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All content following this page was uploaded by Verônica Maria Teresi on 31 March 2021.
Se o processo de escrita é solitário para todos e todas nós, ao mesmo tempo me senti
abraçada por uma rede de apoio em todo o momento do Doutorado, especialmente neste ano
tão difícil, isolado e solitário. Esse sentimento foi fundamental nesse processo de finalização
da escrita desta tese.
Ao final dessa pesquisa, posso garantir que ela só foi possível pela colaboração, apoio
e confiança de muitas pessoas. Estou certa de que a temática envolve compromisso com a vida
humana e isso requer paixão, dedicação, sensibilidade, capacidade e principalmente
persistência. Gostaria de agradecer a todos e todas que compartilharam desses “instantâneos”
quase cinco anos que se acabam e que se concretizam nesse trabalho, acreditando que dele virão
muitos outros, pensados por muitas outras mentes, e que juntos, possam permitir mudanças no
enfrentamento ao tráfico de mulheres e nas vidas de tantas mulheres que se encontram
vulneráveis e em situação de exploração por esse mundo afora.
Inicialmente agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), por ter me beneficiado com uma bolsa de estudos, de janeiro de 2018 a janeiro de
2020, condição essencial para a conclusão dessa pesquisa.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da
UFABC, especialmente a todos e todas que tive a oportunidade de conviver por quadrimestres
que me modificaram totalmente. A escolha de um Programa Interdisciplinar foi a melhor
escolha que fiz e com ela tive a oportunidade de abrir muitas “caixinhas” de conhecimento antes
desconhecidas e principalmente a “caixinha” da curiosidade por tantas outras que ainda tenho
que descobrir. Também gostaria de agradecer aqueles que, por momentos, me fizeram duvidar
se aquele era meu lugar e se eu conseguiria finalizar uma tese ali. Gostaria de deixar um
agradecimento afetuoso especialmente aos professores e professoras Alessandra Teixeira,
Arlene Martinez Ricoldi, Camila Nunes Dias, Claudio Luís Camargo Penteado, Elias David
Morales Martinez, José Blanes Sala, Marilda Aparecida Menezes, Roberta Guimarães Peres, e
Sergio Amadeu da Silveira.
Aos meus colegas do Doutorado das turmas de 2015 a 2020, com quem compartilhei
muitas manhãs e tardes, muitas reflexões, muitas leituras compartilhadas, muitas trocas sobre
nossos projetos de pesquisa e a realização da I Semana Pesquisa Interdisciplinar do PCHS-
UFABC. Muitos destes já são doutores e trilham seus caminhos para além da fortaleza da
Universidade, especialmente, Celina Lerner, Dulci Lima, Francine Tadielo, Joyce Souza, Karen
Fonseca, Robson Silva Santos, Rodolfo Avelino, Rosângela Teixeira, Tais Oliveira, Thiago
Mattioli e aos meus amigos coloquianos: Danilo Garnica Simini e Michel Carvalho.
À secretaria do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais, no nome
da Melina Mergl, quem sempre nos auxiliou e resolveu inúmeras de nossas dúvidas
administrativas.
Em especial quero agradecer ao meu orientador, professor e posso dizer com todo o
respeito, amigo, Dr. Gilberto Marcos Antônio Rodrigues pela confiança, estímulo desde os
tempos de graduação e Mestrado, ensinamentos, orientações, partilha de muitos momentos,
acadêmicos e de militância no enfrentamento ao tráfico de pessoas. Orgulho de poder termos
convivido tantos anos. É uma honra ser sua orientanda.
Quero agradecer às Professoras Doutoras Alessandra Teixeira e Marilda Aparecida
Menezes por todo o ensinamento, disponibilidade, pelas contribuições feitas na Banca de
qualificação realizada em agosto de 2018 e por aceitarem participar da minha banca final de
avaliação. Agradeço também às professoras Dras. Fernanda de Magalhães Dias Frinhani e
Maria Lucia Pinto Leal por aceitarem compor a Banca final de avaliação.
Agradeço às diversas pessoas, movimentos de mulheres, da infância, da economia
solidária de Santos e região, e tantos outros que na multidisciplinaridade e interseccionalidade
vêm construindo uma discussão na cidade de Santos sobre o enfrentamento ao tráfico de pessoas
e com quem venho aprendendo muito.
Ao Núcleo de Políticas Públicas e Sociais da UNIFESP/ Baixada Santista pela acolhida
desde 2018 da temática do tráfico de pessoas, pela partilha de ideias e projetos, pela
oportunidade de aprender com cada uma das professoras, professores, pesquisadores, alunos e
alunas, colaboradores, pessoas que pensam muito sobre as políticas públicas da cidade de
Santos e com os quais compartilho sonhos de ver uma cidade mais humana e acolhedora para
todos e todas. Agradeço nas pessoas das queridas professoras Dra. Anita Kurka e Dra. Gisele
Bovolenta.
Agradeço aos atores que atuam no enfrentamento ao tráfico de pessoas e que me
permitiram compreender o fenômeno do tráfico de mulheres no Brasil e na Espanha a partir de
seus olhares, principalmente a situação das mulheres brasileiras na Espanha e especialmente
por acreditarem no meu trabalho como pesquisadora. No Brasil, agradeço a Rede Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, especialmente aos NETP e PAHHM. Agradeço
especialmente nas pessoas Leila Silva (PA) Ludimila Paiva (RJ), Livia Xerez (CE), Silvia
Xavier (PR), Ricardo Alves (SP), Jeanne de Aguiar (PE), Andreia Castro (SP). E as OSCs
ASBRAD, no nome da Dalila Figueiredo, ONG Astral, no nome da Beth Fernandes, do Projeto
Resgate, no nome do Marco Aurelio, Cáritas Foz Iguacú, no nome do Carlos. Na Espanha,
especialmente ao Centro Vagalume (Galicia), Médicos del Mundo (Madrid), Proyecto
Esperanza (Madrid), Fundación Amaranta/Asturias (Gijón), Proyecto Sicar-Barcelona
(Barcelona), Accem (Madrid), Fundación Cruz Blanca (Madrid), Cáritas Española (Marid).
Não posso deixar de citar pessoalmente Iru, José, Lourdes Pazo, Luis Aguirre, Marta González,
Ramon Esteso, Vanesa Alvarez, Domi, Clara Corbera, Ester, Carmen Martinez, Hilde Daems,
Luiz Aguirre, Teresa De Gasparis, que para além do trabalho, se tornaram exemplos de
dedicação e compromisso com a vida dessas mulheres. Agradeço também a Betania Nze,
Enrique Lopez Villanueva e a Mirian Benterrak, pelo apoio e contribuição.
Agradeço às pesquisadoras e pesquisadores que me permitiram tantos olhares sobre o
tráfico de pessoas, especialmente Dra. Maria Elena Sopeña Vallina, minha querida Maleni; ao
querido Dr. Guilherme Dias Mansur, pelas longas conversas e reflexões sobre o tráfico de
pessoas; a Dra. Graziella Rocha, pela militância e dedicação sem fim ao tema; a minha querida
Dra. Marta Carballo de la Riva; minha querida Fernanda Fuentes, a querida e incansável Renata
Braz, ao Dr. Luciano Dornelas, pela partilha de seu conhecimento, a Dra. Waldimeiry Correa
da Silva pelo apoio, compartilhamento de olhares, conversas, indicações de leituras.
Ao Instituto Universitário de Desarrollo y Cooperación de la Universidad Complutense
de Madrid, pela acolhida de sempre, pela oportunidade de desenvolver parte da minha pesquisa
de tese como pesquisadora convidada, pelos conhecimentos compartilhados e amizade, em
especial ao diretor Dr. José Ángel Sotillo, Bruno Ayllón, David Álvarez, Jorge García Burgos,
Juncal Gilsanz Blanco, Rocío Lópes, Tahina Ojeda Medina, e todos com os quais compartilhei
momentos especiais no ambiente acadêmico espanhol.
Em especial agradeço a “nuestro despachito unido”! Mesmo distante estamos unidas,
Juncal Gilsanz Blanco e Rhina Cabezas. Obrigado pela sempre amizade, acolhida na Espanha
e pelo mimo em forma de flor no Brasil.
Às minhas queridas amigas e amigos que torceram por mim e me apoiaram. Em especial,
Dra. Maria do Rosário Salles (Marô), pela leitura cuidadosa e carinhosa da tese. A Márcia Farah
Reis, pela luta, perseverança, compromisso com as causas mais nobres e pelo apoio sempre. À
Sonise Gomes pelas reflexões partilhadas e tão importantes para a tese. Agradeço às amigas e
amigos Adriana Machado, Cristiane Elias, Érika Mendes Silva, Flávia Rios, Luciana Lima,
Josieni Pereira, Tatiana Moreira, Verônica Altef Barros, Vinicius Nobre, pelo carinho e
estimulo mesmo à distância.
Aos meus amigos e amigas da “UP”: amigos dos tempos da graduação que
permaneceram pelos sonhos comuns. Obrigado pelo apoio na qualificação, pelas mensagens de
carinho e de incentivo até o final desta tese.
Agradeço a minha rede de apoio mais próxima pelo amor em forma de paciência,
estimulo, companheirismo, amor. Ao meu amor Carlos Alberto, por toda a parceria, apoio,
incentivo e, por compreender minhas ausências neste processo. À minha pimpolha pelo tempo
que deixamos de “pimpolear” juntas: brincando, desenhando, cozinhando, passeando... Aos
meus pais, pelo apoio incondicional de sempre... Sem vocês esta tese não teria sido possível.
Agradeço também a querida Vera Lúcia Campos Otaviano, um anjo e me auxiliou na
revisão do texto e da formatação final. Pela sua calma, tranquilidade e por me dar a confiança
de que conseguiríamos terminar a revisão no prazo!
Espero não ter deixado ninguém de fora dos agradecimentos, mas se por acaso isso
acontecer, sintam-se todos abraçados, em um sincero gesto de muito obrigada!
Seremos imperfeitos
Porque a perfeição continuará sendo o aborrecido privilégios dos deuses
Mas neste mundo, [...]
Seremos capazes
De viver cada dia como se fosse o primeiro
E cada noite como se fosse a última.
Esta pesquisa tem como objetivo verificar se estamos diante de um processo de construção de
um regime internacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas, especialmente mulheres, a
partir de um enfoque em direitos humanos. Parte-se da constatação de que existe um regime de
combate ao tráfico de pessoas, disposto principalmente pela Convenção das Nações Unidas
contra o Crime Organizado Transnacional e o Protocolo de Palermo (2000), que se desenvolve
a partir de uma lógica securitária e de criminalização internacional do crime organizado
transnacional. Esse regime dá centralidade ao Estado, deixando em segundo plano a proteção
das vítimas. A pesquisa foca no tráfico internacional de mulheres para fins de exploração
sexual, construindo-se os elementos fundantes que caracterizam e especializam essa
modalidade de tráfico para esse público específico. Nesse sentido, percebe-se que esse regime
é excludente de um regime de proteção às mulheres. Dessa forma, a problemática da pesquisa
focaliza a possível construção da proteção internacional das mulheres vítimas de tráfico de
pessoas a partir do enfoque baseado nos Direitos Humanos, devolvendo e conferindo
centralidade às vítimas nas políticas de tráfico. A abordagem privilegia as organizações da
sociedade civil, especialmente localizadas no Brasil e na Espanha, por ocuparem espaços
distintos dentro do arranjo de forças das institucionalidades internas de cada país, e que vêm
pautando a proteção das vítimas no âmbito dos Estados. Trata-se de uma pesquisa de natureza
qualitativa, de base documental, bibliográfica, com pesquisa exploratória (entrevistas). As
entrevistas foram gravadas e transcritas, dando voz principalmente às mulheres e às
organizações da sociedade civil entrevistadas. A análise exige a percepção de idiossincrasias
dos atores fundamentais para compreender anseios, percepções e motivações de ação. A
pesquisa descreve os processos de construção das políticas públicas internas de enfrentamento
ao tráfico de pessoas no Brasil e na Espanha, desde a incorporação das normativas
internacionais de Palermo, assim como descreve as políticas públicas criadas internamente, a
governança e institucionalidade desenvolvidas, analisando se estas têm permitido a criação de
um regime com enfoque em direitos humanos, visando e priorizando a proteção e atenção das
mulheres vítimas. Procura-se identificar elementos relevantes para a construção do regime
baseado em direitos humanos, apontando reflexões para uma intervenção nessa perspectiva.
Como considerações finais, avalia-se que o jogo de forças entre os atores, nos espaços
internacionais e internos nos estados, considerando também os interesses e pautas próprias dos
atores, vem permitindo avanços na construção de uma mentalidade, no sentido da necessidade
de proteção das vítimas e, no âmbito interno, verificam-se políticas públicas internas que
forçam e condicionam os estados a proteger e atender às vítimas. De outro lado, ainda há muito
a ser construído e, principalmente, muito a se fazer para que a vítima de tráfico de pessoas esteja
efetivamente na centralidade das ações internacionais e nacionais no enfrentamento ao tráfico
de pessoas, especialmente mulheres.
This research aims at verifying if we are facing a construction process of an international regime
to confront human trafficking, especially women, with an emphasis on human rights. It stems
from the acknowledgment of the existence of a regime to combat human trafficking, disposed
mainly by the United Nations Convention against Transnational Organized Crime and the
Palermo Protocol (2000), which unfolds from a security rationale and the international
criminalization of transnational organized crime. This regime gives the State a central role,
leaving the protection to the victims in the background. The research focuses on the
international trafficking of women for the purpose of sexual exploitation, building the
underlying elements that characterize and specialize this kind of trafficking for this specific
profile. In this sense, it is noticeable that this regime excludes a regime of protection to women.
Hence, the core of the research focuses on the possible construction of international protection
of the women who are victims of trafficking from a perspective based on Human Rights,
bringing the victims to the central debate in the policies related to human trafficking. The
approach privileges organizations in the civilian society, especially those located in Brazil and
Spain, for occupying distinct spaces within the power arrangement of the internal institutions
of each country, and that have been guiding the protection of victims in the realm of the States.
The research has a qualitative, documentary and bibliographic nature, with exploratory research
(interviews). The interviews were recorded and transcribed, giving voice especially to the
women and organizations from the civilian society that were interviewed. The analysis demands
the perception of idiosyncrasies of the main actors to understand fears, perceptions and motives
for action. The research describes the processes behind the development of internal public
policies to confront human trafficking in Brazil and Spain, from the incorporation of
international norms in Palermo, including the way public policies created internally are
described, to the developed governance and institutions, analyzing if these have allowed the
creation of a regime with an emphasis on human rights, aiming at and prioritizing the protection
and attention to the women who are victims. There is the intention to identify elements that are
relevant to the construction of a regime based on human rights, raising reflections for an
intervention within this perspective. In the final considerations, it is assessed that the powerplay
among the actors, in the international and internal domains of the state, also considering the
interests and agenda of these actors, have been allowing for advancements in the construction
of a mindset towards the need to protect the victims and, in the internal realm, public policies
that force and condition the states to protect and assist the victims can be verified. On the other
hand, there is still much to be developed and, especially, a lot to be done so as to effectively
bring the victim of human trafficking into the center of the international and national actions to
confront human trafficking, especially women.
Keywords: International trafficking of women. International Human Rights Law. Civil Society
organization. Brazil. Spain.
RESUMEN
Esta investigación tiene como objetivo verificar si estamos frente un proceso de construcción
de un régimen internacional para combatir la trata de personas, especialmente mujeres, desde
un enfoque de derechos humanos. Se basa en el hecho de que existe un régimen para combatir
la trata de personas, principalmente previsto por la Convención de las Naciones Unidas contra
la Delincuencia Organizada Transnacional y el Protocolo de Palermo (2000), que se desarrolla
desde una lógica de seguridad y criminalización del crimen organizado transnacional. Este
régimen otorga centralidad al Estado, dejando en un segundo plano la protección de las
víctimas. La investigación se centra en la trata internacional de mujeres con fines de explotación
sexual, construyendo los elementos fundantes que caracterizan y especializan este tipo de trata
para este público específico. En este sentido, es evidente que este régimen excluye un régimen
de protección para las mujeres. De esta manera, el tema de investigación se enfoca en la posible
construcción de una protección internacional para las mujeres víctimas de trata de personas
desde el enfoque de Derechos Humanos, retornando y dando centralidad a las víctimas en las
políticas de trata. El enfoque favorece a las organizaciones de la sociedad civil, especialmente
ubicadas en Brasil y España, ya que ocupan espacios diferenciados dentro de las
institucionalidades internas de cada país, que han orientado la protección de las víctimas en el
ámbito de los Estados. Es una investigación cualitativa, basada en documentos, bibliografía,
con investigación exploratoria (entrevistas). Las entrevistas fueron grabadas y transcritas,
dando voz principalmente a las mujeres y organizaciones de la sociedad civil entrevistadas. El
análisis requiere la percepción de idiosincrasias de los actores fundamentales para comprender
los deseos, percepciones y motivaciones para la acción. La investigación describe los procesos
de construcción de políticas públicas internas para combatir la trata de personas en Brasil y
España, desde la incorporación de los estándares internacionales de Palermo, así como describe
las políticas públicas creadas internamente, la gobernabilidad e institucionalidad desarrolladas,
analizando si estas han permitido la creación de un régimen con enfoque de derechos humanos,
orientado y priorizando la protección y atención de las mujeres víctimas. Se busca identificar
elementos relevantes para la construcción del régimen de derechos humanos, señalando
reflexiones para una intervención en esta perspectiva. Como consideraciones finales, se evalúa
si el juego de fuerzas entre los actores, en los espacios internacionales e internos de los estados,
considerando también los intereses y pautas propias de los actores, ha permitido avances en la
construcción de una mentalidad, en el sentido de la necesidad de proteger a las personas y,
internamente, existen políticas públicas internas que obligan y condicionan a los Estados a
proteger y asistir a las víctimas. Por otro lado, aún queda mucho por construir y, principalmente,
mucho por hacer para que la víctima de la trata de personas esté efectivamente en el centro de
las acciones internacionales y nacionales de lucha contra la trata de personas, especialmente
mujeres.
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 30
I. Contextualização do tema. De que fenômeno estamos falando? ......................................... 30
II. Problema de pesquisa .......................................................................................................... 31
III Travessias, andanças, bagagens, construção de estímulos ................................................. 35
IV. Limitações da Pesquisa ..................................................................................................... 37
V. Contextualizando a pesquisa interdisciplinar ..................................................................... 41
VI. Aspectos preliminares sobre a proteção internacional dos direitos humanos e o enfoque em
direitos ..................................................................................................................................... 45
VII. Procedimentos Metodológicos ......................................................................................... 51
A. Fase exploratória................................................................................................................. 51
A.1.Estado da arte.................................................................................................................... 51
A.2 Técnicas, instrumentos de coletas de pesquisa e aproximação com o campo .................. 53
B. Análise dos Dados Coletados.............................................................................................. 55
C. Ética na pesquisa ................................................................................................................. 57
VIII. Organização da Tese ....................................................................................................... 58
PARTE 1................................................................................................................................. 60
DO FENÔMENO DO TRÁFICO DE MULHERES À CONFIGURAÇÃO DO REGIME
COMPLEXO DE ENFRENTAMENTO ............................................................................. 60
CAPITULO 1: ELEMENTOS FUNDANTES DO TRÁFICO DE MULHERES:
EXPLORAÇÃO, VULNERABILIDADE, GÊNERO, MIGRAÇÃO FORÇADA. ......... 61
1.1 Mobilidade Humana como Fenômeno Social ................................................................... 62
1.1.1 A mobilidade humana forçada e não forçada ................................................................. 70
1.2 O Conceito de Vulnerabilidade ......................................................................................... 74
1.2.1 A vulnerabilidade como suscetibilidade ao tráfico de pessoas ...................................... 77
1.2.2. A vulnerabilidade decorrente da pandemia de COVID-19 ........................................... 79
1.3 A Interseccionalidade da Pobreza, o Gênero e Raça como Elementos de Exclusão Social e
Geradores de Vulnerabilidades ao Tráfico de Pessoas ............................................................ 82
1.4 O Mercado, as Mulheres, a Prostituição e o Tráfico de Pessoas ....................................... 91
CAPÍTULO 2 - O FENÔMENO SOCIAL DO TRÁFICO INTERNACIONAL DE
PESSOAS: PERSPECTIVAS A PARTIR DO TRÁFICO DE MULHERES ................. 95
2.1 A Perspectiva do Fenômeno do Tráfico de Mulheres a Partir do Brasil ......................... 102
2.1.1 Apontamentos sobre o fenômeno tráfico de mulheres brasileiras à Espanha .............. 111
2.2 Quem são as Mulheres Vítimas de Tráfico no Contexto Espanhol? ............................... 117
2.2.1 As histórias de mulheres permeadas pela experiência do fenômeno do tráfico de pessoas
129
2.2.1.1 Jasmin, a nigeriana de cabelos longos trançados ....................................................... 130
2.2.1.2 Hibisco, a dominicana de voz grave e potente .......................................................... 132
2.2.1.3 Violeta, a venezuelana de voz doce e cheia de esperança ......................................... 135
2.2.1.4 Liz, a brasileira falante .............................................................................................. 138
2.2.1.5 Considerações finais sobre as entrevistas realizadas ................................................. 141
CAPÍTULO 3 - O REGIME INTERNACIONAL COMPLEXO DO
ENFRENTAMENTO AO TRAFICO DE MULHERES: UMA PERSPECTIVA
HISTÓRICA ........................................................................................................................ 143
3.1 Do Fenômeno ao Regime ................................................................................................ 143
3.1.1 Combate à escravidão e ao tráfico de pessoas escravizadas ......................................... 143
3.2 Descrevendo Criticamente a Construção Normativa do Regime Internacional ao Tráfico de
Pessoas, Principalmente Mulheres e Crianças ....................................................................... 147
3.2.1 As relações de poder na construção do conceito da criminalidade organizada transnacional
158
3.2.2 Antecedentes da Convenção do Crime Organizado Transnacional e seus Protocolos . 161
3.2.2.1 Congressos das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Criminosos
161
3.3 Marco Normativo das Nações Unidas ............................................................................. 165
3.3.1 A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional............. 165
3.3.1.1 Aspectos comparativos entre os Protocolos do Tráfico de Pessoas x Contrabando de
Migrantes ............................................................................................................................... 169
3.3.2 Relatoria Especial em tema de tráfico de pessoas no âmbito do Conselho de Direitos
Humanos das Nações Unidas ................................................................................................ 173
3.3.3.A Organização Internacional do Trabalho (OIT) ......................................................... 179
3.3.4 Organização Mundial das Migrações (OIM) ................................................................ 185
3.3.4.1 Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) .................... 186
3.3.5 Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e o fenômeno do tráfico de mulheres 187
3.4. A conformação dos Regimes Regionais de Enfrentamento ao Tráfico de Mulheres para fins
de Exploração Sexual ............................................................................................................ 190
3.4.1 A conjuntura regional na América Latina para o enfrentamento ao tráfico de pessoas192
3.4.1.1 O enfrentamento ao tráfico de pessoas no âmbito da OEA ....................................... 195
3.4.1.2 O Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) e o enfrentamento ao tráfico de pessoas202
3.4.2 O enfrentamento ao tráfico de pessoas no âmbito da Europa....................................... 206
3.4.2.1 Marco da União Europeia .......................................................................................... 206
3.4.2.2 Marco do Conselho da Europa .................................................................................. 209
3.4.2.3. Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) ............................ 214
3.5 O Regime Internacional Complexo ................................................................................. 215
3.5.1 Regime Internacional complexo do tráfico de pessoas ................................................ 217
3.5.2 A atuação das organizações da sociedade civil no regime complexo de enfrentamento ao
tráfico de pessoas ................................................................................................................... 220
3.5.2.1 As redes Global Alliance Against Traffic in Women (GAATW) e Coalition Against
Trafficking in Women (CATW) ............................................................................................ 235
PARTE 2............................................................................................................................... 237
ESTUDOS DE CASOS BRASIL E ESPANHA ................................................................ 237
CAPÍTULO 4 - O BRASIL E O REGIME COMPLEXO DO TRÁFICO DE PESSOAS,
EM ESPECIAL DE MULHERES ..................................................................................... 238
4.1 A Internalização do Tráfico de Pessoas pelos Estados Nacionais: o caso Brasil ............ 239
4.1.1 O Regime complexo de governança do Brasil para o enfrentamento ao tráfico de pessoas,
em especial mulheres ............................................................................................................. 240
4.2 A Construção da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil . 243
4.2.1 A política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas e os planos nacionais de
enfrentamento ao tráfico de pessoas ...................................................................................... 243
4.2.2 O Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (CONATRAP) ............ 254
4.2.3 A Legislação Interna sobre Tráfico de Pessoas no Brasil ............................................ 257
4.3 O Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas: olhares interministeriais ................................. 263
4.3.1 Ministério da Justiça – Secretaria Nacional de Justiça (SNJ) ...................................... 263
4.3.2 Ministério da Justiça – Secretaria Nacional de Segurança Pública (SNSP) ................. 268
4.3.3 Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos ......................................... 270
4.3.4 Ministério da Cidadania ............................................................................................... 272
4.3.5. Ministério da Saúde (MS) ........................................................................................... 274
4.3.6 Ministério das Relações Exteriores (MRE) .................................................................. 274
4.4 O Pacto Federativo no Brasil e o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas ........................ 277
4.5 Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil ................................. 280
4.5.1 Assistência às vítimas no âmbito do Sistema Único da Assistência Social (SUAS) ... 288
4.6 A Dimensão da responsabilização do Tráfico Internacional de Pessoas ......................... 298
4.6.1 Informações da Polícia Federal .................................................................................... 299
4.6.2 Defensoria Pública da União (DPU) ............................................................................ 301
4.6.3 O lugar das mulheres no sistema de responsabilização do tráfico ............................... 302
4.7 Orçamento para a Política Pública do Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas ................. 309
4.8 Breves Conclusões Parciais do Capitulo 4: avanços e desafios da política pública de
enfrentamento ao tráfico de pessoas ...................................................................................... 312
CAPÍTULO 5 - A ESPANHA E O REGIME COMPLEXO DO TRÁFICO DE
MULHERES ........................................................................................................................ 318
5.1 A Internalização do enfrentamento ao tráfico de pessoas ............................................... 318
5.1.1 Sistema de proteção às vítimas de tráfico, principalmente às mulheres estrangeiras ... 323
5.1.2 Os Planos Integrais de Luta contra o Tráfico de Mulheres para fins de Exploração Sexual
na Espanha ............................................................................................................................. 334
5.1.3 A Espanha e o financiamento da política de enfrentamento ao tráfico de pessoas ...... 341
5.2 Relatoria Nacional contra o Tráfico de Seres Humanos.................................................. 343
5.3. A Red Española contra la Trata de Personas (RECTP) ................................................ 344
5.4 Avanços e desafios da política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas ............. 347
5.5 O Trabalho em rede: a cooperação internacional entre OSCs para retorno de mulheres
brasileiras na rota Brasil-Espanha ......................................................................................... 348
5.5.1 Fluxo de cooperação inter-redes ................................................................................... 351
5.5.2 A experiência de retorno de Camomila ........................................................................ 354
5.6 Breves conclusões finais do Capitulo 5: avanços e desafios da política pública de
enfrentamento ao tráfico de pessoas ...................................................................................... 360
CAPÍTULO 6 - A CAMINHO DA CONSTRUÇÃO DE UM REGIME BASEADO NO
ENFOQUE EM DIREITOS HUMANOS? ....................................................................... 364
6.1 Princípios do Enfoque em Direitos .................................................................................. 370
6.2 Reflexões para uma Intervenção na Perspectiva do Enfoque em Direitos ...................... 373
6.3 O Brasil está a Caminho da Construção de um Regime Baseado no Enfoque em Direitos
Humanos? .............................................................................................................................. 375
6.4 A Espanha está a Caminho da Construção de um Regime Baseado no Enfoque em Direitos
Humanos? .............................................................................................................................. 380
6.5 Breves Conclusões Parciais do Capitulo 6: a Caminho da Construção de um Regime
Baseado no Enfoque em Direitos Humanos .......................................................................... 387
CAPÍTULO 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................... 389
REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 397
Anexo 1. Número de nacionais brasileiros expulsos da Espanha para Brasil ....................... 443
Anexo 2. Comitê de Ética da UFABC. Parecer n.3.612.959 ................................................. 444
Apêndice 1. Formulário para entrevistas ............................................................................... 447
Apêndice 2. Termo de Consentimento para Participação Entrevista .................................... 451
Apêndice 3. Lista de atores entrevistados ............................................................................. 453
Apêndice 4. Cronograma de Execução das entrevistas realizadas ........................................ 455
Apêndice 5 - Relatoria Especial em tema de tráfico de pessoas no âmbito do Conselho de
Direitos Humanos das Nações Unidas................................................................................... 456
Apêndice 6. Alterações legislativas sobre tráfico de pessoas no Brasil (1940-2016) ........... 459
Apêndice 7. Institucionalidade do enfrentamento ao tráfico de pessoa nos entes subnacionais
462
30
INTRODUÇÃO
1
O conceito de Regime Internacional nasceu na década de 1970, na Teoria Política e de Relações Internacionais.
Entende-se por regime internacional como “conjuntos de princípios, normas, regras e procedimentos de tomada
de decisão, explícitos ou implícitos, em torno dos quais as expectativas de atores convergem em uma dada área
das relações internacionais.” (tradução livre). KRASNER, S. D. International regimes. Ithaca: Cornell
University Press, 1983. p. 2. Ou ainda “instituições sociais que definem práticas, atribuem papéis e guiam a
interação dos ocupantes de tais papéis em uma determinada área.” (tradução livre) YOUNG, O. R.
International governance: protecting the environment in a stateless society. Ithaca: Cornell University, 1994.
p. 3.
2
Importante destacar que o Protocolo de Palermo menciona a palavra “proteção”, somente quatro vezes.
3
Ver em: BERNTEIN. Elizabeth. Carceral politics as gender justice? The “traffic in women” and neoliberal
circuits of crime, sex, and rights. Theory and Society, v. 41, n. 3, p. 233-259, 2012. DIAS, Guilherme Mansur.
Migração e crime: desconstrução das políticas de segurança e tráfico de pessoas. 2014. Tese apresentada ao
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Doutorado em Antropologia Social. UNICAMP. Ver PIRES, Monica
Sodré. Enfrentamento ao tráfico de pessoas: condicionantes domésticos dos Estados e formação da agenda
brasileira. 2017. Doutorado USP.
32
4
ONU. Declaração Universal dos Direitos do Homem. 1948. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-
content/uploads/2018/10/DUDH.pdf. Acesso em: 2 ago. 2019.
34
Nesse sentido, propõe-se discutir sobre o papel que as OSCs5 têm desempenhado,
especialmente para assegurar a atenção e proteção dessas vítimas, atuação esta individual ou
em rede, dentro da lógica de governança global, onde outros atores, para além dos Estados e
das Organizações Internacionais (OIs), desempenham a função de pensar e de garantir a
proteção dessas vítimas por conexões diversas. Se por um lado esses atores têm emergido como
protagonistas na proteção e atenção das vítimas de tráfico, desempenhando medidas tanto
internas como internacionais (proteção, atenção, advocacy, lobbying, cooperação, entre outras),
por outro é necessário abordar as críticas existentes à atuação desses atores não governamentais,
seja porque o campo das OSCs é diverso entre si, seja porque elas possuem agendas próprias e
que podem estar em conflito com o suporte desejado e esperado pelas próprias vítimas 6.
Para tanto, parte-se de uma hipótese principal e outra secundária: Hipótese principal:
A proteção e assistência internacional das vítimas de tráfico de pessoas devem estar amparadas
no Marco Referencial dos Direitos Humanos e não em marcos normativos de securitização.
Hipóteses secundárias: 1. As redes de OSCs são atores protagonistas no tensionamento com
5
No Brasil são consideradas Organizações da Sociedade Civil (OSCs), conforme O Marco Regulador Organização
Sociedade Civil (MROSC): Artigo 2º I - Organização da sociedade civil:
a) entidade privada sem fins lucrativos que não distribua entre os seus sócios ou associados, conselheiros,
diretores, empregados, doadores ou terceiros eventuais resultados, sobras, excedentes operacionais, brutos ou
líquidos, dividendos, isenções de qualquer natureza, participações ou parcelas do seu patrimônio, auferidos
mediante o exercício de suas atividades, e que os aplique integralmente na consecução do respectivo objeto
social, de forma imediata ou por meio da constituição de fundo patrimonial ou fundo de reserva;
b) as sociedades cooperativas previstas na Lei no 9.867, de 10 de novembro de 1999; as integradas por pessoas
em situação de risco ou vulnerabilidade pessoal ou social; as alcançadas por programas e ações de combate à
pobreza e de geração de trabalho e renda; as voltadas para fomento, educação e capacitação de trabalhadores
rurais ou capacitação de agentes de assistência técnica e extensão rural; e as capacitadas para execução de
atividades ou de projetos de interesse público e de cunho social.
c) as organizações religiosas que se dediquem a atividades ou a projetos de interesse público e de cunho social
distintas das destinadas a fins exclusivamente religiosos. Ver em: BRASIL. Conceito de sociedade civil
organizada: marco regulador organização sociedade civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13019.htm. Acesso em: 20 nov. 2019.
Na Espanha, são consideradas organizações da sociedade civil,
Artigo 2.
1. As entidades do Terceiro Setor de Ação Social são aquelas organizações de privado, decorrente do cidadão ou
da iniciativa social, sob diferentes modalidades, que respondem a critérios de solidariedade e participação social,
para fins de interesse geral e ausência de lucro, que promovem o reconhecimento e exercício de direitos civis,
bem como os direitos econômicos, sociais ou culturais de
pessoas e grupos que sofrem de condições vulneráveis ou que estão em risco de exclusão social.
2. De qualquer forma, as entidades do Terceiro Setor de Ação Social são as associações, fundações, bem como
as federações ou associações que as integram, desde que cumprir as disposições desta Lei. Para a representação
e defesa de seus interesses de maneira mais efetiva e de acordo com a Lei Orgânica 1/2002, de 22 de março, que
regulamenta direito de associação e com seus regulamentos específicos, as entidades do Terceiro Setor de A
Ação Social pode formar associações ou federações que, por sua vez, podem ser agrupadas cada. Ver em: BOE.
Ley 43/2015, de 9 de octubre, del Tercer Sector de Acción Social. Disponível em: https://www.
boe.es/buscar/pdf/2015/BOE-A-2015-10922-consolidado.pdf. Acesso em: 15 mar. 2020.
6
ARADAU, Claudia. Rethinking trafficking in women politics out of security. New York: Palgrave Macmillan,
2008.
35
A jornada que me levou a desenvolver este trabalho se iniciou há cerca de quinze anos
(2004), na cidade de Santos (SP). Naquela época, participava da Comissão Municipal de
Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil de Santos, onde tive a oportunidade de fazer
parte, como pesquisadora, de alguns projetos coordenados pela Organização Internacional do
Trabalho (OIT) e me apresentaram a temática do tráfico de pessoas, tema que ainda estava
sendo inicialmente compreendido no Brasil. Estava-se principiando a discussão e se
comemorando a recente ratificação do Protocolo de Palermo7.
Esses trabalhos me estimularam a desenvolver o Mestrado em Direito Internacional, em
que procurei compreender a cooperação internacional para o enfrentamento ao tráfico de
mulheres brasileiras vítimas de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual para a
Espanha8. A pesquisa da minha dissertação de Mestrado em Direito Internacional 9 suscitou a
discussão sobre a perspectiva dos Direitos Humanos, possibilitando a compreensão e apontando
alguns caminhos para o enfrentamento. Durante o processo, e mesmo não sendo o meu foco de
estudo, a dinâmica do trabalho desenvolvido pelos atores não governamentais, em especial das
organizações da sociedade civil (OSCs), despertou o meu interesse. A finalização dessa
pesquisa, em 2007, levou a outras perguntas e novos questionamentos, principalmente no que
se referia ao atendimento das vítimas brasileiras que desejavam retornar ao Brasil ou aquelas
que eram obrigadas a retornar em função de processos de deportação por irregularidade
documental.
A minha dissertação de Mestrado (2007) me permitiu trabalhar no Instituto
Universitario de Desarrollo y Cooperacion de la Universidad Complutense de Madrid (IUDC-
7
Mais adiante falaremos sobre os Documentos Internacionais que regulam o enfrentamento ao tráfico de pessoas,
entre eles o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional
Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, daqui em
diante Protocolo de Palermo (2000). Ratificado pelo Brasil em 2004.
8
Naquele momento, a única pesquisa realizada no Brasil sobre o tráfico de pessoas era a “PESTRAF - Pesquisa
sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil” (2002)
e nela a Espanha aparecia como principal destino das mulheres brasileiras vítimas de tráfico. Disponível em:
http://www.childhood.org.br/wp-content/uploads/2014/03/Pestraf_2002.pdf. Acesso em: 20 jan. 2020.
9
TERESI, Verônica Maria. A cooperação internacional para o enfrentamento ao tráfico de mulheres
brasileiras para fins de exploração sexual: o caso Brasil – Espanha. Dissertação (Mestrado) - UniSantos,
2007. Disponível em: http://biblioteca.unisantos.br/tede/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=61. Acesso em:
15 nov. 2019.
36
UCM), desenvolvendo um projeto no qual se pôde ampliar o estudo das redes de atores que
prestavam atendimento às vítimas brasileiras de tráfico e construir, juntamente com alguns
atores governamentais e organizações não governamentais, pistas para a construção de redes de
atores regionais e internacionais (Brasil e Espanha) que pudessem oferecer garantias e melhorar
o atendimento às vítimas em destino e nos processos de retorno, se assim fosse o caso
(2008/2010)10. Nesse contexto, realizou-se pelo IUDC/UCM, em Madri (2008), o Seminario
Internacional Articulación de la Red Hispano-brasileña em el contexto de la Atención a las
brasileñas víctimas de trata”11, evento que permitiu articular atores governamentais e não
governamentais brasileiros e espanhóis para planejar redes de atendimento às vítimas de tráfico
brasileiras. Ainda na Espanha, participei da pesquisa desenvolvida entre 2009 e 2013 que
originou o livro “Mulheres Brasileiras na Conexão Ibérica: um estudo comparado entre
Migração Irregular e Tráfico”12.
No período 2010-2013, e já de retorno ao Brasil, tive a oportunidade de desenvolver
algumas consultorias. Uma delas resultou no Diagnóstico Nacional sobre Tráfico de Pessoas,
que foi utilizado para subsidiar o Diagnóstico Mercosul sobre o tráfico de mulheres com fins
de exploração sexual (RMAAM13). Outro resultou na elaboração do Guia de Referência para a
Rede de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil (2012)14, outras, em cursos formativos
(Rede EaD-SENASP e FUNDAP) para capacitar agentes públicos (2013); outra ainda para
10
Em 2008, o Brasil dava início à execução do I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP)
(2008/2011), fato que sinalizou ao coletivo de atores regionais e internacionais sua importância, ampliando os
diálogos, as discussões, problematizando vários aspectos do enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil e na
Espanha. A Espanha também estava iniciando o I Plan Estatal contra la Trata de Personas para fines de
Explotación Sexual (2009/2011).
11
CARBALLO, Marta; GARCÍA, Jorge; TERESI, Verônica. (org.). Seminario Internacional Articulación de
la Red Hispano-Brasileña en el contexto de la atención a las brasileñas víctimas de trata Madrid, 2009.
IUDC. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/16498425/Memoria-SeminarioTrata-Dec08. Acesso
em: 10 out. 2019.
12
LEAL, Maria Lucia; TERESI, Veronica Maria; DUARTE, Madalena. Mulheres brasileiras na conexão
ibérica: um estudo comparado entre migração irregular e tráfico. 1. Ed. Curitiba: Appris, 2013. A partir da
análise da trajetória de nove mulheres brasileiras, esta pesquisa constatou a precarização das relações de trabalho
e a desproteção social vivenciadas no Brasil e nos países destino (Portugal e Espanha); a angústia resultante do
machismo, racismo e outras formas de estigmas, preconceitos e xenofobia em diferentes fases de suas vidas.
Tais fatores reforçam, entre outros achados, a ideia de que os processos migratórios e as situações de tráfico de
pessoas, vivenciadas por essas mulheres é resultado das contradições do processo de globalização, acirradas
pela crise de acumulação do capital e de seus impactos no mundo do trabalho em consonância com a questão
de gênero.
13
MERCOSUL. O tráfico de mulheres com fins de exploração sexual no MERCOSUL. Disponível em: www.
mercosurmujeres.org. Acesso em: 20 jul. 2020.
14
TERESI, Verônica; HEALY, Claire. Guia de referência para a rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas
no Brasil. Brasília, DF: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Justiça, 2012. Disponível em:
http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos/cartilhaguiareferencia.pdf.
Acesso em: 20 out. 2019.
37
15
O projeto foi implementado pelo ICMPD em parceria com a Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da
Justiça (SNJ), o Departamento de Polícia Federal (DPF), o Ministério Público Federal (MPF) e o Instituto de
Migração e Direitos Humanos (IMDH).
38
O tráfico de pessoas pode ser analisado desde diversas finalidades de exploração. Esta
pesquisa se limita a observar o fenômeno do tráfico de mulheres para fins de exploração sexual,
seja pela própria trajetória pessoal da autora na área, seja pela percepção de que o fenômeno do
tráfico de pessoas para a exploração sexual tem uma construção histórica mais percebida pelos
atores que serão abordados na pesquisa.
Apreendeu-se como estratégia de pesquisa que, para analisar se estamos diante de um
processo de criação de um regime internacional para as vítimas de tráfico com enfoque baseado
em Direitos Humanos, era necessário estudar algumas experiências de atuação de Estados.
Importante destacar que o tráfico de pessoas acontece em grande parte dos países do
mundo: dentro de um mesmo país, entre países fronteiriços e até entre diferentes continentes.
O tráfico de pessoas se deu incialmente pelas práticas escravocratas e institucionalizadas do
século XVI, principalmente da África para as Américas. A partir do século XVIII/XIX, ou seja,
mais recentemente, o tráfico internacional acontecia a partir do hemisfério Norte em direção ao
Sul, de países mais desenvolvidos para os menos desenvolvidos. Atualmente, verifica-se que
acontece em todas as direções: do Sul para o Norte, do Norte para o Sul, do Leste para o Oeste
e do Oeste para o Leste. Percebe-se que um mesmo país pode ser o ponto de partida, de chegada
ou servir de ligação entre outras nações no tráfico de pessoas16.
Escolheu-se o Brasil e a Espanha por alguns motivos.
Inicialmente, interessava analisar dois modelos de Estados que participassem de Blocos
de integração diferentes, neste caso, União Europeia/Conselho da Europa/OSCE e
OEA/Mercosul, e que essas conformações permitissem estudar as normas específicas sobre
tráfico de pessoas que conformam esses regimes regionais.
Era importante encontrar um país que tenha sido ou que ainda é referência por atender
a um número acentuado de vítimas brasileiras; nesse sentido, a Espanha, até aproximadamente
2008, recebeu e atendeu um elevado número de mulheres brasileiras17. Há indícios de que, após
esse período, em função da crise econômica na Europa, de 2009/2010 e especialmente na
Espanha18, somado à passada percepção de melhora das condições econômicas e sociais do
16
OIT. Tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. Claudia Sérvulo da Cunha Dias (coord.). Brasília,
DF: OIT, 2005. p. 12.
17
RIVA, Marta Carballo. TERESI, Veronica Maria. Documento de Trabajo nº: 14 Investigación: “Hacia un
Protocolo de Actuación en el Contexto Actual De Trata De Mujeres Brasileñas en España”. IUDC, 2009, p. 28-
37. Disponível em: https://www.ucm.es/data/cont/docs/599-2013-11-16-DT_14_Hacia_un_protocolo_
de_actuacion.pdf. Acesso em: 15 out. 2019.
18
R7. Entenda a crise na Europa: governos de Portugal, Itália, Grécia, Irlanda e Espanha estão endividados.
(27/05/2010). Disponível em: http://noticias.r7.com/economia/noticias/entenda-a-crise-na-europa-
20100526.html. Acesso em: 15 out. 2019.
40
Brasil19, muitas mulheres que haviam sido vítimas de tráfico, que se encontravam em situação
de irregularidade documental, e estavam limitadas à atuação profissional pelo endurecimento
das normativas de permanência, iniciaram um processo de tentativa de retorno ao Brasil.
Outro documento importante e que fundamentou o objeto da presente pesquisa foi o
amplo diagnóstico sobre a situação do tráfico de pessoas na Espanha intitulado “La trata de
seres humanos en España: víctimas invisibles”(2012)20. Trata-se de relatório produzido durante
quatro anos pelo órgão Defensor del Pueblo, ligado às Cortes Gerais Espanholas e encarregado
de defender os direitos fundamentais e liberdades públicas por meio da supervisão das
atividades das administrações públicas. O referido documento informa que “os dados oficiais
obtidos afirmam que o perfil médio da vítima de tráfico de pessoas na Espanha corresponde a
uma mulher em situação documental regular, de nacionalidade romena, entre 18 e 32 anos, ou
brasileira entre 33 e 42 anos.” (grifo nosso).
Para verificar as necessidades e as formas como as redes de apoio se articulam para
atendimento, retorno e outras demandas das vítimas, seria importante estudar um país que
apresentou a necessidade de articulação com a rede de atores no Brasil. Nesse caso, a Espanha
também preenche esse requisito. Dados do Ministerio del Interior, da Dirección General de
Policía Nacional (Espanha), obtidos via Consulado Geral do Brasil em Madri, em 24/05/2018,
apontam para um total de 3146 pessoas brasileiras deportadas ao Brasil, entre 2010 e 2017,
sendo 1448 mulheres (Anexo 1)21.
Considera-se interessante analisar modelos diversos na conformação de políticas
públicas de atenção às mulheres em situação de prostituição, exploração sexual e vítimas de
tráfico. No caso da Espanha, o atendimento oferecido é promovido pelas OSCSs, que são
parceiras do Poder Público e cofinanciadas para prestarem esse atendimento. Por sua vez, no
Brasil, optou-se por prestar, principalmente, o atendimento às vítimas de tráfico de pessoas por
19
Ver em: IPEA. Crescimento da economia e mercado de trabalho no Brasil. 2015. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/TDs/td_2036.pdf. Acesso em: 15 out. 2019. O GLOBO.
PIB brasileiro fecha 2010 com crescimento de 7,5%, maior desde 1986, aponta IBGE. (03/03/2011)
Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/pib-brasileiro-fecha-2010-com-crescimento-de-75-maior-
desde-1986-aponta-ibge-2815938. Acesso em: 15 out. 2019.
20
DEFENSOR DEL PUEBLO. La trata de seres humanos en España: victimas invisibles. 2012. p. 19.
Disponível em: https://www.defensordelpueblo.es/wp-content/uploads/2015/05/2012-09-Trata-de-seres-
humanos-en-Espa%C3%B1a-v%C3%ADctimas-invisibles-ESP.PDF. Acesso em: 20 jan. 2020.
21
Os dados de retornos, entre 2010 a 2017, seja pela articulação das OSCs, seja pelo número de retornos
decorrentes de Programas de Retorno Voluntário mesmo tendo sido solicitados, não foram conseguidos para
completar essa análise. Por outro lado, de 2010 a 2019, de forma voluntária, auxiliei na articulação de atores,
espanhóis e brasileiros, de pelo menos, 6 retornos de mulheres e transexuais, algumas delas inclusive com filhos
pequenos. Em reunião realizada com o Consulado em Madrid em fevereiro de 2020, entre 2017 e 2019, foram
deportadas 26 pessoas brasileiras da Espanha para o Brasil por estarem em situação de irregularidade
documental. Dessas, 4 eram mulheres e uma delas, com filho menor de idade.
41
meio da rede de atores públicos já existentes no Sistema Único de Saúde (SUS) e Sistema Único
de Assistência Social (SUAS), nesse caso, principalmente pelos Centros de Referência
Especializado da Assistência Social (CREAS), juntamente com a Rede de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas no Brasil (Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas( NETPs), Postos
Avançados de Atendimento Humanizado ao Migrante (PAAHMs) e os Comitês de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas)22. As OSCs, que anteriormente prestavam esse
atendimento exclusivamente, passaram a desempenhar ações mais voltadas à prevenção,
pesquisa, consultoria, advocacy e monitoramento da política pública nacional, regional e local,
e, em alguns casos, continuam prestando atendimento e compondo os Comitês Estaduais e
Regionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e no CONATRAP (Comitê Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas)23.
Algumas das OSCs pesquisadas participam de outras redes, no âmbito da governança
global, para além do Estado Nacional, ampliando ainda mais a possibilidade de análise da
atuação desses atores e de suas ações no enfrentamento ao tráfico de pessoas. (É o caso de
Organizações brasileiras e espanholas que participam da rede GATTAW, Forum Social de
Trata de Personas, Red Española contra la trata de personas, Red Catalana Contra la Trata de
Personas, Red Gallega contra la Trata de Personas), conforme ficará demonstrado no decorrer
da pesquisa.
As limitações apresentadas são importantes para não gerar expectativas equivocadas
quanto ao que se pretende como resultado deste trabalho.
22
BRASIL. Ministério da Justiça. Carta da Rede Nacional de Núcleos de Enfretamento ao Tráfico de Pessoas e
Postos Avançados de Atendimento Humanizado ao Migrante. Disponível em: https://www. justica.gov.br/sua-
protecao/trafico-de-pessoas/redes-de-enfrentamento/anexos/carta-da-rede-versao-final. pdf/view. Acesso em
16 mar. 2020.
23
Adiante, falar-se-á sobre o Conatrap. Por enquanto, ver em: https://www.novo.justica.gov.br/sua-protecao/
trafico-de-pessoas/politica-brasileira/conatrap. Acesso em: 16 mar. 2020.
42
Por meio da pesquisa interdisciplinar, é possível construir respostas para problemas cada
vez mais complexos através da diversificação de iniciativas e das formas de pensar e de agir,
principalmente no que tange à produção do conhecimento científico24. A pesquisa
interdisciplinar surge como questionamento ao pensamento único, como uma tentativa de
retomada da pluralidade25.
Um diálogo interdisciplinar é fundamental para que seja possível uma compreensão
mais abrangente sobre o fenômeno, bem como a implantação de ações mais efetivas 26. Na
interdisciplinaridade, gera-se um conhecimento superior ao fragmentado, uma vez que superar
a fragmentação permite construir um novo conhecimento capaz de compreender a realidade
como um todo27. Aparece como uma crítica à fragmentação e surge em oposição à
supervalorização do saber técnico28.
Nesse sentido, é importante diferenciar a pesquisa interdisciplinar da pesquisa
transdisciplinar: a transdisciplinaridade não significa apenas que as disciplinas colaboram entre
si, mas também que existe um pensamento organizador que ultrapassa as próprias disciplinas.
É uma abordagem científica que visa à unidade do conhecimento; procura estimular uma nova
compreensão da realidade articulando elementos que passam entre, além e através das
disciplinas, buscando compreender a complexidade29
É na Carta da transdisciplinaridade, produzida no I Congresso Mundial de
Transdisciplinaridade, 1994, realizado em Arrábida, Portugal, que temos uma definição do
conceito transdisciplinar: “Artigo3. [...] A transdisciplinaridade não procura o domínio de
24
Ver em SPINOLA, Luara; ALMEIDA, Fabiana Carlos Pinto de; MENEZES, Marilda Aparecida de; FACÓ.
Júlio Francisco Blumentti. Contextualizando a interdisciplinaridade: um estudo de caso na Universidade
Federal do ABC. Research Society and Development, v. 9, p. 1-17, 2020. Disponível em: https://www.
researchgate.net/publication/340238602_Contextualizando_a_interdisciplinaridade_um_estudo_de_caso_na_
Universidade_Federal_do_ABC. Acesso em: 15 abr. 2020. Discussão interessante sobre a relevância e
importância da pesquisa interdisciplinar.
25
MARIOTTI, Humberto. Os cinco saberes do pensamento complexo (Pontos de encontro entre as obras de
Edgard Morin, Fernando Pessoa e outros escritores). III Conferências Internacionais de Epistemologia e
Filosofia, Portugal, 2002. Ver também: FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. Interdisciplinaridade: história,
teoria e pesquisa. Papirus editora, 1994.
26
COLARES, Marcos. I Diagnóstico sobre Tráfico de seres Humanos: São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás e Ceará.
Brasília, DF: Secretaria Nacional de Justiça, 2004. Ver em: PEREZ, O. Que é interdisciplinaridade? Definições
mais comuns em Artigos Científicos Brasileiros. INTERSEÇÕES, Rio de Janeiro, v. 20 n. 2, p. 454-472, dez.
2018.
27
Ver em: GUSDORF, G. Passado, presente, futuro da pesquisa interdisciplinar. Tempo Brasileiro, Rio de
Janeiro, n. 1995. JAPIASSU, H. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro, Imago, 1976.
FAZENDA, I. (org.). O que é interdisciplinaridade? São Paulo, Cortez, 2008.
28
MENEZES, S.; YASUI, S. A interdisciplinaridade e a psiquiatria: é tempo de não saber? Ciênc. saúde coletiva,
Rio de Janeiro, v. 18, n. 6, p.1820. Disponível em: http://www.scielosp.org/scielo.php?script=
sci_arttext&pid=S141381232013001400032&lng=en&nrm=iso Acesso em: 15 out. 2019.
29
TEIXEIRA, Hélio. O que é transdisciplinaridade. Disponível em: http://www.helioteixeira.org/ciencias-da-
aprendizagem/o-que-e-transdisciplinaridade/. Acesso em: 15 ago. 2019.
43
várias disciplinas, mas a abertura de todas as disciplinas ao que as une e as ultrapassa. [...]
Artigo 11. Uma educação autêntica não pode privilegiar abstração no conhecimento. Ela deve
ensinar a contextualizar, concretizar e globalizar. A educação transdisciplinar reavalia o papel
da intuição, do imaginário, da sensibilidade e do corpo na transmissão do conhecimento.”30.
Se a Revolução Francesa, a época das Luzes e a Revolução Industrial trouxeram consigo
a racionalização e o surgimento das ciências modernas, apontando para a especialidade de
abordagens, o século XXI retoma a necessidade de se pensar de forma orgânica,
transdisciplinar. Como fazer isso, nem sempre é fácil. Trata-se de enorme desafio global, que
implica grande dificuldade pelo enfrentamento paradigmático que envolve.
Todos os objetos de uma pesquisa são interdisciplinares em sua essência, uma vez que
toda a ciência é um recorte de uma realidade. O cientista escolhe quais recortes fará, quais
escolhas de pesquisa bancará. A título de exemplo, objetos podem ser vistos como grandes
espirais, onde podem ser selecionados aspectos específicos para serem analisados, de forma
justificada. Analogicamente, é como se pudéssemos escolher que onda do mar estudar, pois é
um pedaço que pode nos ajudar a compreender o mar, mas ela não pode ser o mar. A
justificativa é fundamental para indicar essas escolhas e dar caráter científico à pesquisa.
Sempre seremos forçados a deixar outras perspectivas de análise de fora.
O importante é perceber que a ciência não pretende e não pode ter a responsabilidade
de encontrar verdades absolutas, mas, sim, as verdades possíveis para aquela pesquisa, com
aquele recorte de objeto, num dado contexto histórico. As verdades científicas são limitadas e
limitadoras. Essa forma de perceber a ciência e a função da pesquisa pode ser mais libertadora,
mesmo não deixando de ser menos desafiadora e exigir responsabilidade.
Acreditar que uma pesquisa científica pretende levar a uma verdade absoluta é retirar
do pesquisador essa consciência da provisoriedade das respostas na ciência e de sua posição
limitada, modesta, humilde e de simplicidade imprescindíveis. Conhecer, nesse contexto, é ter
certeza da incerteza. A interioridade sobre a provisoriedade da ciência nos conduz a um
profundo exercício de humildade, fundamental para aqueles que desejam se dedicar à pesquisa
e fazer a ciência avançar.
Maturana nos presenteia com a reflexão de que a paixão move o cientista, o que nos
permite pesquisar aceitando a vivência da emoção como um processo precursor das ideias de
pesquisa. Ele coloca a emoção como um elemento fundamental para diferenciar o processo de
produzir ciência. “A emoção fundamental que especifica o domínio de ações no qual a ciência
30
CARTA DA TRANSDISCIPLINARIDADE. Disponível em: http://cetrans.com.br/assets/docs/CARTA-DA-
TRANSDISCIPLINARIDADE1.pdf. Acesso em: 20 out. 2019.
44
acontece como uma atividade humana é a curiosidade, sob a forma do desejo ou paixão pelo
explicar.”31. Ao descrever os critérios para a validação das explicações científicas, o autor
reconhece o processo de subjetividade existente de forma concomitante ao processo de
objetividade científica, sem deixar de exigir do cientista o cuidado para não confundir os
critérios de validação das experiências científicas com critérios experienciais ou de fenômenos
de nossas vidas cotidianas32.
É nessa perspectiva de entendimento sobre pesquisa, carregada de responsabilidade
científica, que se localiza esta pesquisa de doutorado. Acredita-se que somente se atingirá o
objetivo se esta pesquisa contribuir para questionamentos e surgimento de novas perspectivas
de pesquisa. Para retomar ou revisitar outros olhares, outros pontos de partida, que podem surgir
com a inclusão de elementos novos, de interpretações distintas, quebras de paradigmas
anteriores.
Esta pesquisa, assim, propôs-se a “mergulhar” no complexo universo da pesquisa
acadêmica, tendo como objeto de estudo o fenômeno do tráfico de pessoas, mais especial de
mulheres, e com o objetivo de analisar a potencialidade da construção de um regime
internacional para vítimas de tráfico de pessoas baseada no enfoque em Direitos Humanos.
Pensar a construção da proteção internacional de mulheres vítimas de tráfico de pessoas
não pode ser feita somente pelo Direito Internacional (minha área de origem acadêmica e,
portanto, o meu lugar de conforto). Considero que não é possível abordar essa temática sem a
intersecção da área das Relações Internacionais para pensar o surgimento e atuação de novos
atores envolvidos na proteção dos Direitos Humanos, além da articulação/intersecção das
Ciências Sociais (lato sensu) na compreensão dos processos migratórios forçosos e as suas
relações com o tráfico de pessoas e a exploração das pessoas, da História, que nos auxilia a
compreender as relações de exploração das pessoas no decorrer do tempo, do Serviço Social
para compreender conceitos relacionados a atenção, proteção, estruturação da proteção das
pessoas, a partir de uma perspectiva da humanização dos direitos e da pessoa como portadora
de direitos, da Ciência Política na construção da governança global como novo modelo de esfera
internacional para além das tradicionais formas de entender a soberania, as relações de poder
entre atores, das redes sociais, em sentido amplo.
Importante, ainda, frisar que a temática dos Direitos Humanos é, por si só,
interdisciplinar, igualando o peso de seus vários campos constituintes das Ciências Humanas,
31
MATURANA, Humberto R. Ciência, cognição e vida cotidiana. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001. p.
132-133.
32
Ibid., p. 138.
45
Sociais e Sociais Aplicadas, sem ter uma matriz principal em um campo para gerar
conhecimento multidimensional. Nessa perspectiva, a leitura do fenômeno do tráfico de pessoas
buscou a interdisciplinaridade e, na medida em que se construía a percepção do enfoque
baseado em Direitos, a transdisciplinaridade. A percepção fundamental da construção
compartilhada das ciências, apesar de mais árdua, parece ser a mais abrangente alcançando mais
elementos que podem ser fundamentais para a compreensão. A ideia de que objetos híbridos33
encontram na interdisciplinaridade muito mais um ponto de partida que de chegada, e de que
não há um modelo final estabelecido que possibilite chegar às respostas desejadas, mas que
tudo se constrói, permite explorar novas possibilidades e aceitar a dúvida como premissa
acadêmica34.
Nesse sentido, pesquisar por meio de uma perspectiva interdisciplinar foi um desafio
posto. Escolher o Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da UFABC foi
de total importância para o desenvolvimento desta tese, no sentido de permitir a geração de
conhecimento sobre a nova percepção interdisciplinar da realidade social e gerar contribuições
para novos questionamentos das ciências humanas e sociais no microuniverso da pesquisa. A
formação proporcionada pelas matérias realizadas no decorrer do Doutorado permitiu
compreender, identificar e agir sobre os elementos das dinâmicas sociais, do Estado, das
políticas públicas, dos atores sociais presentes na sociedade e relevantes para a temática do
enfrentamento ao tráfico de pessoas.
33
Objetos híbridos são aqueles que resultam da mistura de dois ou mais elementos diferentes.
34
FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa. Papirus editora, 1994.
46
medidas, a criação da Organização das Nações Unidas (ONU). Esta organização repudiava as
atrocidades cometidas contra a pessoa humana, e desejava impedir que algo semelhante
ocorresse novamente. Nesse sentido, Arendt resgata e traz para o foco da discussão a questão
da dignidade da pessoa humana como um bem universal irrenunciável35.
Não importa a origem da dignidade humana; o importante é preservar a humanidade sob
quaisquer circunstâncias. O indivíduo que tem a sua dignidade violentada através de maus-
tratos, exploração, humilhações, condições subumanas de sobrevivência, vê-se morto por
dentro.
A partir desse momento histórico, estabelece-se um consenso em torno da necessidade
de criação de instituições destinadas a promover o tema da proteção aos direitos humanos
através de documentos que vinculassem os Estados. “A partir do término da Segunda Guerra
Mundial, foram instituídos mecanismos internacionais de tutela dos direitos fundamentais,
acompanhando a tendência de consolidação de uma ética universalizante, centrada na promoção
da dignidade humana.”36.
Nesse contexto, em 1945, assina-se a Carta da ONU, criando a Organização das Nações
Unidas, a mais importante organização em âmbito universal, que rapidamente se debruçou e
elaborou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que elegeu os direitos
essenciais para a preservação da dignidade humana37.
Seus preceitos têm como meta dois pontos essenciais complementares: incrustar o
respeito e a dignidade da pessoa humana na consciência da comunidade universal, e evitar o
ressurgimento da ideia e da prática da descartabilidade do homem, da mulher e da criança. 38
A Declaração é a tradução da angústia vivida pelo mundo naqueles anos, quando da
terrível experiência da Segunda Guerra. Nesse contexto, a DUDH constrói a fundação sob a
qual se erguerá uma complexa estrutura normativa com vistas à promoção dos direitos
fundamentais das pessoas. Apesar de ser uma declaração e, consequentemente, não ter força
vinculante, é nítida a sua influência no sentido de balizar as relações internacionais e mesmo as
35
ARENDH. Hannah. Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. Tradução Roberto
Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
36
SARMENTO. Daniel. Constituição e globalização: a crise dos paradigmas do direito constitucional. In:
MELLO, Celso de Albuquerque (coord.). Anuário direito e globalização: a soberania. Rio de Janeiro:
Renovar, 1999.
37
CAMPOS. Adalgisa Rosa. O direito internacional e o sistema de proteção dos direitos humanos. 2004.
Fronteira, Belo Horizonte, v. 3, n. 5, p. 7-36, jun. 2004. Disponível em: http://periodicos.pucminas.
br/index.php/fronteira/article/view/5065/5137.Acesso em: 20 out. 2019.
38
ALMEIDA, Guilherme Assis de. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948: matriz do direito
internacional dos direitos humanos (DIDH). In: ALMEIDA, Guilherme de Assis de; PERRONE-MOISÉS,
Cláudia (coord.). Direito internacional dos direitos humanos: instrumentos básicos. São Paulo: Atlas, 2002.
47
ações internas dos Estados, com força de costume, sendo invocada em diversos documentos a
partir dali39.
Poder-se-ia dizer que a DUDH é como se fosse uma "Constituição internacional”, um
contrato social universal, e traz em seus artigos normas programáticas na tentativa de construir
uma sociedade justa e igualitária. O caráter programático desse documento, conforme descrito
no seu artigo 2840, tem influenciado as constituições nacionais, normativas internas e a
construção de políticas públicas internas, no sentido de buscar correspondência com os
preceitos instituídos pela Declaração. A Declaração começa pela universalidade abstrata dos
direitos naturais, transfigura-se na particularidade concreta dos direitos positivos, e termina na
universalidade não mais abstrata dos direitos positivos universais41.
A compreensão da dignidade da pessoa humana e de seus direitos no curso da História
tem sido, em grande parte, fruto da dor física e do sofrimento moral. A cada grande surto de
violência, os homens recuam, fazendo nascer nas consciências a exigência de novas regras de
uma vida digna para todos42.
Somada à DUDH, e buscando garantias de aplicabilidade dos princípios contidos na
Declaração, somente em 1966 foram elaborados dois pactos: o Pacto Internacional sobre
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos. Os pactos complementam a Declaração de 1948, e refletem a preocupação em garantir
proteção nas mais amplas dimensões da vida humana, seja no âmbito dos direitos sociais
(coletivos) e dos direitos individuais. Fundamental é a Declaração sobre o Direito ao
Desenvolvimento (1986), que vincula todos os direitos de forma direta, considerando que todos
os direitos humanos e as liberdades fundamentais são indivisíveis e interdependentes, e que,
para promover o desenvolvimento, devem ser dadas atenção igual e consideração urgente à
implementação, promoção e proteção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e
culturais, e que, por conseguinte, a promoção, o respeito e o gozo de certos direitos humanos e
liberdades fundamentais não podem justificar a negação de outros direitos humanos e liberdades
fundamentais43. Nessa perspectiva, o centro do processo é o ser humano e o paradigma do
39
JULIBUT, Liliana Lyra. Os pactos de direitos humanos (1966). In: ALMEIDA, Guilherme de Assis de;
PERRONE-MOISÉS, Cláudia (coord.). Direito internacional dos direitos humanos: instrumentos básicos.
São Paulo: Atlas, 2002. p. 35
40
Artigo 28. "Todo homem tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades
estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados"
41
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 30.
42
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 37.
43
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento (1986).
Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Direito-ao-Desenvolvimento/declaracao-sobre-
o-direito-ao-desenvolvimento.html. Acesso em: 15 mar. 2020.
48
44
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 18.
49
45
FLORES. Joaquín Herrera. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. p.
33.
50
especialmente na esfera da ONU, que nos auxiliam a pensar a garantia da abordagem integral
dos direitos das vítimas de tráfico: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), a Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) e a Convenção sobre os
Direitos da Criança (CRC), que contêm proibições específicas de escravidão, servidão e tráfico
de mulheres e crianças.
Entende-se que o enfrentamento ao tráfico de pessoas deve estar vinculado ao enfoque
em direitos humanos, o que significa enfrentar o fenômeno por meio de transformações de
paradigmas, que permitam mudanças políticas, jurídicas, econômicas e sociais, exigindo ações
coletivas complexas no sentido de combater o problema, juntamente com a promoção da
proteção e atenção integral às vítimas de tráfico de pessoas.
Pensar o enfrentamento ao tráfico de pessoas a partir de outro paradigma que não o do
combate ao crime é desenvolver uma política antitráfico em nível global não tendo como
primazia os direitos humanos, que se reflita e se propague internamente nos Estados. É
fundamental, ainda, dizer que deve ser adotada a perspectiva crítica dos direitos humanos que
garanta o empoderamento e emancipação do ser humano levando em conta as suas
particularidades, as suas circunstâncias, o seu lugar, as suas vulnerabilidades específicas46.
Nesse sentido, o enfoque em direitos humanos parte da centralidade das pessoas e suas
necessidades no âmbito das ações de enfrentamento ao tráfico de pessoas. O enfoque em
direitos é um conjunto de processos (normativos, institucionais e sociais) que abrem e
consolidam espaços de luta pela dignidade humana47. Somente a partir dessa lógica garantida
pelos direitos humanos se pode perceber o outro como digno de respeito, dotado do direito de
desenvolver as suas potencialidades humanas plenamente. Essa ótica incorpora a necessidade
de romper com o processo do tráfico de pessoas garantindo a sua condição humana e de sujeito
de direitos.
Desenvolver o enfrentamento ao tráfico de pessoas sob a perspectiva do enfoque em
direitos permite vincular os direitos humanos e o desenvolvimento abordando de forma paralela
os direitos de primeira e segunda geração e os direitos de terceira geração e o direito ao
desenvolvimento. Os estudos de caso do Brasil e da Espanha realizados adiante permitirão
verificar se o enfrentamento ao tráfico de pessoas vem se desenvolvendo, e/ou em que medida
o fazem.
46
SILVA, Waldimeiry Correa. Regime Internacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas: avanços e
desafios para a proteção dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 8.
47
Id.
51
A. Fase exploratória
A.1.Estado da arte
48
Por categorias entende-se elementos constitutivos de processos sociais, como percebidos por uma teoria ou visão
do mundo (Weltanschauung). Marx já apontava para as categorias como sendo formas de ser, características da
existência.
49
Dessas pesquisas, 23 tratavam de Dissertações de Mestrado e 2 pesquisas relativas a cursos profissionalizantes
e 3 Teses de Doutorado.
50
Foram encontradas 140 pesquisas. Dessas pesquisas, 27 tratavam de Teses de Doutorado, 105 de Dissertações
de Mestrado, 10 pesquisas relativas de Mestrado Profissional e 1 profissionalizante.
52
Outras três teses bastante essenciais para a minha pesquisa, elaboradas fora do Brasil e
importantes para o mapeamento do “estado de arte”, foram a tese da pesquisadora Carballo de
la Riva, defendida na Universidad de Alcalá, Madrid – España., com o título “Trata de
Personas: consideraciones históricas y jurídicas. Estructuras, institución y sistemas de
explotación” (2017), a tese da pesquisadora Waldimeiry, defendida na Universidad de Sevilla
– España, com o título “Formas Contemporáneas de Esclavitud: Trata de Mujeres” (2011) e a
tese do pesquisador López Riopedre, defendida no Departamento de Sociología I. Facultad de
Ciencias Políticas y Sociología, UNED, com o título “Inmigración colombiana y brasileña y
prostitución femenina en la ciudad de Lugo: historias de vida de mujeres que ejercen la
prostitución en pisos de contactos.” (2010).
Após a qualificação, em agosto de 2018, houve outra etapa de pesquisa, com a
possibilidade de duas visitas à Espanha: a primeira, em agosto de 2018, para conversas
informais com atores estratégicos no enfrentamento ao tráfico de pessoas; a segunda, em
fevereiro de 2020, para a realização das entrevistas organizadas conforme planejamento e após
a aprovação pelo Comitê de Ética da UFABC, juntamente com a realização de breve estadia de
pesquisa no Instituto Universitario de Desarrollo y Cooperación de la Universidad
Complutense de Madrid (IUDC-UCM), que me permitiu acesso à Universidade, às bases de
dados das bibliotecas da Universidade Complutense de Madrid e a realização de entrevistas
com atores governamentais, da sociedade civil espanhola e mulheres vítimas de tráfico de
pessoas.
Com a etapa de pesquisa no IUDC/UCM, abriu-se outra possibilidade de acesso a
referências bibliográficas bastante ampla, com a realização de uma bibliometria, o que garantiu
incorporar referências com outros olhares sobre a temática do tráfico de pessoas, numa
perspectiva mais europeia51.
O período de desenvolvimento do Doutorado (2016-2020) foi bastante rico na
ponderação das questões relacionadas ao tema desta pesquisa. A participação em várias
atividades com atores governamentais, do judiciário, da sociedade civil, como ouvinte,
participante ou até organizadora, permitiu uma reflexão e um acúmulo de materiais,
perspectivas, sobre a construção de um regime internacional para as vítimas de tráfico com
enfoque baseado em Direitos Humanos, tema desta pesquisa.
51
As referências utilizadas e pesquisadas na Universidad Complutense de Madrid estão dispostas nas Referências
Bibliográficas da tese.
53
52
As entrevistas realizadas com os atores governamentais e da sociedade civil do Brasil e da Espanha foram
utilizadas sem se identificar os atores. Escolheu-se essa metodologia por se entender importante não expor os
atores e poder contar com a fala reflexiva dos mesmos. O Formulário das entrevistas – Apêndice 1 e o Termo
de Consentimento de Entrevista –Apêndice 2.
53
Os atores entrevistados estão dispostos no Apêndice 3.
54
no caso desta pesquisa. Por entender que cada entrevista é um encontro entre, neste caso, a
pesquisadora e entrevistados(as), percebe-se que o roteiro de entrevista não deve ser uma
sequência de perguntas fixas de modo a limitar o diálogo, mas um instrumento que orienta a
entrevista, permitindo também incorporar questões, percepções, temas não previstos.
Assim, foi fundamental a existência de certa flexibilidade na sequência da apresentação
das perguntas às pessoas entrevistadas, garantindo a possibilidade de realizar perguntas
complementares para melhor entender o fenômeno em pauta.
Podemos entender por entrevista semi-estruturada, em geral, aquela que parte
de certos questionamentos básicos, apoiados em teorias e hipóteses, que
interessam à pesquisa, e que, em seguida, oferecem amplo campo de
interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão surgindo à medida que se
recebem as respostas do informante. Desta maneira, o informante, seguindo
espontaneamente a linha de seu pensamento e de suas experiências dentro do
foco principal colocado pelo investigador, começa a participar na elaboração
do conteúdo da pesquisa54.
54
TRIVIÑOS, Augusto. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São
Paulo: Atlas, 1987. p. 146.
55
A epistemologia é o ramo da filosofia que se ocupa do estudo da natureza do conhecimento, da justificação e da
racionalidade da crença e dos sistemas de crenças, em outras palavras, de toda a Teoria do Conhecimento. Ver
em: https://www.infoescola.com/filosofia/epistemologia/. Acesso em: 15 jan. 2020.
56
BOURDIEU, P. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. M. (org.) Usos e abusos da história oral. Rio de
Janeiro: Ed. Da Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. 183-192.
55
dessas mulheres. Algumas vezes, a entrevistada produziu um discurso que se construiu a partir de
sentimentos vivenciados. Nesse sentido, a entrevista, mais do que oferecer dados e informações
sobre a vida dessas mulheres, construiu informações que são penetradas das subjetividades
daquelas que narram e que ouvem. São, portanto, narrativas preciosas, cheias de vida.
A História Oral pode ser definida como “a interpretação da história e das mutáveis
sociedades e culturas através da escuta das pessoas e do registro de suas lembranças e
experiências.”57. Nessa perspectiva, a utilização da metodologia de história de vida permitiu
acessar experiências dessas mulheres vítimas de tráfico, as suas histórias de vida, as suas
potencialidades, os seus desejos, as experiências do processo de vivência de violências, as suas
superações e, ao mesmo tempo, as experiências vivenciadas em função da assistência, usufruídas
ou não, em decorrência das potenciais políticas de enfrentamento ao tráfico de pessoas existentes.
57
THOMPSON, P. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 9.
58
BOGDAN, R. C.; BIKKLEN, S. K. Investigação qualitativa em educação. Porto: Ed. Porto, 1994. p. 47.
59
ENGERS, Maria Emília. Paradigmas e metodologias de pesquisa em educação: notas para reflexão. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 1994.
56
obstáculo é a dificuldade que o pesquisador pode ter em articular as conclusões que surgem dos
dados concretos em detrimento de conhecimentos mais amplos ou mais abstratos60.
Na pesquisa, os dados coletados foram submetidos a análise de conteúdo, utilizando-se
categorias encontradas nas respostas dos sujeitos, harmônicos com os objetivos do trabalho.
Segundo Bardin, a análise de conteúdo possui três momentos: 1. Pré-análise - Determinamos
os documentos que constituirão o "corpus" a ser analisado (as observações, participante, as
entrevistas, os questionários e documentos); 2. Exploração do material - Codificação e
categorização utilizando critério semântico (significativo), construindo categorias temáticas
adequadas ao tipo de análise; e 3. Tratamento dos resultados – Indução e a interpretação. É a
fase da reflexão, da intuição com embasamento nos materiais empíricos. Confronto entre o
conhecimento acumulado e o adquirido61.
As entrevistas foram fundamentais para identificar, conhecer, refletir sobre a atuação
dos atores governamentais ou não, no enfrentamento ao tráfico de pessoas e, principalmente,
para compreender o jogo de forças existentes entre os atores, no âmbito interno dos dois estudos
de caso realizados.
Dessa forma, a transcrição das entrevistas foi importante para recordar os detalhes de
cada uma, e assim aprofundar os conteúdos ali abordados. A transcrição permitiu uma
apropriação do conteúdo das falas dos sujeitos. Os dados foram submetidos a análise de
conteúdo, utilizando-se categorias de análise determinadas pelos blocos de perguntas
realizadas, e que atendem aos objetivos do trabalho 62.
Como foram realizadas entrevistas com diferentes tipos de atores, as categorias de
análise foram diferentes.
1. Para as mulheres entrevistadas:
A. Sobre a trajetória de vida
B. Sobre sua ida para a Espanha
C. Sobre a percepção das Organizações da Sociedade Civil
D. Sobre o futuro
60
MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec-Abrasco,
1999.
61
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa, Portugal; Edições 70, LDA, 2009.
62
Id.
57
O mais difícil na análise dos conteúdos das entrevistas é conseguir analisar os dados
obtidos estabelecendo uma distância e fazendo uma leitura isenta e generalizável.
Posteriormente, o enriquecimento da leitura ocorre quando o pesquisador se livra dos
imediatismos da primeira leitura e consegue identificar aquilo que está além das aparências,
localizado o significado daquela fala num quadro de totalidade social em que a mensagem se
insere.
As entrevistas, nesse sentido, foram transcritas, e as respostas destacadas e separadas
por aspectos que chamaram a atenção ou novidades nas falas.
Essas falas foram incorporadas na tese, auxiliando nas observações e percepções da
pesquisadora, na medida em que davam elementos sobre a construção de um regime
internacional com enfoque em Direitos Humanos. “[...] o discurso não é um produto acabado,
mas um momento de criação de significados com tudo o que isso comporta de contradições,
incoerências e imperfeições. Leva em conta que, nas entrevistas, a produção é ao mesmo tempo
espontânea e constrangida pela situação.”63.
Nesse enfoque, as entrevistas foram fundamentais para os objetivos da tese, uma vez
que permitiram a análise das idiossincrasias importantes inerentes ao papel desempenhado por
ator na construção de um regime para vítimas de tráfico de pessoas.
C. Ética na pesquisa
63
MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec-Abrasco,
1999. p. 206.
58
Na tentativa de abordar os pontos essenciais para a realização desta Tese, optou-se por
desenvolver uma introdução que permitisse a contextualização do fenômeno e da pesquisa no
âmbito interdisciplinar, assim como os elementos metodológicos.
A Tese está dividida em duas partes: a primeira parte, “Do fenômeno do tráfico de
mulheres à configuração do regime complexo de enfrentamento”, composta pelos três primeiros
capítulos, procura descrever os principais elementos fundamentais do tráfico de mulheres,
caracterizando o fenômeno social do tráfico para além da figura penal criada, chegando à
construção do Regime Internacional Complexo do enfrentamento do tráfico de pessoas, levando
em conta uma perspectiva histórica e crítica sobre a caracterização desse crime no contexto do
crime organizado transnacional, e os elementos que permitem acessar perspectivas de
enfrentamento que levem e priorizem o enfoque em direitos na centralidade das pessoas, tanto
no âmbito global como regional (Europa, América).
A segunda parte desenvolve os “Estudos de casos Brasil e Espanha”, analisando nos
capítulos quatro e cinco como esses Estados foram construindo e desenvolvendo os seus
regimes complexos de enfrentamento ao tráfico, principalmente por meio de suas políticas
internas no sentido de dar uma resposta para esse fenômeno, principalmente provocado pela
adesão ao Protocolo de Palermo. Os estudos de caso permitiram verificar os avanços e desafios
59
PARTE 1
DO FENÔMENO DO TRÁFICO DE MULHERES À CONFIGURAÇÃO DO REGIME
COMPLEXO DE ENFRENTAMENTO
61
64
Os conceitos dessas duas modalidades de deslocamento humano serão posteriormente conceituados.
62
65
NAVARRO. R.F. A Evolução dos materiais. Parte1: da Pré-história ao Início da Era Moderna. Revista
Eletrônica de Materiais e Processos, v. 1, n. 1, p. 01-11, 2006.
66
FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
67
WEBER, Max. A política como vocação. Discurso pronunciado na Universidade de Munique em 1918,
publicado em 1919 por Duncker & Humblodt, Munique.
68
FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
63
Nesse enfoque, a fronteira demarca o que é interno e o que é externo; quem é nacional
e quem é estrangeiro69. A fronteira indica onde a soberania interna inicia e assim, a partir de
onde se pode utilizar o uso legítimo da força para a proteção do Estado e de sua população. A
soberania estatal cria mecanismos de controle das suas fronteiras, entre elas, a exigência de
documentos (passaportes) que atestam a permissão de entrada, controlam o acesso às fronteiras
e condicionam a permanência nos estados nacionais.
Portanto, com a criação do modelo político dos Estados Nacionais, e a percepção dos
limites dos espaços territoriais, a mobilidade humana pode ser definida como um fenômeno
social que ocorre quando há o deslocamento de pessoas, voluntariamente e sem a
intermediação de terceiros, de um lugar para outro, envolvendo Estados Nacionais
(mobilidade internacional) ou até mesmo internamente dentro de um mesmo Estado
subnacional (mobilidade interna).
Para a OIM, migração significa:
Processo de atravessamento de uma fronteira internacional ou de um Estado.
É um movimento populacional que compreende qualquer deslocação de
pessoas, independentemente da extensão, da composição ou das causas; inclui
a migração de refugiados, pessoas deslocadas, pessoas desenraizadas e
migrantes económicos70.
69
Estrangeiro: o que não pertence ou que se considera como não pertencente a uma região, classe ou meio;
forasteiro, ádvena, estranho. (Dicionário Google on-line).
70
OIM. Glossário sobre migração n. 22. 2009. p. 41 Disponível em: http://publications.iom.int/
system/files/pdf/iml22.pdf. Acesso em: 2 jun. 2018.
71
Id.
64
fronteiras tênues nas experiências migratórias que, muitas vezes, relativizam e problematizam
o engessamento dos conceitos relacionados a mobilidade humana.
Nesse sentido, as migrações podem ser classificadas por diversas categorias de análise
que procuram compreender as especificidades de mobilidade de grupos, espaços e indivíduos72.
Cada vez mais percebe-se a necessidade de questionar as classificações fixas e rígidas das
categorias de análise, uma vez que é fundamental compreender as especificidades das
mobilidades de grupos e de espaços migratórios73.
As transformações econômicas produzidas pelo capitalismo no contexto internacional
são expressas através da reestruturação produtiva (do Fordismo à acumulação Flexível)74, com
mudanças no cenário urbano mundial75 e a unificação/formação dos países, acabam por gerar
excedentes populacionais que encontram na migração, uma alternativa, as vezes, a única
alternativa. A história da imigração pode, assim, estar vinculada à expansão do capitalismo com
a circulação de capital, mercadorias e pessoas76.
Essa dinâmica da mobilidade internacional no século XXI exige uma análise que
contemple os movimentos de mão de obra e sua inserção no mercado de trabalho, sem
desconsiderar as disputas políticas em âmbito global. As políticas e práticas neoliberais das três
últimas décadas derivaram em maior concentração de renda, com uma nova lógica de expulsões
representada por uma intensificação do número de pessoas, empresas e lugares que estão sendo
expelidos do centro da ordem social e econômica77.
Assim, ao menos antes da pandemia mundial de saúde de 2020, o cenário econômico
internacional revelava uma intensa expansão internacional do capital e a mobilidade da força
de trabalho, realidade permeada por diferentes mobilidades migratórias78. Apesar do
72
Ver em: SASKIA Sassen. Três migrações emergentes: uma mudança histórica. SUR 23 (2016). Acesso em: 11
jul. 2016, Disponível em: http://sur.conectas.org/tres-migracoes-emergentes-uma-mudanca-historica/. Acesso
em: 15 mar. 2020. HARVEY, D. O novo imperialismo. 8. ed. São Paulo: Loyola, 2014. SAYAD, Abdelmalek.
A imigração ou os paradoxos da alteridade. 1. edição. São Paulo: Edusp. 1998.
73
MENEZES, Marilda Aparecida. Migrações e mobilidades: repensando teorias, tipologias e conceitos. p.21-40.
In: TEIXEIRA, Paulo Eduardo; BRAGA, Antonio Mendes da Costa; BAENINGER, Rosana (org.). Migrações:
implicações passadas, presentes e futuras. Marília: Oficina Universitária; São Paulo: Cultura Acadêmica,
2012.
74
HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.
75
SASSEN, S. The mobility of labor and capital. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
76
BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1987.
77
SASSEN, S. The mobility of labor and capital. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
78
Importante destacar que, principalmente nos países do Sul Global, a pandemia somente reforçou e expôs a
desigualdade estrutural negligenciada e não resolvida, provocando consequentemente danos consideráveis nos
países. Soma-se hoje à emergência sanitária o colapso econômico e o colapso dos sistemas de proteção social,
eventos que devastam a vida das populações mais vulneráveis, como as que estão em condições de mobilidade
humana. Por outro lado, diante da mobilidade imparável do vírus, a resposta, tem sido a interrupção
momentânea da mobilidade transnacional e o controle da mobilidade nos espaços nacionais. CLACSO.
Proyecto (In)movilidades. Disponível em: https://www.inmovilidadamericas. org/?fbclid=
65
81
SAYAD, Abdelmalek. O que é um imigrante? Peuples Méditerranées, n. 7, p. 3-23, abr.-jun. 1979.
82
OIM. More than numbers how migration data can deliver real-life benefits for migrants and governments,
2018.
83
SASSEN, S. The mobility of labor and capital. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
84
OIM. Informe sobre las migraciones en el mundo 2020. 2019. Disponível em: https://publications.
iom.int/system/files/pdf/wmr_2020_es.pdf. Acesso em: 10 jul. 2020.
67
Migrar representa dar um novo sentido à vida e buscar uma vida melhor. Surge como
uma tentativa de transformação, de buscar alternativas às situações de exclusões sociais vividas,
de vulnerabilidades vivenciadas85.
Essa procura por melhores condições de realização pessoal e profissional faz com que
muitos imigrantes aceitem trabalhos muitas vezes em condições piores do que aquelas às quais
se submetiam, ou até mesmo submeteriam em seus países de origem. “O mundo dos excluídos
cresce diante dos nossos olhos diariamente, pessoas [...] têm o sentimento de terem sido
expulsas, descartadas. Para elas, as portas da democracia fundada em trabalho e direitos estão
fechadas. Mesmo que estivessem abertas, seriam as portas dos fundos, que só levariam aos
andares inferiores, sem escadaria para o crescimento social.”86.
Apesar de estarem em piores condições (muitas vezes, até em situações análogas à
escravidão) ou de se submeterem aos trabalhos de menor complexidade, a remuneração por
esse trabalho é geralmente melhor do que aquele pago nos países de origem, seja pelo valor em
si, seja pela melhor cotação da moeda, encorajando e sujeitando os imigrantes a essas situações.
Esses imigrantes enviam um montante de dinheiro (remessas) às suas famílias, que
muitas vezes sobrevivem com esse valor, justificando o seu sacrifício. Por outro lado, pode-se
identificar outras motivações simbólicas, que não perpassam somente pelas condições
econômicas. “[...] o sonho de trabalhar na Europa é bastante forte e idealizado. Esse sonho é
uma conjunção de ideais de identidade como o processo, o desenvolvimento, a estabilidade
econômica, a evolução cultural presente na Europa e um sonho de liberdade. Migrar é buscar
condições para ser alguém diferente – novos papéis.”87.
A complexidade nas motivações para migrar é evidente, ainda mais quando se fala de
mobilidade realizada por mulheres para o exercício da prostituição. Muitas começam por
motivos distintos, entre eles, dificuldades econômicas e exclusão social, problemas familiares
e afetivos e desigualdade de gênero, dimensões que estão relacionadas e que serão abordadas
posteriormente88. As mulheres relatam que as suas vidas no Brasil eram muito difíceis, pois o
85
LEAL, Maria Lucia; TERESI, Verônica Maria; DUARTE, Madalena. Mulheres brasileiras na conexão
ibérica: um estudo comparado entre migração irregular e tráfico. 1. Ed. Curitiba: Appris, 2013.
86
BAUMAN, Zygmunt; MAURO, Ezio. Babel: entre a incerteza e a esperança. 1. Edição. Rio de Janeiro: Editora
Zahar, 2016. p. 47.
87
MAYORGA, Cláudia. Identidade, migração e gênero: o caso de mulheres brasileiras prostitutas em Madrid.
Belo Horizonte: PUC Minas, 2006.
88
Ver em: MEDEIROS, Regina. Hablan las putas!: sobre las practicas sexuales, prostitución y SIDA en el mundo
de la prostitución de Barcelona. 2ª ed. Barcelona: Virus Editora, 1999. CARMONA BENITO, Sara. Inmigración
y prostitución: el caso de Raval (Barcelona). Papers. Revista de Sociología, n. 60, 2000, p. 343-354.
EMAKUNDE. La prostitución ejercida por mujeres en la C.A.E. 2001. JÁUDENES, E.; JIMENEZ, M.
(coord.) Tráfico e inmigración de mujeres en España: olombianas y ecuatorianas en los servicios domésticos y
sexuales. ACSUR-Las Segovias, 2001. PISCITELLI, Adriana. Tránsitos: circulación de brasileñas en el ámbito
68
que ganhavam com o seu trabalho era insuficiente para as suas necessidades de moradia,
alimentação, vestimenta e também lazer e educação. A necessidade de apoiar e sustentar
economicamente a família é uma preocupação constante entre as mulheres. Outras motivações
se relacionam a problemas familiares e afetivos89.
Analisar e compreender o processo migratório é importante, assim como também olhar
para o “migrante” como o sujeito social desse processo. Esse olhar largo auxilia na
compreensão do fenômeno migratório e dá mais elementos para compreender a transformação
da esfera econômica, da esfera social, da esfera cultural e simbólica dos processos migratórios90.
Muitas vezes, os países receptores do Norte Global exercem uma lógica perversa que
demonstra a sua irresponsabilidade com a cooperação para o desenvolvimento social: por um
lado, destinam as vagas de trabalho desprezadas por suas populações locais à maior parte dos
imigrantes; são geralmente trabalhos de baixa complexidade e de baixo salário, que não
valorizam e garantem mecanismos de aprimoramento do trabalhador e, inclusive, muitas vezes,
sem efetivas garantias trabalhistas. Utilizam-se da força de trabalho para sustentar os seus
processos produtivos, desrespeitando os direitos desses trabalhadores que se submetem a essas
relações; por outro lado, captam pessoas qualificadas nos países em desenvolvimento do Sul
Global e retêm estudantes destacados, evitando o desenvolvimento desses países91.
93
Importante destacar a discordância com a terminologia de pessoas “legais ou ilegais”. Compreende-se que as
pessoas migrantes podem se encontrar em situação de irregularidade documental e não de ilegalidade.
94
PIZARRO, Jorge Martinez; PUJADAS, Joan J.; VILLA Miguel. Migração na América Latina: repercussão para
a Europa: análises e informações. Revista nº 17. Centro de Estudos. Rio de Janeiro: Fundação Konrad
Adenauer, 2004. p. 07.
95
CASTLES, S. Migración internacional a comienzos del siglo XXI: tendencias y problemas mundiales. Revista
Internacional de Ciencias Sociales, n. 165, p. 29, sept. 2000. Las migraciones internacionales. “en una
economía cada vez más internacional, es difícil abrir las fronteras a la circulación de información, bienes y
capital si al mismo tiempo se cierran a la circulación de las personas.” (tradução nossa).
70
A reflexão de Bauman permite pensar que desconstruir lógicas excludentes para pensar
lógicas inclusivas e garantistas é uma das necessidades para uma comunidade mundial que se
paute pelos direitos humanos.
96
Importante destacar, e mais adiante será abordado, o consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas é
considerado irrelevante para a caracterização do fenômeno do tráfico pelo Protocolo de Palermo.
97
BAUMAN, Zygmunt. A riqueza de poucos beneficia todos nós? 1. edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2015. p. 40.
71
caracterizados por Regimes que têm enfoque nos Direitos Humanos das pessoas e outros, nos
interesses mais particulares dos Estados.
Como anteriormente descrito, por migração internacional se entende o processo de
cruzamento de uma fronteira internacional ou de um Estado. É um movimento populacional
que compreende qualquer deslocamento de pessoas, independentemente da extensão, da
composição ou das causas; inclui a migração não forçada (que pode ser caracterizada como
migração econômica) e a migração forçada.
Pela complexidade que envolve os processos de mobilidade humana, evidencia-se que
as definições teóricas sobre as modalidades de mobilidade humana, muitas vezes, na prática
ficam difíceis de ser categorizadas. As categorias, por vezes, não captam totalmente a realidade
dos processos, limitando-os e, por vezes, diminuindo a riqueza desses processos sociológicos.
Nessa lógica, o direito de migrar deve ser considerado como inerente ao ser humano,
apesar de nem sempre os Estados garantirem essa condição, impondo, é certo, uma série de
restrições e de políticas migratórias, que condicionam muitas vezes esse direito ao direito da
soberania estatal98.
A migração não forçada pode ser caracterizada pela migração laboral, e trata do
movimento de pessoas do seu Estado para outro Estado com a finalidade de aí encontrar
emprego. A migração laboral está regulada nas leis sobre migração da maioria dos Estados.
Além disso, alguns Estados desempenham papel ativo na regulação da migração laboral externa
e procuram oportunidades no estrangeiro para os seus nacionais.
A migração forçada é toda aquela em que existe um elemento de coerção,
nomeadamente ameaças à vida ou à sobrevivência, seja motivada por causas naturais,
terremotos, tsunamis, inundações (migração ambiental), seja motivada por causas provocadas
pelo ser humano (conflitos armados, fome, perseguição ideológica, política, de gênero, entre
outros).
Nesses casos aparecem algumas modalidades ligadas à migração forçada, como por
exemplo, as pessoas refugiadas, consideradas imigrantes com condições peculiares, amparadas
pela Convenção das Nações Unidas Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951). A Convenção
impõe a proteção para aquele que: “devido a fundados temores de perseguição por motivos de
raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de
nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país” (Artigo 1º da
Convenção). Verifica-se, portanto, um Regime Jurídico específico no âmbito dos direitos
98
CAVARZERE, Thelma. Direito internacional da pessoa humana: a circulação internacional de pessoas.2. ed.
rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
72
99
OIM. Glossário sobre migração n. 22. 2009. p. 41 Disponível em: http://publications.iom.int/system/files/
pdf/iml22.pdf. Acesso em: 2 jun. 2018.
100
Id.
101
No capítulo terceiro verifica-se a construção histórica e na atualidade do Regime Jurídico Internacional do
Tráfico de Pessoas.
73
102
O Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, relativo
ao Combate ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea, que será posteriormente analisado,
conceitua, em seu artigo 3º que o “tráfico de migrantes significa a promoção, com o objetivo de obter, direta ou
indiretamente, um benefício financeiro ou outro benefício material, da entrada ilegal de uma pessoa num Estado
Parte do qual essa pessoa não seja nacional ou residente permanente.”
103
As entrevistas realizadas com as mulheres vítimas de tráfico na Espanha, demonstraram como a inicial
mobilidade caracterizada pelo contrabando de pessoas, principalmente no caso da mulher de origem nigeriana,
mudou sua configuração para tráfico de pessoas, ainda no trajeto migratório para a Europa, em função das
coações, violências e exploração. O caso será descrito mais adiante.
74
O consentimento dado por essa mulher que aceita e requisita esse auxílio de um terceiro
para chegar ao destino final, parece ser suficiente para que ela aceite qualquer tipo de situação
de violência. Ademais, muitas vezes, pela impossibilidade ou até mesmo pela incapacidade de
identificar essas nuances e flexibilidades dos processos migratórios, essas pessoas
(principalmente mulheres e crianças) acabam sendo alvos fáceis para redes de captação e
exploração no destino.
104
A discussão proposta nesse item 1.2 foi feita inicialmente em RODRIGUES, Gilberto M. A.; TERESI,
Veronica. O conceito de vulnerabilidade: uma perspectiva interdisciplinar para os Direitos Humanos. In: SALA,
José Blanes; VALENTE, Izabel. Cidadania, migrações, direitos humanos: trajetórias de um debate em aberto
Euro-Atlântico: espaço de diálogos. Campina Grande/Coimbra: UFCG/CEIS20, 2018. p. 117-146.
105
Dicionário Aurélio. Significado de vulnerável.
106
Dicionário online Caldas Aulete. Significado de vulnerável. Consultado em: 08/02/2018. Disponível em:
http://www.aulete.com.br/vulner%C3%A1vel.
107
O valor heurístico de um conceito refere-se à sua capacidade de iluminar campos, ampliar e inovar.
75
termo vulnerabilidade. Segundo Adorno, essa nova concepção “[...] buscou incorporar a ideia
do direito que todas as pessoas deveriam ter de alterar suas condições de vida para tornarem-se
menos vulneráveis e, assim, promover a igualdade para todos.”108.
Naquele momento, a caracterização da vulnerabilidade à doença passava pela
informação sobre ela e pela mudança de comportamento pessoal. Por outro lado, o conceito
também estava ligado à interação de múltiplos fatores sociais, econômicos, políticos e culturais,
exigindo uma nova dimensão institucional e cultural.
À luz das Ciências Humanas e Sociais, o conceito de vulnerabilidade foi inicialmente
desenvolvido para abordar a vulnerabilidade social a partir de uma forma mais integral e
completa, aproximando-se das diversas modalidades de desvantagens sociais, para além do
fenômeno da pobreza. A categoria “vulnerabilidade” adquire assim uma perspectiva ligada à
própria estrutura da sociedade, dos direitos e dos acessos desiguais, o resultado negativo da
relação entre disponibilidade dos recursos materiais ou simbólicos dos atores sociais e o acesso
à estrutura de oportunidades sociais, econômicas, culturais resultantes do Estado, mercado e
sociedade como um todo. De acordo com Adorno “[...] a expressão vulnerabilidade social
sintetiza a ideia de uma maior exposição e sensibilidade de um indivíduo ou de um grupo aos
problemas enfrentados na sociedade e reflete uma nova maneira de olhar e de entender os
comportamentos de pessoas e grupos específicos e sua relação e dificuldades de acesso a
serviços sociais como saúde, escola e justiça.”109.
Na América Latina, o conceito de vulnerabilidade social é recente e foi criado com o
objetivo de ampliar a análise dos problemas sociais, ultrapassando o identificador renda ou a
posse de bens materiais da população em geral. A abordagem analítica da vulnerabilidade social
se torna sistemática a partir de Moser, que sintetiza o chamado asset/vulnerability framework110.
Em sua pesquisa sobre estratégias de redução da pobreza urbana (1998), além de destacar o
caráter dinâmico desse enfoque, Moser ressalta a importância dos ativos das famílias – não se
referindo apenas à renda ou posse de bens materiais – os quais influenciariam o seu grau de
vulnerabilidade social, a sua renda e a sua capacidade de responder a crises, o que do ponto de
vista da formulação de políticas constituiu uma inovação.
108
ADORNO, Rubens C. F. Capacitação solidária: um olhar sobre os jovens e sua vulnerabilidade social. São
Paulo: Associação de Apoio ao Programa Capacitação Solidária, 2001. Disponível em: http://dspace.fsp.
usp.br/xmlui/bitstream/handle/bdfsp/673/ado001.pdf?sequence=1. Acesso em: 15 dez. 2017.
109
Id.
110
MOSER, C. The asset vulnerability framework: reassessing urban poverty reduction strategies. Washington
D.C: World Bank, 1998. Disponível em: https://pt.slideshare.net/ NelsonCervantes/moser-46195639. Acesso
em: 15 dez. 2019.
76
111
MOSER. Youth violence in Latin America and the Caribbean: costs, causes, and interventions. Washington
D.C: World Bank, 1999. Consultado em: 15/12/2019. Disponível em: file:///
C:/Users/User/Downloads/Youth_Violence_in_Latin_America_and_the_Caribbean_.pdf.
112
FILGUEIRA, C. H. Estructura de oportunidades y vulnerabilidad social: aproximaciones conceptuales
recientes. In: CEPAL. Seminario Vulnerabilidad. Santiago de Chile: CEPAL, 2001. Consultado em:
10/12/2019. Disponível em: https://www.cepal.org/publicaciones/xml/3/8283/cfilgueira.pdf
113
MATOS, Francisco Rey. ¿Grupos vulnerables o vulnerados? Jornal ELPAIS. 13/04/2020. Disponível em:
https://elpais.com/elpais/2020/04/09/planeta_futuro/1586425616_757834.html?ssm=FB_CC&fbclid=IwAR1
NksX8sZDvxspq8chLvXPOikXUZzGxoaSqxFcUSLMpvUqy2vsPh8SMffQ. Acesso em: 14 abr. 2020.
Tradução: “la vulnerabilidad no es una fragilidad irreversible ante amenazas inconmensurables: es una
condición producida histórica y socialmente, con una participación determinante de las relaciones de poder
en ese resultado”.
77
Nesse sentido, a vulnerabilidade deve ser analisada de forma mais holística, ampla e
complexa possível, levando em conta também os elementos sociais, psicológicos e
organizativos das pessoas. Isso indica que as generalizações sobre a caracterização de
vulnerabilidades a determinados grupos podem ser equivocadas.
Falar das violações de direitos decorrentes das vulnerabilidades e que geram formas de
exploração é fundamental para provocar a percepção da problemática e realizar o enfrentamento
no sentido de eliminar essas violações. Dessa forma, a vulnerabilidade pode ser diretamente
conectada aos fenômenos de mobilidade humana da atualidade, e principalmente ao fenômeno
do tráfico de pessoas.
114
MATOS, Francisco Rey. ¿Grupos vulnerables o vulnerados?. Jornal ELPAIS. 13/04/2020. Disponível em:
https://elpais.com/elpais/2020/04/09/planeta_futuro/1586425616_757834.html?ssm=FB_CC&fbclid=IwAR1
NksX8sZDvxspq8chLvXPOikXUZzGxoaSqxFcUSLMpvUqy2vsPh8SMffQ. Acesso em: 14 abr. 2020.
Tradução: “Un grupo indígena en la selva del Chocó colombiano puede ser muy pobre y tener numerosos
elementos de vulnerabilidad económica, de recursos y habitar en zonas de gran vulnerabilidad ambiental. Pero
su organización social, su cohesión comunitaria, su visión colectiva, su proyecto común les ha permitido resistir
y sobreponerse ante muchas amenazas a lo largo de la historia. Los elementos sociales, psicológicos,
organizativos forman parte del análisis de la vulnerabilidad junto con las más convencionales dimensiones
económicas, de edad, de género, ambiental y otras.”.
115
Ver em: Plano de Ação Global das Nações Unidas para o Combate ao Tráfico de Pessoas, documento A / RES
/ 64/293 das Nações Unidas, de 12 de agosto de 2010, terceiro parágrafo preambular.
116
Organização Internacional do Trabalho e Comissão Europeia, Indicadores operacionais de tráfico de seres
humanos 2009.
78
117
Ver em: Diretiva Europeia contra o Tráfico de Seres Humanos (o décimo segundo parágrafo do preâmbulo).
Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/ES/TXT/PDF/?uri=CELEX: 32011L0036&from=es.
Acesso em: 3 nov. 2019.
118
Ver em: OIT. Dando uma face global à globalização, pesquisa geral sobre convenções fundamentais sobre
direitos no trabalho, 101ª sessão, junho 2012, par. 590, 594 e 605.
119
CUMBRE JUDICIAL IBEROAMERICANA. 100 Reglas de Brasilia sobre Acceso a la Justicia de las
Personas en Condición de Vulnerabilidad. XIV. Brasilia, 4 a 6 de marzo de 2008. Disponível em:
https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2009/7037.pdf. Acesso em: 10 fev. 2020.
120
LARSEN, J. J.; DURGANA, D. P. Measuring vulnerability and estimating prevalence of modern slavery.
Chance: Using data to advance Science, Education, and Society, Virginia, v. 30, n. 3, p. 13, 2017.
79
Este trabalho está sendo concluído no momento em que uma pandemia assola o Mundo.
Quem diria que, em pleno século XXI, vivenciar-se-ia uma situação tão sui generis como
esta?123.
Impossível negar que o isolamento e confinamento das pessoas para evitar o contágio
pelo COVID-19 ocasionou mais um fator de vulnerabilidade às vítimas de tráfico de pessoas,
pela invisibilidade e potencial exposição à situações de exploração.
Apesar de ainda ser bastante incipiente, alguns levantamentos feitos por OSCs e outros
atores internacionais que atuam no enfrentamento ao tráfico de pessoas, os traficantes estão
ajustando os seus modelos de negócios ao ‘novo normal’ criado pela pandemia, especialmente
por meio de abuso das modernas tecnologias de comunicação. Por outro lado, a pandemia afeta
o trabalho desenvolvido pelas autoridades estatais e OSCs em fornecer serviços essenciais às
vítimas desse crime.
A identificação das vítimas, que já é difícil em circunstancias normais, parece estar
sendo dificultada em tempos de COVID-19, seja porque estão mais expostas à contração do
vírus, menos equipadas para evitá-lo e têm menos acesso à assistência médica para garantir sua
recuperação.
121
FRINHANI, Fernanda de M. D. As representações sociais dos profissionais do direito sobre tráfico de
pessoas. Tese (Doutorado) - USP, 2014. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2140/tde-
08122014-162505/publico/FERNANDA_FRINHANI_TESE.pdf. Acesso em: 10 out. 2019.
122
OIM. Handbook protection and assistance for migrants vulnerable to violence, exploration and abuse.
Disponível em: https://publications.iom.int/books/iom-handbook-migrants-vulnerable-violence-exploitation-
and-abuse. Acesso em: 10 ago. 2019.
123
Importante destacar que esta pandemia iniciou na Espanha e no Brasil(finais de fevereiro/2020), dias após meu
retorno da viagem de realização das entrevistas para a tese, o que reforçou, de forma muito particular, pela
proximidade com as pessoas, minha preocupação com as mulheres vítimas, mulheres migrantes, mulheres no
exercício da prostituição e principalmente das mulheres em situação de exploração sexual e laboral neste
momento de isolamento social.
80
124
UNODC. Impacto da pandemia covid-19 no tráfico de pessoas:conclusões preliminares e mensagens com
base em um rápido balanço. Disponível em: https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/frontpage/2020/05/covid-19-
unodc-alerta-para-maiores-riscos-para-vtimas-do-trfico-de-pessoas.html. Acesso em: 10 maio 2020.
125
20 MINUTOS. La policía desarticula una red que obligaba a prostituirse a 12 mujeres a domicilio durante
el confinamiento. 10/04/2020. Disponível em: https://www.20minutos.es/noticia/4223008/0/ desmantelada-
organizacion-prostitucion-confinamiento/?utm_source=facebook.com&utm_medium=
socialshare&utm_campaign=mobile_web&fbclid=IwAR2EEfoZTfy20lIcQUQR7zfyiZyxEJ-
sP2xSkjrn4KvohPCI26EG-qPC8D4. Acesso em: 10 abr. 2020. “La Policía Nacional ha desmantelado una
organización criminal de trata, en el marco de una operación en la que ha detenido a siete personas como
presuntos autores de un delito de trata de seres humanos y ha liberado a 12 mujeres, una de ellas menor de edad,
que estaban siendo víctimas de explotación sexual en Córdoba y Jaén, y que habían sido captadas en Colombia.
"Nuestras unidades especializadas en la lucha contra la trata han desarticulado una red internacional que
explotaba sexualmente a mujeres, siendo liberadas 12 víctimas en Córdoba y Jaén, alguna de ellas menor de
edad. La organización desmantelada continuaba la actividad incluso tras ser decretado el estado de alarma",
ha explicado el Comisario Principal de la Policía Nacional, José García Molina, este viernes 10 de abril
durante la rueda de prensa posterior a la reunión del Comité de Gestión Técnica del Coronavirus. Según ha
precisado, "a pesar del confinamiento, muchos clientes solicitaban los servicios sexuales acudiendo a los pisos
en que se encontraban las mujeres o reclamaban que estas se desplazaran a sus propios domicilios.”
126
NOTICIAS R7. Tráfico de pessoas pode aumentar com pandemia, dizem especialistas. 29/04/2020.
Disponível em: https://noticias.r7.com/sao-paulo/trafico-de-pessoas-pode-aumentar-com-pandemia-dizem-
especialistas-29042020. Acesso em: 30 abr. 2020.
81
127
Ver em: ECO. SEF vai legalizar todos os estrangeiros em situação irregular em Portugal. Disponível em:
https://eco.sapo.pt/2020/03/28/sef-vai-legalizar-todos-os-estrangeiros-em-situacao-irregular-em-portugal/.
Acesso em: 30 abr. 2020. Ver: OBSERVADOR. Conselho da Europa saúda Portugal por regularizar
imigrantes. Disponível em: https://observador.pt/2020/03/30/conselho-da-europa-sauda-portugal-por-
regularizar-imigrantes/. Acesso em: 30 abr. 2020.
128
UNODC. Impacto da pandemia covid-19 no tráfico de pessoas: conclusões preliminares e mensagens com
base em um rápido balanço. Disponível em: https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/frontpage/2020/05/covid-19-
unodc-alerta-para-maiores-riscos-para-vtimas-do-trfico-de-pessoas.html. Acesso em: 10 maio 2020.
82
129
Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL), Desarrollo Social Inclusivo: “Una nueva
generación de Políticas para superar la Pobreza y Reducir la Desigualdad en América Latina y el Caribe”.
Conferencia Regional sobre Desarrollo Social de América Latina y el Caribe Lima, 2 a 4 de noviembre de 2015.
130
CIDH. Informe sobre pobreza y derechos. Comisión Interamericana de Derechos Humanos (CIDH).
OEA/Ser.L/V/II.164. 2017.
83
131
OXFAM. Relatorio Tempo de cuidar: o trabalho de cuidado não remunerado e mal pago e a crise global da
desigualdade. 2020. p 13. Disponível em: https://oxfam.org.br/justica-social-e-economica/forum-economico-
de-davos/tempo-de-cuidar/. Acesso em: 20 jan. 2020.
132
Ibid., p. 9.
133
Id.
84
mulheres são responsáveis por mais de três quartos do cuidado não remunerado e compõem
dois terços da força de trabalho envolvida em atividades de cuidado remuneradas.”134.
As mulheres migrantes também migram para outros territórios devido à pobreza e falta
de oportunidade A busca por emprego é uma das motivações das mulheres migrarem, fato que
também serve para suprimir o estereótipo da mulher que migra como acompanhante, sempre
do homem “produtivo”.
Não é possível falar de mulheres e não apontar para interseccionalidade dessa categoria
com a questão racial. Nas Américas, a população de ascendência africana excede 150 milhões
de pessoas - um número que é aproximadamente igual a 30% da população total - e está entre
os grupos mais empobrecidos do continente135.
No Brasil, um fator importante dessa desigualdade é que a composição racial da
população brasileira varia de acordo com a região, com os brancos predominando no Sul, uma
área de maior desenvolvimento econômico; e afrodescendentes no Norte. A situação das
mulheres afrodescendentes reflete a interseção das desigualdades raciais e de gênero, uma vez
que estão nos níveis educacional, ocupacional e de renda mais baixos. No Brasil, entre
trabalhadores assalariados domésticos, o percentual de mulheres afrodescendentes (18,6%)
excede a população branca de mulheres em 8 pontos percentuais. Além disso, a prevalência de
diferentes doenças é maior em mulheres afro-brasileiras136.
As dificuldades na titulação, uso e administração de terras de povos afrodescendentes
em vários países das Américas tiveram um forte impacto no gozo de direitos básicos, incluindo
o acesso a serviços mínimos para abastecimento de água, eletricidade e saneamento. Essas
limitações não podem ser esquecidas quando da caracterização dos principais grupos
vulneráveis e que encontram na mobilidade humana, seja ela voluntária ou forçada, uma
alternativa a ser considerada para sua possível melhora de vida.
A pobreza tem dois efeitos contraditórios sobre a migração de pessoas. Por um lado,
gera impulso para as pessoas migrarem, como estratégia de sobrevivência. Por outro lado,
também limita ou impede a capacidade de migração, dado que os custos associados à migração
são muito altos, particularmente se envolver a migração através de canais regulares. Nesse
sentido, a migração pode não ser uma opção disponível para pessoas em extrema pobreza.
134
OXFAM. Relatorio Tempo de cuidar: o trabalho de cuidado não remunerado e mal pago e a crise global da
desigualdade.2020. p.10 Disponível em: https://oxfam.org.br/justica-social-e-economica/forum-economico-de-
davos/tempo-de-cuidar/. Acesso em: 20 jan. 2020.
135
CIDH. Situación de las personas afrodescendientes en las Américas. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 62, 5 diciembre
2011. p. 17.
136
CEPAL. Panorama social de América Latina. 2015. p. 37.
85
Muitas vezes, a migração somente é possível quando há o seu financiamento, o que pode levar
a situações de endividamento, exploração ou de submissão a redes de contrabando de pessoas
ou tráfico de pessoas.
De toda forma, existe a tendência de vários Estados no Mundo no sentido de conter a
imigração pela implementação progressiva de políticas destinadas a restringir o direito à livre
circulação, como a solicitação de vistos de nacionais de países que não eram solicitados
anteriormente e também o fechamento e maior securitização de fronteiras137.
Sem tentar simplificar o fenômeno da globalização138, verifica-se que o atual processo
de internacionalização da economia, no qual os países possuem seus desenvolvimentos
econômicos condicionados aos ajustes estruturais orientados pelas instituições financeiras
multilaterais e pelo mercado de capital, percebe-se a concentração de recursos que tende a
aumentar consideravelmente, agravando as situações de desigualdade social e de
vulnerabilidade social, perpetuando mecanismos de discriminação e exclusão de amplos
segmentos da população.
No Brasil, segmentos historicamente excluídos e discriminados, como as mulheres,
afrodescendentes, indígenas, sofrem profundamente as consequências dessas desigualdades,
pois vivenciam diversos tipos de vulnerabilidades. Ademais, as bases que fundamentam as
elites da sociedade brasileira e a construção do estado brasileiro têm raízes no modelo patriarcal,
escravista e patrimonialista e qualquer tentativa de reconhecimento das mulheres como sujeitos
de direitos ainda é novo na história deste país139.
O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) criou, desde 1997,
dois índices para medir as diferenças por gênero: o Índice de Desenvolvimento por Gênero
(IDG) e o Índice de Poder por Gênero (IPG). O primeiro leva em conta as diferenças de
137
Uma tentativa recente que exemplifica essa tendência foi o quase fechamento das fronteiras brasileiras na
tentativa de impedir a entrada dos venezolanos que procuram escapar da condição de pobreza. AGENCIA
BRASIL. Roraima pede ao STF fechamento da fronteira com a Venezuela. 13/04/2018.
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-04/roraima-pede-ao-stf-que-determine-fechamento-da-
fronteira-com-venezuela. Acesso em: 30 abr. 2019.
138
Boaventura de Souza Santos afirma que a globalização consiste num conjunto de relações processuais que se
transformam e transformam a globalização. Não existe uma única entidade globalizante, existem várias
globalizações que se relacionam em feixes sociais, que tendem a envolver conflitos entre vencedores e vencidos.
Analisa que o Estado neoliberal é a instância de poder hegemônico enviado para se adequar às exigências do
modelo econômico globalizado. As formas contra-hegemônicas são aquelas relativas à democracia
participativa; ao multiculturalismo; à justiça e cidadania emancipatórias, e participações locais. SANTOS,
Boaventura Souza. Reinventando a democracia. Coimbra: Gradiva, Fundação Mario Soares, 1999. p. 4.
139
. Ver em: HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26. edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. 29. edição. Rio de Janeiro: Record, 1933. DA MATTA, Roberto. A casa & a rua: espaço, cidadania,
mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara. 1987. GIACOMINI, Sônia Maria. Mulher e escrava:
uma introdução histórica ao estudo da mulher negra no Brasil. Petrópolis: Vozes. 1988.
86
140
O Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD – 1997, traz um conceito amplo de pobreza: a pobreza
humana não enfoca o que as pessoas possuem ou deixam de possuir, mas o que podem ou não fazer – é a
privação das capacidades mais essenciais da vida.
141
SANTOS, Boaventura S. Descolonizar el saber, reinventar el poder. Uruguay: Ediciones Trilce. 2010.
142
PROYECTO ESPERANZA. El mundo de la trata. Coordinación Proyecto Esperanza. España. p. 46.
Disponível em: http://www.proyectoesperanza.org/pdf/trata/entero.pdf. Acesso em: 1 mar. 2018
143
ILO. Perspectivas sociais e de emprego no mundo: tendências para mulheres 2018. Resumo Executivo, 2018.
Disponível em: http://www.ilo.org/global/research/global-reports/weso/2018/WCMS_615674/lang--
es/index.htm. Acesso em: 10 out. 2019.
87
mulheres com menor grau de instrução, excluídas do mercado formal de trabalho, lançadas para
as piores formas de trabalho, submetidas às relações de exploração e de violência
Pesquisa do IBGE, 2016, com os principais destaques da evolução do mercado de
trabalho nas regiões metropolitanas (Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São
Paulo e Porto Alegre), entre 2003-2015, indica-se que o rendimento de trabalho das mulheres,
em 2015, estimado em R$ 1.927, continuava sendo inferior ao dos homens, estimado em R$
2.555. Ademais, comparando a média anual dos rendimentos dos homens e das mulheres,
verificou-se que, em média, as mulheres ganham em torno de 75,4% do rendimento recebido
pelos homens144.
As diferentes condições de desenvolvimento da força do trabalho das mulheres em
relação aos homens certamente aparecem como um fator relevante na construção dos
economicamente excluídos, reforçado pela manutenção cultural dessa realidade que se reverte
em estados de vulnerabilidade social das mulheres. Este fenômeno é conhecido como a
“feminização da pobreza”145.
O conceito “feminização da pobreza” se originou nos Estados Unidos da América, nos
anos de 1970, quando se discutia o surgimento de mães solo e sua relação com a assistência
social. Mais tarde passou a ser relacionado com o crescimento de famílias matrifocais ou
monoparentais146, bem como com a participação das mulheres nos setores de atividades
informais urbanas de baixa remuneração. Atualmente, por outro lado, esse conceito destaca: 1)
a maior incidência da pobreza e de sua severidade entre mulheres que entre homens; 2) à
tendência no aumento da pobreza entre mulheres pelo crescimento de domicílios
monoparentais; 3) a caracterização da pobreza feminina, atingindo essencialmente as mulheres
dos países em desenvolvimento.147.
144
IBGE. Principais destaques da evolução do mercado de trabalho nas regiões metropolitanas abrangidas
pela pesquisa Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre (2003-2015).
Disponível em: ftp://ftp.ibge.gov.br/Trabalho_e_Rendimento/Pesquisa_Mensal_de_Emprego/Evolucao_
Mercado_Trabalho/retrospectiva2003_2015.pdf. Acesso em: 20 jan. 2019.
145
MELO, Mônica de; MASSULA, Letícia. Tráfico de mulheres: prevenção, punição e proteção. São Paulo: BH
Gráfica. Realização CLADEM e Consulado Geral dos Estados Unidos em São Paulo, 2003.
146
Matrifocalidade é um conceito que qualifica um grupo doméstico centrado na mãe, estando o pai
frequentemente ausente ou detendo apenas um papel secundário. Gonzalez define que a família matrifocal
apresenta as seguintes características: 1 – a mãe é a figura estável, e as outras pessoas do grupo doméstico
funcionam ao seu redor; 2 – a maioria dos contatos dos membros da família se realiza com parentes
matrilaterais; 3 – as mulheres têm o poder de decidir sobre as crianças e a casa. GONZALEZ, Nancie. Toward
a definition of matrifocality. In: WHITEN JR. & SZWED, J. (ed.) Afro-american anthropology. Free Press
and Collier Macmillan: New York London, 1970, apud ZARUR George. Repensando o conceito de
matrifocalidade.
147
NOVELLINO, Maria Salet F. Os estudos sobre feminização da pobreza e políticas públicas para mulheres,
2004. Disponível em: http://www.abep.org.br/publicacoes/index.php/anais/article/viewFile/ 1304/1268.
Acesso em: 10 abr. 2019.
88
148
BRIDGE. Briefing paper on the ‘feminisation of poverty’. Institute of Development Studies. 2001.
Disponível em: http://www.bridge.ids.ac.uk/sites/bridge.ids.ac.uk/files/reports/femofpov.pdf. Acesso em: 10
abr. 2019.
89
Constitui uma das violações dos Direitos Humanos e um problema de saúde pública
global. Caracteriza-se como uma violência que silencia, racionaliza, nega e não é aceita pelos
indivíduos e pela sociedade149.
Diversos fatores estruturais e simbólicos são os fundamentos da violência de gênero. É
fundamental observar que a dependência social, econômica, afetiva, a falta de oportunidades e
de equidade no mundo do trabalho são condições que intensificam a situação de vulnerabilidade
e impedem a quebra dos ciclos intergeracionais de violência contra a mulher.
O gênero é uma categoria de análise que permite distinguir e separar o biológico,
atribuído ao sexo, do cultural, determinado pelo gênero, e por meio do qual funções,
responsabilidades e oportunidades são conferidas a homens e mulheres.
Nesse sentido, gênero é uma construção discursiva e cultural dos sexos biológicos.
“‘Gênero’ é um termo usado para analisar os papéis “masculino” e “feminino” que se tornaram
hegemônicos. A aparência de homem e mulher está profundamente ligada a regas de
comportamento. Somos controlados social e domesticamente desde que fomos “generificados”
[...].” Assim, as relações de gênero são "construções sociais" que mudam de uma sociedade
para outra no decorrer do tempo, sendo assim caracterizadas por serem suscetíveis à
modificação, reinterpretação e construção150.
Utilizar a categoria de gênero como análise permite entender a relação de
subordinação e dominação entre homens e mulheres. A desigual distribuição
de poder entre os sexos influencia a forma como homens e mulheres podem
desenvolver suas habilidades pessoais, profissionais e sociais151 (tradução
nossa).
149
CASTILHO, Elizabeth. Feminicidio: mujeres que mueren por violência intrafamiliar em Colombia. Bogotá:
Profamilia, 2007. p. 18.
150
SCOTT, J. W. Gender: A useful category of historical analysis. The American Historical Review, v. 91, n. 5,
1986. Disponível em: http://www.jstor.org/discover/10.2307/1864376?uid=3737664&uid=2&uid=
4&sid=21104752748101. Acesso em: 8 ago. 2019.
151
GARCÍA, Mª Ángeles Briñón. Una visión de género...es de justicia. Ayuda en Acción, Entreculturas e
InteRed. 2007. Disponível em: https://www.entreculturas.org/sites/default/files/una_vision_de_
genero.es_de_justicia.pdf. Acesso em: 2 ago. 2019. “Utilizar la categoría de género como análisis permite
entender la relación de subordinación y dominación entre hombres y mujeres. La distribución desigual de
poder entre los sexos influye en la manera en que los hombres y las mujeres pueden desarrollar sus habilidades
personales, profesionales y sociales”
152
CONNEL, Raewyn; PEARSE, Rebbeca. Gênero uma perspectiva Global: compreendendo o gênero – da
esfera pessoal à política – no Mundo contemporâneo. São Paulo: Versos, 2015.p. 25. “El género es una
dimensión central de la vida personal, de las relaciones sociales y de la cultura. Es un escenario en el que nos
enfrentamos a cuestiones prácticas difíciles con respecto a la justicia, identidad, e incluso la supervivencia.”
90
A violência de gênero é assim entendida como todo comportamento que causa violência
a uma pessoa por causa de seu gênero. Seu exercício é realizado com o objetivo de intimidar,
humilhar, tomar decisões e decidir sobre sua sexualidade e integridade pessoal. É qualquer ação
ou conduta, baseada em seu gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou
psicológico, tanto no público quanto no privado.
A discussão de gênero é fundamental para compreender o fenômeno do tráfico de
pessoas, principalmente quando falamos das vítimas mulheres.
A coisificação das mulheres por meio da exploração do sexo é uma forma de violência
de gênero. Utiliza-se a mulher como objeto, como se ela pudesse ser transformada em objeto e
porque ela é entendida como algo que pode ser apropriado, geralmente, por um homem.
O gênero influi diretamente na finalidade de uma das modalidades do tráfico de pessoas.
Enquanto mulheres são mais traficadas para fins de exploração sexual comercial, homens o são
com a finalidade de realizar trabalho escravo ou análogo à escravidão. Isso se dá, em parte,
pelas desigualdades de gênero existentes que entendem as mulheres como objetos consumíveis,
sem dignidade e direitos. Para além “[...] de toda a situação concreta de violação de direitos que
essas vítimas experienciam, elas ainda são destituídas de sua possibilidade de desejar. Elas não
têm vontades ou desejos, mas são apenas, literalmente, objetos de desejo. 154 E ainda, “É como
se, de modo geral, a mulher não fosse pensada a partir de si, mas em comparação ao homem. É
como se a mulher não fosse definida em si mesma, mas em relação ao homem e através do olhar
153
CUNHA, Barbara Madruga. Violência contra a mulher, direito e patriarcado: perspectivas de combate à
violência de gênero. 2014. Disponível em: http://www.direito.ufpr.br/portal/wp-content/uploads/2014/12/
Artigo-B%C3%A1rbara-Cunha-classificado-em-7%C2%BA-lugar.pdf. Acesso em: 17 mar. 2019.
154
GONÇALVES, Tamara A. Tráfico de meninas e mulheres para fins de exploração sexual: uma problemática
que extrapola divisas nacionais. In: BRASIL. Secretaria Nacional de Justiça. Tráfico de pessoas: uma
abordagem para os direitos humanos. Brasília, DF: Ministério da Justiça, 2013. p. 254.
91
do homem. Olhar este que a confina num papel de submissão que comporta significações
hierarquizadas.”155.
Para compreender e responder a pergunta se uma mulher determinada é vítima de
tráfico, pode ser importante incorporar o entendimento do conceito de interseccionalidade. Esse
conceito foi introduzido por Crenshaw para argumentar que gênero e raça interagem e definem
juntas uma situação particular de desvantagem social156. Esclarece que não se trata de somar as
desigualdades, mas de verificar como cada uma delas se intersecciona de forma diferente em
cada situação pessoal e no grupo social mostrando estruturas de poder existentes no seio da
sociedade. A evolução desse conceito permite perceber que as desigualdades são produzidas
pelas intersecções entre os mais variados sistemas de subordinação, entre eles, de raça, gênero,
etnia, orientação sexual, religião, “deficiência”, lugar de origem, situação econômica, etc.; e,
permite analisar como esses sistemas se retroalimentam gerando subordinação, favorecendo na
criação, manutenção e reforço das desigualdades formais e informais, que levam a diferentes
formas de perceber e visualizar as situações de vulnerabilidade que podem levar a uma situação
de tráfico de pessoas157.
155
RIBEIRO, Djalmila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento:Justificando, 2017. p. 36.
156
CRENSHAW, K. demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of
antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. University of Chicago Legal Forum, v.
189, n. 1, p. 139-167, 1989. Disponível em: https://chicagounbound.uchicago.edu/cgi/viewcontent.cgi?
article=1052ycontext=uclf. Acesso em: 10 maio 2020.
157
SILVA Correa, Waldimeiry. La Interseccionalidad en la Trata de Seres Humanos: Un encuentro necesario para
el enfoque de Derechos Humanos. In: CORDERO RAMOS, N.; CRUZ ZUÑIGA, P. (org.). Trata De
Personas, Género Y Migraciones En Andalucía (España), Costa Rica Y Marruecos: retos y propuestas
para la defensa y garantía de los derechos humanos. Madrid: Dykinson editorial, 2019. p. 37 -38.
92
Assim, pode-se dizer que nem sempre a prostituição vinculada a migração é tráfico de pessoas,
mesmo que esta seja uma corrente defendida por algumas correntes feministas e por discursos
políticos principalmente de países de destino158. Para esta pesquisa, não cabe discutir
prostituição livre, mas analisar o tráfico de pessoas para fins de exploração.
Muitas vezes o processo em que ocorre essa busca de oportunidades apanha,
recorrentemente, os indivíduos em situação de vulnerabilidade e com poucas possibilidades de
negociar as condições em que vão desenvolver atividades laborais. Ademais, a necessidade de
garantir a sua sobrevivência, e, em muitos casos, de suas famílias, pode levar a mulher a se
prostituir em condições bastante vulneráveis e de exploração.
Se em muitos casos a opção pela atividade da prostituição já decorre, por si, de uma
situação de precariedade econômica e de ausência de expectativas estáveis, quando ela se insere
em processo migratório forçado ou em situação de irregularidade, culmina, na degradação da
sobrevivência e de dignidade, que se encontra submergido a mecanismos de opressão e a
práticas de violência física e psicológica.
Sabendo do tensionamento existente na discussão sobre as posições a favor do exercício
da prostituição como atividade laboral livre e da posição contra o exercício da prostituição como
uma atividade laboral por fundar-se na exploração da pessoa, destaca-se o posicionamento de
Bindel, quando aponta que “A descriminalização do comércio sexual beneficia proxenetas e
donos de bordéis, não mulheres. Abolição é a única solução progressiva”, argumentando que
seus estudos têm indicado que as experiências de legalização da prostituição como na Holanda
e na Suécia, onde a lei que criminaliza a demanda e descriminaliza aqueles que vendem sexo
(desde 1999) não tem diminuído as vulnerabilidades das mulheres.
O que acontece quando o argumento da legalização ganha é mostrado na
Holanda na última década. (...P "Dois terços das prostitutas são estrangeiros,
na maioria das vezes ilegais, e ninguém os registra." O ex-prefeito de
Amsterdã, Job Cohen, disse que a legalização não conseguiu remover o crime
organizado do comércio sexual e que ele esperava "reverter parcialmente" a
legislação159 (tradução nossa).
158
RIOPEDRE, José López. Inmigración colombiana y brasileña y prostitución femenina en la ciudad de
Lugo: historias de vida de mujeres que ejercen la prostitución en pisos de contactos. Tese (Doutorado) - UNED,
2010.
159
BINDEL, Julie. Why prostitution should never be legalised. The Guardian, 11/10/2019. Disponível em:
https://www.theguardian.com/commentisfree/2017/oct/11/prostitution-legalised-sex-trade-pimps-women.
Acesso em: 17 abr. 2018. “What happens when the legalisation argument wins is shown in the Netherlands
over the past decade. Just three years after the law there was changed, the government began closing down
street prostitution zones and restricting the number of “window brothel” licences.”
93
160
SANTOS, Ebe Campinha. Trafico e gênero: a moralização do deslocamento feminino. Tese de Doutorado
apresentada ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social da PUC-Rio. 2012. Disponível em:
https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/21456/21456.PDF. Acesso em: 20 jun. 2019.
161
Essas práticas se enquadram na lógica da “ciência da sexualidade”, explicitada por Michel Foucault (1988).
162
Id.
94
163
ARADAU, Claudia. Rethinking trafficking in women politics out of security. New York: Palgrave
Macmillan, 2008.
95
O fenômeno do tráfico de pessoas164 é considerado uma das piores violações dos direitos
humanos, como uma forma de escravidão contemporânea. Entende-se que o tráfico de pessoas
as submete à condição de exploração e, muitas vezes, submetendo-as à condição de escravos.
Deslocam-se pessoas, enganando-as ou aproveitando-se da sua condição vulnerável para as
explorar em alguma atividade rentável.
Trata-se de fenômeno social que envolve o deslocamento de pessoas através do engano,
da coerção ou do aproveitamento de sua condição de vulnerabilidade social, com a intenção de
a explorar no destino final e obter benefício financeiro. Essa exploração pode ser, no mínimo,
sexual, trabalho forçado, casamento forçado, extração de órgãos e mendicidade.
A finalidade do tráfico é a exploração da pessoa em alguma atividade que permita lucro
àquele que a trafica. O tráfico de pessoas está incorporado no tratamento dos seres humanos
como propriedade, e isso não é novo. Desde a antiguidade, o tráfico continua a representar um
problema para quem trabalha no Sistema Internacional e nas áreas regulatórias internas. A reificação ou
coisificação do ser humano continua a representar um problema para a lei em todo o mundo 165.
Neste capítulo, discutir-se-á criticamente o fenômeno do tráfico de pessoas a partir dos
números de vítimas apresentadas pelas principais organizações internacionais
intergovernamentais e não governamentais que atuam nessa temática. Como se sabe, esse tipo
de tráfico é considerado um fenômeno invisível, de difícil identificação, e consequentemente
de quantificação. Diferentemente do tráfico de armas e drogas, em que a materialidade do crime
se verifica pelas armas e pelas drogas, no tráfico de pessoas, a materialidade é a própria pessoa,
ficando bastante dificultada a identificação dessa materialidade.
164
Também denominado tráfico de seres humanos (TSH).
165
CARBALLO, Marta de la Riva. Trata de Personas: consideraciones históricas y jurídicas: Estructuras,
institución y sistemas de explotación” Tesis Doctoral. 2017. p. 33.
96
166
O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) é o escritório líder mundial na luta contra as
drogas ilícitas e o crime organizado transnacional. Foi fundado em 1997, quando os Programas das Nações
Unidas para o Controle Internacional de Drogas (UNDCP), juntamente com o Centro de Prevenção ao Crime
Internacional, estabeleceram o Escritório das Nações Unidas para o Controle de Drogas e Prevenção do Crime
(ODCCP). Posteriormente, em 15 de março de 2004, foi criado um escritório com personalidade jurídica
própria e com poderes legais. Através do boletim STSGB / 2004/6, emitido pelo Secretariado Geral das Nações
Unidas, foi criado o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). O UNODC tem o mandato
de ajudar os Estados membros em sua luta contra as drogas ilícitas, o crime e o terrorismo. Na Declaração do
Milênio, os Estados membros também decidiram intensificar o combate à criminalidade organizada
transnacional em todas as suas dimensões, redobrar esforços para implementar o compromisso de combater o
problema mundial das drogas e empreender uma ação concertada contra o terrorismo internacional.
167
Global Report on Trafficking in Persons – United Nation Office of Drugs and Crime, 2016. Disponível em:
https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/glotip/2016_Global_Report_on_Trafficking_in_
Persons. pdf. Acesso em: 10 jan. 2020.
168
Id.
169
Id.
97
trabalho forçado são homens. Outro dado interessante revelado nesse relatório de 2018 é que a
maioria das vítimas detectadas globalmente é traficada para exploração sexual, embora esse
padrão não esteja presente em todas as regiões. Tráfico de mulheres - mulheres e meninas - para
a exploração sexual prevalece nas Américas, Europa, Extremo Oriente e Pacífico, enquanto na
América Central e no Caribe predominam mais meninas e adolescentes170.
A Organização Internacional de Migrações (OIM) aponta que desde 1994, quando
iniciou as primeiras abordagens de combate ao tráfico de pessoas, até o final de 2016, já havia
atendido mais de 90.000 pessoas traficadas no mundo. Os programas de combate ao tráfico da
OIM fornecem uma fonte única de dados sobre o tráfico que é de âmbito internacional, por
meio da coleta de informações obtidas diretamente das vítimas de que foram assistidas pela
OIM171.
170
Ibid., p. 10.
171
O Counter-Trafficking Data Collaborative (CTDC) serve como um repositório central de informações críticas
sobre tráfico humano. Publica dados padronizados e harmonizados de várias organizações usando um esquema
unificado em seu conjunto de dados global. O CTDC facilita um nível incomparável de análise interagências e
transfronteiriça e fornece ao movimento de combate ao tráfico uma compreensão verdadeiramente profunda
desta questão complexa. Equipado com informações atualizadas e confiáveis, os tomadores de decisão têm o
poder de desenvolver e implementar intervenções direcionadas. Ver em: OIM. Disponível em: https://www.
ctdatacollaborative.org/iom-data-overview. Acesso em: 10 jan. 2020.
172
ILO. Global estimates of modern slavery, 2017. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/
groups/public/@dgreports/@dcomm/documents/publication/wcms_575479.pdf. Acesso em: 10 jan. 2020
98
que estavam sendo forçados a trabalhar contra a vontade, sob ameaça, ou estavam vivendo em
um casamento forçado173. Dessas pessoas, 24,9 milhões estavam em trabalhos forçados sob
ameaça ou coerção, como trabalhadores domésticos, em construções locais, fábricas
clandestinas, fazendas e barcos de pesca, em outros setores e na indústria do sexo; 15,4 milhões
de pessoas viviam em um casamento forçado para o qual não deu consentimento174.
O relatório também aponta que mulheres e meninas são desproporcionalmente afetadas
pela escravidão moderna, contabilizando 28,7 milhões ou 71% do total geral. Mais
precisamente, mulheres e meninas representam 99% das vítimas de trabalho forçado na
indústria do sexo comercial. Uma em cada quatro vítimas da escravidão moderna era criança.
Cerca de 37% (5,7 milhões) daqueles forçados a casar eram crianças. Crianças representam
18% das pessoas submetidas a exploração de trabalho forçado, e 21% das vítimas de exploração
sexual comercial. Nos últimos cinco anos, 89 milhões de pessoas experimentaram alguma
forma de escravidão moderna, por períodos de tempo variando de alguns dias até cinco anos. O
tempo médio de duração das vítimas no trabalho forçado oscilou de alguns dias ou semanas a
até quase dois anos175.
O mesmo relatório da OIT assinala que acabar com a escravidão moderna exigirá uma
resposta multifacetada, que aborda a matriz de forças - econômica, social, cultural e legal - que
contribuem para a vulnerabilidade e permitem abusos. Ademais, não se pode falar de uma
solução de tamanho único. Respostas precisam ser adaptadas aos ambientes diversos nos quais
a escravidão ocorre.
Nesse mesmo sentido, Marta Carballo destaca a necessidade de respostas transnacionais
do fenômeno. O tráfico de pessoas é a nova escravidão contemporânea, e não tem outro
propósito senão contribuir para a acumulação de capital. Nessa acepção, a economia de
mercado atual facilita e estimula a existência do tráfico, transformando pessoas em objetos ou
bens altamente lucrativos. O tráfico de pessoas atinge todos os países, sejam de origem de
vítimas, de trânsito ou de destino, e é um crime de natureza regional e interna. Essa
complexidade exige uma abordagem transnacional do fenômeno176.
173
Importante destacar que a OIT tem como vocação a temática do trabalho e suas formas de exploração. Nesse
sentido, a OIT tem um olhar sobre as piores formas de trabalho, que são consideradas finalidades da exploração
que leva ao tráfico de pessoas. Sejam elas, o trabalho forçado, casamento forçado, exploração sexual de
pessoas.
174
ILO. Global Estimates of Modern Slavery, 2017. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/
@dgreports/@dcomm/documents/publication/wcms_575479.pdf. Acesso em: 10 jan. 2020.
175
Id.
176
CARBALLO, Marta de la Riva. Trata de Personas: consideraciones históricas y jurídicas: Estructuras,
institución y sistemas de explotación. Tese Doutorado Universidad de Alcalá (Espanha). 2017. p. 50.
99
177
Os dados do Relatório relativos à exploração sexual se referem a pessoas, inclui mulheres e homens que
involuntariamente entraram em uma forma de comercial exploração sexual ou que tenham entrado
voluntariamente, mas não podem sair. Inclui também todas as formas de exploração sexual comercial
envolvendo crianças. OIT, Global estimates of modern slavery, 2017. p. 39. Disponível em: http://
www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/@dgreports/@dcomm/documents/publication/wcms_575479.pdf.
Acesso em: 5 jan. 2020.
178
Convenção 182 da OIT. Ratificada pelo Brasil em 12/09/2000. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/decreto/d3597.htm. Acesso em: 5 mar. 2019.
179
Relatório da UNODC Trafficking in Persons: Global Patterns. Disponível em: http://www.unodc.org/
pdf/traffickinginpersons_report_2006ver2.pdf. p. 45. Acesso em: 15 mar. 2019.
180
WEIJERS, M. LAP-CHEW, L. Trafficking in women, forced labour and slavery-like practices. In:
MARRIAGE, domestic labour and prostitution, Utrecht and Bangkok: The Foundation Against Trafficking in
Women (STV)/The Global Alliance Against Trafficking in Women (GAATW). 1997. Disponível em: http://
lastradainternational.org/lsidocs/1137-Trafficking%20in%20women%20Wijers-Lap%20Chew.pdf. Acesso
em: 15 jan. 2020.
100
Muitas vezes, as narrativas que aparecem nos estudos relativos ao tráfico de pessoas, a
repetição de imagens de mulheres capturadas ajudam a construir um imaginário unificado e
sem muitos questionamentos, que reforçam estereótipos em relação à mulher que aparece como
o grupo mais vulnerável à ação das organizações criminosas, e que por isso o seu deslocamento
precisa ser tutelado pelo Estado183, com ações de contenção de pessoas, criação de visto e
negativas do mesmo, aumento de pessoas deportadas e controle das fronteiras, evitando a
181
BLANCHETTE, Thaddeus; LEITE, Gabriela S.; PINHEIRO, Anna Marina M. P.B. Prostitutas, “traficadas” e
pânicos morais: uma análise da produção de fatos em pesquisas sobre o tráfico de seres humanos. Cadernos
Pagu, Campinas, n. 25, p. 184, 2005.
182
SANTOS, B. de S.; GOMES, C.; DUARTE, M. Tráfico sexual de mulheres: representações sobre ilegalidade
e vitimação. Revista Crítica de Ciências Sociais, Lisboa, n. 87, p. 70, dez. 2009.
183
ADRIJASEVIC, R. Trafficking in women and the politics of mobility in Europe. Tese de Doutorado na
Universidade de Utrecht/ Países Baixos, 2004. Disponível em: http:// igiturarchive.library.uu.nl/
dissertations/2005-0314-013009/index.htm. Acesso em: 20 set. 2019.
101
184
É fundamental que se problematize o momento, a motivação de porquê incluir o tráfico de pessoas no Protocolo
de Palermo como documento junto a Convenção contra o Crime Organizado Transnacional e, assim, e o
conceito dado ao tráfico de pessoas naquele instrumento internacional. Isso será feito mais adiante.
102
finalidade do seu deslocamento185, seja pelo engano quanto a como será o exercício dessa
finalidade186. Quando já em destino, essas mulheres são coagidas psicologicamente ou até com
violência física para que ali permaneçam 187.
Verifica-se a ocorrência de coação física e psicológica em vítimas de tráfico da Europa
do Leste e da África que estão inseridas no mercado sexual espanhol. Existem diferenças
importantes entre as redes de tráfico, de acordo com o tipo de abuso que elas exercem sobre as
mulheres. As redes da América Latina e da África tendem a fazer maior uso do abuso
psicológico, enquanto na Europa Oriental, o castigo físico predomina 188.
Nesse sentido, “O abuso psíquico, propriamente dizendo, tal como ameaças constantes
e coerção, une-se às condições dolorosas em que são forçados a viver e a trabalhar, muitos deles
vítimas de genuínos raptos por membros da rede, onde o único relacionamento com o exterior
é aquele mantido com os clientes.”189.
A grande percepção dos traficantes de pessoas é a de se utilizar da vulnerabilidade das
vítimas, através do engano ou daquelas que procuram melhores condições de vida no exterior.
Muitas se submetem a colaborar com os traficantes para obter sucesso no seu deslocamento
para o país de destino, dificultando a verificação dos controles de imigração. Outras ainda, não
se identificam como vítimas de tráfico; entendem que estão sendo ajudadas a concretizar um
processo migratório. Quando no destino, muitas têm os seus documentos apreendidos, e são
submetidas a cárcere privado até pagarem as suas dívidas.
Sabe-se das dimensões continentais do Brasil, além das suas vastas fronteiras, secas ou
não, que levam à percepção das suas vulnerabilidades para o tráfico de pessoas nas suas mais
variadas formas. As vastas regiões de fronteiras brasileiras apresentam diversas características
185
Muitas veces, a finalidade do deslocamento é exploração do exercício da prostituição, quando na verdade se
lhes promete leva-las para trabalhar com cuidado de crianças ou idosos, ou para trabalhar em residências no
trabalho doméstico, ou até mesmo em bares, como garçonetes.
186
Outras vezes, as mulheres aceitam trabalhar no exercício da prostituição, mas não conhecem as condições reais
às quais serão submetidas em destino.
187
TERESI, Verônica Maria. A cooperação internacional para o enfrentamento ao tráfico de mulheres brasileiras
para fins de exploração sexual: o caso Brasil - Espanha, Dissertação de Mestrado. UniSantos. 2007.
188
GOMARIZ, Maria José. (Equipo técnico y Coordinación) Tipología de la prostitución femenina en la
Comunidad de Madrid. Departamento de Trabajo Social y Servicios Sociales. Madrid: Escuela de Trabajo
Social de la Universidad Complutense de Madrid, 2001. p.172.
189
Ibid., p.173. “Al maltrato psíquico propiamente dicho, como las amenazas constantes y la coacción, se unen las
condiciones penosas en las que se ven obligadas a vivir y trabajar, muchas de ellas víctimas de auténticos
secuestros por parte de los integrantes de la red, donde la única relación con el exterior es la mantenida con
clientes.” (tradução nossa).
103
importantes, que devem ser levadas em conta para a caracterização da região e de potenciais
situações de tráfico, seja para a identificação das vítimas, seja para o efetivo enfrentamento
(repressão e responsabilização), e principalmente para o atendimento das vítimas. Essa múltipla
diversidade leva à percepção de uma variedade cultural e possíveis desigualdades regionais
fronteiriças; diferenças no idioma e na dificuldade de comunicação; complexidade institucional
para abordar o tema; dificuldade na comunicação e articulação de atores públicos, privados e
da sociedade civil; na identificação de possíveis vítimas; diversidade e inovação nas formas de
exploração das pessoas.
Casos relacionados a crianças e adolescentes têm despertado a atenção dos atores
responsáveis pela identificação de vítimas de tráfico. Verifica-se a captação de crianças e
adolescentes por redes e ferramentas virtuais (Facebook, Instagram, WhatsApp, entre outras),
por meio de abordagens sedutoras, em que traficantes se passam por artistas, assessores de
artistas ou até mesmo funcionários de agências de modelos, prometendo a essas meninas e
adolescentes oportunidades no exterior190. Em muitos casos, as famílias concordam com a
viagem dessas adolescentes, e autorizam a saída do país191. Quando essas adolescentes chegam
ao destino, são surpreendidas com uma realidade completamente diferente da que lhes foi
prometida, tendo que realizar atividades sem o seu consentimento e com uma dívida bastante
elevada.
Outros casos de tráfico de mulheres no Brasil se referem a mulheres migrantes trazidas
de países fronteiriços (Bolívia, Venezuela, Peru, Colômbia, entre outros)192 por redes de tráfico
para trabalho forçado, principalmente ligados à indústria de tecelagem. Essas mulheres ficam,
muitas vezes, confinadas em espaços insalubres, e são submetidas a toda espécie de violências
(psicológica, física, doméstica e, em alguns casos, sexual). A invisibilidade das mulheres
migrantes é ainda maior, e se receia que seja por muitas estarem em situação de irregularidade
documental, pelo próprio temor de denunciar essas redes criminosas, redes essas organizadas,
e principalmente as redes informais. Importante ressaltar ainda, que muitas delas acabam tendo
os seus filhos nesses espaços, e a vulnerabilidade pela invisibilidade dessas crianças é imensa.
190
Verificam-se também, no caso de meninos, promessas feitas por falsos agentes que representam clubes de
futebol nacionais e estrangeiros. Ver em: ASBRAD. Websérie 20. Questões para entender o tráfico de
pessoas no Brasil. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9uGqHGE-X8k. Acesso em: 13 jul.
2020.
191
No caso de tráfico interno, é ainda mais difícil identificar essas situações em função do baixo controle das
rodovias e rotas fluviais no Brasil.
192
Importante destacar a vulnerabilidade decorrente dos fluxos migratórios vindos da Venezuela. Há uma realidade
bastante complexa, inclusive com migração de indígenas waraos. Muitos desses migrantes, mesmo não tendo
acessado o Brasil por meio de redes de aliciamento de tráfico de pessoas ou contrabando de migrantes, acabam
sendo aliciados por redes de exploração, em busca de oportunidades de trabalho no Brasil.
104
Muitas delas não têm nem mesmo documentos de identidade, sendo inexistentes para o Estado
brasileiro193.
No entanto, muitas mulheres, mesmo sendo vítimas de tráfico, não se identificam como
pessoas traficadas. Entendem que a relação de cobrança do valor facilitado para a empreitada
da migração faz parte do processo, e assim há um sentimento de que a situação de vida
melhorará e elas poderão, após pagar a dívida, juntar dinheiro para regressarem ao Brasil como
vitoriosas na empreitada. A situação de exploração vivenciada é entendida como normal, e
muitas vezes aceita, até o pagamento da dívida194.
Situação diversa se verifica no caso das vítimas que são levadas por meio de coação
física ou psicológica ao país de destino. As redes de tráfico atuam por meio de ameaças pessoais
e aos seus familiares, obrigando-as a omitir a situação de tráfico, dificultando o trabalho das
autoridades, que identificam essas pessoas como imigrantes, sejam regulares ou irregulares,
quando, na verdade, tratam-se de vítimas de tráfico de pessoas.
Importante ressaltar que há uma linha tênue na identificação/detecção de uma vítima de
tráfico e de uma pessoa imigrante. Aparentemente, não há materialidade que se identifique por
meio de um “objeto” que concretize uma vítima de tráfico de pessoas. No caso do tráfico de
armas e de drogas, por exemplo, a materialidade se dá na arma e na droga; no da vítima de
tráfico, essa materialidade se dá na pessoa, o que dificulta a identificação de vítimas, e às vezes
criminaliza imigrantes no seu processo migratório.
Outra realidade bastante invisível é aquela em que muitas mulheres migrantes são
utilizadas como mulas de drogas para o Brasil. Estudo bastante interessante do Instituto Terra,
Trabalho e Cidadania (ITTC, São Paulo) constatou uma realidade bastante invisível e
desconhecida para grande parte dos atores governamentais, principalmente os da segurança
pública. Muitas mulheres atendidas pelo Instituto foram presas enquanto exerciam a função de
mulas do tráfico internacional de drogas195. Geralmente, essas mulheres recorrem à função de
mulas como forma de obter ou complementar a renda para o sustento da família, visto que a
maioria é responsável pelo domicílio. Entretanto, percebeu-se que algumas delas também se
submetem à função de mulas contra a sua vontade, sendo vítimas de tráfico de pessoas. De 2008
a 2019, foram identificadas, pelo menos, 106 que se encaixavam em critérios internacionais
193
REPÓRTER BRASIL. Especial Zara: flagrantes de escravidão na produção de roupas de luxo. 2011.
Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2011/12/especial-zara-flagrantes-de-escravidao-na-producao-de-
roupas-de-luxo/. Acesso em: 20 abr. 2020.
194
TERESI, Verônica Maria. A cooperação internacional para o enfrentamento ao tráfico de mulheres brasileiras
para fins de exploração sexual: o caso Brasil - Espanha, Dissertação de Mestrado. UniSantos. 2007.
195
ITTC. Tráfico de pessoas: por que as mulheres migrantes atendidas pelo ITTC estão sujeitas a isso? Disponível
em: http://ittc.org.br/trafico-pessoas-mulheres-migrantes-ittc/. Acesso em: 2 abr. 2020.
105
O fato de uma parcela das mulheres (38%) saberem desde o início sobre a
vinculação da viagem ao tráfico de drogas não exclui o fato de que elas tenham
trajetórias com elementos do tráfico de pessoas. Muitas destas estavam em
situação de extrema vulnerabilidade e seus aliciadores fizeram uso disso,
recorrendo até mesmo a ameaças aos familiares, especialmente filhos e filhas,
para que elas fizessem o transporte das drogas, como é o caso de algumas
mulheres que estavam devendo para agiotas. Também é comum que as
mulheres queiram desistir do transporte de drogas durante a viagem, mas são
mantidas em cárcere privado e/ou têm seus documentos retidos,
procedimentos estes utilizados pelos aliciadores, tanto para a cobrança de uma
dívida impagável, como para constranger e conter as mulheres197.
196
Id.
197
Id.
198
O Projeto Fronteiras teve como objetivo a promoção de cursos livres sobre o atendimento humanizado às
vítimas diretas e indiretas do tráfico de pessoas, voltados para profissionais das redes de enfrentamento à
violência contra a mulher, organizações da sociedade civil e cidadãos interessados no tema. Os cursos foram
realizados em 10 municípios fronteiriços brasileiros: Bonfim e Pacaraima, no estado de Roraima; Brasiléia, no
estado do Acre; Corumbá e Ponta Porã, no estado do Mato Grosso do Sul; Foz do Iguaçu, no estado do Paraná;
Jaguarão e Santana do Livramento, no estado do Rio Grande do Sul; Oiapoque, no estado do Amapá; e
Tabatinga, no estado do Amazonas. ASBRAD. Percepções sobre o Tráfico de Pessoas e Outras formas de
Violência contra a Mulher nas Fronteiras Brasileiras. 2018. Disponível em: http://www.asbrad.org.br/wp-
content/uploads/2018/10/fronteiras_livro_paginasimples.pdf. Acesso em: 10 dez. 2019.
106
Importante destacar a utilização das ferramentas virtuais para aliciar essas adolescentes
e mulheres, assim como da vulnerabilidade às quais estavam expostas200.
É sabido que a normativa do tráfico de pessoas estabelece que o fim maior desse crime
é a exploração das pessoas, independentemente da sua modalidade. A grande dificuldade é
capacitar os atores para o olhar amplo em relação às potenciais modalidades, com os mais
variados perfis de vítimas.
No Brasil, há relatos e estudos de tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças,
para a exploração sexual e laboral, adoção ilegal201, mendicância forçada, exploração pelo
narcotráfico, casamentos forçados202, a questão de gênero no trabalho escravo e nos ambientes
doméstico e rural, dentre outras formas de exploração da pessoa humana203.
Esses exemplos mostram como o Brasil tem diversas realidades do tráfico de pessoas,
em especial mulheres, crianças e adolescentes, para as mais variadas finalidades, mesmo que
haja mais visibilidade aos casos de tráfico de mulheres para fins de exploração sexual204.
Questão que fica é sobre a ausência de dados do tráfico de mulheres em outras modalidades.
Será que esses casos realmente não existem ou há uma invisibilidade desses casos? É certo que
199
ASBRAD. Percepções sobre o Tráfico de Pessoas e Outras formas de Violência contra a Mulher nas Fronteiras
Brasileiras. 2018. Disponível em: http://www.asbrad.org.br/wp-content/uploads/
2018/10/fronteiras_livro_paginasimples.pdf. Acesso em: 10 dez. 2019.
200
Interessante notar como as ferramentas virtuais cada vez mais vão sendo incorporadas ao aliciamento e controle
das vítimas de tráfico. Há pouco mais de 10 anos atrás, quando da realização do Mestrado e de pesquisa na
Espanha, com entrevistas às mulheres brasileiras em situação de exploração sexual, essas ferramentas ainda
não apareciam nos relatos e na vida dessas mulheres. Ver: ASBRAD. Webséries Ep. 10 Crime Cibernético.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2tf_pZ46wf4. Acesso em: 15 jul. 2020.
201
Ver em: O GLOBO. MPF apura novos casos de crianças traficadas de orfanato no exterior. Disponível em:
http://g1.globo.com/. Acesso em: 10/05/2019. CÂMARA. Caso Charlotte Cohen. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/noticias/430820-brasileira-conta-na-cpi-tentativas-de-descobrir-como-foi-
adotada-e-levada-ao-exterior/. Acesso em: 20 abr. 2019.
202
Ver em: TAYLOR, A.Y., LAURO, G., SEGUNDO, M., Greene, M.E. “Ela vai no meu barco” Casamento na
infância e adolescência no Brasil. Resultados de Pesquisa de Método Misto. Rio de Janeiro e Washington DC:
Instituto Promundo & Promundo US. setembro, 2015.
203
ASBRAD. Percepções sobre o Tráfico de Pessoas e Outras formas de Violência contra a Mulher nas Fronteiras
Brasileiras. 2018. Disponível em: http://www.asbrad.org.br/wp-content/uploads/2018/
10/fronteiras_livro_paginasimples.pdf. Acesso em: 10 dez. 2019. Ver também: ASBRAD. Direitos Humanos
e gênero no cenário da migração e do tráfico internacional de pessoas. Cadernos Pagu, Campinas, n. 31, 2008.
204
Importante ressaltar que mesmo a exploração sexual tem suas diversas realidades, desde a exploração sexual
de mulheres nas cidades, nos garimpos, nas tribos indígenas, nas fronteiras, entre outros. Imaginar o fenômeno
da exploração sexual sob uma única ótica é cegar-se para o fenômeno. Ver em: HAZEU, Marceu. Tráfico de
mulheres criança e adolescentes para fins de exploração sexual comercial na Amazônia. Movimento República
de EMÚS/TXAÍ. Belém: OIT, 2003. Ver também: LANDINI, T.S. A pornografia infantil na internet: uma
perspectiva sociológica. In R. M. Libório, & S. M. G. Sousa (Eds.), Exploração sexual de crianças e
adolescentes no Brasil: Reflexões teóricas, relatos de pesquisa e intervenções psicossociais (pp.165-162). São
Paulo, Brasil: Casa do Psicólogo e Goiânia, Brasil: Universidade Católica de Goiás. 2004. Ver em: NETO,
Luiz Alvino de Souza. Projeto Centro de Acolhimento às Mulheres migrante vítimas de violência.
Pacaraima/RR: 2009.
107
a invisibilidade desses casos pode estar ocultando realidades do tráfico de pessoas, deixando
essas pessoas, principalmente mulheres, mais vulneráveis às diversas formas de exploração 205.
De toda forma, mesmo se tratando de tráfico para fins de exploração sexual de meninas
e adolescentes, ainda há muita invisibilidade, pelo desconhecimento e não identificação. Nas
falas abaixo, fica evidente como profissionais da rede de atenção às vítimas nem sempre
conhecem o fenômeno, as suas particularidades, e não conseguem identificar situações claras
de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual.
205
Outra realidade bastante invisível no Brasil é a das travestis e transexuais. Ver em: FERNANDES; Beth. Da
relação das travestis e transexuais com o Tráfico de pessoas. Revista eletrônica do Simpósio Vozes e Plurais;
2009.
206
ASBRAD. Percepções sobre o Tráfico de Pessoas e Outras formas de Violência contra a Mulher nas Fronteiras
Brasileiras. 2018. p. 277. Disponível em: http://www.asbrad.org.br/wp-
content/uploads/2018/10/fronteiras_livro_paginasimples.pdf. Acesso em: 10 dez. 2019.
207
Ibid., p.277.
208
MANSUR, Guilherme Dias. Migração e Crime: desconstrução das políticas de segurança e tráfico de pessoas.
2014. Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Doutorado em Antropologia Social.
UNICAMP.
108
e Adolescentes para fins de exploração sexual no Brasil (PESTRAF), em 2002, mostrava que o
tráfico para fins sexuais é predominantemente de meninas negras e mulatas, com idades
compreendidas entre 15 e 25 anos209. As vítimas menores de idade são aliciadas para o tráfico
interno, pela dificuldade na retirada de menores de idade, inclusive as que não possuem
constituição física de mulheres, com documentos falsos. Já as maiores de 18 anos, estariam
mais disponíveis para as redes internacionais de tráfico210.
Situação particular acontece em municipalidades brasileiras fronteiriças com outros
países (Paraguai, Uruguai, Bolívia, Venezuela, Suriname), onde os limites de fronteiras são de
difícil identificação. Nessas regiões, há atuação das redes de tráfico de meninas e adolescentes
para o mercado sexual211. A pouca idade das vítimas brasileiras poderia estar corroborando a
“feminização da pobreza”, por falta de oportunidades sociais, vulnerabilizando-as e as inserindo
no mercado do tráfico interno e internacional sexual.
A exploração sexual, como forma de violência sexual contra meninas e adolescentes é,
em muitos casos, o primeiro passo para o tráfico de pessoas. As motivações econômicas,
sociais, psicológicas podem estar levando e estimulando a essa prática, em função das situações
de vulnerabilidade decorrentes dos fatores interseccionais da pobreza, abusos intra e
extrafamiliares, e a ausência do Estado na execução de políticas públicas de assistência e
proteção aos abusos a que essas vítimas são submetidas. Dados da PESTRAF (2002) indicam
que as vítimas identificadas como vítimas de tráfico haviam sido vítimas de abusos. A ausência
de uma política pública eficaz e eficiente, que possibilite uma cadeia de cuidados paralisando
essas situações de violência ainda na infância e adolescência, é uma das condicionantes para
que essas vítimas partam para o aceite às redes de tráfico de pessoas.
209
LEAL, Maria Lucia Pinto. Pesquisa sobre o Tráfico de Mulheres, Meninas e Adolescentes para fins de
exploração sexual no Brasil. Coordenada pelo CECRIA – Centro de Referência, Estudos e Ações sobre
Crianças e Adolescentes, 2002. p. 61.
210
No Brasil, o ECA estabelece uma distinção etária entre criança e adolescente. Aquele compreende de 0 a12
anos incompletos; esse compreende de 12 a 18 anos incompletos. Por outro lado, as convenções internacionais
referentes aos direitos da criança, entendem criança como toda pessoa menor de 18 anos, conforme estabelece
a Convenção sobre os Direitos da Criança em seu artigo 1º.
211
Ver em: BRASIL. MINISTERIO DA JUSTIÇA. PESQUISA TRI-NACIONAL SOBRE TRÁFICO DE
MULHERES DO BRASIL E DA REPÚBLICA DOMINICANA PARA O SURINAME. Disponível em:
https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos-
pesquisas/2008pesquisa_trinacional.pdf. Acesso em: 10 jan. 2020. Ver ainda, BRASIL, Ministério da Justiça,
Secretaria Nacional de Justiça. Pesquisa ENAFRON Diagnóstico sobre Tráfico de Pessoas nas Áreas de
Fronteira. Brasília: Ministério da Justiça, 2013. Ver ainda, ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DEFESA DA
MULHER DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE-ASBRAD. Percepções Sobre O Tráfico De Pessoas E Outras
Formas De Violência Contra A Mulher Nas Fronteiras Brasileiras. Secretaria Nacional de Políticas Para as
Mulheres. Ministério dos Direitos Humanos, 2018. Disponível em: http://www.asbrad.org.br/wp-
content/uploads/2018/10/fronteiras_livro_paginasimples.pdf. Acesso em: 22 nov. 2019.
109
Nesse contexto, essas pessoas, já mulheres adultas ou quase, acabam sendo convidadas
e levadas para outros países, limítrofes ou não, em muitos casos mais desenvolvidos,
principalmente da Europa Ocidental, com a perspectiva de melhorarem de vida, traçarem um
futuro pessoal e garantirem o futuro de suas famílias212.
As falas das mulheres abaixo demonstram esse desejo por melhorar as suas vidas em
diversas perspectivas:
Para mim (sic) sair do meu país, para trabalhar para comer? Para comer eu
tenho no meu país. Não precisa. Não precisa estar longe da minha família
para comer. Aí no Brasil se você planta uma mandioca, se você cria uma
galinha, você come. Não é fome. É você tentar fazer algo... Eu sempre me
preocupei muito com o amanhã. Quando eu estiver com 60 anos213.
Quero juntar dinheiro para voltar para Salvador... Quero comprar uma
caminhonete para... botar minhas barracas... É, botar meus salgados... Botar
isopor com bebidas, né? Cerveja e refrigerante... Umas mesinhas que arma e
desarma, pelo menos umas quatro, umas quatro mesinhas... Botar meu fogão,
fazer minhas friturinhas, já levar tudo feito, congelado, entende?214.
[...] Então eu queria arrumar a casa, comprar um carro, dar melhor condição
pros meus meninos216.
Muito embora a questão financeira e o atrativo dos recursos financeiros sejam relevantes
para a inserção das vítimas no mercado sexual, percebe-se em alguns casos a prevalência de
problemas intrafamiliares. A violência intrafamiliar, como a violência doméstica e os abusos
sexuais, aparecem como motivadores relevantes para o abandono das casas e o ingresso na
exploração sexual.
Frequentemente, essas mulheres, ao aceitarem ir a outro país, mesmo cientes de que irão
trabalhar no mercado sexual, não imaginam as condições reais que as esperam ali. Quando
212
A PESTRAF indica que a maioria das mulheres vítimas de tráfico, têm filhos.
213
PISCITELLI, Adriana. Traficadas ou Autônomas?: a noção de consentimento entre brasileiras que oferecem
serviços sexuais na Espanha. Prelo in: Brasília: Ministério da Justiça. Dilemas jurídicos do enfrentamento ao
tráfico internacional de seres humanos.
214
Id.
215
LEAL, Maria Lucia; TERESI, Veronica Maria; DUARTE, Madalena. Mulheres brasileiras na conexão
ibérica: um estudo comparado entre migração irregular e tráfico. 1. Ed. Curitiba. Appris.2013. p. 71.
216
Id.
217
Id.
110
chegam, encontram-se com os seus documentos retidos pela rede de tráfico, confinadas em
locais próprios para a prostituição, padecendo de maus tratos, exploradas - uma vez que não
podem sair até pagarem toda a dívida contraída com a viagem, transporte e alojamento –, vendo
ameaças constantes contra as suas famílias, e principalmente contra os seus filhos.
Outras mulheres migram de forma autônoma, com projetos migratórios independentes,
mesmo que eles impliquem em se utilizar de redes de apoio de outras pessoas, suas conhecidas
ou não e, já em destino, acabam passando por situações vulneráveis, em decorrência das
condições de destino, e captadas por redes de exploração e tráfico de pessoas218. Esse perfil de
mulheres que estando em destino acabam sendo exploradas e aliciadas para redes de tráfico de
pessoas geralmente não se enquadram no “perfil” de vítima de tráfico, apesar de muitas
apresentarem elementos de vulnerabilidade e de exploração que as caracterizaria como.
Ainda, outras mulheres entendem que realmente concordaram em pagar o valor devido,
e se submetem às redes de tráfico aceitando as condições impostas pelo aliciador. Não há
percepção de que estão sendo exploradas, nem muito menos traficadas. Verifica-se que somente
a prostituição forçada (por meio de coação e ameaça) é associada ao tráfico de pessoas. O tráfico
resultante do engano sobre as condições no exercício da prostituição não é entendido como
tráfico por elas. As falas de mulheres abaixo indicam a ausência do tráfico de pessoas nem
mesmo quando há uma cobrança exorbitante do valor das passagens pagas por elas.
O que é Máfia? É cobrar o dobro por uma passagem? Isso não é máfia, isso é
algo que acontece. Você quer vir para a Europa, mas não tem dinheiro para a
passagem. A passagem custa 1000 euros, eu compro para você, porque eu tenho
o dinheiro, mas cobro 3000. Você aceitou, pronto, feito. Máfia é quando tem
uma mulher como escrava, prisioneira, quando a vendem. Isso tem aqui, com
as romenas. Mas a polícia prende, elas e não os homens que estão na calçada
da frente controlando! E elas têm que trabalhar queiram ou não, não podem
parar para comer, ou tem que comer o que eles dão para elas. Isso é máfia, com
brasileira não tem isso não219.
Verifica-se, assim, que a leitura feita pelas mulheres, referente ao que se considera
tráfico, é diferente do estabelecido pelo Protocolo de Palermo. Talvez a percepção do que é
exploração seja diferente para cada mulher; talvez a sua realidade pessoal a impeça de
218
MENEZES, Marilda Aparecida; COVER, Maciel. A noção de redes sociais aplicada a pesquisas em espaços
de trabalhadores migrantes. Sociedade e Cultura, v. 20. 2018. p. 97.
219
PISCITELLI, Adriana. Traficadas ou Autônomas?: a noção de consentimento entre brasileiras que oferecem
serviços sexuais na Espanha. Prelo in: Brasília: Ministério da Justiça. Dilemas jurídicos do enfrentamento ao
tráfico internacional de seres humanos.
220
Entrevista realizada a Liz (mulher brasileira entrevistada na Espanha em fevereiro de 2020).
111
221
Essa pesquisa foi o ponto de partida para os trabalhos da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do
Congresso Nacional no decorrer de 2003 e 2004. Por sua vez, a Frente Parlamentar dos Direitos da Criança e
do Adolescente imprimiu um esforço concentrado na criação de uma Rede Nacional pela Infância e
Adolescência, em 2005, na perspectiva de disseminar a criação de Frentes Parlamentares similares em cada
Assembleia Legislativa (estadual) e em cada Câmara Municipal dos municípios brasileiros. Este ano a Frente
Parlamentar lançou o Manual de Formação e Ação de Frentes Parlamentares em defesa dos Direitos da Criança
e Adolescente. Nesse mesmo ano, a Frente Parlamentar deu início à mobilização intensa dos congressistas para
aprovação de matérias legais que garantam o enfrentamento de todas as formas de violência contra crianças e
adolescentes, principalmente a exploração sexual.
112
222
GRUPO DA VIDA. Prostitutas, “traficadas” e pânicos morais: uma análise da produção de fatos em pesquisas
sobre o “tráfico de seres humanos”. Cadernos Pagu (25), julho-dezembro de 2005, pp.153-184.
223
Conceitua-se “rota” como o caminho previamente traçado por pessoas ou por grupos que têm como objetivo
chegar a um destino planejado.
224
PESTRAF, p. 73-110.
113
Guarulhos (SP) - Rio de Janeiro (RJ) España - Portugal - Suíça - Holanda - Itália - Alemanha
Paraná España
Fonte: Tabela Cidade de origem, cidade de trânsito, cidade destino na Espanha (elaboração própria, cf.
PESTRAF, 2002).
Dados da mesma pesquisa indicam que o grande número de rotas para a Espanha se
refere a uma organização criminosa chamada “Conexão Ibérica”, formada por diferentes
organizações criminosas através de seus prostíbulos em Portugal e na Espanha. Lisboa seria,
naquele momento, a porta de entrada das brasileiras, uma vez que o sistema de controle de
imigração não impunha grandes dificuldades. De lá elas eram levadas para cidades portuguesas
e espanholas por quatro rotas: Rota Norte, Rota “Rede Mississipi”, Rota Central e Rota Direta.
Em conversas por meio das entrevistas ou de informações coletadas com as OSCs e com
mulheres, vítimas de tráfico ou com projetos migratórios envolvendo prostituição, as rotas de
tráfico têm se diversificado, mesmo tendo a Espanha como destino final. Percebe-se a existência
de rotas Brasil-Paris (aéreo)/Paris-Espanha (terrestre - ônibus ou trem); Brasil-Portugal
(aéreo)/Portugal-Espanha (terrestre - carro ou ônibus). Outras rotas utilizam a Alemanha como
trânsito e até mesmo a Turquia para depois viajar, por via terrestre, até a Espanha.
Importante destacar que ainda há poucos dados que permitam identificar as principais
rotas de tráfico de pessoas, principalmente mulheres, crianças e adolescentes, inclusive pela
facilidade com que essas redes de desarticulam e articulam criando novas rotas.
Analisando as rotas de tráfico identificadas na PESTRAF, verificando as matérias
veiculadas na imprensa sobre redes desarticuladas pelas polícias envolvendo vítimas brasileiras,
115
225
Em tempos de pandemia, verifica-se em julho/2020, a situação de mais de 7000 mulheres marroquis com
contratos temporários para a lavoura vencido e sem poder retornar ao país de origem. ELSALTO. 7.000
temporeras marroquíes atrapadas y ningún plan. Miles de temporeras permanecen bloqueadas sin recursos
económicos ni información sobre cómo y cuándo podrán retornar a su país. Las organizaciones denuncian
abandono institucional y cuestionan el marco de la contratación en origen. 10/07/2020. Disponível em:
https://www.elsaltodiario.com/temporeros/7.000-temporeras-marroquies-atrapadas-y-ningun-plan-
retorno?fbclid=IwAR3-ks8CDqmP4XqaKlEQp1qwhc6H_lgb0RCDh75bbEdIGGPNkkc9W_tkT-g. Acesso
em: 15 jul. 2020.
226
Mapa da Espanha. disponível em: http://www.eduso.net/habilitacion/mapacomunidades.gif. Acesso em: 10 set.
2018.
116
Mesmo tendo poucas pesquisas que identifiquem rotas de tráfico de pessoas no Brasil,
pode-se mencionar o Projeto “Migrações Transfronteiriças: fortalecendo a capacidade do
Governo Brasileiro para gerenciar novos fluxos migratórios”. Conhecido como MT-Brasil, teve
como objetivo fortalecer a capacidade do Governo Federal brasileiro para melhor gerir os fluxos
migratórios, com foco na assistência e integração laboral e social de grupos vulneráveis, como
os retornados, migrantes e as potenciais vítimas de tráfico de pessoas, tendo como uma de suas
atividades conhecer os movimentos migratórios das fronteiras estudadas e potenciais vínculos
com o tráfico de pessoas (2016)227.
Outra pesquisa realizada no âmbito das fronteiras foi a ENAFRON: “Diagnóstico sobre
Tráfico de Pessoas nas Áreas de Fronteira no Brasil”, que abordou as modalidades de tráfico de
pessoas mais incidentes nas regiões, o perfil das pessoas traficadas e o modo de ação dos agentes
criminosos (2013)228. Quanto a esses dois estudos, há que se perceber que tanto a pesquisa
quanto o projeto supradescritos foram pensados e desenvolvidos para identificar perfis e rotas
de fluxos migratórios nas regiões de fronteira, mas a PESTRAF ainda continua sendo a única
pesquisa nacional que se propôs a identificar perfis das mulheres e meninas traficadas para fins
de exploração sexual, interna e internacionalmente, ainda em 2002.
A realidade do tráfico de mulheres é complexa e difícil de ser enquadrada em perfis
definidos e definitivos. De toda forma, é possível identificar e conhecer algumas
microrrealidades. Como a presente pesquisa tem por foco os estudos de caso dos regimes de
enfrentamento ao tráfico de mulheres do Brasil e da Espanha, entende-se relevante compreender
as particularidades das redes de tráfico de mulheres brasileiras com destino na Espanha, uma
vez que cada rede certamente apresenta diferenças entre as próprias, seja pela subjetividade de
cada coletivo, pelas características culturais, simbólicas ou até mesmo pelas características de
articulação e atuação das redes de tráfico, tanto as criminosas como as de atores responsáveis
pelo enfrentamento229.
227
ICMPD. Projeto MT Brasil. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-
pessoas/publicacoes/anexos-pesquisas/mtbrasil_act-1-3-1-4_relatorio_final.pdf. Acesso em: 10 jan. 2019. Ver
também: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos-
pesquisas/mtbrasil_act-1-3-1-4_relatorio_final.pdf.
228
ICMPD. ENAFRON. 2013. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-
pessoas/publicacoes/anexos-pesquisas/enafron_es_web.pdf. Acesso em: 15 jan. 2019.
229
Foi muito importante como pesquisadora ter tido a oportunidade de retornar, ao longo de 14 anos, algumas
vezes ao trabalho de campo, entrevistando mulheres brasileiras, em contextos de prostituição e tráfico de
pessoas. Essa bagagem de pesquisa permite destacar pontos de contato comuns e mudanças significativas no
fenômeno no decorrer do tempo, além de permitir identificar os avanços e possíveis retrocessos na construção
do regime de enfrentamento ao tráfico de pessoas, principalmente para o que nos interessa, as políticas de
atenção com enfoque em direitos. Ver em: TERESI, Veronica Maria. A cooperação internacional para o
enfrentamento ao tráfico de mulheres brasileiras para fins de exploração sexual: o caso Brasil - Espanha,
Dissertação de Mestrado. UniSantos. 2007. 202 p. Disponível em:
117
e psicológica nas vítimas da Europa do Leste e da África que estão inseridas no mercado sexual.
“[...] existem diferenças importantes entre as redes, dependendo do tipo de abuso que praticam
nas mulheres. Assim, redes da América Latina e da África tendem a fazer maior uso de abuso
psicológico, enquanto na Europa Oriental o castigo físico predomina.” 234..
A grande percepção dos traficantes é a de se utilizar da vulnerabilidade das vítimas,
através do engano ou até mesmo com o consentimento delas que procuram melhores condições
de vida no exterior. Essas vítimas não se identificam como vítimas de tráfico, e seguem as
instruções dos traficantes para obter sucesso no seu deslocamento para o país de destino,
dificultando, frequentemente, a verificação dos controles de imigração. Ao chegarem ao destino
final, muitas têm os seus documentos apreendidos pela rede, são submetidas a cárcere privado
até pagarem as suas dívidas, não têm poder de escolha em relação aos clientes, nem mesmo em
relação aos horários e rotinas235.
As situações de violência e de coação também são identificadas pelas próprias mulheres:
[...] chamavam a gente 13h para almoçar, vestir e descer! Às vezes, não dava
tempo de todo mundo tomar banho” Ficavam duas ou três sem tomar banho”.
Toma mais tarde!236.
[...] o dinheiro fica todo na casa”. Você nem pega no dinheiro não!237.
Mesmo no caso das vítimas que não são levadas por meio de coação ao país de destino,
as redes de tráfico atuam por meio de ameaças pessoais e aos seus familiares, obrigando-as a
omitir a situação de tráfico, inclusive dificultando o trabalho das autoridades, que identificam
essas pessoas como imigrantes, sejam regulares ou irregulares, quando de um controle em um
espaço de prostituição ou em qualquer outro espaço social, como ônibus, supermercado, rua
etc.
234
GOMARIZ, Maria José. (Equipo técnico y Coordinación). Tipología de la Prostitución Femenina en la
Comunidad de Madrid. Departamento de Trabajo Social y Servicios Sociales. Madrid: Escuela de Trabajo
Social de la Universidad Complutense de Madrid.,2001. p.172.
235
Ibid, p. 173. “Al maltrato psíquico propiamente dicho, como las amenazas constantes y la coacción, se unen las
condiciones penosas en las que se ven obligadas a vivir y trabajar, muchas de ellas víctimas de auténticos
secuestros por parte de los integrantes de la red, donde la única relación con el exterior es la mantenida con
clientes.”
236
LEAL, Maria Lucia; TERESI, Veronica Maria; DUARTE, Madalena. Mulheres brasileiras na conexão
ibérica: um estudo comparado entre migração irregular e tráfico. 1. Ed. Curitiba. Appris, 2013. p. 83.
237
Ibid., p. 83.
238
Ibid., p. 89.
119
Um cliente meu, que era policia, Guardia Civil, ficou meu amigo e cada vez
que ele ia ao apartamento, para cheirar cocaína, e vinha porque se sentia bem
comigo. Ele tinha confiança em mim e eu nele. Eu contava sobre a minha vida
para ele. Naquele momento eu o vi como minha salvação, então liguei para
ele e contei tudo que estava acontecendo. Ele disse que sim, havia um delito e
que se chamava coação. Ele recomendou que eu o denunciasse e saísse de
lá242.
Violeta, você não pode ir a praia porque a policia pode te pegar. Ao cinema
também não porque vão te pegar. No final eu não saía. Eu dizia, Bento, preciso
de um dia livre. Eu não posso estar todos os dias com 3 celulares. Eu não tenho
vida.
Ele dizia: sim, tudo bem. Mas se um cliente ligar eu que você, faria, pois é
dinheiro243.
239
Entrevista OSC española que realiza abordagem às mulheres em contexto de prostituição, exploração sexual e
tráfico de pessoas. “Los tratantes dejam que las mujeres envien algun dinero (400, 500 euros mes) para que
sus famílias no las busquen. [...] A veces incluso la família imagina la actividad que se dedica, pero como
llega el dinero. [...] La propia percepcion de la víctima es nula de su condición. NO se sienten explotadas
laboralmente y cada vez más hay menos violencia física.”
240
Adiante serão caracterizados esses espaços de exercício da prostituição na Espanha.
241
Os clientes são, muitas vezes, o único contato que as vítimas têm com o Mundo exterior. E, eles são os que
auxiliam na fuga dessas mulheres.
242
Entrevista Violeta, fevereiro 2020.
243
Fala retirada de uma das entrevistas realizadas com mulheres no âmbito da pesquisa de Doutorado. Os nomes
dados às mulheres serão fictícios para preservar suas privacidades. Utilizar-se-á sempre nomes de flores
brasileiras. O nome dado ao traficante também é fictício. Procurou-se, em todas os trechos disponibilizados na
tese, colocar a fala da mulher da forma como ela foi dita, sem a preocupação da formalidade da língua,
justamente para preservar o diálogo e as palavras ditas pela entrevistada, que muitas vezes, trazem consigo
marcas de profundidade e violências sentidas.
120
244
Para o Protocolo de Palermo o consentimento dado é irrelevante para caracterizar o tráfico de pessoas.
245
Ver em: MALGESINI, Graciela. (Coordinadora de la Investigación). Impacto de una posible normalización
profesional de la prostitución en la viabilidad y sostenibilidad futura del sistema de pensiones de protección
social. Estudios y Cooperación para el Desarrollo. Informe ESCODE2006, 2006. pg. 24 - 31. TERESI,
Verônica Maria. A cooperação internacional para o enfrentamento ao tráfico de mulheres brasileiras
para fins de exploração sexual: o caso Brasil - Espanha. Dissertação (Mestrado) - UniSantos. 2007.
Disponível em: http://biblioteca.unisantos.br/tede/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=61. Acesso em: 15
maio 2020.
246
Os “clubes de alterne” são conhecidos na gíria como “puticlubs”
247
O preço da diária varia de local para local, entre 30 e 50 euros.
248
SALAS, Antonio. El año que trafiqué con mujeres. Madrid: Ediciones Temas de Hoy, 2005. p.114.
249
A variação da nacionalidade das mulheres está relacionada ao aumento das condições de vulnerabilidade dos
países de origem e a percepção das autoridades espanholas sobre esses deslocamentos para o exercício da
prostituição.
121
mulheres é de 20 a 30 anos. Elas chegam a ganhar de 2000 a 3000 euros por mês, somando o
valor percebido entre relações sexuais e as bebidas pagas pelos clientes250.
Há clubes pequenos ou grandes, a depender do número de mulheres que estejam
exercendo a prostituição, que pode oscilar entre 10 e 200 pessoas, incluindo a encarregada do
local, camareiros, cozinheiros, vigias etc.
Muitos deles, por estarem à beira das estradas, são menos visíveis e mais procurados
pelos clientes que desejem anonimato. Ademais, as mulheres que estão nesses locais,
principalmente pelo sistema das plazas, têm mais dificuldade de estabelecer contato com a vida
social exterior, por estarem fora das cidades. Os clientes, não raro, como já mencionado, são
seus interlocutores diretos com a vida de fora.
Alguns clubes são locais onde as mulheres moram e exercem prostituição. Neles elas
têm como referência de lugar um quarto, que dividem com duas ou três colegas, sendo ainda os
locais onde fazem os programas sexuais.
A fala das mulheres, que foram entrevistadas em 2011 no projeto Mulheres brasileiras
na conexão ibérica, indica que era comum esses locais de exercício da prostituição serem os
mesmos da residência, e havia que se pagar um valor fixo por dia, além dos controles para sair
do local.
No lugar que nós dormia nós fazia o programa!251.
Era mais ou menos... porque se a gente só fizesse um passe só, a gente não
ficava com nada!253.
250
Importante destacar que, as mulheres que têm dívidas contraídas com redes de tráfico e com donos de clubes,
seja a título de passagem aérea, valor para ingressar na Espanha, etc., e assim não recebem praticamente
nenhum dinheiro até devolverem toda a dívida, salvo se o traficante deixar que essa mulher envie um pouco de
dinheiro para sua família e com isso, diminui a percepção de violência, violação.
251
LEAL, Maria Lucia; TERESI, Veronica Maria; DUARTE, Madalena. Mulheres brasileiras na conexão
ibérica: um estudo comparado entre migração irregular e tráfico. 1. Ed. Curitiba: Appris, 2013.
252
Id.
253
Id.
122
Algumas mulheres que se encontram nos clubes não moram ali; elas passam o dia, sob
vigilância, em outro espaço, por vezes um apartamento.
[...] você ia caminhando lá, e alguém te seguindo, até chegar lá no bar de copa
lá, tipo uma discoteca... e começaram a me ameaçar... se você não obedecer!
Eles disse que eu tinha que ficar lá e me prostituir! Aí, ele falou: não! Você
tem que trabalhar e tem que pagar a passagem! Eu falei: num sei o que é que
tá falando não! Aí começou a me ameaçar. E falou assim: Agorinha cê vai
entender o quê que é! Você é muito rebelde! Quê isso? Você é muito
ignorante! Vou acabar arrancando a sua língua, cortando sua cabeça fora!
Tinha um monte de gente vigiando!254.
Interessante notar que, passados praticamente 10 anos da última vez em que se pôde
acessar esses espaços de prostituição, houve relatos, por parte das OSCs entrevistadas, que esses
espaços se verificam cada vez menos, pelas imposições e restrições de cunho sanitário feitos
pelas administrações públicas locais. Começa a não ser tão vantajoso esse sistema para os
próprios traficantes. Porém, uma das OSCs entrevistadas menciona que, apesar de que, sim, há
que se eliminarem os clubes, por outro lado o fechamento desses espaços não eliminará a
prostituição, exploração e tráfico de pessoas. Ao contrário, eliminar os clubes dará maior
invisibilidade à prostituição e maior dificuldade de acesso às mulheres, aumentando a
vulnerabilidade e possíveis violências. Como os clubes funcionam como bares, a polícia pode
acessar a qualquer momento; porém, se essas mulheres estiverem em pisos, o acesso é possível
somente com um mandado judicial255.
Os pisos são apartamentos onde as mulheres exercem prostituição. Esses espaços
constituem modalidade de muita expansão na Espanha. Muitos são gerenciados por agências
ou por donos particulares. São apartamentos discretos onde o cliente tem a possibilidade de
escolher as mulheres de forma individualizada. Geralmente, os pisos têm de 5 a 15 mulheres
trabalhando. Há 10 anos, o cliente chegava e ficava numa sala. Todas as mulheres entravam,
uma a uma, e ele ao final escolhia com qual queria ter relações sexuais. Nos dias atuais, esse
contato inicial da “escolha” é feito, principalmente, de forma on-line. Nessa nova modalidade,
o cliente já chega ao piso tendo horário definido com a mulher “escolhida”.
Por serem apartamentos particulares, os pisos são mais difíceis de serem identificados e
de se revelar qual é a condição de vida e de “trabalho” a que estão submetidas as mulheres.
Ademais, os controles feitos pela polícia são menores, uma vez que essa somente pode entrar,
sem o consentimento do dono, se tiver uma autorização judicial, o que somente ocorre quando
254
Id.
255
“Por un lado si que me gustaría que desaparecieran los clubes, y por otro lado no, porque es la formula para
poder llegar hasta las mujeres. La mayor invisibilidad, mayor dificultad en acceder a ellos, mayor vulnerabilidad,
mayor violencia. Cuanto más visibles, menos violência hay.” (OSC entrevistada)
123
há provas de que ali as mulheres são vítimas de tráfico, que estão sendo submetidas a situação
de escravidão ou sendo agredidas. O contato feito pelos clientes, até aproximadamente os anos
de 2010, era prioritariamente realizado pelos inúmeros anúncios divulgados nos jornais de alta
circulação espanhola256. Atualmente, esse contato se faz pelas redes sociais e plataformas
virtuais de acesso. Praticamente, todos os sistemas de mensagens e redes sociais, como
WhatsApp, Tinder, Facebook, Instagram, Snapchat são usados para contactar serviços ligados
à prostituição.
As mulheres que trabalham nos pisos geralmente pagam metade do que ganham em cada
relação sexual, chegando a somar, por mês, cerca de 1200 a 4000 euros. Nesses espaços, as
mulheres podem ou não residir. Aquelas que residem no local são mais controladas pelas
encarregadas, e devem estar disponíveis 24 horas por dia, além de não terem qualquer margem
de escolha dos clientes, ao contrário do que acontece nos clubs de alterne e nas ruas. “[...] a
diferença é que o apartamento é 24 h, você tem que tá todo dia lá, você descansa, dorme, mas
o homem pode chegar às 3 h, 4 h, 6 h da manhã. Você poder estar deitada que eles vão lá te
chamam.”257.
Existe também a prostituição de rua (“prostitución callejera”), desenvolvida em
parques, centros urbanos, polos industriais. A rua é o espaço em que se faz a “negociação
econômica”. As relações sexuais são feitas em hotéis ou pensões, e até mesmo nos carros ou
espaços abertos e afastados. Na Espanha, a prostituição de rua é exercida principalmente pelas
mulheres africanas e do leste europeu e por algumas latinas258. As brasileiras estão localizadas
nos clubes de alterne, nas plazas e nos pisos, não exercendo prostituição de rua.
As mulheres que exercem prostituição nas ruas, salvo aquelas que estão sendo
agenciadas pelos traficantes (“chulos”), não têm que dividir os valores ganhos com as relações
sexuais; de outro lado, elas estão mais vulneráveis a violências, agressões etc. Além disso,
enquanto nos clubes e nos pisos o valor ganho pelas mulheres varia entre 1000 e 4000 euros,
nas ruas elas conseguem de 500 a 2500 euros, dependendo muito da idade e da aparência física
da mulher/travesti/transexual259.
256
Discutiu-se muito sobre o papel desempenhado pela mídia na promoção e divulgação da prostituição. Dados
indicam que somente o jornal espanhol “El País” lucra cerca de 5 milhões de euros por ano em publicidades
com prostituição. Mesmo sabendo que a prostituição não é uma atividade proibida na Espanha, discute-se a
responsabilidade social dos jornais na demanda pela prostituição. Ver: Periodismo digital. Borja Ventura:
http://blogs.periodismodigital.com/periodismo.php/2006/04/04ª_2. Acesso em: 13 jan. 2020.
257
LEAL, Maria Lucia; TERESI, Veronica Maria; DUARTE, Madalena. Mulheres brasileiras na conexão
ibérica: um estudo comparado entre migração irregular e tráfico. 1. Ed. Curitiba: Appris, 2013. p. 82.
258
As travestis e transexuais também utilizam bastante os espaços da rua para exercer prostituição e onde também
são exploradas pelas redes de tráfico.
259
O valor pago pelas relações sexuais varia de acordo com o serviço desejado pelo cliente. Nas ruas, um “serviço
básico” de penetração vaginal com preservativo pode custar 20 euros. Já a penetração anal, pode chegar a 40
124
Sabe-se também que muitas das mulheres africanas e do leste europeu nas ruas estão
sendo agenciadas por seus traficantes, e não ficam com nada do que recebem pelas relações
sexuais.
As OSCs relatam a existência de mulheres transexuais brasileiras nos espaços de
prostituição espanhóis. As OSCs especializadas e entrevistadas esclarecem que as/os
transexuais se encontram, em grande parte, nos pisos e nas ruas. Se há vulnerabilidade das
pessoas que exercem prostituição, essa população é a mais vulnerável. A invisibilidade (quando
nos pisos), e as explorações e violências sofridas nas ruas evidenciam essa situação260.
As redes criminosas se articulam e se aproveitam de sistemas que tenham controle
migratório ineficiente, com vulnerabilidade social e ausência de Políticas Públicas efetivas de
combate e atendimento às vítimas. Além disso, essas redes de tráfico se adaptam às mudanças
dos controles migratórios dos países de destino, criando novas metodologias de inserção261.
A dívida da “bolsa viagem” é contraída com o dono do club de alterne ou com o
proprietário do apartamento (piso). Algumas delas são obrigadas a permanecer no local de
“trabalho” até pagarem a dívida, e muitas se envolvem com drogas.
Conforme estudo do Departamento de Trabalho Social e Serviços Sociais da
Universidade Complutense de Madrid, no ano 2001, as redes de tráfico apresentam uma
estrutura hierárquica e piramidal, com uma organização interna muito fechada e rígida,
composta basicamente de homens. Essas redes estão envolvidas paralelamente com outros tipos
de delitos, como o tráfico de armas e de drogas, roubos, falsificação de documentos, lavagem
de dinheiro, entre outros262.
Tal constatação foi ratificada pela pesquisadora Piscitelli, que acrescenta: “As
organizações que atendem trabalhadoras do sexo consideram que o número de brasileiras
euros. Uma “felación” (masturbação) pode custar 10 euros. Nos clubes a penetração vaginal pode custar 50
euros e a anal, 70. Nos pisos os valores variam, conforme o “status” do local. Os pisos de “alto standing”
podem chegar a cobrar 400 euros por cada relação sexual. Os mais simples, podem cobrar de 40 a 80 euros. O
tempo de serviço prestado também é diferente conforme o local. Nos clubes e nos pisos, o tempo aproximado
é de 30 minutos. Já nas ruas, o tempo médio é de 5 a 10 minutos. Importante destacar que a prostituição
masculina e transexual é mais paga. Mesmo na prostituição callejera, uma mulher trans não aceita menos que
50 euros por qualquer serviço. Já um homem, não aceita menos que 70 euros por serviço
260
A Fundación Cruz Blanca, organização da sociedade civil espanhola é a única organização que possui uma casa
de acolhida com seis lugares para atender homens em situação de vulnerabilidade e vítimas de violência sexual.
Porém, não há espaços específicos para acolher as transexuais.
261
Durante nossa estância na Espanha pudemos perceber que as fronteiras espanholas estão muito atentas à
imigração de mulheres brasileiras, seja ou não por meio das redes de tráfico, dificultando a entrada no espaço
espanhol. Deve-se destacar, conforme diálogos mantidos com as polícias espanholas e pelas próprias
impressões de algumas ONGs visitadas, uma tendência atual para o tráfico de mulheres paraguaias e
venezuelanas.
262
GOMARIZ, Maria José. (Equipo técnico y Coordinación) Tipología de la prostitución femenina en la
comunidad de Madrid. Madrid: Departamento de Trabajo Social y Servicios Sociales. Escuela de Trabajo
Social de la Universidad Complutense de Madrid, 2001. p. 172-173.
125
oferecendo serviços sexuais na rua é relativamente reduzido quando comparado com mulheres
de outras nacionalidades. Elas seriam uma presença relevante em espaços fechados.”263.
O perfil do aliciador está diretamente ligado às exigências do mercado de tráfico para
fins sexuais, ou seja, a demanda é que define o perfil do aliciador e o da pessoa explorada.
No Brasil, apesar da prevalência de homens como aliciadores/agenciadores das vítimas
de tráfico264, há grande número de aliciadoras que conseguem convencer mulheres das
vantagens da inserção nas redes sexuais, através de suas experiências “bem-sucedidas” com a
prostituição no exterior. Percebe-se, principalmente pelo relato das mulheres vítimas, que essas
aliciadoras já estiveram em condição de vítimas, mas conseguiram pagar a sua dívida e foram
inseridas na estrutura das redes de tráfico para exercer um poder de convencimento sobre outras
mulheres265; ou ainda, que essas aliciadoras se envolvem sentimentalmente com algum
traficante ou dono de clube de prostituição, e acabam sendo as principais fontes de aliciamento
de mulheres no Brasil.
263
PISCITELLI, Adriana. Traficadas ou autônomas?: a noção de consentimento entre brasileiras que oferecem
serviços sexuais na Espanha. In Prelo: Brasília, DF: Ministério da Justiça. Dilemas jurídicos do enfrentamento
ao tráfico internacional de seres humanos.
264
A PESTRAF indica que 59% dos aliciadores são homens, contra 41% de aliciadoras mulheres, pg.64
265
Ver em: RIOPEDRE, José López. Inmigración colombiana y brasileña y prostitución femenina en la ciudad
de Lugo: historias de vida de mujeres que ejercen la prostitución en pisos de contactos. Tese de Doctorado
UNED, 2010; ARJONA GARRIDO, Ángeles; CHECA OLMOS, Juan Carlos y ACIÉN GONZÁLEZ,
Estefanía. Economía étnica y espacios alternativos de ocio: estrategias económicas de mujeres
subsaharianas” en Mujeres en el camino. El fenómeno de la migración femenina en España (Checa y Olmos
ed.: 117-138). Barcelona. Icaria. 2005. Ver em: ACIÉN, Estefanía. Mujeres inmigradas trabajando en la
prostitución en el poniente almeriense: perspectivas de acercamiento y experiencia de trabajo en La
prostitución a debate. Por los derechos de las prostitutas (Briz y Garizábal coord.: 78-92). Madrid. Talasa,
2007.
266
Revista Veja, edição 05/02/2005.
126
Verifica-se também que muitas mulheres vítimas de tráfico acabam indicando outras
mulheres brasileiras para irem à Espanha, com contatos, local para elas exercerem prostituição,
conseguindo em contrapartida diminuir parte de sua dívida contraída com a rede criminosa.
Porém, ao contrário do que possa parecer muitas vezes, elas não têm a percepção de que estão
traficando mulheres e se beneficiando com isso. As suas percepções são de que estão ajudando
uma amiga ou parente a melhorar de vida, e ao mesmo tempo diminuindo as suas dívidas. Há
uma complexidade na identificação do papel exercido por essas mulheres que, por momentos,
parecem aliciadoras de outras mulheres e, por outros, parecem estar incentivando projetos
migratórios de outras mulheres.
Independentemente da existência dessas redes de aliciadores, verifica-se a existência de
uma diversidade de possibilidades viabilizando a migração para se inserir no mercado sexual.
As migrantes envolvem conhecidos, amigos, parentes e namorados267. Existe uma linha tênue
entre a migração livre para exercício da prostituição e o tráfico de mulheres para fins de
exploração sexual; diga-se, nem sempre possível de separação.
No que se refere às redes de favorecimento do tráfico para fins de exploração sexual,
percebe-se que elas se organizam por meio de diferentes atores que desempenham funções
diversas e complementares, sejam do ramo do turismo, do transporte, da moda, de agências de
serviços (massagens, acompanhantes), e que possibilitam uma estrutura dentro e/ou fora do
Brasil para a eficiência do tráfico, com o máximo de lucro possível.
267
Ver AGUSTÍN, Laura Maria. Trabajar en la industria Del sexo, y otros tópicos migratorios. Donostia: Tercera
Prensa, 2005.
268
PESTRAF, p. 69.
127
ou não têm como justificar a ampliação da estadia na Espanha. Assim, passam à situação de
irregulares frente às autoridades de imigração espanholas269.
Essa situação de irregularidade as torna mais vulneráveis, basicamente por dois motivos:
1) frente aos proxenetas que muitas vezes as ameaçam denunciar às autoridades policiais
espanholas se não fizerem o que eles determinam, e 2) em relação à tentativa de sair da
prostituição e se inserir em outra atividade, pela ausência de possibilidades de conseguir outra
inserção profissional270.
É importante perceber que considerar todas as mulheres como vítimas de tráfico
equivale a deixar de compreender o fenômeno da prostituição no seu todo; possivelmente, estar-
-se-ia negando autonomia de vontade às mulheres. Independentemente da posição teórica ou
moral que se possa ter sobre a prostituição, o discurso de algumas das mulheres e de algumas
organizações da sociedade civil que atendem mulheres em situação de prostituição revelam, em
alguns casos, voluntariedade no exercício da prostituição. Cabe ressaltar que é necessário dizer
que há mulheres trazidas por redes de tráfico informais, desvinculadas de grandes redes de
tráfico de pessoas ligadas ao crime organizado transnacional, e que necessitam ser acolhidas,
atendidas e protegidas.
Conhecendo histórias de mulheres brasileiras, percebeu-se que a maioria chega à
Espanha com a intenção de “fazer” dinheiro e depois voltar para o Brasil. Com o tempo, pensam
em criar condições para ficar na Espanha mudando de atividade profissional, e trazer as suas
famílias, principalmente os seus filhos, que ficaram aos cuidados de suas mães, pais ou outros
familiares. Interessante notar que esse perfil é muito semelhante na maioria das mulheres,
independentemente de sua nacionalidade.
A maternidade compartilhada é um aspecto importante da condição da mulher
migrante/vítima de tráfico e caracteriza a maternidade transnacional. As mulheres deixam os
seus lugares de origem (seja por meio de um processo autônomo migratório ou como vítima de
tráfico), confiam os seus filhos aos cuidados de outra pessoa (geralmente, uma mulher: sua mãe,
irmã, tia), mas nunca deixam de se vincular a eles. A expectativa é conseguir proporcionar
melhores condições de vida a essas crianças, mesmo que isso implique não acompanhar esse
processo de crescimento. Nesse contexto, a feminização das migrações converteu as avós em
269
A pena para um imigrante irregular é a deportação. Na Espanha esse termo técnico não existe. Eles utilizam o
termo expulsão. O termo expulsão é utilizado tanto para a pena resultante de uma infração administrativa
(Exemplo: por irregularidade documental) como para uma pena judicial (no caso de cometimento de crime por
parte de migrante).
270
A contratação de um imigrante irregular na Espanha é considerada uma infração administrativa grave pela lei
de estrangeiros, com multas altíssimas ao empregador. Isso inibe consideravelmente os empregadores na
contratação de migrantes irregulares.
128
mães, quando estas acreditavam ter concluído tais etapas em suas vidas. As consequências para
a vida dessas avós, que começam a assumir a responsabilidade de criar filhos/as, influencia na
formação e percepção da criança de qual é o seu núcleo familiar, e como se formam as relações
entre as diferentes pessoas nesse núcleo. Essas separações mães/filhos/as têm consequências
profundas nas relações pessoais dessas mulheres, principalmente de seus filhos/as, mas acabam
gerando efeitos nos círculos sociais mais extensos271. Apesar da dificuldade de pesquisas mais
generalistas sobre os perfis das mulheres272 no contexto do tráfico de pessoas e de prostituição,
isso é percebido pelos dados das pesquisas e dos relatos das organizações da sociedade civil
espanholas. Grande parte dessas mulheres têm entre 19 e 40 anos, com filhos no Brasil. São
mulheres brancas e negras273. A maioria delas não exercia a prostituição no Brasil. Muitas não
haviam terminado o ensino médio; outras, nem mesmo o ensino fundamental, e indicavam ser
de Goiás, Paraná, São Paulo (interior e litoral), Bahia e Pernambuco.
De forma geral, a captação nos países de origem ocorre por meio de redes informais e
familiares: umas trazem as outras na intenção de “ajudar” amigas e parentes a melhorar de vida.
No caso das redes de mulheres brasileiras na Espanha, elas mesmas são o contato para a vinda
de outras brasileiras. O dinheiro e o local de “trabalho” são possibilitados pela rede organizada
do mercado sexual na Espanha. Os donos dos clubes cuidam da infraestrutura, logística de
encaminhamento da mulher do aeroporto/cidade/local de “trabalho”, além, muitas vezes, do
dinheiro para emissão de passaporte, passagem aérea e dinheiro para “comprovar”, frente às
autoridades migratórias na Espanha, que se trata de uma viagem a turismo274.
271
RIVA, Marta Carballo. TERESI, Verônica Maria. Hacia un Protocolo de Actuación en el Contexto Actual
de Trata de Mujeres brasileñas en España. Documento de Trabajo n. 14. Instituto Universitário de
Desarrollo y Cooperación de la Universidad Complutense de Madrid. 2009.
272
Importante destacar que os perfis de mulheres encontradas e entrevistadas especialmente neste momento da
elaboração da tese, mesmo não sendo todas brasileiras, constroem perfis que se assemelham aos perfis das
brasileiras, em diversos aspectos.
273
É importante relacionar esse perfil racial das mulheres brasileiras no contexto espanhol com os temas
relacionados ao colorismo negro. Curiosamente, as mulheres brasileiras negras não são as negras consideradas
de pele retinta. As negras de pele retinta são as africanas, principalmente as nigerianas. As brasileiras negras
são de tonalidade mais clara e traços mais europeizados. Entende-se por “colorismo, de maneira simplificada,
que as discriminações dependem também do tom da pele, da pigmentação de uma pessoa. Mesmo entre pessoas
negras ou afrodescendentes, há diferenças no tratamento, vivências e oportunidades, a depender do quão escura
é sua pele. Cabelo crespo, formato do nariz, da boca e outras características fenotípicas também podem
determinar como as pessoas negras são lidas socialmente. Pessoas mais claras, de cabelo mais liso, traços mais
finos podem passar mais facilmente por pessoas brancas e isso as tornaria mais toleradas em determinados
ambientes ou situações.” CULT. Quem é mulher negra no Brasil? Colorismo e o mito da democracia racial.
Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/colorismo-e-o-mito-da-democracia-racial/. Acesso em: 15
maio 2020.
274
As mulheres devem chegar à Espanha com o que eles chamam de “bolsa de viagem” que compreende dinheiro
efetivo e com reservas em hotéis para configurar que vêm a turismo. Não preenchendo esses requisitos, muitas
são não-admitidas e retornam imediatamente aos seus países de origem.
129
Foram realizadas cinco entrevistas com mulheres: duas brasileiras (uma na Espanha e
outra retornada ao Brasil, em Goiânia), uma nigeriana, uma dominicana, uma venezuelana;
estas se encontravam ao norte da Espanha, em Gijón (Astúrias). Todas passaram por situação
de tráfico para fins de exploração sexual. Essas mulheres entrevistadas foram nomeadas de
Camomila275, Jasmin, Hibisco, Liz e Violeta, para preservar as suas identidades e
privacidades276. Das cinco narrativas, contar-se-ão alguns poucos trechos.
Mesmo sabendo que nem todas as mulheres entrevistadas eram brasileiras, entendeu-se
importante entrevista-las, pois muitas das condições prévias que as levaram a aceitarem viajar
para a Espanha e vivenciarem o tráfico de pessoas são bastante similares e, certamente, tirar a
nacionalidade e a rota de tráfico, impediria saber se tratar de mulher que não fosse brasileira.
Isso leva a pensar que muitas das condições de vulnerabilidade vivenciadas efetivamente se
referem a questões ligadas ao gênero e ao patriarcado presente nas sociedades.
275
Falar-se-á da história de Camomila oportunamente no capitulo 5.
276
As entrevistas são mecanismos muito interessantes quando se estabelece confiança entre entrevistadora e
entrevistada. As entrevistas funcionaram como um diálogo, que tinha como pano de fundo, a história de vida
dessas mulheres. Por meio dessas histórias foi permitido compreender suas necessidades, expectativa, sonhos,
violências sofridas vivenciadas desde seus países de origem, até os motivos que as levaram à Espanha. As
entrevistas atuais permitem dar mais sentido e realidade aos perfis descritos em estudos relacionados com o
tráfico de pessoas, principalmente contrastar as realidades antes pessoalmente identificadas e entrevistadas
(principalmente em 2006/2007 e 2009/2010).
130
Jasmin, uma mulher nigeriana com cabelos trançados, olhar forte, porém esquivo,
desconfiado, voz suave, de 24 anos de idade, originária de Lagos, cidade mais populosa da
Nigéria, tinha como desejo terminar o seu ensino médio e viver “normal”, como ela mesma
delineou: “Quero ter um trabalho e uma vida boa”. Seu sonho não se realizava, uma vez que a
sua mãe, e de mais sete filhos, não tinha condições de bancar a finalização de seus estudos, e
estudar em uma escola pública não era uma opção. Ela trabalhava em uma loja de roupas para
pagar os seus estudos e criar a sua filha de dois anos. Ficou mais de três meses sem receber
salário. Seu desejo de ter uma vida boa, não visualizar outras opções, e o convite feito por um
amigo há cinco anos a levaram a empreender uma viagem com destino à Espanha.
“No meu país se você não vai à Universidade, você não vai ter trabalho. Eu
não gostava do meu país pois não tinha bons trabalhos. Pensei que quando
chegasse à Espanha, eu teria uma vida boa.”
Ela não sabia o que teria que fazer quando chegasse à Espanha, somente que haveria
bons trabalhos, conforme o seu amigo afirmou. Como ela não tinha dinheiro, outra pessoa
pagou a sua viagem. Ela somente teria que pagar quando chegasse à Espanha, com o seu
trabalho.
E assim foi como Jasmin aceitou migrar em direção à Espanha. O trajeto foi longo, mais
de seis meses, entre junho e dezembro, saindo de Lagos (Nigéria), passando por Níger, Líbia,
Itália, e finalmente Benidorm (Alicante), na Espanha. Saiu sem dizer nada a ninguém, nem
mesmo à sua mãe que estava cuidando de sua filha. Jasmin somente avisou a sua mãe quando
chegou à Líbia. Da Nigéria à Líbia, o trajeto foi feito em Jeeps; até a Itália, de botes (pateras).
Como ela mesma diz, o “trajeto foi muito duro.” E ela se sentiu enganada por esse amigo.
Passou diversas formas de violência e violações, além de perder amigas pelo trajeto.
277
“So, here you are/ too foreign for home/ too foreign for here. / Never enough for both.” Ijeoma Umebinyuo,
Questions for Ada. Ijeoma é uma poeta nascida e criada em Lagos, na Nigéria. Publicou sua primeira coleção
de poemas, chamada Questions for Ada, em agosto de 2015.
131
Quando chegou à Itália, foi recepcionada por uma OSC, de que não recorda o nome.
“Mas lá não há quem te escute, eles não conversam com você.”278. De lá, foi levada e ficou
trabalhando um mês na casa de quem a levou279. Depois foi levada à cidade de Benidorm
(Espanha). “Quando ele chegava em casa, ele também precisava de sexo. A vida era muito
difícil.” O homem que a levou queria que ela trabalhasse em um clube na Espanha, mas ela
nunca chegou a trabalhar nesses espaços. Estando em Benidorm ela conversou com a sua mãe,
dizendo que não estava mais aguentando aquela situação. Sua mãe, que tinha uma amiga em
Barcelona, mandou ligar para essa pessoa. Jasmin, assim, foi orientada a procurar a Cruz Roja
de Alicante (Espanha), que a orientou e conduziu a Gijón (Astúrias), para os cuidados da
Fundación Amaranta Asturias, organização especializada em atender mulheres em situação de
vulnerabilidade, prostituição, violência de gênero e vítimas de tráfico.
A partir desse acolhimento, abrigamento e atenção, Jasmin pôde denunciar uma rede de
tráfico e requerer asilo. Hoje vive acolhida, com documentação para residir na Espanha. Deseja
poder ter a oportunidade de refazer a sua vida, trabalhar na Espanha. Não deseja mais voltar à
278
O relato de Jasmin reforça o que muitas OSC afirmam sobre os abrigos para migrantes chegados de pateras, em
muitos casos, serem espaços de proteção e também, em alguns casos, de aliciamento de redes de exploração.
279
O relato feito por Jasmin coincide com alguns relatos de OSC da Espanha que indicaram que os abrigos para
migrantes vindos da África muitas vezes são espaços de aliciamento para exploração na Europa.
132
Nigéria para morar. “Se eu não tivesse minha filha ali, não voltaria. Mas preciso vê-la. Eu quero
trazê-la para cá, mas é muito pequena280 e se ela estivesse aqui, não conseguiria trabalhar.
Quando ela tiver uns 13 anos vou querer trazer minha filha.”
Jasmin termina, tentando justificar, mesmo sem necessidade, porque não retornará:
A África é muito louco! (entre risos) É o mundo dos homens. Você não pode
dizer nada. Eles incomodam. [...] É diferente ser mulher e homem na Nigéria.
Você tem que se casar. Mesmo se não quiser, é obrigatório. E você tem que
fazer tudo que seu marido quer. Para ter saúde você precisa pagar, trabalhando
ou não.
E mesmo sem um pedido expresso, ela se sente no dever de dizer: “Queria dizer a todas
as mulheres que elas não tenham pressa na vida. É necessário pensar muito bem antes de fazer
coisas. [...]. Hoje ainda lembro muito dos momentos vividos e das pessoas que iam morrendo
[...].”
Pergunta-se-lhe sobre o que são direitos humanos e ela responde, depois de um longo
silêncio, que é o direito de não ser discriminado nem incomodado por ninguém. Disse que,
desde que chegou a Gijón, não deseja mais chorar. E assim, com um abraço apertado, finalizou-
se aquela entrevista. Obrigada Jasmin!
280
A filha de Jasmin hoje está com 6 anos.
281
Rosa Silverio é uma poetisa dominicana de Santiago de los Caballeros. Escreveu este poema “Hay que ponerle
un nombre a esta tristeza.”
133
anos282, era estudante de Marketing (terceiro semestre) e funcionária de um Banco. O seu sonho
era finalizar a faculdade e continuar trabalhando no banco. Por diversos motivos, até por
compor uma família monoparental, contraiu muitas dívidas com cartões e empréstimos, sendo
mandada embora do seu trabalho. Decidiu, convencida por uma amiga, a vir para a Espanha
trabalhar e pagar as suas dívidas. Inicialmente, não tinha interesse em ficar na Espanha. Ela não
sabia o que faria, e se disse enganada por uma rede criminosa. Deixou o seu filho aos cuidados
da família do pai.
Ela comprou a sua própria passagem, e pagou por um passaporte falso. A sua família
não sabia o que ela iria fazer. Na verdade, até hoje ainda não sabe muito bem o que aconteceu.
Viajou para a Turquia de avião. De lá, foi de ônibus para a Grécia e depois para San Sebastian,
no norte da Espanha. Chegando à Espanha, foi obrigada a trabalhar para a rede de exploração
sexual (ano de 2016).
282
O filho de Hibisco tinha 8 anos quando ela saiu de seu país.
134
Acabou ficando grávida, sem saber se era filho de um cliente ou de uma pessoa com
quem ela se relacionou. Foi à cidade de Gijón, e procurou a Fundación Amaranta Asturias, por
intermédio de uma amiga africana que a orientou. Está sob os cuidados de Amaranta desde
então (dois anos). Obteve os documentos para residir na Espanha. Hoje mora em uma casa com
o seu companheiro e filha. Seu maior sonho é poder cuidar dos dois filhos, trazendo para a
Espanha o seu filho que ainda está em Santo Domingo.
Disse que estava trabalhando nos cuidados de uma idosa, porém, em função de um
problema na coluna, estava de licença médica.
Perguntada sobre o que são direitos humanos, ela fica um tempo em silencio, olha para
mim e diz: “Nunca ninguém me perguntou isso!” E responde: “Que ninguém me coíba ou
proíba de fazer o que eu quiser.” Indagada sobre o que é cidadania, responde: “Sou cidadã
dominicana e resido na Espanha.”
Deseja construir a sua vida na Espanha, com os seus filhos, com bons estudos e dinheiro
para os ajudar. E também ter um bom trabalho. Em 10 anos ela se vê em um apartamento de
sua propriedade na Espanha. E voltará ao seu país somente de férias, e quem sabe, quando for
mais velha.
135
Violeta, mulher doce e simpática, aberta ao diálogo, forte e sensível, poderosa, 37 anos,
originária de Caracas, capital da Venezuela. Estudou até o segundo ano do Ensino Médio, era
microempresária, sem filhos. Descreveu-se como “uma pessoa de coisas básicas. Tudo o que
eu queria era ter meu apartamento, ter sossego, trabalhar, poder estudar alguma coisa, ter meu
cachorro, meu companheiro, eu queria ter um emprego normal.”
Quando ela percebe que a Venezuela colapsava (palavras de Violeta), começa a pensar
em possibilidades de sair de lá. Somado a esse desejo de ter uma vida melhor, Violeta tem um
familiar que precisava dela, em Oviedo, na Espanha. “Eu tenho um xxxx aqui na Espanha que
é paciente de saúde mental [...] ele tentou cometer suicídio e tal [...] e tem um namorado
espanhol”
O namorado desse familiar sempre dizia que ela tinha que estar na Espanha para o
ajudar. O companheiro sempre falava ... "ok, vem pra cá, você trabalha no que der [...].” Passado
o tempo, ela descobriu que eles trabalhavam com massagens eróticas e com prostituição. Esse
rapaz oferece que ela vá para a Espanha fazer alguns nus pela web, tipo strip-tease. Nada
aconteceria relacionado à prostituição. Ela poderia conseguir dinheiro, e enquanto isso eles
iriam processando os documentos para garantir a regularidade documental de Violeta. Ele disse
que esse processo custaria em torno de 3.000 a 5.000 euros.
O trajeto de Violeta foi em transporte aéreo de Caracas (Venezuela) para Istambul
(Turquia) e para Madrid, e em ônibus de Madrid para Oviedo (Asturias).
283
Fabiola Palomares é uma jovem poetisa venezuelana, nascida em Valera, Estado Trujillo, Venezuela. “7 poemas
de PIES DESCALZOS”.
136
Chegando à Espanha (em 2017), ela percebe que não havia nada de câmeras e que ela
iria se prostituir. Ele estabelece que ela moraria no mesmo apartamento que ele, que teria um
quarto para ela. Acaba se prostituindo ali, sem horário definido, tendo muitas vezes que utilizar
droga com clientes, pagando metade de tudo que fazia para o aliciador, mais o dinheiro para
fazer a documentação de residência284. Ele restringia o seu direito de cozinhar no apartamento,
284
O aliciador disse que teria que cobrar dela 10 mil euros, uma vez que ele apareceria como companheiro dela
nos documentos. Para isso, de 5000 euros ele cobraria 10 mil.
137
cada vez mais ela se sentiu deprimida, tomando muitos remédios para dormir. Violeta se
comunicava com o mundo exterior somente com os seus clientes por whatsApp e por paginas
de contatos sexuais. Recebia clientes a qualquer horario do dia ou da noite e, de vez em quando,
uma OSC285 que fazia um trabalho de prevenção contra doenças sexualmente transmissíveis,
levava camisinhas para ela. Violeta tinha três celulares para receber chamadas de clientes. Ela
se emociona em muitos momentos da conversa. Inicialmente “eu o via como meu salvador, mas
no final, ele estava me matando.”
Violeta saia para fazer compras, mas as ameaças psicológicas feitas pelo aliciador, de
que ela seria deportada para a Venezuela, uma vez que já havia passado os três meses do visto
de turista, faziam com que ela saísse muito pouco e não se comunicasse com ninguém. Ela tinha
receio de sair a qualquer lugar e ser deportada.
A percepção de Violeta sobre a situação de exploração sofrida nem sempre era percebida
de forma consciente. Ela acreditava que, ao consentir estar ali se prostituindo, excluía qualquer
delito de exploração. Muito dinheiro era repassado ao aliciador, que dizia estar fazendo os
documentos para autorização de residência dela.
Violeta consegue se libertar dessa situação de exploração quando é alertada pelo seu
familiar sobre a condição de exploração que sofria. Ele também temia por ela, pois a via muito
debilitada. Ela decide conversar com um cliente, que lhe confirma que essa situação vivida
caracterizaria coação. Depois de diversas situações de violências vivenciadas, de perceber que
não teria a documentação prometida e, inclusive, de contrair uma doença sexualmente
transmissível, ela decide procurar aquela organização que ia visita-la no apartamento.
Essa organização decide encaminhar Violeta para outra organização que a poderia
abrigar, e iniciar um atendimento mais especializado em Gijón. Ela ficou abrigada na
organização praticamente um ano e meio. Conseguiu um trabalho de faxina em uma casa e
depois em uma loja, onde trabalha até hoje. Violeta decide denunciar o seu aliciador por tráfico
de pessoas, obtendo os documentos de residência e trabalho, pelo menos até quando o processo
durar286.
Quando perguntada sobre o que são direitos humanos, ela responde em tom de pergunta:
“Valores que há que respeitar, não? Por exemplo, uma mulher não pode ser maltratada, deve
285
Tratava-se da OSC APRAMP.
286
Violeta teve direito a residência por ter denunciado o aliciador. Enquanto durar o processo ela terá esse direito
mantido. Finalizado o processo se verá se ela terá direito em função da sua colaboração e do resultado final de
uma possível condenação. Essa é uma das críticas que se fazem à legislação espanhola, que vincula o direito à
residência à colaboração da vítima e ao quão importante a colaboração for para uma possível condenação. As
OSC que atuam na proteção das vítimas lutam pelo entendimento de que a residência deveria ser concedida
independente da colaboração da vítima.
138
ser respeitado o pensamento de cada pessoa, a posição política de cada um, respeitar a saúde
[...].” Por outro lado, quando indagada sobre o que é cidadania, ela não tinha certeza sobre o
seu significado.
E sobre os seus sonhos, diz que os alcançou: “Hoje tenho meu trabalho, moro em um
apartamento sozinha [...] estou tranquila... Isso tudo graças à organização que me acolheu e a
organização que me encaminhou.” Reforça que somente falta ter a sua mãe e o seu irmão
morando com ela. E refletiu:
“As mulheres que passam mal, por todas estas histórias sempre não é por elas.
Você não vai passar mal, deixando que destruam a sua vida por ter uma bolsa
ou um sapato. A que quer uma bolsa e um sapato o faz porque quer, sozinha e
sem que ninguém a explore. Você sempre faz um sacrifício pela sua família.
Seja de onde você for.... Não acredito que exista alguém de tão pouco coração,
que passe por uma situação como as que passaram tantas mulheres, somente
pelo material ou pelo dinheiro. [...]. As que o fazem o fazem por seus filhos,
sua família. Se aproveitam disso para...”
Liz, mulher brasileira soteropolitana, migrante em São Paulo, atualmente com 42 anos.
Cursou até o primeiro ano da Faculdade de Administração de Empresas em São Paulo, mãe de
uma mulher de 20 anos. Antes de ir para a Espanha trabalhou, como ela disse, com muitas
coisas. Antes da Espanha, foi promoter de feiras, e vendia roupas de marca para ajudar a pagar
faculdade, manter a casa e criar a sua filha. Quando as dívidas não eram mais suportáveis,
acabou aceitando acompanhar alguns empresários às feiras de negócios. A agência em que
trabalhava sempre lhe oferecia esses trabalhos. Seu maior sonho era terminar a faculdade,
cuidar da filha e dos pais que moravam com ela. “Ter uma estabilidade na vida.”
A mulher que trabalhava na agência, em um desses convites, oferece trabalho na
Espanha. Ela acabou aceitando. Ficou devendo passagem (na época 2000 euros), perdeu a sua
conexão em Paris (teve que arcar com essa dívida). “Ou seja, vim através do tráfico.” Assim,
139
em 2004, ela viajou de São Paulo para Paris; depois Madrid (aéreo) e, de carro, de Madrid a
Berrón (Asturias)287.
287
Essa cidade fica a 16 minutos de Gijón.
140
Enquanto estava em Berrón, perdeu o papel de controle do que devia de sua passagem,
e com isso acabou tendo que pagar muito mais do que os 2000 euros que devia. Disse que
chegou a pagar 4000 ou 5000 euros. Ela nunca terminava de pagar. Um dia a mandaram embora,
e ela acabou sendo acolhida por um cliente em sua casa. Acabou saindo de lá e morou com
outro rapaz por três anos.
“Eu vivenciei situações bastante perigosas. Tinha que ser esperta. Vi “chicas”
apanhando, perseguidas. Tive a sorte, não sei porque, mas de ter clientes que
me protegeram [...]
Sofri violência psicológica também com companheiros aqui na Espanha.”
A sua família não sabe até hoje o que ela fazia lá. Tenta de todas as formas proteger a
sua família, que sabe somente que ela foi parar em outro país288, com um problema bastante
difícil, mas não que ela trabalhava com prostituição.
Liz está há mais de 16 anos na Espanha. Já possui documentação para residir
regularmente, o que lhe permite conseguir trabalho, ter uma certa estabilidade. Há algum tempo
trabalhou em um bar de garçonete, na área de cozinha, entre outras atividades. Teve uma
sociedade em um restaurante, em que a parte da cozinha era conduzida por ela.
Após já estar situada e com trabalho, porém necessitando dinheiro para poder viajar para
visitar a sua família no Brasil289, uma amiga lhe ofereceu uma oportunidade em outro país e ela
aceitou. Nesse lugar passou muitas violências, entre sequestro, agressões, maus tratos, sendo
constantemente vigiada por câmeras etc. Foi traficada para uma organização criminosa muito
grande e perigosa. Ela não podia ir a nenhum lugar sem estar acompanhada.
“Tinha gente grande envolvida nisso. E eram pessoas que tinham contato
direto comigo. Lá eu tive momentos que não passei na Espanha.”
[...]
“Agora eu sei o que é realmente a prostituição. Com esse problema em XXX
eu vi que realmente é muito pesado e doloroso.” (grifo nosso).
Em função de relações afetivas violentas, esteve duas vezes em casas de acolhida por
violência doméstica, na Espanha. Teve apoio de algumas OSCs em diversos momentos: Cruz
Roja, APRAMP, Médicos del Mundo e Fundación Amaranta – Asturias. Atualmente, está
abrigada por Fundación Amaranta há alguns meses, desde o seu retorno à Espanha,. sem
trabalhar e sendo cuidada depois de ser resgatada.
288
Por questões de segurança, não serão revelados detalhes da história.
289
Faz cinco anos que não viaja para ver a sua família.
141
“Eu tive contato com meninas de 18, 19 anos em outro país e muitas delas
vêm achando que sabem o que vão passar. Mas na verdade não se sabe. Acham
que há trabalho e não há. O pior da prostituição é que a mulher aceita achando
que gosta daquilo, mas na verdade sabe que está sendo explorada
psicologicamente. E você tem que dar o que você não tem. Os homens exigem
aquilo que eles querem: a beleza, a alegria, o sorriso. Você tem que dar algo
que não é natural.”
desejava retornar ao seu lugar de origem, almejando construir a sua vida na Espanha. No caso
das mulheres com filhos, desejavam poder levar os seus filhos para a Espanha e ali viver290.
As histórias dessas mulheres não podem ser tidas como a generalização do que acontece
com todas as vítimas de tráfico. Entretanto, esses microcosmos permitem uma aproximação
com essas realidades para além dos números frios dos relatórios internacionais e internos, que
meramente quantificam essas pessoas, e assim, é possível dar nome, cor, nacionalidade,
história, desejos, sonhos, e escutar delas próprias as violências pelas quais passaram.
Feita a caracterização do fenômeno do tráfico de mulheres, principia-se a descrição do
Regime Internacional Complexo existente para o enfrentamento desse fenômeno social
normatizado. Inicia-se a caracterização do regime a partir de uma perspectiva histórica,
compreendendo as motivações e complexidades desse regime no decorrer da história,
principalmente do início do século XX.
290
No caso de Camomila, ela já retornou ao Brasil pelo programa de Retorno Voluntario, coordenado pela
Organização Internacional das Migrações (OIM) na Espanha e o Programa Vagalume (Galícia).
143
proibição de abusos tais como o tráfico de escravos, o tráfico de armas e de álcool, garantia da
liberdade de consciência e de religião [...].”291.
O Tratado de Versalhes (1919) também cria a Organização Internacional do Trabalho
(OIT), e tinha como vocação temática promover oportunidades para que homens e mulheres
possam ter acesso a um trabalho decente e produtivo, em condições de liberdade, equidade,
segurança e dignidade, ocupando-se, assim, do combate ao trabalho forçado e à escravidão. Os
valores e princípios básicos da OIT levavam em conta que o trabalho deve ser fonte de
dignidade; que ele não é uma mercadoria; que a pobreza, em qualquer lugar, é uma ameaça à
prosperidade de todos; e que todos os seres humanos têm o direito de perseguir o seu bem-estar
material em condições de liberdade e dignidade, segurança econômica e igualdade de
oportunidades292. Na atualidade, a agenda de trabalho decente da OIT ajuda a avançar rumo à
conquista de condições econômicas e de trabalho que ofereçam a todos os trabalhadores,
empregadores e governos uma participação na paz, na prosperidade e no progresso duradouros.
Nesse sentido, a Agenda de Trabalho Decente da OIT define como seus objetivos estratégicos
pontos que dialogam diretamente com o combate à escravidão e ao tráfico de pessoas que
possam estar sendo escravizadas. Entre eles: 1. Definir e promover normas e princípios e
direitos fundamentais no trabalho; 2. Criar maiores oportunidades de emprego e renda decentes
para mulheres e homens; 3. Melhorar a cobertura e a eficácia da proteção social para todos; e
4. Fortalecer o tripartismo e o diálogo social.
A Convenção sobre a Escravidão (1926)293 vem na pretensão de erradicar e suprimir a
escravidão e o tráfico de escravos em todo o cenário internacional por violar os princípios de
humanidade e justiça (art.2, b), e tem como principal objetivo dar continuidade à missão
civilizatória do século XIX294. Importante destacar que essa convenção é resultado das
recomendações advindas do estudo realizado pela Comissão Temporal sobre Escravidão,
291
Importante destacar que o surgimento da LDN se dá no final da I Guerra Mundial com a finalidade de fomentar
cooperação entre as nações e principalmente para garantir a paz e segurança. (Tratado de Versalhes, 1919).
292
OIT. Declaração de Filadélfia (1944). Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---
americas/---ro-lima/---ilo-brasilia/documents/genericdocument/wcms_336957.pdf. Acesso em: 17 mar. 2020.
293
BRASIL. Câmara dos Deputados. Convenção sobre a Escravidão. 1926. Disponível em: https://www2.
camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/comite-brasileiro-de-direitos-
humanos-e-politica-externa/ConvRelEsc.html. Acesso em: 10 mar. 2020. A convenção foi emendada pelo
Protocolo Aprovado pela Assembléia Geral da ONU (1953) e adotado pela Assembléia Geral da ONU (1953),
entrando em vigor internacional em 1953.
294
ALLAIN, J. The slavery convention: the travaux préparatories of the 1926 League of Nations Convention and
the 1956 United Convention. Leiden: Martinus Nihoff Publishers, 2008.
145
instituída pelo Conselho das Nações Unidas (1924) sobre as formas de trabalho forçado ou
obrigatório e as práticas escravocratas no mundo295.
Artigo 1º
Para os fins da presente Convenção, fica entendido que:
§1. A escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se
exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade.
§2. O tráfico de escravos compreende todo ato de captura, aquisição ou cessão
de um indivíduo com o propósito de escravizá-lo; todo ato de aquisição de um
escravo com o propósito de vendê-lo ou trocá-lo; todo ato de cessão, por meio
de venda ou troca, de um escravo adquirido para ser vendido ou trocado; assim
como, em geral, todo ato de comércio ou de transporte de escravos.
Esse conceito trazido pela Convenção de 1926 proporcionou uma definição ampla para
a escravidão; foi um primeiro passo para o entendimento da comunidade internacional da
necessidade de enfrentamento e eliminação dessa condição.
Em 1956, já no Marco jurídico das Nações Unidas (ONU)296, é elaborada a Convenção
Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e
Práticas Análogas à Escravatura, também chamada de Convenção Suplementar de 1956, e
introduz o conceito de instituições e práticas de efeitos análogos à escravidão, consolidando um
regime jurídico internacional sobre a matéria297.
Considera-se relevante destacar que a escravidão é considerada um dos tipos de crimes
contra a humanidade (ou crime de lesa humanidade)298, conforme estabelece o artigo 7.º do
Tribunal Penal Internacional (TPI):
1. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por ‘crime contra a
humanidade’, qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de
um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil,
havendo conhecimento desse ataque:
[...]
c) Escravidão;
[...]
295
ALLAIN, J. The slavery convention: the travaux préparatories of the 1926 League of Nations Convention and
the 1956 United Convention. Leiden: Martinus Nihoff Publishers, 2008.
296
Importante destacar que o surgimento da ONU se dá no final da II Guerra Mundial, em 1945, com a finalidade
de garantir a paz e segurança, por meio da Carta das Nações Unidas. A Carta das Nações Unidas foi assinada
em São Francisco, a 26 de junho de 1945, após o término da Conferência das Nações Unidas sobre Organização
Internacional, entrando em vigor a 24 de outubro daquele mesmo ano. Disponível em: ONU.
https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2017/11/A-Carta-das-Na%C3%A7%C3%B5es-Unidas.pdf.
Acesso em: 15 mar. 2020.
297
DECAUX, E. Les Formes contemporaines de lésclavage. Leiden: Martinus Nijhoff Publishers, 2009. Recueil
des cours: colected courses of the Hague Academy of International Law, t. 336. Disponível em:
https://referenceworks.brillonline.com/browse/the-hague-academy-collected-courses. Acesso em: 20 mar.
2020.
298
Crime contra a humanidade é um termo de direito internacional que descreve atos que são deliberadamente
cometidos como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra qualquer população civil.
146
299
ONU. Estatuto de Roma. 1998. Disponível em: http://acnudh.org/pt-br/estatuto-de-roma-del-tribunal-penal-
internacional/. Acesso em: 10 mar. 2020. Promulgado pelo Brasil, pelo Decreto no. 4.388, de 25 de setembro
de 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm. Acesso em: 25 mar.
2020.
300
Ver em: Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH). Case of Rantsev v. Cyprus and Russia
(Application. 25965/04, 07/01/2010). Disponível em: https://ec.europa.eu/anti-trafficking/sites/
antitrafficking/files/rantsev_vs_russia_cyprus_en_4.pdf. Acesso em: 20 ago. 2020. Ver em: Tribunal Penal
Internacional para a ex-Yugoslavia (TPIY: International Tribunal for the Prosecution of Persons Responsable
for Serious Violations of International Humanitarian Law Committed in the Territory of the Former Yugoslavia
since 1991. Case: PROSECUTOR v. Dragoljub KUNARAC, Radomir KOVAC and Zoran VUKOVIC,
No.: IT-96-23&IT-96-23/1-A, sentença 12/06/2002. Ver em: Corte IDH. Caso Trabalhadores da Fazenda
Brasil Verde vs. Brasil. (2016). Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/asuntos/
trabajadores_15_02_16_por.pdf. Acesso em: 20 ago. 2020.
147
301
Ver em: CARBALLO, Marta de la Riva. Trata de Personas: consideraciones históricas y jurídicas: estructuras,
institución y sistemas de explotación. Tese Doctoral. 2017.
302
RUBIN, G. The traffic of women: notes on the “political economy of sex”. In: RAYANA, Reiter (org.).
Towards and anthropology of Women: New York: Monthy Review Press, 1975. “The set of provisions by
which a society transforms biological sexuality into products of human activity, and in which they satisfy these
transformed needs.”
148
qualquer estigmatização do que haveria que mudar para alcançar uma sociedade sem hierarquia
pelos gêneros303.
Gayle ainda pretende compreender as causas da opressão e da subordinação das
mulheres, esclarecendo que estas somente se convertem em oprimidas em certas relações
sociais304. De outro lado, o discurso de desqualificação da mulher como sendo igual, em
qualquer circunstância e condição, permitiu uma degeneração da subordinação da mulher à
coisificação, uma naturalização de que as mulheres podem ser comercializadas, tanto como mão
de obra servil, reprodutoras e escravas, quanto como objeto sexual305.
Nesses contextos nebulosos sobre o papel da mulher e a sua subordinação no decorrer
da história, admite-se supor que a subordinação da mulher ao homem era considerada normal,
um costume, características que até hoje, em muitos âmbitos, têm sido difíceis de modificar.
Nesse sentido, Tiburi ajuda a compreender o rol de exploração da mulher vinculado à sua
subordinação em prol do bem-estar da família, e consequentemente da sociedade.
[...] as mulheres são convencidas, por meio de uma combinação perversa entre
violências e sedução, que a família e o amor valem mais do que tudo, quando,
na verdade, o amor de devoção à família serve para amenizar a escravização,
que desmontada, faria bem a todos, menos àqueles que realmente preferem
uma sociedade injusta porque se valem covardemente de seus privilégios306.
É possível, ainda, verificar que a mulher podia ser e era considerada um objeto de prazer
e, assim, ser comercializado. Nessa lógica, o tráfico de mulheres, a escravidão e o tráfico de
escravos se aproximam. Nessa sutilidade do processo de mercantilização e consequente
coisificação, para a exploração da pessoa, dificulta-se a autodeterminação do ser humano.
Essa construção de discursos somados a essa naturalização da coisificação da mulher
fez com que as normativas relacionadas à matéria do tráfico de pessoas levassem em conta esses
atributos da mulher subalterna e submissa (frágil, vulnerável, objeto de prazer do outro, entre
outras), no qual se vincula o discurso do tráfico com a prostituição. Assim, a mulher que migra
para se prostituir não o poderia fazer de forma autônoma, uma vez que ela não teria capacidade
de decidir e de discernir sobre a autonomia daquela atividade.
303
RUBIN. G. El tráfico de mujeres: notas sobre la “economía política” del sexo. 1986. Revista Nueva
Antropología, México, v. VIII, número 30, p. 95-145, nov. 1986. Disponível em: https://www.caladona.
org/grups/uploads/2007/05/El%20trafico%20de%20mujeres2.pdf. Acesso em: 2 mar. 2020.
304
Id.
305
SILVA, Waldimeiry Correa. Regime Internacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas: avanços e
desafios para a proteção dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 45.
306
TIBURI, Marcia. Feminismos em comum: para todas, todes e todos. 10. Edição. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 2019. p. 19.
149
307
DAVIDA. Prostitutas, “traficadas” e pânicos morais: uma análise da produção de fatos em pesquisas sobre o
tráfico de seres humanos. Cadernos Pagu, Campinas, n. 25, jul./dez. 2005. Disponível em: https://www.
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332005000200007. Acesso em: 15 mar. 2020.
308
Por trás do sentido da expressão “pânico moral”, percebe-se a ausência da neutralidade na construção dos
discursos e, por outro lado, a tentativa de construir discursos de medo, pânico moral de que as pessoas,
principalmente mulheres do “Sul”, seriam captadas por redes criminosas.
309
TIBURI, Marcia. Feminismos em comum: para todas, todes e todos. 10. Edição. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 2019. p. 23.
150
310
MAYORGA, Claudia. Articulaciones de la exclusión: la política de atención a prostitutas inmigrantes en
Madrid: si somos americanos. Revista de Estudios Transfronterizos, Madrid, v. XII, n. 1, p. 49-74, ene.-jun.
2012.
311
Ver em: GALLAGHER, A. The international legal framework. In: THE INTERNATIONAL law of human
trafficking. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 54-143: KUSHNIR, Beatriz. Baile de máscaras:
mulheres judias e prostituição: as polacas e suas associações de ajuda mútua. Rio de Janeiro: Imago Editora,
1996; TELES, Matilde; KAEL, Verena. Aquelas mulheres. Documentário. 20min. Brasil, 2008. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=alSmYB3d8zk. Acesso em: 10 mar. 2020; LARGMAN, Esther.
Jovens polacas. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993; VINCENT, Isabel. Bertha, Sophia e Rachel: a
sociedade da verdade e o tráfico das polacas nas américas. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006. Tradução
de Alexandre Martins para “Bodies and souls”. Harper Collins Publishers, Nova Iorque, 2005.Ver ainda:
OLIVEIRA, Sayonara Farias. Cortina de fumaça. Santos: Don Muñoz, 2009. p. 21
312
A Convenção Internacional para a Supressão do Tráfico de Escravas Brancas, firmada em Paris, no dia 4 maio
de 1910, e ratificada pelo Brasil, além de ser a primeira conquista concreta do movimento abolicionista,
complementa o Acordo Internacional Para a Supressão do Tráfico de Escravas Brancas, concluído em 18 de
maio de 1904. Tal acordo, ratificado pelo Brasil em 18 de julho de 1905, estabelece, em seus três primeiros
152
artigos, a cooperação internacional entre os Estados partes, a fim de que estes centralizem as informações
referentes ao tráfico de mulheres ou meninas para fins imorais no exterior, bem como vigiem suas estações ou
portos de embarque e acolham tais pessoas para a identificação de quem as fez deixar o país. Convenção
Disponível em: http://hrlibrary.umn.edu/instree/whiteslavetraffic1910.html. Acesso em: 17 nov. 2019.
313
AUSSERER, Caroline. Controle em nome da proteção: análise crítica dos discursos sobre o tráfico
internacional de pessoas. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais), Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. p. 27. Disponível em: http://www2.dbd.puc-rio.br/
pergamum/biblioteca/php/mostrateses.php?open=1&arqtese=0510706_07_Indice.html. Acesso em: 19 out.
2019.
314
BERNSTEIN, Elizabeth. Militarized humanitarianism meets carceral feminism: the politics of sex, rights, and
freedom in contemporary antitrafficking campaings. Journal of Women in Culture and Society, v. 36, n. 1,
2010. Disponível em: https://glc.yale.edu/sites/default/files/pdf/militarized_humanitarianism_meets_
carceral_feminism.pdf. Acesso em: 15 mar. 2020.
153
Menores315 se remete à Convenção de 1910, mantendo a “moralidade” como bem jurídico a ser
tutelado, e dispõe que, independentemente do sexo da criança, havendo a adequação da conduta
ao estabelecido nos artigos 1.° e 2.° da convenção de 1910, considera-se o crime de tráfico de
pessoas. Há alteração do termo “tráfico de brancas” para “tráfico de mulheres e menores”.
Em 1933, a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres
Maiores316 traz em seu artigo 1.° que quem quer que, para satisfazer as paixões de outrem, tenha
aliciado, atraído ou desencaminhado, ainda que com o seu consentimento, uma mulher ou
solteira maior, com fins de libertinagem em outro país, deve ser punido. Apesar de não utilizar
mais a expressão “fins imorais”, substituindo-a por “fins de libertinagem”, o bem jurídico
objeto da norma continua o mesmo.
Já no âmbito das Nações Unidas (1945), é aprovada a Convenção para a Repressão do
Tráfico de Pessoas e do Lenocínio (1949), concluída em Lake Success, Nova Iorque317. A
“nova” convenção traz em seu preâmbulo, pela primeira vez em uma normativa internacional,
a expressão “tráfico de pessoas” (até então sinônimo de tráfico de mulheres), a expressão
“dignidade da pessoa humana”, alçando-o como valor a ser zelado, juntamente com o bem-estar
do indivíduo, da família e da comunidade. Outra mudança que merece destaque é que a
expressão “tráfico de mulheres” não é mais utilizada, ampliando-se o entendimento à “pessoa”,
bem como que os “fins de libertinagem” são substituídos por “fins de prostituição”, como fica
claro no artigo 1.°:
315
A Convenção para a Supressão do Tráfico de Mulheres e Crianças, concluída em Genebra em 30 de setembro
de 1921 e ratificada pelo Brasil em 18 de agosto de 1933, baseou-se nas recomendações contidas na Ata Final
da Conferência Internacional, convocada pelo Conselho da Liga das Nações entre 30 de junho e 5 de julho de
1921.
316
A Convenção Internacional para Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores, concluída em Genova aos 8 de
outubro de 1933 e ratificada pelo Brasil em 24 de junho de 1938, foi pensada no âmbito da Liga das Nações,
dando continuidade às recomendações contidas no Relatório ao Conselho da Sociedade das Nações pelo
Comitê de Tráfico de Mulheres e Crianças sobre os trabalhos de sua Décima Segunda Sessão.
317
A Convenção foi concluída em Nova Iorque, a 21 de março de 1950. Assinada pelo Brasil, a 5 de outubro de
1951. Aprovada pelo Decreto Legislativo nº 6, de 1958. Depósito do instrumento de ratificação na ONU, a 12
de setembro de 1958. Promulgada pelo Decreto nº 46.981, de 8 de outubro de 1959. Publicada no Diário Oficial
de 13 de outubro de 1959. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/
comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/comite-brasileiro-de-direitos-humanos-e-politica-
externa/ConvRepTrafPessLenoc.html. Acesso em: 10 mar. 2020.
154
318
Apesar de fazer referência ao tráfico de pessoas para fins de exploração sexual a Convenção. não traz um
conceito do que seria o tráfico de pessoas.
319
ONU. Convenção para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio: preâmbulo. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/comite-brasileiro-
de-direitos-humanos-e-politica-externa/ConvRepTrafPessLenoc.html. Acesso em: 10 mar. 2020.
320
A irrelevância do consentimento para a caracterização do tráfico é posteriormente adotada pelo Protocolo de
Palermo, que será mais adiante tratado. Mas é de extrema relevância já destacar essa percepção e disposição
na Convenção de 1949.
155
formulação e internacionalização das normativas por parte desses Estados. E ainda garante um
enfoque de combate à prostituição (que é considerada um mal e é imoral), juntamente com o
combate ao tráfico de pessoas, ainda que o deslocamento e o exercício da prostituição sejam
livres e voluntários. A adoção deste enfoque acaba por violar os direitos das pessoas que optem
livremente ou desejem migrar livremente para exercer essa atividade, mesmo que se trate de
pessoas adultas e a prostituição não seja forçada321.
Importante destacar ainda que a Convenção de 1949 limita a exploração do trabalho
apenas à esfera sexual, restringindo a identificação, persecução, atendimento e proteção das
vítimas para outras finalidades, como o trabalho forçado, casamentos forçados, adoção ilegal,
trabalho doméstico, entre outros.
Apesar da soma de esforços pela comunidade internacional para a repressão e sanção
desse delito, o baixo número de ratificações indicam o inexpressivo apoio à normativa322, talvez
pela terminologia ampla e confusa, pela ausência de mecanismos de repressão fortes e pela
repressão ao trabalho sexual exercido livremente.
Pode-se dizer que, de 1949 até os anos 2000, a configuração geopolítica do mundo
mudou consideravelmente323. Não cabe aqui analisar esse momento histórico do Pós-II Guerra
Mundial, início da chamada Guerra Fria, caracterizando a bipolaridade mundial, o fim da União
Soviética e da Alemanha Oriental, reconfigurando o mundo. Mas é importante compreender
que a revolução decorrente do fenômeno caracterizado como “globalização” afetou todas as
esferas da vida social e individual em grande parte dos Estados nacionais, principalmente depois
da década de 1970, quando o mundo passou por transformações políticas, econômicas, sociais
e culturais remodelando relações humanas, produzindo novas instituições e reconfigurando
novas lógicas.
O Estado-nação deixa de ser pensado somente a partir da ideia clássica de soberania e
do poder dela decorrente. Os processos econômicos, para além das fronteiras estatais, assentem
321
PISCITELLI, Adriana; VASCONCELOS, Marcia. Trânsitos. Cadernos Pagu, Campinas, n. 31, p. 12, 2008.
322
Dos 82 Estados-parte, somente 26 ratificações até 2019, menos da metade dos Estados-parte do sistema ONU.
ONU. Treaty Collections. International Agreement for the Suppression of the White Slave Traffic, signed
at Paris on 18 May 1904, amended by the Protocol signed at Lake Success, New York, 4 May 1949.
Disponível em: https://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=VII-7&
chapter=7&clang=_en#1. Acesso em: 20 mar. 2020.
323
Geopolítica pode ser definida como: “A geopolítica sempre se caracterizou pela presença de pressões de todo
tipo, intervenções no cenário internacional desde as mais brandas até guerras e conquistas de territórios.
Inicialmente, essas ações tinham como sujeito fundamental o Estado, pois ele era entendido como a única fonte
de poder, a única representação da política, e as disputas eram analisadas apenas entre os Estados. Hoje, esta
geopolítica atua, sobretudo, por meio do poder de influir na tomada de decisão dos Estados sobre o uso do
território, uma vez que a conquista de territórios e as colônias tornaram-se muito caras”. BECKER, Bertha K.
(2005). Geopolítica da Amazônia. Estudos Avançados, v. 19, n. 53, p. 71-86, 2005. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ea/v19n53/24081.pdf. Acesso em: 25 mar. 2020.
156
uma espécie de soberania econômica, uma vez que o Estado é incapaz de exercer controle sobre
atividades em espaço extraterritorial, diluindo a distinção entre mercado interno e externo324.
Nessa perspectiva, identifica-se uma incapacidade do Estado-nação de controle do crime e da
garantia da segurança por meio da perda do monopólio da violência física legitima325.
A revolução nos meios e formas de comunicação e transporte, na economia, nas
tecnologias, na política e nas relações sociais, também tem repercussões singulares no campo
do direito. Talvez mais do que em qualquer outra dimensão da vida social, o mundo jurídico se
viu obrigado a cruzar as fronteiras estatais e buscar respostas coletivas para problemáticas
coletivas326.
A globalização do crime internacional se dá pelos mesmos motivos que os das
instituições legítimas, seja pela possibilidade de inserir os seus produtos através do livre
comércio, seja pela diminuição da intervenção estatal, seja pelas brechas dos sistemas jurídicos,
visando sempre a obter lucro. Trocam-se técnicas de logística, mecanismos de comunicação e
até mesmo pessoas com a finalidade de obter melhores resultados. Atualmente, percebe-se que
a criminalidade, por menor que seja, não está totalmente desconectada das redes do crime
organizado. Nesse sentido, Shelley faz uma comparação interessante sobre as multinacionais e
os negócios criminosos transnacionais.
324
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1999. p. 73.
325
Ver em: GARLAND, David. As contradições da sociedade punitiva: o caso britânico. Revista de Sociologia e
Política, Curitiba, n. 13, p. 59-80, 1999; NUNES, Camila Caldeira. Da pulverização ao monopólio da
violência: expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista.
Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, 2011. p. 65.
326
TOURRAINE, Alain. Os novos conflitos sociais. Revista Lua Nova, São Paulo, n. 17, jun. 1989. Disponível
em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451989000200002. Acesso em: 10
maio 2020.
327
SHELLEY, Louise. A globalização do crime e do terrorismo. Disponível em: http://usinfo.state.gov/
journauls/itgic/2006/ijgp/shelley.htm. Acesso em 29 ago. 2020.
157
ligados a uma modalidade do crime organizado chegam a ser grandes e estáveis, as redes se
diversificam em outras modalidades, assim como aplicam em política, em investimento, como
faria qualquer grande empresa lícita328. O êxito das redes criminosas se baseia tanto na sua
mobilidade internacional como na sua capacidade de se aproveitar das fronteiras nacionais que
definem e estabelecem os limites da ação das autoridades locais329.
De outro lado, o aprimoramento do crime organizado reflete a insuficiência dos
mecanismos de enfrentamento tradicionais individuais de cada Estado, corroborando para a
necessidade de utilização de novas formas de combate ao crime organizado transacional através
da cooperação bilateral, regional e até multilateral, e ainda por meio da cooperação técnica
policial, tecnológica, econômica e de mecanismos de comunicação330.
Naím aponta três ideias que equivocadamente são postas quando se discute a questão
do comércio ilegal e do tráfico em geral331. A primeira se refere à ilusão de que não há nada de
novo, que o comércio ilícito representa uma antiga e permanente faceta e um inevitável efeito
secundário das economias de mercado ou do comércio em geral. Ele esclarece que essa visão
ignora as importantes transformações que ocorreram na década de 1990, principalmente na vida
política e econômica, juntamente com as tecnologias revolucionárias, assim como as reformas
para promover a economia de mercado que aumentaram as possibilidades e incentivos aos
traficantes. Além disso, a tecnologia ampliou o mercado geograficamente, diminuindo custos
de transporte, distâncias, relativizando a noção do tempo, como também ampliou as espécies
de produtos que antes não existiam. A segunda ideia apontada por Naím é que o comércio ilícito
não é mais uma manifestação de delinquência. As atividades delituosas globais estão
transformando o sistema internacional, invertendo as regras, criando novos agentes e
reconfigurando o poder na política e economia internacionais332. A terceira ideia é a concepção
328
GLENNY, Misha. McMáfia: crime sem fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
329
NAÍM, Moisés. Ilícito. Como traficantes, contrabandistas y piratas están cambiando el mundo. Barcelona:
Editora Debate, 2006. p. 26. Ver também em: HIRATA, Daniel; TELLES, Vera da Silva. Cidade e práticas
urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito. Revista Estudos Avançados, v. 21, n. 61,
2007. Dossiê “Crime Organizado”
330
DORNELAS, Luciano Ferreira. Tráfico de pessoa: cooperação jurídica internacional no combate ao tráfico.
Curitiba: Edição do Autor, 2012. p. 32-33.
331
NAÍM, Moisés. Ilícito. Como traficantes, contrabandistas y piratas están cambiando el mundo. Barcelona:
Editora Debate, 2006. p. 28.
332
Ibid., p. 20-21. “Gracias a al-Qaeda, hoy el mundo sabe lo que puede hacer una red de individuos fuertemente
motivados, no vinculados por lealtad a ningún país concreto, y potenciados por la globalización. El problema
es que el mundo sigue pensando en tales redes mayoritariamente en términos de terrorismo. Sin embargo, y
como mostrarán las páginas siguientes, el afán de beneficios puede constituir un elemento motivador tan
potente como Dios. Las redes de apátridas comerciantes en productos ilícitos están cambiando el mundo tanto
como los terroristas, y probamente incluso más.”
158
Para Foucault, o poder não se concebe como algo que existe por si só, de forma
independente334. Há relações de poder, e este se situa em todos os lugares, distribuído e sobre
toda a sociedade. O poder acontece como uma relação de forças; ele não pode ser localizado e
observado em uma instituição específica ou no Estado; assim como não se pode ceder poder a
um governante. Esse autor destaca também que é preciso não tomar o poder como um fenômeno
de dominação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre os outros ou de um grupo sobre os
outros. O poder não é algo que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detêm
exclusivamente e aqueles que não o possuem. “O poder deve ser analisado como algo que
circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali,
nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem.”335.
Segundo Foucault, existem relações de poder e não um poder uno/unitário. O poder não
está localizado em um ponto específico, mas distribuído. Ele age em todos os lugares, em todas
as pessoas, atores sociais, sobre toda a sociedade. O poder é a multiplicidade de correlações de
forças inerentes ao domínio que se exerce, e se constitui da sua organização; é o jogo que,
333
Id. “¿Como calificaríamos a una mujer que consigue proporcionar cierto bienestar material a su necesitada
familia en Albania o en Nigeria (ou até mesmo no Brasil) entrando en otro país ilegalmente (irregularmente) y
trabajando en la calle como prostituta o como vendedora ambulante de productos falsificados?” (grifo nosso).
334
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 13. edição. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
335
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. 13. edição. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
159
336
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 13. edição. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p. 88-92.
337
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. p.258.
338
SANTO, Davi do Espírito. Criminalidade organizada transnacional: a genealogia de um discurso de poder.
Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v. 7, n. 3, 3º quadrim. 2012. Disponível em:
www.univali.br/direitoepolitica - ISSN 1980-7791. Acesso em: 20 jul. 2017.
339
TEIXEIRA, Alessandra. Construir a delinquência, articular a criminalidade: um estudo sobre a gestão dos
ilegalismos na cidade de São Paulo. Tese (Doutorado em sociología) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, 2012. p. 199.
340
Id., SANTO.
160
locais341. Reconfigura-se um Estado novo, chamado de Estado penal com nova aparência e
novas práticas e discursos que reforçam a criminalização primária, com novas leis penais e
inovadoras técnicas de enfrentamento de novas questões criminais.
Dessa maneira, a categorização do crime organizado transnacional leva à internalização
de determinadas políticas criminais que, talvez, se fossem criadas em outro momento histórico,
teriam outra configuração e valorizariam outros ilegalismos.
Toda a argumentação sobre poder e ilegalismos não é feita para defender que o tráfico
de pessoas não deva ser criminalizado. O que está em tensionamento é a compreensão de que a
criminalização do tráfico de pessoas como uma espécie do crime organizado transnacional é
uma categoria política, ou seja, resultante de escolhas políticas feitas pelos Estados e que foi
levada à ONU para essa regulamentação.
Essas escolhas políticas tiveram, têm e terão consequências sobre a criminalização do
tráfico, especialmente sobre as políticas de segurança internacional e questões relacionadas à
mobilidade humana. A escolha de uma estrutura criminal para o tratamento de questões
relacionadas à mobilidade humana traz reflexos evidentes no delineamento do enfoque e
abordagem das políticas internacionais que tangenciam a questão migratória e principalmente
os direitos das pessoas envolvidas.
A escolha do tráfico de pessoas como um crime organizado transnacional, pois,
certamente não foi aleatória ou desprovida de interesses e responsabilidades. Embora tenham
havido resistências nas negociações, o lobby de determinadas delegações342 foi fundamental
para dar forma às decisões da Assembleia Geral343.
A escolha do tráfico de pessoas como um ilegalismo ligado ao crime organizado
transnacional é fundamental para compreender a configuração do regime internacional de
enfrentamento ao tráfico de pessoas e verificar, nos casos concretos de Brasil e Espanha, se
esses estados estão a caminho da construção de um regime com enfoque em direitos humanos.
341
BERNET, Olivier; TARRIUS, Alain Tarrius; BERNET, Olivier. Migrants internationaux et nouveaux réseaux
criminels. Transcontinentales, v. 8/9,| 2010. Disponível em: http://transcontinentales.revues.org/ 185. Acesso
em: 23 abr. 2017.
342
Em particular as delegações argentina, austríaca e italiana. Ver em: DIAS, Guilherme Mansur. Notas sobre as
negociações da “Convenção do Crime” e dos Protocolos Adicionais sobre Tráfico de Pessoas e Contrabando
de Migrantes. REMHU - Rev. Interdisciplinar Mobilidade Humana, Brasília DF, Ano XXIII, n. 45, p. 219,
jul./dez. 2015
343
DIAS, Guilherme Mansur. Migração e crime: desconstrução das políticas de segurança e tráfico de pessoas.
Tese (Doutorado Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, 2014. p. 44.
161
Analisando as proposições feitas nos Congressos das Nações Unidas organizados pela
sua Assembleia, a essência ideológica é a da defesa social, mesmo que os títulos dos Congressos
abordassem reflexões acerca do “Tratamento dos Criminosos”. Preponderaram as propostas
repressivas, em detrimento daquelas que desejavam tratamento adequado às populações
criminalizadas.
No Primeiro Congresso das Nações Unidas Sobre Prevenção do Crime e Tratamento de
Criminosos, 1955, os debates se centraram no tratamento dos delinquentes e reclusos menores
de idade344. No Segundo Congresso, em 1960, foram formuladas recomendações acerca da
cooperação entre as polícias nacionais, tendo em vista a prevenção da delinquência de menores.
O Terceiro Congresso, em 1965, e o Quarto, em 1970, analisaram a relação entre a
criminalidade e as mudanças sociais. As negociações para a elaboração da Convenção das
Nações Unidas contra a Delinquência Organizada Transnacional e seus Protocolos começam
efetivamente a partir do Quinto Congresso das Nações Unidas Sobre Prevenção do Crime e
Tratamento de Criminosos, em 1975. Desse Congresso resulta a Declaração sobre a Proteção
de Todas as Pessoas contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou
Degradantes, e se discute sobre: crimes relacionados com obras de arte e outras propriedades
culturais; criminalidade associada ao alcoolismo e ao uso de drogas; a violência interpessoal;
criminalidade associada à migração; a fuga de desastres naturais e hostilidades; e criminalidade
feminina e terrorismo. Assim, foram considerados como “delinquência transnacional”: os
ilícitos penais de caráter financeiro (delito como negócio), a corrupção de funcionários
públicos, os crimes que afetam obras de arte e outros bens culturais, os delitos relacionados ao
abuso do álcool, ao consumo e ao tráfico de drogas, os crimes de trânsito, os vinculados à
migração e o terrorismo.
No Sexto Congresso, em 1980, os debates giraram em torno das estratégias de prevenção
fundadas nas circunstâncias sociais, culturais, políticas e econômicas dos países.
344
BRASIL. Câmara dos Deputados. Primeiro Congresso das Nações Unidas Sobre Prevenção do Crime e
Tratamento de Criminosos. http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-
permanentes/cdhm/comite-brasileiro-de-direitos-humanos-e-politica-externa/DirPrisDet.html. Acesso em: 1
maio 2017.
162
345
VLASSIS, D. The Global situation of transnational organized crime: the decision of the international
community to develop an international convention and the negotiation process. (Resource Material Serie n.
59). Disponível em: https://www.unafei.or.jp/publications/pdf/RS_No59/No59_33VE_Vlassis2.pdf. Acesso
em: 20 maio 2020.
346
Id.
347
BASSIONI, M. Cherif; VETERE, Eduardo. Organized crime: a compilation of U.N.: documents 1975-1998.
New York: Transnational Publishers. XVIII e Resolução 22/1992.
163
com A Declaração Política de Nápoles e o Plano de Ação Global contra o Crime Organizado
Transnacional.
No Nono Congresso, em 1995, um dos temas centrais tocou diretamente no assunto
Criminalidade Transnacional: “Medidas contra a delinquência organizada econômica de âmbito
nacional e transnacional e o papel do direito penal na Proteção do Meio Ambiente: experiências
e cooperação internacional”.
Com o Décimo Congresso, em 2000, fecha-se o “ciclo das definições” acerca da
Criminalidade Transnacional, ao se tratar da corrupção como modalidade de delinquência
organizada transnacional. A incorporação das questões de mobilidade de grupos humanos à
discussão do crime organizado foram coligadas em discussões sobre máfia e crime organizado
transnacional, e se sugeriu que fossem negociados separadamente, sendo pinçados e eleitos para
serem tratados naquelas discussões de cooperação internacional em matéria criminal: o
Protocolo contra a fabricação e uso ilícito de armas de fogo, o Protocolo contra o tráfico ilícito
de migrantes e o Protocolo para prevenir, suprimir e punir o tráfico de pessoas348.
O Protocolo contra a fabricação e uso ilícito de armas de fogo já era um tema com
acúmulo de discussões na Divisão de Prevenção e Justiça Criminal da ONU, motivo pelo qual
se decidiu pela sua discussão em conjunto com a Convenção Transnacional349.
Por sua vez, o tema do Protocolo relativo ao tráfico de pessoas foi incorporado
inicialmente por costuras políticas e articulações prévias com grupos de pressão específicos
feitos pela Argentina, que há algum tempo tentava elaborar uma Convenção contra o tráfico de
menores, sem sucesso, no âmbito da Convenção sobre os Direitos das Crianças350.
A inclusão do Protocolo contra o Tráfico Ilícito de Migrantes - também chamado de
contrabando de migrantes, deve-se às ações dos governos austríaco e italiano. A Áustria e a
Itália se encontravam em um momento de recebimento de volume considerável de imigrantes
(seja do leste, em decorrência da queda do regime socialista, além do aumento de solicitações
de refúgio e asilo por pessoas que fugiam da antiga Iugoslávia ou de imigrantes cruzando o
mediterrâneo em barcos e pateras, vindos principalmente de países africanos, e do Oriente
Médio). Nesse sentido, todas as mudanças passadas pela Europa na década de 1990 levaram a
uma equivocada associação dos estrangeiros ao aumento da criminalidade na região, o que
348
DIAS, Guilherme Mansur. Migração e crime: desconstrução das políticas de segurança e tráfico de pessoas.
Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP. 2014. p.
37.
349
Id.
350
Id.
164
Nesse sentido, coincide a pesquisa de Carballo, quando afirma que realizar uma
aproximação histórica sobre o tráfico de pessoas permite entender porque as normas existentes,
fundamentalmente punitivas e criminalizantes, não incidem sobre o fim do problema do tráfico
de pessoas, problema fundante das sociedades capitalistas que muitas vezes permitem a
exploração das pessoas em benefício lucro351.
Os dois Congressos que se seguem pouco agregam à definição de Criminalidade
Transnacional, em 2005 e 2010, sobre as diretrizes para fortalecer os diversos sistemas de
justiça penal mediante coordenação e cooperação internacional, especialmente no que se refere
à delinquência organizada transnacional, os crimes financeiros, a corrupção, o tráfico de drogas,
armas, o terrorismo, entre outros352.
351
CARBALLO, Marta de la Riva. Trata de personas: consideraciones históricas y jurídicas: estructuras,
institución y sistemas de explotación. Tese Doctoral. 2017. p. 32.
352
UNODC. Congressos das Nações Unidas sobre Prevenção ao Crime e Justiça Criminal (1955-2010): 55
anos de conquistas. Disponível em: http://www.unis.unvienna.org/pdf/2010-Crime_Congress/Portugese_
Poster_Book.pdf. Acesso em: 25 abr. 2017.
353
UNODC. United Nations Convention against Transnational Organized Crime and the Protocols Thereto.
Disponível em: http://www.unodc.org/unodc/en/treaties/CTOC/index.html. Acesso em: 25 abr. 2017.
166
atividades criminosas em mais de um Estado; ou d) for cometida num só Estado, mas produza
efeitos substanciais noutro Estado354.
Há entendimentos de que existem lacunas terminológicas causadas pela amplitude da
expressão “criminalidade organizada”, dando margem para questionamentos quanto à sua
aplicabilidade; e, de outro lado, que a abertura conceitual é intencionalmente funcional: serviria
para abranger uma multiplicidade de atividades de grupos criminosos organizados, em
detrimento da legalidade formal, ou seja, presta-se a legalizar práticas autoritárias e
reducionistas de garantias fundamentais e a mascarar violações aos direitos humanos355.
Um exemplo desses entendimentos da abertura conceitual funcional é a ausência de
previsão das modalidades ilícitas transterritoriais, como o terrorismo de Estado, as políticas
capitalistas predatórias praticadas sob o manto da legalidade, o genocídio dos sistemas
prisionais, os crimes ambientais, os crimes contra as relações de consumo, no conceito de crime
organizado transnacional356.
Nessa linha argumentativa de que houve uma limitação no campo do enquadramento
das modalidades de crime organizado transnacional, verifica-se o sucesso ideológico e de
mercado da incorporação da criminalidade transnacional aos discursos de poder e às
justificativas de expansão dos sistemas penais nacionais. Ao mesmo tempo em que se ampliam
as ações repressivas voltadas à criminalidade comum, agora adjetivada de organizada e
transnacional, também se expandem os círculos dos privilégios e das intangibilidades, uma vez
que outras grandes questões do mundo global não são vistas como questões criminais
transacionais. Fizeram-se escolhas, determinadas pelos jogos de forças daquele momento,
conforme apontado anteriormente357.
No ano 2000, convencionam-se três modalidades de crime organizado transnacional:
tráfico de pessoas, especialmente mulheres e crianças, luta contra a fabricação e tráfico de armas
e drogas e contrabando de migrantes, de acordo com a convenção internacional (Convenção de
Palermo) e três protocolos adicionais (Protocolos de Palermo):
354
CONVENÇÃO das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5015.htm. Acesso em: 25 abr. 2017.
355
SANTO, Davi do Espírito. Criminalidade organizada transnacional: a genealogia de um discurso de poder.
Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v. 7, n. 3, 3º quadrim. 2012. Disponível em: www.univali.br/
direitoepolitica.
356
Id.
357
SANTO, Davi do Espírito. Criminalidade organizada transnacional: a genealogia de um discurso de poder.
Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v. 7, n. 3, 3º quadrim. 2012. Disponível em: www.univali.br/
direitoepolitica.
167
358
Promulgada pelo Brasil em 12 de março de 2004, com o Decreto n° 5.015.
359
Foi promulgado pelo Brasil em 26 de outubro de 2006, com o Decreto no 5.941.
360
Promulgado pelo Brasil em 12 de março de 2004, com o Decreto nº 5.017.
361
Foi promulgado pelo Brasil em 12 de março de 2004, com o Decreto nº 5.016.
168
362
Importante destacar que as consequências das ambiguidades ou falta de clareza conceitual existente em termos-
chave do Protocolo (“exploração da prostituição de outrem” ou “outras formas de exploração sexual”,
“servidão”, “outras formas de coerção”, “abuso de poder” ou de posição de vulnerabilidade” podem ser
instrumentalizados em função de interesses particulares dos Estados que ratificaram, direcionando à repressão
à imigração indocumentada e à prostituição). Ver em: PISCITELLI, Adriana; VASCONCELOS, Marcia.
Apresentação. In: PISCITELLI, Adriana; VASCONCELOS, Marcia. (org.) Trânsitos. Cadernos Pagu,
Campinas, n. 31, p. 14, jul.-dez. 2008. Ver em: ICMPD. JORNADAS TRANSATLÂNTICAS. Disponível em:
https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos-pesquisas/
jornadastransatlanticas.pdf. Acesso em: 15 abr. 2020.
363
O Protocolo de Palermo considera “criança” qualquer pessoa com idade inferior a 18 anos.
169
Convenção das Nações Unidas de 1949, que tinha uma perspectiva mais moralizante sobre a
prostituição364. Importante ressaltar que, apesar de as referências gerais aos direitos humanos
que devem ser garantidos, o Protocolo faz pouco progresso no detalhamento dos direitos das
vítimas e como eles devem ser implementados pelos Estados.
364
PISCITELLI, Adriana. VASCONCELOS, Marcia. Apresentação In: PISCITELLI, Adriana; VASCONCELOS,
Marcia. (org.) Trânsitos. Cadernos Pagu, Campinas, n. 31, p. 13, jul.-dez. 2008.
170
Consentimento é considerado
irrelevante.
O consentimento é considerado
Vítima nunca dá o seu válido, apesar das condições da
consentimento de forma livre. migração irregular apresentar uma
Consentimento Quando consente, é por meio de série de riscos, perigos e condições
coerção, engano ou condição de degradantes. O traficante intermedia
abuso contra ela. esse processo migratório e recebe pelo
serviço (em dinheiro ou espécie).
A migração pode ser regular ou
irregular.
Apesar da distinção teórica evidente entre os dois fenômenos, nem sempre é tão simples
os diferenciar. A prática, o diálogo com as organizações da sociedade civil e o discurso dos
próprios migrantes indicam que eles se confundem e se transmutam. Essa percepção nem
sempre é evidente, e muitas vezes é percebida por aqueles que atuam diretamente com os
migrantes e vítimas de tráfico de pessoas. O que inicialmente pode ser começado como um
processo de contrabando de migrantes, no decorrer do deslocamento, muitas vezes longo, pode
se modificar para uma situação de tráfico de pessoas, com a exploração destas pessoas no
trânsito e no destino. Isso ocorre, principalmente, com mulheres e crianças. A entrevista de
Jasmin, descrita no Capítulo 2, mostra bem essa situação. Ela inicialmente saiu da Nigéria em
direção à Europa por meio de intermediários que possibilitariam esse destino. Já no trajeto,
passou por inúmeras violências e explorações. Quando da chegada à Espanha, continuou sendo
explorada por uma rede de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual.
O conjunto de normativas surge como forma de responder aos novos desafios do cenário
internacional pós-guerra fria e a passos globalizados, inserido no marco do crime organizado
transnacional. Nesse sentido, o Protocolo de Palermo permitiu o início da organização da
articulação de um regime internacional contra o tráfico de pessoas para além da dimensão
sancionadora e tradicional, como disposta na Convenção de 1949365, para uma dimensão mais
multidimensional, com enfoque migratório, de direitos humanos, criminal, do trabalho, de
segurança e de gênero. Ainda que o Protocolo de Palermo não tenha sido pensado e não seja
entendido como um documento internacional de origem nos direitos humanos (mas sim de
política criminal), ele permite o desenvolvimento dessa dimensão e o entendimento de que se
deve garantir proteção e atenção às vítimas, inclusive com a participação de diversos atores
governamentais, de organizações intergovernamentais e de organizações da sociedade civil. De
fato, como se verá, por exemplo, o Conselho da Europa caminhou nessa direção, com a
Convenção do Conselho da Europa sobre a Luta contra Seres Humanos (2005), também
conhecida como Convenção de Varsóvia 366, e a criação do Grupo de Expertos contra o Tráfico
de Seres Humanos do Conselho da Europa (GRETA) e o Comitê de Partes367.
Mesmo verificando que o Protocolo de Palermo determina que os Estados se
comprometam com a prevenção ao crime do tráfico de pessoas, a proteção e assistência às
365
Exploração sexual e prostituição forçada.
366
CONSELHO DA EUROPA. Convenção do Conselho da Europa sobre a Luta contra Seres Humanos.
2005. Disponível em: https://rm.coe.int/CoERMPublicCommonSearchServices/DisplayDCTMContent?
documentId=090000168064899a. Acesso em: 15 jun. 2020.
367
A Convenção de Varsóvia tem total adesão dos 47 membros do Conselho da Europa. Disponível em: https://
www.coe.int/en/web/conventions/full-list/-/conventions/treaty/197/signatures?p_auth=C8VCXTSf. Acesso
em: 15 jun. 2020.
172
vítimas e repressão dos traficantes, o chamado “Triplo P”: Persecução, Proteção e Prevenção,
é importante destacar o desequilíbrio entre as ações pensadas no âmbito da proteção e
assistência às vítimas de tráfico e aquelas destinadas a estabelecer medidas de cooperação entre
autoridades estatais para a persecução do crime e punição dos agentes criminosos. Isso fica
bastante claro ao analisar o Protocolo de Palermo, que dentre 20 artigos somente dedica o artigo
6 para a atenção e proteção das vítimas de tráfico.
Analisando as atas de negociação dos Travaux Préparatoirs do Protocolo de Palermo,
percebe-se o desequilíbrio entre as discussões de medidas de proteção e assistência e aquelas
destinadas à criminalização do tráfico de pessoas. Essas contendas surgiram mais como uma
reação às discussões criminais do que como um enfoque particular e cuidadoso sobre o tema368.
De todas as formas, o Protocolo de Palermo é considerado o principal instrumento
jurídico e de compromisso político em nível mundial para combater o tráfico de pessoas,
contribui para situar a temática na agenda global, definir e marcar diretrizes internacionais de
mínimos consensuados sobre os quais os atores internacionais, Estados e comunidade
internacional devem atuar no sentido de combater o tráfico. É oportuno mencionar que
atualmente 178 Estados ratificaram esse documento internacional, demonstrando a sua
relevância e aceitação para o consenso mundial369, inclusive se comprometendo-se a
internalizar e desenvolver os elementos conceituais internos necessários para responder ao
enfrentamento do tráfico de pessoas.
É inegável dizer que o Protocolo estimulou o desenvolvimento de um marco global
contra o tráfico de pessoas gerando um compromisso dos Estados alicerçado no objetivo de
prevenir, perseguir, proteger as vítimas e cooperar internacionalmente. Todavia, ainda há longo
caminho a ser percorrido. O grande desafio da erradicação do tráfico de pessoas depende das
ações práticas e políticas públicas desenvolvidas internamente. O próximo capítulo
desenvolverá dois estudos de caso: o enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil e na
Espanha, olhando com mais foco a dimensão da proteção e assistência às vítimas. Nele se
verificará em que medida esses dois países estão conseguindo cumprir o desafio do
enfrentamento ao tráfico de pessoas com enfoque em direitos.
Se o Protocolo de Palermo foi o grande start para o desenvolvimento do marco global
de enfrentamento ao tráfico de pessoas, outros espaços institucionais foram e são de extrema
368
GALLANGHER, Anne. Trafficking, smuggling and human rights: tricks and treaties. Forced Migration
Review, n. 12, p.26, Jan. 2002. Disponível em: https://www.fmreview.org/sites/fmr/files/FMRdownloads/
en/development-induced-displacement/gallagher.pdf. Acesso em: 15 maio 2020.
369
O Protocolo de Palermo conta com 178 ratificações. Ver em: https://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?
src=UNTSONLINE&mtdsg_no=XVIII-12-a&chapter=18&clang=_en. Acesso em: 23 jul. 2020.
173
Em 2004, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas 370 criou a figura do
Relator Especial sobre Tráfico de pessoas, especialmente mulheres e crianças, com mandato de
três anos, para focalizar a atenção aos aspectos de direitos humanos das vítimas371. O Relator
Especial tem a função de: a) Agir sobre as violações cometidas contra as vítimas de tráfico de
pessoas e sobre as situações em que ocorreu uma falha na proteção de seus direitos humanos
por meio de denúncias individuais; b) Realizar visitas aos países para estudar a situação in loco
e formular recomendações destinadas a prevenir e/ou combater o tráfico e proteger os direitos
humanos de suas vítimas em países e regiões específicos; e c) Apresentar relatórios anuais sobre
as atividades do mandato372.
Desde o início, fica muito claro que a Relatoria Especial teria como marco central de
seus mandatos os aspectos de direitos humanos das vítimas de tráfico. E assim, demarcam dois
princípios básicos que orientam a ação dos trabalhos: a) que os direitos humanos das pessoas
traficadas estariam no centro de todo trabalho para combater o tráfico de pessoas e proteger e
prestar assistência e reparação às vítimas; e b) que medidas de combate ao tráfico não
prejudicassem os direitos humanos e a dignidade das pessoas afetadas.
O primeiro relatório informa que, ao interpretar as disposições do Protocolo de Palermo
e as usar como base à formulação de suas recomendações, a Relatoria Especial tomaria como
370
A Comissão de Direitos Humanos da ONU foi transformada em Conselho de Direitos Humanos das Nações
Unidas a partir de 2006. É um órgão intergovernamental dentro do sistema das Nações Unidas, composto por
47 estados responsáveis pela promoção e proteção de todos os direitos humanos em todo o mundo.
CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS DA ONU. Os órgãos de direitos humanos. Disponível em:
https://www.ohchr.org/SP/HRBodies/Pages/HumanRightsBodies.aspx. Acesso em: 20 jun. 2020.
371
OFICINA DO ALTO COMISSARIADO DOS DIREITOS HUMANOS. Relatório E/CN.4/2005/71 da
Relatora Especial sobre tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças. p. 4. Disponível em:
https://www.ohchr.org/SP/Issues/Trafficking/Pages/annual.aspx. Acesso em: 15 jun. 2020.
372
O Relator Especial apresenta duas espécies de relatórios anuais: Um no âmbito do Conselho de Direitos
Humanos (HRC) e; outro no âmbito da Assembleia Geral das Nações Unidas. Os relatórios dos relatores
especiais estão disponíveis em: OFICINA DO ALTO COMISSARIADO DOS DIREITOS HUMANOS.
Relatórios anuais Relator Especial do Tráfico de Pessoas, em especial mulheres e crianças. Disponível em:
https://www.ohchr.org/SP/Issues/Trafficking/Pages/annual.aspx. Acesso em: 15 jun. 2020.
174
373
OFICINA DO ALTO COMISSARIADO DOS DIREITOS HUMANOS. Relatório E/CN.4/2005/71da
Relatora Especial sobre tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças. Disponível em:
https://www.ohchr.org/SP/Issues/Trafficking/Pages/annual.aspx. Acesso em: 15 jun. 2020.
374
Ver Relatórios Relatoria Especial em tema de tráfico de pessoas no âmbito do Conselho de Direitos Humanos
das Nações Unidas (Apêndice 5).
175
375
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório A/HRC/10/16 da Relatoria Especial sobre o
tráfico de pessoas. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G09/111/31/PDF/
G0911131.pdf?OpenElement. Acesso em: 15 jun. 2020.
376
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório E / CN.4 / 2005/71 da Relatoria Especial sobre
o tráfico de pessoas. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G04/169/31/
PDF/G0416931.pdf?OpenElement. Acesso em: 15jun. 2020. Ver também em ALTO COMISSARIADO DAS
NAÇÕES UNIDAS. Relatório A/HRC/23/48 da Relatoria Especial sobre o tráfico de pessoas: Disponível
em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G13/122/85/PDF/G1312285.pdf? OpenElement.
Acesso em: 15 jun. 2020.
176
377
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório A/HRC/10/16 da Relatoria Especial sobre o
tráfico de pessoas. Disponível em https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G09/111/31/PDF/
G0911131.pdf?OpenElement. Acesso em: 15 jun. 2020.
178
A OIT, criada anteriormente à ONU, em 1919, pelo Tratado de Versailles, surgiu com
a intenção de garantir a paz universal e justiça social, melhorar as condições de trabalho do
maior número de pessoas e a adoção de um regime de trabalho humano pelas nações. Em suma,
proteger os indivíduos sob as condições de trabalho, numa perspectiva maior da garantia de
direitos humanos fundamentais. Ela se caracteriza por fomentar e criar o Direito Internacional
do Trabalho baseada na ideia do universalismo do direito dos trabalhadores, conforme a qual
os direitos trabalhistas são universais378.
Importante verificar que a OIT, mesmo desenvolvendo as suas atividades na intenção
de garantir os direitos dos trabalhadores, está inserida no contexto de avalizar os direitos
humanos fundamentais das pessoas, comprovando que atuar na particularidade da proteção
possibilita maior especificidade e intensidade na garantia de proteção379. Há que se ressaltar
que as suas Convenções garantem a definição de direitos e normativas mínimas gerais para
serem internalizadas no plano nacional, enquanto as Recomendações possuem a função de
produzir efeitos que se limitam a servir de guia na formulação de políticas, legislação e
atividades praticadas no país380. A ratificação das Convenções da OIT gera para o Estado-
378
SEITENFUS, Ricardo. Manual das organizações internacionais. 6. ed., rev., atual e ampliada. Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2016.
379
Pode-se verificar que os artigos 7º e 8º do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, da
ONU, reconhecem, de forma generalizada, o direito de toda pessoa de gozar de condições de trabalho justas e
favoráveis, cabendo à OIT a criação de normas internacionais específicas para garantir esse direito, conforme
as suas 185 Convenções. A título de exemplo, citam-se: Convenção sobre a discriminação (emprego e
ocupação) nº 111, Convenção sobre a igualdade de remuneração nº 100, Convenção Liberdade sindical e
proteção do direito de sindicalização nº 87, Convenção contra o trabalho forçado nº 29, Convenção sobre o
direito de sindicalização e negociação coletiva nº 98, Convenção contra as Piores Formas de Trabalho Infantil
nº 182, entre outras. Convenções disponíveis no site da OIT: http://www.ilo.org/public/spanish/
standards/index.htm.
380
OIT. El impacto de los convenios y recomendaciones internacionales del trabajo. Giniebra: Oficina
Internacional Del Trabajo, 2000. p. 11
180
381
SÜSSEKIND, Arnaldo. Convenções da OIT. São Paulo: LTr, 1994.
382
Todos esses direitos já estavam expressos em normas da própria OIT. Liberdade sindical: Convenção nº 87,
Liberdade de negociação coletiva: Convenção nº 98, Eliminação do trabalho forçado ou obrigatório:
convenções nº 29 e 105, Eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação: convenções nº 100
e 111, Abolição do trabalho infantil: convenções nº 138 e 182.
383
As obrigações são positivas quando o Estado deve dar ou fazer alguma coisa e negativas, quando concretizam
numa abstenção do Estado. No caso dos direitos sociais, econômicos e culturais, para a sua efetivação é
necessário que o Estado garanta, por meio de ações, de políticas públicas, a sua concretização; por isso se diz
que a efetivação desses direitos exige uma obrigação positiva por parte do Estado.
384
ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. Editorial
Trotta, Buenos Aires, 2002.
181
385
A Convenção 182 e seu Protocolo 190 foram adotados pela OIT em 17 de junho de 1999, passando a vigorar
internacionalmente em 19 de novembro de 2000.
386
Ver NOGUCHI, Yoshie. ILO Convention no 182 on the worst forms of child labor and the Convention on the
Rights of the Child. The International Journal of Childrens´ Rights, Amsterdam, 2002. p. 358-359.
387
Tratar-se-á como criança toda pessoa menor de 18 anos, conforme estabelece a Convenção 182 da OIT.
182
sexual como uma forma de trabalho, ainda que se possa compreender a prostituição de pessoas
adultas como atividade laboral possível388.
Assim, o grande fundamento para que a OIT trate sobre a questão do tráfico de crianças
é a proteção aos direitos humanos na infância, combatendo a imagem da criança como infratora
e afirmando a sua condição de vítima da exploração e da omissão da comunidade internacional,
do Estado e da sociedade.
A Convenção 182 da OIT expressa em seu preâmbulo que
o trabalho infantil é em grande parte causado pela pobreza” e que há a
‘necessidade de adotar novos instrumentos para a proibição e eliminação das
piores formas de trabalho infantil, prioridade de ação nacional e
internacional, incluídas a cooperação e assistência internacionais [...]’, assim
como “a eliminação efetiva das piores formas de trabalho infantil requer uma
ação imediata e abrangente que leve em conta a importância da educação
básica gratuita e a necessidade de liberam de todas essas formas de trabalho
as crianças afetadas e assegurar a sua reabilitação e sua inserção social ao
mesmo tempo em que são atendidas as necessidades de suas famílias.
388
GUTIERREZ, Ana Luisa Ordóñez. Feminismo y prostitución: fundamentos del debate actual en España.
Oviedo: Trabe, 2006. Colección Gaudiosa.
389
SEN, Amartya. Development as freedom. Nova York: Alfred A. Knopf, 1999. “The denial of economic
freedom, in the form of extreme poverty, makes a person vulnerable to violations of other forms of freedom.”
183
Mais uma vez, fica explícita a intenção dessa Convenção em recomendar a elaboração
de políticas públicas, o que não se resume meramente a definir as piores formas de trabalho
infantil, mas que chama principalmente o Estado, os empregadores e os trabalhadores à
responsabilidade de construírem juntos, e de forma programada, ações para eliminar, combater
e prevenir as piores formas de trabalho infantil. Pode-se argumentar que essa forma de elaborar
um documento de forma proativa, em que a mera descrição das garantias não atende às
necessidades efetivas, está muito bem-inserida dentro do novo contexto dos direitos
internacionais de direitos humanos, que percebe o Estado não mais como um mero
“respeitador” de garantias (direitos civis), mas um formulador, articulador e garantidor ativo
dessas garantias (direitos sociais), através de ações concretas.
Os Estados devem estabelecer mecanismos nacionais apropriados para vigiar a
aplicação das disposições nacionais sobre a proibição e eliminação do trabalho infantil. A
legislação nacional e a autoridade competente devem determinar quem será responsabilizado,
em caso de não cumprimento das disposições nacionais a respeito do tema.
Outros documentos importantes nesse contexto do trabalho forçado são: a Convenção
nº 29/1930 (Convenção sobre o Trabalho Forçado)390 e a Convenção nº 105 (Convenção
Abolição do Trabalho Forçado)391. Aquela obriga todos os Estados-Membro que a ratifiquem a
suprimir o emprego do trabalho forçado ou obrigatório sob todas as suas formas, no mais curto
prazo possível. A Convenção estabelece que trabalho forçado é "todo trabalho ou serviço
exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual ela não se tenha oferecido
espontaneamente." Essa outra convenção estabelece que os Estados-Membro que a ratifiquem
se comprometem a suprimir o trabalho forçado ou obrigatório.
A Convenção nº 97 da OIT, Trabalhadores Migrantes (1949), também aparece no
contexto da proteção dos trabalhadores que se encontrem em mobilidade392.
390
Convenção ratificada no Brasil pelo Decreto n. 41.721, de 25.6.57.OIT. Convenção n.29/1930. Disponível em:
https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235021/lang--pt/index.htm. Acesso em: 15 jul. 2020.
391
Convenção ratificada no Brasil pelo Decreto n. 58.822, de 14.7.66. OIT Convenção n. 105/1957. Disponível
em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235195/lang--pt/index.htm. Acesso em: 15 jul. 2020.
392
OIT. Convenção Trabalhadores Migrantes. 1949. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/comite-brasileiro-de-direitos-humanos-e-politica-
externa/ConvOITTrabMig.html. Acesso em: 15 jul. 2020.
184
393
OIT. Constituição. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilo-
brasilia/documents/genericdocument/wcms_336957.pdf. Acesso em: 20 ago. 2020.
185
proteção das relações de trabalho das pessoas, estejam elas ou não em processo de mobilidade
humana e, assim, evitando situações e condições laborais que exponham as pessoas à
vulnerabilidades e relações laborais forçadas e desumanas.
394
OIM. Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e
dos Membros das suas Famílias. 1990. Disponível em: https://www.oas.org/dil/port/1990%20Conven%
C3%A7%C3%A3o%20Internacional%20sobre%20a%20Protec%C3%A7%C3%A3o%20dos%20Direitos%2
0de%20Todos%20os%20Trabalhadores%20Migrantes%20e%20suas%20Fam%C3%ADlias,%20a%20resolu
%C3%A7%C3%A3o%2045-158%20de%2018%20de%20dezembro%20de%201990.pdf. Acesso em: 15 jul.
2020.
395
OIM. Webnario de presentación del diagnóstico sobre la situación e incidencia de la trata de personas en
contextos humanitarios en América del Sur. 2020. Disponível em: https://robuenosaires.iom.int/ciclo-de-
webinarios-trata-de-personas-en-tiempos-de-covid-19. Acesso em: 30 jul. 2020.
186
precariedade potencializa o tráfico de pessoas, uma vez que as redes de tráfico encontram um
cenário ideal para captar vítimas, em função das vulnerabilidades vivenciadas.
Um dos enfoques dado ao tráfico de pessoas é o de ordem pública, que tem como
centralidade o Estado e procura controlar os fluxos migratórios justificando com a proteção de
potenciais vítimas de tráfico. Esse enfoque vulnerabiliza ainda mais as vítimas de tráfico, e
expõe os migrantes à intensificação de situações de vulnerabilidade vivenciadas. Percebe-se
uma criminalização dos migrantes em nome do controle da delinquência organizada
transnacional. Verifica-se uma perspectiva criminal e de securitização das migrações. Essa
perspectiva de enfoque de ordem pública é garantida pelo Protocolo de Palermo. A OIM possui
importância fundamental para promover diagnósticos e fomentar ações dos Estados, no sentido
de garantir os direitos dos migrantes, descontruindo esse enfoque criminalizante.
No contexto da mobilidade humana forçada, volta-se o foco para o ACNUR, que tem
como meta o bem-estar das pessoas que buscam, solicitaram ou obtiveram proteção
internacional por meio de refúgio. Essas pessoas estão protegidas pela Convenção Relativa ao
Estatuto dos Refugiados (1951)396. São pessoas que estão em outro país e que não podem
retornar ao seu país por estarem sendo perseguidas, e temendo serem perseguidas por motivos
de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, encontram-se fora do país
de sua nacionalidade e não podem ou, em virtude desse temor, não querem se valer da proteção
desse país, ou que, se não têm nacionalidade e se encontram fora do país no qual tinham
residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não podem ou, devido ao referido
temor, não querem voltar a ele.
Embora o ACNUR não se preocupe especialmente com as vítimas de tráfico de pessoas,
as que foram traficadas para outro país podem estar em risco se forem obrigadas a retornar ao
seu país de origem. Elas podem ter escapado de seus traficantes e dado informações à polícia
ou provas no tribunal. Isso poderia muito bem colocá-las em risco de violência ou mesmo de
serem novamente recrutadas. Em alguns países, as pessoas traficadas podem estar sob risco das
autoridades ou de suas próprias famílias.
396
ACNUR. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951). Disponível em: https://www.acnur.org/
fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf. Acesso em: 20
jul. 2020.
187
Portanto, é possível que algumas dessas pessoas possam ter direito ao status de
refugiado não por terem sido traficadas no passado, mas pelos riscos que enfrentarão no futuro
se forem obrigadas a voltar para casa, o que pode estar relacionado ao fato de foram traficados.
O ACNUR reconheceu isso adotando, em 2006, Diretrizes sobre proteção internacional: a
aplicação do Artigo 1A (2) da Convenção de 1951 e/ou Protocolo de 1967 relativo ao Estatuto
dos Refugiados às vítimas de tráfico e às pessoas em risco de serem traficadas. As Diretrizes
não são juridicamente vinculativas, mas pretendem fornecer "orientações jurídicas
interpretativas para governos, profissionais da justiça, tomadores de decisão e judiciário, bem
como para funcionários do ACNUR que participam do procedimento de concessão de status de
refugiado.
desenvolvimento. O relatório “Uma vida de dignidade para todos: acelerar o progresso para os
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e avançando Agenda de desenvolvimento das
Nações Unidas para além de 2015”397 apontou os resultados alcançados e indicou a necessidade
de novos direcionamentos pós-2015398.
É nesse contexto que surgem os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS),
firmados em 2015, no âmbito da ONU, na tentativa de desenhar um plano de ação para erradicar
a pobreza, proteger o planeta e garantir que as pessoas alcancem a paz e a prosperidade. Para
tanto, foi definida a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, a qual contém o
conjunto de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
A tentativa é para garantir sustentabilidade mundial com medidas ousadas e
transformadoras. A Agenda 2030 é um plano de ação que busca fortalecer a paz universal. O
plano indica 17 ODS e 169 metas para erradicar a pobreza e promover vida digna para todos,
dentro dos limites do planeta. São objetivos e metas claras para que todos os 193 Estados-
membros da ONU ali reunidos adotem, de acordo com as suas próprias prioridades, e atuem no
espírito de uma parceria global que orienta as escolhas necessárias para melhorar a vida das
pessoas, agora e no futuro.
397
ONU. Uma vida de dignidade para todos: acelerar o progresso para os objetivos de desenvolvimento do
milênio e avançando agenda de desenvolvimento das Nações Unidas para além de 2015. 2013. Disponível em:
http://www.unodc.org/documents/about-unodc/Post-2015-Development-Agenda/A_Life_of_Dignity_
for_All1.pdf. Acesso em: 10 jun. 2020.
398
ONU. O relatório de metas de desenvolvimento do milênio. 2015. Disponível em: http://mdgs.un.org/unsd/
mdg/Resources/Static/Products/Progress2015/English2015.pdf. Acesso em: 10 jun. 2020. Documento em
português: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2015/10/agenda2030-pt-br.pdf.
189
mundo. Estruturar políticas que estimulem a obtenção das metas estabelecidas pela Agenda
2030 auxiliará na eliminação das vulnerabilidades existentes nas sociedades e diminuição das
condições que possibilitam e estimulam o deslocamento de pessoas pelo tráfico de pessoas,
principalmente mulheres e crianças.
A temática do tráfico de pessoas, especialmente mulheres, está diretamente ligada com
o ODS 5 - Igualdade de Gênero, que pretende alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas
as mulheres e meninas399. Esse objetivo específico parte da constatação de que a violência e
exploração sexual, desigualdade no acesso e à remuneração no mercado de trabalho, divisão
desigual do cuidado não remunerado e do trabalho doméstico, e a discriminação no cargo
público permanecem enormes barreiras à igualdade de gênero.
Nessa perspectiva, o tráfico de mulheres também dialoga com diversos pontos que
compõem o ODS 5, principalmente na discussão sobre a eliminação de todas as formas de
violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas públicas e privadas, incluindo o tráfico
e exploração sexual e de outros tipos; a eliminação de todas as práticas nocivas, como os
casamentos prematuros, forçados e de crianças; a garantia de políticas de proteção social, bem
como a promoção da responsabilidade compartilhada dentro do lar e da família; a garantia da
participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em
todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública; e a garantia do
acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos.
399
ONUBrasil. Glossário de termos do objetivo de desenvolvimento sustentável 5: alcançar a igualdade de
gênero e empoderar todas as mulheres e meninas. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-content/
uploads/2017/06/Glossario-ODS-5.pdf. Acesso em: 21 ago. 2020.
190
400
No dia 15 de abril de 2019, o Brasil denunciou o Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas
(UNASUL), formalizando sua saída da organização. Especificamente no âmbito do tráfico de pessoas, a
UnaSul tem como um de seus objetivos específicos: “A coordenação entre os organismos especializados dos
Estados membros, levando em conta as normas internacionais, para fortalecer a luta contra o terrorismo, a
corrupção, o problema mundial das drogas, o tráfico de pessoas, o tráfico de armas pequenas e leves, crime
organizado transnacional e outras ameaças, bem como desarmamento, não proliferação de armas nucleares
e armas de destruição em massa e desminagem. A promoção da cooperação entre as autoridades judiciárias
dos Estados Membros da UNASUL.” UNASUR. Página web. Disponível em: https://www.unasursg.org/.
Acesso em: 25 ago. 2020.
191
401
OSCE. La lucha contra la trata de personas. Disponível em: https://www.osce.org/es/Combating-human-
trafficking. Acesso em: 20 jun. 2020.
402
UNODC. Diagnóstico de las capacidades nacionales y regionales para la persecución penal del delito de trata
de personas en América Central. 2009. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/human-
trafficking/Diagnostico_regional_XCAS261.pdf. Acesso em: 20 jun. 2020.
192
403
Id.
404
CIDH. Relatórios anuais. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/informes/anuales.asp. Acesso em: 2 jul.
2020.
405
CIDH. Informe Anual 2019 de la CIDH. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/docs/anual/2019/
indice.asp. Acesso em: 2 jul. 2020. Foram recebidas informações referentes a 32 Estados da região, mas
somente 15 Estados membros enviaram respostas a CIDH.: Argentina, Bahamas, Bolívia, Brasil, Chile,
Colômbia, Equador, El Salvador, Guiana, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Paraguai e Peru.
193
de violência, incluindo crimes de ódio contra pessoas LGBTI, devido à sua orientação sexual,
expressão e/ou identidade de gênero ou as suas características sexuais406.
Quanto aos direitos dos migrantes, relata-se especialmente a situação da migração
forçada do povo venezuelano, que equivale a mais de 4.600.000 pessoas, que foram forçadas a
deixar o seu país como consequência de violações maciças dos direitos humanos, bem como da
grave crise de alimentos e saúde que tem enfrentado o país. A CIDH relata a sua preocupação
com as medidas adotadas por alguns Estados para restringir a mobilidade e o acolhimento da
população venezuelana, estabelecendo uma série de requisitos administrativos ou maiores
controles policiais e de imigração nas fronteiras, além de rejeições e expulsões coletivas. Essa
situação tem impacto especial na possibilidade de as pessoas solicitarem asilo e há casos de
reagrupamento familiar de famílias venezuelanas - além de potencialmente vulnerar essas
populações para que iniciem processos de mobilidade forçada, seja via contrabando de
migrantes, seja via tráfico de pessoas.
A CIDH expõe também a situação da migração forçada das pessoas do Triângulo Norte
da América Central por meio de caravanas em direção ao México e os Estados Unidos.
Preocupa a CIDH o uso da força pela polícia com o objetivo de dissuadir essas caravanas, bem
como sobre os obstáculos que enfrentam para deixar os seus países, como bloqueios formados
por agentes de segurança e filtros policiais, solicitar documentos de identidade nos pontos de
fronteira407.
No âmbito específico do tráfico de pessoas, o relatório aponta por país as seguintes
informações: 1. No México, o Estado realizou treinamento sobre violência contra mulheres e
tráfico de seres humanos, que atingiram cerca de 3.000 funcionários públicos 408; 2. No
Paraguai, a Comissão Interamericana também recebeu informações sobre crianças e
adolescentes enviados por suas famílias para servirem em outras casas, por meio da prática
conhecida como "criadazgo", em troca de sustento e educação. Informa que 46.993 crianças
poderiam estar nessa situação. no Paraguai. Nesse sentido, o Estado assumiu o compromisso de
atacar a questão por meio de campanhas educacionais, além de incluir o "criadazgo" na figura
legal do tráfico de pessoas409; 3. No Peru, houve uma alteração do Código Penal referente às
sanções pelo crime de Exploração Sexual, a fim de proteger, com ênfase especial em mulheres,
meninas, meninos e adolescentes. Também foi incorporada uma penalidade de multa ao crime
406
Ibid., p. 295.
407
Id.
408
Ibid., p.392.
409
CIDH. Informe Anual 2019 de la CIDH. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/docs/anual/2019/
indice.asp. Acesso em: 2 jul. 2020. p. 399.
194
de trabalho forçado. O Peru aprovou também o III Plano Nacional de Combate ao Trabalho
Forçado 2019-2022, que leva em consideração a situação especial de vulnerabilidade dos
migrantes; e 4. Em Trinidade e Tobago, criou-se um novo grupo de trabalho de inteligência
para melhorar as investigações, o treinamento de funcionários públicos e o estabelecimento de
um "Memorando de Entendimento" entre a Unidade Antitráfico e a Autoridade da Criança, que
busca proporcionar maior proteção às meninas e meninos vítimas desse crime. Além disso, as
autoridades de Trinidad e Tobago resgataram 69 vítimas e sobreviventes do crime de tráfico de
seres humanos, e detiveram 6 pessoas que supostamente estavam envolvidas na prática do
crime.
Em relação ao Brasil, a CIDH reforça a preocupação no número prevalente de
assassinatos de mulheres por gênero no Brasil, bem como os atos de violência contra
trabalhadores rurais. No mesmo sentido, a Comissão observa com extrema preocupação a
situação crítica da violência contra defensores dos direitos humanos, em particular quilombola
e defensores indígenas. Por fim, a Comissão observa com consternação a série de desastres
ambientais que causaram a perda de vidas, e o impacto na saúde de milhares de pessoas, como
o caso da cidade de Brumadinho (MG), o crescente desmatamento e incêndios que afetaram a
região amazônica ao longo de 2019 e os derramamentos de óleo registrados no nordeste do país
a partir de novembro. Todos esses fatos levam à vulneração de direitos e as coloca em risco
social. A Comissão reforça a sua preocupação com as altas taxas de mortalidade policial contra
jovens afrodescendentes. Embora eles representem 54% da população, das 6.220 baixas
policiais registradas no período 75,4% eram afrodescendentes, 99,3% eram homens e 77,9%
tinham entre 15 e 29 anos. Assim, fica evidente o racismo institucional, acentuado por práticas
amplamente expandidas, como o uso de perfis raciais e a perseguição policial seletiva a pessoas
negras.
No âmbito do direito da infância, é positiva a aprovação da Lei nº 13.811, de 2019, que
modifica a redação do art. 1.520 do Código Civil Brasileiro para proibir qualquer exceção ao
casamento de menores de 16 anos, medida que pode ser vista como uma tentativa de evitar
casamentos forçados e violências de diversas formas contra adolescentes.
Essa breve contextualização da região americana indica a potencialidade existente para
situações de tráfico de pessoas e contrabando de migrantes. Vários atores interatuam para o
enfrentamento desse fenômeno, entre eles os Estados, as Organizações Internacionais como a
OEA, e as agências especializadas da ONU, como OIT, OIM, UNODC, ONU Mulheres,
Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), o Mercosul, considerado como uma
organização regional para a integração, e a sociedade civil.
195
410
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Resolução n. 1776/2001. Disponível em:
http://www.oas.org/juridico/portuguese/2001/agres1776.htm. Acesso em: 15 jul. 2020.
411
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Plano de ação da Terceira Cúpula das Américas
(2001). Disponível em: http://www.ftaa-alca.org/Summits/Quebec/plan_p.asp. Acesso em: 15 jul. 2020.
412
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Resolução n. 1948/2003. Disponível em:
http://www.oas.org/juridico/portuguese/ag03/agres1948.htm. Acesso em: 15 jul. 2020.
196
413
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Resolução n. 2019/2004. Disponível em:
http://www.oas.org/juridico/english/ga04/agres_2019.htm. Acesso em: 15 jul. 2020.
197
414
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Resolução n. 2019/2004. Disponível em:
http://www.oas.org/juridico/english/ga04/agres_2019.htm. Acesso em: 15 jul. 2020.
415
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Conclusiones y recomendaciones de la I Reunión de
Autoridades Nacionales en Materia de Trata de Personas. Disponível em: http://docplayer.es/97232409-
Conclusiones-y-recomendaciones-de-la-reunion-de-autoridades-nacionales-en-materia-de-trata-de-
personas.html. Acesso em: 15 jul. 2020. Ver também: ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS.
Resolução n. 2256/2006. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2006/4309.
pdf?view=1. Acesso em: 15 jul. 2020.
198
416
ORGANIZAÇÃO ESTADOS AMERICANOS. II Reunião de Autoridades Nacionais em Materia de
Tráfico de Pessoas. Disponível em: https://www.oas.org/csh/portuguese/traficopessoas.asp. Acesso em: 15
jul. 2020.
417
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Resolução 2348/2007(XXXVII-O.2). Disponível em:
http://www.oas.org/pt/council/AG/ResDec/. Acesso em: 15 jul. 2020.
418
Resolução n. 2348/2007, 3.
199
419
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Resolução n. 2456/09 (XXXIX-O/09). Disponível em:
http://www.oas.org/pt/council/AG/ResDec/. Acesso em: 15 jul. 2020.
420
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Conclusões e recomendações da Reunião Preparatória da
Sociedade Civil para a Segunda Reunião de Autoridades Nacionais em Tráfico de Pessoas, de 3 a 4 de março
de 2009 Washington, D.C. RTP-II / doc.7 / 09. Disponível em: http://www.
oas.org/pt/council/CSH/topics/tratapersonas.asp. Acesso em: 15 jul. 2020.
421
Na III Reunião de Autoridades (2012), apresenta-se um Compêndio de intervenções de organizações da
sociedade civil para combater o tráfico de pessoas RTP-III / Doc.9 / 12 rev. 1. Disponível em:
http://www.oas.org/pt/council/CSH/topics/tratapersonas.asp. Acesso em: 15 jul. 2020. Na IV Reunião de
Autoridades, apresentam-se Resultados do Fórum Virtual de Consulta com Organizações da Sociedade Civil
sobre o Plano de Tráfico de Tráfico de Pessoas no Hemisfério Ocidental, em preparação para a Quarta Reunião
de Autoridades Nacionais em Tráfico de Pessoas (Compêndio de contribuições compiladas pelo moderador,
Luciana Campello) RTP-IV / doc.7 / 14. Disponível em: http://www.oas.org/pt/council/ CSH/
topics/tratapersonas.asp. Acesso em: 15 jul. 2020.
422
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Resolução n. 2551/2010 (XL-O10). Disponível em:
http://www.oas.org/pt/council/AG/ResDec/. Acesso em: 15 jul. 2020.
200
423
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. III Reunião de Autoridades Nacionais em Matéria de
Tráfico de Pessoas. Disponível em: https://www.oas.org/csh/portuguese/traficopessoas.asp#III. Acesso em:
15 jul. 2020.
424
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Apresentação dos relatórios sobre o andamento da
implementação do plano de trabalho contra o Tráfico de Pessoas no Hemisfério Ocidental 2010-2012 (Brasil)
RTP-III/INF.16/12. Disponível em: https://www.oas.org/csh/portuguese/traficopessoas.asp#III. Acesso em: 15
jul. 2020.
201
425
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Discurso do Secretário Nacional de Justiça, Ministério
da Justiça Paulo Abrão Abertura da IV Reunião de Autoridades Nacionais em Matéria de Tráfico de Pessoas
RTP-IV/INF. 6/14. Disponível em: https://www.oas.org/csh/portuguese/traficopessoas. asp#III. Acesso em: 15
jul. 2020.
426
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Segundo Plano de Trabalho para Combater o Tráfico
de Pessoas no Hemisfério Ocidental 2015-2018 (Aprovado na terceira sessão plenária, realizada em 5 de
dezembro de 2014) RTP/doc.4/14 rev. 1. Disponível em: https://www.oas.org/csh/
portuguese/traficopessoas.asp#III. Acesso em: 15 jul. 2020.
427
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Declaração Interamericana para Enfrentar o Tráfico
de Pessoas “Declaração de Brasília” (Aprovada na terceira sessão plenária, realizada em 5 de dezembro de
2014) RTP/doc.5/14 rev. 1. Disponível em: https://www.oas.org/csh/portuguese/ traficopessoas.asp#III.
Acesso em: 15 jul. 2020.
202
Todo esse corpo normativo construído aponta para um esforço da OEA no combate ao
tráfico de pessoas, instando os Estados-membro a esforços individuais e coletivos. Apresenta-
se uma perspectiva multidisciplinar de enfrentamento ao tráfico, com uma ação coordenada e
devidamente amparada em políticas públicas e estratégias de cooperação internacional e
fortalecimento institucional.
O Sistema Interamericano também conta com uma série de instrumentos internacionais
de direitos humanos que visam a garantir e revelar direitos humanos. Entre eles: 1) A
Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto San José da Costa Rica, que prevê o
livramento da escravidão, servidão involuntária ou trabalho forçado428; e 2) Convenção
Interamericana para a Prevenção, Erradicação e Punição da Violência contra a Mulher –
Convenção de Belém do Pará, que estabelece no artigo 2º, a violência física, sexual e
psicológica como sendo formas de violência contra a mulher429. Esses instrumentos têm relação
direta com a proteção das vítimas de tráfico de pessoas.
Destacam-se os mecanismos regionais que garantem a efetivação desses direitos e até
mesmo a indenização por eventual violação. Entre eles, aparecem: 1) A Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, prevista nos artigos 33(a) e 34 da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos; 2) A Corte Interamericana de Direitos Humanos, prevista nos artigos
33(b) e 52 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos; e 3) Comissão Interamericana
sobre Mulheres, prevista no artigo 10 da Convenção de Belém do Pará430.
428
Convenção Americana sobre Direitos Humanos: Artigo 6º Proibição da escravidão e da servidão. 1. Ninguém
poderá ser submetido a escravidão e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos
em todas as suas formas. 2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório. [...] –
grifo nosso.
429
Artigo 2. “b). [...] tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no lugar de trabalho[...].”
430
A pesquisa optou por não adentrar na análise dos casos da CIDH e da Corte IDH na matéria de tráfico de
pessoas, uma vez que foge do escopo da tese. Ver em: CAMPOS, Bárbara Pincowsca Cardoso. A
jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos em matéria consultiva: desenvolvimentos
recentes. Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, Fortaleza, v. 5, n. 5, p. 35-42, 2004.
Disponível em: http://revista.ibdh.org.br/index.php/ibdh/article/view/62/63. Acesso em: 25 ago. 2020.
203
431
Atualmente, o bloco regional é composto como Estados Parte: pela República da Argentina, a República
Federativa do Brasil, a República do Paraguai, a República Oriental do Uruguai e a República Bolivariana da
Venezuela. A República da Bolívia, a República do Chile, a República da Colômbia, a República do Equador
e a República do Peru, Guiana e Suriname, compõe na qualidade de Estados Associados.
432
Essa Declaração foi subscrita pelo Ministro do Interior da Argentina, o Ministro da Justiça da República
Federativa do Brasil, o Ministro do Interior da República do Paraguai, o Ministro do Interior da República
Oriental do Uruguai, pelo Ministro de Governo da República da Bolívia e o Ministro do Interior da República
do Chile.
433
BRASIL. Acordo sobre Tráfico Ilícito de Migrantes entre os Estados Partes do Mercosul. Decreto nº 7.953,
de 12 de março de 2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2013/decreto/D7953.htm. Acesso em: 15 jul. 2020.
434
Decisão do Conselho do Mercado Comum nº37/04 (MERCOSUL/CMC/DEC Nº 37/94. Disponível em:
http://www.sice.oas.org/Trade/MRCSRS/Decisions/dec3704p.asp. Acesso em: 15 jul. 2020.
204
435
Foi subscrita pelos representantes de Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai, Bolívia, Chile, Peru, Equador,
Colômbia e Venezuela.
436
A partir da Resolução do Conselho do Mercado Comum N° 24/02 de dezembro de 2011, é reconhecido o
fortalecimento da institucionalidade e hierarquias dos mecanismos nacionais que ali participam, e cria-se a
Reunião de Ministras e Altas Autoridades da Mulher do MERCOSUL (RMAAM). A RMAAM tem por
principal função assessorar e propor ao Conselho do Mercado Comum (CMC) medidas, políticas e ações em
matéria de igualdade de gênero. A RMAAM é o principal fórum de coordenação política entre as máximas
autoridades dos mecanismos para o avanço da mulher, dirigida a promover e facilitar a geração de condições
para um exercício pleno dos direitos das mulheres na região, onde se debatem, promovem e facilitam a
definição de políticas públicas regionais para as mulheres e a igualdade de gênero. A RMAAM está integrada
por representantes governamentais dos cinco Estados Partes, assim como os estados associados: Bolívia, Chile,
Colômbia, Equador e Peru, e assessoram, como representantes da sociedade civil, várias organizações não
governamentais. Ver em: MERCOSUL. Guia Mercosul de atenção a mulheres em situação de tráfico de
pessoas para fins de exploração sexual. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/human-
trafficking/GLO-ACT/BR_Guia_MERCOSUL_Trafico_Mulheres_PORT_Completo_para_IMPRESSAO.
pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
205
437
AURELIANO, Anna Carolina da Conceição. A perspectiva de gênero para o enfrentamento ao tráfico
internacional de pessoas no Mercosul. Maestría en Derecho de las Relaciones Internacionales y de la
Integración en América Latina. Universidad de la Empresa, Montevideo, Uruguai, 2019.
438
MERCOSUL. O tráfico de mulheres com fins de exploração sexual no MERCOSUL. Disponível em:
www.mercosurmujeres.org. Acesso em: 20 jul. 2020.
439
MERCOSUL. Mecanismo de articulação para atenção a mulheres em situação de tráfico internacional
de pessoas. Disponível em: http://www.cartillaciudadania.mercosur.int/oldAssets/uploads/DEC_026-
2014_PT_Mec%20artic%20mulheres%20trafico%20internacional.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
440
MERCOSUL. Guia Mercosul para a atenção às mulheres em situação de tráfico de pessoas com fins de
exploração sexual. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/human-trafficking/GLO-ACT/BR_
Guia_MERCOSUL_Trafico_Mulheres_PORT_Completo_para_IMPRESSAO.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
441
No Brasil, atualmente o ponto focal dessa atuação é o Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos.
442
O Instituto de Políticas Públicas de Direitos Humanos do MERCOSUL (IPPDH) é um órgão do MERCOSUL
criado em 2009 pelo Conselho do Mercado Comum por meio da Decisão nº 14/09 de 23 de julho, 2009.
Funciona como instância de cooperação técnica, pesquisa aplicada e coordenação de políticas públicas de
direitos humanos dos países que compõem o bloco regional. A migração foi um tema permanente nas ações e
pesquisas realizadas no IPPDH desde a sua criação em 2009. No último período, foram agregados os temas
206
O Tratado da União Européia445 estabelece em seu artigo 29446, como um dos objetivos
da União Europeia (U), “facultar aos cidadãos um elevado nível de proteção num espaço de
liberdade, segurança e justiça, mediante a instituição de ações em comum entre os Estados-
Membro no domínio da cooperação policial e judiciária em matéria penal e a prevenção e
combate do racismo e da xenofobia.”, “[...] prevenindo e combatendo a criminalidade,
organizada ou não, em especial o terrorismo, o tráfico de seres humanos e os crimes contra as
crianças, o tráfico ilícito de droga e o tráfico ilícito de armas, a corrupção e a fraude [...]” (grifo
nosso), através de maior cooperação policial e judicial, e da harmonização das normas penais
dos Estados-Membro.
refúgio, apatridia e tráfico de pessoas, em linha com os avanços e interesses que se impõem na região com base
no processo de Cartagena +30 e na Declaração e Plano de Ação do Brasil (2014).
443
O Projeto foi analisado e aprovado na XCVII Reunião Ordinária do Grupo Mercado Comum (GMC), realizada
entre 15 e 16 de abril de 2015 em Brasília (MERCOSUL / GMC / ATA No. 01/2015).
444
IPPDH. Migración, derechos sociales y políticas contra la trata de personas en las fronteras del
MERCOSUR. 2019. Disponível em: https://www.mercosur.int/documento/migracion-derechos-sociales-y-
politicas-contra-la-trata-de-personas-en-las-fronteras-del-mercosur/. Acesso em: 20 jul. 2020.
445
UE. Tratado da União Européia. 1992. Disponível em: https://www1.europarl.europa.eu/about-
parliament/files/in-the-past/ep-and-treaties/maastricht-treaty/pt-resolution-on-the-results-of-the-
intergovernmental-conference-19920407.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
446
Modificado pelo Tratado de Amsterdã de 1997. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-
content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:11997M/TXT&from=PT. Acesso em: 20 jul. 2020.
207
447
Adotada em 04 de novembro de 1950. Disponível em: http://www.hri.org/docs/ECHR50.html. Acesso em: 20
jul. 2020.
448
Disponível em: http://www.coe.fr/eng/legaltxt/35e.htm. Acesso em: 20 jul. 2020.
449
Disponível em: http://www.penlex.org.uk/pages/eurocpt.html. Acesso em: 20 jul. 2020.
208
Europa (OSCE)450; 5) Tribunal Europeu de Justiça, nos casos que envolvam a União
Europeia451.
Especificamente no âmbito do tráfico de pessoas, algumas diretivas da União Europeia
são fundamentais e vinculativas para os Estados-membro: 1. Diretiva 81/2004 do Conselho da
União Europeia, de 29 de abril de 2004452, relativa à emissão de uma autorização de residência
para nacionais de terceiros países vítimas de tráfico de pessoas ou que tenham sido objeto de
uma ação para ajudar imigração ilegal e/ou cooperar com as autoridades competentes. A
diretiva prevê que as pessoas que não sejam cidadãos de um Estado-membro da UE, mas
tenham sido traficadas para um Estado da UE e que estejam cooperando com as autoridades,
recebam permissões de residência por períodos limitados. Durante o período em que residem
em um Estado-membro da UE com base nessa licença, essas pessoas têm certos direitos para
as ajudar em suas vidas diárias e recuperação; 2. Diretiva 2011/36/UE do Parlamento Europeu
e do Conselho, de 5 de abril de 2011453, relativa à prevenção e à luta contra o tráfico de seres
humanos e à proteção das vítimas. Essa diretiva adota uma abordagem abrangente e integrada
centrada nos direitos humanos e nas vítimas e integra a dimensão do gênero. Previa que os
Estados se adequassem até 6 de abril de 2013. A diretiva se centra não apenas no aspeto da
aplicação da lei, mas visa também a prevenir a criminalidade e assegurar que as vítimas de
tráfico de seres humanos tenham a possibilidade de recuperar e de se reintegrar na sociedade.
Já no preâmbulo, estabelece o papel da sociedade civil como parceira dos Estados na iniciativa
de formulação de políticas, campanhas de informação e conscientização, programas de pesquisa
e educação e em treinamento, bem como em monitorar e avaliar o impacto de medidas de
combate ao tráfico. Em seu artigo 19, menciona o estabelecimento de relatores nacionais ou
mecanismos equivalentes; 3) No âmbito da proteção às vítimas, a Diretiva 2012/29/UE do
Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012 , estabelece normas mínimas
450
A OSCE tem origem na Conferência sobre a Segurança e a Cooperação na Europa, em 1975 (CSCE) e possui
atualmente 56 Estados participantes, entre eles os países da UE, Rússia, Ásia Central, Canadá e Estados Unidos
da América. Sua missão é facilitar a resolução de conflitos existentes ou pendentes de solução nos quais estão
implicados alguns dos Estados participantes, através da cooperação e coordenação. Disponível em:
http://es.wikipedia.org/wiki/osce . Acesso em: 5 jul. 2020.
451
A pesquisa optou por não adentrar na análise dos casos da CIDH e da Corte IDH na matéria de tráfico de
pessoas, uma vez que foge ao escopo da tese.
452
UE. Diretiva 2004/81/CE. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=
CELEX:32004L0081&from=PT. Acesso em: 5 ago. 2020.
453
UE. Diretiva 2011/36 / UE. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=
CELEX:32011L0036&from=EN. Acesso em: 5 ago. 2020.
209
relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade e substitui a Decisão-
Quadro 2001/220/JAI do Conselho454.
Das Diretivas da UE, a mais relevante para garantir a proteção das vítimas de tráfico é
a 2011/36/UE. A perspectiva de assegurar que as vítimas de tráfico de pessoas tenham a
possibilidade de recuperar e de se reintegrar na sociedade é tida como marco para a cobrança
desses aspectos internamente nos Estados-membro da UE.
Além desses documentos vinculativos, é importante mencionar a Declaração de
Bruxelas sobre Prevenção e Combate ao Tráfico de Pessoas (2002). Não é um documento
vinculativo, mas essa declaração resultou de uma conferência organizada pela OIM, em
cooperação com o Parlamento Europeu e a Comissão Europeia.
Foi lançada a Estratégia da UE para a erradicação do tráfico de seres humanos (2012 -
2016), que teve como objetivo fornecer base para as atividades da UE em relação ao tráfico de
pessoas. Teve como meta fornecer um quadro coerente para iniciativas planejadas, definir
prioridades e preencher lacunas455.
454
UE. Diretiva 2012/29/UE. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-
content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32012L0029&from=PT. Acesso em: 2 ago. 2020.
455
UE. Estratégia da União Europeia para a erradicação do tráfico de seres humanos 2012 2016. /*
COM/2012/0286 final */. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=
CELEX:52012DC0286&from=PT. Acesso em: 20 jul. 2020.
456
O tráfico de mulheres e a prostituição forçada são definidos como: “any legal or illegal transporting of women
and/or trade in them, with or without their initial consent, for economic gain, with the purpose of subsequent
forced prostitution, forced marriage, or other forms of forced sexual exploitation. The use of force may be
physical, sexual and/or psychological, and includes intimidation, rape, abuse of authority or a situation of
dependence.”. Disponível em: www.coe.int. Acesso em: 15 jul. 2020.
210
457
O conceito do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual: “the procurement by one or more natural or
legal persons and/or the organization of the exploitation and/or transport or migration – legal or illegal – of
persons, even with their consent, for the purpose of their sexual exploitation, inter alia by means of coercion,
in particular violence or threats, deceit, abuse of authority or of a position of vulnerability”. Disponível em:
www.coe.int. Acesso em: 15 set. 2006.
458
Disponível em: www.coe.int.
459
Id.
460
Id.
461
CONSELHO DA EUROPA. Convenção do Conselho da Europa relativa à Luta contra o Tráfico de Seres
Humanos. 2005. Disponível em: https://www.mdm.org.pt/wp-content/uploads/2017/10/ Conven%
C3%A7%C3%A3o-do-Conselho-da-Europa-Relativa-%C3%A0-Luta-contra-o-Tr%C3%A1fico-de-Seres-
Humanos.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
462
CONSELHO DA EUROPA. Ratificações da Convenção sobre a Ação contra o Tráfico de Seres Humanos.
2005. Disponível em: https://www.coe.int/en/web/conventions/full-list/-/conventions/treaty/197/ signatures.
Acesso em: 9 ago. 2020.
211
(mulheres, homens ou crianças). As formas de exploração cobertas por ela são, no mínimo,
exploração sexual, trabalho ou serviços forçados, escravidão ou práticas semelhantes à
escravidão, servidão e remoção de órgãos.
A principal contribuição da Convenção é o seu olhar sobre a perspectiva de direitos
humanos e foco na proteção das vítimas. Em seu preâmbulo, o tráfico de pessoas é definido
como uma violação dos direitos humanos e uma ofensa à dignidade e integridade do ser
humano. Prevê uma série de direitos para as vítimas de tráfico, em particular o direito de serem
identificadas como vítimas, protegidas e assistidas, a fim de receber um período de recuperação
e reflexão de, pelo menos, 30 dias, a que seja concedida uma autorização de residência
renovável, e receber compensação pelos danos sofridos.
De forma resumida, a Convenção prevê: 1. Abordagem dos direitos humanos; 2.
Estrutura completa para proteção e assistência às vítimas de tráfico de seres humanos
(condições de vida que garantam a sua acomodação de subsistência e assistência material,
segurança e proteção, assistência médica, jurídica, tradução e interpretação, educação e
treinamento); 3. Estabelecimento do período de recuperação e reflexão (pelo menos 30 dias);
4. Autorização de residência devido a situação pessoal ou colaboração; e 5. Direito da
compensação da vítima.
Aspecto importante para a garantia dos direitos violados das vítimas é o papel da
sociedade civil explicitamente reconhecido, em termos gerais, no Artigo 35, intitulado
“Cooperação com a sociedade civil”. Estabelece que cada Estado deve incentivar as autoridades
estatais e funcionários públicos a cooperar com organizações não governamentais e outras
organizações relevantes e membros da sociedade civil, no estabelecimento de parcerias
estratégicas com o objetivo de alcançar o objetivo dessa Convenção. Segundo essa disposição,
é um dever e não uma escolha incentivar a cooperação entre agências estatais e ONGs. Essa
parceria estratégica implica o estabelecimento de estruturas cooperativas através das quais os
atores estatais cumpram as suas obrigações sob a Convenção, coordenando os seus esforços
com a sociedade civil. Isso pode incluir um diálogo regular envolvendo todos os atores, com a
implementação prática dos objetivos da Convenção através da “conclusão de memorandos de
entendimento entre autoridades nacionais e organizações não-governamentais para fornecer
proteção e assistência às vítimas de tráfico.”
Esse artigo da convenção fornece a base legal para o estabelecimento de um órgão de
referência nacional. Essa Referência Nacional é como um Mecanismo de Referência Nacional
(MRN), uma estrutura cooperativa através da qual os atores estatais cumprem as suas
obrigações de proteger e promover os direitos humanos de vítimas de tráfico, coordenando os
212
seus esforços em parceria estratégica com a sociedade463. Cada Estado define a estrutura de seu
MRN. O objetivo básico de um MRN é garantir que os direitos humanos das pessoas traficadas
sejam respeitados e fornecer às vítimas um meio eficaz de encaminhamento para os serviços.
Além disso, os MRNs podem servir para ajudar a melhorar as políticas e procedimentos
nacionais em uma ampla variedade de aspectos relacionados às vítimas, como residência,
regulamentos sobre repatriação, indenização e proteção de testemunhas. Os MRNs podem
estabelecer planos de ação nacionais e estabelecer análises referenciais para determinar se os
objetivos estabelecidos foram alcançados464.
São dez princípios e boas práticas que devem guiar a criação dos Mecanismos de
Referência Nacionais: 1. Proteger os direitos das vítimas deve ser uma prioridade para todos
que lutam contra o tráfico de pessoas; 2. Uma infraestrutura de combate ao tráfico de pessoas
deve se basear em ampla definição para ser capaz de responder rapidamente às suas diferentes
modalidades; 3. Os serviços de assistência e proteção às vítimas devem ser acessíveis a todas
as categorias de vítimas de tráfico; 4. Um mecanismo de proteção deve incluir ampla gama de
serviços especializados voltados para as necessidades específicas de cada pessoa; 5. Serviços
de proteção às vítimas baseados nos direitos humanos podem ajudar a garantir um julgamento
eficaz; 6. A luta contra o tráfico de pessoas requer abordagem multidisciplinar e inter-setorial,
que inclui a participação de todos os atores governamentais relevantes e da sociedade civil; 7.
A estrutura para combater o tráfico de pessoas deve ser baseada e construída sobre a capacidade
nacional disponível para promover um senso de propriedade e sustentabilidade; 8 Os princípios
orientadores de um MRN incluem transparência e julgamento de responsabilidades e
competências claras, de acordo com os diferentes mandatos de todos os atores envolvidos; 9.
MRNs são elementos básicos da cooperação regional e internacional eficazes no combate ao
tráfico de pessoas e na assistência às vítimas; e 10. O processo de implementação de um MRN
deve ser subsumido a um processo global de democratização para garantir a sua
responsabilidade e legitimidade465.
Outro importante aspecto da Convenção é o sistema de monitoramento criado para
supervisionar a implementação das obrigações nela contidas, que consiste em dois pilares: o
463
OSCE. Mecanismos nacionales de derivación: aunando esfuerzos para proteger los derechos de las víctimas
de trata de personas. 2007. Disponível em: https://www.osce.org/files/f/documents/5/a/13973.pdf. Acesso em:
20 jul. 2020.
464
Mais adiante, no capítulo em que se abordará o caso de estudo da Espanha, será analisado o papel exercido pelo
Relator Nacional de la Trata de Personas.
465
OSCE. Mecanismos nacionales de derivación: aunando esfuerzos para proteger los derechos de las víctimas
de trata de personas. 2007. Disponível em: https://www.osce.org/files/f/documents/5/a/13973.pdf. Acesso em:
20 jul. 2020.
213
Grupo de Peritos em Ação contra o Tráfico de Seres Humanos (GRETA) 466 e o Comitê das
Partes467. A Convenção não se restringe aos Estados- membro do Conselho da Europa; Estados
terceiros e a União Europeia também têm a possibilidade de se tornarem Parte da Convenção.
GRETA é responsável por monitorar a implementação da Convenção do Conselho da
Europa sobre Ação contra o Tráfico de Seres Humanos pelas Partes. Esse grupo se reúne em
sessões plenárias três vezes por ano; realiza visitas, elabora e publica relatórios de países
avaliando medidas legislativas e outras tomadas pelas Partes para dar cumprimento às
disposições da Convenção. Além disso, o GRETA publica regularmente relatórios gerais sobre
as suas atividades 468.
Pensando em medidas para fortalecer a implementação da obrigação de fornecer
proteção internacional às vítimas de tráfico, O GRETA emitiu, em 2020, a “Nota de Orientação
sobre o direito das vítimas de tráfico e pessoas em risco de serem traficadas à proteção
internacional.”469. Essa nota destaca os critérios que podem dar direito às vítimas de tráfico,
bem como àquelas em risco de serem traficadas, a proteção internacional, incluindo proteção
complementar. A orientação enfatiza que deve haver a possibilidade de as supostas vítimas de
tráfico solicitarem asilo enquanto estão em processo de identificação. Também ressalta o
princípio da não punição das vítimas de tráfico por crimes que foram obrigadas a cometer.
Outra Convenção relevante no âmbito do Conselho da Europa é a Convenção do
Conselho da Europa para a proteção das crianças contra a exploração sexual e abuso sexual,
2007, também chamada de Convenção de Lanzarote ou Convenção 201. Ela aborda, entre
outras, questões relacionadas ao tráfico, em especial a exploração sexual de crianças. Inclui
várias disposições que reconhecem o papel e a contribuição da sociedade civil470.
466
GRETA será explicado a seguir.
467
Sobre o Comitê das Partes
O Comitê das Partes da Convenção do Conselho da Europa sobre a Ação contra o Tráfico de Seres Humanos é
composto pelos representantes no Comitê de Ministros do Conselho da Europa dos Estados membros Partes
da Convenção e por representantes das Partes da Convenção, que não são membros do Conselho da Europa. O
Comitê das Partes pode, com base no relatório e nas conclusões do Grupo de Peritos em Ação contra o Tráfico
de Seres Humanos (GRETA), fazer recomendações a uma Parte sobre as medidas a serem tomadas como
seguimento ao Relatório da GRETA. CONSELHO DA EUROPA. Committee of the Parties. Disponível em:
https://www.coe.int/en/web/anti-human-trafficking/committee-of-the-parties. Acesso em: 15 jul. 2020.
468
CONSELHO DA EUROPA. General reports on GRETA’s activities. Disponível em: https://www.coe.int/
en/web/anti-human-trafficking/general-reports. Acesso em: 20 jul. 2020. Os relatórios de avaliação do GRETA
são o resultado de informações coletadas de uma variedade de fontes (Estados Parte, organizações sociedade
civil). Contêm uma análise da situação de cada uma das Partes em relação às ações de combate tráfico de seres
humanos e sugestões de como o país pode se fortalecer na implementação da Convenção e lidar com os
problemas identificados.
469
CONSELHO DA EUROPA. Guidance note on the entitlement of victims of trafficking, and persons at risk of
being trafficked, to international protection. 2020. Disponível em: https://rm.coe.int/guidance-note-on-the-
entitlement-of-victims-of-trafficking-and-persons/16809ebf44. Acesso em: 20 jul. 2020.
470
CONSELHO DA EUROPA. Convenção de Lanzarote.2 007. Disponível em: https://rm.coe.int/168046e1d8.
Acesso em: 15 jul. 2020. A Espanha ratificou essa Convenção em 2010.
214
471
CONSELHO DA EUROPA. Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência
Contra as Mulheres e a Violência Doméstica. 2011. Disponível em: https://rm.coe.int/ 168046253d. Acesso
em: 15 jul. 2020.
472
OSCE. Combating human trafficking. Disponível em: https://www.osce.org/combating-human-trafficking.
Acesso em: 20 jul. 2020.
473
OSCE. Decision No. 557/Rev.1* Osce Action Plan to Combat Trafficking in Human Beings. Disponível
em: https://www.osce.org/files/f/documents/c/f/15944.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
215
pessoas, em 2018, a OSCE publica o documento “The critical role of civil society in combating
trafficking in human beings”474.
Recentemente, 2020, a OSCE lançou o estudo. “Leveraging innovation to fight
trafficking in human beings: a comprehensive analysis of technology tools”475, que faz um
balanço das ferramentas e iniciativas tecnológicas desenvolvidas para combater o tráfico de
seres humanos em suas diferentes formas. Também analisa como a tecnologia pode ser mal
utilizada para facilitar o tráfico de seres humanos, trazendo recomendações. Entre as várias
recomendações apresentadas: 1. Os governos devem considerar o aumento de recursos e
treinamento para legisladores, policiais, provedores de serviços, OSCs e universidades para
entender as diversas maneiras pelas quais a tecnologia está sendo mal utilizada por traficantes;
2. É possível utilizar a tecnologia para prevenir, interromper e contornar traficantes; 3. As novas
tecnologias podem oferecer novos meios de denúncia para vítimas de tráfico e outros atores; 4.
A tecnologia pode auxiliar na avaliação de risco, permitindo a identificação de áreas de risco
para maior vigilância, por exemplo, as redes de fornecimento no setor privado; 5. A tecnologia
pode auxiliar no monitoramento proativo de situações nas quais as pessoas podem estar em
risco de exploração; e 6. A tecnologia pode ser utilizada para agregação e análise de dados que
possam levar à identificação de tendências e padrões de tráfico de pessoas. Essa estratégia pode
ser importante, no sentido de dar respostas ao crime de tráfico humano e garantir alocação
eficiente de recursos humanos e financeiros476.
474
OSCE. The critical role of civil society in combating trafficking in human beings. 2018. Disponível em:
https://www.osce.org/files/f/documents/b/3/405197_0.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
475
OSCE. Leveraging innovation to fight trafficking in human beings: a comprehensive analysis of technology
tools. 2020. Disponível em: https://www.osce.org/files/f/documents/9/6/455206_1.pdf. Acesso em: 20 jul.
2020.
476
Ibid., p. 50-58.
216
de avaliação. Nem sempre os estados estão dispostos a aceitar essa nova configuração de forças
e de criação de normas e, por isso, muitas vezes, o jogo de interesses e de poder acabam gerando
disputas de regimes, como é o caso da disputa do regime do crime versus regime migratório,
ou regime migratório versus regime do trabalho ou ainda regime migratório versus regime
direitos humanos.
É importante reforçar mais uma vez que, dada à natureza multidimensional do problema
do tráfico de pessoas - que não constitui apenas um crime, mas principalmente, uma violação
dos direitos humanos -, exige uma resposta também multidimensional e complexa, envolvendo,
muitas vezes, questões relacionadas às relações de trabalho e migração.
O conceito de Regime Internacional nasceu na década de 1970, na Teoria Política e de
Relações Internacionais. Pode-se entender por regime internacional como conjuntos de
princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisão, explícitos ou implícitos, em
torno dos quais as expectativas de atores convergem em uma dada área das relações
internacionais477, ou ainda como instituições sociais que definem práticas, atribuem papéis e
guiam a interação dos ocupantes de tais papéis em uma determinada temática 478. Esses
conceitos iniciais davam conta de estudar e abordar os regimes como entidades autônomas e
independentes. A mudança de diversas características mundiais, principalmente pós-guerra fria,
proporcionou e exigiu o aumento da cooperação entre instituições, organizações, garantindo
maior interação e vínculos normativos cada vez mais sobrepostos. Nessa perspectiva, começa-
se a estudar e identificar as interações institucionais e a complexidade decorrente desses
regimes para a política mundial479.
Em 2004, Raustiala e Victor contribuem com o conceito de regime complexo, como
“um coletivo de regimes parcialmente sobrepostos e não hierárquicos” que governam uma
determinada área de temática480. Esses autores perceberam que os regimes complexos são
cheios de inconsistências e conflitos jurídicos porque as regras em um regime raramente são
coordenadas com regras sobrepostas em regimes relacionados. Essas inconsistências, muitas
vezes, acabam exigindo interpretação da norma. Sabe-se que interpretação de norma, por
477
KRASNER, S. D. International regimes. Ithaca: Cornel University Press, 1983. p. 2.
478
YOUNG, O. R. International governance: protecting the environment in a stateless society. Ithaca: Cornell
University, 1994. p. 3.
479
Ver em: OBERTHUR, Sebastian. Regime-interplay management: lessons from environmental policy and
law. 2015. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/303518693_Regime-interplay_
Management_Lessons_from_Environmental_Policy_and_Law. Acesso em: 15 ago. 2020.
480
RAUSTIALA, K.; VICTOR, D. The regime complex for plant genetic resources. International Organization,
v. 58, p. 277-309, 2004. Disponível em: https://pages.ucsd.edu/~dgvictor/publications/
Faculty_Victor_Article_2004_Regime%20Complex_International%20Organization.pdf. Acesso em: 15 ago.
2020.
217
abranger aspectos subjetivos, pode gerar inconsistências e, em alguns casos, desviar da intenção
final ou até mesmo utilizar a interpretação que mais interesse a uns em detrimento de outros.
É fundamental pensar e compreender a complexidade o Regime Internacional do tráfico
de pessoas para arrazoar uma construção que priorize a proteção e atenção às vítimas por meio
de um enfoque em direitos.
481
EDWARDS, Alice. Traffic in human beings: at the intersection of criminal justice, human rights,
asylum/migration and labor, Denver Journal of International Law & Policy, v. 36, 2007. Disponível em:
https://digitalcommons.du.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1268&context=djilp. Acesso em: 12 ago. 2020
482
RAUSTIALA, K.; DAVID, G. Victor. The regime complex for plant genetic resources. International
Organization, v. 3, p. 148, 2004.
483
MERA, Laura Gómez. The global governance of trafficking in persons: toward a transnational regime complex.
Journal of Human Trafficking, 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/23322705.2016. 1278344.
Acesso em: 15 ago. 2020.
218
484
Id.
485
ALTER, K.; MEUNIER, S. The politics of international regime complexity. Perspectives on Politics, v. 7, n.
1, p. 13-24, 2009. Disponível em: https://faculty.wcas.northwestern.edu/~kal438/KarenJAlter2/
International_Regime_Complexity_files/AlterMeunierComplexityPOP2009.pdf. Acesso em: 15 ago. 2020.
Ver em: BUSCH, M. Overlapping institutions, forum shopping, and dispute settlement in international trade.
International Organization, v. 61, p. 735–761, 2007. doi:10.1017/S0020818307070257. Ver em: HELFER,
L. Regime shifting: the TRIPS agreement and new dynamics of international intellectual property lawmaking.
Yale Journal of International Law, v. 29, n. 1, p. 1-83, 2004.
486
Nesse sentido, analisar-se-á a dinâmica global e interestatal, dando destaque ao papel desempenhado pelas
organizações da sociedade civil na governança do tráfico de pessoas, especialmente nos estudos de caso do
Brasil e da Espanha e, suas possíveis implicações no âmbito das ações da governança global para o
enfrentamento.
219
Regime Global
487
Abbott, K., & Snidal, D. (2009a). Strengthening international regulation through transnational new governance:
Overcoming the orchestration deficit. Vanderbilt Journal of Transnational Law, 42, p. 531. Disponível em:
https://www.econstor.eu/bitstream/10419/41589/1/635597918.pdf. Acesso em: 15 ago. 2020.
488
Abbott, K., & Snidal, D. (2009a). Strengthening international regulation through transnational new governance:
Overcoming the orchestration deficit. Vanderbilt Journal of Transnational Law, 42, p.531. Disponível em:
https://www.econstor.eu/bitstream/10419/41589/1/635597918.pdf. Acesso em: 15 ago. 2020.
489
MERA, Laura Gómez. The global governance of trafficking in persons: toward a transnational regime complex,
Journal of Human Trafficking, p. 8, 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/23322705.
2016.1278344. Acesso em: 15 ago. 2020.
220
490
Nessa perspectiva, o próximo capítulo identificará e analisará diversas modalidades de redes de governança,
apresentar-se-á várias modalidades dessas redes de governança no âmbito do Brasil e da Espanha, que atuam
no âmbito da governança para enfrentamento ao tráfico de pessoas.
221
491
MERA, Laura Gómez. The global governance of trafficking in persons: toward a transnational regime complex,
Journal of Human Trafficking, p. 8, 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/23322705.
2016.1278344. Acesso em: 15 ago. 2020.
492
ARADAU, Claudia. Rethinking trafficking in women, New York: Palgrave Macmillan, 2008.
493
Um regime de verdade se refere a como representações e intervenções bem-informadas sobre o tráfico de
pessoas o tornam legítimo, em função das relações de poder que o sustentam.
494
Uma vez que a própria modernidade traz, em si mesma, tempos de profundas incertezas, com poucas seguranças
e respostas: veja-se Giddens, quando explora os limites do saber, sobre a natureza do ser e a impossibilidade
de obter respostas e Bauman, argumentando sobre as condições da globalização que produzem uma incerteza
contínua, onde não se permite qualquer espaço seguro e sem risco, estimulando medo sobre ameaças e
segurança pessoa. Ver em: Giddens, Anthony. As conseqüências da modernidade. Tradução de Raul Fiker.
São Paulo: Editora UNESP, 1991. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/
pluginfile.php/4118660/mod_resource/content/1/ANTHONY%20GIDDENS%20-%20As%
20Consequencias%20da%20Modernidade.pdf. Acesso em: 20 ago. 2020. Ver em: BAUMAN, Zygmunt.
Modernidade e ambivalência. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1999.
Disponível em: https://fotografiaeteoria.files.wordpress.com/2015/05/bauman-z-modernidade-e-
ambivalencia.pdf. Acesso em: 10 abr. 2020.
222
495
ARADAU, Claudia. Rethinking trafficking in women. New York: Palgrave Macmillan, 2008. p. 86.
496
BOUTELLIER, Hans. The convergence of social policy and criminal justice. European Journal on Criminal
Policy and Research, v. 9, p. 361–380, 2001.
497
Os capítulos 2 e 3 já descreveram um pouco a impossibilidade de abordar um único perfil para as vítimas de
tráfico.
223
de trabalho. Essas mulheres nem sempre são vistas com os mesmos olhos que as vítimas de
tráfico que se enquadram naquele padrão estabelecido; nem sempre são vistas como
merecedoras da mesma proteção.
As ambiguidades e a impossibilidade objetiva de “medir” a dor fazem das OSCs espaços
de complementação e solidez de conhecimento para caracterizar as mulheres vítimas. De
alguma maneira, poder-se-ia considerar como esse conhecimento gera uma “categoria vítima”,
que pode ser conhecida, tratada, utilizada e instrumentalizada conforme esse conhecimento.
A crítica que pode ser feita às OSCs é a de, muitas vezes, fazer parte desse “jogo” de
construir perfis de vítimas e induzir, mesmo que inconscientemente, a exclusão daqueles perfis
que não se enquadram na “categoria vítima”, e que certamente estão sendo tratadas como
migrantes irregulares, acabando por enquadrar mulheres ao perfil que deve ser rechaçado, por
serem consideradas “perigosas”. Assim, ao invés de proteger todas as vítimas, elas estão
servindo de instrumento de exclusão de tantas outras.
Nesse sentido,
O fracasso das abordagens humanitárias é, portanto, essencialmente um
fracasso para consertar a fronteira entre quem é considerado perigoso e quem
não é considerado perigoso. Discursos alternativos encontram o limite de
práticas excepcionais - a maioria das mulheres ainda é deportada, mesmo
quando a deportação é reestilizada como "retorno voluntário". Eles também
estão sujeitos a formas de confinamento, colocadas em abrigos de reabilitação
e reintegração que pareçam mais adequados para a contenção do perigo do
que cuidar da vida das mulheres. A insegurança das mulheres é uma
construção ambígua que não anula a necessidade de estabelecer os limites do
perigo e do não perigo. Além disso, a promessa emancipatória de segurança
sempre deixa de fora outros: vítimas de tráfico que não se enquadram no
imaginário de sofrimento físico, passividade e deficiência. A insegurança das
vítimas de tráfico também deixa de fora as inseguranças de outras categorias
de pessoas que afeta imediatamente498.
498
“The failure of humanitarian approaches is thus essentially a failure to fix the border between who counts as
dangerous and who counts as non-dangerous. Alternative discourses encounter the limit of exceptional
practices – the majority of women are still deported, even when deportation is restyled as ‘voluntary return’.
They are also subjected to forms of confinement, placed in shelters for rehabilitation and reintegration that
appear more appropriate for the containment of danger than care for the life of women. The insecurity of
women is an ambiguous construction that does not cancel the need to establish the boundaries of danger and
non-danger. Moreover, the emancipatory promise of security always leaves out particular others: victims of
trafficking who do not fit the imaginary of physical suffering, passivity and impairment. The insecurity of
victims of trafficking also leaves out the insecurities of other categories of people it immediately affects.” Ver
em: ARADAU, Claudia. Rethinking trafficking in women. New York: Palgrave Macmillan, 2008. p. 86.
224
estratégia para a qual outras práticas são ajustadas, mesmo que contra o desejo da mulher
atendida.
Em muitos casos, os direitos das mulheres traficadas significam mais vigilância de
migrantes irregulares ou requerentes de asilo. Acabam, por assim dizer, sendo
instrumentalizadas para replicar uma fronteira e um limite de “perigo”, permitindo as reflexões:
esse conhecimento e experiência sobre as vítimas de tráfico pode e está remodelando a
configuração das práticas de segurança? Há mulheres vítimas de tráfico que estão fora dessa
proteção por não configurarem esse perfil estabelecido? Criando-se uma “categoria vítima”,
estar-se-ia diante de um dispositivo de segurança, caraterizado por uma rede trançada por um
conjunto de práticas, discursos e técnicas que partem da “categoria vítima” e da formação de
conhecimentos capazes de regular e organizar quem pode e quem não pode acessar os direitos
dos estados? Estariam as vítimas disciplinando, sendo úteis à caracterização da securitização
dos estados?
Esse dispositivo de segurança possui três linhas principais: poder, conhecimento e
subjetividade. As representações e intervenções são implantadas conforme os jogos de poder, a
mobilização de saberes e a constituição de assuntos. Analisando tal dispositivo, pode-se dizer
que se trata de assumir outra teoria do poder, formatar outra chave de interpretação histórica e
avançar em direção a outra concepção do poder; neste caso, o poder de controlar a locomoção
das pessoas. Há os desejáveis e os indesejáveis. Deve-se compreender esse poder com as
estratégias em que se originam, e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo
nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais. Trata-se de uma
multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio. Enseja empregar os seus
mecanismos como chave de inteligibilidade do campo social, no qual não deve ser procurado
um ponto central, um foco único de soberania de onde partiriam formas derivadas e
descendentes. O poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a reações desiguais e
móveis, vindo de baixo: não há no princípio das relações de poder uma oposição binária e global
entre os dominadores e os dominados. As grandes dominações são efeitos hegemônicos
continuamente sustentados pela intensidade de todos os afrontamentos499.
Foucault, em sua genialidade e na construção do entendimento sobre poder, ressalta que
as relações de poder são, ao mesmo tempo, intencionais e não subjetivas, o que não quer dizer
que resulte da escolha ou da decisão de um sujeito individualmente500. Além disso, reforça que
onde há poder, há resistência. O poder tem um caráter estritamente relacional das correlações
499
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1987.
500
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
225
de poder. Os pontos de resistência estão presentes em toda a rede de poder, e comumente são
pontos de resistências móveis e transitórios, que introduzem na sociedade clivagens que se
deslocam, rompem unidades e suscitam reagrupamentos, percorrem os próprios indivíduos,
recortando-os e os remodelando, traçando neles, em seus corpos e almas, regiões irredutíveis501.
O dispositivo de segurança permite analisar como uma diversidade de atores intervém
na problematização do tráfico de pessoas e compreender o papel que muitas das OSCs
desempenham no campo dominado pelos profissionais de segurança. Como já ressaltado,
apesar de o discurso desses atores desafiarem a securitização do tráfico de pessoas, muitas vezes
eles aparecem como parceiros desse sistema, gerando o conhecimento necessário para
estabelecer padrões de pessoas que podem gerar riscos e devem ser indesejados. Porém, nem
sempre esses perfis são tão estanques e definidos502.
Aqui cabe uma reflexão: 1. as OSCs entendem que assumem mais protagonismo no
enfrentamento ao tráfico de pessoas atuando como “parceiras” (nos processos de identificação
das vítimas, no atendimento e proteção das vítimas), junto aos profissionais de segurança nessa
lógica da securitização das fronteiras? E/ou 2. encontram nesses espaços de atuação uma forma
de contribuir para o enfrentamento ao tráfico de pessoas, inclusive pela existência de, muitas
vezes, financiamento estatal para manutenção de suas atividades? E/ou entendem o seu papel
importante no enfrentamento ao tráfico de pessoas, e por isso cada vez mais se verifica o
interesse de OSCs na atuação dessa temática, fazendo um contraponto e diálogo construtivo de
política pública com as autoridades? Até que ponto as pautas e interesses próprios de cada OSC
determinam o interesse social e vocação para atuar no enfrentamento ao tráfico de pessoas?
Talvez por isso não seja à toa que o número de OSCs tenha aumentado nos últimos anos,
principalmente na Europa, onde e quando o tema tem trazido “interesse” das autoridades
estatais e europeias503. De outro lado, será que o desejo de controlar os indesejáveis não tenha
colocado o tráfico de pessoas como um tema a ser priorizado nas agendas internacionais e
internas já desde o Protocolo de Palermo, levando a uma corrida por parte dos atores internos
na mobilização pelo tema do tráfico de pessoas?
Essas reflexões/questionamentos com as quais a pesquisa depara não possuem resposta
definitiva. O que, sim, pode ser constatado é que as OSCs têm conseguido entrar no campo do
501
Id.
502
ARADAU. Claudia. Trafficking in women: human rights of human risks? Canadian Woman Studiesiles=
Cahiers de la Femme, v. 22, n. 3-4, 2003. Disponível em: https://cws.journals.yorku.ca/index.php/cws/
article/view/6413. Acesso em: 15 abr. 2020.
503
O interesse das autoridades se dá pelo entendimento da necessidade de proteção às vítimas ou pela necessidade
de controle das fronteiras, dando força à análise do dispositivo de segurança?
226
tráfico de pessoas, participando dos processos de construção de políticas (de forma mais
institucionalizada ou não) e propondo configurações de conhecimento que são úteis para a
gestão do tráfico. Também é certo que as OSCs têm construído as suas participações no
enfrentamento ao tráfico de pessoas pelo menos nestes 20 anos, desde o Protocolo de Palermo,
buscando ocupar espaços, individuais ou coletivos, institucionais ou não, na tentativa de
participar da construção das políticas públicas, proteger e atender as vítimas de tráfico de
pessoas, conforme a configuração da política pública de cada país.
A percepção que se tem como pesquisador é de que há diversas configurações de
organizações, com interesses e “egos” diversos, com vários posicionamentos sobre a
prostituição, organizações laicas e confessionais. Certamente, as suas atuações estão pautadas
conforme as suas configurações e valores. Algumas dessas OSCs, com certeza, não percebem
como funciona o dispositivo de segurança, e assim acabam sendo levadas pelo processo; outras,
percebendo ou não, querem estar à frente da atuação no atendimento, proteção e prevenção, e
acabam incorporando esse papel de “fornecedoras” de conhecimento para a configuração da
categoria de vítima a ser protegida; outras ainda acreditam que a sua atuação é importante para
a garantia do respeito aos direitos das vítimas de tráfico de pessoas.
Esse jogo de forças e de busca por espaços de poder não é simples de ser percebido. O
próprio dispositivo de segurança leva em conta esses jogos de poderes e de contraposição de
forças. Esta pesquisa não pretende descrever, identificar ou analisar as OSCs nessa perspectiva,
porém, entende ser fundamental demonstrar que uma percepção crítica da atuação das OSCs no
enfrentamento ao tráfico de pessoas.
A percepção da construção da política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas,
especialmente a realidade da Espanha e do Brasil, perpassa por como as OSCs, de forma geral,
vêm atuando, muitas vezes como um contraponto (em relação aos interesses do Estado) para a
sinalização de violências institucionais, métodos que violam direitos, ausências de normativas
e procedimentos conforme disposições internacionais globais e regionais e atores precursores
da própria política. Também permite a ponderação de possíveis debilidades e desafios da
própria atuação dessas organizações, no sentido de promover a sua reflexão crítica para uma
atuação em defesa dos direitos e interesses das vítimas de tráfico, mesmo que isso seja um
rompimento com um sistema que se auto nutre por meio do invisível dispositivo de segurança.
Para além desse debate sobre a força política desempenhada por esses atores não
governamentais, há uma discussão relevante sobre o papel ocupado por essas organizações,
principalmente aquelas que assumem papel de prestadora de serviços sociais, no âmbito da
227
504
FERNANDES, R. C. Privado, porém público: o terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará, 1994.
505
TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. 9.ed. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 394.
506
TOURAINE, Allain. Palavra e sangue: política e sociedade na América Latina. São Paulo, Unicamp.1989.
507
TOURAINE, Alain, ¿Podremos vivir juntos? Iguales y diferentes. Madrid: PPC Editorial, 1997.
508
[...] O modelo neoliberal da Boa Governança, termo utilizado pelo Consenso de Washington, propõe que a
propriedade será gerada pelo relacionamento orgânico e interdependente da economia de mercado, do Estado
e da sociedade civil. Ver em: SZAZI, Eduardo. Terceiro setor: regulação no Brasil. São Paulo: Peirópolis,
2001.
228
509
ONU. Agenda 21 Global. Cap. 27: Fortalecimento do papel das organizações não governamentais: parceiros
para um desenvolvimento sustentável. Disponível em: https://www.mma.gov.br/responsabilidade-
socioambiental/agenda-21/agenda-21-global. Acesso em: 1 abr. 2019.
510
PEREZ, Marcos Augusto. A participação da sociedade na formulação, decisão e execução das políticas
públicas. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São
Paulo: Saraiva, 2006. p. 171.
229
511
THE EUROPEAN UNION AGENCY FOR FUNDAMENTAL RIGHTS. Challenges facing civil society
organisations working on human rights in the UE. 2017. p. 13. Disponível em: https://fra.europa.eu/sites/
default/files/fra_uploads/fra-2018-challenges-facing-civil-society_en.pdf. Acesso em: 15 set. 2020.
512
Id.
513
EUROPEAN PARLIAMENT. Directorate-General for External Policies. Policy Department, Shrinking space
for civil society: the UE response. 2017. p. 8. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/RegData/
etudes/STUD/2017/578039/EXPO_STU(2017)578039_EN.pdf. Acesso em: 15 set. 2020.
514
OSCE. The critical roel of civil society in combating trafficking in human beings. 2018. Disponível em:
https://www.osce.org/secretariat/405197. Acesso em: 10 out. 2020.
230
promover o reconhecimento e o exercício dos direitos sociais para alcançar a coesão e inclusão
social em todas as suas dimensões e prevenir que certos grupos sociais sejam excluídos de
níveis suficientes de bem-estar515. Trata-se de um setor consolidado, com dimensões muito
semelhantes às de outros países vizinhos da Espanha, e que experimentou crescimento muito
significativo, especialmente nas últimas duas décadas, principalmente vinculado ao
desenvolvimento da sociedade civil na Espanha. Percebe-se que esse setor ocupa um papel
importante na sociedade espanhola, não apenas na prestação de suporte e atendimento às
pessoas mais vulneráveis, mas como canal de participação das pessoas e ator-chave no design
e construção de políticas sociais, especialmente na área de serviços sociais. O crescimento
significativo das OSCs e ou seu papel ativo em relatar e atender às necessidades e problemas
sociais contribuíram para tornar antigos e novos riscos sociais mais visíveis, na medida em que
estes excederam a capacidade e o alcance do Estado de Bem-Estar Social516.
Especificamente na Espanha, são consideradas organizações da sociedade civil517:
Artigo 2.
1. As entidades do Terceiro Setor de Ação Social são aquelas organizações de
privado, decorrente do cidadão ou da iniciativa social, sob diferentes
modalidades, que respondem a critérios de solidariedade e participação social,
para fins de interesse geral e ausência de lucro, que promovem o
reconhecimento e exercício de direitos civis, bem como os direitos
econômicos, sociais ou culturais de
pessoas e grupos que sofrem de condições vulneráveis ou que estão em risco
de exclusão social.
2. De qualquer forma, as entidades do Terceiro Setor de Ação Social são as
associações, fundações, bem como as federações ou associações que as
integram, desde que cumprir as disposições desta Lei. Para a representação e
defesa de seus interesses de maneira mais efetiva e de acordo com a Lei
Orgânica 1/2002, de 22 de março, que regulamenta direito de associação e
com seus regulamentos específicos, as entidades do Terceiro Setor de A Ação
Social pode formar associações ou federações que, por sua vez, podem ser
agrupadas cada.
Apesar da legislação espanhola não estabelecer critérios objetivos e legais que indiquem
quais organizações da sociedade civil espanholas devem ser consideradas especializadas em
tráfico de pessoas e mensurem o grau e especialidade destas organizações, principalmente para
515
MINISTERIO DE SANIDAD, SERVICIOS SOCIALES E IGUALDAD. II Plan Estratégico del Tercer
Sector de Acción Social, 2013-2016. p. 19. Disponível em: https://www.mscbs.gob.es/ssi/familiasInfancia/
ongVoluntariado/docs/Plan-Estrategico-TS.pdf. Acesso em: 15 set. 2020.
516
PLATAFORMA DE ONG DE ACCIÓN SOCIAL. El Tercer Sector de Acción Social en España 2019:
nuevos horizontes para un nuevo contexto sociopolítico. 2020. p.10. Disponível em: https://www.
plataformaong.org/ARCHIVO/documentos/biblioteca/1583424466_informe-poas-completo.pdf. Acesso em:
15 fev. 2020.
517
Ver em: BOE. Ley 43/2015, de 9 de octubre, del Tercer Sector de Acción Social. Disponível em:
https://www.boe.es/buscar/pdf/2015/BOE-A-2015-10922-consolidado.pdf. Acesso em: 15 out. 2020.
231
Artigo 2º
I - Organização da sociedade civil:
a) entidade privada sem fins lucrativos que não distribua entre os seus sócios
ou associados, conselheiros, diretores, empregados, doadores ou terceiros
eventuais resultados, sobras, excedentes operacionais, brutos ou líquidos,
dividendos, isenções de qualquer natureza, participações ou parcelas do seu
patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, e que os
aplique integralmente na consecução do respectivo objeto social, de forma
imediata ou por meio da constituição de fundo patrimonial ou fundo de
reserva;
b) as sociedades cooperativas previstas na Lei no 9.867, de 10 de novembro
de 1999; as integradas por pessoas em situação de risco ou vulnerabilidade
pessoal ou social; as alcançadas por programas e ações de combate à pobreza
e de geração de trabalho e renda; as voltadas para fomento, educação e
capacitação de trabalhadores rurais ou capacitação de agentes de assistência
técnica e extensão rural; e as capacitadas para execução de atividades ou de
projetos de interesse público e de cunho social.
c) as organizações religiosas que se dediquem a atividades ou a projetos de
interesse público e de cunho social distintas das destinadas a fins
exclusivamente religiosos.
518
MINISTERIO DE LA IGUALDAD. Delegación del Gobierno contra la Violéncia de Género. Subvenciones
“Trata de Mujeres y Niñas con fines de explotación sexual”. Disponível em: https://violenciagenero.
igualdad.gob.es/otrasFormas/trata/subvenciones/home.htm. Acesso em: 15 out. 2020.
519
Ver em: BRASIL. Conceito de sociedade civil organizada: marco regulador organização sociedade civil.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13019.htm. Acesso em: 20
nov. 2019.
520
Como, por exemplo, quando atores da sociedade civil se articulam e cooperam para retornar uma vítima de
tráfico de pessoas, mesmo que os Estados (tanto de origem como de destino) não participem de forma
institucional e, essa cooperação permita que as falhas no retorno, que é responsabilidade dos Estados, não viole
ainda mais os direitos da vítima retornada.
232
521
MERA, Laura Gómez. The global governance of trafficking in persons: toward a transnational regime complex.
Journal of Human Trafficking, 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/23322705.2016. 1278344.
Acesso em: 15 ago. 2020.
522
Aqui se poderia levar em conta os Regimes Refugio, Migratório, Tráfico de Pessoas, Direitos Humanos etc.
523
Veja-se o caso da CONATRAP (Brasil) e do Fórum contra o tráfico de pessoas (Espanha).
524
Internamente, na Espanha, pode-se mencionar: Rede Espanhola contra la Trata de Personas, Red Gallega contra
la Trata de Personas e Red Catalana contra la Trata de Personas. Outra experiência interessante é a rede de
OSCs localizadas em diversos países, denominada Aliança Global Contra o Tráfico de Mulheres (GAATW),
rede de mais de 80 OSCs de todas as regiões do mundo, que compartilham uma profunda preocupação com
mulheres, crianças e homens cujos direitos humanos foram violados pelo tráfico de pessoas.
233
525
MATIAS, Eduardo Felipe P. A humanidade e suas fronteiras: do Estado soberano à sociedade global. São
Paulo: Paz e Terra, 2005. p. 462.
526
GONÇALVES, Alcindo. Governança global. In: GONÇALVES, Alcindo; COSTA, José Augusto Fontoura.
Governança global e regimes internacionais. São Paulo: Almedina, 2011.
527
KEOHANNE, Robert O.; NYE JR, Joseph S. Introduction. In: NYE, Joseph S.; DONAUHE, John D. (ed.).
Governance in a globalizing world. Washington, DC: Brooking Press, 2000. p. 12.
528
YOUNG, Oran R. International governance: protecting the environment in a stateless society. Ithaca: Cornell
University Press, 1994. p. 15.
234
529
OSCE. The critical role of civil society in combating trafficking in human beings. 2018. Disponível em:
https://www.osce.org/files/f/documents/b/3/405197_0.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
530
Podem ser consideradas a experiência tanto das OSCs da Espanha e do Brasil: Red Contra la Trata de Personas,
Plataforma europeia contra o tráfico de pessoas, Coletivo pessoas migrantes Europa Leste America Latina,
RENATE – Red religiosa europeia, COADNET (Redes Católicas), Rede Intereclesial contra o tráfico, Global
Alliance Against Traffic in Women (GAATW), Coalition Against Trafficking in Women (CATW) e outras
redes de OSCs que serão descritas no caso de estudo da Espanha.
531
A Espanha passa, entre setembro/2020 e junho/2021, pelo processo de monitoramento do Convênio de Varsóvia
(Conselho da Europa). As OSCs já foram ouvidas por meio da Red Española contra la Trata de Personas
(informação obtida por meio de entrevista). PROYECTO ESPERANZA. GRETA recuerda que España debe
seguir combatiendo todas las formas de trata. Disponível em: https://www. proyectoesperanza.org/greta-
recuerda-que-espana-debe-seguir-combatiendo-todas-las-formas-de-trata/. Acesso em: 15 set. 2020.
235
3.5.2.1 As redes Global Alliance Against Traffic in Women (GAATW) e Coalition Against
Trafficking in Women (CATW)
Uma das formas de cooperação e organização que as OSCs utilizam para fortalecimento,
coordenação e atuação é se estabelecer em redes. Existem muitas redes de OSCs que têm como
temática o enfrentamento ao tráfico de pessoas. Procurou-se trazer e descrever essas duas redes
pois elas, apesar de terem a temática do tráfico como tema central, cada uma tem um olhar
diferente sobre o fenômeno, a prostituição e a exploração das pessoas. Essas posições acabam
por direcionar a sua atuação.
Nos anos 1990, as mudanças políticas, econômicas e sociais mundiais estimularam o
debate sobre o tráfico de pessoas, principalmente por pressão de OSCs e movimentos
feministas, aprofundando o debate sobre a prostituição. Redes de organizações, como a
Coalition Against Trafficking in Women (CATW) e a Global Alliance Against Traffic in Women
(GAATW), com posicionamentos diferentes, vieram a influenciar o desenho das políticas de
enfrentamento ao tráfico, e a prostituição se tornou um ponto de tensão no interior do debate.
A organização não governamental Coalition Against Trafficking in Women (CATW)
surge, em 1993, como a primeira organização no mundo a enfrentar o tráfico internacional de
pessoas e a exploração sexual comercial de mulheres e crianças em todo o mundo. É a primeira
rede mundial para lutar contra o tráfico de pessoas em nível internacional, com uma linha
abolicionista. O objetivo da CATW é se envolver na defesa, educação, serviços às vítimas e
programas de prevenção para as vítimas do tráfico e da prostituição na Ásia, África, América
Latina, Europa e América do Norte532. A perspectiva da rede é de que a prostituição deve ser
entendida como um mal, uma violência de gênero e dos direitos humanos.
De outro lado, a Rede Global Alliance Against Traffic in Women (GAATW) é composta
por organizações da sociedade civil de todas as regiões do mundo, que compartilham uma
profunda preocupação pelas mulheres, crianças e homens cujos direitos humanos foram
violados pelo tráfico de pessoas. A GAATW está empenhada em trabalhar por mudanças nos
sistemas e estruturas políticas, econômicas, sociais e legais que contribuem para a persistência
do tráfico de pessoas e outras violações de direitos humanos, no contexto de movimentos
migratórios para diversas finalidades, incluindo segurança do trabalho e subsistência.
Em particular, a GAATW aborda as diversas questões decorrentes do tráfico de pessoas,
conforme atualmente definido no Protocolo de Palermo. Nesse contexto, trata dos aspectos
centrais do tráfico de pessoas: trabalho forçado e serviços em todos os setores da economia
532
CATW. Site oficial. Disponível em: https://catwinternational.org/about/. Acesso em: 15 out. 2020.
236
formal e informal, bem como a organização pública e privada do trabalho. É uma rede
apartidária, independente de governos, questões comerciais ou afiliações religiosas. No entanto,
os seus membros são autônomos e livres para entrar em afiliações de sua escolha, desde que
não sejam contraditórios aos Princípios Básicos do GAATW.
A missão da GAATW consiste em garantir que os direitos humanos das mulheres
imigrantes sejam respeitados e protegidos pelas autoridades e agências internacionais. Almejam
a incorporação dos padrões de direitos humanos previstos nos Tratados de Direitos Humanos,
principalmente os da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional
e o seu protocolo adicional contra o tráfico de pessoas, principalmente mulheres e crianças.
A GAATW foi fundada em 1994, na conferência de Chiang Mai, Tailândia em que os
participantes estavam preocupados com o discurso e ativismo construídos em torno do tráfico
de mulheres. A aliança nasceu de uma decisão coletiva de entender os elementos do tráfico sob
a perspectiva de direitos humanos, a fim de melhorar a vida das mulheres traficadas (GAATW,
2016).
Mesmo que não se pretenda tomar posicionamento sobre nenhuma das duas redes
descritas, entende-se importante dizer que, certamente, os seus posicionamentos, trazidos e
construídos pelas OSCs que as integram, repercutem na atuação interna de cada Estado.
Os estudos de caso de governança do Brasil e da Espanha para o enfrentamento ao
tráfico de pessoas que serão desenvolvidos nos próximos capítulos, parecem oportunos para
verificar, em duas práticas distintas, como se articulam os atores e que espaços institucionais
ou não são ocupados na construção desse Regime complexo, desde perspectivas mais micro
(estatais), até identificação, proteção das vítimas, mapeamento do tráfico e monitoramento.
Se este capítulo apresentou a configuração do regime complexo do tráfico de pessoas
dando ênfase nas mulheres, apontando os principais atores interestatais e o seu corpo normativo
e recomendativo, nos próximos capítulos (4 e 5) serão descritos os regimes complexos do Brasil
e da Espanha.
237
PARTE 2
ESTUDOS DE CASOS BRASIL E ESPANHA
238
A partir do capítulo quatro, tem início a segunda parte desta Tese, que abrange os dois
estudos de casos: os Regimes Complexos do tráfico de pessoas no Brasil e na Espanha, como
forma de ilustrar as hipóteses formuladas na tese.
Nesse sentido, este capítulo tem a finalidade de identificar como o regime Internacional
complexo de Enfrentamento ao tráfico de pessoas foi sendo incorporado internamente pelo
Brasil e como se encontra nesse momento.
Trata-se de um olhar sobre um processo em construção. A intenção não é comparar os
dois modelos, no sentido de valorar se um é melhor que outro, até porque não é possível valorar
enfrentamentos diferentes, conformação de políticas públicas diversas. Pretende-se
compreender como esses dois países foram encontrando, no jogo de forças dos atores atuantes
na temática, principalmente governamentais e da sociedade civil, caminhos para o
enfrentamento ao tráfico de pessoas e, se esses estados estão no caminho da construção de um
enfrentamento ao tráfico de pessoas, especialmente no que tange a atenção e proteção às
vítimas, com enfoque em direitos humanos.
O olhar sobre o processo de construção desse regime internamente também possibilita
identificar e perceber a participação das organizações da sociedade civil em cada um desses
Estados e descrever como esses atores pressionam, articulam, monitoram, atendem e promovem
a proteção das vítimas, às vezes em parceria com Poder Público, às vezes, pressionando para
que a atenção seja prestada pelo próprio Estado. A atuação dessas organizações também recebe
diversas críticas, o que será incorporado na análise.
Conforme já indicado no problema de pesquisa, entre outros aspectos, a escolha do
Brasil e da Espanha se dá pela diversidade de modelos adotados para a atenção e proteção das
vítimas e porque na Espanha encontram-se diversas vítimas de tráfico brasileiras, o que permite
uma análise da atuação das redes de atores internas, tanto do Brasil como da Espanha e numa
perspectiva de articulação internacional, principalmente quando se fala do retorno dessas
vítimas ao Brasil.
239
533
BUCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In: BUCI, Maria Paula Dallari (org.).
Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 01-49.
534
MASSA-ARZABE, Patrícia Helena. Dimensão jurídica das políticas públicas. In: BUCCI, Maria Paula Dallari
(org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 01-49.
535
FREY, Klaus. Políticas públicas: um debate conceitual e reflexões referentes à prática da análise de políticas
públicas no Brasil. Planejamento e Políticas Públicas, Brasília, DF, n. 21, p. 211-260, jun. 2000. Disponível
em: http://www.ipea.gov.br/ppp/index.php/PPP/article/viewFile/89/158. Acesso em: 18 set. 2020. Ver em:
LOTTA, Gabriela Spanghero. Implementação de políticas públicas: o impacto dos fatores relacionais e
organizacionais sobre a atuação dos burocratas de nível de rua no Programa Saúde da Família. Tese
(Doutorado) - Universidade de São Paulo, 2012. Disponível em: https://gabrielaslotta.files.wordpress.com/
2012/09/tese-doutorado-gabriela-lotta.pdf. Acesso em: 12 out. 2020. Ver em: LOTTA, Gabriela (org.). Teorias
e análises sobre implementação de políticas públicas no Brasil. ENAP, 2019. Disponível em:
https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/4162/1/Livro_Teorias%20e%20An%C3%A1lises%20sobre%20I
mplementa%C3%A7%C3%A3o%20de%20Pol%C3%ADticas%20P%C3%BAblicas%20no%20Brasil.pdf.
Acesso em: 15 nov. 2020.
536
BUCCI, Maria Paula Dallari. Buscando um conceito de políticas públicas para a concretização dos direitos
humanos. In: BUCCI, Maria Paula Dallari et al. Direitos humanos e políticas públicas. Cadernos Polis, São
Paulo, 2001.
240
Sob tal enfoque, o horizonte nesta pesquisa é o de analisar se o Brasil e a Espanha estão
no caminho da construção do enfrentamento ao tráfico de pessoas sob a perspectiva do enfoque
em direitos e, consequentemente, da priorização das pessoas, neste caso, das mulheres vítimas
de tráfico.
Inicia-se com a descrição e análise crítica do regime complexo de governança do Brasil
para o enfrentamento ao tráfico de pessoas e, posteriormente, da Espanha.
537
BENDELAC, Leticia; TERESI, Verônica Maria. La trata de mujeres en Brasil: análisis sobre los principales
aspectos de la política pública nacional de combate a la trata de personas. 2015. p. 12-26. (Cadernos Temáticos
sobre Tráfico de Pessoas: V. 5) Ver também: LEAL, Maria Lúcia Pinto. A Mobilização das ONGs no
Enfrentamento da Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes. 1. ed. Brasília: Editora UnB,
2014. v. 1. 388p. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/article/view/12869. Acesso
em: 15 agosto. 2020.
538
PESTRAF. Pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes brasileiras para fins de exploração
sexual no Brasil. Disponível em: http://www.andi.org.br/sites/default/files/legislacao/ Pestraf_2002.pdf.
Acesso em: 1 mar. 2020.
241
(estadual) e em cada Câmara Municipal dos municípios brasileiros. Naquele ano, a Frente
Parlamentar lançou o Manual de Formação e Ação de Frentes Parlamentares em defesa dos
Direitos da Criança e Adolescente e iniciou uma mobilização intensa dos congressistas para
aprovação de matérias legais que garantissem o enfrentamento de todas as formas de violência
contra crianças e adolescentes, principalmente a exploração sexual.
A partir desse momento percebeu-se que o Brasil era um país de origem, uma vez que
vítimas de tráfico brasileiras são encontradas em outros países 539, de trânsito e de destino de
vítimas. Verificou-se a necessidade de implementação de políticas públicas fundamentais para
o enfrentamento desse crime com dimensões transnacionais.
Percebe-se que, talvez em função da atuação provocativa e instigadora das organizações
da sociedade civil, principalmente do âmbito do enfrentamento à exploração sexual contra
crianças e adolescentes, é que o enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil sempre teve, de
uma maneira ou outra, a atuação das OSCs. 540
Em 2004, a ratificação brasileira da Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional e seus respectivos protocolos adicionais já mencionados, apontaram
a intenção do Brasil em cooperar para o combate ao crime organizado transnacional, ao tráfico
de pessoas, contrabando de migrantes e tráfico de armas e drogas.541
Por outro lado, como aponta Bela Feldman-Bianco, o Brasil vinha naquele momento,
construindo seu alinhamento às políticas globais (2003-2010), aparentemente em conexão com
os fortes investimentos feitos pelo governo brasileiro em prol de transformar o país em
importante global player. Neste contexto elencam-se a coordenação da MINUSTAH – Missão
das Nações para a Estabilização do Haiti (2004-2017), o protagonismo do Brasil no
MERCOSUL e na criação da UNASUL (União dos Países Sul-Americanos), em 2008. Além
disso o Brasil adere à Convenção Internacional para a Supressão do Financiamento do
Terrorismo542 e a Convenção contra o Crime Organizado Transnacional e especialmente, o
539
Passados 20 anos desse momento inicial de identificação do fenômeno do tráfico de mulheres, crianças e
adolescentes, houve mudanças consideráveis nos fenômenos migratórios do Brasil. Entre eles, pode-se verificar
a caracterização do Brasil como país de destino e de trânsito, principalmente a partir de 2010, dos fluxos de
migrantes, refugiados entre outros, colombianos, haitianos, sírios, venezuelanos, congoleses, bengalês, entre
outros. CONARE. Refúgio em números, 2019, 4ª edição. Disponível em: https://www.acnur.
org/portugues/wp-content/uploads/2019/07/Refugio-em-nu%CC%81meros_versa%CC%83o-23-de-julho-
002.pdf. Acesso em: 30 fev. 2020.
540
Mais adiante será destacado esse aspecto de forma mais específica.
541
BRASIL. DECRETO Nº 5.017, DE 12 DE MARÇO DE 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção
das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do
Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças.2004. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5017.htm. Acesso em: 15 maio 2020.
542
BRASIL. Planalto. Decreto n. 5640/2005. Promulga a Convenção Internacional para Supressão do
Financiamento do Terrorismo, adotada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 9 de dezembro de 1999
242
Protocolo de Palermo (2004). Aponta ainda, a autora que, esse alinhamento brasileiro
proporcionou alinhavar parcerias com a UNODC, OIM e International Centre for Migration
Policy Development (ICMPD) uma vez que estas “têm atuado na padronização e disseminação
de visões hegemônicas sobre o fenômeno migratório e na consolidação de lógicas policialescas
e securitizadas de “governança internacional das fronteiras”, formuladas a partir de nações
centrais”. Reforça que, estratégias comumente utilizadas por imigrantes tendem a ser
redefinidas em termos de contrabando de migrantes, tráfico de pessoas e imigração ilegal.”543.
Essas ratificações impulsionaram o poder público a desenvolver ações com o objetivo
de criar mecanismos que pudessem equacionar o enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil,
valendo-se, em muitos casos, da expertise dos atores544 da sociedade civil que já vinham
acompanhando empiricamente situações de tráfico de pessoas em várias regiões do Brasil. Suas
contribuições foram relevantes para o início da construção de uma política pública que
conseguisse enfrentar o tráfico de pessoas a partir de diagnósticos realizados desde a prática e
do experimentado pela atuação das OSCs. Assim foi como, a partir de 2004 inicia-se o processo
de construção de uma política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil.
Importante destacar que, no início a discussão sobre o tráfico era basicamente voltada
para o tráfico para fins de exploração sexual. Com o passar dos anos, em função de diferentes
demandas na agenda de direitos humanos no Brasil, principalmente a agenda do trabalho
escravo e forçado, agenda bastante desenvolvida no Brasil, começou-se a dar enfoque às outras
modalidades do tráfico de pessoas545. Guilherme Dias e Bela Feldman-Bianco apontam ainda
que a escolha de estrutura criminal para questões relacionadas à mobilidade humana resulta no
tensionamento entre a questão migratória, securitização e o campo da justiça criminal
produzindo uma visão hegemônica, violência e desrespeito aos direitos humanos546.
A temática das políticas públicas como campo de pesquisa é antiga548, porém, a partir
da década de 90, com a redemocratização do Brasil e da Constituição de 1988, foram realizadas
tentativas para criar políticas públicas universais e estáveis, como é o caso do Sistema Único
de Saúde (SUS)549 e, mais recentemente, em 2005, o Sistema Único da Assistência Social
547
DOMENECH, Eduardo. Las políticas de migración en Sudamérica: elementos para el análisis crítico del control
migratorio y fronterizo. Dossiê: “Mobilidade Humana: Perspectivas e desafíos”. Terceiro Milênio. Revista
Crítica de Sociologia e Política, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2015. Ver também FELDMAN-BIANCO, Bela. O Brasil
frente ao regime global de controle das migrações: direitos humanos, securitização e violências. Travessia -
Revista do Migrante, Ano XXXI, n. 83, maio-ago. 2018. Disponível em: https://www.
academia.edu/38205710/O_Brasil_frente_ao_regime_global_de_controle_das_migra%C3%A7%C3%B5es_
pdf?email_work_card=title. Acesso em: 15 ago. 2020.
548
Ver em: DYE, Thomas. Understanding public policy. New Jersey: Englewood Cliffs, Prentice-Hall. 1975.
Ver também em: SMITH, Kevin B.; LARIMER, Christopher W. The public policy theory primer. Boulder-
CO: Westview Press. 2009. Dye descreve políticas públicas como sendo “o que o governo escolhe fazer ou
não fazer”. Por outro lado, Smith e Larimer, definem como “Não há definição de políticas públicas precisa e
universal [...]. Há uma visão comum de que as políticas públicas envolvem o processo de fazer escolhas e os
resultados das escolhas; de que o que faz as políticas públicas realmente “públicas” é que essas escolhas se
baseiam nos poderes coercitivos do Estado, e que, em sua essência, política pública é uma resposta a um
problema percebido.”
549
O Sistema Único de Saúde (SUS) é um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo,
abrangendo desde o simples atendimento para avaliação da pressão arterial, por meio da Atenção Primária, até
o transplante de órgãos, garantindo acesso integral, universal e gratuito para toda a população do país. Com a
sua criação, o SUS proporcionou o acesso universal ao sistema público de saúde, sem discriminação. A atenção
integral à saúde, e não somente aos cuidados assistenciais, passou a ser um direito de todos os brasileiros, desde
a gestação e por toda a vida, com foco na saúde com qualidade de vida, visando a prevenção e a promoção da
saúde. A gestão das ações e dos serviços de saúde deve ser solidária e participativa entre os três entes da
Federação: a União, os Estados e os municípios. A rede que compõe o SUS é ampla e abrange tanto ações
quanto os serviços de saúde. Engloba a atenção primária, média e alta complexidades, os serviços urgência e
emergência, a atenção hospitalar, as ações e serviços das vigilâncias epidemiológica, sanitária e ambiental e
assistência farmacêutica. Ver em: BRASIL. Ministério da Saúde. O que é o Sistema Único de Saúde (SUS)?
Disponível em: http://www.saude.gov.br/sistema-unico-de-saude. Acesso em: 15 ago. 2020.
244
(SUAS)550. Essas e outras políticas públicas apresentam, ainda hoje, uma série de desafios para
sua implementação, desenvolvimento, monitoramento e avaliação.
As variáveis que atuam em uma política pública são diversas e complexas, com a
finalidade de garantir grandes ou médias políticas, desburocratizadoras e principalmente
trazendo uma alternativa na aproximação das aspirações populares para a gestão pública. Nessa
linha, as políticas públicas aparecem como uma alternativa de aprimorar nossas democracias –
que em muitos casos garantem-se de forma finalista pelo voto popular (democracia
representativa) – mas que se vêm afastando da sua finalidade primordial que é a de representar
o interesse popular cada vez mais complexo, e que não deve, nem pode, se resumir ao momento
da eleição (democracia participativa)551.
Percebe-se que a construção de políticas públicas possibilita pensar e reconstruir
“espaços” (engenharias institucionais) que atendam características da temática objeto da
mesma, os vetores relevantes, os atores e os interesses a serem contemplados, impossibilitando
utilizar modelos prontos, estruturas fechadas, na tentativa de obter os melhores resultados, que,
deve ser, a garantia de direitos.
Inicialmente são descritos e analisados os principais instrumentos e atores que compõem
a política nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas, principalmente no que se refere a
política de assistência e garantia de direitos das vítimas. Como já dito, o processo de construção
550
O Sistema Único de Assistência Social (Suas) é um sistema público que organiza os serviços, benefícios,
programas e projetos da Política de assistência social no Brasil. Com um modelo de gestão participativa, ele
articula os esforços e os recursos dos três níveis de governo, isto é, municípios, estados, Distrito Federal e a
União, para a execução e o financiamento da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), envolvendo
diretamente estruturas e marcos regulatórios nacionais e locais. O Suas organiza as ações da assistência social
em dois tipos hierarquizados de proteção social. A primeira é a Proteção Social Básica, destinada à prevenção
de riscos sociais e pessoais, por meio da oferta de programas, projetos, serviços e benefícios a indivíduos e
famílias em situação de vulnerabilidade social. A segunda é a Proteção Social Especial, destinada a famílias e
indivíduos que já se encontram em situação de risco e que tiveram seus direitos violados por ocorrência de
abandono, maus-tratos, abuso sexual, uso de drogas, entre outros. No Suas também há a oferta de Benefícios
Assistenciais, prestados a públicos específicos de forma integrada aos serviços, contribuindo para a superação
de situações de vulnerabilidade. O Suas também gerencia a vinculação de entidades e organizações de
assistência social ao Sistema, mantendo atualizado o Cadastro Nacional de Entidades e Organizações de
Assistência Social (CNEAS) e concedendo certificação a entidades beneficentes. Coordenado pelo Ministério
da Cidadania, o Sistema é composto pelo poder público e sociedade civil, que participam diretamente do
processo de gestão compartilhada. Nesse modelo de gestão, as ações e a aplicação de recursos do Suas são
negociadas e pactuadas nas Comissões Intergestores Bipartite (CIBs) e na Comissão Intergestores Tripartite
(CIT). Esses procedimentos são acompanhados e aprovados pelo Conselho Nacional de Assistência Social
(CNAS) e pelos Conselhos Estadual e Municipal de Assistência Social, que desempenham um importante
trabalho de controle social. Criado a partir das deliberações da IV Conferência Nacional de Assistência Social
e previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), o Suas teve suas bases de implantação consolidadas
em 2005, por meio da sua Norma Operacional Básica do Suas (NOB/Suas), que apresenta claramente as
competências de cada órgão federado e os eixos de implementação e consolidação da iniciativa. Ver em:
BRASIL. Ministério Da Cidadania. O que é o SUAS? Disponível em: http://mds.gov.br/ assuntos/assistencia-
social/o-que-e. Acesso em: 15 ago. 2020.
551
BOAVENTURA, S. AVRITZER, L. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
245
552
Em 2004, ano em que o Brasil ratificou o “Protocolo de Palermo” (Decreto nº 5.017), o tema do tráfico de
pessoas esteve presente no desembolso do Plano Plurianual da União de 20042007, com a previsão de ações
de capacitação dos profissionais da rede de atenção e da realização de diagnósticos e pesquisas, de modo mais
ampliado, em todo o país. PORTAL BRASILEIO DE DADOS ABERTOS. Plano Pluri-Anual 2004-2007.
Disponível em: http://dados.gov.br/dataset/plano-plurianual-2004-2007. Acesso em: 20 ago. 2020.
553
A Secretaria Nacional de Direitos Humanos (SNDH) foi criada na estrutura regimental do Ministério da Justiça
MJ, em 1997, em substituição à Secretaria dos Direitos da Cidadania (SDC) a quem cabia formular, normatizar
e coordenar - em todo o Brasil - a política de defesa dos direitos da criança e do adolescente e defender os
direitos das pessoas portadoras de deficiência. A SNDH foi criada e ampliou as competências da SDC passando
a se responsabilizar também por: coordenar, gerenciar e acompanhar a execução do Programa Nacional de
Direitos Humanos, promover a cooperação com os Organismos Internacionais, e coordenar a escolha e entrega
do Prêmio Nacional de Direitos Humanos. Em 1999, a antiga Secretaria Nacional de Direitos Humanos
(SNDH) foi transformada em Secretaria de Estado dos Direitos Humanos - (SEDH), atribuindo a seu titular o
status de ministro de Estado, com prerrogativa de assento nas reuniões ministeriais. Com a criação da Secretaria
de Estado dos Direitos da Mulher (SEDIM), em 2002, no âmbito do Ministério da Justiça - MJ, as ações de
defesa e garantia dos direitos da mulher saíram da competência da SEDH e passaram a ser de responsabilidade
da SEDIM. Isso permitiu que os dois órgãos pudessem atuar de maneira mais eficiente e eficaz em suas
respectivas áreas. Em 2003, no governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva criou-se a Secretaria Especial
dos Direitos Humanos - SEDH, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SEPM e a Secretaria
Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – - SEPPIR. As três Secretarias Especiais integraram a
estrutura da Presidência da República exercendo seus titulares de fato e de direito, os cargos de Ministro/a de
Estado. Em 2015, a pasta dos Direitos Humanos foi unificada com as secretarias de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial e de Políticas para as Mulheres na reforma ministerial pela presidente Dilma Rousseff
formando o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (MMIRDH). Em 2018, no
Governo Bolsonaro, a pasta foi transformada em Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos,
englobando também as políticas indígenas, por meio da Fundação Nacional do índio (FUNAI).
554
Id.
555
Importante destacar que nesse período foram desenvolvidas ações de capacitação, investigações e campanhas
de conscientização que contaram com a aproximação com uma ampla rede de parceiros institucionais,
nacionais e globais envolvidos com a matéria, tais como o UNODC e a Organização Internacional do Trabalho
(OIT), que ampliaram naquele período o escopo da parceria com o Brasil. Ver em: UNODC. Relatório de
Avaliação dos Resultados II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. 2018. Disponível
em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/ anexos/relatorio-de-avaliacao-ii-
plano-final-agosto2018.pdf. Acesso em: 15 jun. 2020.
246
556
A título de curiosidade, relembro como pesquisadora e ativista que naquele momento, 2005-2006, em que
estava finalizando o Mestrado em Direito Internacional, a Comissão Municipal de Enfrentamento a Violência
Sexual contra Crianças e Adolescentes do Município de Santos e o Programa de Pós-graduação da Unisantos,
dois espaços dos quais eu fazia parte, realizamos uma Reunião para elaborar propostas concretas para a
construção dessa política nacional. Esse documento final foi enviado ao Ministério da Justiça e incorporado às
propostas enviadas pelo Brasil e exterior.
557
BRASIL. Ministério da Justiça. Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil.
Decreto nº 5.948, de 26 de outubro de 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2006/Decreto/D5948.htm. Acesso em: 6 jul. 2020.
558
Os membros do Grupo de Trabalho Interministerial foram designados conforme Portaria Conjunta nº 631, de
13 de março de 2007. que foi assinada pelo Ministério de Estado da Justiça, o Secretário Especial de Direitos
Humanos e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Foram designados membros: I- Secretaria
Especial de Direitos Humanos; II- Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres; III- Secretaria de Políticas
de Promoção de Igualdade Racial; IV- Casa Civil; V- Ministério da Justiça; VI- Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome; VII – Ministério da Saúde; VIII- Ministério do Trabalho e Emprego; IX- Ministério
do Desenvolvimento Agrário; X- Ministério da Educação; XI- Ministério das Relações Exteriores; XII-
Ministério do Turismo; XIII- Ministério da Cultura; XIV- Advocacia-Geral da União.
247
Pessoas estão dispostos os resultados de cada uma dessas ações para cada prioridade 559. O
material apresenta uma consolidação das ações realizadas no período de execução do I Plano
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, contemplando ações específicas para as
perspectivas da prevenção, responsabilização e repressão dos agentes e atenção às vítimas. O I
Plano durou dois anos (2008/2010) e trouxe a elaboração de recomendações para a construção
do II Plano
As principais conclusões do I Plano560, foram: 1) o enfrentamento ao tráfico de pessoas
foi incluído na agenda do Governo como uma política pública permanente, aprovada pelo
Decreto n. 5.948, de 26 de outubro de 2006; 2) os estudos e pesquisas sobre a temática
aumentaram significativamente. Até 2006, só existia a PESTRAF (2002). Depois de instituída
a Política Nacional, foram realizados, com recursos do Governo Federal, diversos estudos e
pesquisas sobre o fenômeno; outros estavam em andamento. 3) as campanhas informativas,
realizadas e apoiadas pela sociedade e governos municipais, estaduais e federal possibilitaram
uma maior percepção e compreensão desse crime pela população; 4) houve um aumento do
número de denúncias sobre o crime, o que resultou em inquéritos instaurados e condenações.
Pode-se dizer que os canais disponibilizados pelo Governo, a exemplo do Disque 100,
proporcionaram à população mais informações sobre a existência desse fenômeno, o exercício
do direito de denunciar um crime que viola a dignidade da pessoa humana, exercendo sua plena
cidadania; 5) os serviços de atenção às vítimas desse crime foram ampliados, especialmente nos
serviços de atendimento às mulheres, às crianças e aos adolescentes vítimas de violência; 6) o
atendimento às pessoas em situação de tráfico passou a ser oferecido pelos serviços de saúde
(SUS), integrando as áreas de prevenção, atenção, promoção da saúde e vigilância
epidemiológica. 7) o setor saúde também trabalhou na melhoria da qualidade da informação
com a implantação, em janeiro de 2009, da Ficha de Notificação/Investigação de violência
doméstica, sexual e/ou outras violências; 8) houve um significativo investimento no
enfrentamento ao tráfico de pessoas, especialmente pela inclusão da temática no Programa
559
BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório Final da Execução do Plano Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas. 1. edição. Brasília, DF: Secretaria Nacional [do] Ministério da Justiça, 2010. Disponível
em: http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos-relatorios/
etprelatorioplanonacional.pdf. Acesso em: 15 ago. 2020.
560
Id.
248
561
CERQUEIRA, Daniel. Política nacional de segurança pública orientada para a efetividade e o papel da
Secretaria Nacional. In: IPEA. Atlas da Violência. 2017. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/
bitstream/11058/9448/1/Atlas_da_violencia_2017.pdf. Acesso em: 15 ago. 2020. Ver em: BRASIL. Lei n.
11.530, de 24 de outubro de 2007. Institui o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania -
PRONASCI e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2007/Lei/L11530.htm. Acesso em: 15 ago. 2020.
562
BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório final da execução do Plano Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas. 1. edição. Brasília, DF: Secretaria Nacional [do] Ministério da Justiça, 2010. Disponível
em: http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos-relatorios/
etprelatorioplanonacional.pdf. Acesso em: 15 ago. 2020.
563
Id.
249
Foi um momento de intensos debates, com disputas desde óticas de poder públicas e das
organizações da sociedade civil.
O Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) responsável pela elaboração da proposta do
II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas foi criado no âmbito da Secretaria
Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça, por meio da Portaria nº 1.239, de 27 de junho de
2011. A Coordenação Tripartite da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
teve o papel de coordenar a gestão estratégica e integrada da Política Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e do II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas564. A coordenação foi composta: Ministério da Justiça (Secretaria Nacional de Justiça,
Secretaria Nacional de Segurança Pública, Departamento de Polícia Federal e o Departamento
de Polícia Rodoviária Federal); Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República;
Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República. Com a aprovação do II Plano
foi também instituído o Grupo Interministerial de Monitoramento e Avaliação do II Plano
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, responsável pelo acompanhamento da
implementação das 115 metas neste previstas, podendo propor ajustes técnicos e de prioridades,
coletar, difundir e disseminar informação entre os organismos implementadores e para toda a
sociedade565.
Blanchette e Silva realizaram um trabalho de etnografia nos debates sobre a formação
da política de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil e defendem que a atual narrativa
brasileira está mais calcada em mitos e estereótipos sobre o fenômeno do tráfico de pessoas no
Brasil. Explicam que a produção de dados é equivocada e mal interpretada, que equipara a
prostituição à exploração sexual e consequentemente ao tráfico de pessoas e, que parece estar
mais voltada a atender pressões morais globais, principalmente sobre a prostituição. Observam
564
Coordenação Tripartite foi instituída pelo Decreto Nº 7.901, de 4 de fevereiro de 2013. Grupo Interministerial
e Monitoramento e Avaliação do II PNETP. BRASIL. Ministério da Justiça. Grupo Interministerial de
Monitoramento e Avaliação do II PNETP. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-
de-pessoas/politica-brasileira/gi-monitoramento. Acesso em: 15 ago. 2020.
565
O Grupo Interministerial tem previstas reuniões quadrimestralmente e desses encontros são produzidos
relatórios sobre o progresso da implementação das metas. O GI é integrado por membros, titulares e suplentes,
dos seguintes órgãos: I - Ministério da Justiça; II - Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da
República; III - Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República; IV - Casa Civil da Presidência
da República; V - Ministério da Defesa; VI - Ministério das Relações Exteriores; VII - Ministério da Educação;
VIII - Ministério da Cultura; IX - Ministério do Trabalho e Emprego; X - Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome; XI - Ministério da Saúde; XII - Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão;
XIII - Ministério do Turismo; XIV - Ministério do Desenvolvimento Agrário; XV - Secretaria Geral da
Presidência da República; XVI - Advocacia-Geral da União; e XVII - Secretaria de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial da Presidência da República. Ver em: Coordenação Tripartite foi instituída pelo Decreto Nº
7.901, de 4 de fevereiro de 2013. Grupo Interministerial e Monitoramento e Avaliação do II PNETP. BRASIL.
Ministério da Justiça. Grupo Interministerial de Monitoramento e Avaliação do II PNETP. Disponível
em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/ politica-brasileira/gi-monitoramento. Acesso
em: 15 ago. 2020.
250
que, em muitos casos, o que se chama de tráfico de mulheres, se refere a mulheres que foram
trabalhar conscientes e por livre e espontânea vontade no exterior. Criticam ainda quanto a
participação da sociedade civil na construção da política, afirmando que houve poucas e curtas
reuniões públicas acerca da nova política, limitando assim, a participação desses atores 566.
Destacam que se produziram quatro narrativas hegemônicas sobre tráfico de pessoas no Brasil:
a primeira destaca à necessidade do país em cumprir suas responsabilidades internacionais, se
apropriando das normativas sem fazer críticas. A segunda narrativa, cria perfis que separam as
brasileiras entre as que podem viajar e as que não podem viajar por serem vulneráveis (negras
e pobres). A terceira, se alinha à teoria feminista que considera a prostituição como exploradora,
e degradante, associando à prostituição às atividades como o tráfico de drogas; a quarta
narrativa refere-se a construção de histórias de mulheres brasileiras que são classificadas como
prostitutas ao migrarem para o exterior, estereotipando tanto a prostituição como as mulheres
brasileiras567. Muito do apontado por Banchette e Silva caminham na mesma direção do
apontado por Aradau, anteriormente analisado.
A implementação do II PNETP contou com o incremento de uma Gestão Integrada para
o Enfretamento ao Tráfico de Pessoas, marcada pela atuação cooperada entre quatro instâncias:
a Comissão Tripartite (composta pela Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SPM),
pela Secretaria Especial de Direitos Humanos (SDH) e a Coordenação Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, do Ministério da Justiça), pelo Grupo Interministerial
(GI) composto por 23 órgãos pela execução das metas do II PNETP e pelo Comitê Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (CONATRAP)568, um órgão consultivo que tem o
objetivo de garantir o controle social da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas.
O II PNETP passou por um processo de avaliação final pelo Grupo Interministerial (GI),
instância responsável pelo monitoramento e avaliação do conjunto de linhas operativas,
atividades e metas do II PNETP no quadriênio de 2013-2016569. Foram avaliadas 115 metas,
566
BLANCHETTE, Thaddeus Gregory; SILVA, Ana Paula da. Mulheres vulneráveis, mulheres más: uma análise
antropológica de narrativas hegemônicas sobre o tráfico de pessoas no Brasil. In: FERREIRA, Ademir Paceli
et al. A experiência migrante: entre deslocamentos e reconstruções. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. p. 331,
342.
567
Ibid., p. 331.
568
O Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (CONATRAP), originariamente, instituído pelo
Decreto nº 7.901, de 04 de fevereiro de 2013, encontra-se atualmente regido pelo Decreto nº 9.833, de 12 de
junho de 2019. BRASIL. Ministério da Justiça. CONATRAP. Disponível em: https://www.justica.gov.br/ sua-
protecao/trafico-de-pessoas/politica-brasileira/conatrap. Acesso em: 15 ago. 2020.
569
UNODC. Relatório de Avaliação dos Resultados II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas. 2018. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/
publicacoes/anexos/relatorio-de-avaliacao-ii-plano-final-agosto2018.pdf. Acesso em: 15 jun. 2020.
251
570
Mais adiante, falar-se-á do CONATRAP e de sua relevância para o enfrentamento ao tráfico de pessoas.
252
571
UNODC. Relatório de Avaliação dos Resultados II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas. 2018. p. 203-206. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/
publicacoes/anexos/relatorio-de-avaliacao-ii-plano-final-agosto2018.pdf. Acesso em: 15 jun. 2020.
253
572
Neste momento, é importante pontuar a importância dessa normativa do II PNETP; porém, mais adiante será
abordada a trajetória das normativas de tráfico de pessoas no Brasil.
254
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que somente foi criado em 2019573, com seis objetivos:
I - monitorar e avaliar a execução do III Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas; II - propor ajustes na definição da prioridade para a implementação das suas metas; e
III - produzir e enviar relatórios de progresso sobre a implementação das metas sob sua
responsabilidade, semestralmente, à sua Secretaria-Executiva. Importante destacar que houve
uma perda na gestão integrada no monitoramento e avaliação da implementação da política
nacional, especialmente o III PNETP, uma vez que antes esse processo era conduzido entre
Comissão Tripartite, o Grupo Integrado e o CONATRAP.
Além disso, o III Plano definiu seis eixos temáticos, entre eles: I - gestão da política; II
- gestão da informação; III - capacitação; IV - responsabilização; V - assistência à vítima; e VI
- prevenção e conscientização pública. E estabelece que as metas serão implementadas por meio
de ações articuladas nas esferas federal, estadual, distrital e municipal e contarão com a
colaboração de organizações da sociedade civil e de organismos internacionais, indicando a
complexidade do regime de governança do enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil.
A descrição da política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil,
construída de 2004 até 2018 (IIIPNETP), aponta no sentido de uma continuidade e certa
priorização do tema na agenda pública no Brasil. Com todas as críticas que podem e serão
destacadas no decorrer do capítulo, evidencia-se o delineamento da política do tráfico às outras
políticas públicas do Brasil (saúde, assistência, política da mulher, política da infância),
reforçando a multidimensionalidade, interdisciplinaridade e, principalmente, a complexidade
do tráfico. Outro aspecto a ser considerado é a necessidade de desenvolver ações desde a
prevenção, responsabilização e atenção e proteção às vítimas. Nenhuma dimensão pode ser
negligenciada. Evidencia-se a construção de espaços de governança da política de
enfrentamento ao tráfico no sentido de garantir institucionalidade, destacando-se o
CONATRAP.
573
BRASIL. Planalto. Grupo Interministerial de Monitoramento e Avaliação do III PNETP. Decreto nº 9.796, de
20 de maio de 2019. Disponível em: https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/710516492/decreto-
9796-19. Acesso em: 15 ago. 2020. O Grupo Interministerial será integrado por um representante titular, e
respectivo suplente, dos seguintes órgãos: I - Ministério da Justiça e Segurança Pública; II - Ministério da
Mulher, da Família e dos Direitos Humanos; III - Ministério das Relações Exteriores; IV - Ministério da
Economia; V - Ministério da Educação; VI - Ministério da Cidadania; VII - Ministério da Saúde.
255
574
A segunda gestão do CONATRAP foi composta, de 28 de maio de 2018 até 2020, pelas seguintes organizações
da sociedade civil: O Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (CAMI-SP), o Instituto Migrações e Direitos
Humanos (IMDH-DF), a Universidade Federal de Santa Catarina, Projeto Resgate -GO, Associação Brasileira
de Defesa da Mulher da Infância e da Juventude (ASBRAD -Guarulhos), Associação de Travestis, Transexuais
e Transgêneros de Goiás (ASTARL-GO), Núcleo de Estudos de Gênero Pagu (PAGU- Campinas) e Jovens
com Uma Missão (JOCUM Brasil).
575
LIMA. Thiago Pereira. Gênero, tráfico sexual de mulheres e políticas públicas: uma análise da experiência
da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência Da República (SPM/PR). Tese (Doutorado) -
Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão, 2017. p. 172-173.
576
BRASIL. Planalto. Decreto n. 9833, de 12 de junho de 2019. Dispõe sobre o Comitê Nacional de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas (CONATRAP). 2019. D.O.U., Brasília, DF, 13 jun. 2019.
256
preocupa, com relação à participação efetiva e representativa da sociedade civil, uma vez que
se diminui a participação de 7 representantes da sociedade civil mais um membro representante
dos Comitês Estaduais e do DF de ETP, para três representantes de OSCs ou de conselhos de
políticas públicas, que exerçam atividades relevantes e relacionadas ao enfrentamento ao tráfico
de pessoas. Essa diminuição de representantes da sociedade civil ao que parece, diminui a
possibilidade de escuta, articulação e de legitimação de outros olhares sobre o tráfico de pessoas
no Brasil, principalmente daqueles que, muitas vezes, acabam acessando esses atores num
primeiro momento577.
Esse espaço institucional exerce funções relevantes na construção, monitoramento e
articulação da política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil. São algumas
das atribuições do CONATRAP, em matéria de enfrentamento ao tráfico de pessoas: I - propor
estratégias para a gestão e a implementação das ações da Política Nacional de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas - PNETP, aprovada pelo Decreto nº 5.948, de 26 de outubro de 2006, e
dos planos nacionais de enfrentamento ao tráfico de pessoas; II - propor a elaboração de estudos
e pesquisas e incentivar a realização de campanhas relacionadas ao enfrentamento ao tráfico de
pessoas; III - fomentar e fortalecer a expansão da rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas,
em especial dos Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e dos Postos Avançados de
Atendimento Humanizado ao Migrante; IV - articular suas atividades àquelas dos Conselhos
Nacionais de Políticas Públicas que tenham interface com o enfrentamento ao tráfico de
pessoas, para promover a intersetorialidade das políticas; V - articular e apoiar tecnicamente os
comitês estaduais, distrital e municipais de enfrentamento ao tráfico de pessoas na definição de
diretrizes comuns de atuação, na regulamentação e no cumprimento de suas atribuições.
Com todas as críticas que se poderiam fazer ao CONATRAP, este era um espaço
democrático, paritário de participação das OSCs na construção da política pública do tráfico de
pessoas. Essa diminuição de representantes e a quebra paridade indica uma mudança na forma
de compreender a construção da política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas no
O CONATRAP é integrado pelos seguintes membros: a) Secretário Nacional de Justiça do Ministério da Justiça e
Segurança Pública, que o presidirá; b) Ministério das Relações Exteriores; c) Ministério da Cidadania; d)
Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos; e e) três representantes de organizações da sociedade
civil ou de conselhos de políticas públicas, que exerçam atividades relevantes e relacionadas ao enfrentamento
ao tráfico de pessoas.
577
As eleições de 2020 elegeram as seguintes OSC: Associação 27 Million Brasil – São Paulo (SP); Associação
Brasileira de Defesa da Mulher da Infância e da Juventude (ASBRAD) – Guarulhos (SP); Instituto EcoVida –
Macapá (AL). Ver em: https://legado.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/selecao/resultado-
preliminar-das-eleicoes-virtuais.pdf?fbclid=IwAR3a4hC7RX1Eg2G0OHyOMFPeN4TvhRRHPYW-
vdzebprN4yXIYVi3vAfKq5s. Acesso em: 15 ago. 2020.
257
Figura 14. Linha do Tempo Política Pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil.
578
Vide Apêndice 6.
258
Apesar das várias modificações legislativas, até a legislação atual, o Brasil não previa o
tráfico de pessoas para outras modalidades de exploração que não fossem a “prostituição ou
outra forma de exploração sexual”. Diversos grupos feministas defensores dos direitos das
trabalhadoras do sexo questionavam a palavra “prostituição”, mas somente em 2016 esse termo
é retirado, passando a deixar-se somente a exploração sexual.
Alguns autores compreendem que as estratégias nacionais estimuladas pelas
organizações internacionais, voltam-se à prevenção e controle da migração internacional de
brasileiras e brasileiros considerados das camadas pobres, racializadas e potenciais aspirantes
ao trabalho sexual, assim como às ações policiais repressivas sobre a prostituição em diversas
cidades do Brasil579.
A Lei n. 13.344/2016 prevê, de forma taxativa: I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes
do corpo; II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; III - submetê-la a
qualquer tipo de servidão; IV - adoção ilegal; ou V - exploração sexual580. Apesar do avanço
579
FELDMAN-BIANCO, Bela. O Brasil frente ao regime global de controle das migrações: direitos humanos,
securitização e violências. Travessia - Revista do Migrante, Ano XXXI, n. 83, p. 21, maio-ago. 2018 apud
PISCITELLI, A. Criminalização das migrações, tráfico de pessoas e violência. Apresentado no painel
Migrações, Deslocamentos e Violência. Coord. Bela Feldman-Bianco. IV EMBRA (Encontro de Antropologia
México e Brasil), Campinas, Unicamp, out. 2017.
580
É importante destacar que essa alteração legislativa também foi resultado da pressão dos movimentos sociais e
as organizações da sociedade civil e de duas Comissões Parlamentares de Inquérito: uma na Câmara de
Deputados e outra no Senado Federal. Ver em: BRASIL. Câmara dos Deputados. Relatório final da Comissão
Parlamentar de Inquérito Destinada a investigar o Tráfico de Pessoas no Brasil, suas causas,
consequências e responsáveis no período de 2003 a 2011, compreendido na vigência da Convenção de
Palermo. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-
temporarias/parlamentar-de-inquerito/54a-legislatura/cpi-trafico-de-pessoas-no-brasil/relatorio-final-
259
na ampliação das modalidades de finalidades do tráfico de pessoas, a legislação, com seu rol
taxativo de modalidades, não permite a ampliação de outras formas de exploração, conforme
prevê o Protocolo de Palermo, o que limita a atuação no enfrentamento. Um exemplo seria o
caso de se identificar uma situação de exploração de pessoas para fins de mendicância ou mula
de drogas. Ficando caracterizado, não poderia ser enquadrada no tipo penal do tráfico de
pessoas.
Outro aspecto importante da Lei é o silencio em relação a irrelevância do consentimento
dado pela vítima para a caracterização do crime. O Protocolo de Palermo estabelece
diferentemente que, preenchendo-se os elementos do crime do tráfico de pessoas (ação, meio,
fim), caracteriza-se o tráfico de pessoas mesmo que haja consentimento dado pela vítima. Essa
omissão do legislador brasileiro pode ser entendida pela Justiça como havendo consentimento
dado pela vítima, não se caracteriza o tráfico de pessoas. Nesse sentido, já há decisão
entendendo o consentimento irrelevante somente quando houver “grave ameaça, violência,
coação, fraude ou abuso.”581.
A Lei n. 13.344/2016, estabelece princípios e diretrizes importantes para a construção
de um enfrentamento ao tráfico de pessoas ancorado no respeito às vítimas. Entre eles, 1. não
discriminação por gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, nacionalidade, raça,
religião, situação migratória, etc.; 2. transversalidade das dimensões de gênero, orientação
sexual, origem étnica ou social, procedência, raça e faixa etária nas políticas públicas; 3. atenção
integral às vítimas diretas e indiretas, independentemente de nacionalidade e da colaboração
em investigações ou processos judiciais e, 4. proteção integral da criança e adolescente. Esses
princípios indicam o interesse formal do Brasil em caminhar na linha da construção de um
enfrentamento com enfoque em direitos, colocando a proteção da vítima, no centro da política.
A efetividade desses princípios, porém, nem sempre são garantidos.
A Lei ainda estabelece diretrizes que indicam a intenção de continuar construindo um
enfrentamento ao tráfico de pessoas por meio de uma política pública de Estado. Entre eles: I -
fortalecimento do pacto federativo; II - articulação com organizações governamentais e não
governamentais nacionais e estrangeiras; III - incentivo à participação da sociedade em
instâncias de controle social e das entidades de classe ou profissionais na discussão das políticas
sobre tráfico de pessoas; IV - estruturação da rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas,
envolvendo todas as esferas de governo e organizações da sociedade civil; V - fortalecimento
da atuação em áreas ou regiões de maior incidência do delito, como as de fronteira, portos,
aeroportos, rodovias e estações rodoviárias e ferroviárias; VI - estímulo à cooperação
internacional; [...] VIII - preservação do sigilo dos procedimentos administrativos e judiciais,
nos termos da lei; IX - gestão integrada para coordenação da política e dos planos nacionais de
enfrentamento ao tráfico de pessoas582.
Nessa perspectiva, as diretrizes traçadas demonstram a necessidade da articulação dos
atores governamentais e das OSCs, a articulação entre eles mesmos e as diversas esferas
federativas, a necessidade do diálogo da política do tráfico de pessoas com as outras políticas
públicas afins, a garantia da prevenção das vítimas etc.
A Lei 13.344/2016 estabelece orientações na linha da prevenção, repressão e
atendimento às vítimas.
A prevenção deve ser implementada por medidas intersetoriais e de construção de
políticas públicas transversais, em áreas como a de saúde, assistência, educação, segurança
pública e justiça, dentre outras, juntamente com a criação de campanhas socioeducativas e de
conscientização, com consequência direta em incentivo à mobilização e à participação da
sociedade civil583.
Para garantir a proteção e atendimento às vítimas diretas e indiretas584, estabelece as
medidas a seres garantidas no artigo 6, sem qualquer condicionalidade: I - assistência jurídica,
social, de trabalho e emprego e de saúde; II - acolhimento e abrigo provisório; III - atenção às
582
CAMARA. Artigo 3. Lei 13.344/2016. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2016/lei-
13344-6-outubro-2016-783708-publicacaooriginal-151187-pl.html. Acesso em: 28 ago. 2020.
583
Art. 4º Lei 13.344/2016. A prevenção ao tráfico de pessoas dar-se-á por meio: I - da implementação de medidas
intersetoriais e integradas nas áreas de saúde, educação, trabalho, segurança pública, justiça, turismo,
assistência social, desenvolvimento rural, esportes, comunicação, cultura e direitos humanos; II - de campanhas
socioeducativas e de conscientização, considerando as diferentes realidades e linguagens; III - de incentivo à
mobilização e à participação da sociedade civil; e IV - de incentivo a projetos de prevenção ao tráfico de
pessoas.
584
Diferentemente do que possa parecer, há diversos níveis de vítimas de tráfico de pessoas. Conforme o grau de
violência sofrida e as consequências psíquicas ou físicas vivenciadas a assistência deve ser prestada. Vítimas
diretas do tráfico são aquelas que sofrem diretamente a violência decorrente da exploração do aliciador ou
recrutador. São aquelas que acabam tendo todos os efeitos físicos e psicológicos resultantes da situação de ser
traficada. Vítimas indiretas do tráfico são pessoas próximas à vítima que acabam sofrendo as consequências
do tráfico de pessoas. Muitas vezes acabam sendo ameaçados pelas redes de tráfico de pessoas, ou até mesmo
sofrendo represálias. Geralmente as vítimas indiretas ou ocultas, como são chamadas, são pessoas da família
ou da rede social próxima da vítima direta. Ver em: TERESI, Verônica; HEALY, Claire. Guia de referência
para a rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil. Brasília, DF: Ministério da Justiça, Secretaria
Nacional de Justiça, 2012. Disponível em: http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-
pessoas/publicacoes/anexos/cartilhaguiareferencia.pdf. Acesso em: 20 ago. 2020.
261
A Portaria 87/2020 foi um passo importante para garantir residência àquelas vítimas de
tráfico estrangeiras que decidam permanecer no Brasil. Porém, analisando detalhadamente a
portaria verificam-se ali alguns dispositivos que podem dificultar o acesso das vítimas a esse
direito587.
585
Portaria MJ n. 97/2020. Dispõe sobre a concessão e os procedimentos de autorização de residência à pessoa
que tenha sido vítima de tráfico de pessoas, de trabalho escravo ou de violação de direito agravada por sua
condição migratória. Ver em: BRASIL. Portaria Nº 87, de 23, de março de 2020.Disponível em: https://
www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-87-de-23-de-marco-de-2020-249440047. Acesso em: 15 ago. 2020.
586
BRASIL. Câmara dos Deputados. Lei de Migração no Brasil. Lei 13.445/2017. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm#:~:text=1%C2%BA%20Esta%
20Lei%20disp%C3%B5e%20sobre,pol%C3%ADticas%20p%C3%BAblicas%20para%20o%20emigrante..
Acesso em: 20 ago. 2020.
587
Analisando a Portaria, percebe-se:
Art. 2º Caberá à autoridade migratória competente, por meio de juízo discricionário, avaliar e decidir o
requerimento. § 1º A decisão deverá levar em conta a apresentação dos documentos mencionados no art. 5º
desta Portaria e considerar, sempre que possível, a efetiva colaboração do imigrante com as autoridades para
elucidar o crime do qual foi vítima e o grau de violação de direito ao qual foi submetido. (grifo nosso). A
expressão “sempre que possível” e “efetiva colaboração” podem ser interpretadas de formas diversas. Isso pode
causar limitações ao direito de residência. Por outro lado, o artigo 5 do mesmo dispositivo estabelece a lista de
documentos que devem instruir o requerimento de residência. Sabe-se que muitos das vítimas de tráfico
262
estrangeiras encontram-se indocumentados, o que pode ser um empecilho para conseguir a autorização de
residência.
588
Art. 11. O Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), passa a vigorar acrescido
dos seguintes arts. 13-A e 13-B:
“Art. 13-A. Nos crimes previstos nos arts. 148 , 149 e 149-A , no § 3º do art. 158 e no art. 159 do Decreto-Lei no
2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal) , e no art. 239 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto
da Criança e do Adolescente) , o membro do Ministério Público ou o delegado de polícia poderá requisitar, de
quaisquer órgãos do poder público ou de empresas da iniciativa privada, dados e informações cadastrais da
vítima ou de suspeitos.
Parágrafo único. A requisição, que será atendida no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, conterá:
I - o nome da autoridade requisitante;
II - o número do inquérito policial; e
III - a identificação da unidade de polícia judiciária responsável pela investigação.”
“Art. 13-B. Se necessário à prevenção e à repressão dos crimes relacionados ao tráfico de pessoas, o membro do
Ministério Público ou o delegado de polícia poderão requisitar, mediante autorização judicial, às empresas
prestadoras de serviço de telecomunicações e/ou telemática que disponibilizem imediatamente os meios
técnicos adequados – como sinais, informações e outros – que permitam a localização da vítima ou dos
suspeitos do delito em curso.
§ 1º Para os efeitos deste artigo, sinal significa posicionamento da estação de cobertura, setorização e intensidade
de radiofrequência.
§ 2º Na hipótese de que trata o caput , o sinal:
I - não permitirá acesso ao conteúdo da comunicação de qualquer natureza, que dependerá de autorização judicial,
conforme disposto em lei;
II - deverá ser fornecido pela prestadora de telefonia móvel celular por período não superior a 30 (trinta) dias,
renovável por uma única vez, por igual período;
III - para períodos superiores àquele de que trata o inciso II, será necessária a apresentação de ordem judicial.
§ 3º Na hipótese prevista neste artigo, o inquérito policial deverá ser instaurado no prazo máximo de 72 (setenta e
duas) horas, contado do registro da respectiva ocorrência policial.
§ 4º Não havendo manifestação judicial no prazo de 12 (doze) horas, a autoridade competente requisitará às
empresas prestadoras de serviço de telecomunicações e/ou telemática que disponibilizem imediatamente os
meios técnicos adequados – como sinais, informações e outros – que permitam a localização da vítima ou dos
suspeitos do delito em curso, com imediata comunicação ao juiz.”
263
589
O projeto foi um piloto, coordenado pela SNJ em parceria com o Escritório do UNODC, de acordo com o
Programa Global contra o Tráfico de Seres Humanos das Nações Unidas (GPATHB).
590
Os Estados escolhidos para o projeto piloto são: Ceará e Goiás (locais de origem de grande parte das vítimas
de tráfico) e Rio de Janeiro e São Paulo (por possuírem os principais aeroportos internacionais do país).
264
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que foram instituídos anos depois (2007) com os
Planos Nacionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.
A Secretaria Nacional de Justiça iniciou com a realização de pesquisas para conhecer
um pouco mais sobre a temática no Brasil. Nesse momento financiou a realização de três
pesquisas: A primeira referiu-se ao levantamento de casos, inquéritos e processos judiciais
registrados nos Tribunais de Justiça Federal e nas superintendências da Polícia Federal dos
quatro Estados do projeto piloto, entre dezembro de 2000 e janeiro de 2003. A segunda
pesquisa, realizada 2005, “Indícios de tráfico de pessoas no universo de deportadas e não
admitidas que regressam ao Brasil via aeroporto de Guarulhos”, foi feita em parceria com a
Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania de São Paulo, o Escritório das Nações Unidas contra
Drogas e Crime (UNODC), Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, a Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (ANVISA), Receita Federal, a Empresa Brasileira de Infra-Estrutura
Aeroportuária (Infraero), a Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da
Juventude (ASBRAD)591, dentre outros592. O objetivo da pesquisa era detectar brasileiras
vítimas de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, que retornaram ao Brasil pelo
aeroporto de Guarulhos na condição de deportadas ou não admitidas. Em 2006 foi lançada a
terceira pesquisa, “Tráfico de Seres Humanos para Fins de Exploração Sexual no Rio Grande
do Sul” com o propósito de realizar um mapeamento das rotas de tráfico internacional de
pessoas no Estado, aprofundando a PESTRAF realizada em 2002593.
Nesses anos iniciais, a Secretaria Nacional de Justiça realizou cursos de capacitação em
São Paulo (2003), Ceará (2004), Goiás (2004) e Rio de Janeiro (2005). Colaborou também com
a realização das oficinas regionais para policiais promovido pela Secretaria Nacional de
Segurança Pública (SENASP), OIT, Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), Polícia
Federal, Academia Nacional de Polícia, Ministério Público, Ministério Público Federal,
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) e outros parceiros.
591
Em 2006 foi aberto o Posto de Atendimento Humanizado de Migrantes, dentro do aeroporto de Guarulhos,
coordenado pela ASBRAD (Associação Brasileira de Defesa da Mulher, Infância e da Juventude), que
pretendia “acolher todos os brasileiros deportados e não admitidos que chegam pelo aeroporto de Guarulhos e
assistir aqueles brasileiros identificados como vítimas de tráfico de pessoas, principalmente mulheres e
transgêneros, encaminhando-os â rede de proteção social existente.” A OSC ASBRAD realizou naquele
momento duas capacitações no sentido de fornecer uma formação sobre o padrão internacional de violação aos
direitos humanos conhecido como tráfico internacional de pessoas e sobre o fenômeno das migrações, tanto
regular como irregular. Ver: SNJ. II Capacitação sobre Tráfico de Pessoas e Imigração Irregular. Brasília,
DF: SNJ, 2007. p. 19-20. Apostila de Curso.
592
SNJ. Relatório Indícios de tráfico de pessoas no universo de deportadas e não admitidas que regressam ao Brasil
via aeroporto de Guarulhos. Brasília, DF: Ministério da Justiça, 2006.
593
SNJ. Relatório: o tráfico de seres humanos no Estado do Rio Grande do Sul. Brasília, DF: Ministério da Justiça,
2006
265
594
Ibid., p. 12.
595
Regulamentado pela Lei n. 9807/1999 e Decreto n. 3518/2000.
596
Decreto n. 11/2007.
597
Portaria MTb n. 952, de 08/07/2003.
598
BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório de Gestão da Coordenação-Geral de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas e Contrabando de Migrantes: Relatório de Gestão 2019/2020. Brasília, DF: Ministério da Justiça,
2020.
266
IMPLEMENTAÇÃO PNETP
R$1.400.000 R$1.700.000 R$555.000 R$587.332 R$356.360 R$639.246
599
Não houve acesso às parcerias anteriores firmadas entre o Brasil e outras OIs na temática do tráfico de pessoas.
267
600
BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório de Gestão da Coordenação-Geral de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas e Contrabando de Migrantes: Relatórios de Gestão 2016/2020. Brasília, DF: Ministério da
Justiça, 2020.
601
Ver em: BRASIL. Ministério da Justiça. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-
pessoas. Acesso em: 5 mar. 2020.
269
602
A competência da PRF está disposta no artigo 144, II, parágrafo 2º, da Constituição Federal e Decreto Lei nº
1.655/95. Estabelece que a PRF deve “IX- efetuar a fiscalização e o controle do tráfego de menores nas rodovias
federais, adotando as providências cabíveis contidas na Lei nº8.069 de 13/06/1990.”
603
O projeto Mapear classifica os espaços como: 1. PONTOS VULNERÁVEIS são ambientes ou estabelecimentos
nos quais os agentes da Polícia Rodoviária Federal identificam características que apresentam um cenário
suscetível ou propenso à ESCA, ou seja, de VULNERABILIDADE; 2. PONTOS COM INDÍCIOS são aqueles
nos quais o agente identificou indícios, recebeu informações, dados denúncias ou ocorrências passadas, mas
não conseguiu confirmar a situação apontada; 3. PONTOS CONFIRMADOS são aqueles nos quais um agente
confirmou a presença de crianças e adolescentes em situação comprovada de exploração sexual, realizou a
repressão do ilícito e encaminhou as vítimas ao Conselho Tutelar. Ver em: NAMÃOCERTA. Projeto mapear:
mapeamento dos pontos vulneráveis à exploração sexual de crianças e adolescentes. Disponível em:
http://www.namaocerta.org.br/pdf/6ee/MarciaVieira_ProjetoMapear.pdf. Acesso em: 15 jul. 2020.
270
604
Importante destacar que no site do Ministério não aparece nada relacionado às políticas para mulheres (2019-
2020). Ver em: https://www.gov.br/mdh/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres. Acesso em: 4 abr. 2020.
O que será descrito nesta seção se refere ao período de 2003 a 2018, quando existia a Secretaria Nacional de
Políticas para as Mulheres (SNPM). Fundada em 2003, a Secretaria possuía status de ministério e era vinculada
à Presidência da República. Deixou de ter status de ministério, em outubro de 2015, sendo incorporada ao então
recém-criado Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (MMIRDH), unindo a
Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a Secretaria de Direitos Humanos e a Secretaria de
Políticas para as Mulheres. Em 2016, o presidente interino Michel Temer extinguiu o MMIRDH e atribuiu suas
funções ao Ministério da Justiça, que passou a se chamar oficialmente Ministério da Justiça e Cidadania. No
governo atual (2019- ) foi criado o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que incorporou
essa pasta.
605
BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Dados referentes ao Ligue 180.
Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2019/agosto/balanco-anual-ligue-180-recebe-
mais-de-92-mil-denuncias-de-violacoes-contra-mulheres. Acesso em: 15 set. 2020.
606
A Secretaria Especial dos Direitos Humanos – SEDH foi criada pela Lei no 10.683, de 28 de maio de 2003. Foi
criada como órgão da Presidência da República e tinha por atribuições articular e implementar as políticas
públicas voltadas para a promoção e implementação dos direitos humanos. Composta por órgãos colegiados e
executivos, assessorias e grupos de trabalho temáticos que auxiliavam o Secretário Especial dos Direitos
Humanos na implementação da Política Nacional de Direitos Humanos, a SEDH atua de acordo com as
diretrizes do Programa Nacional de Direitos Humanos. Foi incorporado pelo Ministério da Mulher, da Família
e dos Direitos Humanos. Ver em: BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br. Acesso em: 15 jul. 2020.
271
Tabela 8. Número de denúncias de tráfico de pessoas registradas pelo Disque 100 -Brasil - 2016 a
2019
Número de denúncias de tráfico de pessoas registradas pelo Disque 100
Brasil - 2016 a 2019
Tipo de violação 2016 2017 2018 2019
Tráfico de pessoas 106 226 159 62
Fonte: Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos/MMFDH609.
607
BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Disque 100. Disponível em:
https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/ouvidoria/balanco-disque-100. Acesso em: 4 mar. 2020.
608
BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Balanço Disque 100. Disponível em:
https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/ouvidoria/balanco-disque-100. Acesso em: 15 ago. 2020.
609
BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório de Gestão da Coordenação-Geral de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas e Contrabando de Migrantes: relatório de gestão 2019/2020. Brasília, DF: Ministério da Justiça,
2020.
610
Em 2015, “a SPM firmou convênio com o Projeto Fronteiras: atendimento humanizado às mulheres em situação
de tráfico de pessoas e outras formas de violência, coordenado pela Associação Brasileira de Defesa da Mulher
da Infância e da Juventude (ASBRAD). Foram capacitados cerca de 500 profissionais pertencentes à rede de
proteção à mulher vítima do tráfico de pessoas e outras formas de violência, o que inclui Centros de Referência
Especializados no Atendimento à Mulher, CRAS e CREAS, em 10 cidades brasileiras: Tabatinga/AM,
Oiapoque/AP, Pacaraima/RR, Ponta Porã/MS, Corumbá/MS, Foz do Iguaçu/PR, Bonfim/RR, Brasileia/AC,
Jaguarão/RS e Santana do Livramento/RS, com o envolvimento de técnicos de serviços especializados no
atendimento à mulher em situação de violência, além dos serviços da assistência social, da segurança pública
e da saúde.” Ver em: UNODC. Relatório de Avaliação dos Resultados II Plano Nacional de Enfrentamento
272
613
Ibid., p. 33.
614
Ibid., p. 36.
274
615
BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde, migração e tráfico e violência contra as mulheres: o que o SUS
precisa saber. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 2013.
616
BRASIL. Ministério da Saúde. Ficha de Notificação de Violência. Secretaria de Vigilância em Saúde.
Disponível em: https://www.saudedireta.com.br/docsupload/1332106192ficha_notificacao.pdf. Acesso em: 15
set. 2020.
617
RODRIGUES, Gilberto M. A. Cooperación internacional, asistencia consular y derechos humanos de las
víctimas de trata: ¿un cambio de paradigma? In: MALAMUD, Andrés; FLÓREZ, Fernando Carrillo (org.).
Migrações, coesão social e governação. 1. ed. Lisboa: Instituto de Ciencias Sociais, 2011. v. 1, p. 55-69.
275
dentre as quais, vítimas de tráfico de pessoas. Em abril de 2016, o valor destinado para esse
custeio era da ordem de R$ 61.737,43618.
Os consulados brasileiros no exterior devem ter uma relação atualizada de serviços para
o atendimento emergencial de vítimas brasileiras de tráfico de pessoas. Os consulados sediados
nos países com expressiva comunidade brasileira mapearam e elaboraram listas de entidades e
casas de abrigo em suas jurisdições. Além disso, os consulados têm realizado consulados
itinerantes, que representam oportunidade de fortalecer os serviços consulares brasileiros no
exterior relacionados ao tema do tráfico de pessoas, uma vez que alcançam comunidades
brasileiras em localidades onde não há sede física das repartições consulares. Dados da
avaliação do II PNETP indicou que durante os consulados itinerantes, foram realizadas
palestras sobre temas de interesse da comunidade, entre os quais o tema do enfrentamento ao
tráfico de pessoas visando o cumprimento desta meta. Foram realizados 220 consulados
itinerantes no exterior em 2013; realizaram-se 163 missões itinerantes em 2014; em 2015, foram
realizadas 9 missões (redução em decorrência de cortes orçamentários). Foram realizadas 23
missões desse gênero, alcançando comunidades brasileiras619.
O Protocolo de Palermo dispõe mecanismos que asseguram a cooperação entre os países
no sentido de garantir segurança física às vítimas, independente da eventual colaboração das
vítimas para processar os traficantes, ficando, porém, a critério dos governos nacionais
estabelecerem a forma de proteção a essas vítimas, a concessão de vistos temporários ou de
residência permanente às vítimas quando ameaçadas no país de origem.
Muitos países garantem proteção às vítimas, através do instituto de testemunha
protegida e de concessão de residência (seja ela temporária ou permanente), somente para
aquelas vítimas que colaborem com as investigações policiais e da Justiça, contrariando
disposição do Protocolo de Palermo que não estabelece a proteção da vítima atrelada a qualquer
colaboração620. O Brasil desvincula a concessão de residência à colaboração com as autoridades
policiais e judiciárias.
Não se pode deixar de destacar a cooperação do Brasil com Organizações Internacionais
que vem possibilitando o fortalecimento das ações nacionais no combate à exploração sexual e
618
UNODC. Relatório de Avaliação dos Resultados II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas. 2018. p. 37. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/
publicacoes/anexos/relatorio-de-avaliacao-ii-plano-final-agosto2018.pdf. Acesso em: 15 jun. 2020.
619
Ibid., p. 45.
620
Conforme artigo 7º, alínea 1. “Além de adotar as medidas em conformidade com o artigo 6 do presente
Protocolo, cada Estado Parte considerará a possibilidade de adotar medidas legislativas ou outras medidas
adequadas que permitam às vítimas de tráfico de pessoas permanecerem no seu território a título temporário
ou permanente, se for o caso; […].”
276
621
Em novembro de 2019, fui contactada por uma Organização da Sociedade Civil espanhola para auxiliar no
retorno de uma mulher que estava na Espanha, em Santiago de Compostela que tinha um bebê de um mês, sem
documentos para retornar ao Brasil. Articulei o contato do consulado com a OSC para a emissão do passaporte
da criança, assim como articulamos o retorno dessa mulher a sua cidade de origem, com o PAAHM de
Guarulhos e o Projeto Resgate, em Goiânia.
622
A título de curiosidade e de percepção pessoal como pesquisadora, há 10 anos, quando estive no consulado do
Brasil em Madrid, conversando sobre a necessidade da atuação mais presente do consulado nesses casos de
mulheres vítimas de tráfico, a recepção era limitada entendendo limitações à atuação do consulado nesses
casos. Hoje, em função de toda a construção da política pública, a atuação mais proativa do consulado, inclusive
com as atuações itinerantes do Consulado do Brasil pela Espanha, aproximou a atuação e a percepção da
realidade das mulheres brasileiras vítimas de tráfico na Espanha.
277
623
AFFONSO, Rui de Britto Álvarez; SILVA, Pedro Luiz Barros (org.). Descentralização e políticas sociais.
Maria Hermínia Tavares de Almeida. Federalismo e Políticas Sociais. São Paulo: FUNDAP, 1996.p. 14.
624
RODRIGUES, Gilberto Marcos Antônio. Relações internacionais federativas no Brasil. DADOS–Revista de
Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 1021, 2008.
625
Id.
278
ainda, a atenção mais direta, específica e particular às necessidades de cada ente federativo.
Essa nova configuração do sistema de competências instituído indica, por exemplo, que os
planos nacionais instituidores de políticas públicas estabeleçam obrigações para todos os
estados federados, seja no âmbito nacional, distrital, estadual e municipal ampliando ainda a
participação de outros atores.
No âmbito da política de enfrentamento ao tráfico de pessoas, percebe-se que a
descentralização possibilitou uma institucionalidade essencial para que os entes federativos
pudessem desenvolver ações levando em conta suas particularidades e especificidades. A
institucionalidade subnacional em forma de NETPs, ou Programa ou Política de enfrentamento
ao tráfico de pessoas, Plano Estadual ou Comitê Estadual pode ser verificada no Apêndice 7.
Analisando essa institucionalidade verificada, percebe-se como cada Estado foi criando
sua capilaridade subnacional, inclusive com as nomenclaturas que melhor atendiam as
necessidades e expectativas locais. Percebe-se também como, em alguns espaços, essa
institucionalidade se insere dentro da temática de migrações e refúgio (Ceará, Maranhão, Goiás)
e até mesmo de combate ao trabalho escravo (Minas Gerais e Rio de Janeiro), indicando como
essa governança de temas interagem e vão formando esse regime complexo de normas,
institucionalidades e atores. Permitir que os entes federativos mais próximos às vítimas tenham
certa autonomia no desenvolvimento das políticas de assistência, ou de identificação dessas
vítimas é um aspecto importante e que merece destaque para garantir o pronto atendimento e
garantir o restabelecimento de direitos violados.
Essa nova configuração do sistema de competências instituído pela Constituição de
1988 indica, por exemplo, que os planos nacionais instituidores de políticas públicas
estabeleçam obrigações para todos os entes subnacionais, seja no âmbito federal, distrital,
estadual e municipal ampliando ainda a participação de outros atores 626. Essa particularidade
pode ser notada analisando-se, por exemplo, o Plano Nacional de Enfrentamento à Violência
Sexual Infanto-juvenil que estabelece a necessidade de Criação dos Planos Estaduais e
Municipais de enfrentamento à violência sexual infanto-juvenil627. Importante destacar que os
626
Conforme destaca Sailer: “Algunos autores han aludido a la ausencia de un verdadero discurso sobre la
descentralización que socialice y sea socializado, es decir, que sensibilice no sólo a políticos sino al conjunto
de la sociedad sobre la importante necesidad de reconfigurar el “espacio” institucional en el que operan tanto
el Estado como los niveles más autónomos de participación y decisión.” Ver em: SAILER, José Carlos Illán.
Los procesos de descentralización y los retos para la ayuda internacional. Madrid: FIIAPP, 2006. p.14.
627
SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS. Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Contra
Crianças e Adolescentes. p. 43. Disponível em: https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/sedh/
08_2013_pnevsca.pdf. Acesso em: 15 ago. 2020.
279
Planos Nacionais se colocam como meta para estimular a criação de políticas públicas estaduais
e municipais de enfrentamento ao tráfico de pessoas.
Importante destacar que, em alguns casos, os recursos iniciais para instalação dos
Núcleos e Postos vieram provenientes de Convênios firmados com o Ministério da Justiça628.
A estrutura inicial era financiada e o funcionamento e manutenção (telefone, internet, corpo
técnico) ficava a cargo do ente federativo correspondente. No estado do Amazonas, por
exemplo, o convênio foi firmado entre o Ministério da Justiça e a Secretaria de Estado de Justiça
e Direitos Humanos – SEJUS (que ficava responsável pelo repasse financeiro para a estrutura
do posto) e posteriormente, a SEJUS assinava convenio com a respectiva Prefeitura Municipal,
na garantia de manutenção de corpo técnico para atendimento do Posto629.
Essa estratégia de convênios entre Ministério da Justiça e os Estados interessados em
implantar um NETP ou PAAHM foi importante para a disseminação destes espaços
institucionais de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil, principalmente no I e II PNETP.
A rede nacional conseguiu formar 17 NETPs localizados nos estados do Acre, Alagoas, Amapá,
Amazonas, Bahia, Ceará, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio de
Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e no Distrito Federal. Além disso, a rede chegou a contar
com 17 PAAHMs, dos quais 13 estavam no estado do Amazonas, nos municípios de Manaus
(portos, aeroporto e rodoviária), Itacoatiara, Humaitá, Manacapuru, Parintins, Coari, Tabatinga,
Presidente Figueiredo, São Gabriel da Cachoeira, Novo Airão, Iranduba. Os demais estão
localizados em Fortaleza/CE, Belém/PA, Rio de Janeiro/RJ e São Paulo/SP. Não é possivel
avaliar de forma simples e genérica os motivos pelos fechamentos de vários destes espaços
institucionais de enfrentamento ao tráfico de pessoas. Porém, uma explicação pode ser a de que
a maioria dos Estados e Municipios não criaram previsão orçamentária específica para a
628
O relatório semestral de cada ator da Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas possui uma
pergunta específica sobre a existência atual ou no passado de convênio firmado pelo Estado e o Ministério da
Justiça, para a efetivação dos atores estaduais no enfrentamento ao tráfico de pessoas. “1.4. A Política e/ou
Programa de ETP já teve Convênio com a CETP/DEJUS/SNJ/MJ? Cite qual nº, período de vigência, objeto e
orçamento previsto.”. Ver em: BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório da Rede Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-
pessoas/redes-de-enfrentamento/11o-relatorios-semestrais-da-rede-de-nucleos-de-enfrentamento-ao-trafico-
de-pessoas-netp-e-dos-postos-avancados-de-atendimento-humanizado-ao-migrante-paahm. Acesso em: 20
ago. 2020.
629
UNODC. Projeto: BRA/X63: suporte à Secretaria Nacional de Justiça para o aprimoramento da implementação
da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Relatório Produto 01: Levantamento técnico do
funcionamento e metodologia da rede atual de Postos Avançados de Atendimento Humanizado aos Migrantes,
com foco principal nas estruturas em portos e rodoviárias. 2014). (No prelo).
280
630
Conforme dados do Ministério da Justiça, hoje a Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas é
composta por 17 NETP em 16 Estados e 9 PAAHM, localizados em 5 Estados. Sabe-se que somente os Estados
do Pará, Ceará e Bahia têm previsão orçamentária para a política de enfrentamento ao tráfico de pessoas.
631
A composição da Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas está disponível
em:http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/redes-de-enfrentamento. Acesso em: 29 abr.
2020. O funcionamento dos NETP e dos Postos está regulamentado na Portaria nº 31, de 20 de agosto de 2009,
alterada pela Portaria nº 41, de 06 de novembro, de 2009.
632
BRASIL. Ministério da Justiça. Portaria SNJ n. 31 de 20 de agosto de 2009. Disponível em:
https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/redes-de-enfrentamento/nucleos-de-
enfrentamento. Acesso em: 15 ago. 2020.
281
VIII - Capacitar e formar atores envolvidos direta ou indiretamente com o enfrentamento ao tráfico de
pessoas na perspectiva da promoção dos direitos humanos;
IX - Mobilizar e sensibilizar grupos específicos e comunidade em geral sobre o tema do tráfico de pessoas;
633
TERESI, Verônica; HEALY, Claire. Guia de referência para a rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas
no Brasil. Brasília, DF: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Justiça, 2012. Disponível em:
http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos/cartilhaguiareferencia.pdf.
Acesso em: 20 ago. 2020.
282
634
A única exceção de NETP municipal é o de Ipojuca/PE.
635
Informação sobre os Postos. Disponível em: http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/redes-
de-enfrentamento/nucleos-de-enfrentamento. Acesso em: 29 abr. 2020. Os NETPs estão localizados: Acre,
Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Ceará, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio
de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e no Distrito Federal.
283
situações de exploração ou tráfico636. Os Postos estão situados nos aeroportos, portos fluviais e
rodoviárias brasileiras. Atualmente, o Brasil conta com o funcionamento de 9 Postos em 5
Estados-subnacionais637.
Os Comitês de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas devem se caracterizar por serem
espaços de articulação plurais e democráticos de representantes do poder público, setor privado
e sociedade civil para o estabelecimento de prioridades e na construção de uma agenda comum
de ações no enfrentamento ao tráfico de pessoas. Os Comitês devem também trabalhar
diretamente com os NETPs, possibilitando que esses encontrem na rede de atores parceiros
fundamentais para o atendimento às vítimas de tráfico, realizando os encaminhamentos
necessários. Os comitês, compostos por atores públicos e não governamentais devem atuar em
rede, de forma intersetorial, auxiliando e completando a atuação dos NETP. Os Comitês têm o
objetivo de atuar como um canal de diálogo com representantes da sociedade e dos Governos
estaduais e municipais para promover a abordagem multissetorial na gestão da rede local.
Muitas vezes, os comitês participam de forma ativa na organização da rede local de atendimento
e do estabelecimento do fluxo referencial conforme a possibilidade real de serviços e atores. Os
Comitês foram pensados para terem dimensão estadual, mas já houve a existência de Comitê
Regionais no Estado de São Paulo638.
636
Os Postos foram criados inicialmente para atender as vítimas de tráfico de pessoas que chegavam deportadas
de outros países, mas com o aumento da chegada de migrantes ao Brasil e da mudança deste perfil migratório,
os postos viram a necessidade de ampliar sua atuação para atender essas novas demandas.
637
Informação sobre os Postos. Disponível em: http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/redes-
de-enfrentamento/postos-avancados. Acesso em: 29 abr./2020. A Rede de PAAHMs já foi composta por 17
PAAHMs, dos quais 13 estão no estado do Amazonas. Os PAAHM estão localizados nos municípios de
Manaus (portos, aeroporto e rodoviária), Itacoatiara, Humaitá, Manacapuru, Parintins, Coari, Tabatinga,
Presidente Figueiredo, São Gabriel da Cachoeira, Novo Airão, Iranduba. Os demais estão localizados em
Fortaleza/CE, Belém/PA, Rio de Janeiro/RJ e São Paulo/SP. Na atualidade, são 9 Postos, cinco deles no
Amazonas: três deles localizado em Manaus (aeroporto, porto e rodoviária), mais Itacoatiara e Fluvial de
Parintins. Os outros três estão nos aeroportos internacionais do Ceará, Pará, Rio de Janeiro, São Paulo.
638
Atualmente, existem 19 Comitês Estaduais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil: Comitê Estadual
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de Acre – CEETRAP, Comitê Estadual de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas do Estado de Alagoas, Comitê Intersetorial de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e
Atenção aos Refugiados e Migrantes do Estado do Amazonas, Comitê Estadual de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas do Estado da Bahia – CEPETP, Comitê Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado
do Ceará, Comitê Distrital de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Distrito Federal, Comitê
Interinstitucional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de Goiás, Comitê Estadual de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Maranhão, Comitê Estadual de Atenção ao Migrante,
Refugiado e Apátrida, Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Erradicação ao trabalho Escravo –
COMITRATE, Comitê Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Pará - CTETP/PA,
Comitê Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Paraná, Comitê Estadual de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de Pernambuco, Comitê Estadual de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas e Erradicação do Trabalho Escravo do Estado do Rio de Janeiro, Comitê de Atenção aos Migrantes,
Refugiados, Apátridas e Vítimas do Tráfico de Pessoas do Estado do Rio Grande do Sul – COMIRAT/RS,
Comitê Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo - COETRAE/SP, Comitê Estadual de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas - CETP/SP, Comitê Estadual para Refugiados – CER, Comitê Estadual de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas do Estado de Mato Grosso do Sul - CETRAP/MS, Comitê Estadual de Prevenção e
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de Mato Grosso - CETRAP/MT, Comitê Estadual de
284
Conjeturar sobre rede de atores para o enfrentamento ao tráfico de pessoas é pensar mais
do que meramente a existência de atores, serviços. Para que haja rede é necessário que haja
intencionalidade de proposição para a articulação de serviços, sempre na perspectiva da
complementariedade entre os serviços. A rede se forma pela prática da construção e do diálogo
permanente que pense sua manutenção e aprimoramento.
Pensando a rede de forma metafórica, poder-se-ia representa-la como fios que
correspondem às relações entre sujeitos e organizações, que representam, por outro lado, as
malhas ou nós. Cada nó é importante para a configuração do tecido, mas o tecido somente se
forma quando os nós estão unidos entre si por fios e linhas. As funções são interdependentes: a
união e a sustentação são necessárias para a formação do tecido. Em um primeiro momento,
não há diferenças hierárquicas entre fios e nós: igualdade de complementariedade entre ambos
é necessário para a regularidade entre as malhas favoráveis e receptiva para a democratização
das relações entre os sujeitos coletivos, que se contrapõe a matriz piramidal639.
Pode-se dizer que
639
GOMES, Maria do Rosario Corrêa de Salles. Redes: el tejer de la protección social. In: CARBALLO, Marta;
GARCÍA, Jorge; TERESI, Verônica (org.). Seminario Internacional Articulación de la Red Hispano-
brasileña en el contexto de la atención a las brasileñas víctimas de trata Madrid, 2009. IUDC. Disponível
em: https://pt.scribd.com/document/16498425/Memoria-SeminarioTrata-Dec08. Acesso em: 10 set. 2020.
640
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 6. ed. Tradução de Roneide Venacio Majer com a colaboração de
Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 2011. p. 566-567. (A era da informação: economia,
sociedade e cultura, vol. 1).
286
641
FEREIRA, Ofélia da Silva. Guia de atuação no enfrentamento ao tráfico de pessoas: orientações para
Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e aos Postos Avançados de Atendimento Humanizado ao
Migrante. Brasília, DF: Ministério da Justiça. 2013. p. 108.
642
Id.
643
No que se refere ao atendimento das vítimas de tráfico de pessoas, no âmbito do SUAS (Sistema Único da
Assistência Social) se dá pela prevenção e pelo atendimento psicossocial e jurídico. A prevenção realiza-se
através de ações desenvolvidas no âmbito da proteção social básica (CRAS), com a manutenção dos vínculos
familiares e comunitários, inserção social, desenvolvimento da autoestima e aumento da condição econômica
do beneficiário. O atendimento psicossocial e jurídico é oferecido pelos CREAS, visando reparar a situação de
violação de direitos, resgatando e fortalecendo os vínculos familiares e comunitários, proporcionando um
atendimento integral do indivíduo.
287
Integrar as políticas públicas permite também criar uma rede de proteção e promoção
que tenha como norte fundador os princípios de direitos humanos aos quais o Brasil se
comprometeu na ratificação dos tratados de direitos humanos. A integração das políticas
públicas leva consigo a articulação das redes de serviços e de atores envolvidos na garantia
dessas políticas. Nesse sentido, é fundamental ter em conta o Fluxograma do Processo de
Atendimento e Referenciamento da rede de Núcleos e Postos de enfrentamento ao tráfico de
pessoas, que deve nortear o fluxo de atendimento e referenciamento, havendo ou não
caracterização do tráfico de pessoas, conforme o perfil da pessoa atendida, seja mulher, LGBT,
estrangeiro, criança e adolescente644. De outro lado, a avaliação do II Plano não consegue
aprofundar nos motivos pelos quais não se viu implementado o protocolo de atendimento e
referenciamento.
A assistência não se esgota no atendimento e na provisão das necessidades imediatas ou
emergenciais das vítimas, ela se estende por meio de uma articulação intersetorial, que se
transversaliza no conjunto das políticas públicas, com o intuito de atender a integralidade de
direitos do sujeito e assegurar-lhe sua cidadania.
O III PNETP, na sua meta 5.3 instiga o fortalecimento das redes locais de acolhimento
a vítimas de tráfico nos Municípios, para a adoção de práticas de respeito às perspectivas de
gênero e orientação sexual, às crianças e aos adolescentes, com o desenvolvimento de uma
experiencia local, com vistas à construção de um modelo de integração de política públicas.
Para tanto, é importante o papel dos Núcleos e Postos (quando houver) pelo estímulo ao diálogo
com diversos serviços municipais que prestam atenção direta a pessoas em situação de
vulnerabilidade como os CREAS, CRAS, Postos de Saúde, Conselhos Tutelares, Centros de
Referência da Mulher, guarda Municipal, entre outros645, tentando e estimulando a conformação
de uma rede de atores locais.
Para o acompanhamento, encaminhamento e eventual atendimento às vítimas, devem
atuar os Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, os Postos Avançados de
644
ANJOS, Verônica dos. Fluxograma do processo de atendimento e referenciamento da rede de Núcleos e
Postos de ETP. Disponível em: http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/redes-de-
enfrentamento/fluxograma.pdf/view. Acesso em: 10 dez. 2014. Importante destacar a existência de diretrizes
gerais de atendimento previstas no Protocolo nacional para atendimento à vítima criado e implementado, no
período do II PNETP. No entanto, avaliação do II Plano, não encontrou indícios da implementação do protocolo
no âmbito dos Estados e municípios. Ver em: UNODC. Relatório de Avaliação dos Resultados II Plano
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. 2018. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-
protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos/relatorio-de-avaliacao-ii-plano-final-agosto2018.pdf. Acesso
em: 15 jun. 2020.
645
ICMPD. Guia assistência e referenciamento de vítimas de tráfico de pessoas. 2020. Disponível em:
http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/Guia_Assistencia_ICMPD_versao_digital_simples_FINAL.pdf.
Acesso em: 12 ago. 2020.
288
O Brasil conta com serviços especializados criados no âmbito do SUAS que atendem,
entre outras, as demandas das vítimas do tráfico de pessoas646:
Os serviços ofertados no âmbito da Proteção Social Especial de Média Complexidade
do SUAS, que realiza atendimento especializado às famílias e aos indivíduos em situação de
risco pessoal e social e violação de direitos são: o Serviço de Proteção e Atendimento
Especializado a Famílias Indivíduos (PAEFI)647, principalmente pela unidade de referência:
Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS).
De outro lado, há serviços ofertados no âmbito da Proteção Social Especial de Alta
Complexidade do SUAS, que realiza o acolhimento temporário a indivíduos e/ou famílias
afastados do núcleo familiar e/ou comunitários de origem. São o Serviço de Acolhimento
Institucional648 denominados unidades de acolhimento.
Importante que se destaque que nem sempre esses serviços têm vagas para as vítimas
de tráfico de pessoas e, muitas vezes não possuem especificidades para algumas vítimas, por
exemplo, com filhos ou população LGBTI.
646
Disposto na Resolução nº 109, de 11 de novembro de 2009. Aprova a Tipificação Nacional de Serviços Sócio-
assistenciais. Disponível em: http://www.mds.gov.br/suas/resolucao-cnas-no109-2009-tipificacao-nacional-
de-servicos-socioassistenciais. Acesso em: 20 ago. 2020.
647
Atende famílias e indivíduos que vivenciam violações de direitos incluindo, entre outras situações, o Tráfico
de Pessoas.
648
Atende famílias e indivíduos com vínculos familiares rompidos ou fragilizados a fim de garantir a proteção
integral, incluindo o acolhimento de indivíduos refugiados ou em situação de tráfico de pessoas (sem ameaça
de morte) que poderá ser desenvolvido em local específico, a depender da incidência da demanda.
289
649
É importante ressaltar que apesar de fazer parte da rede (que também atende tráfico), os juizados são exclusivos
para casos de violência doméstica.
650
MERCOSUL. Guia Mercosul para a atenção às mulheres em situação de tráfico de pessoas com fins de
exploração sexual. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/human-trafficking/GLO-ACT/BR_
Guia_MERCOSUL_Trafico_Mulheres_PORT_Completo_para_IMPRESSAO.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
290
651
Importante destacar que o único serviço de abrigamento para pessoas LGBT é o Projeto Casulo. O PROJETO
CASULO é uma Casa de Passagem, coordenado pela Beth Fernandes, que visa a autonomia das vítimas e busca
possibilitar a visibilidade deste ser como cidadão pensando em direitos sexuais e direitos humanos. O
PROJETO CASULO é uma ação política idealizada pelo ativismo e militância da luta LGBT. Ver em:
MEMORIA LGBTQ+. Proteção e acolhimento no Projeto Casulo. Disponível em: https://www.
memorialgbt.org/post/2013/11/20/protecao-e-acolhimento-no-projeto-casulo. Acesso em: 15 ago. 2020.
291
vinculada ao conceito de “rede”, que requer articulação, relações horizontais entre parceiros e
interdependência de serviços para garantir a integralidade da atenção.
Identificada e contextualizada a Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas,
cabe fazer uma análise sobre a expectativa da assistência prestada às vítimas e a realidade das
políticas públicas sociais no Brasil.
Os dados de atendimentos apresentados pela Rede Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas, começaram a ser computados a partir de 2014, quando se estabeleceu um
modelo de Relatório Semestral de Atividades da Rede de Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas (NETP) e dos Postos Avançados de Atendimento Humanizado ao Migrante
(PAAHM). A partir deste documento, todos os atores que compõe a rede nacional de
enfrentamento ao tráfico de pessoas, devem preencher esse relatório semestralmente. Em 2014,
a rede registrou 358 casos, sendo as principais modalidades encontradas, o tráfico para trabalho
em condições análogas a de escravo, para exploração sexual e para exploração laboral da
prostituição. Em 2015, foram acompanhados 954 casos. Em 2016, foram acompanhados pela
rede 515 possíveis casos de tráfico de pessoas, ou seja, situações com indícios do crime e que
podem envolver mais de uma vítima. Em 2017, foram acompanhados 114 casos pelos NETPs.
Não há dados dos PAAHMs. Em 2018, foram acompanhados 109 casos pelos NETPs. Também
não há dados dos PAAHMs. Em 2019, foram acompanhados 237 casos pelos NETPs. Cabe
destacar que, esses casos, muitas vezes estão sendo atendidos por outras instituições parceiras
da rede e são acompanhados também pelos Núcleos e/ou Postos652. Os dados obtidos pela Rede
Nacional não permitem verificar a qualidade desses dados cm relação ao gênero da pessoa
atendida, a idade e nem mesmo se houve referenciamento à rede local.
Esses são os dados oficiais de atendimento da Rede específica de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas. Os CREAS, unidades públicas estatais provedoras de serviços referenciais
da Assistência Social, para atendimento de situações de tráfico de pessoas indicam outros
números de atendimentos.
A Planilha e gráfico 3 indicam os Registros Mensais de Atendimento (RMA) das
pessoas vítimas de tráfico de pessoas atendias nos CREAS, entre 2012-2019653. Os dados de
2012 até 2016, indicam um total de atendimentos acima de 670 por ano, porém, a partir de
652
Todos os dados aqui descritos estão nos Relatórios Semestrais da Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas. Ver em: BRASIL. Ministério da Justiça. Relatórios de Núcleos e Postos. Disponível em:
https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/redes-de-enfrentamento/1o-relatorio-semestral-
da-rede-de-nucleos-e-postos. Acesso em: 20 ago. 2020.
653
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. VISDATA. Atendimento CREAS (Centro de Referência
Especializado de Assistência Social). Disponível em: https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/vis/dash/painel.
php?d=83. Acesso em: 20 ago. 2020.
292
2017, percebe-se um decréscimo significativo, que poderia ser explicado pela diminuição
orçamentária resultante da Emenda Constitucional n. 85/2016, que mais adiante será abordada.
1902ral
1902ral 1902ral
1902ral
1902ral 1901ral
1901ral 1901ral
1901ral 1901ral
1901ral
1900ral
1900ral
1905ral 1905ral 1905ral 1905ral 1905ral 1905ral 1905ral 1905ral
654
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. VISDATA. Atendimento CREAS (Centro de Referência
Especializado de Assistência Social). Disponível em: https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/vis/dash/painel.
php?d=83. Acesso em: 20 ago. 2020.
655
Id.
293
Analisando os dados relativos a pessoas atendidas, separadas por sexo 656, percebe-se o
número de homens em situação de tráfico de pessoas, mesmo sem ficar claro qual a modalidade
de tráfico a que se refere o atendimento. No caso dos atendimentos às mulheres, o maior número
de vítimas se refere à faixa etária de 18 a 59 anos.
656
Os dados não permitem a identificação das pessoas LGBTQI+. Somente se conseguem os dados por sexo
masculino/feminino.
657
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. Portal Censo SUAS. Disponível em: https://aplicacoes.
mds.gov.br/sagirmps/portal-censo/. Acesso em: 20 ago. 2020.
658
Id.
294
Pelos dados coletados por Estados, apesar de apresentarem problemas nos valores totais
por ausência de valores em alguns Estados, verifica-se um maior número de atendimentos nos
Estados da Bahia, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, Rio
de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo.
659
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. Portal Censo SUAS. Disponível em: https://aplicacoes.
mds.gov.br/sagirmps/portal-censo/. Acesso em: 20 ago. 2020.
295
do tráfico de pessoas nas suas mais diversas modalidades e, consequentemente, identificar essas
demandas de forma correta? Esses casos estão ingressando ao PAEFI encaminhadas por quais
serviços? Essas vítimas estão sendo encaminhadas para outros serviços? A Rede Nacional de
Enfrentamento ao tráfico de pessoas, se existente nessa localidade, está inserida na rede de
atores possíveis para referenciamento? Qual é a qualidade do atendimento oferecido, quando
não se consegue analisar que tipo de atendimento está sendo ofertado e qual o percurso desses
atendimentos pela rede local de serviços?660.
Em algumas entrevistas realizadas com atores brasileiros do enfrentamento a tráfico de
pessoas questionou-se a ausência de diagnóstico sobre o tráfico de pessoas no Brasil, a falta de
conhecimento geral dos atores sobre a temática, falta de capacidade para identificar uma
possível vítima e falta de condições para um efetivo atendimento. Uma OSC relevante no
contexto do ETP no Brasil questionou a qualidade dos atendimentos prestados às vítimas de
tráfico. Há previsão dos direitos e a existência dos serviços, mas o serviço efetivamente
prestado, a saúde, assistência, o plano de abrigamento e desabrigamento, o acesso aos
benefícios legais deveriam funcionar. Nesse sentido, questionava-se a qualidade da política
pública existente e sua vinculação com a condição de pobreza e de redução das políticas
públicas sociais no Brasil.
Tais questionamentos permitem argumentar que ainda há muito que ser melhorado na
qualidade dos dados existentes sobre as demandas de atendimentos de tráfico de pessoas. Não
há preocupação na política pública de assistência sobre a identificação das diferentes violações
de direitos sofridos pelas pessoas que se enquadram nas modalidades de tráfico de pessoas; nem
mesmo no cuidado da identificação do tipo de violação sofrido por cada indivíduo atendido no
CREAS vítima de tráfico. Nesse sentido, essas limitações nos dados permitem apontar que o
sistema de coleta dos Registros Mensais de Atendimento dos CREAS deve ser melhorado para
dar um panorama mais exato do que está acontecendo de fato em relação ao tráfico de pessoas
de forma geral (Brasil) e específica em cada localidade, permitindo, a partir disso, criar políticas
públicas específicas ou ações dentro das políticas existentes, que garantam mais efetividade.
Parece que se precisa aprofundar no instrumental existente para que ele possa fornecer as
660
Em algumas entrevistas realizadas a atores brasileiros do enfrentamento a tráfico de pessoas questionaram a
ausência de diagnóstico sobre o tráfico de pessoas no Brasil, a falta de conhecimento geral dos atores sobre a
temática, falta de capacidade para identificar uma possível vítima e falta de condições para um efetivo
atendimento. Uma OSC relevante no contexto do ETP no Brasil questionou a qualidade dos atendimentos
prestados às vítimas de tráfico. Há previsão dos direitos e a existência dos serviços, mas a saúde, assistência,
o plano de abrigamento e desabrigamento, o acesso aos benefícios legais deveriam funcionar. Nesse sentido,
questionava-se a qualidade da política pública existente e sua vinculação com a condição de pobreza.
296
661
UNODC. Relatório de Avaliação dos Resultados II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas. 2018. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/
anexos/relatorio-de-avaliacao-ii-plano-final-agosto2018.pdf. Acesso em: 15 jun. 2020.
297
662
UNODC. Projeto: BRA/X63: suporte à Secretaria Nacional de Justiça para o aprimoramento da
implementação da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Relatório Produto 01:
Levantamento técnico do funcionamento e metodologia da rede atual de Postos Avançados de Atendimento
Humanizado aos Migrantes, com foco principal nas estruturas em portos e rodoviárias. 2014.(No prelo).
663
BRASIL. Emenda Constitucional n. 95/2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/emendas/emc/emc95.htm. Acesso em: 15 set. 2020.
298
buscando o equilíbrio dos direitos humanos e constitucionais para mulheres, com olhares para
todas as regiões brasileiras.
No âmbito dos serviços que compõe SUAS e SUS, verifica-se, uma fragilidade
estrutural e de condição de desenvolvimento do trabalho das equipes, justamente pelo
estrangulamento orçamentário a partir de 2017. Esse panorama aponta para a urgência no
resgate da institucionalidade desses atores fundamentais para a política nacional de
enfrentamento ao tráfico de pessoas que articulam localmente as ações de enfrentamento ao
tráfico no Brasil e principalmente se articulam com as redes locais de atores, especialmente de
assistência e de saúde, buscando atendimento para as vítimas de tráfico identificadas, sejam
elas mulheres, homens ou crianças664.
Esta pesquisa não tem a solução para essas questões, mas percebe a urgência no
apontamento dessa necessidade. A situação de ausência de serviços públicos essenciais, de
dificuldade de acesso das populações aos serviços, principalmente longe dos grandes centros
urbanos e nas regiões de fronteira exige um olhar ainda mais cuidadoso para as situações de
vulnerabilidades e violências, entre elas, o tráfico de pessoas665.
Para que o atendimento e a proteção prestada às vítimas estejam de acordo com o
previsto em lei, é fundamental que as redes sejam fortalecidas pelo Estado e seus entes
federativos.
O Brasil ainda não possui um sistema de informações integrado para a compreensão dos
dados relativos às condenações relativas ao crime do tráfico de pessoas. Assim, para se obter
dados relativos a procedimentos, processos e condenações, é necessário procurar os dados com
cada ator que compõe as instituições responsáveis pela responsabilização do tráfico de pessoas.
(polícias, Ministério Público, Defensorias, Judiciário).
Ademais, há escassez de dados nos processos envolvendo tráfico de pessoas no que diz
respeito à vítima, o que tem impossibilitado estabelecer padrões seguros de perfis nos
processos. A pesquisa de Dornelas traz achados relevantes sobre elementos que procuram
664
SPOSATI, Aldaíza. Descaminhos da seguridade social e desproteção social no Brasil: DOI:10.1590/1413-
81232018237.10202018.
665
ASBRAD. Achados das fronteiras no âmbito do projeto fronteiras. 2017.
299
construir os perfis das vítimas especialmente nos processos judiciais e que serão analisados a
seguir666.
Tabela 12. Dados vítimas tráfico de pessoas - Unidade de Repressão ao Tráfico de Pessoas
URTP/PF
Vítimas de crime de tráfico de pessoas resgatadas, acompanhadas ou identificadas (segundo faixa etária)
Criança ou Criança ou Adulto Adulto do
adolescente do sexo adolescente do sexo do sexo
Período feminino masculino sexo feminino masculino Total
2018 6 5 30 60 101
2019 2 17 10 54 83
666
DORNELAS, Luciano. A persecução penal do tráfico internacional de seres humanos no Brasil:
organização, interações e decisões. Tese (Doutorado) - Centro Universitário de Brasília, 2019. p. 24.
667
RIBEIRO, Marcos L. S. O papel da polícia federal na Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.
Revista Brasileira de Ciências Políticas, Brasília, DF, v. 8, n. 1, p. 151-182, jan./jun. 2017. Edição Especial.
668
Importante destacar que todos esses dados foram obtidos a partir do Relatório de Gestão da Coordenação-Geral
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes. Relatório de Gestão 2019/2020. Ver em:
BRASL. Ministério da Justiça. Relatório de Gestão da Coordenação-Geral de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas e Contrabando de Migrantes: relatório de gestão 2019/2020. p. 46-47.
669
Id.
300
Os dados da Tabela 10 parecem indicar que o número de mulheres adultas e homens são
os mais identificados nas modalidades de tráfico interestadual e internacional de pessoas.
Percebe-se também um elevado número de homens identificados, possivelmente na modalidade
de tráfico de pessoas para fins de trabalho escravo.
Tabela 13. Relatório Atuação da Polícia Federal no Combate aos Crimes Violadores dos Direitos
Humanos/2019
Número de indiciamentos realizados por ano de instauração, segundo as Infrações Penais tipificadas
concomitantes ao Art. 149 do CPB – Redução à Condição Análoga à de Escravo, Brasil – 2010 a 2019
Ano da Autuação
Infração Penal Descrição Total
2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
Art. 149-A CPB Tráfico de pessoas 0 0 0 0 0 0 3 2 10 15
Tráfico Internacional
Art. 231 CPB de Pessoas 5 0 2 2 0 0 1 0 0 10
Fonte: Ministério da Justiça.670
670
Id.
671
O Sistema Cartorário (SISCART) de uso obrigatório na Polícia Federal, instituído pela Portaria nº 1.083 de 29
de abril de 2010, do Diretor-Geral de Polícia Federal. O SISCART, facilita a atualização automática do módulo
“Inquérito Policial” do Sistema Nacional de Procedimento (SINPRO), cujo objetivo é a automatização do
controle dos procedimentos cartorários tais como inquérito policial, investigação policial preliminar, carta
precatória, mandados de prisão e notícias de crime enviadas para Polícia Federal. A Corregedoria-Geral de
Polícia Federal é a unidade responsável pela gestão de ambos os sistemas: SISCART e SINPRO. Ver em:
RIBEIRO, Marcos L. S. O papel da polícia federal na Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas. Revista Brasileira de Ciências Políticas, Brasília, DF, v. 8, n. 1, p. 151-182, jan./jun. 2017. Edição
Especial.
672
SINIC: Sistema de Informações Criminais.
673
BRASL. Ministério da Justiça. Relatório de Gestão da Coordenação-Geral de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas e Contrabando de Migrantes: relatório de gestão 2019/2020. p. 46-47.
301
A DPU, por meio de seu grupo de trabalho de assistência às vítimas de tráfico de pessoas
da Defensoria Pública da União, elaborou, em 2019, um Guia Prático sobre tráfico de
pessoas674.
Os dados da DPU referente as medidas para a proteção legal e reparação civil de danos
materiais e morais indicam que todos os casos que chegaram à DPU foram devidamente
atendidos.
A DPU registrou a seguinte prestação de assistência, conforme indicado no Relatório de
Avaliação do II PNETP: Os dados apresentados são bastante pequenos em função do número
de vítimas identificadas pela Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e pelos
atendimentos da assistência social.
Tabela 15. Número de Assistências Prestadas pela DPU em casos de tráfico de pessoas
(2012/2015).
ANO Assistência
2012 5
2013 9
2014 3
2015 17
Fonte: Elaboração própria675.
674
DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO. Guia Prático sobre tráfico de pessoas. 2019. Disponível em:
https://www.unodc.org/documents/human-trafficking/GLO-ACT/DPU_ANTI-TIP_GUIDE.pdf. Acesso em:
20 set. 2020.
675
UNODC. Relatório de Avaliação dos Resultados II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas. 2018. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/
anexos/relatorio-de-avaliacao-ii-plano-final-agosto2018.pdf. Acesso em: 15 jun. 2020. p. 40.
302
Importante destacar o estudo realizado por Luciano Dornelas (2019), que analisa, entre
outros aspectos, as decisões da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e da Justiça
Federal nos casos de tráfico internacional de pessoas, entre 2004 a 2015. Apesar do estudo não
ter tido a possibilidade de analisar inquéritos e processos já no âmbito da legislação atual do
tráfico de pessoas (Lei n. 13.344/2016), traz apontamentos relevantes, inclusive sobre
percepções do judiciário referente ao fenômeno do tráfico de pessoas676.
Seu estudo parte, inicialmente, da análise dos dados do Ministério Público Federal
(MPF)677, que focou nos inquéritos policiais “concluídos”678. A pesquisa no sistema de dados
do Ministério Público Federal apontou a existência de 195 considerados concluídos. Destes,
54% por cento concluídos, apenas 38 (19,5%) o foram por oferecimento de denúncia e 157
(80,5%), por pedido de arquivamento. Os 157 casos de arquivamento se deram: 42,2% pela
ausência de provas; 14,5% pela extinção da punibilidade e, 7,2% atipicidade. Nesse sentido, a
pesquisa evidencia a necessidade de redução do tempo de investigação como forma de conferir
mais efetividade à responsabilização dos agentes. Quanto menor o tempo de investigação, maior
a probabilidade de oferecimento de denúncia. É como se o inquérito tivesse um tempo útil para
garantir uma premissa decisória positiva. Ademais, as sucessivas dilações de prazo do inquérito
policial acarretam prejuízos para a elucidação dos fatos. Além disso, ao se cruzar a existência
de pedido de dilação de prazo com o tipo de sentença, percebe-se, um aumento das sentenças
absolutórias (não condenatórias) quando há dilação de prazo679.
Analisando as entrevistas qualitativas realizadas com membros do Ministério Público
Federal há coincidência de que a especialização das Delegacias e Varas é um caminho à
melhoria de apuração dos crimes e que é imperativa a necessidade de melhoria da prova pela
Polícia Federal e a adoção de critérios na apuração do tráfico de pessoas.
Ainda na informação qualitativa colhida, a pesquisa aponta que os magistrados
percebem a vulnerabilidade das vítimas a partir da questão econômica e que esta aparece como
principal elemento formador de sua convicção para atestar a vulnerabilidade (premissa
decisória). Esse elemento é muito importante, pois a caracterização da vulnerabilidade das
676
DORNELAS, Luciano. A persecução penal do tráfico internacional de seres humanos no Brasil:
organização, interações e decisões. Tese (Doutorado) - Centro Universitário de Brasília, 2019.
677
O MPF é responsável por propor as ações penais para condenação de traficantes internacionais de pessoas.
678
Entendeu-se por “inquérito concluído” aquele procedimento investigatório no qual houve oferecimento de
denúncia ou pedido de arquivamento.
679
DORNELAS, Luciano. A persecução penal do tráfico internacional de seres humanos no Brasil:
organização, interações e decisões. Tese (Doutorado) - Centro Universitário de Brasília, 2019. p. 192.
303
vítimas pode fazer com que o consentimento dado por ela seja considerado irrelevante para a
caracterização do crime de tráfico de pessoas (principalmente agora, que não fica expresso na
lei a irrelevância do consentimento para a caracterização do crime de tráfico de pessoas).
Ademais, a vulnerabilidade, como já foi abordado no primeiro capítulo, pode ser verificado por
diversos elementos que não só a questão econômica. Essa percepção de vincular o econômico
à vulnerabilidade, certamente traz limitações na compreensão da complexidade que envolve os
casos de tráfico de pessoas, principalmente mulheres. Essa perspectiva reforça ainda mais a
necessidade de o tráfico de pessoas ser tratado sob a perspectiva mais ampla dos direitos
humanos, como crime contra a dignidade da pessoa humana se sobressaindo da abordagem de
um crime contra a liberdade individual e pessoal.
As entrevistas realizadas durante as pesquisas de campo também sugerem que a
deficiência de integração entre os atores (polícia, Ministério Público, Magistratura) dificulta a
gestão de atividades. As interações organizacionais, se precedidas às decisões, podem evitar
lacunas, incoerências e retrabalho, constituindo-se em importante ferramenta de governança e
evitando práticas nocivas às políticas públicas de enfrentamento ao tráfico de pessoas.
Observa-se que em nenhum momento se percebe importante a interação com a rede
assistencial e de proteção à vítima. É como se o sistema judicial funcionasse a parte,
distanciando-se a responsabilização da absoluta necessidade de proteção e atenção da vítima.
Sabe-se que os casos de tráfico de pessoas envolvem recuperação e restabelecimento dos
direitos violados das vítimas. Essa dimensão é primordial. Talvez se houvesse mais parceria
entre os atores da rede de apoio às vítimas, seja da assistência social, saúde e o sistema
judiciário, haveria maior interesse, participação e principalmente colaboração da vítima, por
sentir-se amparada e protegida e, assim, consequentemente, maior possibilidade da condenação
dos traficantes. Interessante notar que, Guia de Referência elaborado especialmente para a
atuação da Polícia Federal, no âmbito da atuação de situações envolvendo tráfico de pessoas,
indica a Rede Nacional de Núcleos e Postos de enfrentamento ao tráfico de pessoas e nos locais
em que não houver representantes da rede, contatar a rede assistencial do Ministério do
Desenvolvimento Social (CREAS)680.
O que motivou a abertura do Inquérito Policial de possível situação de tráfico de
pessoas. Foram analisados 75 inquéritos com essas informações. Desses, 29 (vinte e nove)
680
BRASIL. Ministério da Justiça. Guia de enfrentamento ao tráfico de pessoas. Lucicleia Souza e Silva
Rollemberg, Marcos Leôncio Souza Ribeiro, Raul Miranda Menezes. Brasília, DF, 2016. p. 35. Disponível em:
https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/guia-de-etp-parceria-dpf.pdf. Acesso
em: 15 ago. 2020.
304
iniciaram pela “Notitia crimis de pessoa não identificada como vítima”, 11 (onze) pelo
“desdobramento de outra investigação interna em que se apura crime análogo”, 8 (oito) casos
pela “Notitia crimis de pessoa identificada como vítima”, 6 (seis) casos de “noticia crimes
anônima”, 4 (quatro) casos pela provocação de “Autoridade policial (corporação policial)
estrangeira”, e depois aparecem também, a “Notícia crime do Núcleo de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas do Ceará”, “Conselho Tutelar”, “Consulados do Brasil no exterior”, “ Ligue
180 - Secretaria Especial de Proteção da Mulher/Ministério da Justiça”, entre outros. Percebe-
se que a notícia crime de pessoa que não se identifica como vítima é a maior motivadora do
início de investigações, mostrando a importância da denúncia quando do conhecimento de uma
possível situação de tráfico de pessoas. Aparecem as redes de proteção e canais de denúncia
relevantes como Ligue 180, Conselho Tutelar, NETP como espaços relevantes e motivadores
de investigações681.
Interessante destacar que dos crimes cometidos por mais de um réu, somente em 45,5%
dos casos houve caracterização de associação ou organização criminosa682, indicando que, ao
contrário do que se pretende assinalar, o crime do tráfico de pessoas nem sempre está vinculado
ao crime organizado transnacional. Isso pode indicar, de outra forma, que o tráfico de pessoas
se trata muito mais de um crime de violação de direitos e de exploração das pessoas do que um
crime ligado ao crime organizado transnacional.
O estudo de Dornellas também aponta para os perfis das vítimas de tráfico nos processos
judiciais. A pesquisa conseguiu relacionar 173 vítimas de 52 processos. Os processos com
maior número de vítimas aparecem no Estado de Goiás. A idade informada corresponde à idade
da vítima na época do aliciamento. Em 129 processos pesquisados em campo havia qualificação
com a informação da idade da vítima. Enquanto os picos de aliciamento ocorrem com vítimas
em idade geralmente aos 19 (dezenove) e 22 (vinte e dois) anos, o maior número de vítimas
situa-se na idade entre 19 e 24 anos683.
681
DORNELAS, Luciano. A persecução penal do tráfico internacional de seres humanos no Brasil:
organização, interações e decisões. Tese (Doutorado) - Centro Universitário de Brasília, 2019. p. 205.
682
Ibid., p. 206.
683
Ibid., p. 237-239.
305
Quanto ao gênero, todas as vítimas identificadas nos processos pesquisados nesta tese
são mulheres, a exceção de 7 (sete) travestis, sendo 2 (dois) da Bahia, 2 (dois) de Goiás, 1 (um)
do Ceará, 1 (um) do Pará e 1 (um) de São Paulo. Quanto à cor, somente 26% (46/173) das
respostas apareciam preenchidas. Destas, mais da metade das vítimas (52,2%) são de cor
branca, aproximadamente 40% (39,1%) são de cor parda e o restante (8,7%), de cor preta.
684
Ibid., p. 239.
685
Ibid., p. 242.
686
Ibid., p. 243.
306
Outro aspecto analisado bastante interessante foi a de identificar nos processos a questão
da percepção da vulnerabilidade como um elemento crítico para a compreensão do fenômeno
do tráfico de pessoas, permitindo determinar condições que favorecem um aliciamento.
Somente 46,2% das vítimas possuíam informação sobre a existência de algum sinal evidente de
vulnerabilidade em relação ao aliciador durante o aliciamento687.
A vulnerabilidade de origem pode estar ligada a uma complexa interação de fatores
relacionados a desproteções, ausências e inclusive violências institucionais. Pode-se
argumentar que, os sistemas penais são ineficazes, em muitos casos, na proteção das mulheres
contra a violência, uma vez que as revitimiza, ressaltando a desigualdade de classes e a
desigualdade de gênero. O sistema penal, não apenas é um meio ineficaz para a proteção das
mulheres contra a violência, como também duplica a violência institucional exercida contra
elas688.
A ausência ou número baixo de denúncias pode ser interpretado pelo maltrato
institucional e os procedimentos pouco amigáveis aos quais as mulheres têm que se submeter
quando decidem revelar as condições de exploração às quais foram submetidas. Esses
procedimentos deixam de lado as questões culturais que levam muitas mulheres a negar as
próprias situações que vivenciam, seja porque receiam represálias das redes, de suas famílias,
das autoridades policiais e judiciais (que podem deter ou deportar, no caso de mulheres
estrangeiras), ou até mesmo pelo estigma provocado pelo fato de terem sido exploradas.689 Em
outros casos ainda, o silencio das vítimas pode estar motivado pela dificuldade de aceitar o
fracasso da tentativa migratória, porque os sonhos buscados não se concretizaram ou pela
existência de uma família sob sua responsabilidade de sustento 690.
O maltrato institucional também pode ser percebido pela homogeneização abstrata das
“vítimas de tráfico”. Mesmo sabendo que essas mulheres compartilham perfis e elementos
comuns no engano, na coação, exploração etc., isso não determina uma condição de categoria
de pessoa.
687
Id.
688
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como
sujeito de construção da cidadania. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/
view/15645/14173. Acesso em: 15 ago. 2020. Ver também, ALVAREZ, Marcos Cesar; TEIXEIRA,
Alessandra; MATSUDA, Fernanda Emy; SALLA, Fernando; MARQUES, Gorete. A vítima no processo penal
brasileiro: um novo protagonismo no cenário contemporâneo? Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 86,
p. 247-288, 2010.
689
RAMOS, Nuria Cordero. Trata con fines de explotación sexual: derechos humanos que maltratan a las humanas.
Gazeta de Antropología, v. 30, n. 3, artículo 09, 2014. Disponível em: http://hdl.handle.net/ 10481/33816.
Acesso em: 15 fev. 2020.
690
AGUSTIN, Laura María. Tráfico y prostitución: experiencia de mujeres africanas. Bilbao: Likiniano Elkartea,
2003. p. 73-74.
307
Cada uma deve ser atendida na sua individualidade: com nome próprio,
identidade, origem e situações jurídicas, sociais, familiares e culturais
particulares, que devem ser reconhecidas nas práticas institucionais. A
negação pela abordagem normativa e institucional das particularidades
culturais de cada uma das mulheres que sofrem em situação de exploração
sexual, acarreta um maltrato acrescido que se especifica em comportamentos
por parte dos órgãos e forças de segurança do Estado, como a desvalorização,
exclusão, discriminação, qualificação negativa, desqualificação e subjugação
com base em uma cultura patriarcal prevalecendo a abordagem
normativista691.
Percebe-se que o sistema penal não previne novas violências, não escuta os diversos
interesses das vítimas, não contribui para a compreensão da própria violência sexual e a gestão
do conflito e, muito menos, para a transformação das relações de gênero. Ademais, o sistema
penal duplica a vitimização feminina porque as mulheres são submetidas a julgamento. O
julgamento não é igualitário, ele seleciona autores e vítimas, muitas vezes, de acordo com sua
reputação pessoal. No caso das mulheres, de acordo com sua reputação sexual, estabelece o
grupo das mulheres consideradas "honestas" (do ponto de vista da moral sexual dominante),
que podem ser consideradas vítimas pelo sistema, e as mulheres "desonestas" (das quais a
prostituta é principal estereótipo), que o sistema abandona na medida em que não se adequam
aos padrões de moralidade sexual impostas pelo patriarcalismo à mulher; e nessas perspectivas,
o sistema penal atua como um fator de dispersão e uma estratégia excludente, recriando as
desigualdades e preconceitos sociais692.
Verifica-se que no crime do tráfico de mulheres, acontece algo semelhante ao que ocorre
nos crimes de violência sexual: a vítima termina sendo a acusada pelo ocorrido. Isso acontece
na hora de julgar delitos como estupro e abuso sexual. O eixo da investigação desvia-se do
acusado em direção à vítima e continua com a análise da sua conduta, além de seus antecedentes
pessoais, principalmente tudo aquilo relativo à sua vida sexual, no sentido da desqualificação.
Acredita-se que muitos dos achados da pesquisa de Dornelas, que sinalizam para o baixo
número de condenações, inclusive pela ausência “voluntária” da própria vítima, podem também
691
RAMOS, Nuria Cordero. Trata con fines de explotación sexual: derechos humanos que maltratan a las humanas.
Gazeta de Antropología, v. 30, n. 3, artículo 09, 2014. Disponível em: http://hdl.handle.net /10481/33816.
Acesso em: 15 fev. 2020. “Cada una ha de ser atendidas en su individualidad: con nombre propio, identidad,
procedencia y situaciones jurídicas, sociales, familiares y culturales particulares, que han de ser reconocidas
en las prácticas institucionales. La negación por parte del enfoque normativo e institucional de las
particularidades culturales de cada una de las mujeres que padecen situaciones de explotación sexual, provoca
un mal trato añadido que se concreta en comportamientos por parte de los cuerpos y fuerzas de seguridad del
Estado, como desvalorización, exclusión, discriminación, calificación negativa, descalificación y
sojuzgamiento fundamentados en una cultura patriarcal imperante el enfoque normativista.”
692
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como
sujeito de construção da cidadania. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/
view/15645/14173. Acesso em: 15 ago. 2020.
308
estar vinculados a esse processo de violência institucional ao qual essas mulheres se percebem
inseridas, mesmo que seja de forma inconsciente. Nesse sentido, cabe a reflexão sobre qual
papel o sistema judicial vem ocupando nesses processos de responsabilização do tráfico de
pessoas? Há a preocupação de se proteger as vítimas, garantir segurança física, mental,
pensando essas pessoas, principalmente mulheres (no âmbito dos processos estudados), como
vítimas de violência? Se por um lado, a vítima está sendo reclamada dentro do discurso penal,
no sentido de contribuir para a responsabilização dos traficantes, sendo, muitas vezes,
instrumentalizada para garantir a condenação, por outro lado, esse mesmo sistema não lhe
garante, no mínimo, uma escuta qualificada que compreenda as complexidades que estão
presentes no fenômeno do tráfico de pessoas, nem mesmo nos desejos, aspirações e
restabelecimento dos seus direitos vulnerados e violados693.
Parece pertinente trazer a discussão feita por David Garland, quando desenvolve um
modelo de análise do papel da punição na sociedade moderna. É a percepção de Garland sobre
a importância da cultura e seus diferentes âmbitos e símbolos, de pensar a punição como uma
instituição social, (assim como a família, a escola, o governo e o mercado), instituições que
agregam uma gama de variáveis e fatores que influenciam o funcionamento social, que reside
a principal contribuição deste pensador para uma sociologia da punição e que permite refletir
sobre o papel que está sendo ocupado pelas vítimas no processo penal de tráfico de pessoas. O
argumento é que as práticas penais falam à sociedade não somente sobre crime e castigo, mas
servem para estruturar um raciocínio que organiza e define o mundo que conhecemos por meio
daquilo que entendemos como bom e ruim, moral e imoral, normal e anormal, ordem e
desordem; permitindo que se aprenda a julgar, a preservar a ordem e a comunidade, conforme
os padrões determinados694. Tudo que escape desse padrão, é, no mínimo questionado ou tem
sua credibilidade diminuída.
693
Nos países em que a concessão de status de vítima de tráfico está condicionada à colaboração com as autoridades
policiais e judiciárias, fica ainda mais evidente essa instrumentalização da vítima, em detrimento dos seus
interesses e restabelecimento.
694
GARLAND, David. Punishment and modern society: a study in social theory. Oxford, Claredon Press, 1995.
695
Ibid., p.252.
309
696
Essa reflexão foi amparada no capitulo Brasil, mas serve para o caso da Espanha.
697
Ver o artigo 174 da CF: “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na
forma da lei, as funções de [...] planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o
setor privado”.
698
GIACOMONI, James. Orçamento público. 15. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2010.
699
“As vítimas do tráfico de pessoas foram incluídas como público beneficiário a ser atendido pelos CREAS,
sendo garantidas todas as provisões previstas para esse serviço conforme Tipificação Nacional de Serviços
Socioassistenciais. Ver em: UNODC. Relatório de avaliação dos tesultados II Plano Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. 2018. p. 37-39. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-
protecao/ trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos/relatorio-de-avaliacao-ii-plano-final-agosto2018.pdf. Acesso
em: 15 jun. 2020.
700
“Estratégia para a incorporação do tema do tráfico de pessoas no atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS)
criada. No período de vigência do II PNETP, o MS desenvolveu estratégias para fortalecer a capacidade de
atendimento das vítimas do tráfico de pessoas no âmbito do SUS, em sua maioria sistematizadas em
publicações para orientação ao atendimento.” Ver em: UNODC. Relatório de avaliação dos tesultados II
Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. 2018. p. 41-42. Disponível em:
310
https://www.justica.gov.br/sua-protecao/ trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos/relatorio-de-avaliacao-ii-
plano-final-agosto2018.pdf. Acesso em: 15 jun. 2020.
701
Ibid., p.38.
702
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. Censo SUAS 2019.
703
UNODC. Relatório de avaliação dos resultados II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas. 2018. p. 36-44. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-
pessoas/publicacoes/ anexos/relatorio-de-avaliacao-ii-plano-final-agosto2018.pdf. Acesso em: 15 jun. 2020.
704
BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório de gestão da Coordenação-Geral de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas e Contrabando de Migrantes: relatório de gestão 2019/2020. p. 5,50,54.
705
O MRE dispõe de rubrica orçamentária na área de assistência consular para custear a repatriação de nacionais
brasileiros em situação de desvalimento e vulnerabilidade no exterior, dentre as quais, vítimas de tráfico de
pessoas. Em abril de 2016, o valor destinado para esse custeio era da ordem de R$ 61.737,43. Ver em: UNODC.
Relatório de Avaliação dos Resultados II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. 2018.
Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos/relatorio-de-
avaliacao-ii-plano-final-agosto2018.pdf. Acesso em: 15 jun. 2020. p.37.
706
BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório de gestão da Coordenação-Geral de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas e Contrabando de Migrantes: relatório de gestão 2019/2020. p. 5.
311
para sua efetivação, esses pontos, que foram contemplados no III PNETP podem não se
concretizar. Alguns exemplos: 1. esforços para o fortalecimento e a ampliação dos Núcleos de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Postos Avançados de Atendimento Humanizando ao
Migrante; 2. priorização na geração, integração e gestão dos dados nacionais em enfrentamento
ao tráfico de pessoas, de modo que seja construído um observatório nacional para o
enfrentamento ao tráfico de pessoas para equalizar as informações e sua mensuração; 3.
Fortalecimento das políticas sociais, no âmbito do Sistema Único da Assistência Social (SUAS)
(voltadas à população em situação de vulnerabilidade, compreendendo as desigualdades sociais
e econômicas como pilares da persistência do tráfico de pessoas no Brasil) e no âmbito do
Sistema Único de Saúde (SUS), no sentido de adotar estratégias nacionais para inclusão do
atendimento humanizado à vítima do tráfico de pessoas.
Importante destacar também que os entes federativos, especialmente os Estados devem
planejar e dispor de previsão orçamentaria para a efetivação de suas políticas específicas de
enfrentamento ao tráfico de pessoas, conforme já abordado anteriormente. Ressalta-se que
somente os Estados do Pará, Bahia e Ceará dispõem na atualidade de previsão orçamentária
específica para o enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil.
312
4.8 Breves Conclusões Parciais do Capitulo 4: avanços e desafios da política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas
A Tabela 17 permite verificar como foi sendo desenvolvida a política pública do tráfico de pessoas no Brasil, levando em conta os
governos federais respectivos.
Tabela 17. Política Pública brasileira de enfrentamento ao tráfico de pessoas x governos (2000/2020).
Fernando Henrique Cardoso Luiz Inacio Lula da Silva Dilma Roussef Michel Temer Jair Messias Bolsonaro
1995-2003 2003-2011 2011-2016 2016-2019 2019-
PSDB PT PT PMDB Sem Partido
Fernando Henrique Luiz Inácio Lula da Silva Dilma Rousseff Michel Temer Jair Messias Bolsonaro
Cardoso
707
PISCITELLI, Adriana; LOWENKROWN, L. Categorias em movimento: a gestão de vítimas do tráfico de
pessoas na Espanha e no Brasil. Ciência e Cultura, v.67, n. 2, p. 33-38, 2015. Disponível em: http://
cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252015000200012. Acesso em: 15 set.
2020.
708
FELDMAN-BIANCO, Bela. O Brasil frente ao regime global de controle das migrações: direitos humanos,
securitização e violências. Travessia - Revista do Migrante, Ano XXXI, n. 83, p. 22, maio-ago. 2018 apud
PISCITELLI, A. Criminalização das migrações, tráfico de pessoas e violência. Apresentado no painel
Migrações, Deslocamentos e Violência. Coord. Bela Feldman-Bianco. IV EMBRA (Encontro de Antropologia
México e Brasil), Campinas, Unicamp, out. 2017.
315
alinharam as políticas internas com as políticas globais de combate ao tráfico de drogas, crime
organizado e ao terrorismo internacional e, assim, ao regime global de controle das
migrações709.
No governo Dilma, percebem-se dicotomias de atuação. De um lado, iniciativas
importantes na formulação do Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos
Migrantes no Brasil, que tinham como referência as políticas migratórias da Argentina e do
Uruguai (consideradas exemplares) e que acabam cedendo, em alguns aspectos para as políticas
de securitização, principalmente após o IMPEACHMENT. Por outro lado, e ao mesmo tempo,
o governo parecia seguir as orientações das OIs como OIM, UNODC e ICMPD no que se refere
à proteção das pessoas e proteção às fronteiras. Verifica-se, por exemplo, na ENAFRON
(Estratégia Nacional de Fronteiras), que intercruzava políticas de segurança nas fronteiras710.
O governo Temer além de dar continuidade às políticas de securitização, ainda
federalizou e militarizou a escala local (Rio de Janeiro) no que se refere à “guerra às drogas” e
estadual (Roraima), no que se refere à imigração venezuelana e à proteção de fronteiras. A
aprovação da Lei de Migrações e de Tráfico de Pessoas foi consequência do já andamento
desses projetos no governo Dilma. Ainda se afastou dos movimentos sociais e restringiu sua
participação indicando uma certa ausência de diálogo e da compreensão sobre a importância da
participação desses atores na construção das políticas públicas como a migratória e do tráfico
711
de pessoas. A redução de orçamento específico para o enfrentamento ao tráfico de pessoas
também indica a não priorização da agenda, especialmente no que se refere à Coordenação
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, no Ministério da Justiça, que tem uma
vinculação direta com a Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e o potencial
acompanhamento direto das vítimas de tráfico de pessoas. A redução do número de PAAHM
pode ser consequência dessa não priorização da temática na agenda pública e na redução de
orçamentos.
O governo Bolsonaro, mesmo sem apresentar um programa governamental, continua na
mesma linha de securitização das fronteiras e militarização das mesmas e redução de direitos,
com caracterização cada vez mais xenofóbica e preconceituosa em relação ao estrangeiro. É
evidente a ausência de diálogo com os movimentos sociais e organizações da sociedade civil,
onde houve a revogação de diversos espaços paritários de participação social (Conselhos,
709
FELDMAN-BIANCO, Bela. O Brasil frente ao regime global de controle das migrações: direitos humanos,
securitização e violências. Travessia - Revista do Migrante, Ano XXXI, n. 83, maio-ago. 2018.
710
Id.
711
Id.
316
Comissões, Comitês) ou, diminuição de atores que compõe esses espaços. No âmbito do tráfico
de pessoas, a alteração da composição do CONATRAP, foi radicalmente reduzida,
principalmente na representação de atores não governamentais.
Em 2018, a ONU propôs a assinatura de um acordo mundial sobre as Migrações, o Pacto
Global para Migração Segura, Ordenada e Regular. O Pacto Global não é vinculativo e
fundamenta-se em valores de soberania do Estado, compartilhamento de responsabilidade e
não-discriminação de direitos humanos. Pretende melhor gerenciar a migração internacional,
enfrentar seus desafios e fortalecer os direitos dos migrantes, contribuindo para o
desenvolvimento sustentável. Reconhece que é necessária uma abordagem cooperativa para
otimizar os benefícios gerais da migração, além de mitigar seus riscos e desafios para indivíduos
e comunidades nos países de origem, de trânsito e de destino712. O Brasil havia sinalizado a sua
entrada ao Pacto Global em 2018. O governo Bolsonaro decidiu retirar o Brasil deste Pacto
significando a supressão dos direitos humanos da política migratória a favor da agenda da
securitização e criminalização dos migrantes, incluindo os refugiados e, consequentemente, o
crescente controle e vigilância sobre quem pode atravessar as fronteiras nacionais e permanecer
no Brasil713.
Considera-se fundamental que os atores sociais participem e ocupem os espaços
institucionais da governança da política do tráfico de pessoas. Devem reforçar a vigilância e o
acompanhamento das políticas públicas relacionadas às migrações, tráfico de pessoas e refúgio,
para evitar e denunciar situações de securitização dos deslocamentos das pessoas.
Cada vez mais os atores locais devem se apropriar do seu poder local e da sua capacidade
de construção de políticas locais, a partir das realidades vivenciadas, assumindo a
potencialidade de seu conhecimento, da capacidade de articulação e de construtor de práticas
mais eficazes e garantidoras principalmente para as vítimas de tráfico de pessoas. Entende-se
que essa é uma das principais ações para se aprimorar, garantir efetivamente o atendimento
humanizado das vítimas.
712
ONU. Pacto global para migração segura, ordenada e regular. Disponível em: https://news.un.org/pt/
story/2018/12/1650601. Acesso em: 15 out. 2020.
713
FELDMAN-BIANCO, Bella. Democracia y derechos humanos amenazados: políticas migratorias nacionales
y política globales en Brasil, de Lula a Bolsonaro (2002-2019). Desde la Región, n. 57, 2019. Disponível em:
https://www.academia.edu/41523451/Democracia_y_Derechos_Humanos_amenazados_Politicas_
migratorias_nacionales_y_politicas_globales_en_Brasil_de_Lula_a_Bolsonaro_2002_2019_. Acesso em: 15
out. 2020.
317
714
No âmbito do Conselho da Europa: 1. Convenio del Consejo de Europa (2005) para la acción contra la trata de
seres humanos. (2009) (Convenio de Varsovia) Grupo GRETA/Grupo de Peritos del Consejo de Europa em
accion contra TSH; 2. Convenio del Consejo de Europa para la Protección de los Niños Contra la Explotación
y el Abuso Sexual de octubre de 2007, ratificado 2009. (Convención de Lanzarote); 3. Convención sobre
Prevención y Combate a la Violencia contra la Mujer y la Violencia Domestica. União Europeia: 1. Estrategia
de la UE para la erradicación de la trata de seres humanos; 2. Directiva 2011/36/UE del Parlamento Europeo y
del Consejo (2011) relativa a la prevención y lucha contra la trata de seres humanos y a la protección de las
víctimas; 3. Directiva 2004/81/CE del Consejo, relativa a la expedición de un permiso de residencia a
nacionales de terceros países que sean víctimas de la trata de seres humanos o hayan sido objeto de una acción
de ayuda a la inmigración ilegal que cooperen con las autoridades competentes.
319
715
O objeto da tese abordará o contexto das mulheres acima de 18 anos. Porém é importante que se mencione que
a proteção das vítimas de tráfico menores de idade tem outros dispositivos legais e procedimentais.
716
CITCO. Centro de Inteligencia contra el Terrorismo y el Crimen Organizado, dependiente de la Secretaría de
Estado de Seguridad del Ministerio del Interior. Trata de seres humanos en España. Balance estadístico
2014-18. Disponível em:
http://www.interior.gob.es/documents/10180/8736571/Balance+Ministerio+FINAL+ 2014-18.pdf/2051e1f9-
5248-49e0-ab48-ae9dee5e53bc. Acesso em: 15 set. 2020.
717
O Acordo de Schengen, convenção entre países europeus sobre uma política de abertura das fronteiras e livre
circulação de pessoas entre os países signatários. Estabelece duas categorias de imigrantes: os “comunitários”
(pessoas que pertencem a países do espaço Schengen e, os “estrangeiros” (todos os imigrantes que não sejam
originários de um país signatário).
718
“Permiso de residencia” é a autorização para permanecer residente na Espanha. Essa autorização pode ser
conseguida em algumas condições, mas esta fica condicionada à colaboração da vítima com as autoridades
policiais e judiciais até o final do processo. Se, por exemplo, o juiz entender que a vítima não colaborou de
forma suficiente, pode-se retirar a autorização de residência. Se, por qualquer outro motivo, não houver a
condenação do traficante, a autorização também pode ficar prejudicada.
719
Mais adiante, abordar-se-ão as condições em que se garante o direito de residência para as vítimas de tráfico na
Espanha.
320
720
ACCEM. La otra cara de la trata: informe diagnóstico sobre otras formas de trata que afectan a las mujeres.
2019. Disponível em: https://www.accem.es/publicacion-la-otra-cara-de-la-trata/. Acesso em: 15 fev. 2020.
721
CONSELHO DA EUROPA. Report concerning the implementation of the Council of Europe Convention on
Action against Trafficking in Human Beings by Spain - II Rodada de Avaliações. 2018. p. 21.
722
Antes da alteração legal de 2010, havia uma confusão entre o crime do tráfico de pessoas e o contrabando de
migrantes. O artigo 318 bis, do CP espanhol, regulava o contrabando de imigrantes. “(1) Aquele que, direta ou
indiretamente, promova, favoreça ou facilite o tráfico ilegal ou a imigração clandestina de pessoas desde o
trânsito ou com destino à Espanha, será castigado com a pena de 4 a 8 anos de prisão. (2) Se o propósito do
tráfico ilegal ou a imigração clandestina seja a exploração sexual de pessoas, serão castigados com pena de 5
321
a 10 anos de prisão.[...]” A grande falha daquela normativa encontrava-se no ponto (2).gerando confusão entre
o conceito do contrabando de migrantes e o conceito do tráfico de pessoas com fins de exploração sexual.
723
Artículo 177 bis.
1. Será castigado con la pena de cinco a ocho años de prisión como reo de TRATA DE SERES HUMANOS el
que, sea en territorio español, sea desde España, en tránsito o con destino a ella, empleando violencia,
intimidación o engaño, o abusando de una situación de superioridad o de necesidad o de vulnerabilidad de la
víctima nacional o extranjera, o mediante la entrega o recepción de pagos o beneficios para lograr el
consentimiento de la persona que poseyera el control sobre la víctima, la captare, transportare, trasladare,
acogiere, o recibiere, incluido el intercambio o transferencia de control sobre esas personas, con cualquiera de
las finalidades siguientes:
a) La imposición de trabajo o de servicios forzados, la esclavitud o prácticas similares a la esclavitud, a la
servidumbre o a la mendicidad.
b) La explotación sexual, incluyendo la pornografía.
c) La explotación para realizar actividades delictivas.
d) La extracción de sus órganos corporales.
e) La celebración de matrimonios forzados.
Existe una situación de necesidad o vulnerabilidad cuando la persona en cuestión no tiene otra alternativa, real o
aceptable, que someterse al abuso.
2. Aun cuando no se recurra a ninguno de los medios enunciados en el apartado anterior, se considerará TRATA
DE SERES HUMANOS cualquiera de las acciones indicadas en el apartado anterior cuando se llevare a cabo
respecto de menores de edad con fines de explotación.
3. El consentimiento de una víctima de TRATA DE SERES HUMANOS será irrelevante cuando se haya recurrido
a alguno de los medios indicados en el apartado primero de este artículo.
4. Se impondrá la pena superior en grado a la prevista en el apartado primero de este artículo cuando:
a) se hubiera puesto en peligro la vida o la integridad física o psíquica de las personas objeto del delito;
b) la víctima sea especialmente vulnerable por razón de enfermedad, estado gestacional, discapacidad o situación
personal, o sea menor de edad.
Si concurriere más de una circunstancia se impondrá la pena en su mitad superior.
5. Se impondrá la pena superior en grado a la prevista en el apartado 1 de este artículo e inhabilitación absoluta de
seis a doce años a los que realicen los hechos prevaliéndose de su condición de autoridad, agente de ésta o
funcionario público. Si concurriere además alguna de las circunstancias previstas en el apartado 4 de este
artículo se impondrán las penas en su mitad superior.
6. Se impondrá la pena superior en grado a la prevista en el apartado 1 de este artículo e inhabilitación especial
para profesión, oficio, industria o comercio por el tiempo de la condena, cuando el culpable perteneciera a una
organización o asociación de más de dos personas, incluso de carácter transitorio, que se dedicase a la
realización de tales actividades. Si concurriere alguna de las circunstancias previstas en el apartado 4 de este
322
Para além de uma definição do crime de tráfico nas suas várias formas, o Código Penal
de 2010 incluiu modalidades agravadas derivadas da concomitância de uma situação de grave
perigo para a vítima, com fins lucrativos, presença de vítimas menores ou especialmente
vulneráveis, adesão dos autores a organizações ou associações criminosas, ou quando são
autoridades ou agentes da autoridade ou funcionários públicos. Também se estabelece o
princípio de não julgamento das vítimas de tráfico pelos crimes que possam ter cometido na
situação de exploração sofrida. Ademais, incorpora o aspecto fundamental da irrelevância do
consentimento dado pela vítima para a caracterização do crime de tráfico de pessoas.
A legislação interna determina ainda, em relação à ação penal contra o crime de tráfico
de pessoas, por meio da Lei Orgânica 1/2015, de 30 de março, para reforçar a proteção
específica atualmente prevista pelo Código Penal às vítimas de tráfico de pessoas: 1. a
regulamentação do confisco dos efeitos, bens, instrumentos e produtos de atividades
criminosas; 2. a revisão do artigo 57 do Código Penal, permite impor, em caso de prática do
crime de tráfico de seres humanos, as proibições do artigo 48 (privação de direitos: a privação
do direito de residir em determinados locais, a proibição de aproximação a vítima e a proibição
de comunicar com a vítima); 3. a incorporação do tráfico de seres humanos entre os crimes
constantes do parágrafo segundo do artigo 132.1 do Código Penal, quanto ao início do cálculo
do prazo para prescrição de crimes quando a vítima for menor, de forma que o referido cálculo
começa quando a maioridade é atingida; 4. incorpora o gênero como motivo de discriminação
na circunstância agravante da prática do crime.
artículo se impondrán las penas en la mitad superior. Si concurriere la circunstancia prevista en el apartado 5
de este artículo se impondrán las penas señaladas en este en su mitad superior.
Cuando se trate de los jefes, administradores o encargados de dichas organizaciones o asociaciones, se les aplicará
la pena en su mitad superior, que podrá elevarse a la inmediatamente superior en grado. En todo caso se elevará
la pena a la inmediatamente superior en grado si concurriera alguna de las circunstancias previstas en el
apartado 4 o la circunstancia prevista en el apartado 5 de este artículo.
7. Cuando de acuerdo con lo establecido en el artículo 31 bis una persona jurídica sea responsable de los delitos
comprendidos en este artículo, se le impondrá la pena de multa del triple al quíntuple del beneficio obtenido.
Atendidas las reglas establecidas en el artículo 66 bis, los jueces y tribunales podrán asimismo imponer las
penas recogidas en las letras b) a g) del apartado 7 del artículo 33.
8. La provocación, la conspiración y la proposición para cometer el delito de TRATA DE SERES HUMANOS
serán castigadas con la pena inferior en uno o dos grados a la del delito correspondiente.
9. En todo caso, las penas previstas en este artículo se impondrán sin perjuicio de las que correspondan, en su caso,
por el delito del artículo 318 bis de este Código y demás delitos efectivamente cometidos, incluidos los
constitutivos de la correspondiente explotación.
10. Las condenas de jueces o tribunales extranjeros por delitos de la misma naturaleza que los previstos en este
artículo producirán los efectos de reincidencia, salvo que el antecedente penal haya sido cancelado o pueda
serlo con arreglo al Derecho español.
11. Sin perjuicio de la aplicación de las reglas generales de este Código, la víctima de TRATA DE SERES
HUMANOS quedará exenta de pena por las infracciones penales que haya cometido en la situación de
explotación sufrida, siempre que su participación en ellas haya sido consecuencia directa de la situación de
violencia, intimidación, engaño o abuso a que haya sido sometida y que exista una adecuada proporcionalidad
entre dicha situación y el hecho criminal realizado.
323
724
Importante destacar que na Espanha quando se fala de proteção às vítimas está se falando do reconhecimento
formal e da proteção jurídica e assistencial, garantindo-se o direito a residência e trabalho, além de outros
direitos formalmente garantidos.
725
Houve uma prorrogação da duração mínima do período de recuperação e reflexão, que vai de 30 a 90 dias,
durante o qual a vítima pode decidir se coopera com as autoridades na investigação do crime.
726
Na Espanha ele chamam a pessoa que é encontrada e pode ser uma vítima de tráfico de “presunta víctima de
trata”. Ainda não se definiu o conceito de “presunta víctima” nem mesmo dos “indícios razoáveis” para
determinar se pode-se conceder os benefícios de uma vítima identificada formalmente pelas autoridades. Essa
incerteza pode levar a enormes disparidades na atuação da Administração e as vítimas ficam expostas a
arbitrariedades. É comum que as autoridades exijam “certezas” ou “evidências” para poder identificar as
vítimas formalmente. Por outro lado, ainda, se a declaração da vítima não evidencia essa “certeza” desejada
pelas autoridades, em muitas ocasiões ela pode não ser reconhecida como vítima, insinuando suspeitas de
fraude à imigração. Em muitos casos, se verifica a dependência da identificação formal do conteúdo que a
vítima possa ou queria contribuir de dados e informações precisas, detalhadas e objetivas dos criminosos. Ver
em: RED ESPAÑOLA CONTRA LA TRATA DE PERSONAS. Informe de la Red Española contra la
Trata de Personas para la coordinadora europea de lucha contra la trata: visita oficial a España (26 y 27
de febrero 2015). 2015. p. 14. Disponível em: https://www.proyectoesperanza.org/wp-content/uploads/
2019/06/2015_INFORME-RECTP-para-COORDINADORA-EU-CONTRA-LA-TRATA.pdf. Acesso em: 15
fev. 2020.
324
727
As autorizações de residência e de trabalho pela colaboração com as autoridades ou por circunstâncias
excepcionais ainda gera práticas dispares, gerando incertezas. Algumas vezes se considera ser suficiente a
denúncia da vítima com informação objetiva satisfatória para iniciar uma investigação policial e judicial e, sua
disponibilidade para continuar colaborando na medida que for necessário; em outro casos, se exige que a
investigação policial ou judicial tenha obtido resultados positivos concretos (prisão dos presuntos autores,
apertura de processos, condenação) Ver em: RED ESPAÑOLA CONTRA LA TRATA DE PERSONAS.
Informe de la Red Española contra la Trata de Personas para la coordinadora europea de lucha contra
la trata: visita oficial a España (26 y 27 de febrero 2015). 2015. p. 21.Disponível em: https://www.
proyectoesperanza.org/wp-content/uploads/2019/06/2015_INFORME-RECTP-para-COORDINADORA-
EU-CONTRA-LA-TRATA.pdf. Acesso em: 15 fev. 2020.
728
Assinado pelos Ministérios da Saúde, Serviço Social e Igualdade, Interior, Justiça, Emprego e Assistência
Social em colaboração com a Procuradoria-Geral da República e o Conselho Geral do Poder Judiciário. Como
complemento ao Protocolo-Quadro e para garantir o desenvolvimento dos aspectos relacionados com a
atribuição de poderes dos governos autonômicos, espera-se a aprovação de protocolos autônomos. No entanto,
nem todas as comunidades os desenvolveram e a aplicação do protocolo-quadro em si é territorialmente muito
desigual. Ver em: MINISTERIO DE IGUALDAD. Protocolo-Quadro para a Proteção de Vítimas de
Tráfico de Pessoas 2011. Disponível em: https://violenciagenero.igualdad.gob.
es/otrasFormas/trata/normativaProtocolo/marco/docs/protocoloTrata.pdf. Acesso em: 15 fev. 2020.
729
Nem todas as comunidades desenvolveram seus Protocolos-Marco e a aplicação do protocolo-quadro em si é
territorialmente muito desigual. (Galicia, Catalunha, Navarra, Extremadura e Madrid). Ver em: MINISTERIO
DE IGUALDAD. Protocolos de Coordenação Interinstitucional. Disponível em:
https://violenciagenero.igualdad.gob.es/otrasFormas/trata/normativaProtocolo/marco/home.htm. Acesso em:
20 set. 2020. As OSC entrevistadas para esta pesquisa afirmaram a existência de interlocutores sociais, tanto
325
Importante indicar essa diferença entre as vítimas comunitárias e estrangeiras uma vez
que, as vítimas comunitárias se encontram em condição administrativa regular, tendo direito a
residência e trabalho, não se aplicando a pena de deportação por não estarem em condição de
irregularidade administrativa (para estas, não se aplica a Lei de Estrangeiros). Diferentemente,
as mulheres estrangeiras, como, por exemplo, as brasileiras, estando irregulares, podem sofrer
a penalidade de serem deportadas para seu país de origem, caso não sejam formalmente
identificadas como vítimas de tráfico. Nestes casos, entende-se que a mulher não é vítima de
tráfico e sim uma imigrante irregular. Para que possam ter acesso à proteção e assistência como
vítimas de tráfico, tanto as mulheres comunitárias como as estrangeiras, devem ser identificadas
formalmente como vítimas de tráfico pelas autoridades policiais e lhe seja concedido o período
de reflexão, seja pelas autoridades policiais, seja pelo Delegado ou Subdelegado do Governo,
no caso de situação pessoal da vítima.
Percebe-se que no procedimento de identificação formal das vítimas ainda falta um
enfoque baseado na proteção dos direitos das vítimas. Percebe-se a adoção de um enfoque de
persecução e criminalização da imigração irregular e de persecução do delito. Interessante notar
que, na Convenção de Varsóvia, único instrumento que traz uma definição de vítima de tráfico,
não apresenta nenhuma condicionalidade das impostas pela legislação espanhola para a
caracterização da vítima. “Vítima é toda pessoa física que seja objeto de tráfico de pessoas,
segundo a definição desse mesmo artigo.”730.
Há que se reforçar ainda, que quando se fala em identificação formal da vítima não se
leva em conta que a identificação de uma vítima deve ser entendida dentro de uma dimensão
de processo em construção. Muitas vezes a própria vítima não se percebe como vítima, mesmo
que ela apresente todos os indícios objetivos de vítima, seja na captação, no meio ou na
finalidade exploratória. Não compreender a identificação como um processo, implica no
na Policia Nacional e Guardia Civil, (polícias com competências diversas em função do território espanhol),
porém, nem sempre essa relação com as OSC funciona satisfatoriamente na prática, havendo dificuldades de
cooperação, colaboração, comunicação de uma potencial vítima a OSC especializada. Uma das organizações
entrevistadas ressaltou dois casos bastante complexos acompanhados por elas (na Galicia e nas Ilhas Canárias),
que tiveram a intimidação das vítimas para que denunciassem as redes de tráfico que as levaram à Espanha,
mesmo quando as vítimas não tinham desejo de continuar denunciando.
730
Para os fins deste Acordo: a) A expressão "tráfico de seres humanos" designa o recrutamento, transporte,
transferência, acomodação ou recepção de pessoas através ameaças de recurso à força, recurso à força ou
qualquer outra forma de obrigação, por meio de sequestro, fraude, engano, abuso de autoridade ou de um
situação de vulnerabilidade ou oferecendo ou aceitando pagamentos ou vantagens de obter o consentimento de
uma pessoa que tem autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, pelo menos, a
exploração da prostituição alheia ou outras formas exploração sexual, trabalho ou serviços forçados, escravidão
ou práticas semelhantes à escravidão, servidão ou extração de órgãos [...].
e) o termo "vítima" designa qualquer pessoa física submetida à tráfico de seres humanos conforme definido neste
artigo. (artigo 4, Convenio de Varsovia).
326
731
Sabe-se que ese período de 90 dias ainda é insuficiente. A falta de confiança das vítimas, a exigência de
cooperação com as autoridades policiais e judiciais e as condições em que é concedida, faz com que
dificilmente as vítimas adiram a ela ou, se o fizerem, que o prazo estabelecido permita uma vítima em estado
de estresse pós-traumático e extrema vulnerabilidade física e psicológico se recupere. Conforme o Ministério
do Interior, em 2013 foram oferecidos 736 períodos de recuperação e reflexão, dos quais 603 foram rejeitados
pelas vítimas. Ver em: YERGA, S. Víctimas de trata de seres humanos: un reto para la Abogacía Española.
2015. Consejo General de la Abogacía Española. Disponível em: https://www.abogacia.es/
actualidad/noticias/victimas-de-trata-de-seres-humanos-un-reto-para-la-abogacia-espanola/. Acesso em: 20
set. 2020.
327
potenciais mulheres vítimas de tráfico, como se pode verificar pelo baixo número de mulheres
que se beneficiam do período de recuperação e reflexão732.
Considera-se uma modalidade bastante controversa pois a garantia de status de vítima
não deveria estar condicionada a colaboração com autoridades. Se o tráfico de pessoas é uma
violação de direitos, e a proteção é uma forma de iniciar a reparação destes direitos violados,
condicionar o direito de residência à colaboração desta com as autoridades é absolutamente
contrário ao que pretende, principalmente quando há confusão de funções das autoridades que
devem investigar/identificar formalmente uma vítima: o mesmo policial que deve investigar o
crime e levá-lo a justiça no âmbito da condenação de traficantes, é aquele que cumpre a função
administrativa de identificar formalmente uma vítima de tráfico.
Na Espanha ocorre uma distorção em função dos papéis desempenhados por alguns
atores responsáveis pela identificação formal das vítimas de tráfico. O policial que deve
investigar o crime e levá-lo à justiça é o mesmo responsável pelo ato de administrativo de
identificação formal de vítima de tráfico. Ou seja, o mesmo ator é, polícia investigativa e,
simultaneamente, o órgão administrativo que deve cumprir a função de identificar formalmente
a vítima. Provavelmente, se essas duas funções fossem claramente diferenciadas quanto a quem
é competente para elas, não ocorreriam todas as disfunções que ocorrem. Observa-se ainda que
uma vítima pode ser detectada por uma entidade especializada ou por uma entidade não
especializada, mas a identificação formal como vítima deve ser feita pela polícia. Por outro
lado, esta formalidade está em desacordo com a Convenção do Conselho da Europa que
descarta o condicionamento da identificação formal da vítima à denúncia ou colaboração, nem
mesmo ao fornecimento de informação detalhada sobre os traficantes733.
Essa distorção indica uma visão utilitarista da figura do imigrante, para controlar as
fronteiras. Garante-se a proteção desde que haja denúncia. Nota-se um total descompasso entre
o que se propaga como proteção e o que efetivamente é proteção no âmbito dos direitos
humanos.
A própria Rede Española contra la Trata de Personas, considera que o enfoque
prioritário que as autoridades adotam na hora de trabalhar com as vítimas, continua sendo, em
muitos casos, o da persecução penal e das redes de imigração irregular734.
732
NUÑO, Laura. La trata de seres humanos con fines de explotación sexual: propuestas para un cambio de
paradigma en la orientación de las políticas públicas. Revista de Derecho Político, n. 98, p. 179, enero-abril
2017.
733
Aspectos apontados das entrevistas realizadas com diversos atores espanhóis: Proyecto Esperanza, Fundación
Cruz Blanca, Cáritas Espanhola, Fundación Amaranta-Gijón, Proyecto Vagalume.
734
RED ESPAÑOLA CONTRA LA TRATA DE PERSONAS. Informe de la Red Española contra la Trata de
Personas para la coordinadora europea de lucha contra la trata: visita oficial a España (26 y 27 de febrero
328
aplicável 1951 e seu Protocolo de 1967, bem como o princípio de não repulsão consagrados
nos referidos instrumentos.”738.
Contempla-se como uma das situações de vulnerabilidade em que se encontrem
requerentes ou beneficiários de proteção internacional, estabelecendo, para esses casos, a
necessidade de conceder tratamento diferenciado às pessoas que efetuem esses
requerimentos739.
Importante ressaltar que GRETA, em seu relatório de avaliação da Espanha em 2018740
instou a Espanha a priorizar a identificação de vítimas de tráfico entre requerentes de asilo e
imigrantes irregulares. Embora a Diretiva contra o tráfico adote uma abordagem baseada nos
direitos humanos e leve em conta a perspectiva de gênero (art. 1), a internalização na Espanha
precisa de ambas as abordagens, de acordo com o relatório de avaliação sobre a aplicação da
Diretiva (2013/33/UE), o que gera deficiências na sua aplicação. A Espanha enfrenta o tráfico
a partir de uma estrutura de direito penal e controle de migração741.
Quanto à possibilidade de requerer proteção internacional, a Diretiva contra o tráfico
(art. 11) estabelece que, “assim que as autoridades competentes tenham indícios razoáveis para
acreditar que o migrante é vítima de tráfico ou quando o migrante é identificado como vítima
de tráfico, os Estados-membro têm a obrigação de o informar da possibilidade de solicitar
proteção internacional.”742. Por outro lado, ainda se percebe o redirecionamento dos pedidos de
asilo de mulheres potenciais vítimas de tráfico para a Lei de Estrangeiros, seja pela ausência de
capacitação das autoridades em identificar a situação de vinculação tráfico/asilo, seja porque
738
Ver em: Parágrafo 1 do artigo 14 do Protocolo de Palermo. “Artigo 14. 1. Nenhuma disposição do presente
Protocolo prejudicará os direitos, obrigações e responsabilidades dos Estados e das pessoas por força do direito
internacional, incluindo o direito internacional humanitário e o direito internacional relativo aos direitos
humanos e, especificamente, na medida em que sejam aplicáveis, a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967
relativos ao Estatuto dos Refugiados e ao princípio do non-refoulement neles enunciado.”
739
Essa legislação tenta dar resposta a algumas normativas europeias que estabelecem o Sistema Europeu Comum
de Asilo (SECA), que são regulamentados principalmente pela: Diretiva de Acolhida (Diretiva 2013/33/UE),
que estabelece: 1. as vítimas de tráfico de pessoas são pessoas vulneráveis que podem ter necessidades
particulares de acolhida (Art. 21); 2. Essas necessidades devem ser avaliadas e assistência adequada garantida
(Art. 22). Diretiva de Procedimentos (Diretiva 2013/32/UE), que estabelece: os Estados Membros avaliarão
(se o requerente for um requerente que necessite de garantias processuais especiais (artigo 24.º, n.º 1) e, se for
caso disso, é prestado apoio adequado para que possa usufruir dos direitos e cumprir as obrigações desta
diretiva (artigo 24.º, 3). O direito de asilo está regulado na Espanha desde a Ley n. 12/2009.
740
GRETA-Group of Experts on Action against Trafficking in Human Beings. Report concerning the
implementation of the Council of Europe Convention on Action against Trafficking in Human Beings
by Spain: second evaluation round.. Estrasburgo: Consejo de Europa, 2018.
741
SCHERRER, Amandine et al. Trafficking in human beings from a Gender Perspective Directive
2011/36/EU: European Implementation Assessment. Bruselas: Parlamento Europeo, 2016. p.2 15.
742
STOYANOVA, Vladislava. Victims of human trafficking: a legal analysis of the guarantees for ‘vulnerable
persons’ under the Second Phase of the UE Asylum Legislation. In: BAULOZ, C. (ed.). Seeking Asylum in
the European Union: selected Protection Issues Raised by the Second Phase of the Common European
Asylum System. Leiden: Martinus Nijhoff Publishers, 2015. p. 58-108.
330
não se percebe a ligação da violência do tráfico com a possibilidade da proteção permitida pelo
asilo. O procedimento é complexo, difícil de provar a situação de violência vivenciada e o risco
do retorno, ficando difícil a concessão do asilo.
Importante destacar que, atualmente, as mulheres traficadas que procuram asilo podem
usar os dois regulamentos simultaneamente, uma vez que não são excludentes, mas
complementares. Especificamente, a de estrangeiros prioriza a colaboração com as autoridades
da vítima de tráfico, enquanto a de proteção internacional protege contra o risco de retorno743.
O procedimento de intervenção oferecido às pessoas solicitantes de asilo ou beneficiárias de
proteção internacional se concretiza em um itinerário de acolhida e integração744.
Percebe-se, analisando esse complexo sistema espanhol que, o fracasso de identificar
corretamente e formalmente uma vítima de tráfico constitui em si uma violação dos direitos e
obrigações derivados da Diretiva 2011/36/UE745. Sem essa identificação formal e a obtenção de
uma situação administrativa regular prejudica o acesso a direitos efetivos (totais ou parciais).
Nesse sentido, a violação do direito de identificação, ou a detecção tardia, a confusão entre os
fenômenos do tráfico de pessoas, contrabando de migrantes, migrantes em geral ou a não
identificação de "evidência razoável" para a caracterização do tráfico de pessoas, podem gerar
violações de direitos. Aparentemente, os direitos mais violados são aqueles relacionados ao
campo jurídico. Muitas vezes dependem da condicionalidade de proteção pela denúncia. Pode
ocorrer a instrumentalização das vítimas para se conseguir uma condenação, muitas vezes as
revitimizando em um processo judicial. Verifica-se, em muitos casos, a má proteção no
processo judicial, sem a preservação do sigilo da identidade, entre outros746.
Por outro lado, no que refere à assistência judiciária, destaca-se a aprovação do Real
Decreto-Lei n.º 3/2013, de 22 de fevereiro, que reconhece o direito à assistência jurídica gratuita
às vítimas de violência de gênero e tráfico, em todos os processos judiciais e administrativos
743
MONTALBÁN, Inmaculada. Trata sexual de mujeres: nuevas claves para el derecho de asilo. Madrid,
2017. Disponível em: http://www.poderjudicial.es/stfls/CGPJ/FORMACI%C3%93N%20CONTINUA/
PLAN%20ESTATAL/MATERIALES%20DOCENTES/FICHERO/CU17083%2001%20Montalban%20Hue
rtas%20I.pdf. Acesso em: 25 set. 2020.
744
MINISTERIO DEL TRABAJO, Migraciones y seguridad Social: Sistema de Acogida de Protección
Internacional: Manual De Gestión. 2018. Disponível em: http://extranjeros.inclusion.gob.es/es/
Subvenciones/AreaIntegracion/proteccion_internacional/sociosanitaria_cetis_2019/documentos/Manual__ges
tion.pdf. Acesso em: 20 set. 2020.
745
SANTOS, Begoña. Las víctimas de trata en España: el sistema de acogida de protección internacional. Anuario
CIDOB de la Inmigración, 2019. p. 144. Disponível em: https://www.cidob.org/es/articulos/
anuario_cidob_de_la_inmigracion/2019/las_victimas_de_trata_en_espana_el_sistema_de_acogida_de_protec
cion_internacional. Acesso em: 20 set. 2020.
746
DEFENSOR DEL PUEBLO. La trata de seres humanos en España: víctimas invisibles. Madrid: Defensor
del Pueblo, 2012. Disponível em: https://www.defensordelpueblo.es/wp-content/uploads/2015/05/2012-09-
Trata-de-seres-humanos-en-Espa%C3%B1a-v%C3%ADctimas-invisibles-ESP.PDF. Acesso em: 15 set. 2020.
331
decorrentes de sua condição de vítima, independentemente dos recursos de que dispõe. Este
direito é reconhecido a todas as vítimas do tráfico de pessoas, independentemente da sua origem
ou situação administrativa, de acordo com o disposto no artigo 22.º da LO 4/2000, de 11 de
janeiro, que reconhece o direito dos estrangeiros que se encontrem em Espanha para assistência
jurídica gratuita nos processos em que participam, nas mesmas condições que os espanhóis. O
Estatuto da Vítima de Crime, previu a constituição de um catálogo geral dos direitos processuais
de todas as vítimas de crime, que dá resposta jurídica e social ao vítimas e suas famílias, e
também dá atenção específica às vítimas mais vulneráveis, como vítimas de tráfico e menores
de idade747.
Apesar de todas essas garantias, verificam-se ainda alguns problemas relacionados, por
exemplo, a ausência de tradutores ou más práticas, prejudicando a compreensão dos passos do
processo ou até mesmo do que está sendo dito, violando direito das vítimas.
Quanto à assistência à saúde, o Sistema Nacional de Saúde e Real Decreto garante, desde
2013, a prestação de cuidados de saúde às vítimas de tráfico de pessoas em período de
recuperação e reflexão. Além disso, na prática, a Secretaria-Geral de Saúde transferiu a todas
as Comunidades Autônomas uma interpretação comum, de modo que seja entendida como
“vítima de tráfico pessoas ”qualquer pessoa física para a qual haja evidência razoável de que
foi traficada após um processo de identificação realizado pelas autoridades policiais
correspondentes, usando a Protocolo-quadro para a proteção das vítimas de tráfico de seres
humanos para seu credenciamento.
No âmbito da assistência social, a garantia de uma melhor atenção oferecida às vítimas
está condicionado a inserção do “tráfico de pessoas” como uma das modalidades de violência
de gênero no âmbito da Comunidades Autônomas, possibilitando que as vítimas de tráfico
possam usufruir dos direitos de vítima de violência de gênero, inclusive com acesso a apoio
econômico. Somente essas comunidades autônomas conseguem efetivamente garantir
programas de assistência integral às suas vítimas. As Comunidades Autônomas de Cantabria,
Canarias, Madrid, Aragón, Galicia e Cataluña inserem o tráfico de pessoas nessa condição.
Nesse sentido, o acesso a recursos vem condicionado a categoria de entrada de proteção social.
Uma das reinvindicações das OSCs e especialmente da Red Española contra la trata de
personas é a de que haja uma padronização e que todas as Comunidades Autônomas o façam,
747
Foi elaborada um Guia para auxiliar e capacitar os profissionais do direito. Ver em: CONSEJO GENERAL DE
JUSTICIA. Guía de criterios de actuación judicial frente a la trata de seres humanos. 2018. Disponível
em: http://www.poderjudicial.es/cgpj/es/Poder-Judicial/Consejo-General-del-Poder-Judicial/En-Portada/El-
CGPJ-presenta-una-Guia-de-criterios-de-actuacion-judicial-para-detectar-e-investigar-la-trata-de-seres-
humanos-con-fines-de-explotacion. Acesso em: 15 set. 2020.
332
748
MESTRE I MESTRE, Ruth M. La protección cuando se trata de trata en el Estado español. Rev. Inter. Mob.
Hum., Brasília, DF, Ano XIX, n. 37, p. 27-42, jul./dez. 2011. Disponível em: https://www.redalyc.org/
articulo.oa?id=407042014003. Acesso em: 3 maio 2020.
333
749
Em entrevista realizada com a Fundación Cruz Banca, comentou-se que esse abrigo para homens foi montado
pela inexistência de um serviço nesses moldes na Espanha. Esse serviço é mantido com fundos próprios da
entidade. O poder público não tem editais para financiar esse tipo de serviço.
334
Essa linha do tempo permite verificar como a Espanha vem construindo sua política de
enfrentamento ao tráfico de pessoas juntamente com as normativas europeias mais relevantes e
norteadoras da política interna.
5.1.2 Os Planos Integrais de Luta contra o Tráfico de Mulheres para fins de Exploração
Sexual na Espanha
750
Nesse sentido a OIM desenvolve um projeto de Retorno Voluntário que é financiado pelo Poder Público
Espanhol. IOM Spain. Proyectos de Retorno Voluntario. Disponível em: https://spain.iom.int/es/proyectos-
de-retorno-voluntario. Acesso em: 20 set. 2020.
751
MINISTERIO DE IGUALDAD. Plan Integral contra la Trata de Seres Humanos. 2010. Disponível em:
https://tbinternet.ohchr.org/Treaties/CEDAW/Shared%20Documents/ESP/INT_CEDAW_NGO_ESP_61_18
795_S.pdf. Acesso em: 14 set. 2020.
335
752
As Comunidades Autônomas na Espanha são os entes políticos como os estados no Brasil.
753
É sempre importante lembrar que a maioria das mulheres vítimas de tráfico na Espanha são estrangeiras e não
falam espanhol. A intermediadora cultural é fundamental para estabelecer uma relação de confiança com a
vítima.
754
Conforme descrito no capítulo 4, o Brasil optou por garantir a atenção das vítimas por meio de um modelo
público de assistência.
755
Verifica-se também, a existência de serviços públicos municipais, porém menos especializados que as OSCs
de atenção às vítimas do tráfico de pessoas.
756
Direitos garantidos às vítimas formalmente identificadas na Espanha: acomodação adequada e segura; Ajuda
material (subsistência); Assistência psicológica; Assistência médica (RD 1192/2012, de 3 de agosto); Serviço
de interpretação; Aconselhamento jurídico; Situação irregular: período de recuperação e reflexão, isenção de
responsabilidade; autorização de residência e trabalho (filhos menores extensíveis); Retorno voluntário;
Autorização de residência e trabalho; direitos processuais/judiciais.
336
diferenciar é a forma como essa assistência é garantida, ou seja, como cada organização
constitui/estabelece seu trabalho, uma vez que fica a cargo de cada organização, gerando uma
ausência de padronização das atividades e principalmente, do enfoque de trabalho realizado.
Pode-se perceber, que algumas organizações podem atuar de forma mais paternalista em relação
à vítima; outras atuam de maneira a dar mais empoderamento à essa vítima. Essas questões
subjetivas que envolvem a “maneira de ser” de cada organização pode, ao invés de cumprir com
sua função de garantir direitos e os restabelecer, continuar e aprofundar a vulneração dos
direitos, revitimizando, não empoderando e nem mesmo garantindo que elas possam decidir
sobre o que desejam para suas vidas. Será que a assistência oferecida vem atendendo as
necessidades das vítimas? Será que as mulheres realmente têm o direito de decidir o que
desejam para suas vidas? Ou será que o atendimento está condicionado ao que o modelo, às
vezes restritivo e que têm como fundo a criminalização e a exclusão dessas mulheres permite?
Até que ponto há uma análise crítica sobre o atendimento oferecido às vítimas? Até que ponto
se critica e se buscam alternativas, para além do posto na normativa? Até que ponto se está
fazendo incidência política para propor mudanças no que restringe e dificulta o acesso à
direitos?757.
Muitas vezes o enfoque de atuação dado por cada organização também leva em conta a
posição desta com relação à sua compreensão sobre a prostituição, simplificando aqui, de forma
bastante generalista, no grupo das organizações abolicionistas ou regulamentaristas. Entende-
se que é importante oferecer acolhida, atenção, escuta qualificada e humanizada partindo da
individualidade de cada mulher, de suas circunstâncias e entendimentos. Somente assim, pode-
se garantir que ela se sinta efetivamente acolhida nas suas necessidades. Essa preocupação é
bastante relevante pois pode acabar vulnerando mulheres que não se encontrem em situação de
tráfico de pessoas, mas que, em nome de uma compreensão moralista sobre o fenômeno, leve
a uma generalização e violação de outros direitos e, até mesmo, da utilização do discurso do
enfoque da criminalização e da segurança estatal, para limitar, dificultar e restringir o direito
das pessoas migrantes, em nome da compreensão de uma violência de gênero. Dessa reflexão
757
Estudo interessante realizado pela organização Mulheres em Zona de Conflito “Proyecto “Prevención,
Persecución, Protección y Asistencia: Estrategias de intervención con Víctimas y Supervivientes de Trata en
Andalucía y Ceuta” (2014), com a participação das mulheres atendidas, indica como estas mulheres, muitas
vezes, desejariam um outro tipo de assistência por parte das organizações que as atendem. Como exemplo:
“Nesse sentido, uma mulher cita sua recusa em morar em casa de acolhida, preferindo viver por conta própria
mesmo que não esteja nas melhores condições, mencionando que está cansada de ter o auxílio de organizações
que pedem para ela ter que contar constantemente sua história”. Ver em: MUJERES EN ZONA DE
CONFLICTO. Proyecto “Prevención, Persecución, Protección y Asistencia: estrategias de intervención
con Víctimas y Supervivientes de Trata en Andalucía y Ceuta. 2014. Disponível em: http://www.mzc.es/
investigacion/wp-content/uploads/sites/6/2016/11/EstudioTrataMZC.pdf. Acesso em: 15 set. 2020.
337
surgem outras como, em que medida a experiencia e a capacidade de análise da realidade social
identificada nas situações de tráfico de pessoas atendidas pelas OSCs se transformam em
elementos de capacidade e conhecimento para melhorar o trabalho das equipes e do
atendimento prestado às mulheres vítimas? Em que medida a atuação destas organizações tem
especializado seu atendimento, em detrimento de um voluntariado? Em que medida há
efetivamente modelos de intervenção social com essas vítimas? Em que medida se mede se a
intervenção feita está resultando em mulheres com direitos efetivamente restabelecidos e
garantidos?
Outro aspecto importante do serviço prestado pelas organizações e ressaltado por muitas
delas nas entrevistas realizadas é a falta de indicadores que consigam medir e fazer um
seguimento efetivo do trabalho desenvolvido pelas OSCs. Hoje os indicadores são, em grande
parte, quantitativos (medem o número de atendimentos, número de mulheres abrigadas, número
de mulheres acompanhadas aos serviços de saúde, etc.) e fazem um controle econômico em
função da subvenção concedida pelo poder público. Porém eles não conseguem medir a
qualidade do serviço prestado. Não se consegue saber se uma mulher está sendo efetivamente
atendida na sua integralidade.
Mesmo antes do I Plano verifica-se a articulação das OSCs, seja a nível nacional como
na Red Española contra la Trata de Personas (RECTP) (2004/2005), como no âmbito das
comunidades autônomas como a Red Gallega contra la Trata de Personas (2008) ou a Xarxa
Catalana sobre la Trata de Personas (2008), entre outras.
Outro objetivo do I Plano foi a de estabelecer e fortalecer mecanismos de coordenação
e vínculos efetivos com OSCs e instituições comprometidas na luta contra o tráfico de pessoas
e na assistência às vítimas. Nessa perspectiva, propôs-se como ação específica, a criação de um
Fórum contra o tráfico de pessoas integrado pelas Administrações Públicas, as OSC e outras
instituições importantes. Dessa ação, foi instituído o Fórum Social contra o tráfico para fins de
exploração sexual, em 14/07/2009758, que funciona até hoje como um mecanismo de governança
do modelo de enfrentamento ao tráfico de pessoas espanhol.
Após o I Plano, verifica-se um lapso de tempo até a aprovação do II Plano o que permitiu
uma avaliação do I Plano tanto por parte do poder público como das organizações
758
O objetivo do Fórum é promover o intercâmbio de informações e pontos de vista entre organizações
especializadas no atendimento às vítimas de tráfico para fins de exploração sexual e administrações com
competências na matéria (Ministérios, Comunidades Autónomas e esfera local), a fim de melhorar a
colaboração entre todos os atores envolvidos, com foco na promoção e proteção dos direitos humanos, , além
de realizar o seguimento do Plano Integral de Luta contra o tráfico de mulheres e meninas com fins de
exploração sexual, realizando um relatório anual. O Fórum é composto por uma série de atores governamentais
e não governamentais, assim como do Relator Nacional contra la trata de seres humanos.
338
759
Ao final da execução do I Plano, a RECTP elaborou um documento avaliando sua execução, elaborando
recomendações para a criação do II Plano. Esse relatório foi levado em conta para a elaboração do II Plano.
RECTP. Aportaciones para la elaboración del Nuevo Plan contra la Trata. 2013. Disponível em: https://
www.proyectoesperanza.org/wp-content/uploads/2019/06/2013_Aportaciones-RECTP-al-Gobierno.pdf.
Acesso em: 20 set. 2020.
760
DEFENSOR DEL PUEBLO. La trata de seres humanos en España: víctimas invisibles. Madrid: Defensor
del Pueblo, 2012. Disponível em: https://www.defensordelpueblo.es/wp-content/uploads/2015/05/2012-09-
Trata-de-seres-humanos-en-Espa%C3%B1a-v%C3%ADctimas-invisibles-ESP.PDF. Acesso em: 15 set. 2020.
761
GRETA. Relatório sobre a Aplicação pela Espanha da Convenção do Conselho da Europa Ação contra o tráfico
de seres humanos emitida em setembro de 2013. Ver em: https://www.proyectoesperanza. org/wp-
content/uploads/2019/05/2013_GRETA-Evaluation-Report-Spain-Summary-Informe-Evaluaci% C3%B3n-
Espa%C3%B1a-Resumen.pdf. Acesso em: 20 set. 2020.
762
Foram levadas em conta as recomendações da Administração Pública (central e Comunidades Autonomas e
Municipios – Federação de Municipios, das OSCs pertencentes ao Fórum Social contra o tráfico de pessoas
para fins de exploração sexual, o Defensor do Povo), Grupo de Expertos do GRETA e os Relatorios TIP (EUA).
Ver em: MINISTERIO DE SANIDAD, SERVICIOS SOCIALES E IGUALDAD. Plan Integral de lucha
contra la Trata de Mujeres y Niñas con fines de explotación sexual. (2015-2018). p. 46-49. Disponível em:
https://violenciagenero.igualdad.gob.es/planActuacion/ planContraExplotacionSexual/docs/
Plan_Integral_Trata_18_Septiembre2015_2018.pdf. Acesso em: 15 set. 2020.
339
torne o elemento central contra outras prioridades, como o controle da imigração irregular ou a
repressão ao crime; 2. a definição de um catálogo de direitos das vítimas de tráfico e uma melhor
implementação dos instrumentos legais estabelecidos para a proteção das vítimas (período de
restabelecimento e reflexão, concessão de autorização de residência e trabalho em
circunstâncias excepcionais); 3. necessidade de melhorar a coordenação com as Comunidades
Autónomas no que se refere a assistência e proteção das vítimas; 4. uma revisão do sistema de
funcionamento do Fórum Social contra o tráfico para fins de exploração sexual como
mecanismo de participação e cooperação entre Administrações Públicas e organizações
especializadas; 5. reforçar a abordagem dos direitos humanos em face dos objetivos da polícia
e da imigração; 6. nomear um coordenador nacional ou relator, chave para garantir uma
assistência integral e multidisciplinar, conforme exigido pelo artigo 19.º da Diretiva 2011/36 /
UE; 7. revisar a proteção oferecida tanto no sistema de imigração quanto em relação à proteção
internacional (asilo). Da mesma forma, insistiu-se na atenção especial que deve ser oferecida
(identificação, assistência e proteção) às vítimas menores de idade; 8. definir procedimentos de
colaboração e participação de organizações especializadas na intervenção com as vítimas,
incluindo a sua participação nos processos de identificação e na avaliação da concessão de
períodos de reestabelecimento e reflexão.
O II Plano Nacional apresentou quatro grandes linhas de prioridades: 1. Fortalecimento
da prevenção e detecção do tráfico; 2. Identificação, proteção e assistência às vítimas de tráfico
de pessoas; 3. Análise e aprimoramento de conhecimentos para uma resposta efetiva ao tráfico
para exploração sexual; 4. Perseguição mais ativa aos traficantes763.
763
MINISTERIO DE SANIDAD, SERVICIOS SOCIALES E IGUALDAD. Plan Integral de lucha contra la
Trata de Mujeres y Niñas con fines de explotación sexual. (2015-2018). p. 46-49. Disponível em: https://
violenciagenero.igualdad.gob.es/planActuacion/planContraExplotacionSexual/docs/Plan_Integral_Trata_18_
Septiembre2015_2018.pdf. Acesso em: 15 set. 2020.
Na linha de prioridades 2, e do objetivo específico 4: Fortalecer os mecanismos de identificação, assistência e
proteção às vítimas de tráfico, identificam-se uma série de propostas de ações no sentido de melhorar a
informação das vítimas quanto aos seus direitos e aos procedimentos pelos quais estarão envolvidas. Nesse
sentido, destacam-se: 1. Elaboração de um modelo único de ficha de informações sobre seus direitos, redigido
em linguagem simples e compreensível, que as autoridades policiais entregam após a identificação da vítima
de tráfico; 2.Elaboração de instruções para o desenvolvimento do procedimento de identificação formal de
possíveis vítimas de tráfico para fins de exploração sexual, que levem em conta as contribuições de
organizações especializadas desde o momento da detecção.
No objetivo específico 6: Medidas destinadas a abordar as situações mais vulneráveis, destacam-se, para vítimas
estrangeiras em situação irregular: 1. assegurar uma análise especializada dos pedidos de autorização de
residência e trabalho em circunstâncias excepcionais com base na situação pessoal da vítima; 2. Melhoria da
informação prestada, se for caso disso, às vítimas de tráfico de pessoas estrangeiras sobre o conteúdo básico
do direito de solicitar proteção internacional e o procedimento, em língua que compreendam. No âmbito do
programa de proteção internacional, destacam-se: 1. Melhor coordenação entre a Oficina de Asilo e Refúgio e
as autoridades policiais durante a fundamentação de um pedido de proteção internacional em que haja
evidências razoáveis de tráfico de pessoas; 2. editais para o acolhimento e integração de requerentes e
beneficiários de proteção internacional.
340
Na prioridade 5: Coordenação e cooperação entre Instituições e a participação da sociedade civil, em seu objetivo
específico 10: Promover a coordenação e participação no tráfico para exploração sexual, destacam-se: 1.
acompanhamento da aplicação do Protocolo-Quadro de Proteção às Vítimas de Tráfico para Exploração
Sexual, através da Comissão de Acompanhamento; 2. colaboração com as Comunidades Autônomas na luta
contra o tráfico para fins de exploração sexual através da Conferência Setorial para a Igualdade para uma
melhor proteção e assistência às suas vítimas e, em particular, para facilitar a sua mobilidade dentro do
território; 3. envolver as Comunidades Autônomas na atualização do Guia de Recursos existente para
assistência às vítimas de tráfico para exploração sexual; 4. promover o desenvolvimento do Protocolo-Quadro
para a Proteção das Vítimas do Tráfico a nível regional, no âmbito da Conferência Setorial sobre Igualdade; 5.
promover as funções das Unidades de Coordenação e Violência contra a Mulher nas Delegações e Sub-
delegações do Governo e Direções Insulares, em relação ao combate ao tráfico para fins de exploração sexual;
6. colaboração com a Federação Espanhola de Municípios e Províncias para promover a participação de
entidades locais no desenvolvimento de medidas de prevenção e detecção do tráfico para fins de exploração
sexual; 7. promoção da participação de organizações especializadas na assistência integral às vítimas de tráfico
e organizações que trabalham com crianças no Fórum Social contra o Tráfico para Exploração Sexual; 8.
revisão do sistema operacional do Fórum Social contra o Tráfico para Fins de Exploração Sexual, a fim de
torná-lo mais operacional; 9. participação do Fórum Social contra o Tráfico para Fins de Exploração Sexual
no Acompanhamento do Plano Integral de Enfrentamento ao Tráfico de Mulheres e Meninas para Fins de
Exploração Sexual 2015-2018; 10. incentivo à participação de organizações especializadas no atendimento
integral às vítimas de tráfico de seres humanos, nas reuniões da Comissão de Acompanhamento do Protocolo-
Quadro de Proteção às Vítimas de Tráfico, em relação às questões que levantem em relação às suas âmbito de
ação; 11. colaboração entre todas as instituições envolvidas para o cumprimento do disposto no artigo 19.º da
Diretiva 2011/36 / UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril, no que respeita às funções de
Relator Nacional para o Tráfico de Pessoas Humanos
764
MINISTERIO DE IGUALDAD. Evaluación del Plan Integral de Lucha Contra la Trata de Mujeres y
Niñas con fines de explotación sexual (2015-2018). 2020. Disponível em: https://violenciagenero.igualdad.
gob.es/otrasFormas/trata/normativaProtocolo/planIntegral/docs/INFORMEFINALEvalPITrataDGVGNoGap
sVDef.pdf. Acesso em: 20 set. 2020.
341
765
Idem.
766
Informação recebida dos atores espanhóis.
342
recursos existentes para o atendimento às vítimas de tráfico para fins de exploração sexual, a
fim de ter um Guia de Recursos atualizado a cada seis meses767.
O Ministério do Emprego e Segurança Social também incorporou nos seus Programas
cofinanciados pelo Fundo Europeu de Asilo, Migração e Integração (FAMI), prioridades para
o desenvolvimento de programas que visam o acolhimento integral de vítimas de tráfico de
pessoas, sensibilização, a criação de redes de apoio e outras ações que visem a erradicação do
tráfico para fins de exploração laboral ou sexual.
O Secretariado Geral de Imigração e Emigração do Ministério do Trabalho e Segurança
Social desenvolve o programa de retorno voluntário de assistência social a imigrantes em
situação de vulnerabilidade, proporcionando, quando desejado voluntariamente pela vítima, o
seu regresso ao seu país de origem.
767
Importante reforçar a reflexão feita por diversas OSCs entrevistadas no sentido de apontar que não há critérios
“mínimos comuns” do que se deve oferecer por uma OSC.
768
MINISTERIO DE SANIDAD, SERVICIOS SOCIALES E IGUALDAD. Plan Integral de lucha contra la
Trata de Mujeres y Niñas con fines de explotación sexual. (2015-2018). p. 109. Disponível em:
https://violenciagenero.igualdad.gob.es/planActuacion/planContraExplotacionSexual/docs/Plan_Integral_Tra
ta_18_Septiembre2015_2018.pdf. Acesso em: 15 set. 2020.
343
769
Foi realizada uma reunião com o Ponto Focal da Relatoria Nacional contra o Tráfico de Pessoas, Enrique López
Villanueva. A reunião não pôde ser gravada pois não houve autorização institucional para tanto.
344
vinculado ao trabalho desenvolvido pela RECTP. Por isso é fundamental explicar esse ator, seu
contexto e dimensões na construção do enfrentamento na Espanha770.
Foi estabelecido, por vontade do próprio relator, em 2014, que se daria uma
dupla dinâmica: uma reunião periódica institucional com todos os atores
incluída a RCTP e, logo, uma dinâmica prévia de reuniões bilaterais entre o
relator e o ponto focal com a RCTP. Essas reuniões servem para verificar a
situação, para preparar assuntos para levar à reunião institucional, entre
outros. Neste momento, as reuniões foram reduzidas e também a relatoria
institucional, todo mundo se reúne duas vezes ao ano. Mas acho que as
reuniões bilaterais entre o relator e a rede são quatro vezes ao ano. Entre uma
reunião institucional temos a nossa da Rede com o Relator.” - Entrevista OSC
que participa das reuniões com Relator Nacional pela RECTP.
770
“Entonces se establecio por voluntad del propio relator, en 2014, que iba a haber una doble dinámica: una
reunión periodica institucional con todos los actores incluida la Red Española contra la Trata y luego, una
dinámica previa de reuniones bilaterales entre el relator y el punto focal con la Red Española contra la trata.
Para verificar como esta la situación, para preparar o proponer temas de cara a reunion institucional, tal. Ahora
mismo, se han reducido estas reuniones y también la relatoria institucional, todo el mundo se reúne dos veces
al año. Pero creo que las reuniones bilaterales entre el relator y la red me parece que son 4 veces al año. Como
entre medias de una y otra.”
771
A RECTP é composta por mais de 30 entidades. São elas: Antena Sur contra la Trata, AIETI, APRAMP, CEAR,
CONFER, Fapmi-Ecpat, Federação de Mulheres Progressistas, Fundação Cruz Blanca, Fundação Tierra de
Hombres, Fundação APIP-ACAM, IEPALA, Médicos do Mundo, Mulheres em Zona de Conflito, Projeto
Esperanza, Rede Cantábrica, Xarxa Catalana sobre tráfico de pessoas e Women's Link Worldwide. As
organizações colaboradoras da Rede Antitráfico são: ACCEM, ACNUR, Anistia Internacional, Cáritas
Española, Cruz Vermelha Espanhola, IOM, Save the Children e Villa Teresita.
345
devem reger o assunto: prevenção, punição, proteção e reparação às vítimas e com base na não
discriminação.
A RECTP tem como objetivos principais a contribuição para a elaboração de propostas
e estratégias de atuação no combate ao tráfico, assim como estabelecer um diálogo permanente
com os atores públicos para melhorar a eficácia das políticas públicas de prevenção, proteção
dos direitos das vítimas, coordenar e promover a colaboração entre os membros da Rede para
elaborar medidas que garantam a prevenção do tráfico de pessoas, proteção, assistência e
reparação às vítimas do tráfico de pessoas. A Rede está dividida em alguns grupos de trabalho:
1. Grupo de Incidência Política; 2. Identificação de vítimas e grupo de referência e; 3. Grupo
de Sensibilização772.
A atuação da RECTP no âmbito do advocacy é inegável para visibilizar o tema do tráfico
na agenda pública.
Em 2008, a Rede elaborou um Guia Básico para a identificação, derivação e proteção
das vítimas de tráfico com fins de exploração, quando ainda não existia nem mesmo o I Plano
Integral na Espanha773. Pode-se dizer que o I Plano também é resultado da articulação, pressão
e diálogo da RECTP com o poder público, demonstrando a importância e necessidade da
criação dessa política pública.
Há anos, a Rede defende a necessidade de adotar uma Lei Integral para combater o
tráfico de pessoas, caracterizado por uma abordagem abrangente que englobe todas as
modalidades de tráfico, envolvendo todas as vítimas afetadas774.
A RECTP tem uma configuração e atuação independente do governo. Ela é voluntária
e se organiza de forma horizontal. Quase que ao mesmo tempo do início do enfrentamento ao
772
A presente pesquisa não teve a intenção de analisar profundamente a RECTP para verificar como ela desenvolve
suas atividades, como ela funciona, como e quem pode pertencer a ela, a transparência de suas atividades e
democratização das informações no âmbito da própria rede.
773
RED ESPAÑOLA CONTRA LA TRATA. Guía básica para la identificación, derivación y protección de
las personas víctimas de trata con fines de explotación. 2008. Disponível em: http://www.cruzroja.es/pls/
portal30/docs/PAGE/2006_3_IS/BIBLIOTECA/GUIA%20BASICA%20PARA%20LA%20IDENTIFICACI
ON%20Y%20DERIVACION%20DE%20VICTIMAS%20DE%20TRATA.PDF. Acesso em: 15 set. 2020.
774
Nesse sentido, aparentemente, essa Lei somente abordará aspectos relacionados a finalidade da exploração
sexual. “A intenção é colocar as vítimas do tráfico como sujeitos de plenos direitos, desenvolvendo medidas
para prevenir e processar as redes criminosas, bem como proteger e recuperar integralmente essas mulheres e
meninas. Tudo isto acompanhado de planos de formação para funcionários públicos com o objetivo de facilitar
a identificação e o atendimento às vítimas de tráfico com uma abordagem inclusiva, intercultural e de proteção.
O acordo governamental entre o PSOE e o PODEMOS enfoca o tráfico para exploração sexual, considerando-
o uma violação dos direitos humanos e uma das formas mais cruéis de manifestação da violência contra as
mulheres". EL CONFIDENCIAL. Irene Montero prepara una ley contra la trata y renuncia a las políticas
abolicionistas (25/02/2020). Disponível em: https://www.elconfidencial.com/espana/ 2020-02-25/montero-
igualdad-ley-trata-renuncia-politicas-abolicionistas_2468415/?utm_source=
facebook&utm_medium=social&utm_campaign=BotoneraWeb&fbclid=IwAR3h0jXFX6V2jhhZZ-
13xkaqAjZokJPwuq4p-rWrd8rk-ZZr8NhyNLgIyPQ. Acesso em: 25 fev. 2020.
346
775
RED ESPAÑOLA CONTRA LA TRATA DE PERSONAS. Informe de la Red Española contra la Trata de
Personas para la coordinadora europea de lucha contra la trata: visita oficial a España (26 y 27 de febrero
2015). 2015. p. 7. Disponível em: https://www.proyectoesperanza.org/wp-content/uploads/
2019/06/2015_INFORME-RECTP-para-COORDINADORA-EU-CONTRA-LA-TRATA.pdf. Acesso em: 15
fev. 2020. A RECTP pede que a Lei Integral contra o Tráfico de Pessoas estipule que todas as comunidades
autônomas devem inserir o tráfico de pessoas como uma forma de violência de gênero, padronizando esse
347
As organizações são as que ainda têm acesso aos pisos, pois realizam um trabalho
sanitário, de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e isso permite que se possa
acessar essas mulheres.
Com todas as críticas que podem ser feitas ao enfoque dado pela Espanha na política de
enfrentamento ao tráfico de pessoas, é inegável perceber uma evolução considerável na
construção da política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas. Há 14 anos atrás, quando
analisava por primeira vez esse mesmo processo de construção, o Brasil e a Espanha estavam
em momentos muito parecidos de construção de políticas de enfrentamento ao tráfico de
pessoas. Os dois países estavam elaborando, mesmo que com realidades, configurações de
estado e metodologias diferentes, seus I Planos que conduziriam aos primeiros passos de
enfrentamento ao tráfico de pessoas777.
No Brasil, a criação do Comitê Interministerial para a criação do I Plano foi resultado
de uma longa e democrática discussão para a elaboração da Política Nacional de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas, com uma fase de consulta pública à sociedade civil, o que possibilitou
5.5 O Trabalho em rede: a cooperação internacional entre OSCs para retorno de mulheres
brasileiras na rota Brasil-Espanha
Após descrever como o Brasil e a Espanha têm construído seus regimes complexos
internos de enfrentamento ao tráfico de pessoas, parece oportuno e interessante verificar uma
prática que está sendo desenvolvida no âmbito da atenção às vítimas e que envolve a cooperação
das OSCs.
Há uma articulação entre as organizações que prestam atenção direta, que se encontram
em origem e destino, criando redes de atenção com a finalidade de realizar retornos mais
humanizados. Dessas práticas se consegue partilhar experiências e criar metodologias de
atenção. Essa tendência, muitas vezes é motivada pela necessidade específica surgida nos casos
concretos de atendimentos. Esse fenômeno se verifica também entre entidades espanholas e
brasileiras. Durante parte da pesquisa realizada na Espanha, pudemos ter acesso alguns atores
que compõem a RECTP e que vem articulando entidades espanholas e coordenando ações
conjuntas contra o enfrentamento ao tráfico já há bastante tempo.
Já há dez anos atrás, o elevado número de brasileiras em situação de prostituição
e/exploração sexual e/ou vítimas de tráfico, provocou a necessidade da articulação dessa rede
de atores espanhóis com os atores brasileiros. Naquele momento ainda se estava criando e
organizando a Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil, juntamente
com a articulação da rede SUAS. As OSCs ainda prestavam atendimento direto às vítimas ou,
em último caso, eram os atores que estavam capacitando e auxiliando na construção dessas
redes, principalmente no que se refere ao atendimento humanizado das vítimas778.
778
FEREIRA, Ofélia da Silva. Guia de Atuação no Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Orientações para Núcleos
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e aos Postos Avançados de Atendimento Humanizado ao Migrante.
Brasília, DF: Ministério da Justiça, 2013. p. 108.
349
779
Tendo tido a oportunidade de conversar com muitas mulheres nessa condição de desejarem permanecer na
Espanha, mas não poderem por estarem em condição irregular é bastante angustiante. Ver a decepção dessas
350
Houve uma época em que houve muito retorno voluntário. Eu nunca fui muito
partidário de devolver uma pessoa. Se a pessoa está aqui é porque ali
previamente havia um processo migratório que lhe serviu aos traficantes para
captá-la. Não se está falando de mulheres sequestradas nas ruas. [...] Uma
mulher que inicia seu processo migratório e que é captada e traficada para
Espanha deve ser dada a opção de retornar ou de ficar. Devem ser dadas
ferramentas para que ela possa desenvolver esse processo migratório780.
Também estamos falando das mulheres que, por estarem em situação de irregularidade
documental, acabam sendo enquadradas na Lei de Estrangeiros e ficam, muitas vezes, nos
Centros de Internamento de Estrangeiros (CIE) até serem deportadas. Algumas delas eram
anteriormente atendidas por alguma OSC, seja por questões de saúde, seja por qualquer
acompanhamento que ali tinham. Sendo de conhecimento da OSCs que esta mulher foi detida
por irregularidade documental, pode-se tentar articular o retorno da mesma, da forma mais
humanizada possível. Nestes casos, a entidade deve tentar conseguir informações com a polícia
sobre o dia, o aeroporto pelo qual esta mulher será deportada e assim, articular com a rede de
atores brasileiros para a recepção e eventual atenção no Brasil.
No caso das mulheres que retornam por um “Programa de Retorno Voluntário”, a
organização desse retorno é feita pela OSC. Geralmente a passagem é financiada pelo Programa
de Retorno Voluntario coordenado pela OIM e financiado pela Espanha. Previamente ao
retorno, a OSC entra em contato com o PAAHM e/ou alguma organização da sociedade civil
no Brasil e articula o retorno e a possível recepção da vítima e encaminhamento ao seu lugar
de origem.
Muitas questões precisam ser resolvidas previamente. Se a mulher retornada não
permanecer na cidade do aeroporto onde ela retornará, é preciso saber se: ela já tem a passagem
até origem; se ela terá dinheiro para pagar seu retorno à origem; ou se o PAAHM terá que
organizar esse retorno à origem, inclusive buscando o financiamento para o mesmo. Geralmente
a OSC envia previamente um relatório técnico de atendimento para que a rede brasileira possa
se preparar para a acolhida781.
mulheres que desejam ali refazer suas vidas e perceber que são tolhidas dessa possibilidade é, no mínimo,
angustiante e doloroso. Ninguém deveria ser impedido de permanecer em um lugar que deseje ficar.
780
Entrevista OSC falando sobre os retornos voluntários realizados. “Hubo un momento en que hubo muchos
retornos voluntarios. Nunca he sido muy partidario de la devolución de una persona. Si la persona está aquí es
porque anteriormente hubo un proceso migratorio que sirvió a los traficantes para captarla. No estamos
hablando de mujeres secuestradas en la calle. [...] Una mujer que inicia su proceso migratorio y es captada y
tratada a España debe tener la opción de regresar o quedarse. Hay que darle herramientas para que pueda
desarrollar este proceso migratorio.”
781
Importante que se diga que pouquíssimos casos de retorno de brasileiras seguem esse padrão. Muitas acabam
retornando sem que a rede brasileira acompanhe ou tenha conhecimento do caso, principalmente aquelas que
decidem voltar sem apoio de OSC.
351
Quando as vítimas são retornadas por estarem nos CIEs, e quando e se as OSCs ficam
sabendo, precisam conseguir a informação de quando e por onde essa vítima retornará, fazendo
o contato com os atores brasileiros. Nesses processos de retorno, a Policia Nacional deve
comunicar o Consulado do Brasil (em Madri ou Barcelona) daquela deportação. Seria muito
importante se o Consulado do Brasil fizesse esse contato com a Rede Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de pessoas, mas nunca aconteceu, uma vez que o Consulado somente
recebe a informação da deportação após o retorno782. Toda vez que um estrangeiro é deportado
é feita uma comunicação ao respectivo consulado. Porém, foi destacado pela autoridade
consular que os expedientes de deportação chegam, muitas vezes, depois da deportação e, não
indicam que aquela pessoa pode ser vítima de tráfico, impossibilitando uma atenção mais
particular por parte do consulado783.
Ademais, a ausência de conhecimento do próprio consulado brasileiro na Espanha de
que se está diante de uma vítima de tráfico, impossibilita a comunicação e articulação com as
autoridades brasileiras responsáveis pela atenção interna (MRE, polícias de imigração
brasileiras, OSCs), na tentativa de prestar uma atenção especializada quando do retorno dessa
vítima ao Brasil
Outro aspecto que deve ser levado em consideração no que se refere à atenção das
vítimas envolve a articulação das sub-redes nacionais, para a atenção qualificada das vítimas
de tráfico ou mulheres em condição de vulnerabilidade que retornam ao Brasil.
782
Informação confirmada no Consulado do Brasil em Madri.
783
Entende-se o motivo pelo qual não há nenhuma informação no expediente quando se tratar de possível vítima
de tráfico, até porque ela é deportada pela infração da legislação de estrangeiros e não por ser vítima de tráfico.
Porém, considera-se que a informação da brasileira no CIE deve ser dada antes do retorno, até para que o
Consulado possa verificar possível necessidade da migrante, antes do retorno. Por exemplo, muitas vezes essas
mulheres são apreendidas e levadas para o CIE com a roupa do corpo. Todas as suas coisas não são levadas até
essa mulher, que retorna sem nada. Quando a OSC toma conhecimento dessa mulher no CIE, geralmente suas
coisas podem ser encaminhadas para retornar com ela. Mas isso somente ocorre quando a OSC fica sabendo
dessa retenção e, a polícia informa quando essa mulher retornará.
352
784
Ver em: BADIE, Bertrand. Um mundo sem soberanía: os Estados entre o artifício e a responsabilidade.
Lisboa: Instituto Piaget, 2000. Ver ainda em: ECHART, Enara. Um novo ator nas relações entre a Europa e a
América Latina: a participação das forças sociais globais. In: MILANI, Carlos R. S.; GILDO DE LA CRUZ,
María Gabriela (org.). A política mundial contemporânea: atores e agendas na perspectiva do Brasil e do
México. Salvador: EDUFBA, 2010.
353
POLÍCIA DE RECEPÇÃO
IMIGRAÇÃO QUALIFICADA SUB-REDE DE
CONSULADO
BRASILERIA AEROPORTOS ATENÇÃO
BRASIL ESPANHA
PAAHM /NETP (CREAS/CRAS/OSC)
Camomila, mulher morena como ela se autodeclara, originária de Naviraí, Mato Grosso
do Sul, é hoje uma mulher de 40 anos, solteira, vive em Goiânia (GO) com seu cãozinho
“Pulguinha”. Há quatro anos (2016) retornou da Espanha pela articulação do programa
Vagalume (Santiago de Compostela-ES) com o Projeto Resgate (GO) financiado pelo Programa
de Retorno Voluntário. Apesar de ter uma família adotiva que a criou, não mantém contato,
desde antes do seu retorno.
Ela diz que não teve infância. Revelou diversas formas de violência vivenciadas após o
falecimento de sua mãe adotiva: violência psicológica e abusos sexuais (“tocamentos”, como
ela diz) sofridos de quem a tinha que cuidar. Começou a trabalhar muito nova, com 14 anos, no
serviço doméstico. Com 15 anos viajou sozinha para o Paraná, para trabalhar de doméstica.
Cuidava da casa de uma senhora e em um ateliê de costura. Foi “com uma mochila”. Depois
trabalhou em uma sorveteria. De lá foi trabalhar em Guarulhos também como doméstica e
cuidadora de duas crianças. Em contato com sua irmã adotiva, que estava morando em Minas
Gerais, decidiu morar com ela e estudou dois anos em uma escola particular. Por diversas
dificuldades acabou voltando para Campo Grande, estava com 19 anos e conseguiu trabalho
em uma usina de cana de açúcar.
Nessa ocasião, morava sozinha, terminou ensino médio por meio de supletivo.
Trabalhava de dia e estudava à noite. “Houve uma época da minha vida que eu me quedei a
base de nissin miojo. Era comida mais barata, e ovo.”
Foi nessa época, 2002, que Camomila recebeu o primeiro convite para ir para a Espanha.
“Eu conheci uma moça que me disse que vinha pra Espanha pra trabalhar e ela me contou a
verdade.... vinha para prostituição só que tinha que dizer que era para uma fábrica de couro”.
“Acabei não vindo. Prestei vestibular para educação física, minha paixão, e fiquei no Brasil.
“Quando foi em 2003 acabei decidindo vir porque eu não dava conta de trabalhar, pagar o
aluguel, pagar ônibus, livros, fotocópias de livros e essas coisas.”
355
O plano de Camomila era ficar seis meses, guardar dinheiro e montar uma academia de
ginástica no Brasil. Ela acabou ficando 13 anos na Espanha. “Sim, eu sabia, mas eu não
imaginava que era o inferno que era.” [...] “Eu sei que tardei 15 dias pra chegar nos homens e
pra chegar nos homens tive que meter coca. Foi quando eu comecei a me drogar. Horrível!”
A dívida de Camomila era de 1700 euros, mais os 90 euros por semana para o piso onde
morava. Ela trabalhava no clube morava em um apartamento, disponibilizado pelo dono do
clube, com mais seis mulheres. Foi ameaçada pelo dono do clube para pagar a dívida ou ele
mataria sua família. Demorou três meses para pagar sua dívida.
Camomila saiu de Campo Grande (MS), São Paulo, Paris (França), Bilbao (Espanha),
Cantábria (carro).
Figura: 18. Trajeto Camomila: Campo Grande (MS) – São Paulo (SP) – Paris (FR).
Após pagar a sua dívida, ficou mais quatro meses na prostituição: de La Veja (Cantábria)
para Pontevedra (Galícia) e depois para Tarragona (Catalunha), em clubes da mesma dona.
Uma vez em situação de irregularidade documental, não restavam muitas opções para trabalhar.
357
[...] tu vai se esfriando, teu coração vai virando pedra, entende? Tem um
momento que você para, sabe de tanta gente que quer te fazer dano, tu vai
virando pedra, aí você começa a trabalhar, começa a ver que o dinheiro tá
entrando e vai te dando a gana de ter mais dinheiro, mais dinheiro e mais
dinheiro.
785
Nesses procedimentos de expulsão, a polícia dá ordem de expulsão, mas nesse primeiro momento é dado um
prazo para que o imigrante em situação irregular saia do país. A partir daí, se a pessoa foi autuada novamente,
pode ser retida em um Centro de Internamento de Estrangeiros (CIE) e ser deportado.
358
Uma época trabalhou em um clube, dormia lá. “Trabalhava e dormia, só isso. Chegava
às 6hs da manhã, dormia, acordava e saia. Comia só a noite. No almoço eu estava dormindo.”
Em um de seus relacionamentos foi pedida em casamento. Nessa época ela teve que
voltar ao Brasil para pegar seus documentos para poder casar. Revela que sua família, vendo-a
em outra condição, a tratou melhor, afinal, “ela vai estar na Espanha, vai estar em outro país.”
No retorno, Camomila ingressa no Espaço Schengen por Porto (Portugal). Seus planos não
deram certo. Um pouco depois de retornar, seu relacionamento terminou.
Sua condição financeira foi piorando, pois ela não conseguia trabalhar pela situação de
irregularidade documental. Entre relacionamentos abusivos, ela retomou o contato com o
Programa Vagalume pedindo ajuda. Acabou sendo acolhida em várias OSCs encaminhadas
pelo Programa Vagalume. Em muitos momentos pensou em retornar ao Brasil, mas acabava
sempre desistindo. Ela queria mesmo ficar na Espanha e refazer sua vida lá. Já em 2016 ela
procura o Programa Vagalume novamente pedindo ajuda para retornar ao Brasil.
Camomila nunca desejou realmente voltar ao Brasil, mas sem documentação para
permanecer e com uma ordem de expulsão aberta, ela poderia ser deportada a qualquer
momento. Camomila se encontrava, naquele momento, com um quadro de depressão,
indecisão, se sentindo culpada pela situação que estava passando786. Assim, iniciaram-se os
trâmites para organizar o retorno dela. Foi solicitada uma vaga no Programa de Retorno
Voluntário, coordenado pela OIM e seu retorno foi articulado pelo Programa Vagalume. A
recepção de Camomila no Brasil, foi realizada pelo NETP de Goiânia e pelo Projeto Resgate,
que prestou apoio a Camomila. Ela foi recepcionada em Goiânia e se iniciou um
acompanhamento e restabelecimento da mesma. Ela foi levada para uma pensão e se garantiu
uma ajuda de custo mensal para pagar seu aluguel e manutenção. Essa ajuda e custo foi mantida
por um ano e meio. Curiosamente, essa ajuda de custo não vinha do Estado brasileiro e sim de
fontes próprias da OSC Resgate.
Além disso, iniciou-se um acompanhamento para inserir Camomila laboralmente. Ela
começou a trabalhar em uma empresa prestadora de serviços de limpeza, por intermédio da
irmã de uma mulher brasileira que está na Espanha. Permanece nesse trabalho por quase dois
anos. Camomila ainda sofre com questões da depressão e acaba pedindo as contas, fica um
tempo sem trabalho e hoje trabalha na área de limpeza de um Pet Shop. Há alguns anos iniciou
um curso de estética (financiado pela OSC Resgate), mas por não conseguir administrar o tempo
do trabalho e estudo, deixou o curso.
786
PROGRAMA VAGALUME. Relatório elaborado pela equipe técnica do Programa Vagalume sobre situação
de A.J.A. 2016.
359
Camomila está no Brasil porque não lhe foram garantidas condições legais de
permanecer na Espanha. Não há dúvidas de que Camomila foi vítima de tráfico, mesmo que,
com o passar dos anos na Espanha, sua condição de vítima foi sendo modificada e ela passou a
exercer prostituição de forma “autônoma”, de alguma maneira ocultando aquela situação de
tráfico.
A história de Camomila desperta muitas reflexões e dúvidas, em vários âmbitos na
proteção e atenção. Estaria a Espanha cumprindo com suas obrigações de garantir o
restabelecimento de suas vítimas de tráfico? Estaria a Espanha protegendo e atendendo suas
vítimas por meio de um enfoque em direitos humanos? A impossibilidade de permanência de
Camomila na Espanha não estaria violando seus direitos? No caso de Camomila fica evidente
perceber que a atual normativa que exige a colaboração da vítima com as autoridades
espanholas, mesmo sem se levar em conta o receio da vítima em ter seus familiares ameaçados,
vulnerabiliza, violenta, criminaliza as mulheres sejam vítimas de tráfico ou estejam vítimas de
tráfico naquele momento. Teria Camomila deixado de ser vítima de tráfico de pessoas por não
dever mais dinheiro a uma rede de tráfico? Em que momento as vítimas se libertam de uma
rede de tráfico? Em que momento elas podem ser entendidas como
empoderadas/sobreviventes?
A atenção prestada pelas OSCs tem suas limitações, principalmente as limitações que o
Estado impõe, como é o caso da criminalização das migrantes. É possível falar de sobrevivente
quando essa atuação das OSCs não consegue restabelecer os direitos das vítimas? Quando uma
vítima é considerada sobrevivente? Em que momento ela deixa de ser vítima e passa a ser
sobrevivente? No resgate? Na possibilidade do direito à residência ou trabalho? Quando
consegue uma ajuda econômica? Quando se consegue a condenação do traficante? Ou quando
se consegue uma indenização pelos danos sofridos? São questões às quais não encontro
respostas fáceis.
Talvez, e somente a título de reflexão, no caso de Camomila, se ela tivesse tido o direito
a residir e trabalhar na Espanha, sua vida, trajetória e restabelecimento seria muito diferente.
Camomila disse que na Espanha: “eu me sentia bem na Espanha. Queria ter conseguido meus
papéis, minha documentação, queria construir minha vida lá. [...]. Queria poder entrar em uma
auto-escola, queria poder conduzir, queria poder voltar a estudar.”
De outro lado, o Brasil tem cumprido as suas responsabilidades de garantir direitos de
seus cidadãos? Camomila foi vítima de uma série de violências desde a infância, sem que
nenhum ator público tenha interferido para garantir seus direitos. Sofreu abusos psíquicos,
sexuais, fez viagens interestaduais de ônibus sozinha, foi vítima de trabalho infantil (trabalho
360
doméstico, em um ateliê de costura) sem que ninguém a percebesse, como se fosse invisível.
Nenhum ator público percebeu? Viu, escutou essa menina? Ela passou invisível por diversas
violências institucionais toda a sua infância e adolescência. Ser vítima de tráfico foi mais uma
das violências sofridas por ela. Quais vulnerabilidades se deseja elencar? Quais delas são
consideradas para caracterizar a vulnerabilidade que leva ao tráfico de pessoas?
Em que medida pode-se verificar que Camomila foi atendida levando-se em conta um
enfoque em direitos?
Pode-se dizer que, no caso de Camomila, a cooperação entre as OSCs e a Rede Nacional
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil, foi fundamental para pensar e coordenar o
seu retorno de maneira a acompanhar essa mulher-menina que sempre foi invisível.
José Maria Aznar José Luiz Rodriguez Zapatero Mariano Rajoy Pedro Sanchez
1996-2004 2004-2011 2011-2018 2018-Atual
O governo assinou e ratificou o - Espanha adere Convênio de - Diretiva 2011/36/UE sobre - Anteprojeto de Lei Orgânica
Protocolo de Palermo Varsóvia (2009) prevenção e luta contra tráfico de Integral de Liberdade Sexual,
- Alteração Normativa Tráfico e pessoas e proteção às vítimas por parte do Governo Central, a
Estrangeiros (2010) - Protocolo Marco de proteção às
tentativa de incorporar o tráfico
- Lei de Asilo (2009) vítimas de tráfico de pessoas (2011)
de pessoas como uma forma de
-I Plano Integral de Lucha Contra la - Diretivas 2012/29/EU e 2013/33/UE
violência de gênero (2020)
Trata de Seres Humanos com Fines de que estabelecem normas mínimas
Explotación Sexual (2009-2012) relativas aos direitos, ao apoio e à
- Fase de elaboração do Plano
- Diretiva 2011/36/UE sobre proteção das vítimas da criminalidade
prevenção e luta contra tráfico de - Relator Nacional do Tráfico de Estratégico contra o tráfico de
pessoas e proteção às vítimas Pessoas pessoas (2020)
-II Plano Integral de Lucha Contra la
Trata de Seres Humanos com Fines de
Explotación Sexual (2015/2018)
-Lei Estatuto de Vítima
A luta pelos direitos humanos na humanidade não foi, nem é linear787. Enfrentar um
fenômeno como o do tráfico de mulheres exige mais do que legislações tipificando crimes ou
criando protocolos de atuação. A luta pelos direitos das vítimas de tráfico passa principalmente
por uma mudança na forma de compreender e analisar a desigualdade e a falta de equidade para
com as mulheres na ordem internacional, nas relações econômicas, nas relações de produção.
Exige uma análise histórica e crítica mais estrutural do sistema socioeconômico ao que estamos
inseridos, que nos permita compreender as contradições existentes e refletir sobre suas práticas.
A desigualdade não será solucionada enquanto houver exploração e, para que não haja
exploração é importante superar o modelo capitalista e suas mais perversas consequências. Na
lógica atual naturaliza-se a exploração de um país sobre o outro, de um gênero sobre o outro,
de uma classe sobre a outra, de uma cor sobre a outra, vulnerando pessoas e gerando
exploradores e explorados.
Analisar o fenômeno do tráfico de pessoas de forma fragmentada, desviando e
priorizando dimensões economicistas, jurídicas, em detrimento das dimensões históricas,
sociais e políticas impede que olhemos conscientemente de frente para a construção de
caminhos que promovam a reflexão, a dialética. Ou seja, que no mínimo, permitam visibilizar
as contradições do sistema.
Ter consciência de que esse é o plano de fundo no qual o enfrentamento ao tráfico de
pessoas acontece é resiliente e ao mesmo tempo estimulante. Resiliente porque nos coloca
diante das limitações existentes, sem gerar expectativas e romantizações sobre a realidade e o
enfrentamento, permitindo potencializar as ações, no que se pode, nesse momento, modificar.
A construção se dá a passos pequenos, sempre tendo como centro almejado, a pessoa humana
no gozo pleno de direitos. Esse pano de fundo é a faísca necessária para aqueles que sonham e
almejam com um outro mundo possível. Um mundo que se preocupe e valorize por cada vida
humana.
787
ARENDH. Hannah. Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. Tradução Roberto
Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Ver também: BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad.
Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
365
Nesse sentido, pensar um regime que se baseia no enfoque de direitos é colocar a pessoa
humana no centro, e sua dignidade como valor a ser perseguido. É um regime que organiza e
comanda todas as práticas nessa direção. É garantir uma visão interdisciplinar centrada na
complexidade, na multidimensionalidade e na multicausalidade sobre o fenômeno do tráfico de
pessoas.
A abordagem baseada em direitos humanos pode ser definida como um “marco
conceitual para o processo de desenvolvimento humano que, do ponto de vista teórico, se baseia
nas normas, princípios e padrões internacionais de Direitos Humanos, e do ponto de vista
operacional está orientado para a promoção e proteção dos Direitos Humanos”788 Também pode
ser conceituado como “a discussão jurídica e os esforços por traduzir as normas (internacionais
de direitos humanos) em ações de política institucional e de controle social.”789. Seu principal
objetivo é, por meio da elaboração de políticas públicas, permitir avanços na realização
progressiva dos direitos humanos.
O enfoque em direitos exige alguns compromissos que levem ao desenvolvimento
humano, uma sociedade livre de violência e exploração, sendo fundamental as relações
pautadas pelo respeito, apoio mútuo, solidariedade e não-discriminação. Nesse sentido, o
enfoque em direitos defende a realização de transformações políticas, jurídicas e de paradigma
para a ação coletiva, seja para combater o problema, quanto para promover proteção e atenção
integral às vítimas de tráfico, gerando uma política antitráfico em nível global, com a primazia
dos direitos humanos790.
No âmbito do tráfico de pessoas, o enfoque em direitos coloca a dignidade humana como
o principal bem a ser protegido, com os direitos humanos das pessoas traficadas sendo o centro
de todos os esforços para prevenir e reprimir o crime, proteger, assistir e reparar os danos das
vítimas. Nessa perspectiva, o enfrentamento ao tráfico se dá, a partir de ações pós-violação,
mas principalmente, na garantia do exercício dos direitos humanos791.
788
DE BLAS, Alícia García. El comienzo es siempre hoy: incorporando el enfoque basado en derechos humanos
a la educación para el desarrollo. Red EnDerechos. 2012. p. 18. Disponível em: https://www.intered.org/es/
recursos/recursos-educativos/el-comienzo-es-siempre-hoy-incorporando-el-enfoque-basado-en-derechos.
Acesso em: 15 set. 2020. “un marco conceptual para el proceso de desarrollo humano que desde el punto de
vista teórico está basado en las normas internacionales, principios y estándares de Derechos Humanos y desde
el punto de vista operacional está orientado a la promoción y la protección de los Derechos Humanos”
789
GÜENDEL, Ludwing: Por una gerencia social con enfoque de derechos. 2003. p. 2. Disponível em:
www.iigov.org/documentos/?p=3_0108. Acesso em: 15 out. 2020.
790
ALVAREZ, V. et al. El enfoque de derechos: una oportunidad para dar protección real y efectiva a las víctimas
de trata. In: AGULLO, Esteban Tomás et al. (coord.). Mujeres e inclusión social: Investigación y estrategias
de Innvación y transformación social, 2020. p. 43-45.
791
RAMOS, Nuria Cordero. Trata con fines de explotación sexual. Derechos humanos que maltratan a las
humanas. Gazeta de Antropología, 30, 09, 2014. Disponível em: https://digibug.ugr.es/handle/10481/33816.
Acesso em: 15 out. 2020.
366
Essa abordagem exige uma visão crítica/comprometida dos direitos humanos, exigindo
a obrigação dos Estados de fornecer mecanismos eficientes para evitar a impunidade e criar
proteção efetiva para as pessoas exploradas. Para tanto é necessário um ambiente institucional,
normativo e cultural claramente orientado para as pessoas, particularmente aquelas mais
vulneráveis pelas condições de pobreza e exclusão, protegidas da exploração e do tráfico de
pessoas. A ética dos direitos humanos contempla no outro, um ser merecedor de igual respeito,
dotado do direito a desenvolver suas potencialidades humanas de forma livre, leve, autônoma
e plena792.
O olhar a partir da teoria crítica dos direitos humanos busca compreender as situações
de discriminação, assim como as bases estruturais que as produzem. No âmbito do tráfico de
pessoas, a teoria crítica dos direitos humanos permite alargar a perspectiva de análise, tornando
mais complexa a visão oferecida pela abordagem normativa, proporcionando outros elementos
que vão além, como garantias reais e eficazes793. Significa interromper o processo de tráfico de
pessoas permitindo que a pessoa deixe de ser coisificada ou tratada como mercadoria de
consumo ou intercâmbio, já que isto viola seus direitos inerentes e subtrai sua condição humana.
Significa criar mecanismos que garantam a dignidade do ser humano como inalienável.
Percebe-se como este enfoque de direitos é diverso do enfoque normativo, em que predomina
a centralidade do Estado, onde o tráfico de pessoas é uma ameaça a sua segurança nacional.
Neste não é possível colocar a pessoa como o centro de todas as ações. O Estado está acima de
qualquer interesse ou direito pessoal e deve proteger seu território e suas fronteiras794.
Como essa abordagem dos direitos tem a centralidade na pessoa humana, para a garantia
da efetividade dos direitos exige estratégias que contemplem a igualdade social, a discriminação
positiva, a participação e o empoderamento como orientadores das políticas públicas. Somente
com essa abordagem é possível garantir resultados melhores e mais sustentáveis no combate ao
tráfico de pessoas, especialmente para mulheres com fins de exploração sexual795.
O enfoque em direitos percebe o tráfico de pessoas como uma violação dos direitos
humanos e assim, uma ameaça à segurança humana, tendo como perspectiva a inclusão social
792
ÁLVAREZ, Vanesa. et. All. La trata de personas desde el Enfoque de Derechos: de la definición teórica a la
acción práctica. FES. Federación Española de Sociología. 2016. Disponível em: http://www.fes-
sociologia.com/files/congress/12/papers/5346.pdf. Acesso em: 15 out. 2020
793
GALLARDO, Helio. (2010). Teoría crítica y derechos humanos. una lectura latinoamericana. Revista de
Derechos Humanos y Estudios Sociales (REDHES), año II, 4. Disponível em:
http://www.derecho.uaslp.mx/Documents/Revista%20REDHES/N%C3%BAmero%204/Redhes4-03.pdf.
Acesso em: 20 out. 2020.
794
SILVA, Waldimeiry Correa. Regime internacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas: avanços e
desafios para a proteção dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
795
ABRAMOVICH, Victor. Una aproximación al enfoque de derechos en las estrategias y políticas de desarrollo.
Revista de la CEPAL, Santiago, n. 88, p. 35-50.
367
das vítimas. Essa abordagem pretende favorecer o empoderamento das mulheres como titulares
de direitos e a realização das responsabilidades dos titulares de obrigações, gerando espaços de
advocacy, mobilização e participação que transformam as relações de poder796.
A perspectiva da orientação estratégica no Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas é
fundamental para a construção das políticas públicas internas em cada estado nacional. Os
direitos humanos violados pelo tráfico de pessoas têm sua proteção pelo atual Direito
Internacional dos Direitos Humanos
A proibição do tráfico de pessoas está incluída no primeiro documento sobre direitos
humanos elaborado pela ONU, onde estão listados os direitos básicos e as liberdades
fundamentais a que todo ser humano tem direito, sem qualquer discriminação: a Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948797. Além dessa normativa várias outras foram sendo
incorporadas ao ramo do Direito Internacional dos Direitos Humanos, criando entre outros
aspectos, obrigações aos Estados para a implementação de direitos.
Nesse sentido, os direitos humanos são “valores não negociáveis” que representam um
produto social ou histórico derivado das lutas sociais. Os direitos positivos, entendidos como
aqueles que podem ser exigidos juridicamente, vêm sendo ampliados desde a concepção dos
direitos clássicos (civis e políticos) para outros de natureza econômica, social, cultural e
ambiental798.
Particularmente falando dos direitos humanos ligados a violação de direitos decorrentes
do tráfico de pessoas, podem ser elencados os seguintes documentos garantidores:
796
ÁLVAREZ, Vanesa. et. al. La trata de personas desde el enfoque de derechos: de la definición teórica a la
acción práctica. FES. Federación Española de Sociología. 2016. Disponível em: http://www.fes-sociologia.
com/files/congress/12/papers/5346.pdf. Acesso em: 15 out. 2020.
797
Santos Martín Ostos, J. D. L. La tutela de la víctima de trata: una perspectiva penal, procesal e internacional.
J.M. BOSCH EDITOR, 2019. p. 159. Disponível em: https://elibro.net/es/ereader/universidadcomplutense/
121207?page=157. Acesso em: 15 fev. 2020.
798
MERCADO, Claudia Giménez; ADARME, Xavier Valente. El enfoque de los derechos humanos en las
políticas públicas: ideas para un debate en ciernes. Cuadernos del CENDES, v.27, n.74, p. 54, mayo-agosto,
2010.
368
Tabela 20. Normativas internacionais do ramo do Direito Internacional dos Direitos Humanos
Nível global
2000 Protocolo para Prevenir, Reprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, Especialmente Mulheres e
Crianças, que complementa a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional.
(Protocolo de Palermo)
2000 Protocolo Opcional da Convenção sobre os Direitos da Criança sobre a venda de crianças,
prostituição infantil e pornografia infantil
2000 Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional
1990 Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e
Membros de Suas Famílias
1989 Convenção sobre os Direitos da Criança
1989 A Convenção sobre os Direitos da Criança
1984 A Convenção Contra a Tortura e outras Penas e Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes
1979 Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulher
1979 A Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
1967 O Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados
1967 O Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados
1966 Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966
1966 Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos
1965 Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial
1948 A Convenção sobre a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio
Nível regional
2011 Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (art. 5), 2000, e a Diretiva 2011/36 / UE do
Parlamento Europeu e do Conselho sobre a prevenção e o combate ao tráfico de seres humanos e
a proteção das vítimas
2005 Convenção do Conselho da Europa Contra o tráfico de seres humanos (Convenção Europeia sobre
o Tráfico Carta dos Seres Humanos)
2002 Associação do Sul da Ásia para a Cooperação Regional, Convenção sobre Prevenção e combate
ao tráfico de mulheres e crianças para fins de prostituição
1969 A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose)
1950 Convenção Europeia de Direitos Humanos (Convenção de Roma)
1948 Declaração Americana de Direitos e deveres do Homem
1986 A Carta Africana de Direitos do Homem e dos Povos
1994 A Carta Árabe de Direitos Humanos (ainda não entrou em vigor).
Fonte: Elaboração própria.
369
799
Ver em: SILVA, Waldimeiry Correa. Regime Internacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas: avanços
e desafios para a proteção dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p.38.
800
Protocolo de Palermo, Convênio de Varsóvia (2005) e Relatoria Especial em tema de tráfico de pessoas no
âmbito do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (2011-2014 e 2019). Como já descrito no capítulo
3, o relatório da Relatoria Especial de 2009, traz contribuições especialmente importantes pois propõe a
ampliação da visão estratégica de referência para a organização das respostas dadas ao tráfico de pessoas a
nível nacional, regional e global.
801
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório E / CN.4 / 2005/71 da Relatoria Especial
sobre o tráfico de pessoas. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G04/
169/31/PDF/G0416931.pdf?OpenElement. Acesso em: 15 jun. 2020. Ver também em ALTO
COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório A/HRC/23/48 da Relatoria Especial sobre o tráfico
de pessoas: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G13/122/85/PDF/G1312285.
pdf?OpenElement. Acesso em: 15 jun. 2020.
370
802
GÜENDEL, Ludwing: Por una gerencia social con enfoque de derechos. 2003. p. 8. Disponível em:
www.iigov.org/documentos/?p=3_0108. Acesso em: 15 out. 2020.
803
Ibid., p. 10.
804
MERCADO. Claudia Giménez. ADARME, Xavier Valente. El enfoque de los derechos humanos en las
políticas públicas: ideas para un debate en ciernes. Cuadernos del CENDES, v. 27, n.74, p. 69, mayo-agosto,
2010.
805
Idbid., p. 73.
371
806
MERCADO, Claudia Giménez; ADARME, Xavier Valente. El enfoque de los derechos humanos en las
políticas públicas: ideas para un debate en ciernes. Cuadernos del CENDES, v. 27, n.74, p. 65, mayo-agosto,
2010.
807
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório A/HRC/10/16 da Relatoria Especial sobre o
tráfico de pessoas. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G09/111/31/
PDF/G0911131.pdf?OpenElement. Acesso em: 15 jun. 2020.
372
mais rigorosas e colaborativas para identificar as vítimas, principalmente com uma maior
cooperação entre atores governamentais e da sociedade civil que atuam nesse momento do
enfrentamento ao tráfico de pessoas.
A identificação está diretamente ligada ao direito das vítimas de tráfico de receber
reparação pelos danos sofridos. A própria Relatoria Especial identificou que as pessoas
traficadas muitas vezes carecem da reparação ou apoio necessário para ter acesso a reparação o
que pode, muitas vezes, colocar essa pessoa novamente na linha da vulnerabilidade ao tráfico
de pessoas. Para tanto, é fundamental que os Estados tenham previsão legal para garantir a
reparação efetiva pelos danos que lhes foram infligidos. “Em essência, as vítimas de tráfico
devem receber reparações adequadas pelos danos sofridos, incluindo restituição, indenização,
recuperação, satisfação e garantias de não repetição.”808.
No que se refere à resposta da justiça penal na responsabilização dos traficantes, não
deve haver conflito entre os direitos das vítimas e as respostas do sistema de justiça penal.
Muitas vezes, as vítimas de tráfico são utilizadas como instrumentos de investigação criminal
e não como titulares de direitos, com direito a proteção, apoio e reparação.
A perspectiva de utilização e incorporação do enfoque em direitos, ampliando o olhar e
a proposta inicial do Protocolo de Palermo, que partiu de uma lógica de securitização e
criminalização, permite melhorar o conceito a respeito dos parâmetros da definição do tráfico
de pessoas e ampliar: a identificação e a reflexão sobre as diferentes formas de exploração
relacionadas com o tráfico de pessoas e; a consideração de diferentes vias e agentes que
poderiam ou deveriam desempenhar um papel na prevenção ou uma resposta ao tráfico de
pessoas.
O Protocolo de Palermo traz referencias gerais dos direitos humanos de forma bastante
limitada. Também inclui uma série de obrigações que podem ser interpretadas como destinadas
a proteger as vítimas. A inclusão do enfoque em direitos trouxe uma nova perspectiva para a
compreensão do tráfico de pessoas, como uma violação de direitos humanos.
As políticas públicas podem ser entendidas como um produto do Estado que vem
moldado em formas legais e técnico-administrativas, reflexo de um processo prévio de relações
de poder complexas, e que devem ser orientadas por um marco normativo e operacional que
808
Interessante perceber que essa compensação pode ser concedida às vítimas por meio de procedimentos legais,
sejam eles civis ou criminais. Também pode ser concedido por meio de fundos de compensação administrados
pelo estado ou outras formas, conforme o entendimento de cada Estado. ALTO COMISSARIADO DAS
NAÇÕES UNIDAS. Relatório A/HRC/10/16 da Relatoria Especial sobre o tráfico de pessoas. Disponível
em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UN.DOC/GEN/G09/111/31/ PDF/G0911131.pdf?OpenElement.
Acesso em: 15 jun. 2020.
373
809
SALAMANCA, Luis. La política publica como la ciencia de la intervención del gobierno en la vida social: el
estado de la cuentión en la literatura. Politeia, Caracas, n. 17, p. 223-282. Disponível em: https://www.
scienceopen.com/document?vid=fe3c8923-f0e7-4952-854f-36ad4faca538. Acesso em: 15 out. 2020.
810
Álvarez, V. (et al.). La trata de personas desde el enfoque de derechos: de la definición teórica a la acción
práctica. FES. Federación Española de Sociología. Disponível em: http://www.fes-sociologia.com/files/
congress/12/papers/5346.pdf. Acesso em: 15 out. 2020. Ver também em: SICAR-Asturias. Nuestra manera
de ver las cosas: experiencia de sistematización de la práctica. 2004. Disponível em: http://www.
fundacionamaranta.org/wpcontent/uploads/2014/10/experiencia-y-sistematizacion-de-la-practica.pdf y
http://www.fundacionamaranta.org/wp-content/uploads/2014/10/reflexion-ysistematizacion-de-la-
practica.pdf. Acesso em: 15 out. 2020.
811
FEREIRA, Ofélia da Silva. Guia de atuação no enfrentamento ao tráfico de pessoas: orientações para
Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e aos Postos Avançados de Atendimento Humanizado ao
Migrante. Brasília, DF: Ministério da Justiça, 2013. p. 108.
374
A abordagem realizada deve ser abrangente, composta por diversos nuances analíticos,
como: direitos humanos, gênero, multiculturalidade, inter-geracionalidade, exclusão social e
contextual. Essa abordagem abrangente e multigarantia permite, por um lado, uma visão
interdisciplinar voltada para a complexidade, multidimensionalidade e interseccionalidade que
envolve o problema do tráfico de mulheres.
Outro aspecto relevante que deve ser levado em conta na hora do atendimento às vítimas
para evitar a “homogeneização abstrata das vítimas de tráfico”. Os atores responsáveis pelo
atendimento às vítimas muitas vezes, compartilham perfis e elementos comuns das vítimas
como o engano, a coação, a exploração, mas muitas vezes essas características não implicam a
consideração de uma categoria standard. Cada mulher deve ser atendida na sua individualidade,
com idiossincrasias específicas: nome, identidade, lugar de origem e situações jurídicas, sociais,
familiares e culturais particulares, que devem ser reconhecidas nas práticas institucionais812.
A negação desta forma de abordagem acarreta um maltrato acrescido com a
desvalorização, exclusão, discriminação, qualificação negativa, desqualificação e subjugação
com base em uma cultura patriarcal prevalecendo a abordagem normativista.
812
CORDERO, Nuria. Trata con fines de explotación sexual: derechos humanos que mal-tratan a las humanas,
2014. p. 9. Disponível em: https://digibug.ugr.es/handle/10481/33816. Acesso em: 15 out. 2020
813
Id., p. 9 “Desde el enfoque crítico de los derechos humanos prevalece la importancia de generar procesos
hermenéuticos que dignifique la atención a las mujeres y generen una comprensión más profunda y singular
de las situaciones que están viviendo. En este sentido, resulta imperiosa la necesidad de reclamar, con la
mediación de las instituciones, posibilidades de vida digna para las mujeres y niñas afectadas, dándoles voz y
protagonismo en los procesos de lucha por su emancipación. El objetivo de las acciones transformadoras será
devolverles la autonomía, partiendo del derecho de las mujeres de tomar sus propias decisiones en asuntos que
afectan sus cuerpos y sus condiciones de vida.”
375
Como foi visto no capitulo quatro desta pesquisa, o Brasil vem construindo uma política
pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas, apontando diversos avanços conquistados,
desde alterações normativas no sentido da padronização internacional e a construção de Planos
Nacionais criando obrigações no âmbito da prevenção, repressão e responsabilização do crime
e principalmente atenção às vítimas de tráfico e, principalmente da incorporação da temática
nas políticas públicas já existentes, como SUAS e o SUS. Também foi possível analisar uma
série de desafios postos na efetivação desta política de enfrentamento ao tráfico.
Não se pode deixar de perceber o atual momento em que se analisa essa política, seja
no contexto mundial e nacional de uma pandemia que chegou sem dar aviso prévio e que
acabam por enfraquecer ainda mais as políticas públicas básicas que já passavam por um
desmonte, principalmente a partir de 2016, com as reformas trabalhista, previdenciária e a
Emenda Constitucional n. 85/2016 já abordadas anteriormente.
As Organizações Internacionais que aqui desenvolvem cooperação há mais de 15 anos,
especificamente na temática do tráfico de pessoas, trazem consigo uma agenda própria que
claramente determina ações que acabam por conduzir enfoques de abordagem da temática do
tráfico de pessoas. Nesse sentido, pode-se perceber uma disposição em desenvolver ações no
âmbito da securitização das fronteiras, conforme se verifica na planilha dos projetos financiados
por essas organizações disposta no capitulo quatro.
A promulgação da Lei 13.344 / 2016, trouxe um salto qualitativo no enfrentamento ao
tráfico de pessoas no Brasil, seja por inserir outras modalidades de exploração para além da
exploração sexual, seja por criar um novo paradigma no enfrentamento, incluindo uma seção
específica sobre a proteção e assistência das vítimas, além de indicar como deve ser
desenvolvida a prevenção da criminalidade. A inclusão das medidas protetivas e assistenciais
garantem maior força legal, permitindo a cobrança e a construção de modelos de assistência
mais voltados aos direitos humanos das vítimas. Esses aspectos devem ser valorados
positivamente no sentido da construção de uma política que leva em conta os direitos das
vítimas e a premente necessidade de efetivar essa proteção por parte do Estado. Acredita-se que
um dos pontos mais frágeis e prejudiciais da normativa brasileira é a de não deixar expressa a
irrelevância do consentimento dado pela vítima. Levando em conta alguns indícios de perfis
das vítimas e o estudo trazido por Dornelas indicando a ausência da percepção dos profissionais
do direito sobre a vulnerabilidade como condicionante para prejudicar o consentimento dado
376
pela vítima, percebe-se que essa omissão da normativa, e do atual entendimento de que somente
há caracterização do tráfico com o consentimento irrelevante quando houver “grave ameaça,
violência, coação, fraude ou abuso” pode gerar diversas violações de direitos. Além disso, esse
entendimento contraria a própria disposição do Protocolo de Palermo, aderido pelo Brasil.
Soma-se a percepção das OSCs de que a rede de atores responsáveis por fazer valer os
direitos garantidos na normativa deve “funcionar”.
A legislação de 2016 melhorou a possibilidade de atuar para os direitos dessas
pessoas, tanto no Marco Migratório como do tráfico de pessoas. Mas não basta
estar no papel. É necessário que a rede funcione, que a rede da saúde funcione,
que a rede da assistência funcione plenamente, que a gente tenha espaços de
acolhimento, assistência jurídica, acesso aos benefícios, que haja realmente
uma responsabilização. É um conjunto que já está posto. É necessário fazer
com que isso funcione. (Entrevista realizada com OSC brasileira).
814
Destaca-se que a CONATRAE (Comissão Nacional de Enfrentamento ao Trabalho Escravo) foi criada em 2003
e representa uma esfera oficial de acompanhamento, monitoramento e coordenação do Plano Nacional para a
Erradicação do Trabalho Escravo. A CONATRAE, diferentemente do CONATRAP, conseguiu manter sua
paridade, sem redução de OSCs que a compõe em 2019.
377
O Brasil nunca teve fluxos de proteção super organizados. Isso acontece pela
própria estrutura de proteção social do Brasil. Não acho que seja uma
particularidade da política pública do tráfico. (pesquisadora especialista
tráfico de pessoas).
A fala de uma integrante de OSC é bastante simbólica sobre o momento em que vive a
política de atenção no Brasil.
815
Em algumas entrevistas foi destacado que vem sendo percebida a proximidade da violência doméstica com o
tráfico de pessoas. Muitas mulheres atendidas por violência doméstica e, muitas delas migrantes, também são
identificadas como vítimas de tráfico principalmente para trabalho escravo. Essa identificação é percebida
quando da realização do atendimento humanizado.
378
Minha opinião sincera é que está tudo posto. Se a gente não tirar do papel o
que está posto pela OIM, pela UNODC, pelo MPF, MPT, Defensoria Pública,
não vamos avançar. A invenção da roda virá agora no pós-pandemia. Temos
que avançar no que não foi feito. Talvez nas coisas mais simples. O que já está
posto não está sendo suficiente para garantir direitos de ninguém.
Temos que repensar, avaliar e partir com humildade. Temos que reconhecer
que, como a coisa está, ela nunca foi suficiente para garantir direitos. Ela
nunca saiu realmente do papel. Essa é a grande verdade. Falta vontade política.
(Entrevista realizada com OSC brasileira).
Como posto nas entrevistas, talvez, o caminho da construção do que se entende como
necessário para garantir os direitos das vítimas e, especialmente no contexto deste trabalho, das
mulheres vítimas, já está posto formalmente, devendo ser garantido na prática dos
atendimentos.
Outro aspecto que deve ser levado em conta para verificar se o Brasil vem construindo
sua política no âmbito do enfoque em direitos leva em conta os espaços de governança criados
permitindo a participação de atores diversos. Nesse sentido, percebe-se, como já foi dito, do
retrocesso nas Comissão Tripartite e no Grupo Interministerial e CONATRAP, este último com
sua redução de membros, principalmente na representação de atores não governamentais,
prejudicando essa diversidade necessária para atender as mais diversas características e
necessidades de olhares para o enfrentamento. A construção do enfoque em direitos deve pensar
sempre na ampliação, em agregar outros olhares. A restrição indica retrocesso.
No âmbito da responsabilização dos traficantes, percebe-se, mesmo que a legislação
impeça a obrigatoriedade de colaboração das vítimas, uma tentativa de criminalizar a mulher
vítima e uma dificuldade na persecução ao crime, exigindo repensar aspectos e a condução dos
procedimentos investigatórios e judiciais 816. A não criminalização é uma forma de garantir
plenitude nos direitos das vítimas.
Ainda levando em conta a governança de atores que atuam no enfrentamento ao tráfico
de pessoas é importante destacar a importância da atuação das OSCs que no Brasil ocupam um
espaço coadjuvante de capacitação de atores públicos, realização de pesquisas, advocacy e, na
atualidade, em menor número, atendimento às vítimas. Sua atuação é de extrema relevância
uma vez que foram estas organizações quem, antes mesmo do início da construção da política
pública, já identificavam um fenômeno que estava relacionado à exploração, mas se
diferenciava da exploração sexual. Sua expertise deve ser valorizada e aproveitada.
A principal relevância da atuação das OSCs é a de permitir que não haja
estigmatização dos grupos (migrantes, mulheres, LGBTI, entre outros).
Por outro lado, as OSCs precisam trabalhar com mais profissionalismo. No
Brasil, temos dificuldade de ver as OSCs com estruturas mais
organizadas/empresariais. É uma questão cultural. (pesquisadora especialista
tráfico de pessoas).
Com tudo o exposto, acredita-se que o Brasil teve momentos de importante construção
da política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas com enfoque em direitos. A
816
DORNELAS, Luciano. A persecução penal do tráfico internacional de seres humanos no Brasil:
organização, interações e decisões. Tese (Doutorado) - Centro Universitário de Brasília, 2019.
380
Nesse sentido, sem a identificação formal a vítima não acessa ao direito de residência e
trabalho, mas pode, sendo identificada por uma OSC, ser atendida no âmbito dos direitos
assistenciais.
Por outro lado, a detecção de uma possível vítima de tráfico por uma entidade
que trabalha no tráfico é suficiente para que essa vítima tenha acesso a toda
uma série de direitos no sentido de acomodação, assistência psicológica,
assistência jurídica, ou seja, direitos que têm que fazer do ponto de vista
assistencial.
Isso ocorre, por exemplo, nossa organização trabalha 24 horas por dia e
trabalhamos em rede com muitas organizações, por exemplo, Médicos del
817
OSC especializada na Espanha “ […] una señora puede tener un miedo absolutamente legitimo y justificable
de denunciar. 2. Uno señora que por ejemplo acaba de llegar aquí y todavía no ha sido sometida a explotación
pero ya se ha consumado el delito de trata porque esa era la intención, puede no tener ni siquiera informacion
relevante. Entonces tu no puedes nunca condicionar esa identificación con esa colaboración, porque si esa
señora fuera identificada, si podría acceder a un permiso por situación personal, por ejemplo. Entonces es
donde se genera las distorciones. Como entidad proponemos y ofrecemos es el enfoque en Derechos Humanos,
facilitar, colaborar y aportar para lograr un proceso de recuperación integral de la persona. Eso significa que el
enfoque de atención a los casos de emergencia pero algunas veces los casos de medio y a largo plazo que
entendemos haber más de estos casos por la situacion de vulnerabiliad de la persona. Sea porla situacion de
vulnerabilidad de la persona en consecuencia del delicto, sea por condiciones personales de la persona, son
perfiles muy vulnerables desde origen. Son procesos que llevan tiempo, son largos y lentos. Eso es importante
tenerlo en cuenta. Tambien procesos de integración, desde nuestro punto de vista, integral, que haya realmente
un equipo de profesionales que desde diferentes ópticas, y diferentes competencias, aborden y colaboren y
apoyen el caso y de una manera que no es fácil, coordinada.”
382
Mundo está no campo, então eles detectam, nos chamam e nós valoramos. Se
houver indícios razoáveis, somos livres para hospedar essas vítimas. Por
exemplo, a Comunidad de Madrid não exige que todos os casos por nós
atendidos sejam encaminhados por eles ou que identifiquem quem é ou não
vítima de tráfico, porque aí está a entidade especializada. (entrevista OSC
especializada na Espanha)818.
Uma conquista importante das OSCs e da RECTP foi sua participação nos processos de
identificação formal das vítimas, apesar de que nem sempre as autoridades vêm cumprindo,
nem sempre elas são chamadas a participar desse procedimento.
Neste processo formal de identificação, de acordo com as normas espanholas,
devemos participar. Essa também é uma conquista do RECTP. Manifestamos
boas práticas que temos estado especificamente na Comunidade de Madrid,
[...] gerou uma dinâmica em que participamos sistematicamente nestas
entrevistas de identificação e outras e que facilitou a abertura da vítima,
confiança, tranquilidade e Tomamos isso como exemplo, para trabalhá-lo
quando o Ministério do Interior pelo Secretário de Estado e Segurança, em
uma instrução, detalhou a colaboração entre as Forças de Segurança e os
Organismos especializados justamente no processo de identificação819.
(entrevista OSC especializada na Espanha).
No final das contas, a única alternativa que eles estão lhe dando é, se você é
vítima de tráfico para fins de exploração sexual é ir para uma casa de acolhida
[...] legalmente, o sistema não foi projetado para proteger as vítimas. E é o que
dizem os magistrados. É um sistema meramente instrumental para a
colaboração da vítima ou testemunha durante o processo penal. Mas, por
exemplo, se no julgamento oral, a defesa e os traficantes dizem que precisam
saber a identidade da vítima, pois do contrário pode haver desamparo.
Portanto, judicialmente é bem possível que o anonimato da vítima seja
levantado. Porque o que o sistema judiciário está interessado em garantir é
que, perante uma discussão ilegal, [...] é melhor responder a este pedido e que
não possam recorrer a um tribunal constitucional por violação dos direitos
constitucionais do arguido, por isso levantamos o anonimato e aí são mil
coisas técnicas que parecem bobagens, mas quando você começa a procurar
[...] Na prática, a justiça falha sistematicamente820. (entrevista OSC
especializada na Espanha).
Esse trecho extraído de uma das entrevistas realizadas mostra como as vítimas podem
ser disputadas dentro dos sistemas de criminalização x proteção. A proteção e garantia dos
direitos das vítimas é previsto formalmente, mas, muitas vezes, a dificuldade no olhar
humanizado e garantista prejudica a defesa dos direitos dessas mulheres.
Como descrito no capítulo cinco, a Espanha possui um sistema de subvenções a OSCs
para a prestação do atendimento e acompanhamento das vítimas de tráfico de pessoas. Nesse
sentido, é importante verificar a percepção sobre a importância do trabalho desempenhado e,
de alguma maneira, a crítica subjetiva a outras organizações que podem não atuar com a mesma
perspectiva de análise crítica sobre sua atuação.
Sou uma entidade prestadora de serviços, por isso recebo financiamento do
Estado, não tenho uma visão crítica de nada, recebo fundos, executo-os dentro
do prazo que o financiador me deu, justifico a despesa preparada e dou ao
ministério o que ele quer , ou seja, tantas mulheres cuidadas, porque nem
mesmo, quantas mulheres encontraram trabalho…. Quantas mulheres foram
atendidas? 200, ok. E você não vai me perguntar há quanto tempo ele está na
casa de acolhida? Se eles saíram cumprindo os objetivos ou não? Se eles
conseguiram trabalho ou não? Não te interessa.
820
“Hablando de protección física y de riesgos, una protección cuando ya hablamos de grados implicación de la
víctima, y ver si se le puede aplicar la ley de protección a testigos… etc. Pero después hablando así, vemos que
este sistema no es un verdadero sistema de protección, que tiene un montón de deficiencias. Primera de toda,
que en España todo el sistema de protección de testigos en procesos judiciales no tiene presupuesto. O sea, se
financia a unos profesionales que interactúan con la víctima, pero si estamos hablando de facilidades como
poder económico para una reubicación y reasentamiento, ayudas económicas porque cambias de vida, y no
existen. No hay ayudas económicas para victimas de trata. Afinal la única alternativa que te están dando es, si
eres victimas de trata para fines de explotación sexual es irte a una casa de acogida y si eres todo lo demás,
pues nada, no hay nada, Es muy deficitaria y luego por… jurídicamente, el sistema no esta pensado para
proteger a las víctimas. Y eso lo dicen los magistrados. Es un sistema meramente instrumental para que una
victima o un testigo colabore durante el proceso penal. Pero por ejemplo, si en el juicio oral, la defensa y los
tratantes dicen que necesitan conocer la identidad de la víctima, porque sino se puede producir una indefección.
Entonces judicialmente es muy posible que se levante el anonimato de la victima. Porque al sistema judicial lo
que le interesa garantizar es que, frente a un argumento ilegal, […] es mejor atender a esta petición y que no
puedan recurrir a tribunal constitucional por violar derechos constitucionales del acusado, entonces levantamos
el anonimato y luego faltan mil cosas técnicas que parecen tonterías, pero cuando empiezas a mirar […]. En la
práctica falla la justicia sistemáticamente.”
384
Sobre o atendimento oferecido pelas OSCs e não pelo Estado, a reflexão proposta foi
no sentido de que nem todas as OSCs tem consciência da sua função social e do trabalho que
devem desenvolver para modificar a vida e restabelecer direitos a partir do impacto profundo
da reconstrução solidária, empática dos direitos dessas mulheres.
Acho que seria uma atenção, e não quero ser presunçoso, mas uma atenção
muito deficiente, porque infelizmente, pelo menos pela experiência que temos
na Espanha, muitos dos recursos que são disponibilizados, nas atenções que
são prestados, têm uma duração e âmbito muito limitados em termos de
impacto. E nós também dissemos isso. Uma coisa é prestar serviço de
alojamento por 3 meses, que é o que acontece, por exemplo no sistema asilo,
que depende do Estado, e outra coisa é que não se trata de cobrir o processo,
não é depois de 6 meses, você já terminou a sua obrigação no âmbito do asilo,
821
“Soy una entidad prestadora de servicios, entonces recibo financiamiento del Estado, no tengo una visión crítica
de nada, recibo fondos, los ejecuto dentro del plazo que me dio el financiador, justifico el gasto preparado y le
doy al ministerio lo que quiere, es decir, tantas mujeres cuidadas, porque ni siquiera, cuántas mujeres
encontraron trabajo…. ¿Cuántas mujeres fueron atendidas? 200, está bien. ¿Y no me vas a preguntar cuánto
tiempo lleva en el hogar de acogida? ¿Salieron al blanco o no? ¿Consiguieron trabajo o no? No te interesa. [...]
trabajamos desde un área que es la promoción de derechos y siempre tendremos una visión crítica de nuestro
trabajo y también del contexto. Lo que queremos es promover los derechos de las víctimas de la trata y facilitar
el acceso efectivo a esos derechos. Entonces tendremos que tener una visión crítica, veremos qué funciona y
qué no. Veremos los problemas y donde no. Pongamos eso en los espacios de diálogo que tenemos. Haremos
propuestas y recomendaciones constructivas, pero también repasaremos cómo funciona. Esto también tiene sus
procesos y dificultades.”
822
“Son espacios de análisis de la realidad, pero también de poder formular recomendaciones propuestas, por
ejemplo, de las reuniones con la relatoría, efectivamente, por el análisis que hacíamos y experiencia previa y
tal, nuestra propuesta fue, hay que trabajar una instrucción que esto lo regule. Entonces desde la relatoría se
deicidió que se iba a crear un grupo de trabajo donde se iba a negociar y elaborar esa instrucción. Y estuvo ahí
en la secretaria de estado y de Seguridad, estuvieron de policía y guardia civil, la relatoría y dos representantes
que fuimos en nombre de la Red Española contra la Trata.”
385
Sobre críticas a atuação das OSCs reflete-se de maneira bastante interessante, de alguma
maneira concordando com a crítica que foi feita no capitulo três e que levava em conta as
reflexões de Claudia Aradau824.
[...] Que uma entidade trabalhe com uma abordagem baseada em direitos
requer uma visão crítica e requer monitoramento por parte do estado e requer
responsabilidade atual e, além de você ser responsável e criticar a si mesmo
de vez em quando, requerendo que o estado seja responsável. Este trabalho é
muito chato. E tenso [...] muito complexo. Muito delicado. Aí pode haver a
concorrência desleal, que por outro lado para a administração e principalmente
muitas vezes para as forças de segurança é ótimo, gente que entra no assunto
sem saber, que só pretende prestar serviços e ficar bem com todos e que ele se
curvará constantemente aos pedidos e à visão das forças de segurança e da
administração. [...] Então, é aí que eu digo, entidades que nunca propõe ou
criticam, que nunca recusam nada e que fazem o papel de fantoches da polícia
823
“yo creo que seria una atención y no quiero ser presuntosa, pero una atención muy deficitaria, porque por
desgracia, por lo menos por la experiencia que tenemos en España, muchos de los recursos que se proveen, en
las atenciones que se proveen, tienen una duración y un alcance muy limitado en términos de impacto. Y esto
lo hemos dicho también. Una cosa es prestar servicios de alojamiento durante 3 meses, que es lo que pasa, por
ejemplo en el sistema de asilo, que depende del Estado, y otra cosa es, que no se trata de cubrir el expediente,
no se trata de que despues de 6 meses tu ya has terminado tu obligación según el marco del asilo, de dar
alojamiento, y que luego todas estas personas terminen en la calle y te dé igual. Tampoco quiero idealizar.
Tampoco es verdad, y volvemos al tema de dependiendo de que tipo de entidad estamos hablando que
perspectiva, porque si tu como entidad, estás trabajando, mimetizada con la Administración, sin hacer ningún
aporte físico con ninguna recomendación y te limitas a proveer de techo y comida a proveer a x seciones
psicológicas, a proveer tal, sin tener una evaluación de que impacto real esta teniendo eso en la persona y sin
modular tu acción, estas haciendo lo mismo. Yo creo que si se trabaja desde un enfoque de derechos humanos
y de promoción de derechos desde las entidades si se tiene un impacto mucho más profundo que realmente
puede garantizar ese proceso de recuperación integral no? Y ese logro de una recuperación y de una autonomía
de una vida y de un futuro.”
824
ARADAU. Claudia. Trafficking in women: human rights of human risks?. Canadian Woman Studiesiles
Cahiers de la Femme, v. 22, n. 3-4, 2003. Disponível em: https://cws.journals.yorku.ca/index.php/cws/
article/view/6413. Acesso em: 15 abr. 2020.
386
Eu vou ser crítico. Acho que em outro momento as organizações éramos mais
unidas porque havia menos recursos. E os recursos não foram decisivos para
o funcionamento das organizações. Agora que há mais financiamento, nos
tornamos um pouco competitivos em relação aos outros. Informações agora,
fluem menos do que antes. As Administrações estão dando recursos para
entidades que não têm capacidade ou sustentabilidade ao longo do tempo826.
Porque todas somos conscientes de que sozinha tem muito menos impacto,
você sai como uma entidade individual, sozinho e aí tem situações muito
delicadas que se você for respaldado por uma rede inteira tem um impacto
maior e é mais estratégico, certo? Vejo que aqui vamos nós, comparando
outras plataformas, outras redes, o grau de diálogo que a rede espanhola tem
alcançado, nos últimos 15 anos, e o grau de impacto e capacidade de
influenciar e propor temas e avançar sobre temas e tal, foi muito significativo.
Ou seja, tudo pode ser melhorado e sobretudo tendo em conta que a Rede
Espanhola não é uma rede com estatuto legal, portanto não pode contratar
ninguém nem dispensar ninguém, pelo que é um trabalho realmente
colaborativo e horizontal entre as entidades que estamos e bem, eu acho827.
825
“Que una entidad trabaje desde un enfoque de derechos exige una visión critica y exige un monitoreo por parte
del estado y exige actual con responsabilidad y además de que tu rindas cuentas y te hagas criticas de vez en
cuando, exigirle al Estado que rinda cuentas. Esta labor es muy molesta. Y tensa [… ] muy compleja. Muy
delicada que te puede llevar condiciones. Entonces puede haber una competencia desleal, que por otro lado a
la administración […] Entonces, ahí es donde te digo, entidades que nunca plantean, que nunca sean críticas,
que nunca se nieguen a nada y que hagan el rol de marioneta de la policía o de intereses de determinados
policías de determinada visión, pues perjudican muchísimo.”
826
“Voy a ser crítico. Creo que en su momento las organizaciones éramos más unidas porque había menos fondos.
Y los fondos no eran determinantes para el funcionamiento de las organizaciones. Ahora como hay algo más
de fondos, nos hemos convertido en un poco competitivas de otras. La información ahora mismo, fluye menos
que antes. Las administraciones están dando recursos a entidades que no tienen capacidad o sostenibilidad en
el tiempo.”
827
“Porque todas somos conscientes de que si tu primero tienes mucho menor impacto se vas como entidad
individual, solo y luego hay situaciones muy delicadas que si estas amparada por toda una red, pues tiene mayor
impacto y es más estratégico no? Veo que ahí vamos, comparando otras plataformas, otras redes, el grado de
interlocución que ha conseguido la red española, en estos últimos 15 años, y el grado de impacto y de capacidad
387
de incidir y proponer temas y avanzar en temas y tal, ha sido muy significativo. O sea que todo es muy
mejorable y sobretodo teniendo en cuenta que la Red Española no es una red con estatus legal, por lo tanto
tampoco puede contratar a nadie ni puede liberar a nadie, asi que es un trabajo realmente colaborativo y
horizontal entre las entidades que estamos y bueno, me parece.”
388
condições físicas, econômicas, procedimentais, para acessar esses direitos, além de uma
conscientização de todos os atores que atuam direta ou indiretamente na atenção e proteção das
vítimas.
Com relação a Espanha, é necessário primordialmente alterar o procedimento de
identificação formal das vítimas, desvinculando realmente a proteção e atenção da colaboração
das vítimas com as autoridades policiais e judiciais. Esse é o primeiro passo para que se
verifique uma intenção de caminhar no sentido de aprimorar o regime baseado em direitos. Essa
modificação pode e deve vir junto com uma Lei Integral de apoio às vítimas de tráfico,
facilitando a compreensão dos atores e principalmente das vítimas, integrando a atenção e
proteção à todas as modalidades do tráfico de pessoas e aprimorando os mecanismos e
possibilidades de garantir direitos às vítimas de tráfico, principalmente as mulheres.
Outro aspecto importante é o de pensar como garantir padrões de atenção e proteção
oferecidas pelas OSC especializadas em atenção e subvencionadas pelo Estado. Garantir
direitos é uma obrigação do Estado e, mesmo que essa atenção que garante direitos seja
oferecida por uma OSC, é fundamental que se estabeleçam critérios estândares para evitar
subjetivismos, pautas próprias das organizações que podem, de alguma maneira, restringir
direitos das vítimas.
Finaliza-se este capítulo apontando-se que, talvez, a nível internacional, o caminho mais
seguro e rápido para garantir proteção efetiva às vítimas seria a criação de um estatuto de
proteção internacional semelhante ao do refugiado, guiado por princípios semelhantes que
obrigasse os Estados a garantir direitos por meio de atenção e proteção 828 Claro que, para isso,
deveria ser elaborado, no âmbito da ONU e, na perspectiva dos direitos humanos, uma
normativa que reconhecesse o tráfico de pessoas como uma violação de direitos humanos, para
além da caracterização do crime organizado transnacional, dando centralidade à proteção das
vítimas. Esta pesquisa deixa esta reflexão e contribuição no sentido de incentivar outras
pesquisas que possam pensar a partir daqui.
828
MESTRE I MESTRE, Ruth M. La protección cuando se trata de trata en el Estado español. Rev. Inter. Mob.
Hum., Brasília, DF, Ano XIX, n. 37, p. 27-42, jul./dez. 2011. Disponível em: https://www.redalyc.org/
articulo.oa?id=407042014003. Acesso em: 3 maio 2020.
389
Chega-se ao final desta pesquisa com a única certeza de que caberiam aqui, muitas
outras pesquisas e outras reflexões possíveis. De todas formas, esta pesquisa procurou
responder a possível existência de um processo de construção de um regime internacional para
as vítimas de tráfico de mulheres, a partir do enfoque em direitos.
Para tanto, foi necessário compreender o fenômeno do tráfico de pessoas,
principalmente mulheres, exigindo compreender dimensões históricas, sociais econômicas e
políticas e garantir visibilizar as contradições existentes nas abordagens do enfrentamento.
Constatar as incoerências nos processos de enfrentamento pode auxiliar na compreensão da
complexidade dos fenômenos, mesmo que não se obtenha soluções para essas contradições.
Nessa lógica, pensar o fenômeno do tráfico de pessoas como uma forma de escravidão
moderna permite refletir sobre a desigualdade e a falta de equidade das mulheres no âmbito
internacional e interno dos países. Pensar o tráfico sem compreender os elementos fundantes
do tráfico de mulheres leva a incompreensões e ao enfrentamento limitado e equivocado do
fenômeno.
Entendeu-se que exige questionar a estrutura do sistema socioeconômico vigente. No
contexto capitalista vigente, que atende à globalização econômica, onde tudo circula como
mercadoria livre, observou-se que o capital desenvolve uma nova estratégia que intensifica o
comercio de pessoas como um negócio transnacional. Os Estados, por outro lado, criam
políticas setoriais, focalizadas em modalidades de tráfico específicas (como a exploração
sexual) com políticas de intervenção que acolhem princípios de defesa dos seus territórios e de
controle e repressão à migração, transformando o problema social, econômico, em delito
(jurídico). Considera-se, conforme analisado, como um problema social que atinge as mulheres,
deixando-se de combater a partir de suas causas fundantes, como a mercantilização das pessoas,
a masculinidade (demanda da prostituição), a desigualdade de gênero, a desigualdade de raça,
a falta de equidade com as mulheres, que gera inúmeras vulnerabilidades.
O tráfico acontece porque os Estados falham na sua obrigação de garantir direitos
fundamentais, muito antes da ocorrência do tráfico na vida dessas mulheres. A desigualdade no
capitalismo não se resolve enquanto exista exploração. A exploração se dá de um país sobre
outro, de um gênero sobre outro, de uma classe sobre outra, sem tréguas.
A pesquisa procurou analisar as questões de fundo que permeiam esse fenômeno.
Observar algumas estratégias e as políticas adotadas pelos países ricos como a repressão da
mobilidade das pessoas intensificam as desigualdades mundiais aumentando a vulnerabilidade
390
assistência mais voltados aos direitos humanos das vítimas. Com isso, o Brasil possui um
regime normativo que permite a proteção das vítimas. Por outro lado, a pesquisa indicou falhas
importantes na concretização efetiva desta proteção e atenção, quando da análise dos serviços
da Rede Nacional de Enfrentamento a Tráfico de pessoas e da Rede SUAS e SUS, responsáveis
de forma coordenada pelo atendimento das vítimas. Além destas falhas, apontou problemas no
campo da responsabilização dos agentes e da ausência de proteção, cuidado e restituição aos
prejuízos das vítimas. Assim, ainda há muito que se fazer pela construção do regime que tenha
como enfoque os direitos humanos. Nesse sentido, de forma despretensiosa, as reflexões
permitiram algumas sugestões/recomendações:
• Recomenda-se que a institucionalidade da política pública seja um dos pontos
centrais para a continuidade qualitativa da Rede Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas;
• Como visto, a governança do regime de enfrentamento ao tráfico de pessoas no
Brasil está sofrendo restrições com a diminuição dos atores que compõe o
CONATRAP, principalmente as OSCs. É fundamental que esse espaço e outros
sejam ampliados para aumentar o diálogo e a participação de todos os atores
relevantes para a construção dessa política;
• Seria importante, para seguir a orientação da Relatoria Especial do Tráfico (ONU),
que se criasse um espaço coletivo, paritário e autônomo que pudesse analisar, os
avanços e desafios da política de enfrentamento ao tráfico no Brasil. Um espaço de
discussão e de monitoramento da política;
• Pensa-se que a realização de diagnósticos sobre a situação do tráfico de pessoas no
Brasil deve ser feita a nível local, no máximo, regional, respeitando cada
particularidade local. Esse tipo de abordagem garantiria que se ganhasse com o
estudo e análise das especificidades de cada região. Os diagnósticos seriam mais
específicos e conseguiriam compreender as realidades locais e garantir uma
atuação, principalmente no âmbito no atendimento e proteção mais efetivos;
• No âmbito da responsabilização, aos atores do âmbito do direito devem ser mais
capacitados sobre o fenômeno do tráfico de pessoas, dos elementos fundantes do
tráfico de pessoas, especialmente mulheres, permitindo uma melhor compreensão
e condução das investigações e processos judiciais. Acredita-se que, compreender
o fenômeno do tráfico de pessoas levará a uma melhor compreensão sobre a questão
da irrelevância do consentimento nos casos de tráfico e da necessidade da utilização
394
Finaliza-se esta pesquisa apontando que esta trouxe muitas reflexões e sugeriu algumas
recomendações que podem ser ideias iniciais a serem aprimoradas para a construção do
enfrentamento ao tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, a partir de uma perspectiva
de direitos, especialmente nos modelos brasileiro e espanhol, rompendo com o modelo da
criminalização e securitização dos Estados.
As mulheres vítimas de tráfico não podem esperar. A necessidade da continuidade e
aprimoramento da construção de um regime protetivo é mais que urgente!
397
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Anexos
e
Apêndices
443
O (A) Sr(a)____________________________________________________________
RG no ____________________________________, nascido(a) em_____________________,
do sexo ___________________________, residente
à_______________________________________________________________________na
cidade de _________________________, está sendo convidado(a) a participar do estudo
Tráfico Internacional de mulheres: a caminho de um Regime internacional para proteção das
vítimas de tráfico com enfoque em Direitos Humanos. O objetivo deste estudo é propor uma
reflexão sobre a proteção internacional das mulheres vítimas de tráfico, baseada na governança
global e Marco dos Direitos Humanos, uma vez que o regime de enfrentamento ao tráfico
internacional de pessoas é focado na criminalização das pessoas e no Estado. Nesse sentido, a
problemática da pesquisa focaliza a construção da proteção internacional das mulheres vítimas
de tráfico de pessoas a partir do enfoque baseado nos Direitos Humanos. Minha abordagem
privilegia as organizações da sociedade civil, especialmente localizadas na Espanha e no Brasil,
por ocuparem espaços distintos dentro do arranjo de forças das institucionalidades internas de
cada país e, que vem, minimamente, conseguindo pautar a proteção das vítimas no âmbito dos
Estados.
Pretende-se realizar uma entrevista com um roteiro pré-estabelecido e com a sua gravação. A
pesquisa não pretende provocar nenhum tipo de risco, porém, pode-se provocar algum tipo de
cansaço ou até mesmo algum tipo de constrangimento pelo tema em si que está sendo abordado
e objeto da pesquisa.
Não há benefício direto para o participante. Somente no final da pesquisa poderemos concluir
e contribuir para a construção da proteção internacional das mulheres vítimas de tráfico de
pessoas a partir do enfoque baseado nos Direitos Humanos, aspecto que será de benefício de
todos os atores, principalmente das organizações da sociedade civil e das mulheres vítimas de
tráfico.
Em qualquer etapa do estudo, você terá acesso a profissional responsável pela pesquisa para
esclarecimento de eventuais dúvidas. O principal investigador é o Verônica Maria Teresi. que
pode ser encontrado no Endereço: Alameda da Universidade, s/n - Anchieta, São Bernardo do
Campo - SP, Telefone(s) (005511) 2320-6120. Se você tiver alguma consideração ou dúvida
sobre a ética da pesquisa, entre em contato com o Comitê de Ética em Pesquisa da UFABC,
localizado na Avenida dos Estados, 5001, Bloco A, Torre 1, 1° andar, Santo André, SP -
telefone: (005511) 3356-7632, e-mail: cep@ufabc.edu.br.
Acredito ter sido suficientemente esclarecido a respeito das informações que li ou que foram
lidas para mim, descrevendo o estudo “Tráfico Internacional de mulheres: a construção de um
Regime de proteção internacional das vítimas de tráfico com enfoque em Direitos Humanos”
Eu ME INFORMEI com a pesquisadora Verônica Maria Teresi sobre a minha decisão em
participar nesse estudo. Ficaram claros para mim quais são os propósitos, os procedimentos a
serem realizados, seus desconfortos e riscos, as garantias de confidencialidade e de
esclarecimentos permanentes. Ficou claro também que minha participação é isenta de despesas.
Concordo voluntariamente em participar deste estudo e poderei retirar o meu consentimento a
qualquer momento, antes ou durante o mesmo, sem penalidades, prejuízo ou perda de qualquer
benefício que eu possa ter adquirido.
Declaro que obtive de forma apropriada e voluntária o Consentimento Livre e Esclarecido deste
entrevistado para a participação neste estudo. Sendo que uma via deste documento deve ficar
com o participante e outra em posse do pesquisador.
BRASIL
ATORES BRASILEIROS
ATOR GOVERNAMENTAL SOCIEDADE CIVIL
Defensoria Pública da União ASBRAD 829
ESPANHA
ATORES ESPANHOIS
ATOR GOVERNAMENTAL SOCIEDADE CIVIL830
829
No Brasil, a estratégia proposta para identificar as OSCs foi a de consultar os espaços de participação
legitimados pela Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil, nesse caso o
CONATRAP e os Comitês Estaduais e Regionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Nesse sentido, as
três OSCs entrevistadas pertencem a CONATRAP e duas delas ASBRAD e Projeto Resgate (fevereiro/março
2020), pertencem aos Comitês Estaduais de seus Estados. Ver em: http://www.justica.gov.br/sua-
protecao/trafico-de-pessoas/politica-brasileira/anexos_contrap/relacao_comites_etp_mar2016.pdf. Acesso
em: 15 out. 2019. Além disso, a OSC ASBRAD participa da Rede GAAT, rede importante para a pesquisa por
sua formatação com organizações de diversas partes do Mundo.
830
As organizações Fundación Cruz Blanca, Cáritas Española, Fundación Amaranta Asturias (Gijón) e Proyecto
Esperanza, pertencem a Red Española contra la Trata de Personas; a organização Sicar-Catalunia (Barcelona),
pertence a Red Catalaña contra la Trata de Personas e o Programa Vagalume (Santiago de Compostela),
pertence a Red Gallega contra la Trata de Personas.
454
ESPECIALISTAS
Grazziela Rocha (Brasil)
Guilherme Mansur (Brasil)
Maria Elena Sopeña Vallina (Espanha)
Waldimeiry Correa da Silva (Espanha)
Clara Corbera (Espanha)
Mulheres entrevistadas:
Nome831 Nacionalidade
Camomila Brasil
Hibisco República Dominicana
Jasmin Nigeria
Liz Brasil
Violeta Venezuela
831
Para efeitos de garantir anonimato, serão criados nomes fictícios.
455
832
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatórios da Relatoria Especial sobre o tráfico de
pessoas. Disponível em: https://www.ohchr.org/SP/Issues/Trafficking/Pages/annual.aspx. Acesso em: 15 jun.
2020.
459
Código Penal 1940 Redação dada pela Lei Redação dada pela Lei Lei n.
nº 11.106, de 2005 nº 12.015, de 2009 13.344/2016
(art. 16)
Art. Tráfico de mulheres Tráfico internacional Tráfico internacional Art. 149-A.
231 de pessoas de pessoa para fim de Agenciar,
exploração sexual
aliciar, recrutar,
Promover ou facilitar a Promover, intermediar Promover ou facilitar a transportar,
entrada, no território ou facilitar a entrada, no entrada, no território transferir,
nacional, de mulher que território nacional, de nacional, de alguém que comprar, alojar
nele venha exercer a pessoa que venha nele venha a exercer a ou acolher
prostituição, ou a saída exercer a prostituição ou prostituição ou outra
de mulher que vá exercê- a saída de pessoa para forma de exploração pessoa,
la no estrangeiro: exercê-la no estrangeiro: sexual, ou a saída de mediante grave
Pena - reclusão, de três a Pena - reclusão, de 3 alguém que vá exercê-la ameaça,
oito anos. (três) a 8 (oito) anos, e no estrangeiro. violência,
multa. Pena - reclusão, de 3 coação, fraude
§ 1º - Se ocorre qualquer (três) a 8 (oito) anos.
das hipóteses do § 1º do § 1º - Se ocorre qualquer ou abuso, com a
art. 227833: das hipóteses do § 1º do § 1 º Incorre na mesma finalidade de:
Pena - reclusão, de art. 227: pena aquele que
quatro a dez anos. Pena - reclusão, de 4 agenciar, aliciar ou I - remover-lhe
(quatro) a 10 (dez) anos, comprar a pessoa
órgãos, tecidos
§ 2º - Se há emprego de e multa traficada, assim como,
violência, grave ameaça tendo conhecimento ou partes do
ou fraude, a pena é de § 2º Se há emprego de dessa condição, corpo;
reclusão, de 5 (cinco) a violência, grave ameaça transportá-la, transferi-
12 (doze) anos, além da ou fraude, a pena é de la ou alojá-la. II - submetê-la
pena correspondente à reclusão, de 5 (cinco) a
a trabalho em
violência 12 (doze) anos, e multa, § 2º A pena é
além da pena aumentada da metade condições
§ 3º - Se o crime é correspondente à se: análogas à de
cometido com o fim de violência. I - a vítima é menor de escravo;
lucro, aplica-se também 18 (dezoito) anos;
multa. II - a vítima, por
III - submetê-la
enfermidade ou
deficiência mental, não a qualquer tipo
tem o necessário de servidão;
discernimento para a
prática do ato; IV - adoção
III - se o agente é
ascendente, padrasto,
ilegal; ou
madrasta, irmão,
enteado, cônjuge, V - exploração
companheiro, tutor ou sexual.
curador, preceptor ou
empregador da vítima,
833
Art. 227 - Induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem:
Pena - reclusão, de um a três anos.
§ 1o Se a vítima é maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, ou se o agente é seu ascendente, descendente,
cônjuge ou companheiro, irmão, tutor ou curador ou pessoa a quem esteja confiada para fins de educação, de
tratamento ou de guarda: (Redação dada pela Lei nº 11.106, de 2005)
Pena - reclusão, de dois a cinco anos.
460
ou nacional.
IV - há emprego de
violência, grave ameaça
ou fraude. § 2o A pena é
§ 3º Se o crime é reduzida de um
cometido com o fim de a dois terços se
obter vantagem o agente for
econômica, aplica-se primário e não
também multa.
integrar
organização
criminosa
462
834
O Ministério da Justiça assinou o convenio Nº: Convênio 753518/2010 Período de Vigência: 2010 a 2014. Objeto do Convênio: Implantação de 01 núcleo de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas e de 13 Postos Avançados de Atendimento Humanizado ao Migrante. Orçamento: R$ 501.852,70 (Quinhentos e um mil, oitocentos e cinquenta de
dois reais e setenta centavos. Ver em: MINITERIO DA JUSTIÇA. Relatório do Amazonas. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-
pessoas/redes-de-enfrentamento/11o-relatorios-semestrais-da-rede-de-nucleos-de-enfrentamento-ao-trafico-de-pessoas-netp-e-dos-postos-avancados-de-atendimento-
humanizado-ao-migrante-paahm. Acesso em: 20 ago. 2020.
835
Convenio assinado até 2013.
463
836
Convenio assinado até 2014.
464
Programa de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas (PETP) por
meio do Decreto Estadual nº
45.870/2011, garantindo sua
instituição na estrutura Comitê de Atenção ao Migrante, Refugiado
administrativa da SEDS e Apátrida, Enfrentamento ao Tráfico de
Minas Gerais 2012 conforme previsto na Lei não Pessoas e Erradicação do Trabalho Escravo
Delegada Estadual nº 180/2011 de Minas Gerais (Comitrate/MG).
e, posteriormente, no Decreto Resolução SEDPAC nº 002/2016.
Estadual nº 46.647/2014. A
promulgação da Lei Estadual nº
23.304/2019 extinguiu o
programa
Núcleo Estadual de
Enfrentamento ao Tráfico de
Mato Pessoas de Mato Grosso – Descreva o nº: 764 de
não sim
Grosso837 NETRAP/MT foi criado por 16/12/2016
meio do Decreto nº 764, de 16 de
dezembro de 2016
LEI N° 7.029, DE 30 DE
Pará JULHO DE 2007
Decreto Nº 423, 22.05.12 não sim
837
Convenio assinado com Ministério da Justiça: Nº: 881485/2018. Período de Vigência: 28/12/2018 A 28/06/2020. Objeto do Convênio: Implementar o Núcleo Estadual de
Enfrentamento ao tráfico de Pessoas em Mato Grosso Orçamento: 200.000,00 (concedente) e 2.000,00 (convenente) Total: 202.000,00
465
838
Convenio assinado com Ministério da Justiça. Nº: 035/2008 Período de Vigência: 27/06/2008 à 301/06/2011 Objeto do Convênio: Implementação de Ações de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas, articulando repressão e responsabilização, prevenção, atendimento e reinserção social das vítimas, conforme estabelecido na Política Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Orçamento: R$ 100.000,00. E, Nº: 75.3332/2010 Período de Vigência: 30/12/2010 à 11/09/2013 Objeto do Convênio: Reaparelhar o
Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de pessoas e Implantar a Unidade Móvel Itinerante com a finalidade de formar, ampliar e fortalecer as redes de assistências às vítimas
do Tráfico de Pessoas. Orçamento: R$ 796.536,01.
466
839
Convenio assinado com Ministério da Justiça. Nº: 37/2008 Período de Vigência: 04 anos Objeto do Convênio: Implementação de ações de enfrentamento ao tráfico de
pessoas, articulando repressão e responsabilização, prevenção, atendimento e reinserção social de vítimas, conforme estabelecido na Política Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas, aprovada pelo Decreto nº 5.948/2006. Orçamento: R$ 102.000,00 (Cento e dois mil reais)
840
Convenio assinado com Ministerio da Justiça: Nº: 759478/2011
467
Programa Estadual de
Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas. Decreto n. 60.047/2014
e 62.293/2016 Programa Plano Estadual de 1 Estadual e 15 Regionais em reativação, 1
Decreto Estadual nº 60.047 de 10
São Paulo841 de janeiro de 2014
Estadual Enfrentamento ao Enfrentamento ao Municipal na cidade de São Paulo (criado
Tráfico de Pessoas junto Tráfico de Pessoas em 2015).
à Secretaria de Justiça por meio
do Núcleo de Enfretamento ao
Tráfico de Pessoas
Tabela: Institucionalidade da política pública do tráfico de pessoas nos entes subnacionais. Elaboração própria.842
841
Convenio assinado com Ministério da Justiça. Nº: Convênio nº 38/2008 Período de Vigência: 27/06/2008 a 25/09/2012 Objeto do Convênio Implementação do Núcleo de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Estado de São Paulo.
842
Dados retirados dos Relatórios enviados semestralmente pela Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Ver em: MINISTERIO DA JUSTIÇA. Relatório da
Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/redes-de-enfrentamento/11o-relatorios-
semestrais-da-rede-de-nucleos-de-enfrentamento-ao-trafico-de-pessoas-netp-e-dos-postos-avancados-de-atendimento-humanizado-ao-migrante-paahm. Acesso em: 20 ago.
2020.
468