicação do
Trabalho Escravo no Estado de Goiás –
COMITRATE-GO
No momento, não há Núcleo de
Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas em funcionamento
apesar da previsão legal
constante no Decreto n.
31.124/2015. O atendimento e
apoio às vítimas de tráfico de
Maranhão pessoas é realizado pela Descreva o nº: 31.124/2015 não sim
SEDIHPOP, por meio da
Coordenação de ações de
enfrentamento ao tráfico de
pessoas e ao trabalho escravo e o
Centro Estadual de Atendimento
às Vítimas (CEAV) da
SEDIHPOP.

836
Convenio assinado até 2014.
464

Programa de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas (PETP) por
meio do Decreto Estadual nº
45.870/2011, garantindo sua
instituição na estrutura Comitê de Atenção ao Migrante, Refugiado
administrativa da SEDS e Apátrida, Enfrentamento ao Tráfico de
Minas Gerais 2012 conforme previsto na Lei não Pessoas e Erradicação do Trabalho Escravo
Delegada Estadual nº 180/2011 de Minas Gerais (Comitrate/MG).
e, posteriormente, no Decreto Resolução SEDPAC nº 002/2016.
Estadual nº 46.647/2014. A
promulgação da Lei Estadual nº
23.304/2019 extinguiu o
programa
Núcleo Estadual de
Enfrentamento ao Tráfico de
Mato Pessoas de Mato Grosso – Descreva o nº: 764 de
não sim
Grosso837 NETRAP/MT foi criado por 16/12/2016
meio do Decreto nº 764, de 16 de
dezembro de 2016

LEI N° 7.029, DE 30 DE
Pará JULHO DE 2007
Decreto Nº 423, 22.05.12 não sim

837
Convenio assinado com Ministério da Justiça: Nº: 881485/2018. Período de Vigência: 28/12/2018 A 28/06/2020. Objeto do Convênio: Implementar o Núcleo Estadual de
Enfrentamento ao tráfico de Pessoas em Mato Grosso Orçamento: 200.000,00 (concedente) e 2.000,00 (convenente) Total: 202.000,00
465

2011 - Núcleo de Enfrentamento


ao Tráfico de Pessoas na Política Estadual de
estrutura da Secretaria de Defesa Enfrentamento ao
Social. Decreto Estadual nº Decreto nº 25.594, de 01 de julho Tráfico de Pessoas, Comitê Estadual de Enfrentamento ao
Pernambuco 37.069/2011 e alterações no de 2003, Programa de Prevenção instituída por Tráfico de Pessoas, por meio do Decreto
838 Decreto Estadual nº42.559/15. e Enfrentamento ao Tráfico de intermédio do Estadual nº 37.069/2011 e alterações no
Núcleo de Prevenção ao Tráfico Seres Humanos Decreto nº 31.659, Decreto Estadual nº42.559/15.
de Mulheres da Secretária de 14 de abril de
da Mulher do Município de 2008
Ipojuca/PE.
2014 Núcleo Municipal de Comitê Municipal de Prevenção ao Tráfico
Decreto Municipal nº 122 de 19
Ipojuca/PE Prevenção ao Tráfico de
de março de 2014.
não de Mulheres do Brasil, pelo Decreto nº
Mulheres 122/2014
Política Estadual de
Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas no Paraná iniciou suas
Decreto 7353 publicado dia 21
Paraná de fevereiro de 2013.
atividades a partir da não não
institucionalização dada por
meio do Decreto 7353 publicado
dia 21 de fevereiro de 2013

838
Convenio assinado com Ministério da Justiça. Nº: 035/2008 Período de Vigência: 27/06/2008 à 301/06/2011 Objeto do Convênio: Implementação de Ações de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas, articulando repressão e responsabilização, prevenção, atendimento e reinserção social das vítimas, conforme estabelecido na Política Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Orçamento: R$ 100.000,00. E, Nº: 75.3332/2010 Período de Vigência: 30/12/2010 à 11/09/2013 Objeto do Convênio: Reaparelhar o
Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de pessoas e Implantar a Unidade Móvel Itinerante com a finalidade de formar, ampliar e fortalecer as redes de assistências às vítimas
do Tráfico de Pessoas. Orçamento: R$ 796.536,01.
466

2019, a Política Estadual de


Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas passou a fazer parte da
nova Secretaria de Estado de
Desenvolvimento Social e
Direitos Humanos (SEDSDH). A
Lei 7.211 de 18 de janeiro de Comitê Estadual de Prevenção e
2016 Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
que estabelece o Plano (CETP-RJ), Decreto nº 43.280/ 2011.
Rio de
O NETP-RJ 2008 Plurianual (PPA) 2016-2019. não Em 2015, Comitê a fusão do CETP-RJ com
Janeiro839 Volume II. p. 532 e 589. Prevê a Comissão Estadual de Erradicação do
operacionalização da Trabalho Escravo. O decreto de fusão segue
Política de Enfrentamento ao em tramitação na Casa Civil.
Tráfico de Pessoas.
Meta: 2015. O Decreto 44.825 de
04 de junho de 2014
lançou o Plano Estadual de
Enfrentamento ao
Tráfico de pessoas.
Núcleo de Enfrentamento de
Tráfico de Pessoas foi instituído
Rio Grande do no Estado, no âmbito do Poder
Executivo do Estado do Rio não não não
Sul840 Grande do Sul, pelo Decreto nº
50.115, de 28 de fevereiro de
2013.

839
Convenio assinado com Ministério da Justiça. Nº: 37/2008 Período de Vigência: 04 anos Objeto do Convênio: Implementação de ações de enfrentamento ao tráfico de
pessoas, articulando repressão e responsabilização, prevenção, atendimento e reinserção social de vítimas, conforme estabelecido na Política Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas, aprovada pelo Decreto nº 5.948/2006. Orçamento: R$ 102.000,00 (Cento e dois mil reais)
840
Convenio assinado com Ministerio da Justiça: Nº: 759478/2011
467

Programa Estadual de
Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas. Decreto n. 60.047/2014
e 62.293/2016 Programa Plano Estadual de 1 Estadual e 15 Regionais em reativação, 1
Decreto Estadual nº 60.047 de 10
São Paulo841 de janeiro de 2014
Estadual Enfrentamento ao Enfrentamento ao Municipal na cidade de São Paulo (criado
Tráfico de Pessoas junto Tráfico de Pessoas em 2015).
à Secretaria de Justiça por meio
do Núcleo de Enfretamento ao
Tráfico de Pessoas
Tabela: Institucionalidade da política pública do tráfico de pessoas nos entes subnacionais. Elaboração própria.842

841
Convenio assinado com Ministério da Justiça. Nº: Convênio nº 38/2008 Período de Vigência: 27/06/2008 a 25/09/2012 Objeto do Convênio Implementação do Núcleo de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Estado de São Paulo.
842
Dados retirados dos Relatórios enviados semestralmente pela Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Ver em: MINISTERIO DA JUSTIÇA. Relatório da
Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/redes-de-enfrentamento/11o-relatorios-
semestrais-da-rede-de-nucleos-de-enfrentamento-ao-trafico-de-pessoas-netp-e-dos-postos-avancados-de-atendimento-humanizado-ao-migrante-paahm. Acesso em: 20 ago.
2020.
468

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