Você está na página 1de 25

LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado.

Tradução de Dorothée de
Bruchard. São Paulo: SESI-SP, 2018.

Parte/Página Fichamento/Recorte
Primeira Orelha (Rui de Oliveira)
A leitura da imagem possui características próprias e um modo
distinto de ver, ler e interpretar seus significados: é ao mesmo tempo
total e particular, temporal e atemporal; pode-se ler as partes sem
entender o todo. No caso das palavras, ocorre uma sucessão temporal
de letras, sílabas e vocábulos, que formam conceitos e ideias.

Estão aí localizados a grande diferença conceitual e o desafio entre


estes dois modos de ler o texto e a imagem. As leituras da ilustração,
do detalhe e do conjunto da imagem é um fenômeno quase
simultâneo, sem contar que possui uma plasticidade variada, exercida
por meio de cores e texturas, das formas dos objetos, das relações de
profundidade etc. No entanto, a estética da ilustração – diferente da
de uma pintura – se explica e se justifica quando estabelecemos o elo
independente e dependente com a palavra. Esta é, sem dúvida, a
grande questão no estudo do relacionamento entre a palavra escrita e
a imagem narrativa nos livros.

(...) a ilustração jamais é a paráfrase de um texto, ou seja, a função da


ilustração não é torná-lo mais fácil ou compreensível, e, até certo
ponto, vulgarizá-lo.
Segunda Orelha (Olivier Douzou)
Existe uma certa desobediência, de ponta a ponta, na edição de um
livro ilustrado. A ficção não segue nenhuma lei. O sucesso não pode
ser previsto. (...) Essas obras eram taxadas de vanguardistas (ou seja,
fora do seu tempo).
INTRODUÇÃO
7 Os leitores entretidos em uma página por um detalhe específico,
atentos aos efeitos da diagramação, surpresos pela ousadia de uma
representação ou encantados por uma inesperada relação
texto/imagem descobrem nesses momentos uma dimensão
suplementar à historia. Ao passo que outros há muito tempo já
consideram o livro ilustrado um tipo de obra cujas amplitude de
criação e habilidade dos autores e ilustradores apelam para
ferramentas que permitem apreciar ao máximo o seu funcionamento.
8 De imediato, o livro ilustrado evoca duas linguagens: o texto e a
imagem. Quando as imagens propõem uma significação articulada
com a do texto, ou seja, não são redundantes à narrativa, a leitura do
livro ilustrado solicita apreensão conjunta daquilo que está escrito e
daquilo que é mostrado.

As imagens, cujo alcance é sem dúvida universal, não exigem menos


do ato de leitura. Nisso talvez resida um mal-entendido crucial.
Considerada adequada aos não-alfabetizados – a quem esses livros
são destinados em particular – é raro que a leitura de imagens resulte
de um aprendizado, uma vez que ela irá paulatinamente desaparecer
da nossa trajetória de leitores. Ora, assim como o texto, a imagem
requer atenção, conhecimento de seus respectivos códigos e uma
verdadeira interpretação.
9 Assim, ler um livro ilustrado não se resume a ler texto e imagem. É
isso, e muito mais. Ler um livro ilustrado é também apreciar o uso de
um formato, de enquadramentos, da relação entre capa e guardas com
seu conteúdo; é também associar representações, optar por uma
ordem de leitura no espaço da página, afinar a poesia do texto com a
poesia da imagem, apreciar os silêncios de uma em relação à outra...
Ler um livro ilustrado depende certamente da formação do leitor. E
isso não é somente para o leitor que enxerga. De que maneira
podemos formar um leitor com deficiência visual, a partir de
livros ilustrados? Somente a partir da audiodescrição? Somente a
partir de oficinas mediadas? Ou a partir da união de vários
recursos?
O QUE É O LIVRO ILUSTRADO?
O livro ilustrado e outros que contêm imagens
24 Livro com ilustração: obra que apresenta um texto acompanhado de
ilustrações. O texto é espacialmente predominante e autônomo do
ponto de vista do sentido. O leitor penetra na história por meio do
texto, o qual sustenta a narrativa.

Livro ilustrado: Obra em que a imagem é espacialmente


preponderante em relação ao texto, que aliás pode estar ausente (é
então chamado, no Brasil, de livro-imagem). A narrativa se faz de
maneira articulada entre texto e imagens.
26 É comum classificar os livros ilustrados como ficção ou informativo,
definindo assim, que os livros oferecem tanto narrativas como
explicações.
O livro ilustrado é um gênero?
29 A questão do leitorado
O livro ilustrado é um objeto concebido inicialmente para os não
leitores. Uma das suas especificidades é, portanto, atingir este público
por meio de mediadores que, por um lado, compram o livro e, por
outro, o leem muitas vezes em voz alta para ele.
44 Diferentes status da imagem
Já não é possível continuar evocando as imagens de maneira
independente umas das outras. As imagens no livro ilustrado estão
necessariamente ligadas umas às outras, seja diretamente no espaço
da página dupla, seja no âmbito do livro. A diversidade do livro
ilustrado é reflexo não apenas da liberdade estrutural de que desfruta,
mas também das influências cruzadas do livro com ilustração e da
história em quadrinhos, constituindo dois polos de enquadramento da
imagem.

IMAGENS ISOLADAS – (...) Parece-me que as imagens desse tipo de


livro ilustrado são definidas como “isoladas”, no sentido de que se
apresentam separadas umas das outras, sem se avizinharem no espaço
da página dupla. (...) imagens independentes que não interagem entre
si. Sua composição, e sua expressividade, sejam elas plásticas ou
semânticas, são rigorosamente autônomas e coerentes. Essas imagens
estão separadas do ponto de vista da expressão e da narrativa.

IMAGENS SEQUENCIAIS – São articuladas icônica e semanticamente.


No livro ilustrado, quando muitas imagens se relacionam e o sentido
se faz por meio do encadeamento delas, estamos da mesma maneira
na presença de imagens sequenciais, ainda que o livro não apresente
uma organização tabular.
45 IMAGENS ASSOCIADAS – (...) chama-se de “isolada” uma imagem
que tem como moldura páginas de texto, que está claramente à parte
das imagens que a precedem ou seguem, e que não apresenta nenhum
vínculo com elas. Inversamente, quando várias imagens são
justapostas e articuladas, diz-se que são “sequenciais”.

(...) Entre a isolada e a sequencial, a (imagem) do livro ilustrado não


raro se afirma num meio caminho entre esses dois polos. Não sendo
nem totalmente independentes nem solidárias por completo, tais
imagens poderiam ser qualificadas como “associadas”. (...) que são
ligadas, no mínimo, por uma continuidade plástica ou semântica(,)
que as torna independentes das imagens que as cercam. As
representações de espaço, tempo, personagens ou o significado que as
separam são mais distantes do que nas sequenciais, com o texto, por
exemplo, veiculando prioritariamente o discurso.
Existe um texto específico para o livro ilustrado?
47 (...) os textos parecem apresentar algumas características específicas
do livro ilustrado. Essas especificidades se devem, em primeiro lugar,
ao fato de eles se inscreverem num suporte em que a imagem é
preponderante. A primeira característica (...) apontada por vários
críticos se refere à brevidade do texto do livro ilustrado, relativa e
variável, pode ser explicada pela questão do espaço e da prioridade
do discurso verbal num suporte em que a imagem revela ser
predominante do ponto de vista espacial e, às vezes, semântico. O
texto pode ocupar um espaço restrito numa página dupla em que a
imagem é o destaque.

(...) a leitura se elabora por idas e vindas entre a mensagem do texto e


a da imagem; um texto curto permite manter um ritmo de leitura
relativamente equilibrado entre as duas expressões.
48 No ato da escrita, o autor não pode ignorar as imagens (mesmo que
ainda não tenham sido produzidas) que irão na mesma página. Seu
trabalho precisará levar em conta o aporte da imagem no que diz
respeito ao sentido. As descrições de personagens e lugares são em
geral inexistentes em textos que contam com a colaboração da
imagem. Um texto que retrata minuciosamente uma personagem iria
parecer redundante, por exemplo, já que estaria lado a lado com a
imagem representando essa mesma personagem. O texto do livro
ilustrado é, por natureza, elíptico e incompleto.

Em compensação, ele pode assumir diversas formas. Nada impede


que seja complementar à narrativa verbal por meio de textos
pequenos distribuídos no espaço da página. E o livro ilustrado goza
de liberdade suficiente para se permitir combinar texto narrativo e
balões ligados à personagem, o que evita a densidade de um diálogo
em estilo indireto, cria efeitos cômicos de redundância, ou ainda
passa uma sensação de “trilha sonora”, frequentemente evocada pelos
críticos de história em quadrinhos em relação aos balões.
50 Henri Meunier: Outro aspecto primordial e, no fim das contas,
relacionado é que um texto de livro ilustrado precisa cativar,
emocionar, surpreender leitores de idades bem diferentes. Um livro
ilustrado é lido tanto pelas crianças como pelos adultos.

Marie Saint-Dizier: (...) no livro ilustrado não é o texto que atrai, e


sim a imagem que, de saída, impõe o seu universo. Tudo depende, me
parece, da forma como se entra. Não sei por quê, mas os textos dos
meus livros ilustrados estão muitas vezes no presente, um tempo
verbal que não aprecio num romance. Ele descreve uma ação que se
realiza diante dos olhos do leitor: seu tempo então não corresponde
ao tempo da história sussurrada para a criança prestes a pegar no
sono? Do mesmo modo, a gestação do texto se apoia mais numa base
oral do que a gestação de um romance: com o ilustrador, à medida
que vamos criando a trama, também vamos contando de mil
maneiras, variando as palavras e as pistas. A história não deve
necessariamente fluir: ela é constituída de pequenas unidades bem
marcadas, acentuando palavras que, nos parece, a criança decerto irá
gostar de repetir. Daí o interesse, dentro do texto, de achar a palavra
deliciosa e insubstituível. Pensamos e visualizamos a página que se
vira: é uma regra muito excitante que pode aproximar o texto do livro
ilustrado de um poema, de seu recorte em versos, em estrofes, de suas
quebras.
Nas fronteiras do livro
52 Do formato ao fólio

FORMATOS - O livro ilustrado contemporâneo oferece grande


variedade de formatos. A organização das mensagens a serviço da
página ou da dupla, bem como o tamanho e a localização das imagens
e do texto, estão solidamente articulados com as dimensões do livro.
Por essa perspectiva, o formato se torna determinante para a
expressão. Assim como o pintor escolhe sua tela, o criador do livro
ilustrado compõe em função das dimensões do livro. O formato,
porém, pode ser imposto pelo editor. O que, aliás, não é
necessariamente reconhecido como um entrave à criação, podendo
constituir uma limitação produtiva (...)
53 O formato vertical (dito “à francesa”), mais alto do que largo, revela-
se o mais corriqueiro. As imagens aparecem isoladas, na maioria das
vezes, e as coerentes composições talvez sejam menos marcadas na
sequência das páginas. Frequentemente deparamos com imagens
descritivas mostrando retratos ou paisagens.

O formato horizontal (dito “à italiana”), mais largo que alto, permite


uma organização plana das imagens, favorecendo a expressão do
movimento e do tempo, e a realização de imagens sequenciais.
54 Outro tipo de formato, chamado de acordeão, com dobraduras
horizontais à maneira dos cadernos chineses, permite um jogo entre a
separação em páginas duplas e a sequência da tira de papel.

55 O formato também abrange a questão do tamanho do livro. Os


manuais de diagramação distinguem três categorias de tamanho em
função da mão do leitor: livros que abertos são segurados facilmente
com uma mão, como os de bolso; livros que podem ser pegos com
uma mão quando fechados, mas que seguramos com as duas durante
a leitura; livros que pegamos com as duas mãos e devem ser lidos
com algum suporte. Essa distinção permite determinar espaços e
margens que precisam ser reservados para as mãos do leitor.
(...)Trata-se de um livro para pequeninos que tem de ser manipulado
por eles sozinhos? (...) Ou são livros que buscam um efeito
espetacular?
57 CAPAS - Ela transmite informações que permitem apreender o tipo de
discurso, o estilo de ilustração, o gênero... situando assim o leitor
numa certa expectativa. Tais indicações podem tanto introduzir o
leitor ao conteúdo como levá-lo para uma pista falsa. A capa de um
livro é constituída pela primeira e pela quarta capas. Elas podem ser
independentes, mas também podem se relacionar formando uma
única imagem, separada pela lombada em dois espaços distintos. Essa
unidade será mais ou menos fácil de identificar, pois em geral as duas
faces apresentam composições autônomas. O editor pode reservar
esse espaço para, como é o caso dos romances, inscrever um texto de
quarta capa que permita evocar pistas de leitura, apresentar o autor ou
o ilustrador. Esse espaço comporta, além disso, inscrições legais
obrigatórias: número de ISBN, código de barras etc.
58 TÍTULO – (...) a questão da imagem de capa não pode ser dissociada
da do título. Este entra em ressonância com o conjunto dos demais
elementos da capa: nome do autor, da editora, da coleção ou série,
subtítulo, imagem, tipografia, diagramação etc.

Ainda assim, o título de um livro ilustrado se relaciona sobretudo


com a representação figurada da capa. Dessa forma, ele obedece a
qualquer tipo de vínculo texto-imagem, com suas relações de
redundância, complementaridade ou contradição. Dado que muitas
capas de livro ilustrado revelam o nome do herói no título com a
representação do personagem, qualquer incongruência será
necessariamente amplificada.
59 GUARDAS – A primeira função das guardas é sobretudo material.
Elas ligam o miolo à capa e recobrem a parte interna desta, de modo
que poderiam se ater simplesmente à estrita funcionalidade, como nos
romances. Se for esse o caso, em geral ostentam sua neutralidade por
meio da cor branca. No livro ilustrado, as guardas são em geral
coloridas. Isso para conduzir o leitor a uma certa disposição de
espírito. Na relação com o livro, trata-se de um momento importante,
o da abertura em duas acepções: de um objeto de duas dimensões
passando para uma terceira, e abertura do assunto. Daí vem o uso
recorrente de cores escuras ou em contraste com a capa.
60 (...)As guardas frequentemente se relacionam com o conteúdo do
livro. Às vezes de maneira teatral, apresentando os personagens (...).

Embora mantenham uma ligação com a história, a primeira e a última


páginas de guarda o fazem de maneira diferente. A primeira antecipa
a história, enquanto a última remete de volta a ela.
61 FOLHA DE ROSTO – Em geral, as folhas de rosto trazem indicações
do título, nome do autor e ilustrador e da editora, acompanhados de
uma imagem emoldurada que retoma o detalhe de uma imagem
interna. A folha de rosto atende a convenções editoriais. Portanto, ela
pode orientar a leitura ou sugerir uma interpretação.

Os ilustradores podem tentar eliminar seu caráter paratextual,


integrando-a tanto quanto possível ao corpo do discurso narrativo.
62 A folha de rosto constitui um patamar convencional que precede a
narrativa. Por isso, tudo o que se aparenta a uma narrativa e intervém
antes dessa página é sentido como uma espécie de “pré- -narrativa”, à
maneira de “pré-créditos”, sendo por vezes evidente a comparação
com o cinema (...)
63 FÓLIOS - Na França, os livros ilustrados, em sua maioria, não
contêm fólios, números de página. Quando sim, resultam tanto de
convenções independentes da criação como dos autores que os
encampam e buscam criar algum efeito, tal como acontece com os
demais paratextos. No primeiro caso, eles serão sobretudo discretos,
convencionalmente situados num canto externo da página, embaixo
ou em cima. No segundo, as produções variam. Os fólios podem ser
manuscritos se o texto é manuscrito, o que contribui para maior
homogeneidade da página do ponto de vista plástico. Também podem
assumir a forma de pequenos ícones de diagramação. Claude Ponti os
emprega com frequência, modificando-os de página para página.
PÁGINAS E ESPAÇOS DO LIVRO
A página dupla
65 Textos e imagens se dispõem livremente na página dupla. A
possibilidade que os criadores têm de se expressarem nela faz da
página dupla um campo fundamental e privilegiado de registro.
66 A dobra: contingências e riquezas
A dobra é um eixo físico que divide o espaço do livro aberto em duas
partes iguais. A página dupla inclui assim uma divisão obrigatória.

(...) os criadores podem se apoiar na encadernação para organizar um


sistema de correspondências ou ecos de uma página para outra.

Mas a separação assinalada pela encadernação pode também ser


ignorada. Imagens ou textos que a “transbordam” constituem
manifestações de uma repartição não simétrica do espaço. Essa
opção, porém, pode esbarrar em contingências materiais. Para dar
certo, tal postura implica uma “abertura” mínima do livro, sem a qual
o efeito se perde. Quantas imagens incompletas, frases
incompreensíveis, personagens ou palavras se perdem no entremeio
quando as páginas não ficam rigorosamente emparelhadas?

A dúvida entre a repartição por página, ou não, acaba produzindo um


jogo. O criador por vezes mantém conscientemente a indecisão, em
especial por meio da representação do cenário, podendo formar uma
unidade espacial e personagens repetidos em cada uma das páginas.
O leitor pode ficar confuso: será que se trata de um mesmo espaço-
tempo?
Outra forma de jogar com a dobra e a divisão do espaço que ela
implica depende de um desempenho mais técnico: podem-se, por
exemplo, acrescentar abas. Esse sistema possibilita tanto um jogo de
dissimulação-revelação como a configuração do suporte de modo
renovado (...)
67 Diversidade e flexibilidade

Ao segurarmos um livro ilustrado fechado, não há como prever sua


organização interna. Alternância de páginas de texto e imagem,
sequência de vinhetas ou intercalação dos enunciados na página
dupla... o livro ilustrado é o espaço de todas as possibilidades.

(...) Os espaços podem ser compartimentados em várias vinhetas


enquanto uma composição inteira é elaborada em página dupla.
Também encontramos desenhos, contorno e imagens emolduradas,
textos separados das imagens e textos que as integram.

(...) A diversidade formal do livro ilustrado não oferece tipos de


organização fáceis de classificar. No entanto, a diagramação
condiciona em boa parte o discurso veiculado ou os efeitos
almejados. Saber o que implica uma opção de diagramação permite,
sem dúvida, melhor apreciação desse veículo. Assim, proponho
identificar alguns desses tipos, que devem ser percebidos antes como
“polos” para os quais tendem as produções, e não como categorias
estáveis e fechadas.
68 Tipos de diagramação

DISSOCIAÇÃO – (...) a imagem costuma ocupar aquilo que os


tipógrafos chamam de “página nobre”, a da direita – aquela em que o
olhar se detém na abertura do livro –, ao passo que o texto fica na
página da esquerda. O texto é geralmente impresso sobre um fundo
homogêneo. A imagem, por sua vez, pode “sangrar” no espaço da
página ao lado (caso mais frequente), ou ser emoldurada. Ou
acontecer ainda de desenhos com contorno ou vinhetas aparecerem na
página de texto. Temos aqui uma situação de máxima separação entre
textos e imagens, a dobra materializando a demarcação entre dois
espaços reservados.
(...) o leitor passa sucessivamente da observação da imagem para a
leitura do texto, cada um se desvelando em alternância. Quando os
textos são curtos, aliás, fica difícil definir se são as imagens que
suscitam pausas na leitura do texto ou o contrário. Resulta daí um
ritmo de leitura um tanto vagaroso.

ASSOCIAÇÃO – (...) rompe essa dissociação entre página de texto e


página de imagem, e reúne pelo menos um enunciado verbal e um
enunciado visual no espaço da página. Essa diagramação pode se
apresentar de diversas maneiras. Num nível elementar, uma linha
pode separar o espaço do texto do espaço da imagem. Os fundos são
então diferentes. É comum a imagem ocupar o espaço principal da
página e o texto se situar acima ou abaixo dela. A imagem pode
também ocupar a totalidade da página, ou mesmo da página dupla, e
sangrar a margem do papel. O texto então se inscreve num espaço
“dessemantizado” da imagem. Por outro lado, vários textos e várias
imagens, claramente distintos, podem ainda se organizar no espaço da
mesma página ou da página dupla. Essas diferentes estruturas terão
implicações diversas, dependendo de se querer misturar textos com
imagens, associá-los ou distingui-los, escolha que resultará
principalmente da intenção narrativa. A leitura se torna mais
dinâmica por meio dessa rápida sucessão de imagens e textos curtos.
Mesmo que várias imagens estejam lado a lado, elas tendem a ser
percebidas
69 COMPARTIMENTAÇÃO - (...) diagramação próxima à da história em
quadrinhos, que divide o espaço da página ou da página dupla em
várias imagens emolduradas. Maiores em tamanho e em quantidade,
as imagens são mais subordinadas ao movimento de continuidade
entre as páginas. A compartimentação do espaço é menos importante,
e as imagens se organizam principalmente em um nível ou dois (...)

CONJUNÇÃO (...) ocorre uma organização que mescla diferentes


enunciados sobre o suporte. Textos e imagens já não se encontram
dispostos em espaços reservados, e sim articulados numa composição
geral, na maioria das vezes realizada em página dupla. Comparada à
diagramação associativa, a diagramação conjuntiva reside na
apresentação de vários enunciados, muitas vezes indistintos, que
denota antes uma contiguidade do que uma continuidade. Os
enunciados ficam entremeados, e não justapostos, e os textos, de
forma literal, integram a imagem. Sejam elas visuais ou verbais, as
mensagens se revelam conjunta e globalmente.
70 (...) é difícil isolar o texto da imagem nesse tipo de diagramação, pois
um participa do outro no âmbito de uma expressão decididamente
plástica. Os diferentes enunciados se organizam de modo coerente
numa composição única que poderia ser comparada à do cartaz.

(...) os livros ilustrados que atendem a esse tipo de organização não


raro desenvolvem um discurso mais poético do que narrativo,
favorecendo além disso a “livre” exploração das diversas mensagens
por parte do leitor.

Tais tipos de diagramação serão empregados mais em relação à


página dupla do que em relação ao livro como um todo. E muitos
livros mudam de maneira significativa de um tipo para outro, no virar
de páginas (...). (...) essas observações também deverão ser
“cruzadas” com outros dados, tal como a relação narrativa entre
textos e imagens. Uma diagramação “dissociativa”, por exemplo, não
exige necessariamente uma ilustração redundante ao texto.
73 Aplicação dos códigos

FUNÇÃO DAS MOLDURAS – Ao permitir delimitar um espaço


narrativo, a moldura assume importância considerável na definição de
um enunciado coerente para a leitura. Mas é igualmente possível
jogar com esses enunciados criando uma única moldura para diversas
representações ou, em vez disso, emoldurando apenas uma parte da
representação geral.

As imagens (...) não são necessariamente emolduradas. Os livros


ilustrados também trazem imagens que sangram a margem do livro,
preenchendo integralmente o espaço da página ou da página dupla, o
que gera muitas vezes uma espécie de “espetacularização”, em
particular nos grandes formatos. A imagem tende então a anular o
suporte; o próprio texto se torna mais discreto e se insere não raro
num espaço “dessemantizado” da página.

Quando o livro ilustrado propõe uma sucessão de imagens


sangradas, a página dupla pode então ser assimilada a uma tela:
o suporte é uma moldura invariável sobre a qual se estendem as
representações.
74 “Os limites da tela não são, como o vocabulário técnico pode às vezes
sugerir, a moldura da imagem, e sim um esconderijo que pode revelar
apenas parte da realidade. A moldura polariza o espaço para dentro;
e, ao contrário, tudo o que é mostrado na tela supostamente deve se
estender indefinidamente no universo. A moldura é centrípeta, a tela
é centrífuga”. (André Bazin)

As imagens sangradas causam essa impressão de poderem se estender


para além da página dupla. Bem diferentes das emolduradas, que têm
uma relação dinâmica com o suporte, as imagens vazadas resultam
afinal de uma expressão singular, investem e reapropriam o suporte, o
qual se coloca por inteiro a seu serviço. Cada imagem se sobrepõe
exatamente à anterior, permitindo assim uma forte cadência no livro
como um todo (...).

(...) a moldura também pode estar presente apenas para ser


transgredida. Deparamos comumente com imagens cujos personagens
ou elementos a ultrapassam. Existe nessas representações um
inegável efeito cinético. Na maioria das vezes, vemos uma bola
lançada ou algum objeto rolando para fora da moldura, no intuito de
criar uma ilusão de movimento.

Ao delimitar um espaço narrativo, ela (a moldura) assinala uma


fronteira entre a ficção e a realidade. Transpor essa fronteira equivale
a sair da narração. Jogar com a moldura permite seguramente indicar
ao leitor o seu papel crítico, lembrando-lhe de que as representações
dependem de uma construção imaginária.
75 ENQUADRAMENTO – No livro ilustrado, a noção de enquadramento
plongée ou contra-plongée acarreta implicações específicas quando
uma criança é representada. Na medida em que corresponde a um
ponto de vista, um enquadramento contra-plongée será
provavelmente interpretado como o da criança.

plongée – cena vista de cima para baixo.


contra-plongée – cena vista de baixo para cima.
76 DESENQUADRAMENTO – Centralizar personagens dentro da imagem
permite reforçar sua importância, além de lhes conferir alguma
estabilidade. Esse procedimento, contudo, revela-se um tanto
artificial, além de parcial no que tange ao equilíbrio, à harmonia e à
simetria. Ele corresponde a uma concepção tradicional, acadêmica da
composição. Assim, ao descentralizar o sujeito, o enquadramento
pode ser visto como desviante, acentuado enquanto tal. Ele aponta
para o papel da moldura e o seu limite artificial.

Basta a moldura não apresentar integralmente personagens ou


elementos importantes da imagem para que suas bordas deem a
impressão de estarem talhando a cena representada. Diz-se, aliás, que
a moldura “corta” os personagens. Ela está ligada a um código e,
nesse sentido, o leitor precisa aprender a não interpretá-la como um
simples “corte”.
77 CAMPO E EXTRACAMPO – campo (...) a superfície de representação
delimitada pela moldura. (...) O enquadramento define (...) um campo
e um extracampo que, embora não representados, existem
potencialmente.

A partir das indicações oferecidas por uma imagem, o espectador


efetua todo um trabalho de reconstrução em função tanto dos dados
visuais da imagem quanto da sua própria elaboração mental, que
depende das convenções, das referências culturais e de sua
experiência pessoal.

(...) contracampo. A uma imagem, mostrando um campo específico,


sucede-se outra que revela o campo situado defronte. Assim, quando
dois personagens estão conversando, é possível mostrá-los de perfil
de maneira a inserir ambos dentro da moldura, mas também se pode
optar por mostrar sucessivamente, em função do diálogo, um
personagem de frente (campo), e depois o outro (contracampo).
Conclusão parcial: como definir o livro ilustrado contemporâneo?
86 (...) o livro ilustrado transcende a questão da copresença por uma
necessária interação entre texto e imagens, que o sentido não é
veiculado pela imagem e/ou pelo texto, e, sim, emerge a partir da
mútua interação entre ambos.

(...) texto e imagem não podem ser vistos independentemente de sua


inserção num dado suporte.

Isabelle Nières-Chevrel: “O livro ilustrado não é apenas texto e


imagem, é texto e imagem no espaço desse estranho objeto que é o
livro”. A disposição das mensagens no suporte, o encadeamento do
texto e das imagens, sua diagramação, sua localização também fazem
sentido.
87 O livro ilustrado, de um modo particular, se baseia nesse
encadeamento. Mais que qualquer outro suporte, o discurso completo
é percebido na escala do livro, na sequência das páginas viradas.

O livro ilustrado seria assim uma forma de expressão que traz uma
interação de textos (que podem ser subjacentes) e imagens
(especialmente preponderantes) no âmbito de um suporte,
caracterizada por uma livre organização da página dupla, pela
diversidade de produções materiais e por um encadeamento fluido e
coerente de página para página.
TEXTOS E IMAGENS
90 O livro de Maria Nikolajeva e Carole Scott propõe uma classificação
dos livros ilustrados em função de sua relação entre texto e imagem.
Tal iniciativa (...) revela de saída uma problemática, já que tenta
estabelecer uma tipologia a partir da relação que apresentam entre
textos e imagens. (...) parece-me impossível categorizar os livros
ilustrados segundo essa interdependência, na medida em que cada um
deles desenvolve justamente distintos tipos de relação. (...) essas
relações entre textos e imagens devem ser analisadas em primeiro
lugar na dimensão da página dupla.
91 (...) considerando que as imagens e as palavras interagem de maneira
obrigatória, (...) será possível considerar que texto e imagem,
consistindo em duas linguagens distintas, gerem necessariamente
uma discrepância e uma complementaridade mínimas, e que a relação
comece justamente além das forças e impotências próprias de cada
linguagem?

Marion Durand e Gérard Bertrand – três funções principais do texto


em relação à imagem-unidade do livro ilustrado:
a) Delimitação: caso em que o texto faz as vezes de “suporte
plástico” na diagramação de diversas imagens;
b) Revelação: o texto permite compreender a imagem que, sem
ele, ficaria incompreendida;
c) Complementação: o texto completa a imagem “preenchendo
as lacunas” e “dissipando as ambiguidades. Segundo Roland
Barthes, “o texto conduz o leitor por entre os significados da
imagem.

A questão da relação, no livro ilustrado, entre textos e imagens não


pode confundir os aspectos formais, temporais, espaciais e
estritamente semânticos. Para isso, parecem necessário dissociar essa
abordagem atendo-se primeiro às interações formais que se produzem
entre as mensagens linguísticas e visuais.
Aspectos formais
92 (...) texto e imagens: presentes em conjunto num único espaço, o da
página dupla, são apreendidos por um mesmo olhar e
necessariamente se relacionam do ponto de vista formal. Trata-se de
apreciar a ocupação do espaço dessas duas linguagens, suas
características próprias, suas disposições, os efeitos de ressonância ou
contraste.

Mensagens linguísticas e mensagens verbais


Os termos “palavra” e “imagem” parecem, contudo, demasiado
imprecisos para descrever as relações formais entre textos e imagens.
Substituí-los pelas noções de mensagens linguísticas e mensagens
visuais também apresenta insuficiências. Noelle Batt (1987): O texto
literário sempre combina dois níveis de significação, o seu próprio e
o da linguagem de que ele faz um uso particular.

Grupo μ (1992) distingue:


SIGNOS ICÔNICOS – reproduzem a realidade jogando com a analogia
perceptiva e os códigos de representação;
SIGNOS PLÁSTICOS – dependem da cor, da forma, da composição e
da textura. Essa noção de signo às vezes mostra dificuldades em ser
aplicada tal qual à análise da imagem do livro.

(...) a distinção efetuada entre representações icônicas e expressão


plástica (...) revela-se útil para compreender as diferenças entre uma
representação imagética tradicional, que recorre a imagens
referenciais, baseando-se assim essencialmente no linguístico ou no
icônico, e um livro artístico, que trabalha em particular a epressão
literária e plástica.

Iconicidade ou plasticidade do texto?


Do ponto de vista estritamente formal, o texto pode convergir para a
imagem de duas maneiras: quer se apresentando ele próprio como
uma representação icônica, quer apresentando características plásticas
formais.
95 Ver as onomatopeias presentes nos paradidáticos, especialmente
“As cores no mundo de Lúcia”. Ver a relação delas com o texto E
com a imagem, além de verificar qual a possível sensação
sinestésica provocada no leitor.

De modo geral, os ilustradores trabalham o aspecto figurativo de seus


caracteres quando integram onomatopeias em seus desenhos. (...) as
letras de imprensa do texto narrativo se inscrevem sobre o fundo das
imagens, ao passo que as onomatopeias fazem parte das composições
em três dimensões da imagem: foram feitas em recortes de madeira,
assim como os personagens. (...) o status das onomatopeias abre
caminho entre texto, mantendo as letras de imprensa, e imagem,
tirando delas a disposição na página e efeitos icônicos.

(...) os textos podem comportar um caráter icônico quando procuram,


visualmente, dar conta de seu significado. Com frequência,
observam-se nos livros ilustrados efeitos de texto que se baseiam na
forma e no tamanho dos caracteres.

(...) muitos são os livros ilustrados que trabalham uma equivalência


entre o sentido do texto e sua apresentação formal, um pouco como
que juntando o gesto à palavra.
95 Marginalmente, a mensagem linguística se transforma por completo
numa representação icônica quando toma parte de uma composição
visual, como é o caso das colagens. Os ilustradores, recuperando
materiais textuais, atribuem-lhes uma forma particular e os
transformam em figurações. Mas eles então perdem totalmente seu
caráter linguístico.

(...) livro ilustrado contemporâneo (...) tendência à plasticidade das


mensagens linguísticas. O texto pode assim se integrar à imagem a
ponto de ser produzido com as mesmas ferramentas e as mesmas
técnicas.
96 Tigre em cima da árvore (1999/2009) – Pulak Biswas e Anushka
Ravishantar (ilustradora): nos mostra as possibilidades de
ressonâncias plásticas e icônicas entre um texto de tipografia
mecânica e imagens que parecem ser gravadas. As letras de imprensa
não estão estritamente alinhadas, variando de posição a partir da capa,
de modo que atenuam sua rigidez. Em meio a imagens que deixam
bastante lugar para os espaços em branco, os textos estão dispostos de
modo a representar os deslocamentos do animal.
98 Tensões no espaço da página ou da página dupla

Na diagramação “dissociativa”, o tamanho dos caracteres, o formato


deles, estilo tipográfico, cor, disposição no espaço da página, ou a
textura do fundo... tudo tem importância e pode oferecer efeitos
visuais muito interessantes, mesmo que a imagem esteja reservada só
para a página seguinte.

Na diagramação “associativa” ou “tabular”, a fronteira da página já


não separa as duas instâncias. Em muitos livros ilustrados, o texto
ocupa os espaços dessemantizados da imagem. Nem por isso deixará
de apresentar uma continuidade ou, pelo contrário, um efeito de
contraste com a ilustração em função das características de sua
tipografia.

Numa diagramação “conjuntiva”, os criadores claramente procuram


abolir os espaços reservados. Como, então, considerar uma relação
texto-imagem, uma vez que estes já não são delimitados e não podem
ser percebidos como unidades?
100 A palavra nos paradidáticos ilustrados deve ser considerada
como elemento linguístico ou como ícone? Ver a estrutura do
livro e como/se a imagem interage com o texto.

Emprego (...) frequente das técnicas mistas que implicam integração,


significantes plásticos e material linguístico (por vezes meros
vestígios). (...) enunciado linguístico (o que seria?) A palavra,
apreendida enquanto tal, é um significante linguístico ou icônico?
101 (...) os textos escritos com uma tipografia regular sobre o fundo da
imagem constituem o discurso narrativo.

É muitas vezes difícil discernir (...) o que pertence ao texto ou à


imagem. Ante a falta de delimitação das mensagens, o leitor pode
sentir certa dificuldade em estabelecer uma prioridade na leitura. O
livro ilustrado gera então novas maneiras de ler (...). O leitor opera
constantes vaivéns entre as diferentes mensagens, faz escolhas,
estabelece aproximações, antecipa, busca e constrói, ele próprio, o
sentido.

Embora as convenções de leitura fiquem misturadas desse modo,


deve-se reconhecer que novas possibilidades são também exploradas,
e os criadores jogam com elas. A narrativa é dinamizada por esses
efeitos visuais que permitem uma simetria ou polifonia, a qual põe
simultaneamente em cena diversas vozes narrativas graças às
variações espaciais e tipográficas.
A expressão do tempo e do espaço
102 As respectivas capacidades do texto e da imagem para expressar o
tempo ou o espaço se cristalizam, primeiro, em torno da noção de
narrativa. As relações espaço-temporais devem realmente ser
consideradas em função do projeto narrativo e dos meios utilizados
para concretizá-lo. Não se pode, contudo, reduzir o livro ilustrado a
um discurso narrativo. Diversos autores trabalham na busca por
novos modos de expressão à margem dos esquemas narrativos
tradicionais. Convém então interessar-se igualmente pela maneira
como os criadores inscrevem a temporalidade na imagem e como
organizam no espaço as diferentes mensagens, sejam elas visuais ou
verbais.

Introdução de tempo e movimento na imagem isolada


Nada predispõe uma imagem fixa a expressar o tempo. Ela deverá
criar soluções próprias, já que carece, a priori, da sucessividade e
linearidade que caracterizam a expressão temporal. Uma das
respostas mais óbvias para essa problemática reside na
capacidade que a imagem tem de criar a ilusão de duração.
Embora uma imagem fixa não possa representar o tempo, como
faz a imagem animada, ela pode, em contrapartida, sugerir uma
evolução temporal para além dos próprios limites. Se ela
extrapolar, mesmo que bem pouco, seu âmbito temporal estrito,
torna possível a apreensão de um instante. Por menor que ele seja,
trata-se de uma duração.

O INSTANTE CAPITAL - Quando um pintor quer representar um


acontecimento, duas soluções se oferecem: tentar restituir o conjunto
desse acontecimento, ou captar no suporte um de seus momentos
característicos. No século XVIII, Gotthold-Ephraim Lessing afirmava
que era perfeitamente possível representar um acontecimento
com apenas um de seus instantes, aquele que expressasse sua
essência, ou seja, algo como um “instante capital”. (...) instante
capital, (...) imagem que representa a essência de um acontecimento e
que concentra todas as características essenciais dele, está
obrigatoriamente relacionado à questão da recomposição.
Condensação dos acontecimentos a fim de suscitar uma duração.
103 O INSTANTE QUALQUER - Essa imagem qualquer, (...) apresenta-se
como um instantâneo capaz de criar uma impressão de realidade.
Veicula uma ideia de “naturalidade”, oposta à artificialidade
exacerbada do instante capital.

A noção de um instante qualquer implica a ideia de um


desenvolvimento narrativo lento, em imagens mais relacionadas à
descrição de uma situação do que à figuração de uma ação. A
imagem não procura criar uma ilusão de movimento, ela “difunde”
esse instante.
104 O INSTANTE MOVIMENTO – Captar a essência de uma ação significa
restituir-lhe seu instante mais breve, reduzir ao mínimo a duração
representada, de maneira a aumentar a força sugestiva da imagem.
105 RECURSOS PLÁSTICOS, CÓDIGOS GRÁFICOS OU ICÔNICOS

Além da posição dos personagens ou de sua localização no espaço da


página, os componentes plásticos ou icônicos também contribuem
para sugerir ideia de movimento ou duração. A composição de uma
imagem pode assim se organizar de modo que acentue a expressão de
um movimento por meio da “pose” de um personagem. As imagens
que figuram um instante capital organizam sábias composições em
que a posição dos personagens no cenário e a profundidade de campo
(plano de fundo/primeiro plano enquanto diferenciação
passado/presente) fazem sentido. Soma-se a isso um trabalho sobre a
própria figuração dos personagens, cujo jogo de posturas e olhares
pode estabelecer entre eles uma relação de hierarquia temporal. Mais
sutilmente, o ilustrador pode trabalhar a luz, a cor ou o jogo de
formas para expressar uma duração.
106 As inúmeras imagens de livros ilustrados mostram que um plano de
conjunto em que convivem uma multidão de personagens ou cenas
independentes corresponde à expressão da simultaneidade.

Um fundo sem perspectiva nem cenário permite a representação, num


mesmo espaço, de personagens presentes simultaneamente em
diversos locais (...)
107 Expressão do tempo, do espaço e do movimento por meio de imagens
sequenciais

Quando duas imagens se relacionam, surge a possibilidade de expressar uma


progressão. Ao ligar, por meio da leitura, uma imagem à seguinte, o leitor as
inscreve dentro de uma continuidade. Mais que isso, imaginando o que
ocorre entre as duas, ele preenche o lapso temporal: “Os quadrinhos de uma
HQ fragmentam tanto o espaço como o tempo, propondo, num ritmo
entrecortado, momentos que não se encadeiam. Mas o nosso senso de elipse
nos permite ligar esses instantes e construir mentalmente uma realidade geral
e contínua”.

O recurso da sequencialidade se impõe como uma ferramenta à disposição


dos criadores de livros ilustrados que não hesitam em recorrer a ela de acordo
com suas necessidades.
108 (...) Muitos livros ilustrados trazem, e sem nenhuma ruptura com a
diagramação tradicional, uma organização sequencial no espaço de
uma página a fim de expressar uma sequência de fatos, uma ação
rápida...

Cada quadro de uma sequência representa uma porção de tempo e


espaço. É claro que esses dois componentes são mais ou menos bem
expressos de acordo com o caso. Uma série de imagens que não traz
nenhum cenário ou ponto de referência representa, sobretudo, seu
próprio recorte do espaço. Até a evolução de um personagem de
quadro para quadro retrata necessariamente uma duração. Em geral,
as gestões do tempo e do espaço caminham juntas e, para além de
qualquer representação figurada, o tamanho e a forma dos quadros já
dizem muito. Em sua expressão combinada, surgem várias
possibilidades.

A expressão do tempo é manifestada quando a imagem se concentra


na figura repetida de um quadro para outro, e a sequência de imagens
pode assim desenvolver as diferentes etapas de uma ação. O cenário
pode ser inexistente, ou permanecer imutável quadro a quadro, de
modo a enfatizar a temporalidade. Além disso, para expressar um
deslocamento, a figura e o plano de fundo evoluem. Cada imagem
corresponde então a um espaço e um tempo distintos.

Esse efeito de deslocamento é acentuado quando as diferentes


imagens, consideradas em conjunto, apresentam um único cenário.
Este se estende por vários quadros, constituindo um conjunto espacial
coerente, não obstante a separação das imagens. Os personagens, por
sua vez, aparecem em cada uma delas de maneira dissociada,
revelando momentos sucessivos. De um quadro para outro, observa-
se o deslocamento de um personagem no espaço comum. Sendo ele
percebido numa continuidade; a elipse entre duas imagens parece
atenuada: a ligação entre os diferentes tempos se dá mais facilmente,
e o leitor tem condições de avaliar o deslocamento num espaço
definido. Os momentos registrados por cada imagem se encadeiam
em harmonia. Resulta, em geral, uma impressão de fluidez de
movimento e temporalidade.
110 A função do texto

FUNÇÃO DE LIMITAÇÃO - Um texto que acompanha uma sequência


de imagens pode se organizar tanto num bloco separado como em
diferentes seções ligadas às imagens. Nesse caso, os textos isolam
cada imagem em enunciados independentes e acentuam o recorte
narrativo. Eles cumprem uma função de delimitação. Texto e imagem
se aliam portanto para isolar tempos específicos de uma ação ou
acontecimento.

FUNÇÃO DE ORDENAÇÃO - No caso de uma imagem que mostre


diferentes cenas ocorrendo sucessivamente, a contribuição do texto
revela-se determinante para a compreensão da ordem em que se
desenrolam os fatos. A necessária orientação do texto, cujas palavras,
proposições e frases se leem da esquerda para a direita, pode
igualmente induzir uma apreensão vetorizada da imagem, através de
uma “projeção da temporalidade estrutural da frase dentro do
continuum espacial da imagem”. O enunciado do texto, quando ele
por exemplo nomeia vários elementos, implica uma atribuição desses
nomes aos elementos que se apresentam em sequência da esquerda
para a direita da imagem. Por isso, o texto na maioria das vezes evita
esse tipo de precisão.

FUNÇÃO DE REGÊNCIA - O texto também pode, de maneira


explícita, encarregar-se das indicações relativas ao tempo fictício. De
indicações precisas quanto ao decorrer do tempo, até a substituição
que ele pode efetuar em caso de elipse numa sequência de imagens, o
texto permite, de fato, preencher todas as lacunas da imagem nessa
área.
111 Códigos icônicos também podem cumprir esse papel, tal como as
frequentes representações dos mostradores de relógios que indicam o
tempo fictício decorrido durante a ação apresentada.

FUNÇÃO DE LIGAÇÃO - Uma narrativa em imagens comporta


necessariamente rupturas em seu encadeamento, em particular no
caso do livro ilustrado, em que o grau de solidariedade entre as
imagens revela ser mais ou menos importante. De uma imagem para
a outra, opera-se às vezes uma mudança considerável em termos de
personagens, lugares ou tempo. A linguagem escrita permite uma
capacidade de encadeamento que a narrativa em imagens, pela
compartimentação de suas unidades, só consegue alcançar ao custo de
esforços específicos. A maioria das sequências de imagens associadas
produz certa descontinuidade na passagem de uma imagem para
outra. O texto pode então atuar em prol da continuidade do discurso
dando corpo à progressão temporal. Esse papel de ligação já foi
demonstrado na história em quadrinhos por Pierre Fresnault-Deruelle:
“O texto [...] serve de ligação entre as diferentes imagens [...] e
trabalha no sentido de certa fluidez no desenrolar da ação e da
leitura”.

Tal procedimento é acentuado por reticências entre duas imagens, ou


quando o texto se realiza numa linha contínua no espaço da página
dupla com várias imagens separadas, ou ainda quando uma frase se
estende por várias páginas duplas.
113 Articulações temporais numa sequência de imagens e textos

Uma das especificidades do livro ilustrado está na combinação de


imagens delimitadas com um texto contínuo.
114 Uso do suporte

A questão não é só saber como representar a temporalidade na


imagem, e sim que uso é feito do livro ilustrado para expressar
duração ou movimento e, precisamente, de que modo textos e
imagens se combinam não apenas entre si mas, sobretudo, na relação
deles com o suporte.
115 O tempo do texto e o tempo da imagem não se correspondem de
modo obrigatório. Para criar o efeito de suspense, um irá antecipar o
outro, de preferência pouco antes da virada página. São incontáveis
as duplas de livros ilustrados em que, no lado direito, um personagem
parece surpreso por uma visão extracampo, ou em que elementos da
página seguinte – do futuro próximo, portanto, da história narrada –
aparecem parcialmente cortados pela moldura. A página dupla do
livro ilustrado é um espaço axiforme. Um leitor ocidental em geral
percorre o espaço do livro aberto da esquerda para a direita. De modo
que qualquer personagem com o deslocamento orientado nessa
direção reproduzirá com mais facilidade a ilusão de movimento.
Percebido no sentido da leitura, o personagem assim representado é
de certa forma acompanhado pelo deslocamento do olhar. O fluxo da
leitura e o do movimento representado convergem, reforçando o
efeito sugerido pela imagem. Dessa maneira, o tempo, no livro
ilustrado, passa da esquerda para a direita. Ao virar as páginas, o
leitor tem a impressão de caminhar para um objetivo – o final do livro
como ponto de chegada. Então, todo deslocamento de um
personagem para a direita é favoravelmente interpretado como uma
progressão.
116 O formato da obra tem sua importância, assim como a gramatura do
papel. As páginas rígidas dos livros ilustrados cartonados permitem
virá-las rapidamente. A velocidade de encadeamento fica assim
acelerada.
118 Sugerindo o espaço

Seja pelas diagramações “conjuntivas” que multiplicam os textos e


representações e inserem os diálogos o mais próximo possível dos
personagens, seja nos exemplos recém-citados que buscam suscitar,
mediante o uso do suporte, a experiência ilusionista de tempo e
movimento, o espaço fictício não raro tende a se sobrepor ao espaço
de composição. Os jogos de molduras e a evolução da diagramação
acompanham às vezes, tão próximo quanto possível, os movimentos
da ação narrada. Menos espetaculares, alguns livros ilustrados
buscam também, por outras vias, suscitar no leitor a ilusão de
evolução dentro de um espaço.

Alternância entre planos externos e internos, jogos de


enquadramento, campos e contracampos, pontos de vista interno e ao
redor de uma casa passam ao leitor o desejo de conectar os espaços,
reconstituí-los mentalmente na geografia do livro, ou até de desenhar
ou recriar uma maquete dos lugares descritos.
119 O TEMPO DO LEITOR - A maioria dos criadores, editores e
mediadores do livro ainda destina o livro ilustrado aos leitores
aprendizes. Coloca-se então a questão específica de sua recepção pelo
leitor não alfabetizado, já que nesse caso a leitura do texto do livro
ilustrado é feita em voz alta por um terceiro. Esse aspecto merece
atenção especial, tantos são os novos parâmetros que essa situação de
recepção acarreta: sonoridades, tonalidade e efeitos de estilo do leitor
(teatralização, ideias preconcebidas...). A observação da recepção de
leitores durante a leitura decerto permitiria mostrar todas as
particularidades que lhe são próprias e no que ela pode alterar o
sentido, produzir um jogo ou, pelo contrário, restringi-lo – no caso de
jogos fonéticos –, ou ainda ser valorizada pelas piscadelas da imagem
(sabe-se da atenção redobrada, por exemplo, que esses não leitores de
texto dão aos detalhes). Essa situação de leitura pode, por fim, referir-
se a um modo de recepção próximo ao do espetáculo, pela percepção
simultânea de ao menos dois sentidos distintos, a visão e a audição.

Seja na força sugestiva de uma atitude, no encadeamento das imagens


que formam uma sequência, ou nos efeitos decorrentes de uma
sucessão de páginas, o ato da leitura revela ser determinante para a
expressão do tempo. Mais que isso, a duração que o tempo contido
numa imagem acarreta é reforçada pela recepção. Na leitura de uma
imagem, as deduções, conexões que permitem estabelecer relações de
causa e efeito, requerem uma temporalidade específica. As páginas
fervilhantes de detalhes, de cenas dissociadas, ou que propõem um
enigma, as imagens improváveis cuja interpretação fica suspensa,
tudo isso requer tempo. E é aí, sem dúvida, que ocorre um dos
verdadeiros prazeres da leitura, nessa exploração duradoura,
concentrada, de todos os elementos óbvios ou tortuosos contidos
numa imagem, que se revelam graças a essas explorações.
Aspectos narrativos
120 A relação entre o texto e a imagem

RELAÇÃO DE REDUNDÂNCIA – (...) a noção de redundância constitui


uma espécie de grau zero da relação do texto e da imagem, que não
produz nenhum sentido suplementar. Nesse tipo, as duas narrativas
são isotópicas. Ambos remetem para a mesma narrativa, estão
centrados em personagens, ações e acontecimentos rigorosamente
idênticos. Os conteúdos narrativos se encontram – total ou
parcialmente – sobrepostos.

Um deles pode dizer mais que o outro. Por definição, conteúdos


idênticos são impossíveis, já que texto e imagem pertencem a
linguagens distintas. A redundância se refere à congruência do
discurso, o que não impede, por exemplo, que a imagem forneça
detalhes sobre os cenários ou desenvolva um discurso estético
específico. A redundância é exercida no sentido principal veiculado
pelas duas mensagens. Uma das duas vozes narrativas pode ser
amplamente dominante sem que a outra contrarie seu
desenvolvimento. A narrativa é então sustentada em grande parte por
uma das duas instâncias, sem que a outra seja necessária para a
compreensão global da história. Seria, até mesmo, dispensável. O
suporte preeminente, o texto ou a imagem, não precisam um do outro
para desenvolver a essência do discurso.

REDUNDÂNCIA
Sobreposição total dos conteúdos: Nada no texto ou na imagem vai
além do outro. Isotopia narrativa.
Sobreposição parcial: Congruência do discurso, mas um deles diz
mais que o outro.

121 RELAÇÃO DE COLABORAÇÃO - Identificar uma relação de


colaboração significa considerar de que modo se combinam as forças
e fraquezas próprias de cada código. Articulados, textos e imagens
constroem um discurso único. Numa relação de colaboração, o
sentido não está nem na imagem nem no texto: ele emerge da relação
entre os dois. Quanto mais as respectivas mensagens parecem
distantes uma da outra, mais importante será o trabalho do leitor para
fazer emergir a significação. Esse distanciamento pode inclusive
assumir uma nuance irônica.

COLABORAÇÃO
Cada um, alternadamente, conduz a narrativa, ou cada um preenche
as lacunas do outro. Interação de duas mensagens distintas para
uma realização comum do sentido.

Divergências construtivas.

RELAÇÃO DE DISJUNÇÃO - A disjunção dos conteúdos pode assumir


a forma de histórias ou narrações paralelas. Texto e imagem não
entram em estrita contradição, mas não se detecta nenhum ponto de
convergência. Uma relação de estrita contradição pode também ser
observada. A contradição flagrante questiona o leitor, mas, ao
contrário do distanciamento “causador” de ironia, deixa em aberto o
campo das interpretações sem que o leitor seja orientado para um
sentido definido.

DISJUNÇÃO
Textos e imagens seguem vias narrativas paralelas.

Textos e imagens entram em contradição.

122 As respectivas funções do texto e da imagem

Definir o tipo de relação existente entre texto e imagem permite


considerar o resultado de sua relação, mas não seus termos, ou seja,
de que maneira interagem um com o outro.

(...) Cada obra propõe um início de leitura quer por meio do texto,
quer da imagem, e tanto um como outro pode sustentar
majoritariamente a narrativa. Se o texto é lido antes da imagem e é o
principal veiculador da história, ele é percebido como prioritário. A
imagem, apreendida num segundo momento, pode confirmar ou
modificar a mensagem oferecida pelo texto. Inversamente, a imagem
pode ser preponderante no âmbito espacial e semântico, e o texto ser
lido num segundo momento.

Essa prioridade – ou primazia – deve ser considerada conforme a


organização da página dupla e as modalidades da narrativa. Com
certeza, a diagramação desempenha um papel primordial na
apreensão prioritária de uma ou outra linguagem. Se a primeira
página do livro traz uma imagem, se essa imagem ocupa o espaço
mais importante e se situa acima do texto, sua disposição e apresenta-
ção influirão também na apreensão. Essa organização espacial,
porém, será con- firmada ou contrariada dependendo de quem conduz
a narrativa ou veicula a mensagem principal.
123 FUNÇÃO DE REPETIÇÃO - A mensagem veiculada pela instância
secundária pode apenas repetir, em outra linguagem, a mensagem
veiculada pela instância prioritária. A leitura da segunda mensagem
não traz então nenhuma informação suplementar, e o leitor tem a
sensação de ler a mesma mensagem de outra maneira. (...) a
redundância permite instaurar um ritmo, um hábito de leitura que
poderá, por exemplo, dar mais peso a um efeito de contradição.

FUNÇÃO DE SELEÇÃO - O texto pode selecionar uma parte da


mensagem da imagem. (...) Um texto pode, por exemplo, mencionar
apenas alguns elementos específicos de uma imagem. Da mesma
forma, uma imagem pode se concentrar em um aspecto, um ponto de
vista preciso da narrativa, ou eleger um sentido da polissemia do
texto (no caso dos jogos de palavras, por exemplo).

FUNÇÃO DE REVELAÇÃO - Uma das duas instâncias pode realmente


dar sentido à outra. (...) Marion Durand e Gérard Bertrand: “Algumas
palavras bastam para revelar a imagem, fazer com que ela apareça,
como basta um banho adequado para tornar visível a imagem latente
de um negativo fotográfico”. O aporte do texto ou da imagem pode
assim revelar-se indispensável para a compreensão um do outro que,
sem sua contraparte, permaneceria obscuro.
124 FUNÇÃO COMPLETIVA - Quando a segunda expressão intervém
sobre a prioritária, pode dar ensejo ao entendimento de um sentido
global. Uma completa a outra, fornece informações que lhe faltam,
preenche suas lacunas ou “brancos”, constituindo um aporte
indispensável para a compreensão do conjunto.

O texto pode assim trazer um aporte determinante à significação do


conjunto, retranscrevendo os diálogos ligados a uma cena figurada
pela imagem. O trabalho de colaboração se torna ainda mais eficiente
pelo fato de a imagem não necessariamente se deter a mostrar
personagens dialogando.

A imagem, por sua vez, pode explicar algo subentendido no texto.


125 Para não cair em contradição, a função completiva deve intervir com
uma expressão que demonstre alguma abertura, ou até uma
interrogação, posicionando-se numa expectativa em relação ao outro.

FUNÇÃO DE CONTRAPONTO - Uma das expressões pode se


caracterizar como contraponto da outra, particularmente por uma
quebra das expectativas geradas pela instância da primeira, não
mencionando, por exemplo, um elemento que no entanto é central.

FUNÇÃO DE AMPLIFICAÇÃO - Um pode dizer mais que o outro sem


contradizê-lo ou repeti-lo. Estende o alcance de sua fala trazendo um
discurso suplementar ou sugerindo uma interpretação. Essa função de
amplificação pode ser realizada com muita sutileza mediante, por
exemplo, um tratamento plástico particular ou detalhes das
ilustrações.
126 OBSERVAÇÕES SOBRE AS FUNÇÕES Além dessas diferentes
funções, o texto também pode ignorar por completo a imagem, e
vice-versa. Isso em geral causa uma relação de disjunção – as
narrativas se desenrolam em paralelo, ou a instância secundária se
dissocia - e assinala uma ruptura ao se “desviar” de uma instância
prioritária que não manifesta nenhuma expectativa (caso contrário
seria uma função de contraponto).

Essa apresentação, função por função, não deve nos fazer supor que
sejam unilaterais ou compartimentadas. Muitas vezes, texto e imagem
cumprem simultaneamente, um em relação ao outro, uma função –
distinta – que se realiza no percurso da leitura: descoberta de uma
imagem, leitura de um texto, fornecer nova mensagem. Do mesmo
modo, uma imagem, ou um texto, mediante os diferentes níveis de
significação que está apto a organizar, pode abrigar diversas funções.
Uma primeira função evidente pode ocultar outra, que se revela mais
sutilmente.
Realizações na escala do livro
128 Na escala do livro, a mudança de relação que rege o vínculo entre
texto e imagem pode gerar efeitos singulares. o humor que muitas
obras trazem na última página é bastante reforçado pelo fato de a
imagem assumir uma função completiva ou de contraponto, ao passo
que no livro como um todo ela se limita a uma função de repetição.
confortavelmente instalado numa relação de redundância, o leitor é
então, de certa forma, “despertado”.
129 AS SEQUÊNCIAS EM IMAGENS SEM TEXTO - Nos livros ilustrados
com páginas duplas que associam texto e imagem, é frequente uma
sequência de imagens intervir na organização. (...) Essas páginas
duplas sem texto, de fato, na maioria das vezes provocam uma
suspensão imaginária (...). Nessas sequências, as imagens assumem a
narrativa, entram numa função de complementaridade em relação ao
texto, já que não devemos esquecer que a articulação também deve
ser considerada na sucessão das páginas.
130 Esse tipo de sequência pode estar a serviço da estrutura narrativa
geral e criar efeitos de ritmo, ou até conferir uma força específica à
história.

O ponto de vista

Gérard Genette (...) focalização interna (o narrador adota o ponto de


vista de um personagem), a focalização externa (o narrador tem o
ponto de vista geral sobre os fatos narrados) e a focalização zero (o
narrador, dito onisciente, pode tanto se posicionar dentro do
personagem como fora dele).
131 No livro ilustrado, os diferentes tipos de focalização apresentados
pelo texto são duplicados, já que entra em jogo uma visão
suplementar: a da imagem. A focalização do texto pode convergir ou
entrar em contradição com a da imagem.

Você também pode gostar