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RELATO PDE JS

EXPERIÊNCIA
ereira

Processos educativos na adolescência:


Possibilidades interventivas na
Clínica Psicopedagógica por meio
das tecnologias digitais
Julia Scalco Pereira

RESUMO - O presente artigo busca refletir sobre as contribuições dos


meios digitais em educação, a partir de relato de caso clínico, delineando
as concepções acerca da intervenção em Psicopedagogia Clínica com
pacientes adolescentes através das novas tecnologias. São apresentadas,
inicialmente, caraterísticas gerais da adolescência, deixando claros os
processos de modificação enfrentados pelos sujeitos no decorrer desta
fase da vida, do ponto de vista das mudanças psicossociais e educativas.
Em seguida, são apontadas algumas ideias a respeito da informática
educativa e sua importância no processo de aquisição dos conhecimentos
no cotidiano escolar e psicopedagógico. Por fim, são tecidas algumas
relações entre a intervenção psicopedagógica na adolescência e o uso
das tecnologias digitais, de modo a ilustrar algumas possibilidades do uso
dessas ferramentas atuais no processo de intervenção e motivação para a
construção de aprendizagens com adolescentes.

UNITERMOS: Adolescência. Aprendizagem. Cognição. Tecnologia da


Informação.

Julia Scalco Pereira – Psicopedagoga, Neuropsicóloga Correspondência


e Doutoranda em Psicologia do Núcleo de Estudos em Julia Scalco Pereira
Neuropsicologia Cognitiva (Neurocog), da Uni­ver­ Rua Ramiro Barcelos, 2600 – Sala 114, Porto Alegre –
si­dade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto RS, Brasil – CEP: 90035-003.
Ale­gre, RS, Brasil. E-mail: julia_scalco@hotmail.com

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Tecnologias digitais e Psicopedagogia do Adolescente

INTRODUÇÃO O ADOLESCER: CONFLITOS E PRAZERES


As tecnologias digitais têm permeado o co­ A adolescência é um período da vida caracte­
tidiano de bilhões de pessoas ao redor do mundo, rizado, em geral, pela simultaneidade de desco­­
sendo considerado o uso do computador como um bertas, conflitos e prazeres, através do qual o
dos maiores avanços tecnológicos das últimas sujeito constitui a sua identidade enquanto indi­
décadas. Diariamente, são realizadas diversas víduo em uma sociedade3. Esta construção inicia
tarefas essenciais com o uso dos meios digitais, desde o nascimento, mas é na fase adolescente
como pesquisar e acessar informações via In­ que a formação identitária se remodela em um
ternet, comunicar-se com outras pessoas, entre ritmo mais acelerado, para então se consolidar
outras atividades que as tecnologias atuais nos a fase adulta4.
permitem1. Outeiral5 ressalva que o adolescer é um fe­­
Cada vez mais cedo, os jovens estão hiper­ nômeno psicológico e social, constituído por
conectados, 24 horas por dia, fazendo parte de di­­ferentes fases, com características bastante
redes sociais, conversando através de chats, dis­tintas. O autor também traz que, na atualida­
criando blogs, compartilhando fotos, expe­riên­ de, o processo de adolescer começa a ocorrer
cias, sentimentos e vivências significativas des­ com maior precocidade, sendo levadas em conta
te período de vida. Tendo presente que essas ida­­des aproximadas para seu desenvolvimento.
tecnologias fazem parte do dia-a-dia de muitos Como não há um consenso entre os diferentes
adolescentes, torna-se essencial o uso desse rico autores em relação aos períodos nos quais se or­
meio como caminho para auxiliar no processo ganizam a adolescência, optou-se pelo delinea­
de aprendizagem1,2. mento realizado por Leonço6 para procurar expli­
Entendendo a relevância das novas tecnolo­ car este fenômeno. A autora divide os períodos
gias educativas na atualidade, o presente artigo* da adolescência em dois momentos, que podem
pretende refletir acerca das contribuições que oscilar na variação de idade em cada indivíduo.
o uso das tecnologias digitais pode oferecer ao
O período inicial é chamado de puberdade/
psicopedagogo. Este procura delinear o uso da
pré-adolescência, desdobrando-se por volta dos
informática educativa no contexto da interven­
11, 12 anos, no qual ocorrem diversas modifica­
ção na clínica psicopedagógica com adolescen­
ções corporais no indivíduo, como o crescimento
tes, a partir de relato de caso clínico, no tocante
de pelos nas regiões pubianas e o desenvolvimento
às particularidades educacionais desse público.
mais acelerado dos órgãos sexuais. Ao mesmo
Neste sentido, são tecidas algumas conside­
tempo, aspectos psicológicos ligados à apropria­
rações em relação ao adolescer e o papel do psi­
ção e autoconhecimento em relação ao próprio
copedagogo na avaliação e intervenção nesta
corpo fazem parte desta fase.
faixa etária. Além disso, é discutido a respeito
A segunda fase daria conta da adolescência
dos potenciais da informática educativa neste
propriamente dita, que inicia por volta de 14, 15
contexto, a fim de que possam dar subsídios
anos, na qual as transformações presentes esta­
para compreender de que forma as tecnologias
riam mais fortemente associadas às questões psí­
digitais possibilitam motivar o adolescente no
quicas6. Pode-se observar, frequentemente, que
processo de tratamento psicopedagógico.
o humor do adolescente oscila muito, passando
por momentos de exaltação e isolamento, que
vão se modificando de forma abrupta7.
Apesar disso, é importante perceber que estas
* Texto adaptado de Trabalho de Conclusão de Especializa­
ção em Psicopedagogia da autora, orientado pela Profª Dra. mudanças não são apenas no corpo e nos com­
Marlene Rosek e originalmente intitulado “Psicopedagogia portamentos, portanto, o sujeito adolescente
do Adolescente e as Tecnologias Digitais: Possibilidades
interventivas na clínica psicopedagógica” – Faculdade de passa por um turbilhão de modificações em sua
Educação/PUCRS (2011). constituição biopsicossocial7. Essas modificações

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levam a crises de rebeldia, de aceitação do outro deradas para as crianças nos primeiros anos de
e de si próprio, entre outros fatores que caracte­ escolarização formal. É na adolescência que os
rizam esta faixa etária3,4. sujeitos estão em pleno estágio das Operações
No decorrer desta fase, a autoridade da família Formais, lidando com a inteligência hipotético­
e, consequentemente, da escola são altamente -dedutiva, apresentando maior capacidade de
questionadas. Ao mesmo tempo em que há uma abs­trações, predições, fazendo relações entre o
busca pelo afastamento das figuras adultas, por possível e o real, realizando operações mentais
não se considerar mais uma criança, a família cada vez mais complexas6,7. O amadurecimento
continua sendo um refúgio para transpor suas de funções cognitivas como flexibilidade do
inseguranças4. pen­samento, planejamento, atenção e memória,
Há a procura pelo pertencimento a grupos além de outras funções importantes para aquisi­
de afinidades, que possibilitam o envolvimento ção dos conhecimentos, também são caracterís­
com outros círculos sociais, importantes para ticas importantes dessa faixa etária8.
a caracterização e desenvolvimento do sujeito, Ao mesmo tempo, passam por modificações
favorecendo, assim, a situação de pertencimento significativas no que diz respeito à rotina escolar.
a uma realidade coletiva4,7. Neste momento da Diferentemente dos primeiros anos de escola­
vida também há uma ressignificação do que o rização, nos quais têm uma professora como
indivíduo viveu anteriormente, fazendo uma re­ferência ao longo do ano letivo, com quem
nova elaboração das condutas e pensamentos po­dem criar vínculos que costumam facilitar a
que precisa abandonar, que fazem parte da in­ apren­dizagem, passam a ter professores espe­
fância, ocorrendo uma simultaneidade de perdas cializados para cada uma das áreas do conheci­
e aquisições que levam o sujeito à reorganização mento. Como con­se­quência desse fenômeno, os
da sua identidade para adentrar a vida adulta3. adolescentes perdem esta referência de ensino
Os adolescentes ainda lidam com as pressões e têm necessidade de desenvolver formas mais
da sociedade de consumo e da mídia, que trans­ autônomas de gerenciar seu aprendizado, uma
mitem e reformulam diariamente os valores vez que o espaço para tirar suas dúvidas com
aceitáveis e as formas de viver a ser seguidas, o os professores se apresenta bastante reduzido6.
que gera conflitos entre o que o adolescente está É importante lembrar que é a partir dos Anos
sendo e o que ele pretende ser. Sabendo, então, Finais do Ensino Fundamental (5o a 9o ano) que
que a adolescência é um período de relevância inicia um processo de diminuição gradativa do
para o desenvolvimento do sujeito, é necessário número de alunos matriculados, em comparação
que haja cuidados parenterais, escolares e so­ com os Anos Iniciais, que se estende para o total
ciais adequados a esta faixa etária, contribuindo de alunos matriculados no Ensino Médio9. Isso
para o amadurecimento pleno das potencialida­ se dá pela elevação nos índices de evasão escolar,
des de cada sujeito em sua individualidade. É em o aumento da taxa de distorção idade-ano esco­
meio a este cenário que o papel do psicopedagogo, lar, bem como pelas taxas de reprovação, que se
frente às dificuldades de aprendizagem e de elevam gradativamente6.
aproximação dos conhecimentos, precisa estar Neste sentido, avaliar o paciente nesta faixa
contextualizado para que as demandas que a etária deve levar em conta não apenas o rendi­
ado­lescência enfrenta em sua aprendizagem mento escolar e as dificuldades de aprendizagem
possam ser ressignificadas7. que se apresentam, mas também aspectos con­
textuais que possam estar impactando o processo
PSICOPEDAGOGIA DO ADOLESCENTE: de aprendizagem deste adolescente. Fatores in­
AVALIAÇÃO E INTERVENÇÃO ternos e externos devem ser considerados, como
O processo educativo de adolescentes traz déficits e preservações na cognição, relações
im­­plicações diferentes daquelas que são consi­ fa­­­miliares e sociais, vida laboral, o ambiente de

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aprendizagem do qual o adolescente faz parte dificar o caminho. Neste sentido, a avaliação e
e as oportunidades educativas ofertadas, bem a intervenção junto ao paciente adolescente se
como características específicas do período, di­ferenciam em relação à criança, pois, mesmo
como mencionado anteriormente7,8. que não deixem de ter um caráter lúdico, devem
A intervenção psicopedagógica é um momento ser adaptadas de forma a se tornarem interessan­
bastante importante do processo de tratamento tes e desafiadoras. Consideremos, então, a infor­
das dificuldades de aprendizagem. É através mática educativa como um caminho possível de
desta fase que o psicopedagogo poderá atuar aprendizagem nesta faixa etária7,10.
diretamente nos problemas encontrados ao
longo do diagnóstico psicopedagógico, de modo INFORMÁTICA EDUCATIVA: UM CAMI-
a auxiliar o paciente a retomar o prazer pela NHO POSSÍVEL
aprendizagem, enfrentando suas dificuldades Os tempos e os espaços no século XXI sofre­
e dando continuidade no seu caminho de cons­ ram grandes mudanças com o advento das novas
trução do conhecimento10. tecnologias, em um nível global de abrangência.
Esta intervenção poderá ocorrer de diferentes O que pode ser constatado é que, na atualidade,
maneiras, sempre levando em conta os dados obti­ as Tecnologias de Informação e Comunicação
dos a respeito do desenvolvimento biopsicosso­ (TICs) vêm apresentando diversas inovações, se
cial do paciente em questão. A partir da coleta difundindo e permeando o dia-a-dia de crianças,
de dados e da transmissão destes ao paciente, à jovens e adultos em todas as partes do mundo. O
fa­mília, à escola e aos demais profissionais en­ uso dos recursos de informática e redes sociais
volvidos do tratamento da criança/adolescente, o tem facilitado as atividades diárias, assim como
psicopedagogo poderá dar início ao processo in­ diminuído a distância entre as pessoas, possibili­
terventivo, buscando dar conta das dificuldades tando o acesso a novas informações1,11.
apresentadas pelo sujeito de estudo10. Estas inovações criaram o que pode ser cha­
A intervenção junto à família é um momento mado de Cibercultura, ou seja, uma nova forma
bastante importante, para que esta possa dar de viver e se relacionar com o mundo, através de
suporte ao paciente, já que são referências dos ambientes virtuais. Seguindo as transformações
ensinantes desde o seu nascimento, assim como trazidas pelos meios telemáticos no âmbito da
se torna imprescindível mostrar para o paciente vida social, o panorama educacional também
e sua família a importância do engajamento no apresentou diferenciações na maneira de visua­
tratamento para que se obtenham novas aprendi­ lizar o binômio ensino-aprendizagem11.
zagens. Deve haver, ao mesmo tempo, uma inter­ Entende-se, portanto, que a expansão das
venção junto à escola, procurando sugerir a esta tec­nologias digitais e a sua mutação constante
instituição formas diferenciadas para lidar com possibilitam uma nova forma de pensar a re­
o paciente em questão10. lação com o saber. Os conhecimentos passam a
O psicopedagogo, então, fará o planejamento ser mais fluídos, uma vez que estes podem ser
das atividades que serão realizadas, sempre tendo compartilhados e remodelados, interferindo,
presentes seus objetivos ao colocá-las em prá­tica. consequentemente, nas estruturas do sistema
As tarefas devem procurar resgatar os déficits edu­cacional como um todo1,11.
encontrados junto aos pacientes e possi­bilitar a Desta forma, fica evidente que as mudanças
retomada da aprendizagem10. tecnológicas ocorridas nos últimos anos e a intro­
É igualmente importante avaliar, durante todo dução delas no espaço escolar impactam não
o desenrolar da intervenção terapêutica, se as apenas na configuração das instituições de ensi­
atividades estão sendo significativas para o su­ no, mas perpassam também a formação docente,
jeito, se elas estão apresentando perspectivas o currículo escolar, e as relações entre os sujeitos
sa­tisfatórias de auxílio ou se será necessário mo­ que fazem parte desses espaços12. Assim, muitas

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instituições de ensino têm procurado utilizar a mais horas do que dedicam à frequência escolar.
informática educativa para reconfigurar as meto­ Neste sentido, o computador torna as atividades
dologias até então tidas como consolidadas. As mais dinâmicas e significativas, motivando e fa­
novas tecnologias educacionais puderam levar vorecendo a atividade espontânea de crianças
os educadores a repensar seus fazeres em sala e adolescentes, legitimando, ao mesmo tempo,
de aula, entendendo que, em contextos sociais os processos de construção de saberes, quando
de mudança, a escola (e, então, os professores) trabalhados de modo que o sujeito possa intera­
não pode ficar alheia às informações e aos no­ gir com diversos tipos de mídias2,13.
vos perfis de alunos que se constituem a partir
dessas modificações1,2. CONTRIBUIÇÕES DAS TECNOLOGIAS
A informatização da educação tem diminuído DIGITAIS NA INTERVENÇÃO PSICOPE-
a distância entre educadores e educandos, estes DAGÓGICA COM ADOLESCENTES: UM
últimos trazendo de seus lares conhecimentos ESTUDO DE CASO
avançados sobre os usos dos recursos contidos Para colaborar de forma mais prática no en­
nos computadores e compartilhando seus saberes tendimento de alguns dos aspectos relevantes
com seus pares1. Desta forma, a informática edu­ do uso da informática educativa no processo de
cativa possibilita o enriquecimento da prática intervenção psicopedagógica, são apresentados
diária, desenvolvendo diferentes habilidades dados extraídos de um estudo de caso realizado
como a criatividade, a expressão e comunicação, para conclusão de curso de Especialização em
além de ampliar as capacidades cognitivas de Psicopedagogia. Um dos objetivos principais do
crianças e adolescentes, oportunizando trocas estudo foi investigar a intervenção psicopedagó­
entre os educandos2. gica com paciente adolescente utilizando tecno­
Para que haja, verdadeiramente, a aquisição logias digitais, procurando perceber se esta
de novas capacidades por parte de crianças e mo­dalidade de trabalho propiciaria formas dife­
ado­lescentes, torna-se de extrema relevância renciadas e melhor adaptadas às demandas
que escola e professores estejam preparados para observadas nessa faixa etária.
lidar com os ambientes digitais de aprendiza­ À época do atendimento, o paciente estava
gem. Essa postura visaria ofertar propostas que com 16 anos e frequentava o 6a ano do Ensino
motivem e não se tornem apenas mais uma tarefa Fundamental em uma escola pública na região
a ser completada e entregue ao final da aula, que metropolitana de Porto Alegre. Foi encaminhado
não agrega novos conhecimentos aos alunos1,2. para avaliação psicopedagógica pelo serviço de
Principalmente no que se refere ao trabalho Psiquiatria de um hospital público da região. O
com adolescentes, a informática educativa é motivo referido para o encaminhamento era de
um meio relevante para o desenvolvimento das que o adolescente apresentava dificuldades de
capacidades intelectuais, pois, muitas vezes, as aprendizagem e comportamentos agressivos,
atividades propostas em outros ambientes de que traziam implicações importantes para as
aprendizagem não são tão desafiadoras quanto suas relações com colegas e professores na rotina
aquelas que envolvem o uso com computador. diária na escola.
Isso se deve à forma como o adolescente encara o Em conversa com a coordenação pedagógica
ambiente virtual, como uma novidade e como um da escola de origem do paciente, pôde-se cons­
lugar onde ele pode criar e manipular ativamente tatar que este costumava ter oscilações no humor
diferentes ferramentas que consigam representar e temperamento difícil, além de apresentar
seus pensamentos e pontos de vista13. advertências escolares por brigar com colegas
É importante salientar que os jovens costu­ e por não finalizar atividades de sala de aula.
mam dedicar bastante tempo diante do compu­ Suas notas eram, em geral, próximas à média
tador e das redes sociais, em muitas situações, (50% de suficiência em cada uma das áreas de

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conhecimento), com exceção de Língua Portu­ mentas do aplicativo, principalmente os ba­lões de


guesa e Ciências, que se apresentavam bastante fala. Utilizou diversas vezes o balão pon­tilhado,
abaixo da média por dois trimestres consecuti­ que expressaria tom de voz baixo.
vos. Ainda houve relato da coordenadora de que Através desta atitude posta na construção da
o aluno havia repetido todas as séries anteriores história, foi possível observar uma projeção da
do Ensino Fundamental e que havia grande risco personalidade do paciente, o que é bastante co­
de não atingir nota suficiente na série que estava mum na intervenção psicopedagógica14. Essa
frequentando naquele período. personificação da voz do paciente, que desde o
Em entrevista com a família, a mãe relatou que início do tratamento apresentava muita timidez
era muito imaturo e dependente em relação a ela e acabava por falar baixo também, transpareceu
e ao irmão gêmeo, assim como observava que na forma como retratou os personagens em seus
tinha mudanças repentinas de conduta. Pontuou quadrinhos.
que seu filho brincava com maior frequência com Também com o uso desse recurso de informá­
crianças mais novas que ele, dentro e fora da es­ tica, torna-se possível explorar cenários, perso­
cola. Também contou que o adolescente já havia nagens, diálogos e a sequência dos fatos, mesmo
sido avaliado por serviço de Psicologia e que o com o uso de um único personagem ao longo
mesmo pediu para não ir mais aos atendimentos da produção, fazendo com que adolescentes
antes mesmo de serem realizadas sessões de (assim como crianças) percebam que existe início,
intervenção psicológica. meio e final nas histórias. Isso foi observado na
Após a avaliação psicopedagógica, foram es­ di­ferença da primeira produção de história em
tabelecidos encontros semanais, de 50 minutos quadrinhos do paciente para a segunda, reali­
cada, durante 10 semanas. Ao longo das sessões, zada nos últimos encontros da intervenção, na
foram utilizados diferentes recursos no compu­ qual se percebeu um salto gradativo na narrativa
tador (notebook), procurando desenvolver prin­ e na coerência textual, procurando manter uma
cipalmente as habilidades de leitura e escrita, linha de raciocínio do início ao fim (o que ainda
que eram as que se encontravam deficitárias no não era percebido na primeira produção, na qual
paciente, de acordo com as queixas da escola e usou figuras e relatos de situações desconecta­
família, que também foram percebidas na avalia­ dos entre si).
ção psicopedagógica. A intervenção quanto aos aspectos de lin­
Para tanto, foi lançada mão de propostas como gua­gem por meio do uso de recursos lúdicos
uso do software HagáQuê, para montagem de computacionais, tanto no que diz respeito aos
histórias em quadrinhos e ferramentas de edição pro­cessos de construção das estruturas compo­
do pacote Office, como Microsoft Word e Po­ nentes de uma produção escrita quanto aos seus
werPoint, para ordenamento de fragmentos de aspectos sintáticos e gramaticais, colabora para
contos clássicos, produção de história através que haja uma preparação mais consistente e or­
das ilustrações de livros sem escrita e criação de ganizada de portadores de texto diversos. Os erros
história autobiográfica com o uso de fotografias nas ela­borações narrativas tomam uma forma
pessoais. Além disso, foram utilizados jogos construtiva, que auxilia no desenvolvimento das
edu­cativos diversos retirados da Internet, para habilidades linguísticas13.
au­xiliar quanto aos déficits ortográficos. Quando fornecidos “indicadores de erros”
Uma relação inicial interessante que pôde ser pelo computador, a criança e o adolescente se
tecida observando as sessões de intervenção com sentem surpresos e confrontados a encontrar
o paciente adolescente foi a conduta estabelecida uma solução. Essa experiência oportuniza que o
no uso do software HagáQuê para produzir his­ aprendente vá tomando consciência de mecanis­
tórias em quadrinhos. Em uma das produções, o mos para autocorreção13. Desta forma, os “erros”
paciente questionou para que serviam as ferra­ apon­tados, por exemplo, pelas linhas onduladas

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dos programas Microsoft Word e PowerPoint, e de seus próprios questionamentos, esquemas


não necessariamente tolheram a iniciativa do de ação para realizar a atividade solicitada. O
pa­ciente em escrever e criar, mas o desafiaram pa­ciente havia comentado com a mãe o quanto
a procurar formas mais adaptadas de escrever. aguardava com ansiedade para que a escola
Um dos pontos importantes do uso do compu­ oferecesse este tipo de atividade, uma vez que
tador ao longo das sessões foi a automaticidade esta possuía diversos aparelhos que não eram
adquirida pelo paciente para lidar com as ques­ disponibilizados para uso dos alunos.
tões ortográficas, gramaticais e de pontuação. Além disso, em conversa com a mãe do pa­
Foi possível perceber que o adolescente foi se ciente posteriormente, apareceu o relato de que
apropriando de tal forma da ferramenta de auto­ o adolescente teria ficado muito satisfeito em
correção, que não necessitava mais que se cha­ realizar as atividades com uso do notebook. No
masse sua atenção para o fato de ter aparecido a de­correr das sessões, também foi possível obser­
linha avermelhada abaixo das palavras escritas, var que estas atividades apresentadas através do
o que também ocasionou o questionamento prévio computador eram mais bem recebidas e feitas
da forma de se escreverem as palavras em outros com maior empenho do que as demais atividades
contextos de escrita, mostrando um grande salto propostas, mesmo quando eram jogos.
nos aspectos linguísticos construídos durante o Como já abordado anteriormente, no período
processo de intervenção. da adolescência, a informática educativa tem a
Para tanto, é inegável a capacidade que estas possibilidade de constituir um elo entre a apren­
ferramentas têm de tornar mais espontânea no dizagem formal e os conhecimentos do co­­tidia­no,
paciente a busca prévia pela utilização de pala­ uma vez que adolescentes fazem uso de dife­
vras adequadas graficamente13. Isso mostra que, rentes ferramentas do espectro das tecnologias
através desta funcionalidade que possuem edito­ digitais e se permitem o desafio de trabalhar
res de texto e imagem, assim como aplicativos de através do computador, sem se sentirem inti­
criação de textos que tenham este recurso, esses midados pelos novos recursos e experiências
são ferramentas importantes para a intervenção que são proporcionados através dele. Da mesma
psicopedagógica. maneira, as atividades incorporadas aos recursos
Ainda pensando nas vantagens do uso dos de informática educativa são vistas de forma pra­
recursos de informática com adolescentes estão zerosa por adolescentes, inclusive aqueles que
“a possibilidade de representar o real através do nunca tiveram contato mais consistente com o
virtual, possibilitando sua leitura a partir de vá­ computador13,14.
rios ângulos, e, assim, tornando muito mais ricos Esta relação ficou clara ao longo da pesqui­
e conhecidos” (p. 154) os objetos de aprendiza­ sa, através das atividades propostas junto ao
gem, assim como dão conta do desenvolvimento paciente, demonstrando maior criatividade nos
da abstração, tão essenciais nesta faixa etária13. pro­cessos de produção ao longo das sessões in­
A construção da história de vida pelo paciente, terventivas. Ficou evidente que o paciente teve
por exemplo, fez com ele percebesse não somen­ a oportunidade de desenvolver estratégias para
te questões formais do discurso narrativo, mas lidar melhor com os conhecimentos e, assim,
também que refletisse mais a respeito da sua construir novas formas para realizar as ativida­
forma de lidar com as situações do seu dia-a-dia des solicitadas.
e, principalmente, suas inseguranças. Ao mesmo tempo, ao se perceber obtendo êxi­
Ao longo das primeiras produções, obser­ tos em suas aprendizagens através do uso do
vou-se que o paciente possuía pouco contato com o computador, o adolescente passou a demonstrar
computador, necessitando, desta forma, de orien­ maior segurança no trabalho de intervenção,
tação para lidar com o instrumento de aprendi­ bem como firmar um vínculo mais sólido com sua
zagem, construindo, a partir das intervenções terapeuta. Deste modo, pode ser constatado que,

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na clínica psicopedagógica, a informática pode Twitter e outros meios comunicativos têm grande
ser um facilitador dos processos criativos, de adesão por parte de adolescentes, é imprescin­
construção dos conhecimentos e de integração dível refletir o quanto essas permitem que haja
social, por possuir uma série de ferramentas que socialização de saberes, incorporando também
dinamizam a atividade do paciente13. conhecimentos das diversas áreas (leitura, escri­
Nesse sentido, é necessário que se desenvol­ ta, história, ciência naturais, etc.) de modo formal
vam habilidades para lidar com os ambientes por meio dessas redes, levando-se em conta a
digitais, que iniciam pela oportunização do uso privacidade de seus alunos/pacientes.
do computador, para que haja um aperfeiçoa­
mento das condutas do sujeito frente às novas CONSIDERAÇÕES FINAIS
tecnologias. Ainda que nos últimos anos tenha Refletindo acerca das contribuições da utili­
ocorrido uma maior difusão do acesso às tecno­ zação da informática educativa na intervenção
logias digitais e aumento da conectividade à psicopedagógica, é possível evidenciar que os
Internet, percebe-se uma lacuna importante recursos disponíveis por meio do computador
entre as diferentes camadas sociais15. podem atuar como agentes facilitadores na
As desigualdades na distribuição de renda construção de vínculos efetivos entre sujeito e
e nas oportunidades educativas refletem na objeto de aprendizagem14.
apropriação adequada das possibilidades que as No caso de adolescentes, estas contribuições
tec­­nologias digitais podem oferecer. O acesso a são ainda mais importantes, por se tratar de uma
no­vas fontes de conhecimento e interação refle­ faixa etária que vive um momento bastante dis­
xiva nas redes sociais, por exemplo, tem íntima tinto. Como foi salientado ao longo do trabalho,
relação com a ampliação do uso de diferentes esses passam por processos radicais de mudança
redes de difusão eletrônica, bem como a capaci­ da realidade vivida, seja no campo das emoções,
dade de questionar os saberes15. Como pôde ser das transformações corporais, na forma como o
percebido durante a intervenção, a promoção do ensino lhe é ofertado e, portanto, nas formas de
uso das tecnologias digitais de modo planejado se aproximar do saber7.
pode trazer benefícios educativos, necessitando O computador proporciona um ambiente
ser ampliada, sobretudo em contexto de nível ri­quíssimo para a atividade espontânea, tanto
socioeconômico menos favorecido. da criança quanto do adolescente, conduzindo a
O psicopedagogo deve ter clara a validade um processo de crescimento que, muitas vezes, é
das tecnologias em auxiliar no desenvolvimento mais ágil e consistente do que utilizando outros
e no enriquecimento do pensamento de seus métodos2. A informática educativa é relevante no
pacientes, não utilizando apenas como um re­ que diz respeito à inteligência, já que crianças e
curso substituto do lápis e papel14. Portanto, estes adolescentes poderão também desenvolver orga­
recursos devem estar em consonância com os ob­ nizações de estruturas cognitivas mais ela­boradas,
jetivos propostos e a metodologia utilizada pelo através de um processo criativo e estimulante,
psicopedagogo em sua prática na clínica, tendo resolvendo problemas, produzindo portadores de
em vista o desenvolvimento de uma intervenção texto, elevando, assim, o nível de raciocínio13,14.
que utilize ferramentas coerentes, para que não Através da experiência relatada ao longo deste
se tornem apenas a realização da atividade pela artigo, pode-se perceber que o uso das tecnolo­
atividade. gias digitais com adolescentes não somente atua
Outra questão importante em relação às tec­ no caráter motivacional, mas também nos as­
nologias atuais que vem sendo explorada em pectos cognitivos, além de auxiliar nos vínculos
pesquisas recentes é o valor das redes sociais como afetivos construídos entre paciente e terapeuta
fonte efetiva de desenvolvimento de aprendiza­ ao longo do tratamento. Estes vínculos, quanto
gens16. Entendendo que redes como Facebook, melhor organizados, maiores serão as chances

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de o paciente permanecer envolvido com o tra­ à juventude atual, à sua metodologia de trabalho
tamento, pois estará realizando atividades pra­ e com resultados eficazes na prática interventiva
zerosas e lidando com as suas dificuldades de psicopedagógica1.
uma maneira muito específica e gratificante13. Por fim, fica claro o quanto é importante
Ao mesmo tempo, as tecnologias digitais se investir na formação contínua nas tecnologias
tornam cada vez mais desafiadoras, em vista do digitais, de modo que “o psicopedagogo possa
processo de mutação acelerado pelo qual passam e saiba se utilizar cada vez mais do instrumento
os recursos tecnológicos, demandando que pa­ de informática para construir com a criança [e o
cientes e terapeutas busquem desenvolver novas adolescente] sua consciência como alguém real,
habilidades frente às inovações que surgem a capaz de lidar com o virtual, sem nele se per­
cada dia. O psicopedagogo tem um leque imen­ der”13. Desta forma, os recursos das tecnologias
so de opções de softwares, jogos, programas e digitais podem ter papel significativo enquanto
aplicativos que possibilitam uma intervenção instrumentos de prevenção e tratamento dos
psicopedagógica mais bem elaborada e adaptada problemas de aprendizagem.

SUMMARY
Educational processes in the adolescence: Interventional possibilities
at Psychopedagogical Clinic through digital technologies

This article seeks to reflect about the contributions of digital means in


education, from a clinical case report, tracing the conceptions about the
intervention at the Psychopedagogical Clinic with teen patients through new
technologies. Some general characteristics of adolescence are presented,
trying to clear up the processes of changes faced by these subjects during
this life period, through psychosocial and educational point of view. Then,
some ideas about the educational computing and its relevance in the process
of acquiring knowledge at school and the psychopedagogical context are
pointed. Finally, some relations about the psychopedagogical intervention
at the adolescence and the use of digital technologies are brought, to
illustrate some possibilities of use of these current tools at interventional
and motivational process of learning construction with adolescents.

KEYWORDS: Adolescence. Learning. Cognition. Information Technology.

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Trabalho realizado na Faculdade de Educação da Pon­ Artigo recebido: 27/8/2017


tifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Aprovado: 8/9/2017
(PUCRS), Porto Alegre, RS, Brasil.

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