Você está na página 1de 114

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Instituto de Letras

Aretuza Pacheco Serra Vitelbo da Silva

Cantando a insatisfação: os recursos linguístico-expressivos na obra de Gonzaguinha

Rio de Janeiro
2009
Aretuza Pacheco Serra Vitelbo da Silva

Cantando a insatisfação: os recursos linguístico-expressivos na obra de Gonzaguinha.

Dissertação apresentada, como requisito parcial


para obtenção do título de Mestre, ao Programa de
Pós-Graduação em Letras, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Área de Concentração:
Língua Portuguesa.

Orientadora: Profª. Drª. Maria Teresa Gonçalves Pereira.

Rio de Janeiro
2009
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEHB

S586 Silva, Aretuza Pacheco Serra Vitelbo da.


Cantando a insatisfação: os recursos linguístico-expressivos na
obra de Gonzaguinha / Aretuza Pacheco Serra Vitelbo da Silva. –
2009.
113 f.

Orientador: Maria Teresa Gonçalves Pereira.


Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Letras.

1. Língua portuguesa – Estudo e ensino – Teses. 2. Música na


educação - Teses. 3. Música e linguagem - Teses. 4. Linguística
aplicada – Teses. 5. Música popular – Brasil - Teses. 6. Gonzaguinha,
1945-1991 – Crítica e interpretação. I. Pereira, Maria Teresa
Gonçalves. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de
Letras. III. Título.

CDU 806.90(07):78.067.26(81)

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação

__________________________ __________________
Assinatura Data
Aretuza Pacheco Serra Vitelbo da Silva

Cantando a insatisfação: os recursos linguístico-expressivos na obra de Gonzaguinha.

Dissertação apresentada, como requisito para a


obtenção do título de Mestre, ao Programa de
Pós-Graduação em Letras, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Área de Concentração:
Língua Portuguesa.

Aprovado em: 30 de março de 2009

Banca Examinadora:__________________________________________________________

Profª. Drª. Maria Teresa Gonçalves Pereira (Orientadora)


Instituto de Letras da UERJ

Prof. Dr. André Crim Valente


Instituto de Letras da UERJ

Profª. Drª. Luci Ruas


Instituto de Letras da UFRJ

Rio de Janeiro
2009
DEDICATÓRIA

Aos
Meus alunos, por serem a real motivação deste
trabalho e de minha insistência em participar da
construção de melhores dias na Educação.
AGRADECIMENTOS

À minha orientadora Maria Teresa Gonçalves Pereira, bússola


norteadora de meus passos acadêmicos e pessoais, por toda a
generosidade, confiança, dedicação e carinho a mim ofertados e,
principalmente, pelo exemplo de caráter e sucesso.
Sem, no entanto, secundarizar, aos meus familiares, pela
compreensão de minhas ausências e pelo incentivo indefectível.
Especialmente, aos meus pais Lucas Vitelbo da Silva e Ana Lucia
Pacheco Serra – os melhores parceiros que se pode ter em qualquer
jornada! – aos meus sobrinhos Rayara Cristina, José Vitor e Maria
Vitória – paixões de minha vida! – por toda a alegria e paz que me
doaram em meus dias mais difíceis; e à minha Vó Risoleta Pacheco
Serra, pelos ensinamentos de força, perseverança e dignidade.
Aos amigos do Colégio Estadual Bairro Nova Aurora, pelo
apoio, companhia e participação na árdua empreitada, que é lecionar no
ensino público atualmente.
Aos “guerreiros” do Sistema Elite de Ensino, pelas lições
diárias de profissionalismo e competência extremos. Principalmente,
aos Mestres Rosane Reis de Oliveira, Danton Pedro dos Santos e
Armando Milan, não só não só pela confiança e pela imensurável
solidariedade, mas, sobretudo, pela preciosa amizade.
Ao Professor André Mauro de Barros Costa pela incansável
motivação e pela ternura de cada palavra a mim dirigida.
Por fim, aos colegas da UERJ, pela torcida sincera!
Quando Deus enganar gente,
Passarinho não voar...
A viola não tocar,
Quando o atrás for na frente,
No dia que o mar secar,
Quando o prego for martelo,
Quando cobra usar chinelo,
Cantador vai se calar...
(Ruth Rocha)
RESUMO

SILVA, Aretuza Pacheco Serra Vitelbo da. Cantando a insatisfação: os recursos linguístico-
expressivos na obra de Gonzaguinha. 2009. 113f. Dissertação (Mestrado em Língua
Portuguesa) – Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2009.

A fim de motivar alunos dos Ensinos Fundamental e Médio a atentarem para o cunho
expressivo dos fatos da língua e buscarem conhecer os grandes nomes da música nacional,
este trabalho objetivou um estudo estilístico dos recursos linguístico-expressivos de textos
musicais de Luiz Gonzaga do Nascimento Jr. – o Gonzaguinha. Destacou-se, primeiramente,
o viés social da música. Em seguida, pretendeu-se uma aproximação entre textos musicais e o
conceito de poesia para, então, tratar mais cuidadosamente do papel didático da canção.
Considerando a concepção de contracultura, defendida por Marilena Chauí (1990) como o
contexto histórico do momento das produções musicais, partiu-se para explanações acerca da
Estilística: sua história, seus âmbitos, seu alcance e possibilidades. Por fim, adentrou-se nas
relações lingüísticas a partir de canções de tom ora de protesto inconformado, ora
nacionalista-apaixonado do artista mencionado. Desenvolveu-se, portanto, uma abordagem
estilística individual do autor a partir de apontamentos teóricos sobre aspectos sonoros,
léxico-semânticos, morfossintáticos e enunciativos do processo discursivo expressivo. Com
esse intento, elegeram-se composições que ilustraram as marcas lingüísticas e seu
entrelaçamento com o plano do conteúdo.

Palavras-chave: Ensino. Música. Recursos linguístico-expressivos .


ABSTRACT

In order to motivate Junior High School and High School students giving attention to
the expressive character of the language facts and trying to know the great names of the
national music, this work had as an objective a stylistic studying of the linguistic-expressive
resources of the musical texts of Luiz Gonzaga. First of all, the social character of the music
was highlighted. Next, an approach between musical texts and the concept of poetry was
intended so that the didactic side of the song could be handled carefully. Considering the
conception of contracultura defended by Marilena Chauí (1990) as the historical context of
the musical production moment, it was given attention to the explanations around “Stylistic”:
its story, range, comprehensiveness and possibilities. To end up, it went into the linguistic
relations from either non conformed outcry or passionate-nationalistic songs of the mentioned
singer. It was developed then, an individual stylistic approach of the author from the
theoretical notes about voiced, semantics-lexicon, morph syntax and enunciative aspects of
the expressive speech process. With this purpose it was elected compositions which show the
linguistic impressions and their relationship with the plan of the content.

Keywords: Teaching. Music. Linguistic-expressive resources.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................10

1 A MÚSICA E SEUS EFEITOS PRAGMÁTICOS E ESTÉTICOS.......................13

1.1 As possibilidades pedagógicas do texto musical.......................................................13

1.2 Aspectos poéticos do texto musical............................................................................16

1.2.1 Poesia e música: características e materializações........................................................16

1.2.2 Poema e música: semelhanças e contribuições.............................................................19

2 GONZAGUINHA E SEU TEMPO............................................................................22

2.1 O contexto ideológico..................................................................................................22

2.2 O conceito de contracultura........................................................................................28

3 A ESTILÍSTICA E O ESTUDO DA EXPRESSIVIDADE.....................................31

3.1 O som e suas possibilidades expressivas...................................................................35

3.2 A expressividade vocabular gonzaguiana.................................................................39

3.3 Morfologia e expressividade: Gonzaguinha e a lapidação lexical...........................45

3.4 Frase e expressão: a construção e a organização do protesto.................................47

3.5 Enunciação expressiva: a propagação do desabafo.................................................52

4 ANÁLISE DO CORPUS SOB A ORIENTAÇÃO DOS ASPECTOS SONOROS,

MORFOSSINTÁTICOS E LÉXICO-SEMÂNTICOS: O ESTILO DE

GONZAGUINHA........................................................................................................56

5 CONCLUSÃO.............................................................................................................80

REFERÊNCIAS..........................................................................................................84

ANEXO – Letras das canções estudadas......................................................................91


10

INTRODUÇÃO

Desde a Iniciação Científica, quando participei do Projeto A Concretização Funcional e


Estética da Gramática da Língua Através Texto: do texto Lido ao Texto Produzido (Aluno
Leitor/ Leitor Autor), da Professora Doutora Maria Teresa Gonçalves Pereira, busco
maneiras de incentivar o gosto pela leitura no quotidiano de meus alunos. Pesquisei opiniões e
metodologias de estudiosos conceituados e percebi que, ainda que distintas, a maioria delas
pressupunha o desenvolvimento do processo de interação texto- leitor a partir das marcas
linguísticas apresentadas pelo autor. Assim, as formulações de ideias, intenções, e inferências
decorrentes apontariam para sujeitos construtores de sentidos: o locutor e seu interlocutor (ou
o autor e seu leitor), daí a motivação para se contemplar o ato de ler como um processo
discursivo. A leitura passa, então, a admitir um papel que ultrapassa a mera decodificação da
escrita, uma vez que, por meio dela, o interlocutor interage não só com o locutor, mas com o
mundo. Consequentemente, aqueles que não consideram nem compreendem adequadamente
um texto ficam à margem da sociedade.
Ao investigar as chamadas “marcas linguísticas” de variados autores, seus efeitos nos
textos e a recepção delas pelos leitores, deparei-me, inevitavelmente, com as concepções de
subjetividade e expressividade que, muito logicamente, me induziram ao conceito de estilo. A
palavra “estilo”, em sua acepção comum, provoca diversas ilações (estilo de vida, estilo de
vestir, falar, cantar, etc), entretanto, em todas é nítida a ideia de subjetividade criativa,
afetividade, expressividade, marcas distintivas do indivíduo.
Optei, então, por uma pesquisa de cunho estilístico pelo mundo musical. Ponderei que,
sendo a música uma das expressões mais genuínas e essenciais do homem e que ultrapassa
barreiras como idioma, raça, costumes e religião, tornar-se-iam de fácil observação os
fascinantes poderes de criação e transmissão de ideias, sentimentos, identidades, valores e
ideais, concretizados por meio da linguagem, mais precisamente por meio da língua, pela sua
plenitude comunicativa e expressiva. Dessa forma, a música assumiria eficiente e eficazmente
funções social e pedagógica.
No presente trabalho, o estudo do estilo que, segundo Mattoso Câmara Jr., é “A
definição da personalidade em termos linguísticos” (CÂMARA JR.: 1978) estará voltado para
a música; entenda-se o composto: letra e melodia.
11

Pretendo criar um espaço para a reflexão e o aperfeiçoamento da proficiência


linguística, aproveitando o teor estilístico inerente aos textos musicais e atentando para a
expressividade da palavra como base dos processos de construção de sentidos e comunicação.
Tal espaço foi viabilizado a partir das variadas questões teórico- metodológicas que envolvem
a Estilística e seu fornecimento de meios a partir dos quais é possível apreciar as escolhas
linguísticas, os traços ideológicos, psicológicos, sociológicos, geográficos, históricos etc., a
visão de mundo do autor, enfim, tudo o que permita desvelar o porquê dos elementos
utilizados para comunicar e criar o prazer estético da obra.
Aproximo a canção à outra relevante manifestação cultural: a poesia. Muitos filósofos e
estudiosos da linguagem admitem a proposição de que música e poesia surgiram
simultaneamente, expressando os mais diversos sentimentos do indivíduo e da sociedade.
Como exemplo de tal conjetura, temos o canto laborial, o canto guerreiro, o canto religioso e
tantos outros de vieses particular e comunitário. Sem grandes dificuldades, a música tornou-se
um importante meio de disseminação de poesia, portando consigo variadas funções.
Após o paralelo música/ poesia, comento acerca das aplicações pedagógicas do texto
musical, baseando-me em teses que defendem tal prática e em experiências em salas de aula
de turmas do 7ª ano do Ensino Fundamental e 2º ano do Ensino Médio.
Mostro, então, concisas exposições teóricas que me permitiram as possibilidades de
leituras da linguagem de Gonzaguinha. Cabe ressaltar que não pretendi compor uma análise
exaustiva, tampouco considerar as minhas leituras como únicas para o objeto de escolha.
Seleciono para base dessa proposta o instrumental teórico fornecido por Marcel Cressot,
Mattoso Câmara Jr. e, de forma subjacente, José Lemos Monteiro. Trabalho, entretanto, com
concepções de diferentes correntes que suponho complementarem a proposta do trabalho
como o conceito de contracultura, de Antonio Gramci, a partir dos estudos de Marilena
Chauí, e a concepção de poesia, segundo Pedro Lyra.
Assim, almejo uma aproximação, via obra musical, com a personalidade linguística do
cantor e compositor Luiz Gonzaga Jr., para analisá-la em suas peculiaridades.
A obra do artista é exemplar no que tange à utilização de recursos linguístico-
expressivos. Grande parte de suas canções veicula mensagens de crítica social (ora diretas,
ríspidas, mordazes; ora metafóricas, camufladas, irônicas, mas sempre engajadas) e
valorização do povo brasileiro por meio de contrastes semânticos, paralelismos, paradoxos,
repetições, ironias, trocadilhos e tantos outros recursos de cunho fonológico, morfossintático e
lexical participantes dos processos de desencadeamento de conflitos, reflexões e posturas tão
presentes em suas canções feitas para se ouvir e pensar.
12

Ao me decidir por Gonzaguinha, aspiro também a resgatar um artista contemplado por


colegas de profissão e pessoas que viveram sua época, praticamente desconhecido ou
ignorado pelas gerações mais recentes. A escassez de literatura acerca do referido artista é um
dos fatores que mais indica o descaso com um dos maiores compositores e intérpretes
brasileiro. Somente há pouco tivemos a surpresa e o prazer de apreciar uma de suas criações
em abertura de novela em horário nobre: E vamos à luta, música-tema de Duas Caras, da
Rede Globo de Televisão, e re-visitar sua obra com o lançamento da carreira do seu filho
Daniel Gonzaga.
Como professora dos Ensinos Fundamental e Médio da rede Estadual de Ensino,
observo a desatenção com as palavras extremamente poéticas, inconformadas e ainda atuais
do genial artista. Percebo que nem mesmo os livros didáticos consideram adequadamente suas
obras.
Em minhas aulas pude constatar ainda que o contato mais consciente dos mais jovens
com a obra de Gonzaguinha se dá por meio apenas da música O que é, o que e´? (“remixada”
por famosos DJ´s) ou por associação ao nome de seu pai, ainda relembrado durante a época de
festas juninas e outras festas regionais.
Por isso, tento colocar a voz do filho de Luiz Gonzaga no escopo das relevantes
discussões e análises estilísticas, com o fim de realçar seu comprometimento social e estético
e valorizar a Estilística como ciência essencial às abordagens da língua, uma vez que sua
abrangência permite que se tenha como corpus todo e qualquer tipo e gênero de texto,
proporcionando uma pesquisa que passa pelos mais variados níveis linguísticos e gramaticais.
Diante dessas reflexões, desenvolvi a presente Pesquisa, observando primeiramente o
contexto ideológico que envolve e permeia a obra de Luiz Gonzaga Jr., considerando a
palavra como relevante componente musical, uma vez que a mesma é som, produz ritmo e
imagem, e se insere em construções morfossintáticas e semânticas.
Em seguida, a partir das diretrizes expostas, desenvolvi os estudos estilísticos
apontando o caráter enunciativo das canções por meio da articulação dos planos fonológico,
morfossintático e léxico- semânticos, que concorrem para o alcance da compreensão da
mensagem textual.
Dessa forma, intento promover o conhecimento da Língua Portuguesa a partir da
observação atenta das marcas linguísticas do autor, no caso, Gonzaguinha, em seus textos
musicais que envolveram e ainda envolvem o povo, refletindo sobre seu conteúdo. Desejo
ratificar que esse olhar cauteloso aos recursos linguístico- expressivos contribui ativamente à
formação de um leitor mais proficiente e crítico ,principalmente o das produções musicais.
13

1 A MÚSICA E SEUS EFEITOS PRAGMÁTICOS E ESTÉTICOS

São raras, no mundo, as sociedades que não têm a música como uma de suas formas
verbais históricas de expressão e interação. Como a configuração de uma evocação divina,
como elemento de auxílio num ritual de caça ou ainda como meio de diversão, “a música é
uma linguagem por meio da qual uma ideia é mais bem difundida ao longo dos tempos,
segundo FERREIRA (2008, p.9).
Para os pesquisadores mais radicais, o ato comunicativo verbal em si poderia ser
considerado música, uma vez que é formado por sequências de combinações sonoras que
visam ao atendimento de diversos objetivos: persuasão, informação, instrução,
entretenimento, entre outros. Dessa maneira, a canção constitui, por seu suporte, dentre as
modalidades verbais de comunicação, a forma de penetração mais intensa. Fato é que, por tal
capacidade de difusão, ela serve a aplicações variadas como a pedagogia – o ensino em
quaisquer dos níveis–, a cura terapêutica, a celebração, a propagação de ideologias, o louvor,
o estímulo, o prazer.
Especialmente ao trabalho interessam os empregos didático e ideológico relativos à
música. Pretendo mostrar como foram utilizadas as canções de protesto de Luiz Gonzaga Jr.
em salas de aula dos Ensinos Fundamental e Médio. A obra do referido artista é exemplar no
que tange à propagação de ideias e valores, sobretudo, os democráticos, e no que diz respeito
aos usos expressivos dos recursos linguísticos, compondo, assim, um profícuo material para
as aulas de Língua.

1.1 As possibilidades pedagógicas do texto musical

Não é novidade o uso da música como elemento auxiliar ao ensino de outras


disciplinas. Digo outras disciplinas, pois uma coisa é ensinar música e outra é ensinar distintas
matérias, usando a música. A última alternativa é a vertente do trabalho que considera
indispensável o conhecimento de determinados aspectos teóricos referentes à Música –
disciplina – por parte o docente que deseja dispor da música como subsídio às aulas. Assim,
por vezes, definições e exemplos específicos da matéria Música serão evocados
pertinentemente.
14

Além de tornar trabalhos e atividades mais agradáveis e eficientes, a principal


vantagem de se valer da música como alternativa para o ensino é a possibilidade de abertura
de um segundo caminho comunicativo que difere do verbal comumente utilizado. Ademais, a
abstração que a linguagem musical suscita facilita a compreensão dos alunos, desperta e
desenvolve neles sensibilidades mais aguçadas. O contato prolongado com formas musicais –
de acordo com FERREIRA (2008, p.15), em música usa-se a palavra “forma” “para descrever
a maneira pela qual o compositor atinge o equilíbrio, ao dispor e colocar em ordem suas ideias
musicais” – proporciona maior liberdade e segurança por parte dos discentes com textos
diversos, uma vez que as letras de música, independente dos ritmos, apresentam variadas
manifestações linguístico-expressivas e riqueza vocabular participantes do processo de
construção dos sentidos. FERREIRA (2008, p.26) nos esclarece que “A persuasão e eficiência
da música no ensino não se questiona [...] Trata-se de uma arte extremamente rica e que
dispõe de farto e vasto repertório acessível em qualquer lugar.”
Para o melhor aproveitamento das potencialidades do uso de canções em aulas de
Língua Portuguesa, especificamente, são necessários alguns cuidados como, por exemplo, a
abordagem dos ritmos eleitos para o desenvolvimento do trabalho, visto que as preferências
em determinadas faixas etárias são mais acentuadas e podem gerar algum tipo de repulsa
inicial. Os mais jovens, por exemplo, tendem a apresentar certo grau de desprezo pelos ritmos
mais lentos ou regionais. Importante é, nesses casos, indicar, primeiramente, uma ponte entre
a música e o público e não desistir de mostrar aos estudantes alternativas rítmicas, até então,
desconhecidas ou desvalorizadas por eles. Não há, contudo, razão para o total abandono das
preferências musicais da turma. O professor tem de saber dosar, e até negociar, os momentos
oportunos de intercâmbio entre o apresentado na atividade e o esperado pelos discentes, pois
cabe ao mestre orientar seus alunos, de qualquer idade, para que desenvolvam senso crítico
até quando ouvirem canções em momentos de distração.
Em diversas ocasiões, ouvi Gonzaguinha em versões rock, funk e rap para garantir o
estímulo do grupo, e confesso que, por vezes, revelou-se emocionante presenciar versos de
obras como É entusiasticamente proferidas por jovens de 16 e 17 anos. Conseguir resgatar,
com a participação deles, palavras ainda tão atuais, serviu para comprovar o que o
desenvolvimento da ciência sempre nos mostra: os exemplos da necessidade que o Homem
tem de observar e formalizar aquilo que o cerca e o toca. Ademais, no caso particular do
compositor escolhido, pretendeu-se salientar a função social da música, mostrando-a como
poderoso elemento mobilizador de massas, à medida em que promove a disseminação de
15

mensagens, geralmente de viés político, ora explícitas, ora “camufladas” em versos de


estímulo dos mais variados tipos e diversificados ritmos e melodias.
Toda a empreitada teve e ainda tem como um de seus fins o ensino mais prazeroso e
significativo da língua-mãe, assim, requerendo considerações e metodologias pré-definidas.
Como dito anteriormente, há aspectos teóricos acerca da Música a serem efetivamente
tratados como a delimitação de conceitos. Valer-se de FERREIRA (2008, p.38) a fim de
explicar que “a canção é uma forma musical de ordem antiga e profana que funciona como
expressão verbal da letra que a acompanha” é um caminho para aproximar tal arte dos textos
em verso e prosa. O que não quer dizer que se deva fazer uso somente das letras, ignorando os
aspectos musicais como melodia e ritmo. Ao contrário, a união da linha melódica com o
conteúdo semântico do texto pode ser extremamente útil para demonstrações de períodos,
sentidos, mecanismos de coesão e coerência textuais. Atentar para a disposição de frases
musicais (enunciados que, em conjunto, formam um período dentro da melodia) torna-se um
oportuno exercício. Observemos os seguintes versos da canção E vamos à luta:
Eu acredito é na rapaziada
Que segue em frente e segura o rojão
Eu ponho fé é na fé da moçada
Que não foge da fera e enfrenta o leão
Eu vou à luta é com essa juventude
Que não corre da raia a troco de nada
Eu vou no bloco dessa mocidade
Que não tá na saudade e constrói a manhã desejada
(De volta ao começo; 1980. EMI- Odeon/ Lado A, faixa 5)

A primeira frase musical Eu acredito é na rapaziada permite uma complementação


que especifica a rapaziada a qual o eu-lírico se refere, daí o emprego de uma oração
subordinada adjetiva restritiva, segunda frase musical, Que segue em frente, seguida de uma
coordenação que rege o paralelismo e (que) segura o rojão. O mesmo ocorre entre as demais
frases musicais (3ª e 4ª, 5ª e 6ª, 7ª e 8ª), intensificando a limitação das características dos
jovens evocados pela música. O conjunto das oito frases musicais forma períodos dentro da
melodia e funciona como um parágrafo/estrofe de um texto verbal que possui sentido,
coerência e coesão, esta última realizada nas frases em questão, especialmente, pelo uso do
pronome relativo que.
Faz parte da metodologia aplicada a distribuição da cópia da letra da música para os
alunos lerem e, só posteriormente, a ouvirem e/ ou a cantarem. O ideal é que não virem reféns
da melodia da música para que, aos poucos, identifiquem as frases e os períodos musicais.
Após a leitura, os comentários mais comuns giram em torno do conteúdo da obra, seu
sentido global e possíveis interpretações. Em seguida, busca-se associar a construção do
16

sentido aos recursos linguísticos empregados, enfatizando os de maior notoriedade, por seus
efeitos expressivos ou originalidade de uso.
Dentre as falas dos alunos, muitas indicam o cuidado na construção da mensagem,
apontando, assim, para a participação da função poética da linguagem, o que leva, quase
irremediavelmente, aos questionamentos acerca das possíveis semelhanças existentes entre
música e poesia, aproximações tratadas no item seguinte.

1.2 Aspectos poéticos do texto musical

Não é nova e tampouco está encerrada a discussão acerca dos fatores de proximidade
relativos à música e à poesia. Especialistas, poetas, músicos e intérpretes tecem, com fervor,
seus conceitos e julgamentos distintos, instigando, ainda mais os debates. Os descompassos se
manifestam devido à aparente imprecisão do termo poesia e à sua equiparação errônea à
expressão poema. Dentre esses estudiosos, Pedro Lira (1986) apresenta uma minuciosa teoria
acerca da existência de aspectos poéticos; nela baseei as próximas declarações e a pesquisa
como um todo, sem, no entanto, concordar integralmente com o autor.
De início, entendo que poesia e poema são diferentes. A poesia é algo imaterial e
originariamente associado à transitividade do ser. Poema é a realização material, verbal dessa
transitividade, dessa passagem do abstrato ao concreto, portanto, ao aproximarmos poesia e
música não igualamos música e poema, mas apontamos aspectos inerentes à poesia
claramente observáveis na música.
Creio, todavia, que, num segundo momento, “avizinhar” poema – efetivação material
da poesia – e música só corrobora à constatação das características intrínsecas aos conceitos
anteriores: música e poesia. Essa dupla aproximação – via poesia e poema – à música atestará
as confluências das manifestações em questão, aqui consideradas artisticamente.

1.2.1 Poesia e música: características e materializações

Como já mencionado, a poesia tem sua realização efetivada no trânsito do abstrato


para o concreto, ou seja, na passagem da percepção à objetivação. Essa via envolve três
17

aspectos fundamentais: duração (novidade/ antiguidade), magnitude (grandeza/ pequenez) e


aparência (beleza / feiúra).
Novidade e antiguidade se manifestam no aspecto duração, e ambas podem apresentar
feição positiva ou negativa; entre elas, a novidade tende a ser mais atrativa, já que o Homem
possui a necessidade de desenvolvimento e mudança constantes. De acordo com LIRA (1986,
p.12), “A nossa própria existência é uma constante busca do novo.”. Assim, “a beleza de uma
música delicia a quem a ouve pela primeira vez, pela segunda, pela terceira, mas a repetição
indefinida transforma-a num eficiente instrumento de tortura.”, ainda segundo LIRA (1986,
p.12). Nem sempre a inovação proporciona teor somente positivo. Há momentos em que o
radicalmente novo assusta, não gera reconhecimento e, por isso, pode ser rejeitado. O mesmo
ocorre com a antiguidade que, a princípio, é taxada como tediosa, mas que pela carga de vida
acumulada, fascina ao trazer em si pontos importantes de determinada época.
Na música Fliperama (Cavaleiro Solitário (Disco póstumo). Ao vivo; 1993. SOM
LIVRE/ CD e LP/ Lado B, faixa 4), o valor poético é percebido por meio da carga negativa
associada à possível volta de algo superado, indesejado (ícones da ditadura/ antiguidade) que
impede a afirmação do novo (democracia/ novidade):
Meu filho atropelava meu delírio
Apontando a entrevista do velho general
Personagem vencido noutras guerras
Fantasma daqueles velhos carnavais

Grandeza e pequenez se revelam como aspectos espaciais da magnitude, e as duas


podem exprimir teor positivo ou negativo, sendo, inicialmente, a grandeza o aspecto mais
afirmativo do ser, uma vez que, considerando LIRA (1986, p.21), “Ninguém quer ser
pequeno: ninguém gostaria de restringir ou limitar sua existência”. Ela pode-se mostrar
negativa, no entanto, quando associada a um aspecto aterrorizante como um grande monstro,
por exemplo. O mesmo acontece com a pequenez que, a princípio, é percebida como algo
negativo, mesquinho, mas que admite valor positivo, se associada a sentimentos como
modéstia, humildade e resignação.
Gonzaguinha promove, repetidamente e em distintas músicas, o embate entre a
grandeza dos sonhos de homens de bem e a pequenez de homens-verme:
Quando o tempo é de armação, mantenha firme a sua mão
Mantenha aceso o seu coração
Mantenha a alegria que você já é
Não deixe que lês venham destruir: seria destruir o amor!
(Acalma. Disco: Corações marginais; 1988. Moleque- WEA/ Lado B, faixa
4)

Assim não dá, não é mole não


Eles entram com o trem da alegria
18

E a gente com a cara pro bofetão!


[...]
Tá na hora da gente comer também (e segura o Leão!)
Eles trabalham pra gente, a gente é que bota eles lá
E quem bota deve ter o direito de tirar
Anota o que eu vou te falar, escreve
É um recado pequeno, é breve:
Desrespeitar meu amor ninguém se atreve
Se você não me valorizar, eu faço greve!
(Geral. Disco: Geral; 1987. EMI-Odeon/ Lado B, faixa 4)

Não vamos deixar ninguém atrapalhar a nossa passagem


Não vamos deixar ninguém chegar com sacanagem
Vam’bora que a hora é essa e vamos ganhar
Não vamos deixar “uns e outro” melar
(O homem falou. Disco: Olho de lince; 1985. EMI-Odeon/ lado B, faixa 1)

Beleza e feiúra são abrigadas no aspecto aparência, a primeira o viés mais atraente,
fascinante ao homem. Obviamente, esses conceitos de teor altamente subjetivo ainda causam
embaraço quanto aos valores positivo e negativo: às vezes, o belo é tão perfeito que
desencanta (valor negativo), e o feio pode ser simpático e exercer, então, atração (valor
positivo). O que não deixa dúvidas é a maior recorrência de relações estabelecidas entre o
belo e o prazer; LIRA (1986, p.30) nos esclarece que o “belo é o aspecto de tudo aquilo que,
pela proporção e harmonia de suas formas e através do olho/ ouvido ou da imaginação/
recordação, produz na sensibilidade uma sensação de prazer.”. A poesia tende, então, a se
concentrar na negatividade (feio), principalmente, porque os poetas são provocados pelos
aspectos negativos do ser, daí a motivação para as criações de poesias de combate e denúncia.
Luiz Gonzaga Jr contemplou o belo e o feio por meio das figuras, respectivas, do povo
brasileiro e sua essência e da irresponsabilidade dos Governantes:
E aprendi que se depende sempre
De tanta, muita, diferente gente
Toda pessoa sempre é as marcas
Das lições diárias de outras tantas pessoas!
É tão bonito quando a gente entende
Que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá!
É tão bonito quando a gente pisa firme
Nessas linhas que estão nas palmas de nossas mãos!
É tão bonito quando a gente vai à vida
Nos caminhos onde bate mais forte o coração!
(Caminhos do coração- Pessoa= pessoas. Disco: Caminhos do coração;
1982. EMI- Odeon/ Lado B, faixa 5)

Donas de casa, custo de vida


Desempregados e filas do INAMPS
Brasil vai ao fundo e agradece
Abertura, carne, fartura, liberdade vigiada
Sobem no palco e apresentam show variado
(Todo boato tem um fundo musical. Disco: Alô, Alô, Brasil; 1983. EMI-
Odeon/ Lado A, faixa 3)

Pedro Lira resume (1986, p.85) as relações dos aspectos aludidos:


19

a possível exigência de beleza no poema limita-se à área instrumental da


expressão (ritmos, imagens, formas) (...) a de grandeza limita-se à área
substancial dos conteúdos (sentimentos, pensamentos, atitudes) (...) exige-se
novidade de expressão e novidade de conteúdo- o que comprova, mais uma
vez, a identificação radical entre poesia e novidade.

Nesse sentido, Gonzaguinha cantou belamente a grandeza e a pequenez existentes no


Brasil representadas, respectivamente, pelo povo e pelos Governantes, bem como tratou da
novidade (democracia), buscando a superação da antiguidade (ditadura), motivado pelo feio.
Vale esclarecer que as obras de Luiz Gonzaga Jr. são poéticas não somente pela
presença de novidades/ antiguidades, grandezas/ pequenezes, belezas/ feiúras, mas por
abarcarem os aspectos de transitividade: aparência, magnitude e duração. O poético,
portanto, comporta pólos opostos. Segundo Vinícius, “O material do poeta é a vida, e só a
vida com tudo o que ela tem de sórdido e sublime. Seu instrumento é a palavra.”(LIRA, 1986,
p.77) Assim, tanto o Estado autoritário como o sentimento mais heroico e resistente são
igualmente poéticos. Não é ousado dizer que o filho de Luiz Gonzaga foi um poeta completo,
capaz de abarcar (perceber e objetivar) os pólos da poesia existente no mundo.
Tratou da positividade dos momentos de vida e da negatividade dos momentos de arte,
uma vez que a poesia, elucida-nos LIRA (1986, p.82), “se concentra com maior apelo na
negatividade”, devido ao sentimento de insatisfação gerado pelo negativo, que provoca um
impulso modificador no sentido de o Homem superá-la, conduzindo a uma prática cultural.
Gonzaguinha sentiu tais insatisfação e impulsos, e realizou a cultura como poucos em suas
composições.

1.2.2 Poema e música: semelhanças e contribuições

Conforme apregoado anteriormente, outra maneira cabível ao processo de vinculação


entre poesia e música se dá por meio de observações acerca de congruências entre a realização
material e linguística da poesia – o poema – e suas relações de similaridade ou parceria com a
música.
Cláudia Neiva de Matos, em seu artigo Poesia e Música: laços de parentesco e
parceria, faz um estudo de caráter histórico sobre as proximidades existentes entre poesia e
música (considerando, clara e perceptivelmente, a primeira em sua manifestação escrita, ou
seja, poema; portanto, nas equações e expressões, deve-se entender poema em vez de poesia).
20

Neste trabalho, a autora aponta a voz humana como cerne capaz de explicitar semelhanças e
contribuições mútuas entre os conceitos e concretizações aludidos. Baseada em tal essência,
norteei as próximas explanações.
Ao trabalhar as similaridades dos atributos e poderes equivalentes a poema e música,
Matos estabelece a equação poesia (=poema)≈música (equivalência) de modo a distingui-la
dos processos de articulação entre texto poético ou verbal e música, representados pela
expressão poesia (=poema)+ música (parceria). Dessa maneira, expõe as principais formas
como música e poesia se vinculam e/ou complementam na consumação de eventos de palavra
cantada, por intermédio de um terceiro e crucial fator: a voz humana. Segundo MATOS
(2008, p.83), a ligação básica entre palavra poética (poema) e expressão musical é
concretizada a partir da conjugação de “linguagem e melodia enlaçadas pelos ritmos da
respiração convertida em voz”. Ainda de acordo com ela, “a intervenção ativa da voz humana
é o que possibilita, o que verdadeiramente anima a presença da música na linguagem verbal e
vice-versa”. A essa proposição pode-se acrescentar contribuições de Jean-Jacques Rousseau,
que identificou no canto a matriz de toda linguagem. Para ele (apud MATOS, 2008, p.86), “a
cadência e os sons nascem com as sílabas: a paixão faz falar todos os órgãos e confere à voz
todo o seu brilho; assim, os versos, os cantos, a palavra, têm uma origem comum”. Vale
lembrar que a voz servia musicalmente às situações de difusão do discurso poético quando o
mesmo ainda não era “literatura”, ou seja, quando ainda não se concretizava por meio do
registro escrito.
Ratificando as relações e convivências entre poema e música, Octavio Paz (1982,
p.83-84) e Paul Valéry (1999, p.203-204) sugerem que as prosas narrativa e dissertativa são
de linguagem que avança, caminha com prosseguimento constante e adiante; o verso, por sua
vez, é linguagem que baila ao redor. Neste sentido, carece da música para efetivar plenamente
sua essência dinâmica e sonora.
Ponderando os subsídios de Rousseau, Paz e Valéry, percebe-se que a palavra lírica e a
música mostram-se configuradas de modo a desempenhar seu objetivo essencial: manifestar
as percepções mais inexprimíveis e densas da experiência anímica (poesia/poema≈música).
As duas são capazes de explanar profunda e intensamente sobre e à alma – ao espírito
humano. A música, no entanto, o faz de forma mais “competente”, ao transpor fronteiras
linguísticas e históricas devido, segundo MATOS (2008, p.86), “ao seu caráter de linguagem
universal dos afetos”.
Ainda nesse movimento de similaridade e equivalência entre poema e música, pode-se
observar o entusiasmo criador musical do poema e a motivação literária para o engenho da
21

música. O dramaturgo Friedrich Schiller (apud LOBO, 1987, p.132) anunciava que uma
disposição musical antecedia suas ideias poéticas. Em contrapartida, seu colega Friederich
Schlegel (apud LOBO, 1987, p.132), afirmava que várias composições musicais consistiam
em simples traduções de poemas, mas em linguagem musical.
Enquanto a equação poema≈música envolve, ontologicamente, as analogias
intrínsecas às referidas manifestações, a expressão poema+música revela a co-participação
destas nos processos de interação sensível e comunicativo. Cabe apontar, como exemplo desta
última ocorrência, a “modinha” no Brasil do século XIX, que musicou desde textos anônimos
até obras de poetas como Olavo Bilac, Castro Alves e Gonçalves Dias.
Nos dois eventos: similaridade (poema/poesia≈música) e parceria
(poema/poesia+música), há o delineamento de um projeto estético, as ambições
comunicativas, porém, destoam. Conforme MATOS (2008, p.95), “as operações interativas -
parcerias- entre poesia e música respondem geralmente a uma ambição de significar, reforçar
mutuamente a comunicabilidade, o alcance expressivo das duas linguagens”. Ainda segundo
MATOS, a versão da existência das afinidades presentes entre elas –equivalências, por outro
lado, relaciona-se às questões de “pureza e de radicalidade da obra de arte”.
PAZ (1982, p.98-99) resume e encerra, muito adequada e oportunamente, essas
relações e realizações de equivalência e contribuição ao dizer que “A analogia é a linguagem
do poeta. Analogia é ritmo”; ou seja, o autor vinculou um elemento sensível (ritmo) a outro de
viés semântico (analogia), revelando uma ligação que considerou, simultaneamente, a
similitude (poema≈música) e a soma (poema+música) entre som e sentido. Estes, adaptados
harmonicamente, são projetados, de acordo com MATOS (2008, p.96), “numa dimensão
cosmológica, na qual se encontram sincronizadas, unidas desde sempre
(parentesco/similaridade) por um laço que todavia está a refazer-se na voz humana (parceria),
a poesia e a música”.
22

2 GONZAGUINHA E SEU TEMPO

2.1 O contexto ideológico

Após turbulentos anos “getulistas”, o Brasil viveu uma década e meia de democracia
calcada na Constituição de 1946. Posteriormente, o governo de Juscelino Kubitschek trouxe a
tônica do desenvolvimento para o país. A criação de Brasília e a sua inauguração, no ano de
1960, representam esse processo de incrementos, ampliações e mudanças consideráveis que
propiciaram novas condições para a produção cultural no país. Destacam-se, então, vários
artistas de vanguarda em diversos campos, como Glauber Rocha e Ruy Guerra no cinema,
João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Moraes na música com a bossa nova, Oscar
Niemeyer e Lúcio Costa inovando a arquitetura.
A década de 60 foi marcada pela efervescência no campo sócio-político brasileiro.
Tornaram-se evidentes a consciência política e o desejo popular de participar ativamente dos
rumos do país. Os movimentos estudantis se intensificaram e agiram junto com a nação,
criando, por exemplo, os Centros Populares de Cultura (CPCs), da União Nacional dos
Estudantes (UNE). Destacaram-se também a mobilização da classe operária e dos
agricultores, que lideraram o movimento sindical em torno da Confederação Geral dos
Trabalhadores (CGT) e as Ligas Camponesas. Estudantes, organizações populares e
trabalhadores ganharam espaço, causando a preocupação das classes conservadoras que
envolviam empresários, banqueiros, Igreja Católica, militares e a classe média. Estes grupos
temiam uma guinada do Brasil para o socialismo.
Definitivamente, as organizações populares não agradaram aos militares que tomaram
o poder, ilegalmente, em 1º de abril de 1964, assegurando que iriam enfrentar a subversão e
garantir a ordem democrática. Tal fato viria modificar radicalmente as estruturas do país
durante os anos seguintes. Iniciava-se a ditadura militar brasileira, o período que se estendeu
de 1964 a 1985 e caracterizou-se pela suspensão da democracia nas bases governamentais;
supressão de direitos constitucionais; censura; perseguição política e repressão aos que
contestavam o regime militar.
No princípio de tão promissora e conturbada era, que modificou sócio, político e
economicamente a sociedade brasileira, o adolescente Luiz Gonzaga do Nascimento Jr., ou
Gonzaguinha, nascido em vinte e dois de setembro de mil novecentos e quarenta e cinco,
23

começa a revelar sua veia criadora ao compor, em fins dos anos 50, a que foi considerada sua
primeira canção: “Lembrança de primavera”, gravada por seu pai, o mestre Luiz Gonzaga,
um dos maiores expoentes da música popular brasileira.
O menino criado pelos padrinhos no morro de São Carlos, no bairro do Estácio,
conviveu com a miséria, a falta de infra-estrutura e todas as dificuldades de uma favela, mas
aos dezesseis anos foi morar com o pai para dar continuidade aos estudos. Durante seu curso
universitário, manteve contato com outros músicos novos como ele e integrou o grupo MAU
(Movimento Artístico Universitário) junto com Ivan Lins, Aldir Blanc e César Costa Filho. É
a gênese, irreversível, de uma carreira destemida, passional, agressiva e, ao mesmo tempo
doce, de um dos ícones da história cultural deste país.
Junto a outros autores pertencentes à chamada cultura de protesto ou contracultura
(termo conceituado em breve), como define Marilena Chauí, artistas como Gonzaguinha,
Chico Buarque, Caetano Veloso, Francis Hime e Gilberto Gil afinam seus instrumentos e se
posicionam contra o regime no poder. Luiz Gonzaga Jr., um dos mais inflamados em seus
desabafos e denúncias, ganha a fama de “cantor-rancor”.
Os militares passaram a governar o Brasil, estabelecendo Atos Institucionais, isto é
decretos criados como mecanismos de legitimação das ações políticas e que vieram fundar
diversos poderes extra-constitucionais. Em realidade, os AIs eram um mecanismo para manter
na legalidade o domínio dos militares, já que sem tal engenho, a Constituição de 1946 tornaria
irrealizável o regime. Assim, ocorreu a necessidade de substituir a Constituição por decretos-
mandato a cumprir, ou seja, tais dispositivos não possuíam adequada fundamentação jurídica
e concediam poder absoluto ao Executivo. Eles justificavam e legalizavam quaisquer
arbitrariedades cometidas pelo governo. Gonzaguinha e outros artistas experimentaram a
repressão e os castigos físicos militares.
O pior ainda estava para acontecer com o surgimento do ato institucional mais radical
e severo de todos, o AI-5, decretado em 13 de dezembro de 1968, que determinava a
intervenção do presidente nos estados e nos municípios sem a necessidade de respeitar os
limites impostos pela constituição. O governante poderia também cassar qualquer mandato
eletivo, confiscar os bens de quem julgasse que tivesse enriquecido de forma ilícita e
suspender a garantia de habeas corpus de qualquer um.
No dia da promulgação do AI-5, o Congresso entrou em recesso forçado por tempo
indeterminado. Imediatamente, prenderam diversos jornalistas e políticos contrários ao
governo, inclusive Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda.
24

Depois disso, ainda houve a criação de um ato institucional que possibilitava até
mesmo a pena de morte por fuzilamento. Estudantes, artistas, intelectuais e jornalistas foram
presos como inimigos do regime, muitos deles torturados, assassinados ou exilados fora do
país. Nenhuma manifestação contra o governo foi tolerada, nem um comício ou uma simples
conversa entre amigos numa mesa de bar.
No início da ditadura, porém, não se sentiram imediatamente os efeitos relativos à
censura cultural, nem os estudantes e artistas prontamente reprimidos. Após 1964, as
atividades artísticas, principalmente no teatro, intensificaram-se; eis que se deu o surgimento
de grupos como o Teatro de Arena e o Oficina, o que acentuou um caráter nacionalista na
arte.
Posteriormente, entre 1965 e 1968, o movimento musical aumentou e se ativou
densamente com a denominada Era dos Festivais. Gonzaguinha destacou-se com resultados
expressivos nesses eventos. Finalista em 68 no I Festival Universitário com a canção Pobreza
por pobreza; primeiro e quarto lugares, em 69, no II Festival Universitário com O trem e
Mundo novo, vida nova; quarto lugar no VI FIC com Sanfona de prata. A partir daí, seguiram-
se as gravações de três compactos simples e dezesseis LPs. As canções de protesto
demonstraram relevância, vindo a contestar a insana sociedade que se apresentava. Vários
músicos foram acuados pela ditadura nesse período.
É no governo de Medici, entretanto, que a perseguição mais se intensifica no
quotidiano dos cidadãos. Implantou-se a “política do desaparecimento”, com que o referido
presidente iniciou uma verdadeira “caça às bruxas”, prendendo, torturando e exilando muita
gente.
A censura dos anos de chumbo logo alcança o teatro, a TV e o cinema, a música e
também as universidades, o que eliminou quase totalmente a chance de germinar uma cultura
crítica no país. Pode-se dizer que “o AI-5 foi um golpe dentro do golpe, um golpe de
misericórdia na caricatura de democracia. Caímos, aí sim, na clandestinidade” segundo
Gabeira (apud VIEIRA, 2001).
Frente a esses fatos e com o endurecimento cada vez mais grave da censura, a
sociedade se vê dividida em dois pólos: um que defende a luta armada e outro que apoia a
convivência com o governo.
Gonzaguinha não se declarou a favor do confronto armado, mas chegou a adotar o
discurso da luta, da insubmissão e assumiu sua confiança no potencial do povo brasileiro.
Os que acham possível a redemocratização sem o uso das armas usam o bordão “o
povo unido derruba a ditadura”. A segunda vertente proclama que “o povo armado derruba a
25

ditadura”. A realidade é que, mesmo seguindo caminhos opostos, ambas as coligações


contestavam o regime, logo, sua classificação como “subversivas”. Tanto o primeiro quanto o
segundo grupo constataram que, com as medidas impostas pelos militares, pessoas eram
perseguidas, assassinadas, exiladas, presas, torturadas ou, simplesmente, desapareciam.
A trajetória dos militares no governo trouxe, contudo, resultados mais favoráveis que
desfavoráveis, do ponto de vista econômico. Primeiramente, o governo Castelo Branco,
através de Roberto Campos impôs uma rígida disciplina ao sistema administrativo e
financeiro. Depois, no governo Médici, aconteceu o chamado “milagre brasileiro”, com taxas
de desenvolvimento a 8%. A ponte Rio- Niterói, a usina de Foz de Iguaçu são alguns dos
êxitos do período. No governo Geisel, o Brasil contornou a crise internacional do petróleo e
consolidou a Petrobras. Entretanto, os sucessos econômicos não conseguiram mascarar a
violência aos princípios democráticos.
Tudo culminou por repercutir no setor cultural. A exemplo do que aconteceu com a
sociedade, que se dividiu em “guerrilheiros” e “diplomatas”, os artistas, outrossim, se
separam em grupos, tomando posições diversas no modo como realizaram seus protestos.
Na música, especificamente, pôde-se notar bem clara tal divisão. De um lado, os que
buscaram um confronto direto ao regime, questionando e criticando abertamente a realidade
da sociedade; de outro, os que utilizaram os recursos da linguagem para velar suas mensagens
de modo subliminar nas canções. Ainda que ovacionados pelo público, foram dura e
extremamente reprimidos pela censura.
Muitos sofreram o exílio compulsório, outros se exilaram por vontade própria a fim de
se preservarem, porém houve aqueles que persistiram em sua empreitada ideológica, mesmo
sob a vigilância militar. Continuaram seu trabalho de formação de juízos, com destreza e
resolução, driblando uma censura que era bem menos astuta do que se fazia acreditar. Como
exemplos corajosos temos os nomes de Sérgio Ricardo, João Bosco, Aldir Blanc e Fernando
Brant que não deixaram que sua arte se mostrasse um simples organismo de distração e
apreciação estética. Artistas que adotaram a cultura também como meio de formação e
informação, ao mostrar e discutir abertamente a realidade do país.
Luiz Gonzaga Jr. engrossou o coro dos inconformados com sua voz e percepção
únicas. Revelou considerável sensibilidade ao divulgar o que sua infância, juventude e
maturidade haviam apreendido desde o âmbito mais limitado do seu ambiente até as questões
internacionais que envolviam o país. E explanou tais percepções com lirismo, uma vez que
possuía a propriedade do cronista-poeta insubmisso e descontente com o que presenciava e
26

experimentava. Ademais, demonstrou acentuada consciência estética e pragmática de seu


papel artístico:
A música não faz a revolução, nosso poder é o de encantar, informar, alegrar
e, em determinados momentos, formar. Podemos fazer política sem ser
políticos. Mas, não somos os donos do país, somos regidos por um sistema,
de acordo com ele ou não. (Veja, 26/09/79 apud VIEIRA, 2001)

Suas músicas são a realização desse modo de “fazer política” que retratou de forma
sutil (ainda atual) e inteligente o pensamento do povo brasileiro, cujo plano de vida incorpora
valores contraditórios, mas que cada um, à sua moda, sabe sintetizar. Família, trabalho,
botequim, roda de samba, carnaval, luta pela pátria, tudo o que sabemos incluir na realidade
cotidiana. Cabe lembrar que Gonzaguinha era um apaixonado pela nação brasileira. E suas
canções refletem essa veneração, ora com defesas calorosas, ora pela valorização da auto-
estima popular, ressaltando qualidades dos brasileiros, ora conclamando cada cidadão à luta.
Ademais, esse “fazer político” também ocorreu em outras áreas da cultura. A situação de
miséria desse povo, sem direitos mínimos, que Gonzaga Jr. amou e cantou também foi
mostrada nas telas do cinema em trabalhos como os de Cacá Diegues e Glauber Rocha.
Vale apontar que, durante a primeira metade dos anos 70, enfraqueceu-se a divulgação
das manifestações culturais expressivas, inclusive na imprensa, submetida à censura prévia.
Ainda assim, todas as contradições políticas e econômicas tiveram reflexos no campo
sociocultural, o que veio afetar enormemente a qualidade da cultura brasileira, que se mostrou
ainda criativa e inovadora, lançando diversos artistas, entre músicos, cineastas, escritores e
uma classe intelectual altamente reativa.
Gonzaguinha, então, acentua sua férrea oposição a tudo e todos que contrariavam os
valores da democracia. Segundo Regina ECHEVERRIA (2006, p.167), na obra Gonzaguinha
e Gonzagão, em seu primeiro LP, os problemas entre o cantor e a censura tornaram-se uma
realidade:
Para gravar o disco, mandou 28 músicas para o Departamento de Censura
Federal. Voltaram apenas nove. O episódio de maior afronta pública com as
forças reacionárias da época aconteceu durante a exibição do programa Flávio
Cavalcanti. Gonzaguinha apresentou-se com a canção Comportamento Geral, no
dia 4 de fevereiro.
O corpo de jurados reagiu indignado. E, um deles, falou sem a menor
vergonha:
— Num momento em que se começa a reforma agrária para a redenção do
Nordeste, é um absurdo divulgar uma mensagem tão negativista.
27

Outro episódio que merece destaque ocorreu no período de transição democrática,


após a derrota da Emenda Dante de Oliveira, que sepultou as esperanças do Brasil de votar
para presidente. Gonzaguinha (ECHEVERIA 2006, p.250) desabafou:
— Não deixo de estar atento a essa caminhada política que nós, que lutamos
pelas Diretas, somos obrigados a empreender, contraditoriamente política,
desde 1964, distanciou-se cada vez mais do povo e tornou-se repugnante.
Mas sei que ninguém faz nada sozinho. O nós é mais importante do que o
eu. Por isso continuo na luta, cantando, falando, criticando. Mas não
deixando de atuar.

Essa foi a relação constante entre o filho do rei do baião e o governo.


A face de Gonzaguinha espelhou o discurso engajado de suas letras. Suas
composições dramáticas, irônicas, esperançosas e animadoras eram feitas para se ouvir e
pensar. Suas palavras de ordens, inconformadas e revolucionárias, reproduziram alto teor
confessional e combateram os absurdos da política brasileira. O bardo também usou bom
humor e descontração em letras como A Felicidade bate à sua porta em fins dos anos 70 e
emocionou os românticos com canções “do coração” como Começaria Tudo Outra Vez.
Sucessos imortalizados por cantores como Maria Bethânia, Cauby Peixoto, Zizi Possi, Elis
Regina, Simone e grupos como As Frenéticas, Quarteto em Cy e outros.
No início dos anos 80, ainda que com o abrandamento da censura militar, a
insatisfação geral se intensificou: recessão econômica mundial; desajuste e crise no
capitalismo; o ingresso do Brasil no patamar da inflação de três dígitos (110,24%); as
manifestações de rua; a rejeição pelo Congresso da emenda das eleições diretas, em 84;
eleição e morte, um ano depois, de Tancredo Neves; o governo Sarney; o Plano Cruzado, em
86; a série de tentativas para conter a inflação; e, somente em 88 a promulgação da atual
Constituição. Neste contexto, obras como E vamos à luta, A marcha do povo doido, Eu
entrego a Deus, Geral, É e Acalma ratificaram o viés comprometido do artista e consolidaram
os traços de desagrado e insubmissão gonzaguianos.
Ao presente trabalho interessam, especial e especificamente, essas chamadas
composições de protesto que, além de denunciarem os desmandos da época, nos ofertaram
lições poéticas de valorização popular e ânimo para a conquista da cidadania consciente e
plena, por meio do uso criativo, diversificado e único da linguagem. Músicas de um autor
que, dos erros dos governantes, construiu um discurso que honra a cultura brasileira, estima e
celebra ativamente seu povo e enaltece os valores da democracia. Em 29 de abril de 1991,
durante a turnê Cavaleiro Solitário, um acidente automobilístico calou uma das mais
28

corajosas vozes do cancioneiro brasileiro.

2.2 O conceito de contracultura

Considerando o papel crítico adotado pelas canções de protesto do período descrito, é


possível compreender a produção artística da época, especialmente a obra de Gonzaguinha,
pelo conceito de contracultura criado por Antonio Gramsci 1 na perspectiva das análises
marxistas, e debatido, no interior das ciências sociais brasileiras, por Marilena Chauí (1990).
Em seu trabalho denominado Cultura e Democracia, Chauí tenta explicitar a forma
pela qual a classe dominante é capaz de exercer e justificar o seu poder sobre as demais
classes sociais, levando em consideração o papel do Estado como produtor da "vontade
geral", ou seja, aquele que deve divulgar a ideia de unidade social, combatendo as
manifestações que revelem diferenças ou contradições no interior da sociedade supostamente
homogênea. A autora afirma, citando Gramsci, (CHAUÍ, 1990, p.90) que a hegemonia é uma
direção geral (política e cultural) da sociedade, um conjunto articulado de práticas, ideias,
significações e valores que constituem o sentido global da realidade para todos os membros
da sociedade, sentido experimentado como absoluto, único e interiorizado. "Sob esta
perspectiva, hegemonia é sinônimo de cultura em sentido amplo e, sobretudo, de cultura em
sociedade de classes.". Logo, pode-se falar em uma contra-hegemonia, ou contracultura, por
parte daqueles que resistem à interiorização da cultura dominante.
Marilena acredita que o grupo dominante (capitalista) tem como base separações que
servem para manter a exploração e a dominação de classes: separação entre trabalhador e
instrumentos de trabalho; separação entre produção e consumo; separação entre trabalho
manual e intelectual; separação entre os dirigentes "competentes" que têm o controle técnico-
científico do processo de trabalho e a execução do trabalho pela maioria "incompetente". E é
para negar essas divisões no interior da sociedade que a sociedade necessita da construção de
"pólos imaginários de identificação: o direito, a lei, o povo soberano, a nação soberana, o
Estado nacional, a família, a ciência, a arte, a religião, a organização etc." (1990, p.110).
Assim, a hegemonia determina o modo como "os sujeitos sociais se representam a si mesmos

1
Durante os anos de reclusão, Gramsci escreveu 33 cadernos escolares, nos quais 29 compõem a primeira edição de sua
obra publicada na Itália, entre 1948 e 1951. No Brasil, a tradução da obra gramsciana ocorreu na década de 1960 e a edição
completa dos “Cadernos do Cárcere” foi publicada pela primera vez em 1999.
29

e uns aos outros, o modo como interpretam os acontecimentos, o espaço, o tempo, o trabalho
e o lazer, [...], o que Gramsci designa como visão de mundo.”(1990, p.90)
Nesse contexto, a ideologia dominante tem a função de anular efetiva e definitivamente
a existência de lutas, de divisão e de contradições na sociedade, construindo uma imagem
homogênea e harmoniosa do todo social. Isso é possível quando o sistema de ideias
dominador faz com que o ponto de vista particular de classe apareça para toda a sociedade
como valor universal, e não como interesse particular de uma determinada camada. Desta
forma, a violência da dominação de classe deve ser substituída pela ideia de imagem unificada
da sociedade – a ideia de que o Estado representa toda a sociedade e de que todos os cidadãos
estão representados nele.
Para a construção de tal unificação imagética, buscou-se: calar as vozes contrárias a
esse pseudo “todo-social” imposto e simular um embasamento científico que justificasse
racionalmente a dominação. A ciência como conhecimento técnico se constituiu numa das
principais armas da dominação de classe, pois, a partir de seu discurso racional, lógico, o
homem, conforme CHAUÍ (1990, p.13), "passa a relacionar-se com o seu trabalho pelo
discurso da tecnologia, a relacionar-se com o desejo pela mediação do discurso da sexologia,
[...], a relacionar-se com a criança por meio do discurso pedagógico e com a natureza por
meio do discurso ecológico". O prestígio da ciência serviu e ainda serve como critério de
diferença entre a cultura que conhece a verdade (cultura dominante) e a cultura dominada
(lugar do não-saber). A ciência produz uma ideia de que a sociedade possui um
funcionamento racional e lógico. Na medida em que esse funcionamento lógico é abalado,
surge uma situação de crise que é vista como uma desordem do mundo real que põe em perigo
a ordem ideal. Isto significa que qualquer acontecimento que venha a contrariar a norma ou a
lei é encarado como desvio, como engano ou acidente. O desvio, segundo a ideologia
dominante, ameaça igualmente a todos, na medida em que existe um interesse comum a ser
preservado por uma coletividade supostamente homogênea. Portanto, o combate aos desvios
torna-se essencial à manutenção da ordem e, consequentemente, à preservação do Estado. Nas
palavras da autora (1990, p.52): "O discurso sábio e culto, enquanto discurso do universal,
pretende unificar e homogeneizar o social e o político, apagando a existência efetiva das
contradições e das divisões que se exprimem como lutas de classes". Com esse “apoio
científico”, torna-se fácil encarar os dominantes como simples detentores do saber e não mais
como proprietários dos meios de produção e do aparelho do Estado. A cultura dominante,
pautada na ciência (portadora da verdade), se coloca como a única capaz de compreender e
organizar o mundo. Teoricamente, a "falta de cultura" e a "ignorância" do povo passam a
30

justificar a dominação e o controle pelos “preparados”, sendo qualquer forma de resistência


vista como irracional, pois estaria lutando contra a própria verdade (científica).
Assim, percebe-se que a função de tal engenho cultural é antidemocrática, pois pretende
impedir o acesso pleno à cultura, tanto no nível do consumo como no nível da produção. A
situação econômica decide o que cada um pode consumir e ter acesso. A indústria e a censura
filtram a produção cultural, não permitindo a divulgação das produções que se erguem contra
as orientações vigentes.
Neste sentido, os ideais de modernização, sob censura e repressão, implementados
pelos governos militares, foram traços significativos da cultura dominante do Brasil nas
décadas de 60, 70 e início dos anos 80. Os dirigentes do país tinham como meta política
desenvolver a economia do país com base na internacionalização, industrialização e
urbanização incessante (vieses capitalistas), estabelecendo governos ditatoriais para reprimir
os movimentos sociais populares que contestavam esse tipo de modernização por seus efeitos
e formas de implantação.
Dessa forma, esta pesquisa intenta apresentar letras de músicas de Luiz Gonzaga do
Nascimento Jr. como parte da produção contracultural que articulou a oposição popular aos
governos e aos modos de realização dos ideais de modernização, exigindo formas sociais e
liberdades políticas que permitissem ao povo beneficiar-se do desenvolvimento econômico,
bem como a participação deste num Estado verdadeiramente democrático, onde a informação
circula livremente, percorre todos os níveis da atividade social, enriquecendo-se ao circular,
numa circulação não de consumo, mas de produção da própria informação. Isso ilustra que a
cultura deve ser sinônimo de coisa pública, não só por todos terem direito de acesso ou
consumo, mas pela possibilidade de qualquer um produzir cultura, conhecimento e saber. A
sociedade genuinamente democrática trabalha com construções ativas e se difere das
"democracias" capitalistas em geral, pois nestas últimas o poder do povo estaria garantido no
espaço limitado da opinião pública e no plano restrito das possibilidades de escolhas (escolha
do representante político, dos produtos consumidos, etc.).
Contra os desmandos econômicos e atos de violência, de opressão, de censura, e de
tortura implantados pelos Governos (grupos dominantes, autoritários, ou não) a produção
musical de Gonzaguinha cantou a força do povo brasileiro, bem como sua insatisfação,
indignação, anseios de liberdade, de amor, de justiça, de democracia plena e de paz.
31

3 A ESTILÍSTICA E O ESTUDO DA EXPRESSIVIDADE

Conforme mencionado na introdução, o presente trabalho tomou por base a acepção de


estilo de Mattoso Câmara Jr. (1978) “A definição da personalidade em termos linguísticos”,
uma vez que se propôs a apreciar os traços típicos da personalidade linguística de Luiz
Gonzaga do Nascimento Jr. a partir de suas canções. Em diversos momentos, entretanto,
perceber-se-ão outras vertentes que tratam desse termo (estilo) como desvio de norma,
escolhas e ajustes realizados dentre possibilidades variadas, oposições e confluências entre o
intelectivo e o emocional, ou mesmo o contraste entre o que é individual em face do coletivo.
Acreditando que, no decorrer desse estudo, tal termo se delineará naturalmente,
tornou-se preocupação maior apresentar e definir os contornos da Estilística como ciência da
expressividade, bem como suas profícuas contribuições às observações de cunho linguístico,
pois se conhecem as polêmicas ainda existentes sobre a valorização da referida ciência, por
conta das dessemelhantes correntes que nela se contrapõem e complementam.
A Estilística, tal como hoje se caracteriza, é uma ciência nova. Charles Bally a
inaugura em 1902 e, desde então, com a participação de outras diferentes e relevantes figuras
como Leo Spitzer, a disciplina busca delimitar o seu espaço no campo das ciências da
linguagem, principalmente, por oferecer uma gama de diferentes caminhos para uma análise
que passa pelos níveis gramaticais, linguísticos e literários que servem de base para uma
leitura de maior profundidade dos elementos explícitos e implícitos dos textos oral ou escrito
sem, necessariamente, esgotar a natureza plurissignificativa inerente a eles.
Além do segmento estrutural idiomático facilmente observado em enunciados, a
expressividade é importante fator sobre o qual se fundamenta a análise estilística. Ainda que
diferentes em essências ou modos de observação linguística, as correntes de estudos
estilísticos fornecem instrumentos a partir dos quais é possível ponderar acerca das escolhas
linguísticas, dos traços ideológicos, psicológicos, sociológicos, geográficos e até históricos
que envolvem o escritor e/ou o eu-lírico, sobre suas visões de mundo, enfim, muito do que
permita desvelar o porquê dos elementos utilizados para realizar sua proposta comunicativa
e/ou criar o prazer estético na obra analisada. Para MARTINS (1989, p.4), “Uma marca dos
trabalhos de Spitzer foi o pensamento de que a intenção do autor é algo específico, definido e,
em princípio, encontrável”. Assim, a Estilística contempla as funções comunicativa e
expressiva da linguagem sem, fundamentalmente, hierarquizá-las.
32

Ao contrário de Bally, que rejeita os textos literários por considerar pouco espontâneas
as formas de caráter consciente e elaborado, esta dissertação adota uma postura menos radical
e, como Mattoso e Spitzer, não afasta a língua literária da Estilística e do ensino, por admitir
que, num poeta, por exemplo, os traços estilísticos estão disponíveis a uma mente mais rica e,
sobretudo, refinada para tal atividade. Nesse contexto, aceitar-se-ão como objetos passíveis de
estudos estilísticos as composições musicais de Gonzaguinha.
Cabe recorrer a Dâmaso Alonso (1960) o qual nos esclarece que o objeto da Estilística é
muito amplo e capaz de abarcar “o imaginário, o afetivo e o conceitual”. O estudioso espanhol
defende que há três formas, com diferentes graus de precisão, para a compreensão da obra
literária.
O primeiro nível corresponde àquele associado ao leitor comum, cujo fim é o prazer ou
o mero entendimento das informações. O segundo plano de compreensão satisfaz à crítica.
Neste estágio, o leitor desenvolve suas capacidades e qualidades, considerando a atividade
expressiva e comunicando suas reações. O terceiro, e último, grau ocorre quando há o intento
de desvendar e revelar as circunstâncias, motivações e os fatores da criação de uma obra e dos
seus efeitos sobre os leitores. Para MARTINS (1989, p.9), “Surge aqui a intenção de explicar
cientificamente os fatos artísticos, sendo essa abordagem científica a Estilística.”.
Para os linguistas em geral, a Linguística é a disciplina que trata da linguagem; a
Estilística seria uma parte dessa ciência e responsável pelos estudos de determinados aspectos
da variação linguística das modalidades oral e escrita ajustadas às diversas conjunturas e
próprias de diferentes classes sociais. Têm-se, assim, um enfoque sociolinguístico.
Outro Alonso, o Amado, apresenta as duas correntes – a da Estilística ligada à
sociolinguística e a Estilística Literária – como complementares. A primeira, também
chamada de “Estilística da língua”, ocupa-se dos (e preocupa-se com) os recursos linguísticos
de natureza linguística: os vieses afetivo, imaginativo, ativo e valorativo das formas do
idioma, presentes nas línguas falada e escrita. Tal Estilística acaba como base de outra de
extensa magnitude: a Estilística Literária que tem por tarefa, conforme tratado, observar e
questionar como é constituída a obra literária sem ignorar ou menosprezar o deleite estético
que ela proporciona ao leitor.
Amado Alonso resume as principais tendências que o precederam e também anuncia
aspectos da Estilística Estrutural moderna ou da Semiótica literária. Liga-se a Bally pela
concepção dos elementos afetivos, ativos e valorativos citados. Aproxima-se de Spitzer ao
aceitar o estilo como processo de revelação humana. Contempla o estruturalismo ao
33

preocupar-se com os modos de construção das obras. Vale-se da Semiótica, pois admite a
distinção entre signo (alusão proposital ao objeto) e indício (expressão da realidade psíquica).
Quando baseada nas relações dos elementos do texto, a Estilística recebe a nomenclatura
de estrutural. Se relacionada às funções da linguagem, admite o rótulo de funcional. Jakobson
aponta que a Estilística, ou Poética, concentra-se na relação da função poética com as demais
funções, isto é, o foco está no “querer dizer”, na construção da mensagem. Parte, então, para o
nível de estruturação da frase e do texto (Estilística estrutural), observando os eixos de seleção
(paradigmático) e combinação (sintagmático) – estruturas da observação estilística. A escolha
ocorre com base na equivalência ou dissimilaridade de sentidos, enquanto a combinação atua
sobre a contiguidade. Assim, os signos não possuiriam valor absoluto e imutável, mas
adotariam valor resultante das oposições e dos contatos com outros signos. Apenas no
contexto se realiza o valor expressivo. Para ele, o resultado poético consiste num ajuste das
duas estruturas: a apreciação da mensagem não deve dispensar o estudo do sistema, do
código. De acordo com MARTINS (1989, p.14) “O efeito de um vocábulo depende não só da
frase, do contexto em que se encontra, como da tonalidade significativa que se sente em
confronto com outros vocábulos equivalentes”. Vê-se, dessa forma, que Jakobson valoriza a
participação da Gramática no texto. Para o estudioso (cf. Diálogos, 1995, p.110),
as questões do verso, de sua matéria sonora e a problemática gramatical são
indissolúveis e de igual importância. As categorias gramaticais repetidas ou
contrastantes têm função de composição, daí o seu cuidado de descobrir o
perfil gramatical de um texto e valorizar o seu efeito artístico.

Diferentemente de Roman Jakobson, Michael Riffatere, ainda que estruturalista,


considera que a Estilística deve estudar exclusivamente a mensagem e ignorar a pertinência
do sistema. Outra posição distinta é o destaque conferido ao leitor. Defende que o estudo do
estilo só pode e deve ser delineado em função do leitor, sendo dispensável toda referência
estilística referente ao autor. Formariam parte básica dos estudos estilísticos, portanto,
testemunhos de variados leitores e críticos.
Torna-se de fácil percepção que, até aqui, falou-se sobre a Estilística e seus
desdobramentos a partir da formalização dos estudos a ela relativos. Não se pode ignorar,
contudo, sua ligação a estudos anteriores acerca da expressão como a Retórica, que se ocupa
da linguagem para fins primariamente argumentativos, persuasivos, mas estéticos, artísticos
também.
Por volta do século XVIII com a valorização Romântica do individual em detrimento
das normas estabelecidas, a Retórica perde um pouco o prestígio. Nos anos 60, porém, passa
por uma revalorização, e é revisitada por Pierre Guiraud que novamente traz à baila a Retórica
34

como parte dos estudos dos fatos da linguagem. GUIRAUD (1969, p.48) afirma que “A
Retórica é a estilística dos antigos; a análise que nos legou do conteúdo da expressão
corresponde ao esquema da linguística moderna: língua, pensamento, locutor”. O autor
francês visualizou também as duas correntes conhecidas como Estilística da Expressão,
encarregada das relações entre forma e conteúdo sem ir além da linguagem, e Estilística do
Indivíduo, responsável pelas relações da expressão com o indivíduo. Vários outros autores se
propuseram a renovar as pesquisas de cunho retórico como Roland Barthes e Chaim
Perelman. Escritores como Dubois, Edeline e Trinon, por exemplo, dispuseram-se a tratar da
função retórica – rótulo que preferem associar à função poética de Jackobson, levando em
conta que essa função provoca diversas alterações da linguagem.
Em resumo, a retórica é um conjunto de desvios suscetíveis de autocorreção,
isto é, que modificam o nível normal de redundância da língua, transgredindo
regras, ou inventando outras novas. O desvio criado por um autor é percebido
pelo leitor graças a uma marca, e em seguida reduzido graças à presença de
um invariante. O conjunto dessas operações, tanto as que se desenvolvem no
produtor como as que têm lugar no consumidor, produz um efeito estético
específico, que pode ser chamado ethos e que é o verdadeiro objeto da
comunicação artística (Rhétorique génerale p.66-67) (apud MARTINS
1989:21)

A língua abrange a função representativa da linguagem, porém, por várias vezes, em


seus estudos, deixam-se de contemplar os fenômenos peculiares da manifestação individual e
da atuação social ainda que se cumpram num sistema intelectivo de representações, postura
que ignora a presença de determinados recursos linguístico-expressivos. Surge, assim, a
necessidade de uma disciplina que, ao lado da Gramática, trate desses pontos igualmente
relevantes e marginalizados. A Estilística, em quaisquer de suas correntes, vem, então, cuidar
dos elementos e fatores que fazem a linguagem ultrapassar o plano intelectivo e promover a
emoção, a partir da observação e do estudo do ato linguístico, o qual, segundo CÂMARA
(1978, p.13), “é a enunciação do termo em dadas circunstâncias, porque nele se revela o
entusiasmo de quem assim nos fala ou ainda o seu esforço para nos fazer participar desse
entusiasmo”. Resumidamente, o estudo do estilo oferece uma chance à lacuna linguística
responsável pela ignorância dos aspectos expressivos do idioma. Dessa maneira, Gramática,
Linguística e Estilística complementam-se.
Entendida dessa forma, a Estilística depreende o estilo como uma demarcação para
observar e pesquisar a língua. Dentre os eventos da fala e da escrita, surge o fator simbólico-
representativo que permite a investigação das intenções e dos efeitos linguísticos. Conforme
35

CÂMARA (1978, p.15), “O sujeito falante rege-se por um sistema linguístico de


representações intelectivas que estabelece a comunicação pela linguagem, e simultaneamente
o utiliza para satisfazer os seus impulsos de expressão.”.
A disciplina do estilo presta-se, então, às tarefas de caracterizar, amplamente, uma
personalidade linguística, destacar os traços que convergem para o viés individual e encadear
e interpretar os recursos expressivos tradutores de subjetividade. Os afazeres de teor altamente
pessoal são, contudo, relativizados quando Mattoso ajuíza que a individualização não pode ser
totalmente original, uma vez que estamos imersos num ambiente social e envoltos por um
conhecimento coletivo que garante a comunicação entre os membros da comunidade. O
estudioso (1978, p.16) pondera que “O estilo individual se esbate, assim, no estilo de uma
época, de uma classe, de uma cidade, de um país.”. Torna-se mais acertado mostrar que o
estilo é uma manifestação subjetiva por meio da linguagem. A base dos estudos estilísticos é o
levantamento dos processos expressivos gerais e particulares de um idioma,
independentemente de seus falantes.
O escopo de intitular-se ciência provém de seu objetivo de tratar dos usos da linguagem
que excedem a função unicamente denotativa com maior rigor e precisão, mas sem a
pretensão normativa que caracterizou a Retórica.
Cuidar da expressividade da língua consiste em estudar os meios que ela oferece aos
usuários para que manifestem estados emotivos, de maneira a desencadearem em seus
leitores/ouvintes uma percepção e/ou reação de mesmo teor. Os fatos da linguagem são
tomados de um modo que permitem a dedução de possibilidades estilísticas em três níveis: o
fonético, o léxico e o sintático.
O estudo de cunho expressivo da língua compõe importante iniciativa para a valoração
dos textos literários ou não. De acordo com GUIRAUD (1969),
sem ser o objeto nem o fim único da análise estilística, os estudos dos valores
expressivos e de seus efeitos é a tarefa maior do estilólogo e o ponto de
partida indispensável de toda crítica de estilo.

Pretendeu-se, assim, ressaltar as criações de Luiz Gonzaga do Nascimento Jr.,


observando os recursos linguístico-expressivos por ele empregados em suas composições de
protesto, apreciando sua personalidade (subjetividade) linguística em prol do bem estar
coletivo.

3.1 O som e suas possibilidades expressivas


36

Além de marcar a oposição entre palavras, os sons provocam sensações diversas e


sugestionam imagens, ideias e impressões variadas. A maneira como um locutor realiza sua
fala também pode desvelar estados psíquicos ou mesmo traços de sua personalidade, daí, o
interesse de cunho estilístico pelos fatores, circunstâncias e efeitos sonoros. A Estilística do
Som, ou Fonoestilística, cuida da realização dos recursos linguístico-expressivos, bem como
da expressividade sonora ressaltada nas palavras e/ou nos enunciados. Para além da Fonologia
que conhecemos, cabe uma Fonologia Expressiva. Bally (apud MARTINS 1989, p.26) já nos
esclarecia que
Não há dúvida de que na matéria fônica se escondem possibilidades
expressivas. Deve-se entender como tal tudo que produza sensações
musculares e acústicas: sons articulados e suas combinações, jogos de timbres
vocálicos, melodia, intensidade, duração dos sons, repetição, assonâncias e
aliterações, silêncios, etc. etc.

Não se trata, todavia, de uma lista pronta de caráter associativo para os fonemas e os
supostos resultados de suas aplicações. Henri Morier, Maurice Grammont e Bally apontam
que o potencial expressivo e suas sugestões são percebidos somente a partir da significação,
isto é, estão ligados à significação da palavra ou enunciado na construção dos sentidos. Dessa
maneira, o potencial de “obscuridade” da vogal /u/ se concretiza em palavras como escuro e
noturno, mas não se repete em diurno e luz.
Nilce Sant’Anna MARTINS (1989) explica que, na ausência de correspondência entre
significante e significado, ocorre expressividade zero, existindo a arbitrariedade do signo
linguístico. Caso haja correspondência, verifica-se uma motivação sonora, uma das marcas da
linguagem poética para que a mensagem valha também por si, não apenas pelo teor
referencial.
Em verdade, o potencial expressivo dos sons da língua não cabe em classificações
únicas e, por isso, fechadas. Segundo CRESSOT (1947, p.29), essa questão foi tratada até por
linguistas como Jespersen e Grammont: “ambos se perguntaram se, utilizadas com fins
estéticos na obra literária, as sonoridades poderiam efetivamente exprimir, em certa medida,
noções ou sensações”. O que se pode e se pretende apresentar é uma gama de exemplos já
concretizados e de mais fácil apreciação, sem negar ou desprezar quaisquer outras aplicações
que fujam a esse uso primário. Para GRAMMONT (apud CÂMARA 1947, p.30), “traduz-se
uma impressão intelectual numa impressão sensível, visual, auditiva, táctil. [...] Uma ideia
grave pode, pois, traduzir-se por sons graves, uma ideia suave por sons suaves”.
37

Considerando CRESSOT (1947, p.33), “mais equilibrada parece a consideração de


que cabe ao sentido da palavra atualizar uma relação latente entre os fonemas, formas e os
seus conteúdos”. Por esta razão, ambas as abordagens serão apreciadas no trabalho. Admitidas
como ocorrências expressivas, observar-se-ão as relações entre fonemas, ortografias e efeitos,
a partir de relações mais comumente existentes, ou por manifestações particulares a
Gonzaguinha. O fato é que, quanto mais estranha ou inusitada a sonoridade ou a forma de um
vocábulo, mais solicitará a atenção para si.
Curioso é que, embora se trate de uma composição de cunho musical e, portanto,
diretamente ligada a questões sonoras, o artista em questão não emprega de forma tão
extensiva os recursos fonético-fonológicos, exceto o ritmo e a entonação. Não se pretende
aqui explorar o primeiro, devido ao enfoque escrito do trabalho. As impressões e
considerações acerca do ritmo foram desdobradas em sala de aula, por ocasião de atividade
específica, a partir da reprodução sonora das canções. A entonação foi melhor apreciada a
partir de suas marcas gráficas: os sinais de pontuação.
Tornaram-se mais evidentes os cuidados com os usos e as manipulações da palavra em
seu contexto. Na pesquisa, portanto, privilegiar-se-á, como foco para observação da
expressividade, o âmbito de criações referentes ao vocábulo, bem como sua organização
sintática no enunciado. As ocorrências de valor fonético-fonológico serão apreciadas
oportunamente, de forma menos aprofundada. A análise de tais recursos se realizará de acordo
com seus valores expressivos mais contundentes em versos específicos.
No momento, deter-me-ei em considerações gerais participantes da obra Gonzaguiana
como um todo, e inicio essas observações, apontando para as possibilidades expressivas da
repetição de sons.
Como se sabe, as repetições de fonemas não são, necessária ou exclusivamente, de
natureza simbólica ou onomatopeica. Por diversas vezes, perceber-se-ão recorrências de
propósito enfático com o fim de ratificar ideias ou contribuir à unidade textual. Dessa forma,
as chamadas vogais anteriores manifestam, em geral, sons agudos, estridentes, que podem
ajustar-se ao significado da palavra como em grito, apito, estrépito e berro. Assim, em Onde
o porco ainda berra (Fliperama: 1993), a escolha do vocábulo destacado corrobora com a
situação extrema de desconforto.
Nos versos Acalma a bola, rola a bola, trata a bola, (Geraldinos e arquibaldos,
1900)e Que não corre da raia a troco de nada (E vamos à luta, 1900) as impressões de
fluidez, deslizamento ou rolamento são intensificadas pela aliteração formada a partir da
constritiva lateral /l/ e das vibrantes /R/ e /r/.
38

Noventa e cinco sorrisos suando na condução- e um sorriso nos lábios!, verso de Um


sorriso nos lábios (1974), conta com a aliteração oriunda da recorrência do fonema /s/
concretizado por consoante alveolar, de característica sibilante, para retratar a respiração
abafada, característica de passageiros de lotações.
Já em Que não foge da fera e enfrenta o leão (E vamos à luta: 1980), a repetição do
fonema /f/, representado por consoante constritiva, tão somente realça a coragem e disposição
da “moçada” cantada por Gozaguinha.
Do modo parecido, o homeoteleuto presente em E aprendi que se depende sempre/ De
tanta, muita, diferente gente, ademais de contribuir para o ritmo da música, aviva a
pertinência da união apregoada pelos versos de Caminhos do coração (1982) a partir da
repetição de fonemas nasais formadora de rimas internas aos versos.
A anominação envolvendo palavras de mesmo radical em uma única frase, ou em
frases próximas, nem sempre incorre em pleonasmos propositais. Em E vomito no vômito há
muito espalhado pelo chão (Fliperama: 1993), percebe-se que não há a repetição de uma
ideia, mas a expressão da ocorrência de um fato anterior, ou seja, já houve uma vomição, o
que intensifica e prolonga a sensação de náusea intensa, desconforto profundo.
A repetição de fonemas é, assim, profícua fonte de recursos expressivos. O valor da
variedade deles não é menor, uma vez que pode implicar relevante artifício estético. A
Estilística deve contemplar, sempre que especialmente perceptíveis, as diversificadas
ocorrências fônicas.
Cabe acrescentar a essa abordagem sonora as alterações fonéticas de vocábulos,
sempre que apresentarem importância expressiva. Os metaplasmos podem, por vezes,
reproduzir especificidades da fala censuradas pela norma culta. Autores ligados à oralidade
popular ou regional fazem largo uso de tal recurso. Em Pensei depressa adonde estava aquela
quina/(...) E inclusível a minha santinha (A cidade contra o crime, 1980) e O “véio Chico”
citado em Má-gica (1988), Gonzaguinha opta por palavras que conferem cor local à
composição, reproduzindo a fala interiorana, e a maneira carinhosa do povo se referir a um
dos mais importantes rios brasileiros.
A redução presente na expressão cerva gelada (E vamos à luta, 1980) brinda o texto
com a espontaneidade da fala popular, auxiliando na caracterização do ambiente informal
retratado pela canção.
Dos prosodemas ou traços suprassegmentais, a entonação interessa de forma especial
à pesquisa, pois conforma a marca de uma frase, dá ao enunciado aspecto de interrogação,
declaração ou exclamação, ou ainda interfere na significação deste. Para (re)constituir, na
39

escrita, a entonação pretendida pelo autor, tornam-se necessários recursos gráficos


específicos. Entram em cena os sinais de pontuação que, por seus usos lógicos e limitados
pelas questões sintáticas, são pobres frente às possibilidades da voz humana. Todavia, seu
emprego abundantes (???!!!), suas combinações (?!), bem como a ausência de tais elementos,
admitem potencial expressivo, principalmente por acentuar ou permitir mais de uma leitura,
atribuindo-se relevância ao discurso.
Luiz Gonzaga Jr. abusou da exclamação em sua obra. A multiplicação de sinais
exclamativos permeiam versos notadamente significativos e empolgados em diversas
composições como E dizer: tudo tem melhorado!/(...) E dizer sempre: muito obrigado!/(...) E
diploma de bem- comportado! (Comportamento Geral: 1973), Se levanta e conquista o seu
caminho! (Erva rasteira; 1976) e não faça!/(...) não fale!/(...) se cale!/(...) não fume!
(Geraldinos e arquibaldos: 1975), entre outras.
A interrogação também se apresentou com perguntas decisivas que extrapolavam o
nível da simples curiosidade e visavam a provocar reflexão e reação, de modo que a
indagação: e amanhã, seu Zé, /Se acabarem com teu carnaval?(Comportamento Geral, 1973)
convidava o ouvinte a pensar acerca das decisões autoritárias mais extremas que podiam
acontecer.
As declarações, no entanto, constituíram a maior parte das canções. As afirmações
diretas, raramente marcadas por ponto final, expunham com convicção as ideias como algo
certo: Erva rasteira é que pode ser pisada (Erva rasteira, 1976), Não engulo a fruta e o
caroço (Recado, 1978). Esse aspecto se aprofundará na parte da Estilística da frase; por
enquanto, bastam as constatações expostas.
Conclui-se que a expressividade sonora pode mostrar-se como aspecto relevante na
construção e na interpretação de uma fala. Repetições, entonações e outros fatores de ordem
fonético-fonológica provocados pela disposição dos fonemas, pontuação, ou mesmo tamanho
dos versos, produzem uma relação de concorrência e coesão com o contexto, contribuindo
para a elaboração do núcleo temático.
A superposição do valor expressivo dos sons aos signos apresentados permite que a
configuração sonora dos textos de Gonzaguinha exprima a manifestação psíquica do autor,
auxiliando na organização do traço estilístico de sua personalidade linguística.

3.2 A expressividade vocabular Gonzaguiana


40

Ao estudar os aspectos e efeitos expressivos das palavras a partir de seus componentes


semânticos e morfológicos, que não se devem apartar das questões sintáticas e contextuais, a
Estilística recebe a denominação de “léxica ou da palavra”. Logo, percebe-se tal estrutura
como foco de observação. Não se pode negar, porém, que, mesmo com este enfoque definido,
as apreciações ultrapassam as notas, a princípio, vocabulares. Até mesmo porque, conforme
nos esclarece MARTINS (1989, p.71), “só teoricamente se separam léxico (palavras) e
gramática (regras), visto que mesmo as palavras que têm um significado real, extralinguístico,
só funcionam no enunciado com a agregação de um componente gramatical”.
Têm-se, então, os morfemas de ordem lexical (radicais, semantemas, lexemas), cuja
essência permite acréscimos e perdas, e os de natureza gramatical (gramemas), cujo cerne é
fechado e, assim, não admite alterações.
A significação dessas palavras gramaticais só se percebe no contexto linguístico por
meio do acompanhamento ou da oposição a outros vocábulos, isto é, não exclui a sintaxe e a
organização textual. Não se deve ignorar, contudo, que sempre há a possibilidade de desvio
proposital das regras com finalidade expressiva, o que vem demonstrar a existência de um
sistema expressivo profícuo e paralelo ao sistema puramente gramatical.
O mesmo pode ocorrer com as palavras lexicais, que, ao perderem seu traço nocional,
gramaticalizam-se. Tais termos também são conhecidos por palavras lexicográficas,
nocionais, plenas, reais, pois geram uma representação (de nomes, qualidades, ações ou
modos), ainda que exteriores à frase. Apresentam-se em grande número, vistos os processos e
necessidades de exclusões, acréscimos e transformações. Neste grupo, encontram-se os
advérbios, os substantivos, os adjetivos e os verbos de ação e processo mental (excetuam-se
os auxiliares e os de ligação, considerados palavras gramaticais). Os três últimos largamente
explorados na obra gonzaguiana e desdobrados a seguir.
Ao falar-se em noção, representação, pensa-se em significação, a qual trabalha com
núcleos convencionais ou significações fundamentais determinadas por certa constância de
usos percebida na experiência social. É tal frequência que, segundo MARTINS (1989, p.78),
“assegura a estabilidade relativa do léxico da língua, necessária para a compreensão mútua.
Desprovida deste núcleo com função de base, a língua correria o risco de converter-se em um
caso de significados sempre novos”.
Os chamados significados móveis se desenvolvem a partir do significado primeiro,
central. O idioma possibilita a criação de novos sentidos para uma mesma palavra. Nessas
concepções, os empregos mais peculiares tendem a se enfraquecerem após o uso expressivo,
41

entretanto, quando o novo sentido atende, decisivamente, a uma necessidade comunicativa,


embrenha-se no vocabulário a ponto de tornar-se essencial. Cumpre, então, diferenciar
significado e sentido, pois, ainda que muitas vezes usados como sinônimos, tais termos
parecem envolver relevantes e distintos processos.
Utiliza-se o rótulo significado para se referir às noções, representações inerentes às
palavras. A partir do momento em que a noção é solicitada numa frase ou num texto, sai de
seu estado estático de possibilidades, individualiza-se, podendo adquirir traços particulares;
passa a sentido. MARTINS (1989, p.78) nos esclarece que “o sentido é, pois, a acomodação
do significado à intenção comunicativa; é “a realidade que aparece na prática da linguagem”.
O processo de construção de sentidos interessa especificamente a este estudo, pois o
emprego das palavras apresenta tons intrínsecos próprios, quer de valor usual, quer de viés
afetivo. Assim, os elementos que participam da constituição dos sentidos das palavras são
objetos de interesse da Estilística, uma vez que resultam em um emprego particular, tornando-
se recursos expressivos.
Há termos cujos lexemas traduzem emoção ou outros estados psíquicos, por isso esses
vocábulos são denominados palavras de significado afetivo. Os lexemas podem receber
vogais temáticas, desinências ou afixos que o atualizem, promovendo recursos de forte teor
estilístico, baseados nas mais variadas classes gramaticais.
A oportunidade de seleção entre um substantivo ou um substantivo adjetivado
configura um exemplo dessa possibilidade. Se, em vez de Eu entrego ao Divino o cretino que
me mata na fila do feijão (Eu entrego a Deus, 1981), o autor optasse por Eu entrego a Deus a
cretinice de quem me mata na fila do feijão, o foco de realce se modificaria. Na primeira
construção, tem-se a indignação associada ao objeto (ser) cretino. Na segunda ocorrência, a
cretinice, é a responsável pela revolta, ocasionalmente, ela provém de alguém cuja
qualificação é menos relevante que na primeira construção, na qual se ressalta o valor
negativo do ser que interage com o sujeito é ressaltado.
As palavras que exprimem julgamento ou impressões pessoais também são
impregnadas de afetividade, geralmente apresentadas por adjetivos atribuidores de
propriedades positivas, valorizadoras ou negativas, depreciativas semanticamente distribuídas
nos âmbitos de bom/ mau e seus verbos, advérbios e substantivos abstratos correspondentes.
O elemento de avaliação, no entanto, pode não compor o significado essencial da palavra, mas
estar apenso a ele. A palavras como nação e cidadão, tão proclamadas pelo filho de Luiz
Gonzaga, fixam-se, ademais das noções de povo, país, pátria, gente, as concepções de
42

consciência política, patriotismo, organização ou até outras compreensões de percepção mais


pessoal como grupo forte, mobilização popular ou civismo pleno.
Há, nas composições gonzaguianas, vocábulos de teor afetivo com cunhos avaliativos,
positivo ou pejorativo, naturais como respeito, liberdade, direito, mudança, juventude e
pedra, rojão, fantasma.
Nesse processo de ajuizamento, adicionam-se aos lexemas prefixos ou sufixos que
corroboram com teor avaliativo. Palavras como arrasto e fusca são compreendidas sem
tonalidade afetiva, mas, dificilmente não se receberá arrastão e fuscão como pejorativas
dentro de seus respectivos contextos em Meninos do Brasil (1988) e Comportamento Geral
(1973). Os valores semânticos dos afixos são variados e responsáveis por diversas derivações
de valor afetivo, melhor tratados quando chegarmos à Estilística morfológica.
Essa “cor” afetiva de determinados termos provém de suas origens ou de variedades
linguísticas específicas. Bally os classifica como palavras de poder evocativo, uma vez que a
eles se relacionam, quase imediatamente, um local, uma época ou meio sociocultural. No
grupo figuram extremos como os arcaísmos e os neologismos, os estrangeirismos e as
construções regionais, bem como as gírias de distintos setores sociais e profissionais.
Os arcaísmos proporcionam uma evocação do passado. Em geral, são empregados
com o fim de aproveitar expressões de largo ou expressivo uso em determinada época,
gerando efeitos como: nostalgia, sátira ou até humor, percebidos no verso Estava dando uns
bordejos pelaí, quando, de repente, a figura apareceu (A cidade contra o crime, 1980).
Os neologismos aproveitam-se de valores semânticos já existentes, adaptando-os a
necessidades ou oportunidades. Geraldinos e arquibaldos são palavras que se baseiam nos
termos geral e arquibancada, nomes relativos às alocações dos torcedores nos estágios de
futebol. Geraldinos corresponderia aos que ficam nos lugares mais baratos, os menos
afortunados, representando a classe baixa. Arquibaldos, em referência à arquibancada,
remeteria à classe média, por configurar área intermediária entre a pior (geral) e a melhor
(cadeiras) localização.
O termo desparecença participante do verso Na desparecença dos tempos aprendo as
tranças e tramas das novas lições, da música Coisa mais maior de grande (1891), é
considerado uma criação neológica baseada na prefixação do vocábulo parecença, cujo
sentido remete à semelhança, similaridade; logo, seu derivado faz referência às diferenças
ocorridas no tempo.
Outros ajustes semântico-criativos como a separação silábica do título Má-gica,
(1988) sugerem apreciações que ultrapassam o sentido primeiro da palavra. Ademais do
43

sentido de truque ou feitiçaria, depreende-se o anúncio de teor negativo advindo da, então
revelada, palavra má.
Ao emprego de termos de outros idiomas dá-se o nome de estrangeirismos. Bem
aceitos hoje em dia, normalmente conferem ao enunciado certo exotismo, evocando
peculiaridades de suas pátrias e, podendo, de acordo com a origem, suscitar valores como
sofisticação e contemporaneidade, visto a crença de que o que se importa é melhor. Assim,
em Fliperama (1993), composição baseada em sensações de fascínio tecnológico, a palavra
flashes evoca e reitera a ideia de modernização. Cabe apontar, entretanto, que, quando essas
palavras ganham notoriedade e uso extensivo, são incorporadas pelos usuários da língua e, em
pouco tempo, eles sequer lembram a origem do vocábulo, como o que aconteceu com detalhe,
maiô, batom e tantos outros. O vocábulo flashes, embora presente no Dicionário Antônio
Houaiss (2007), tem conservada e divulgada sua origem inglesa, fato que aponta para o
processo de incorporação de tal termo e seu viés estrangeiro simultaneamente, este último
mais perceptível, principalmente, se considerarmos a existência de um correspondente em
português: raio.
Muito aproveitadas por escritores, construções idiomáticas peculiares ao falar de
determinado grupo ocasionam certa discriminação na fala, estigmatizando o usuário ou
gerando simplesmente caracterização ou humor. Denominam-se gírias e consistem em
linguagens que evocam classes sociais ou profissionais e, por isso, apresentam características
de considerável valor expressivo. Diminuem, pois, a “distância” entre as modalidades oral e
escrita, e retratam igualmente extremos como requinte e vulgaridade, formalidade e
descontração, configurando, ou não, uma forma de defesa das populações marginais, ou ainda,
a soberba das classes mais elevadas. Gonzaguinha soube transferir a espontaneidade das ruas,
ao reproduzir em suas criações termos do falar carioca como cerva (redução de cerveja), tutu
(forma popular para dinheiro; correspondendo ao dindin da atualidade) e barra (em vez de
situação) de expressões como A barra não tá mole não: ladrão já tem que andar com
plaqueta de identificação.(A cidade contra o crime, 1980).
Observa-se em muitas ocorrências que o fator expressivo está relacionado ao uso da
linguagem figurada por meio, principalmente, de metáforas e metonímias a partir das quais os
termos passam a admitir sentidos diversos, ou distantes do significado primeiro. Entram em
cena as figuras de linguagem – recursos linguístico-expressivos de destaque dentre os
estudiosos da língua por seu valor não só na linguagem literária, mas como retórica intuitiva
de um povo. Bally (apud MARTINS 1989, p.92) nos adverte quanto à nossa incapacidade de
abstração total, daí a necessidade de se recorrer a imagens referenciais da realidade concreta.
44

O autor considera a metáfora como uma comparação oriunda da associação de duas


representações, sendo a noção característica e o objeto confundidos em um só termo. O
cérebro percebe imagens que podem representar o que o pensamento não conseguiu
exteriorizar de forma abstrata. Em E esse jogo tá um osso, é um angu que tem caroço
(Geraldinos e arquibaldos, p.1975), o autor externou a ideia de dificuldade a partir das
imagens osso e caroço, ambos substâncias rígidas, fortes, remetendo ao incômodo muitas
vezes ocasionados por elas.
Na metonímia, a palavra que designa uma realidade A é substituída por outra que
designa uma realidade B, por conta de relações de coexistência, de interdependência, que une
A e B, de fato ou no pensamento. Essa associação tem cunho objetivo, externo, talvez por isso
ela não apresente o valor “imprevisto” da metáfora, sua concisão, porém, permite entender
mais rapidamente os fatos em sua essência, daí a força expressiva. Nesse âmbito, o
compositor explorou especialmente o câmbio de palavras com sentidos de distintas extensões
com relação de inclusão, a chamada “parte pelo todo”, ao jogar com as ideias inerentes à
gente e povo, país e nação.
As demais figuras de linguagem serão oportunamente apresentadas, especialmente
quando surgirem, na parte de análise de corpus, associadas a seus valores expressivos nas
canções.
Felizmente, os usuários da língua edificam, quase diariamente, novos termos e
sentidos, relatando a dinâmica do idioma, atendendo às suas necessidades comunicativo-
expressivas. Gonzaguinha valeu-se com maestria das palavras em busca do sentido preciso,
contundente em seu contexto de denúncia quotidiana, no qual cada palavra parece obter
sentido único com seleção e combinação singulares, capazes de esclarecer quaisquer
ponderações acerca de valores semânticos.
Costuma-se aprender que não há sinônimos perfeitos na língua portuguesa. Menos útil
do que se pensa seria a existência de duas ou mais palavras que manifestassem igualmente
determinado sentido. Provavelmente, uma seria eleita para o uso, e a outra se perderia ou
ficaria restrita a empregos específicos. Mais interessante que discutir a possibilidade dessa
existência é observar o comportamento de vocábulos que permeiam e se intercalam em
construções de sentidos próximos e/ ou variáveis. Dentre uma multiplicidade de palavras que
possuem valor referencial idêntico, há a possibilidade de escolha e combinação de termos
mais adequados às necessidades da comunicação e da expressividade.
Não se deve ignorar que também há entre as palavras outras peculiaridades que não a
semelhança de sentido. Variações de tom e expressividade modificam as qualidades do
45

vocábulo, de modo que as condições de emprego tornam-se distintas. Mostra-se mais didático
estudar os sinônimos em suas diferenças que em suas proximidades semânticas.
Há variações de teor objetivo como quando um termo é mais abrangente ou restrito
que outro (hiperonímia/hiponímia): país/Brasil; distinções de intensidade como em
pobre/miserável, sorrir/rir/garagalhar; diferenças de teor avaliativo como em:
medroso/covarde; alterações de valor evocativo relacionadas a termos mais ou menos
técnicos: morte/óbito; referentes a literariedade: servil/capacho e relativos à coloquialidade:
grana/tutu/dinheiro.
Percebe-se que, dentre as possibilidades, vocábulos foram eleitos, enquanto outros
dispensados, não necessariamente de forma despropositada ou ingênua. Os autores e estilistas,
munidos de sensibilidade linguística e de conhecimentos acerca do idioma, filtram da
diversidade lexical as palavras que melhor convêm à construção linguística.
A escolha vocabular (paradigma) mais adequada está diretamente relacionada ao
conjunto em si (sintagma), uma vez que busca atender à harmonia geral do dito. Nem sempre
o leitor é capaz de perceber claramente a atividade de seleção realizada pelo autor (salvo ao
acessar os originais ou tiver maior sensibilidade linguística), visto a consonância do resultado
final; apreende de maneira mais fácil as disposições expressivas dos vocábulos sinonímicos.
Quando organizados em série, demonstram que o autor pensou que apenas um não seria
suficiente para exprimir sua ideia, daí a ênfase. Se postos em intervalos, conforme Luiz
Gonzaga Jr. pratica, a variação indica cuidado com o refinamento e com a coesão textual.

3.3 Morfologia e expressividade: Gonzaguinha e a lapidação lexical

As possibilidades expressivas advindas de usos e manipulações de teor morfológico


também constituem profícuo campo de observação dos estudos estilísticos, desde que não se
ignorem os âmbitos semântico e sintático aos quais os fatos morfológicos se relacionam.
Assim, comentários de viés morfológico podem aparecer inseridos em “focos” semântico e/ou
sintático, de acordo com a necessidade ou conveniência linguística.
Empregos e alterações de gênero, número, grau, bem como as criações inusitadas
oriundas dos diversos processos de formação de palavras têm sido proveitosa fonte de
imprevistos expressivos, à medida que permeiam o vocabulário quotidiano na busca do
sentido mais apropriado ou imediato à situação comunicativa. Em o pinta do verso Que eu
46

não pude nem ouvir quando o pinta me rendeu (A cidade contra o crime:1980), a mudança de
gênero alterou significativamente o sentido. Em vez de marca ou pequena mancha, o vocábulo
passou a expressar pessoa, indivíduo do gênero masculino; gíria popular carioca
correspondente, na atualidade, à cara.
Pluralizações de nomes conhecidos compõem conotações gerais ou particulares acerca
dos substantivos. Ao citar os Santos e Silvas em Dias de Santos e Silvas (1977) o autor
generalizou nomes próprios. Embora Santos se escreva normalmente no plural, Silvas, pela
proximidade, transfere para o primeiro nome a percepção de generalização e mesmo
quantidade. Existiriam, assim, vários sujeitos cujos sobrenomes seriam Santos e/ou Silva,
algo corriqueiro.
Efeito semelhante ocorre em Fortalezas (Pelo Brasil, 1983), quando a pluralização do
nome da capital do Ceará sugere a existência de várias regiões como aquela, talvez pela
recorrência de belezas naturais ou problemas sociais.
Os processos de formação de palavras, procedimentos de valiosos enriquecimentos
lexicais ao idioma, também atendem às necessidades expressivas de escritores e falantes
comuns da língua. A sufixação revela valores expressivos distintos de diminutivos e
aumentativos.
Nos versos Mandei que ele desvestisse a roupinha/(...) E inclusível a minha santinha
(não esquece a sunguinha, hein, ô!) de A cidade contra o crime (1980), os diminutivos não
retratam relação de tamanho, mas sarcasmo, chacota frente ao atrapalhado ladrão.
Fuscão (Comportamento Geral, 1973) contribui para a reiteração do viés irônico
norteador da referida canção.
As alterações de sufixos comumente anexados por outros servem frequentemente ao
humor: Mamãe, eu sou um cara super otimístico (Coração de plástico, 1983).
A derivação regressiva (ou deverbal) tem proporcionado a criação de diversas
expressões insólitas como: no maltrato (A (roupa) que eu vestia estava toda esburacada,
remendada, esfarrapada/ Bem puída, no maltrato) em A cidade contra o crime (1980).
Há também a derivação por meio da eliminação do sufixo incorporado aos substantivos
ou adjetivos. Dizemos tratar-se de derivação por redução: cerva (cerveja/ E vamos à
luta:1980) e loteca (loteria/ Um sorriso nos lábios, 1974).
A derivação imprópria não diz respeito necessária ou exclusivamente à morfologia, pois,
nesse caso, os vocábulos não sofrem modificações formais, mas de sentido. Substantivação e
adjetivação parecem as práticas mais frequentes do processo, porém, câmbios dentro da
mesma classe gramatical também proporcionam renovação de sentido. A ortografia, que se
47

baseia em regras fixas, consideradas por muitos exteriores à Estilística, foi modificada com
fins expressivos como a troca de minúsculas por maiúsculas com o propósito particularizante.
O S maiúsculo de Sol, bem como o artigo definido o que o antecede, em Eu vou cantar... por aí-
que nada se repete sob o Sol (Coisa mais maior de grande, 1981) e E é pra chegar sabendo
que a gente tem o Sol na mão (O homem falou, 1985) particulariza a estrela questão,
remetendo à luminosidade única de regiões geográficas como o Brasil e à poderosa força
inerente à imponência e luminosidade de tal astro.
A prefixação não oferece tantas alternativas expressivas quanto à sufixação, no entanto,
falantes e escritores conseguem, a partir de seu emprego, elaborar criações originais. Dentre
os prefixos disponíveis no idioma, des mostra-se como um dos mais produtivos, visto a
multiplicidade de sentidos por ele construídos e o fator originalidade observado em
desparecença (valor de negação/ Coisa mais maior de grande, 1981) e desvestisse (valor de
movimento contrário/ A cidade contra o crime, 1980), entre outros.
As manipulações de cunho morfológico resultam em criações que atendem às intenções
comunicativas e expressivas. Gonzaguinha soube, como poucos, moldar as palavras conforme
seus objetivos, trabalhando variados vieses como humor, escárnio, revolta e indignação.

3.4 Frase e expressão: a construção e a organização do protesto

Diversas são as alternativas de organização das palavras na frase, e das frases no texto.
A sintaxe, parte da gramática que trata das possibilidades de relação, oferece um número
considerável de regras para a disposição dos termos no enunciado. O não cumprimento, ou
ainda o total desrespeito a essas normas, compõe interessante material de observação
estilística, uma vez que, mais que meros erros gramaticais, tais desvios podem revelar traços
originais e expressivos.
Admite-se que a frase exprime um sentido, encerra um conteúdo, assim, a ela
corresponde uma função. Quando há a predominância da função representativa, ao se expor
algo como verdadeiro ou falso, tem-se frase declarativa, em geral de entonação descendente,
e marcada, graficamente, por ponto final: Erva rasteira é que pode ser pisada (Erva
rasteira:1976). Se a função emotiva se deixa perceber mais claramente, transparecendo
sentimentos variados como admiração, alegria ou descontentamento, tem-se frase
exclamativa: E os frutos daquele chão não nasceram mais!(Má-gica:1988), graficamente
48

assinalada pelo ponto de exclamação. Ao prevalecer a função apelativa por meio de ordens,
pedidos ou conselhos, a frase é essencialmente imperativa, podendo também dispor de tom
emotivo: Mamãe não quer... não faça! (Geraldinos e arquibaldos:1975). As interrogações, de
entonações variáveis dependendo da palavra interrogativa, acolhem simultaneamente os
teores emotivo e apelativo, pois revelam desde simples curiosidade até uma ansiosa
indiscrição, ambas atuando no interlocutor, ao aguardar uma resposta: Cerveja, samba e
amanhã, seu Zé,/Se acabarem com teu carnaval?(Comportamento Geral: 1973).
Considerar a função das frases não é, entretanto, a única maneira de se observar a
expressividade. Contemplar sua integridade ou constituição também permite apontar valores
estilísticos diversos. As chamadas frases completas simples (possuem um só verbo principal
gramatical ou nocional), quando de predicado nominal, expressam valor intelectual ao
exprimirem fato, classificação, definição. Constituem principalmente afirmações acerca de
natureza existencial dos seres: O pai já não é mais o filho (Coisa mais maior de grande,
1981), e apresentam valor emotivo ao manifestarem julgamentos de valor e impressões
pessoais: Foi tudo uma só estação, silêncio e solidão (Má-gica, 1988). Segundo MARTINS
(1989, 134), “tais frases transmitem o esforço humano para compreender, explicar, ordenar, o
mundo e a vida, os fenômenos e as abstrações. Para CRESSOT (1947, p.187-191), “[...]trata-
se de uma evocação brutal dos factos tal como são imediatamente percebidos [...]” com teor
“[...] mais apelativo, mais espontâneo e mais expressivo.
Nas construções de predicado verbal, os verbos podem ficar limitados ao sujeito ou
estabelecer uma relação entre ele e outro ser, dependendo de sua (in)transitividade. As
formações dotadas de verbo intransitivo têm sujeito isolado por ação restrita a ele próprio,
sem se estender a outros seres: O porco ainda sangra (Fliperama, 1993). Dessa forma,
percebe-se que o predicado nominal e o predicado verbal com verbo intransitivo são voltados
ao sujeito.
As frases de verbo transitivo transmitem o dinamismo da vida ao relacionar o sujeito
aos demais seres/objetos. Comunicam, pois, o que ocorre quando seres atuam sobre outros:
Eu entrego a Deus o panaca que taca tanta água no meu leite (Eu entrego a Deus, 1981).
CRESSOT (1947, p.195) resume que “as construções nominal e verbal não estão, pois,
em concorrência; correspondem a maneiras diferentes de perceber e notar os fenômenos”.
Fato é que as múltiplas combinações de elementos e orações nas frases permitem
formações variadas que fogem à monotonia e antieconomia das frases simples. A
complexidade surge à medida que diversos níveis de coesão e dependência se desenvolvem.
49

Na coordenação, as orações se organizam em sequências de construção independentes,


e a coesão pode ser efetuada com (coordenação sindética), ou (coordenação assindética), sem
nexos. A última, mais frequente na oralidade, aparenta espontaneidade pela sucessão ágil dos
fatos: Nasce, cresce, morre bem embaixo (Erva rasteira, 1976) Dança, roda, gira: tempo
chegará! (Caminho da roça, 1977). Quando da proliferação de síndetos (polissíndeto),
entende-se construção enfática, devido ao destaque das orações: E quando a flor abortou e a
água do rio matou/ E a chuva, na pele doeu e o Sol não brilhou mais/O céu foi uma só cor: a
mesma noite no dia (Má-gica, 1988).
Na subordinação, há relações de dependência ou regência. A oração subordinada é um
termo da subordinante, equivalendo a um substantivo: Aquele que sabe que é mesmo o couro
da gente, adjetivo: que segura a batida da vida o ano inteiro (E vamos à luta, 1980), ou
advérbio Se me der um beijo, eu gosto (Recado, 1978). Seu emprego, bem como a
compreensão de períodos mais longos requer maior domínio da língua.
A extensão dos períodos produz ritmos variados e contribui para as intenções
comunicativas e caracterização de gêneros textuais. Para CRESSOT(1947, p.260),
na realidade, não existe uma estética a priori, ligada à frase curta ou à frase
longa. Uma e outra não correspondem nem à mesma visão das coisas nem à
mesma organização do pensamento.(...) Uma sequência de frases curtas pode
corresponder a uma visão e a uma intenção de um relato fragmentário.(...) A
uma frase longa, pelo contrário, corresponde uma visão total e complexa.

Com visão mais didática, MARTINS (1989, p.142) nos explica que:
O período solene, em que se encandeiam múltiplas orações, em que se
desfiam enumerações, rico de modulações, atende melhor à grandiosidade da
epopéia ou à veemência da oratória. O período breve é mais concorde com a
simplicidade do texto didático, com a espontaneidade das manifestações
emotivas ou com a vivacidade dos diálogos, com o tom despretensioso da
crônica.

Alternando e contrastando frases longas e curtas, quebra-se o ritmo monótono,


evidencia-se e se valoriza umas e outras construções. Nota-se o emprego desse recurso em
canções como E vamos à luta, A cidade contra o crime, Coisa mais maior de grande,
Fliperama, entre outras.
Frases muito curtas remetem às chamadas frases incompletas (não estruturadas em
sujeito e predicado). Frases de dois ou um só membro podem ser mais expressivas que
construções completas: Num lindo passe de mágica, trágico assassinato (Má-gica, 1988)
parece mais objetiva, incisiva que Como num passe de mágica, houve/ocorreu/aconteceu
50

um/o trágico assassinato, ou ainda O trágico assassinato aconteceu como um lindo passe de
mágica. Olha o hospital... silêncio!(Geraldinos e arquibaldos, 1975) é mais econômico que
Nos hospitais, ou próximo a eles, faça silêncio. São formações capazes de produzir rapidez,
enfoque sucessivo dos traços mais relevantes das informações. Não se trata de elipse
genuinamente, mas de escolha por uma forma mais condensada.
Em oposição à economia da elipse está a redundância do pleonasmo. Ainda que
supérflua, a repetição de termos, de ideias não corresponde somente à ignorância ou descuido
do emissor. Mostra-se expressiva ao enfatizar ideias transmitidas, conferindo vigor e até
vivacidade à construção. Em O dia subiu sobre a cidade (Dias de Santos e Silvas, 1977), a
palavra sobre repete a ideia de pôr em nível superior, ascender expressa pelo verbo subir,
intensificando a notícia, no caso, o amanhecer, quando o sol se levanta.
A evidenciação, contudo, não ocorre somente pela repetição. A locação de uma
expressão como eis aí entre frases nominais auxilia no relevo do tema do enunciado. Em:
Fantasma daqueles velhos carnavais/ Eis aí, a eficiência da ciência!/ Eis aí, o exemplo exato
da mudança/ Eis aí, o esforço para a melhoria! (Fliperama, 1993), a decepção do reencontro
contrasta com o viés positivo ligado aos avanços tecnológicos, ressaltando tal
desapontamento.
Determinadas partículas destituídas de valor nocional e sintático podem apresentar
valor expressivo; são chamadas partículas de realce ou espontaneidade. Não constituem
pleonasmo, mas ressaltam informações: Erva rasteira é que pode ser pisada (Erva rasteira,
1976), Acredito é na rapaziada (E vamos à luta, 1980). Ademais, esclarece-nos MARTINS
(1989, p.164) que “muitas preposições, advérbios, conjunções são ampliadas em locuções
pelo acréscimo de partículas supérfluas”.
A ordem dos elementos na frase também é de suma importância à sua feição
estilística, determinando ritmo, valorizando ideias, proporcionando efeitos diversos. Em
sintagmas nominais, há termos determinantes que frequentemente aparecem antes do
elemento determinado, e outros que se dispõem depois. Costuma-se antepor ao substantivo os
adjetivos de teor apreciativo: As maravilhosas máquinas manejadas por meninos (Fliperama,
1993); e pospõem-se os adjetivos caracterizadores: Minha mente distraída ainda elogia
(IDEM). De acordo com MARTINS (1989, p.166), “a colocação depende da preferência do
falante, da natureza do discurso, da constituição fônica do substantivo e do adjetivo, do seu
emprego em sentido literal ou figurado, etc.”. O mais rotineiro é que se alterne, num mesmo
texto, a posição dos adjetivos em proporções diversas.
51

As maiores possibilidades de mobilidade ocorrem mesmo com os advérbios e locuções


adverbiais. Os rotulados intensificadores, ao modificarem adjetivos ou particípios, são
geralmente antepostos: Deve ficar bem isolado (Tá certo, doutor?, 1975). Os que apresentam
determinação precisa se pospõem ao verbo: No campo do adversário é bom jogar com muita
calma (Geraldinos e arquibaldos, 1975). Se referentes a toda a frase, apresentam
consideráveis alternativas de deslocamento: Ultimamente ando até matando cachorro a grito
(Pois é, seu Zé, 1974), Ando até matando cachorro a grito, ultimamente, Ando matando,
ultimamente, até cachorro a grito e Ando, ultimamente, até cachorro a grito.
A organização dos termos em outros níveis também revela intenções estilísticas. A
colocação normal, ou frequente, dos termos na oração (sujeito- verbo- objeto direto- objeto
indireto ou sujeito- verbo de ligação- predicativo), a chamada ordem direta, trabalha com a
propagação de informações de maneira mais incisiva. CRESSOT (1947, p.201) pondera que
“não significa que a ordem natural corresponda ao grau zero da afectividade”. Gonzaguinha
optou predominantemente por esse tipo de construção, propagando de maneira simples e
direta suas ideias.
Quando alterada, a ordenação dos termos frasais gera diferentes valores expressivos.
As inversões rompem com a previsão monótona da disposição usual e realçam o termo que se
pretende privilegiar, causa estranheza e ritmo impressivo: Erva rasteira é que pode ser
pisada/ Mas descuido, ela paga com espinho (Erva rasteira, 1976). O fato estilístico não
consiste necessariamente na ordem inversa, mas na menos usual.
Ainda no âmbito sintático, a concordância também admite considerável relevância.
Sem dúvida, é um dos, ou o, aspecto em que mais se distanciam a norma culta e a língua
popular, configurando até uma espécie de marca social. Os ajustes flexionais equivocados,
especialmente entre sujeito e verbo (ou entre substantivo e adjetivo ou pronomes adjetivos)
estigmatizam de forma decisiva o texto. Não se trata apenas, entretanto, de deslizes
grosseiros. Além da concordância de teor lógico-formal, há a concordância estilística, que
ultrapassa os limites da prescrição e visa a atender intentos particulares por motivos de ênfase,
humor, eufonia, ou simplesmente, reproduzir a fala popular quotidiana como em “não se
movem aí ô meu!” (A cidade contra o crime, 1980).
Conforme observado, por meio de uma sintaxe simples, sem floreios, o artista
elaborou e disseminou seus dizeres. A partir de uma postura linguística contundente,
Gonzaguinha apontou problemas e vilões, bem como soluções para as questões nacionais. Os
tempos eram difíceis, obscuros; entretanto, pareciam figurar claramente nas palavras
organizadas pelo poeta.
52

3.5 Enunciação expressiva: a propagação do desabafo

Enunciação consiste num ato de comunicação verbal que implica falar e ouvir, logo,
configura-se como atividade dialógica dotada de locutor e interlocutor (ou escritor e leitor,
emissor e receptor). O produto dessa interação se chama enunciado. Ambos, enunciação e
enunciado, interessam à Estilística, visto suas condições de produção e seus efeitos
comunicativo-expressivos.
Tzvetan Todorov (1991) nos esclarece acerca da existência de dois âmbitos essenciais
dos estudos estilísticos: o primeiro recebe a nomenclatura de Estilística da enunciação e trata
das relações entre locutor, receptor e referente; o segundo, também chamado de Estilística do
enunciado, é responsável pelas observações de aspecto verbal, fonético-fonológico,
morfológico, semântico e sintático. Os dois focos formam a estratégia de estudo desta
pesquisa, ora contemplando as condições de produção e repercussão dos enunciados de Luiz
Gonzaga Jr., ora adentrando em suas particularidades expressivas por meio do estudo dos
aspectos mencionados.
Cabe à primeira vertente a apreciação dos níveis de subjetividade do enunciado.
MARTINS (1989, p.190) nos elucida que
Se a linguagem é sempre produzida por um falante que sente a necessidade, a
conveniência, o desejo ou o prazer de dizer qualquer coisa, a linguagem é
sempre subjetiva. Contudo, essa subjetividade se apresenta em níveis
diferentes, que se podem representar por um eixo, cujos extremos, de
subjetividade e objetividade máximas, não podem ser precisamente
determinados.

Quando a subjetividade se reduz ao mínimo, tem-se um enunciado objetivo, resultante


dos esforços da razão com fim de alcançar o viés geral, e conter o individual, o particular. São
exemplos dessa tentativa os textos de caráter científico, pois buscam divulgar verdade aceitas
como universais. CRESSOT (1947, p.190) aponta que “existem, pois, diversos graus dentro
da objetividade, que pode ser directa ou indirecta e esta última impõe-se tanto mais atenção
quanto menos rebuscada for a proposição”.
A subjetividade, manifestação mais, ou menos, explícita do falante, revela-se de
diferentes formas. A mais perceptível delas é pelo uso da 1ª pessoa do singular por meio de
pronomes: Eu vou cantar... por aí!(Coisa mais maior de grande, 1981), Você me diz que esse
53

goleiro é titular da seleção (Geraldinos e arquibaldos, 1975), Badala bem dentro em meu
ouvido (Dias de Santos e Silvas, 1977); formas verbais: Levanto e engulo meu café/Corro e
tomo a condução (IDEM); indicadores de tempo e lugar: Pode chegar que a festa vai começar
agora (E vamos à luta, 1980), já não tô nem aqui (Recado, 1978) e demonstrativos: Já não
basta este dia após dia(Da maior liberdade- Do meu jeito, 1981).
Outra maneira, menos direta, de percebê-la é pela presença de formas da 2ª pessoa,
uma vez que elas só existem em referência ao eu que as indica: Tô contigo amigo, não abro
(Recado, 1978).
É a partir dessas indicações de subjetividade que se podem perceber diversos tipos de
avaliações presentes nos enunciados dos locutores. As mais comuns e expressivas delas e, por
isso, as que mais interessam a este trabalho são a avaliação nomeada modalizadora e a
chamada axiológica ou apreciativa. A primeira revela relevantes impressões individuais e
trabalha com variados recursos linguístico-expressivos visando a alcançar objetivos
específicos. Em MARTINS (1989, p.191), compreendemos que nela
o locutor revela se considera o fato a que se refere como verdadeiro, ou falso,
certo, incerto, possível, desejável. Se o fato é considerado verdadeiro, o
locutor usa o modo indicativo, numa oração declarativa e essa certeza pode
ser reforçada por expressões como sem dúvida, realmente, indiscutivelmente,
etc. E se o seu enunciado é objeto de citação, pode vir introduzido por um
verbo como afirmar, garantir, afiançar. (...) Se o locutor não quer afirmar
nem negar a veracidade de um fato, pode empregar o verbo do enunciado
numa forma modal denotadora de incerteza, possibilidade, como o futuro do
pretérito ou o subjuntivo acompanhado de uma expressão de dúvida, talvez, é
possível, ou ainda recorrer a um auxiliar modal, poder, dever.

A avaliação axiológica ou apreciativa cuida do valor moral ou estético, partindo


sempre das noções maniqueístas de bom/mau, bonito/feio, útil/inútil. Nela, a subjetividade se
intensifica à medida que o enunciador mostra-se emocionalmente envolvido com o conteúdo
de sua fala. Conforme observados em momentos anteriores, pode permitir que suas emoções e
impressões fluam e transpareçam por meio do léxico selecionado, dos jogos sonoros, das
manipulações morfológicas, das construções sintáticas bem como pelas figuras eleitas e/ou
predominantes.
Ao se falar em subjetividade, entretanto, não se restringe totalmente a um enunciador
as possibilidades comunicativo-expressivas. Como MARTINS (1989, p.192) aponta, vale
abalizar que “Uma das características importantes da linguagem é a possibilidade de um
mesmo enunciado ser retransmitido através de uma cadeia de locutores, fator fundamental
para o aproveitamento de experiências e conhecimentos das sucessivas gerações.”. Um
54

mesmo enunciado pode ser realizado, percebido e retransmitido por falantes diversos. Nessa
esfera, cumprem relevante papel os discursos direto, indireto e indireto livre.
Luiz Gonzaga Jr. escolheu o discurso direto para explicitar as vozes do texto. Nele, o
enunciado de outra pessoa é transcrito tal qual formulado e proferido, mantendo, sempre que
possível, os traços de subjetividade como interjeições, interrogações, ordens e expressões de
desejo, pretendendo-se a reprodução mais fiel: O cara disse: “fica quieto e vai tirando toda a
roupa/ De conforme o que está no meu direito!” (A cidade contra o crime, 1980). Quando a
referência é oral, o falante chega a imitar a entonação e a voz do mencionado. Se escrita, o
autor responsabiliza-se pela recriação do dito a partir da dinâmica do texto através,
principalmente, de marcações e pontuações expressivas.
Outros aspectos de relevante participação na Estilística da enunciação são as formas
de tratamento e o vocativo.
O uso de pronomes pessoais (tu, você, vós), pronomes ou expressões de tratamento
(senhor, seu, Vossa senhoria, Vossa majestade) e tratamentos nominais (comandante, doutor,
amigo, major) correspondem a distintos níveis de intimidade, deferência e colocação social,
prestando-se a situações irônicas ou jocosas. Em especial, as relações envolvidas no
tratamento assimétrico de Senhor ou você correspondem, de acordo com MARTINS (1989,
p.213), a “diferenças de idade, de nível social, econômico, cultural dos interlocutores, embora
haja tendência para o você”.
Gonzaguinha abusa da informalidade, empregando largamente pronomes como tu e
você por meio, principalmente de vocativos: trabalhador, tu é otário!(A cidade contra o
crime, 1980), Você merece, você merece (Comportamento geral, 1973).
O autor, no entanto, não deixa de trabalhar as questões respeito e colocação social em
versos como: e amanhã, seu Zé,/ Se acabarem com teu carnaval? (Comportamento geral,
1973), e – Tá certo, doutor?! (Tá certo, doutor?, 1975)
O uso do vocativo relaciona-se a várias funções da comunicação apontadas por
Jakobson. Ao chamar um interlocutor, o vocativo aproxima-se da função apelativa. Quando
renova o contato com o interlocutor, trabalha a função fática. O que não o impede de admitir
teor afetivo, revelando o sentimento do falante em relação ao interlocutor. A função poética
também pode contar com a participação do vocativo por meio de apóstrofes que permitem a
um emissor dirigir-se a outro ser distante no tempo e no espaço, falando-lhe como se este
estivesse presente.
Nem tudo o que o enunciador diz, ou pretende dizer, apresenta-se de maneira explícita.
Implícitos são perceptíveis em sentidos que se estendem em unidades maiores como a frase e
55

seu encadeamento. Gonzaguinha, porém, deixa nítida sua presença em cada verso de sua obra.
Parece não se importar com comedimentos ou preservações, assumindo sempre publicamente
seus pensamentos e anseios por meio dos mais distintos recursos linguísticos.
56

4 ANÁLISE DO CORPUS SOB A ORIENTAÇÃO DOS ASPECTOS SONOROS,


MORFOSSINTÁTICOS E LÉXICO-SEMÂNTICOS: O ESTILO DE GONZAGUINHA

Após orientadora pesquisa acerca da abordagem estilística e sua relação com a


expressividade, o presente trabalho se aproxima do cumprimento de sua proposta inicial de
estudar as peculiaridades linguísticas de Gonzaguinha. A partir de agora, canções
selecionadas conforme os temas insatisfação política e exaltação do brasileiro serão
observadas de acordo com suas realizações e efeitos linguístico-expressivos, contemplando
distintas épocas inspiradoras (entre os anos de 1973 e 1991), portanto, norteadoras dos tons
enunciativo-expressivos. Não se pretendeu uma análise única e exaustiva, mas apreciadora
das possibilidades e usos expressivos dos recursos da língua.
O critério escolhido para a disposição de abordagem das canções foi o da ordem
alfabética de seus títulos.

Música: Caminho da roça (1977)

RESUMO: Na curta canção Caminho da roça, Gonzaguinha denuncia as dificuldades


quotidianas das classes mais humildes, aproximando o tratamento dado ao povo brasileiro ao
procedimento controlador comumente realizado com rebanhos de mamíferos.

ESTUDANDO A MÚSICA (O TEXTO)...

Nos primeiros versos da composição, as construções Vamos gente! Vamos povo!


Vamos cantar de novo! bem como a intercalação com a interjeição de cunho animador Eia!
visam ao entusiasmo da massa, convocada, então, a seguir o caminho da roça, isto é,
convidada a tomar seu lugar no processo difícil de transformações. Uma espécie de motivação
semelhante à empregada na mobilização e guia de rebanhos. Nesse sentido, a população
brasileira seria uma concentração de gado controlável e forte.
Após a caracterização do povo como uma grei, o autor se vale do efeito permanente e
atualizador do gerúndio (Vivendo/ Pulando/ Pisando/ Engolindo/ Suando), acrescido de
palavras que admitem sentido penoso (fogueira, brasa, cobra, luta) para delinear a rotina
árdua desse grupo. Cabe apontar que a noção de constância das ocasiões, exprimida pelo uso
dos verbos na mencionada forma nominal, é ratificada pela repetição da forma como sempre,
57

indicativa de frequência, mais o verbo conjugado na terceira pessoa do singular, no presente


do modo Indicativo (vive/ pula/ engole/ sua).
Elementos associados à diversão são eleitos e intensificados (Vinho, muito vinho/ Riso,
muito riso) para retratar os artifícios usados com o fim de aliviar os sofrimentos do dia-a-dia
(enganar a vida/ esconder o pranto). Distintamente, o canto serviria não só para o
entretenimento, mas para a conscientização, atuando como ferramenta de resolução, não mais
fuga, dos problemas (Canto, muito canto pra quebrar o encanto). A música é, assim,
apresentada em sua função doutrinadora, propagadora de ideias revolucionárias, capaz de
quebrar encanto.
O compositor instiga o desempenho popular, tratando seus componentes não só como
animais guiados, mas como membros de um baile artístico que atua harmônica, gradativa e
animadamente (Dança, roda, gira). Ademais, a expectativa de melhores dias é configurada
pela palavra fé (recorrente na obra do autor), pelo emprego do futuro do presente do
Indicativo (fé no que virá!/ tempo chegará!), anunciador de bons augúrios e pelo tom
exclamativo, proveniente da pontuação expressiva.

Música: Caminhos do coração- Pessoa= pessoas (1982)

RESUMO: Relato das impressões de um andarilho, Caminhos do coração- Pessoa= pessoas


mostra aquela que parece a mais especial das lições vivenciadas e apreendidas pelo autor em
suas peregrinações: a essência humana é a comunhão social; ninguém é, de fato, auto-
suficiente. Nesse sentido, as trocas de experiências, os contatos realizados, as amizades
construídas são a principal premiação da/pela caminhada.

ESTUDANDO A MÚSICA (O TEXTO)...


Cumprindo suas funções de resumo e anúncio, o título – de estrutura peculiar por
aparentar ser dois em um – divulga e encerra em si as ideias de alternativa adotada (seguir os
impulsos, os caminhos do coração) e aprendizado depreendido (pessoa= pessoas/ um ser
como a reunião de outros seres). Tal ideário passa a ser a base nocional dos demais versos.
Em seguida, o eu-lírico enfatiza sua antiga opção por viver em andanças a partir da
repetição parafrásica de Há muito tempo + construções populares como caí na estrada e estou
na vida, creditando à referida escolha, sua felicidade (Foi assim que eu quis e assim eu sou
feliz). Recurso também empregado no destaque das belezas observadas e satisfações
experimentadas (É tão bonito quando a gente entende(...)/ É tão bonito quando a gente
58

sente(...)/ É tão bonito quando a gente pisa firme(...)/ É tão bonito quando a gente vai à vida).

A ênfase acerca do cerne social e solidário do Homem se dá, por sua vez, pela
disposição seguida, quase enumerada, dos pronomes indefinidos tanta, muita e do
acompanhamento imediato do adjetivo diferente, que acresce um valor de variedade, de
diversidade às pessoas das quais dependemos. Noção reiterada no décimo segundo verso com
a combinação de outras tantas pessoas.
Ainda sobre ênfases e intensificações, é oportuno apontar a aliteração e a assonância
existentes no quinto verso (Principalmente por poder voltar) responsáveis pela ideia de
valorização do ato de regressar. A recorrência do fonema bilabial, surdo, plosivo /p/, bem
como o som fechado e a forma gráfica arredondada da vogal o contribuem,
significativamente, à percepção do retorno aos lugares onde estão as amizades conquistadas
como um momento especial.
A valorização do imo humano é trabalhada por meio da recorrência da palavra gente
em todo o curso da canção e, particularmente, no décimo quarto verso (Que a gente é tanta
gente onde quer que a gente vá!), que busca explicitar a comunhão existente entre os Homens,
a partir da presença do(s) outro(s) em si. Concepção confirmada pelos os versos É tão bonito
quando a gente sente/ Que nunca está sozinho por mais que pense estar!.
Por fim, o eu-lírico trata da pró-atividade necessária à construção do destino que se
quer ter, em detrimento da sorte normalmente a nós atribuída, ou seja, em prejuízo daquela a
qual estaríamos, teoricamente, fadados como se esta estivesse escrita e inscrita em nosso
corpo, como pensam os povos de cultura cigana que insistem em prever o futuro na palma das
mãos (É tão bonito quando a gente pisa firme/ Nessas linhas que estão nas palmas de nossas
mãos!/ É tão bonito quando a gente vai à vida/ Nos caminhos onde bate bem mais forte o
coração!).

Música: Coisa mais maior de grande (1981)

RESUMO: A fim de provar que “tudo muda”, Coisa mais maior de grande exalta a
capacidade revolucionária das pessoas. É um canto que expõe a admiração gonzaguiana pelo
ser humano em sua essência mutável, apto e hábil às alterações e sublevações diversas na
inconstante rotina. O autor revela verdadeiro deslumbre pelo ritmo instável, alterável da vida,
pois vê o mesmo como condição “possibilitadora” das mudanças necessárias e ansiadas.
59

ESTUDANDO A MÚSICA (O TEXTO)...

Além de intensificar a grandeza do ser humano por meio da combinação de vocábulos


com valores semânticos próximos e de viés positivo (mais, maior, de grande), o título Coisa
mais maior de grande confere tom infantil e popular à composição, uma vez que esse tipo de
construção de cunho tautológico é comum às crianças e às pessoas de fala mais descuidada.
Assim, há uma espécie de identificação prévia por parte das pessoas mais simples, público-
alvo das considerações do artista.
A fé na possibilidade de transformação do panorama social é creditada à essência
individual (Enquanto eu acreditar que a pessoa é a coisa mais maior de grande/ (...) Eu vou
cantar... por aí!) e aos reveses da vida (O movimento da vida não deixa que a vida seja
sempre igual). Tal crença se explicita pela seleção de verbos como acreditar, revolucionar,
ensinar, aprender, revoltar, ecoar, gritar, aguçar e agitar; que realçam o fascínio do
compositor pela existência de seres de mesma espécie e, ao mesmo tempo, consideravelmente
diversos, realizando distintas ações. Tal variedade se ratifica pela repetição da passagem nada
se repete, em referência não só às circunstâncias da vida, mas a todos os elementos a ela
relacionados, até mesmo o Sol (nada se repete, nem o Sol!); e pelo emprego dos neologismos
dessemelhança e desparecença. Cumpre apontar a participação do aspecto temporal nesse
processo. O verso O pai já não é mais o filho, nem foi o avô e nem é o irmão além de ilustrar
as variadas alternativas de posicionamento de uma mesma pessoa, remete à sequência natural
de alterações: 1º se é filho, irmão, depois, se é pai, avô.
Nesse processo de relativização, em que “cada qual é cada qual”, a subjetividade
também serve para indicar os interesses conflitantes entre Governo e população. Ao afirmar
que o bem só é bem para quem ele faz bem/ Mas p’rum outro pode ser um mal, o eu-lírico
remete à necessidade de medidas que busquem atender a todos, ou, pelo menos, à maioria.
Como quem se embriaga num aprendizado intrincado e constante, Gonzaguinha
justifica seu canto anunciado (Eu vou cantar... por aí) pelo valor das aulas e lições repletas de
tranças e tramas.

Música: Comportamento geral (1973)

RESUMO: Em Comportamento geral, escrita em 1973, Gonzaguinha sintetiza, paradoxa e


ironicamente, a condição de obediência e sujeição do povo brasileiro frente à conjuntura
político- econômica do país. Nesse panorama comportamental, o autor explora os sentidos do
60

verbo dever (forma imperativa= obrigação “Você deve= você tem de fazer isso!”e forma
hipotética= possibilidade “Você deve= provavelmente, você faz isso!) e, com forte sarcasmo,
lista aqueles que deveriam ser os procedimentos “ideais” ou “rotineiros” dos cidadãos.

ESTUDANDO A MÚSICA (O TEXTO)...

O principal eixo de suporte para o texto de Gonzaguinha é o emprego da coordenação,


que dispõe as informações acerca da conduta dos indivíduos e acrescenta a elas, por meio do
uso da conjunção coordenativa aditiva e, o viés contraditório da atitude consecutiva (Ex.:
Você deve rezar pelo bem do patrão / E esquecer que está recompensado vs. 7 e 8).
Outro aspecto relevante dessa organização é a repetição paralelística das expressões
“Você deve”, ratificando o efeito expressivo de insistência nas indicações das atitudes e “E
dizer” apontando a submissão procedente. A repetição também é explorada em âmbitos
diferentes: seguidamente em “Você merece, você merece (v. 9) enfatizando o mérito negativo
e , portanto, lamentável, e anaforicamente em “Tudo vai bem, tudo legal” (v.10) compondo a
ideia de completude a partir do uso do pronome indefinido em questão.
A subordinação sintática também participa do texto, estabelecendo relações de causa,
conclusão e finalidade em “São palavras que ainda te deixam dizer/ Por ser homem bem
disciplinado/ Deve, pois, só fazer pelo bem da nação/ Tudo aquilo que for ordenado/ Pra
ganhar um fuscão no juízo final/ E diploma de bem comportado!” e, encerrando, assim, a
sucessão irônica acerca da coibição sofrida pelo povo. Tal crítica confirma a coação
característica do período ao delimitar que “muito” e “obrigado” são palavras de pronúncia
ainda permitida, logo, deduz-se que há tantos outros vocábulos de proferência proibida.
Na esfera lexical, palavras como “tutu”, “xepa”, “cerveja”, “Zé”, “carnaval” e
“fuscão” auxiliam na composição do cunho popular da obra, aproximando a mensagem das
pessoas pertencentes às classes econômicas mais simples, isto é, aconchegando o compositor
à maioria da população.
Outra forma de aproximação entre autor e sociedade é a escolha do discurso indireto-
livre, que evidencia oportunamente a mescla das vozes dos populares à voz do autor, uma vez
que o mesmo sempre procurou mostrar proximidade às camadas governadas.
Finalmente, o vocábulo fusca, sufixalmente modificado pelo aumentativo -ão (fuscão),
corrobora a ideia de deboche e chiste, pois apresenta o veículo, um carro popular, como parte
da recompensa destinada ao dito “comportamento geral”. Ademais, um certificado de bom
61

comportamento remete às premiações infantis concedidas por figuras de autoridade como um


professor.
Gonzaguinha explanou de forma direta, contundente e irônica o clima repressor
ofertado à população.

Música: É (1988)

RESUMO: Declaração inflamada dos anseios populares, É anuncia e lista, de maneira


objetiva, as ambições públicas. A canção, entretanto, não se limita a ser um simples
inventário, mas constitui uma nova oportunidade para Gonzaguinha apregoar a inteligência e
dignidade do brasileiro.

ESTUDANDO A MÚSICA (O TEXTO)...


De modo a afirmar e reiterar as aspirações sociais, a canção É se estrutura no emprego
parafrásico do termo a gente, repetido em dezessete (17), dos dezoito (18), versos da música,
seguido, por quatorze (14) vezes, da ocorrência do verbo querer, formando, assim, a
expressão que encerra a ideia principal do texto: a gente quer = o povo deseja. Atente-se, nos
três (3) primeiros versos, para a inclusão do eu-lírico nas vontades sociais a partir da repetição
do pronome possessivo de 1ª pessoa do plural: nosso; fato que corrobora à leitura do termo a
gente como designador da 1ª pessoa do plural (a gente = nós).
Para indicar o “querer” comunitário, o autor se vale, basicamente, de orações
subordinadas substantivas objetivas diretas reduzidas de infinitivo: valer o nosso amor, valer
nosso suor, valer o nosso humor, suar, viver a liberdade, viver felicidade, viver pleno direito,
viver todo o respeito, viver uma nação. Orações que, por duas (2) vezes são intensificadas
pelo emprego da partícula expletiva é antes da oração objetiva direta em si A gente quer é ter
muita saúde/(...) A gente quer é ser um cidadão; recurso que remete ao título da música e
acresce, às proposições, um valor de afirmação positiva (sim).
Quando o verbo “querer” não é completado por frases conforme as mencionadas,
sintagmas nominais como carinho, atenção, calor e, até mesmo, o termo subentendido tudo
(A gente quer(tudo) do bom e do melhor) divulgam as aspirações em questão.
Estrutura semelhante à utilizada no instante da divulgação das vontades ocorre no
momento de valorização do povo. Novamente, o compositor repete o início dos versos e,
então, adverte quanto à prontidão, decência e argúcia do brasileiro: A gente não tem cara de
62

panaca/ A gente não tem jeito de babaca/ A gente não está com a bunda exposta na janela
pra passar a mão nela....
Nestes mesmos versos, vale observar o emprego de palavras de viés negativo e que
beiram o chulo: panaca, babaca e bunda. Tais escolhas revelam o tom contundente e rebelado
do eu-lírico frente ao tratamento direcionado à nação e aproximam os versos dos
leitores/ouvintes das classes menos letradas. Ademais, a opção por adotar a contração da
preposição em + o pronome pessoal reto ela (nela), de modo a fazer referência o termo bunda,
não só evita a repetição da palavra, mas compõe um eco junto ao vocábulo janela, o que
auxilia no ritmo da composição.
Gonzaguinha deixa claras a essência e as ambições do povo em mais um manifesto por
dias melhores e mais justos.

Música: E vamos à luta (1980)

RESUMO: E vamos à luta retrata o desejo de mobilização popular, tão característico do autor.
Animado pela turnê Vida de viajante (1980), Gonzaguinha compõe o samba que constitui
uma calorosa declaração de confiança no povo brasileiro, especialmente, na juventude e em
sua disposição para a luta e para a felicidade. Com linguagem de fácil compreensão, o artista
canta/conta o movimentado quotidiano da massa que peleja e saboreia prazeres tipicamente
brasileiros como o futebol, o pagode, o carnaval e a cerveja.

ESTUDANDO A MÚSICA (O TEXTO)...

A canção apresenta-se acessível devido ao emprego notório de expressões de valor


conotativo e de cunho popular como a gíria. O autor, que aplica a primeira pessoa do singular
(Eu) ao empreender sua declaração, usa palavras e expressões como rapaziada, moçada,
botequim, segurar o rojão, fugir da fera e jogo duro, que permeiam largamente o vocabulário
das classes mais simples, colaborando, assim, para que se atinja o público- alvo. Cabe apontar
os fenômenos fonológicos em cerva (redução popular da palavra cerveja) e pelaí (aglutinação
de por aí), também de viés popular, como participantes do processo de identificação do povo.
A conotação, por sua essência, visa ao aclaramento figurativo de determinada situação.
Em segurar o rojão, enfatiza-se uma ocasião de dificuldade intensa, uma vez que o rojão é
um artifício perigoso e complicado de se controlar por sua força explosiva. Ao afirmar que a
rapaziada segura o rojão, o cantor delimita a condição valente e forte da população.
63

Garantindo que a moçada não foge da fera e enfrenta o leão, eu- lírico põe o ser
humano em vantagem frente a um dos felinos mais poderosos e fortes. Tal prestígio é
corroborado pelo recurso da aliteração (repetição expressiva do fonema consonantal, no caso,
o /f/) que participa do destaque conferido à coragem do brasileiro.
Fato semelhante acontece em não corre da raia, quando a valentia dos populares é
propagada e realçada pela repetição do fonema /r/.
Ao utilizar a figura do bloco carnavalesco (Eu vou no bloco dessa mocidade),
Gonzaguinha se vale da ideia de multidão harmoniosa, alegre e com objetivo comum para
ilustrar a concepção da possibilidade de adesão popular eficaz, uma vez que unida, não fica na
saudade e constrói a manhã desejada, isto é, com seus elementos juntos, a sociedade não fica
sem conseguir aquilo que almeja e se torna capaz de edificar seu destino conforme sua
vontade.
Ratificando o teor de prélio árduo, anunciado e difundido pelo texto, as dificuldades e
dores são relacionadas à pele humana, comparada, então, ao couro, provavelmente o material
de origem animal de que são feitos o pandeiro e o tamborim, ou qualquer outro instrumento
que sofra castigos fortes e constantes, assim como as classes mais humildes. Além disso,
pode-se depreender que, tal qual os instrumentos musicais, os brasileiros “apanham” (sofrem)
e, ainda assim, disseminam alegria, pois têm-na como essência.
Ademais do carnaval, lembrado na figura do bloco, e da música, indicada por meio da
menção de instrumentos e ritmos, o futebol também assegura seu espaço no quotidiano
tupiniquim, estampando uma disputa complicada (o sufoco de um jogo tão duro).
O patriotismo, por sua vez, é apresentado apesar dos pesares, ou seja, o sintagma
conjuntivo apesar de revela que, somente com concessões, pode-se orgulhar de pertencer a
esta pátria. Comentário que indica a existência de consternações que impedem a completa
satisfação cívica. Vale apontar que as palavras possuem o mesmo radical –pesar, e este,
repetido apresenta efeito semântico mais expressivo.
Por fim, cabe assinalar que o uso de orações subordinadas adjetivas restritivas
especifica o tipo brasileiro digno da fé do eu- lírico, assim, apenas a rapaziada que segue em
frente e segura o rojão; a moçada que não foge da fera e enfrenta o leão; a juventude que não
corre da raia a troco de nada; bem como a mocidade que não tá na saudade e constrói a
manhã desejada são exaltados pelo trovador.

Música: Erva Rasteira (1976)


64

RESUMO: Erva Rasteira, composta em 1976, explicita metaforicamente a condição frágil e


obediente do povo frente ao Governo. De forma quase ilustrativa, Luiz Gonzaga Jr. tenta
aclarar o massacre repressor sobre a população, sem deixar de incitar as pessoas à
insubordinação, à inconformação. De fato, o foco da referida música não é uma condenação
(direta) às ações do Governo, mas uma crítica à inércia, à comodidade humana. A fim de
estimular o cidadão a fazer sua história ativamente, o compositor valoriza os hipotéticos poder
e força do povo, bem como emprega frases que visam a provocar os brios do cidadão.

ESTUDANDO A MÚSICA (O TEXTO)...

A metáfora que, a princípio, parece ser um recurso meramente “aproximador” entre


povo e erva rasteira (capacho), e governo (posição subordinante) e pés; objetiva, na verdade,
distinguir os posicionamentos, desvinculando o eixo subordinado da referência popular. Logo
no primeiro verso, Gonzaguinha enfatiza, por meio da estrutura expletiva é que, que somente
vegetações baixas podem sofrer atitudes opressivas. A partir dessa delimitação, o artista
constrói seu manifesto em favor da atitude, contra a passividade.
No segundo verso, o autor realça a submissão daquele que é inerte, ao mostrar o ciclo
desanimador da erva rasteira: nascer, crescer e morrer em conjuntura precária. Situação
também ressaltada pelo uso do advérbio de intensidade bem, atuante sobre outro sintagma
adverbial (de valor locativo) embaixo.
Após caracterizar o comportamento de sujeição inerente à erva, o poeta utiliza uma
conjunção coordenativa adversativa (Mas), com a finalidade de organizar as demarcações de
cunhos opostos: passividade X ação/ erva rasteira X homem de valor. Cabe acrescentar que,
neste terceiro verso, a aplicação de uma oração subordinada adjetiva restritiva (que é homem
de valor) corrobora para definir como indivíduo valoroso somente aquele que nunca aceita a
condição de uma erva rasteira: servir de capacho. Vale apontar também que a palavra
capacho, ademais de seu significado pejorativo (ca.pa.cho sm 1. Tapete de grossas fibras
ásperas, posto às portas, para a limpeza da sola do calçado. 2. Indivíduo servil; pelego.
Miniaurélio Século XXI: Nova Fronteira), tem sua carga negativa acentuada pela sonoridade
expressiva advinda da repetição da vogal aberta /a/.
O compositor continua fervorosamente sua empreitada contra a comodidade,
apontando como pusilânime o homem inativo. Em infrequente momento, utiliza um ponto
exclamativo e aviva sua indignação (Sem lamento se deixa acomodar!). Atente-se para o uso
da partícula se, de valor semântico reflexivo, como colaborador na instituição do juízo de o
65

homem ser o responsável maior por sua posição (Jamais se propõe a ser capacho!/ Não tenta
jamais se levantar/ Sem lamento se deixa acomodar!/ Se vê sem direito de falar/ Se levanta e
conquista o seu caminho!)
Após denunciar a falta de voz concedida à nação, Gonzaguinha retoma a ideia trágica
e de teor irreversível, já apresentada do segundo verso (Nasce, cresce, morre bem embaixo),
ao admitir como fim para quem se comporta de modo submisso e passivo a condenação
limites precários, ou seja, a total impossibilidade de melhoria de vida até a morte (Seu destino
é viver bem rente ao chão/ Até que ele venha lhe tragar!).
Num momento de ressalva, o aedo resolve revelar outra faceta da erva rasteira: sua
periculosidade (Mas descuido, ela paga com espinho), mostrando, assim, que ainda a erva tem
suas armas contra os que a agridem, portanto, até os que se sentiam “ervas rasteiras” se
deviam considerar capazes de incomodar os mais fortes. Aproveitando essa conclusão,
Gonzaguinha açoda seu povo, ponderando, novamente por meio do emprego de oração
adjetiva restritiva (que é homem de valor), que apenas os dignos possuem competência para
edificar sua vida, efetivamente.

Música: Eu entrego à Deus (1981)

RESUMO: Na breve composição Eu entrego à Deus, o eu-lírico apela à justiça divina para
punir os responsáveis pelos problemas econômicos que assolam o país.

ESTUDANDO A MÚSICA (O TEXTO)...

O anúncio Mais uma vez! revela a insistência frequente do autor em oferecer às


decisões divinais os destinos dos governantes do país. Ao afirmar que entrega à Deus os
culpados pelo caos econômico, o compositor deixa transparecer rara desesperança frente à
conjuntura instaurada pelos desmandos administrativos, uma vez que, habitualmente, só se
apresentam às entidades religiosas questões que não aparentam soluções evidentes.
Vale comentar a recusa do eu-lírico em confiar até mesmo ao diabo, figura oposta a
Deus, as devidas penas dos culpados, pois o artista supõe que o representante oficial do mal
possa ser o seu chefe (desconfio que o diabo é o diabo do patrão!), confirmando, dessa
maneira, a dificuldade de resolução do problema. A terceira aparição da palavra diabo confere
teor negativo à figura do empregador que, em tempos de carestia, explorava ainda mais seus
funcionários.
66

Termos de expressão comum como panaca e taca (verbo transitivo direto tacar=
lançar, pôr), ademais de rimarem e participarem do ritmo da composição, colaboram para a
realização do desabafo do autor e atribuem viés acessível à obra, aproximando-a da população
mais simples.
Evitando a repetição desnecessária de palavras, usam-se sinônimos de Deus (Divino/
Senhor) especialmente com letra maiúscula com o fim de ratificar a participação particular e
sublime do ser superior.
No tratamento ofertado aos que prejudicam a massa, não há singularização especial,
indicando que qualquer um que aja daquela maneira mereça as referentes ofensas. Assim,
quem põe água no leite dos outros faz jus ao título de panaca; os que obrigam o povo a
enfrentar filas por alimentos merecem a caracterização de cretino e os responsáveis pelas
perdas financeiras, ironicamente, são chamados de doutor. Ironicamente, porque, a princípio,
doutor é o tratamento utilizado quando se quer ressaltar a formação acadêmica de alguém.
Nesse contexto, os conhecimentos não foram mobilizados para o bem comum, pois
acarretaram prejuízo econômico, dano realçado pela combinação sonora (recurso fonológico:
rima) de dinheiro e inteiro, pelo emprego do ajunto adverbial temporal o ano inteiro e pela
ideia de completude advinda do próprio vocábulo inteiro.
Os versos exclamativos (não há quem aceite!) e (não tem condição!) compõem rimas
com leite e feijão (palavras relacionadas à crise dos alimentos que o país vivia) e corroboram
com o tom inconformado inerente às denuncias propagadas pelo artista.

Música: Fliperama (1991/ 1993)

RESUMO: Em Fliperama, composta já em 1991, Gonzaguinha tem seu “fascínio


tecnológico” interrompido pela surpresa desagradável proveniente da entrevista de um dos
militares da época da ditadura. Inicia-se, então, um processo de frustração advinda da
sensação/constatação do esforço em vão, do (alto) preço que se pagou por uma mudança que
não ocorreu plenamente e que, tempos depois, apresenta suas consequências. O episódio cria
um temor pelo fim da “paz democrática”, e esse receio desencadeia um processo de mal-estar
que culmina, disfemicamente, no produto de uma náusea e, como num ciclo, o autor ratifica
seus limites para ver e suportar determinadas situações.

ESTUDANDO A MÚSICA (OS VERSOS)...


67

O título Fliperama divulga, antecipadamente, a relação do texto com objetos


eletrônicos e avanços científicos, comuns ao processo de modernização. Palavras como
“lente”, “tecnologia”, “máquinas”, “eletrônicos”, “ciência”, “satélites”, e até o estrangeirismo
“flashes” corroboram para a construção dessa atmosfera cibernética. A frieza da robótica,
entretanto, é contraposta aos sentimentos do autor. Tem-se, então, o binômio objetos-
sensações regido pelo eu- lírico.
Ainda no âmbito lexical, observa-se também uma tendência ao disfemismo. O
compositor seleciona palavras mordazes que propagam imagens desconfortáveis a fim de
ilustrar seu incômodo. “Porco”, “berra”, “sangra”, “barriga”, “vomito”> “vômito” e “engulo”
são, indubitavelmente, vocábulos de efeitos expressivos mais agressivos que termos como
“suíno”, “emite brados”, “verte o líquido rubro da vida”, “ventre”, “lanço”, “produto de
náusea” e “tomo”> “ingiro”.
Os recursos linguístico-expressivos não são desenvolvidos somente no nível lexical. A
combinação dos elementos na frase e sua extensão também auxiliam nos efeitos emotivo-
expressivos. Nos três primeiros versos, por exemplo, o enunciador intensifica a (de)limitação
de seu olhar, ao partir de uma frase longa (Da minha janela aberta para o mundo eu vejo
tudo) para outra menor (Eu vejo quase tudo!) e, em seguida, para uma construção ainda mais
curta (Vejo quase tudo). Tal restrição advém do emprego da palavra denotativa quase
anteposta ao pronome indefinido tudo, relativizando-o no 2º verso e da ressalva expressa pela
exclamação e da elipse do sujeito eu no 3º verso.
A repetição de “Eis aí” iniciando os versos 23, 24 e 25 enumera ironias relativas aos
progressos da modernização e realça a frustração do eu-poético ao reencontrar um antigo
desafeto.
A partir dos versos 4 e 5, o compositor empreende uma narração fragmentada, de viés
imagético, com escassos verbos e parcos elementos coesivos, o que colabora para o efeito de
sucessão atribulada e intensa das experiências vividas pelo autor. Em contrapartida a essas
economias verbal e coesiva, tem-se um texto marcado efetivamente por advérbios, adjetivos,
substantivos abstratos, bem como por suas respectivas locuções, que formam um quadro de
sensações e percepções minuciosas reveladoras do deslumbre inicial e posterior desconforto
do poeta.
O uso de locuções adverbiais de lugar como: Da minha janela (v.01), Na minha
cadeira (v. 05), ali na esquina (v.11), em nossos corações (v.32), na boca (v.35), no meu
próprio pé (v. 36), no vômito (v. 37) e pelo chão (v.37) apontam os ambientes donde provêm
os objetos e as situações desencadeadores dos sentimentos do autor e onde os mesmos
68

incidem, isto é, onde acontecem, ou seja, alternam um efeito de ação e reação, explicitando as
origens dessas emoções, onde elas ocorrem e até onde se dão suas consequências.
Além desses termos, o advérbio de modo Confortavelmente (v. 04) dá início à ideia
primeira de bem-estar do enunciador, enquanto a locução adverbial temporal noutras guerras
(= anteriormente) (v. 21) confirma o incômodo originado pelo “reencontro” com o conhecido
general. Desconforto anunciado pelo “atropelamento” do delírio do autor por parte de seu
filho.
Os substantivos abstratos avanço (v. 07), eficiência (v. 07) e fluorescência (v. 16), por
sua vez, estão utilizados, claramente, em função adjetiva (A tecnologia é avançada e eficiente;
Aquelas explosões eram fluorescentes) e, assim, unindo abstrações a percepções particulares,
dão cor ao texto e conferem sensibilidade ao mesmo, ao revelarem as impressões subjetivas
do autor. Outras observações pessoais e caracterizações também são expostas por adjetivos,
locuções adjetivas e adjetivos verbais. Entendam-se por adjetivos verbais os particípios que
exprimem, sobretudo, estados.
Dessa forma, distraída (v.08) reflete como o eu- lírico entende sua mente naquele
instante; maravilhosas (v. 09), anteposto ao substantivo “máquinas”, intensifica,
emotivamente, a caracterização de tais aparelhos - produto do milagre tecnológico;
eletrônicos (v. 12) especifica o tipo de brinquedos e contribui ao conjunto lexical referente à
modernização científica; fascinantes (v. 13), também preposto ao substantivo ruídos, revela o
enlevo do enunciador pelo som emitido pelas máquinas; reais (v. 14) tenta conferir
credibilidade aos combates virtuais; linda (v. 15) aviva o efeito prazeroso que a
“fluorescência das explosões” proporciona ao autor; de artifícios (v. 18) ou artificiais
distingue os fogos em questão; velho (v. 20) à frente de “general” indica familiaridade e não,
necessariamente, a idade avançada do militar mencionado (Para a construção deste último
efeito citado, o adjetivo velho deveria estar posposto ao nome general); velhos (v. 22) frente a
“carnavais” indica tempos passados, experiências pelas quais o enunciador já passou;
fantásticas (v. 34) posicionado anteriormente a “jogadas” indica alto teor emotivo por parte
de quem contempla os mecanismos comerciais; vencido (v. 21), cravada (v. 32), revolta (v.
35) e aberta (v. 38) denotam as condições ou estados dos seus respectivos referentes:
“personagem”, “espada”, “barriga” e “janela”.
Por fim, os três últimos versos (38, 39 e 40) constroem uma espécie de estrutura
cíclica ao repetirem a estrutura dos três primeiros. O autor parte, igualmente, de uma frase de
extensão considerável (Da minha janela aberta para o mundo engulo tudo) para outra menor
e relativizada, dessa vez, pela palavra denotativa “quase” e pelo uso de reticências (Engulo
69

quase tudo...) e encerra o texto com uma de estrutura ainda menor (Quase tudo!), que insiste
na demarcação de seus limites de tolerância.

Música: Geraldinos e Arquibaldos (1975)

RESUMO: Em Geraldinos e Arquibaldos, registrada em 1975, Gonzaguinha se vale do


futebol – a tão conhecida paixão nacional – para apresentar as instruções que deviam ser
seguidas para a conquista da vitória (no caso, a derrocada da Ditadura). Primeiramente, o
autor lista obediências comuns, quotidianas aos cidadãos. Em seguida, ele aproxima as
disputas esportiva e política, a partir da combinação de sequências imperativas, expressões
populares e vocabulário característico do desporto em questão, passando sua mensagem de
maneira criativa e eficiente, uma vez que criou uma atmosfera familiar ao dito “povão”,
minimizando as possíveis dificuldades de compreensão do mesmo.

ESTUDANDO A MÚSICA (O TEXTO)...


O título da canção encarrega-se do prelúdio de teor “futebolístico” da obra, a partir do
emprego das palavras “geraldinos” e “arquibaldos” (termos criados e, originalmente
divulgados, por Washington Rodrigues); referências claras às localizações de preços mais
populares nos estádios. Assim, “geraldinos” equivale aos espectadores que frequentam a
região mais próxima ao campo (“geral”), de visualização menos privilegiada e, portanto, de
menor valor; e “arquibaldos” corresponde à plateia encontrada nas arquibancadas, área de
melhor visibilidade que a “geral”, maior número de lugares e de conforto relativo, devido à
mencionada lotação e proximidade dos assentos. Ambas as delimitações ficam distantes dos
espaços visualmente mais elevados, mais confortáveis e, consequentemente, mais caros.
Dessa maneira, constata-se que a obra assim nomeada é destinada aos, ou fala acerca dos
indivíduos distantes do poder.
Entretanto, esse anúncio desportivo não é efetivamente concretizado na primeira parte
do texto, destinada às recomendações comportamentais. Apenas em momento posterior, o
autor realiza as contiguidades semânticas relativas a futebol e atitudes.
Nesse momento inicial de aconselhamentos, percebe-se como principal recurso
linguístico-expressivo o uso do modo verbal imperativo, especialmente, em sua forma
negativa (“não faça!”, “não fale!”, “se cale!”, “não ande!”, “não corra!”, “não pise!”, “não
fume!”, “olha”, “silêncio!”, “não siga!”, “não vire!”, “vá sempre em frente”), construindo a
sensação exaustiva de recebimento passivo de indicações numerosas e de origens diversas
70

(“Mamãe”, “Papai”, “Vovô”, “Placas de rua”, “Placas no verde”, “No luminoso”, “o


hospital”, “sinal vermelho”, “setas de mão”); e, demonstrando, a tentativa de se colocar o
interlocutor como uma espécie de marionete, largamente manipulada em sua posição de, até
então, espectador-paciente.
Somente em uma segunda ocasião, observam-se ativamente as ilustrações e sugestões
concernentes ao teor esportivo mencionado. Nomes como “campo”, “adversário”, “bola”,
“jogo”, “goleiro”, “titular”, “seleção” e os verbos “jogar”, “ganhar”, “rolar”, “tratar” e
“chutar” auxiliam à composição do cenário de uma partida intricada, durante a qual os
jogadores são orientados a trabalhar com calma e de todas as maneiras possíveis em busca da
vitória: “Procurando a brecha pra poder ganhar”, “Acalmando, rolando, tratando, limpando
a bola”, “tentando por cima, por baixo e com a cabeça também”.
A complicada partida-batalha atualiza e ratifica tal característica pelas expressões
populares indicadoras de dificuldade: “É cama de gato”, “tá um osso”, “angu que tem
caroço” e vocábulos qualificadores como “titular” e “seleção”.
No mais, o complexo embate é classificado como imprescindível à vitória. O êxito
seguramente será obtido após a persistência das várias tentativas (“é preciso faturar”, “é
preciso desembolar”).

Música: Má-gica (1988)

RESUMO: Gonzaguinha não cantou apenas as questões humanas de seu país. O poeta
também soube perceber e lamentar os desmandos e descuidos com o meio ambiente. Como
acontece em Má-gica, um retrato da devastação ecológica que acoima os equívocos e
consequências acerca do mau trato à natureza.

ESTUDANDO A MÚSICA (O TEXTO)...


No intuito de relatar a destruição do bioma brasileiro, Gonzaguinha constrói uma
sequência de acontecimentos que explicam o imediato desaparecimento de relevantes ícones
da geografia brasileira, remetendo a grandes falhas da humanidade como a construção e uso
de bombas atômicas. Com versos portadores de sintaxe de cunho oral, o autor trata da
implicação maior, resultante do desrespeito ao meio-ambiente: a morte.
A ideia paradoxal presente já no primeiro verso (lindo passe de mágica e trágico
assassinato) prepara o leitor/ouvinte para as tragédias que ocorrem em cadeia e em ritmo
veloz -passe de mágica. Juízo ratificado pelo verso posterior Agora você vê! Agora você vê
71

mais não!, o qual utiliza o mesmo marcador temporal -Agora- e a construção tipicamente oral
mais não para apontar e lastimar a transformação ligeira sofrida pelos recursos naturais, que
pode ser vinculada às guerras dos EUA contra o Japão e Vietnã devido à posição contígua do
verso Rosa de Hiroshima, Laranja do Vietnã.
Considerando a relação intrínseca entre homem e natureza, a figura e a cultura
indígenas também são abordadas de modo a demonstrar o fim como decorrência inevitável
dos erros humanos. O verso O pacto de morte índio, a vida que vinha vem mais não, enfatiza
de tal ideia por meio da seleção das palavras pacto e morte, e da disposição posposta dos
termos mais e não com relação ao verbo vir. A acomodação comum seria a vida que vinha
não vem mais. Ao aproximar seguidamente os vocábulos em questão, o eu-lírico revela
desconforto em dar a notícia, por isso coloca a negativa no final da oração e, assim, acaba
intensificando o dito.
Tem início, então, um encadeamento de desastres ecológicos temporalmente
localizados a partir da ocorrência do vocábulo quando e enumerados sob a realização de uma
coordenação aditiva (E quando a flor abortou e a água do rio matou/ E a chuva, na pele doeu
e o Sol não brilhou mais). Esses versos, de valor ora metafórico (E quando a flor abortou e a
água do rio matou) ora hiperbólico (E a chuva, na pele doeu e o Sol não brilhou mais)
pretendem ilustrar e mensurar a degradação do ambiente a qual culmina na total
“desrregulação” e uniformidade das atividades naturais como dia e noite (O céu foi uma só
cor: a mesma noite no dia) e o silêncio mortal percebido também pela aliteração no verso Foi
tudo uma só estação, silêncio e solidão.
Após esse ápice, a morte é estendida aos alvitres e filhos daquele espaço pela repetição
de não nasceram mais!, bem como a ícones da vegetação e fauna brasileiras a partir de
construções nominais como Morte na Amazônia, morte no Pantanal/ A morte do “véio
Chico”. Especialmente em “véio Chico” percebem-se, respectivamente, os fenômenos
fonológico e morfológico da vocalização (velho>véio), comum do falar interiorano, e a
redução do nome Francisco (em menção ao Rio São Francisco, um dos mais importantes da
hidrografia brasileira) a Chico.
Conforme em a vida que vinha vem mais não, a organização seguida e de posição final
dos vocábulos mais e não no verso Beleza que tinha, tem mais não indica descontentamento
com a informação e, simultaneamente, põe a mesma em evidência, ao chamar a atenção para
uma construção incomum. Cumpre apontar, no mesmo verso, o emprego do verbo ter com
sentido de existir, prática corriqueira da modalidade oral da língua que confere à obra um tom
informal que equilibra a seriedade do tema e da abordagem.
72

Por fim, a repetição do 4º verso encerra a canção, ratificando a ligação essencial


existente entre homem e meio-ambiente e os resultados irreversíveis do desequilíbrio de tal
ligação.
Ao término da leitura integral, compreende-se de maneira plena a fragmentação do
título. Mágica transforma-se em Má-gica, anunciando, de modo ainda velado, a negatividade
do tema e a rapidez do processo de degradação ambiental sofrido pelo País.

Música: Meninos do Brasil (1988)

RESUMO: Ao apresentar a origem inusitada e a rotina de atividades absurdas de menores de


idade, Meninos do Brasil denuncia as vergonhosas e periclitantes situações às quais jovens e
crianças são submetidos. Num desfile de personagens pitorescos, Gonzaguinha relata a face
de um país que encobre duras realidades e as esquece durante o Carnaval.

ESTUDANDO A MÚSICA (O TEXTO)...


A ascendência curiosa e diversa de púberes, bem como as condições físicas dos
mesmos é o assunto dos três (03) primeiros versos de Meninos do Brasil. Ainda que associe,
entretanto, a genealogia dos personagens a substantivos abstratos de valor predominantemente
positivo (sensatez, justiça, amor, herança e loucura), criando, dessa maneira, uma expectativa
de viés agradável, o autor rompe com essa aparente promessa e apresenta uma grande ironia,
percebida após a exposição da sequência de tristes quotidianos, nos quais onze (11) jovens de
diferentes partes do Brasil enfrentam conjunturas infelizes.
O quarto (4º) verso Os meninos do Brasil pedem para desfilar dá início à exposição
“enumérica” das mazelas desses personagens tão singulares e, ao mesmo tempo, recorrentes.
Únicos à medida que participam dos versos com seus nomes próprios e, alguns, incomuns.
Repetitivos, pois representam apenas uma parcela dos que sofrem com tais conjunturas.
O estreante da passarela das desonras brasileiras é Césio, de Goiânia. Constituindo
clara referência ao perigoso elemento químico césio 137 que contaminou, molestou e matou
muitas crianças e adultos na mencionada cidade na década de 70. A substância possui a
característica de ser luminosa, daí a aparição de Césio ser a primeira e ele adorar brilhar no
escuro.
Nana, a personagem seguinte, cujo nome nos remete ao diminutivo afetivo empregado,
geralmente, para crianças de nome Sebastiana, é de Belém e só brinca em cima do trem,
afirmações que possibilitam duas interpretações igualmente deploráveis. A primeira de que
73

Nana se prostituísse – prática divulgada comumente pelos jornais como frequente na região
Norte. Nesse sentido, a palavra trem seria usada eufemisticamente com o valor de pênis. Uma
outra alternativa é a situação de perigo das crianças que, abandonadas ou sem a devida
orientação, aventuram-se em cima de trens que cortam o estado do Pará. A rima formada pela
combinação de Belém e trem confere especial sonoridade ao verso e colabora ao ritmo do
texto.
Lívia e Miriele representam aqueles que sofrem com as enchentes. Percebe-se, nessa
passagem, uma ironia a partir do emprego do verbo surfar – atividade esportiva normalmente
realizada por jovens de classe alta ou que moram próximo à praia – associado à ocorrência de
uma situação calamitosa e de forças superiores como as da natureza: as inundações.
O quinto nome a figurar Luizinho, do São Carlos permite uma vinculação do
personagem ao próprio autor – Luiz Gonzaga do Nascimento Jr. – que foi morador do Morro
de São Carlos, no Rio de Janeiro. Esse recurso admite a leitura de que qualquer Luiz,
inclusive o compositor que lá viveu, pudesse estar na condição de aprendiz de traficante,
mencionada no verso como avião – termo utilizado nas comunidades carentes para designar
garotos que iniciam sua vida no comércio de drogas, entregando “mercadorias”.
Ironicamente, Jorge realiza seu preparo físico correndo de um fantasma político: a
repressão, passagem que ilustra o trauma e os resquícios dos horrores vividos na Ditadura.
Lena, a representante mineira nesse quadro deplorável, participa do texto como
usuária de drogas. Tal qual no verso Nana que é de Belém, só brinca em cima do trem, a
construção Lena, lá de Carangola, limpa o nariz com cola, ao combinar sonoramente as
palavras Carangola e cola, rima e reforça o ritmo da composição.
Chico, Tadeu e Tavinho, por sua vez, formam parte dos grupos que promovem assaltos
em massa, geralmente, em praias, também chamados de arrastões.
Solemar encerra o deplorável desfile, configurando um caso de violência sexual contra
a mulher, realizado pelo próprio pai.
Paradoxalmente a esses absurdos, o autor afirma, com ironia, que todos estão felizes e
na mídia, querendo viver e gozar seus direitos (parte do bolo/ carnaval), pois fazem parte
desse rolo (país) e o representam genuinamente, uma vez que – São meninos do Brasil, têm a
cara do Brasil, o jeitinho do Brasil.

Música: O homem falou (1975)


74

RESUMO: Hino ufanista de exaltação à nova república, O homem falou motiva a fé do povo
brasileiro para os novos tempos e possibilidades, aproximando, de maneira conotativa, o país
à estrutura e organização de uma escola de samba que pretende, calorosamente, vencer o
campeonato. As profecias positivas são sempre associadas a atitudes harmônicas que
estimam o desempenho grupal, de modo a aquilatar a unidade como o grande diferencial
responsável pela performance adequada e perfeita.

ESTUDANDO A MÚSICA (O TEXTO)...


A ideia de união não só é propagada, mas reiterada pelo texto, visto a ocorrência do
uso da primeira pessoa do plural: nós. Dos dezenove (19) versos que compõem a canção, doze
(12) contam com a indicação de tal pessoa por meio dos vocábulos Nós, nossa(s), Vamos e a
gente. A valorização do grupo, entretanto, não ocorre apenas a partir da menção e repetição da
primeira pessoa do plural, indicadora também da participação do eu-lírico no conjunto; mas
pela valorização da presença de cada integrante da equipe (Nós precisamos de você nesse
cordão(...)E o brilho das pessoas é bem maior), que é, então, igualada a uma família (traga o
seu coração, sua presença de irmão). Ademais, a frequência do verbo “ir”, (vamos) além de
indicar as ações realizadas (limpar o salão, cuidar da harmonia, levar o samba com união,
não deixar ninguém atrapalhar a passagem, nem chegar com sacanagem, muito menos
dispersar ou permitir que “uns e outro” “melem”), incita à agilidade, à pró-atividade, ou seja,
a não passividade frente ao novo momento de oportunidades para mudanças (Da unidade vai
nascer a nova idade).
A caracterização do novo período histórico (a nova república) como a probabilidade
de uma realidade mais feliz é consumada por meio da associação do país e sua nação à
disposição de uma escola de samba. Tal recurso nos remete à ideia de um carnaval, isto é, ao
tempo de comemorações, de alegrias tipicamente brasileiras. Nesse contexto, palavras como
festa, cordão, salão, harmonia, evolução, samba, pique, escola, passagem e dispersar situam
o leitor/ouvinte e visam a fazê-lo identificar-se e, consequentemente, integrar-se ao bloco.
Além dessa referência a um traço da cultura brasileira, o autor traz para o texto outro
elemento da vida real: a figura do Presidente. Ao afirmar no título, e confirmar, no último
verso, que O homem falou, Gonzaguinha determina, pelo uso do artigo definido o nos dois
extremos – início e fim – da música, que a pessoa em questão é alguém de grande expressão,
no caso, o então presidente Tancredo Neves – anunciador das novas perspectivas. Confere,
assim, mais veracidade e credibilidade à sua fala.
75

O poder da união, tão divulgado pelo artista, é aqui louvado como a luz -solução e
motivação- para o “por vir”(E é pra chegar sabendo que a gente tem o Sol na mão/ E o brilho
das pessoas é bem maior/ E irá iluminar nossas manhãs). O léxico formado por Sol, brilho,
iluminar e manhãs, somado à recorrente coordenação de orações aditivas, intensifica a força
do povo capaz de promover alterações significativas no quotidiano nacional.
A abordagem conotativa, bem como o tom simples adotado pelo artista corroboram a
propagação dos conceitos e ideais a partir da identificação com a realidade e o linguajar
rotineiro das camadas mais populares. Expressões de viés oral como Vam’bora e “uns e
outro”, e o emprego do verbo melar em seu sentido popular de “estragar” achegam o texto a
um maior público: a massa – foco e ponto de partida do artista.

Música: Pelo Brasil (1983)

RESUMO: Pelo Brasil delineia caminhos percorridos pelo artista em turnê. As impressões e
constatações apreendidas pelo compositor frente às localidades visitadas em suas andanças
são apresentadas de maneira plástica e criativa, explorando a disposição visual das palavras,
bem como as possibilidades expressivas de nomes e siglas.

ESTUDANDO A MÚSICA (O TEXTO)...


Ratificando sua proposta sintética e anunciadora, o título Pelo Brasil indica a direção
“macro” dos caminhos do poeta. Em viagem por seu país, o cantor observa a multiplicidade
de realidades e as apresenta segundo sua percepção.
A partir da acomodação peculiar de nomes de cidades e estados do Brasil, bem como
de suas siglas e os espaços em branco, o autor esboça faixas de uma rodovia e placas nela
presentes, reiterando as ideias de peregrinação pelo país e a sua imensidão.
Ao organizar expressivamente as palavras, Gonzaguinha manipula seus sentidos por
meio de jogos sonoros. No oitavo verso, em Pira se acaba percebe-se, para além das
instruções do modo verbal imperativo, a referência à localidade paulista de Piracicaba.
Constatação corroborada pela sigla (SP) disposta à direita do mesmo verso. Na vigésima
terceira linha, a menção ao estado do Ceará configura diversas possibilidades por conta da
entonação realizada. Além de atuar como um vocativo para o estado nordestino em questão,
Ceará pode indicar uma indagação (Será?) que suscita dúvida quanto à chegada de um novo
tempo, afirmado no verso anterior Nova Era virá.
76

A pluralização dos topônimos João Pessoas e Fortalezas, versos cinco e seis,


multiplica as ideias das palavras manipuladas. Existiriam, assim, vários joões, pessoas e
fortalezas no país. A pluralização genuína do vocábulo Palmas, por sua vez, é explorada de
modo a referir-se a seu homônimo, cujo sinônimo é aplausos.
Com tom agridoce, o compositor combina os vieses terno e crítico, tratando das
expectativas positivas frente aos rumos do país e das desigualdades nele existentes.
Substantivos como Saudade, Redenção e Esperança, e adjetivos como Boa e Nova mesclam-
se a Amargosa e Sombrio, revelando a heterogeneidade entre o Norte (Sombrio) e o Sul
(Maravilha) do Brasil. O convite à mobilização – solução das questões – fica por conta dos
substantivos Contenda, Piquete, União e Batalha, indicativos do conflito inevitável e
necessário.
Ao construir uma canção que relaciona ativamente forma e conteúdo, Gonzaguinha
aproxima ainda mais música e poesia por meio da literatura, autorizando, assim, o seu
emprego em sala de aula. Como uma espécie de poesia concreta (designação dos textos que
aproximam o relevo gráfico dos vocábulos), Pelo Brasil ilustra e propaga a sensibilidade de
um poeta apaixonado e conhecedor de sua terra e suas circunstâncias.

Música: Recado (1978)

RESUMO: Recado é uma composição que se propõe a realizar exatamente o que anuncia:
comunicar informações. Ao “mandar” seu recado, o autor lista uma série de ocasiões de ação
e reação relativas ao comportamento humano que apregoa a ideia “se fizeres o bem, receberás
o bem”; e enumera convicções pessoais referentes a diversos temas, dentre eles, liberdade e
solidariedade.

ESTUDANDO A MÚSICA (O TEXTO)...

A palavra Recado, na posição de título da canção, configura um sedicioso convite,


uma vez que noticia a comunicação de informações, convidando e seduzindo, assim, qualquer
pessoa a participar da intrigante composição.
Inicialmente, a organização de perturbadoras hipóteses, principiadas pelo emprego de
orações subordinadas adverbiais condicionais (“Se me der um beijo”; “Se me der um tapa”;
“Se me der um grito”; “Se mandar calar”), apresenta dados que revelam a conduta ativa e
77

insubmissa do eu-lírico que responde, efetivamente, às ações que lhe ofertam (“eu gosto”; “eu
brigo”; “não calo”; “mais eu falo”).
Coordenadamente a essas hipóteses de viés agressivo (“Mas”), o compositor reserva
espaço para outras possibilidades mais agradáveis (“se me der a mão”; “Se for franco, direto e
aberto”) e que estimulam e desvendam seu lado mais sensível de tom amistoso e solidário
(“claro, aperto”; “Tô contigo amigo, não abro”; “Vamos ver o diabo de perto”).
Após tais delimitações, o autor dá prosseguimento à comunicação, expondo juízos
subjetivos acerca de seu temperamento e de sua própria vida. Ao desabafar, ele utiliza
construções que demonstram a simplicidade linguística de quem deseja ser compreendido
informalmente, confirmando a proposta de recado anteriormente ofertada. Exemplos dessa
naturalidade idiomática são os usos da linguagem conotativa, do pronome de tratamento
específico e de expressão antitética.
O cunho figurado da expressão “Não engulo a fruta e o caroço” exprime o
procedimento seletivo e voluntário do eu-lírico em não aceitar imposições, facilmente
percebido nos versos “Quem mandava em mim nem nasceu” e “E se tentar me tolher é igual
ao fulano de tal que taí”.
Em “Minha vida é tutano, é osso”, a dificuldade quotidiana é realçada pelo valor
semântico da metáfora que explora a energia e rigidez das palavras tutano e osso.
A escolha da forma de tratamento “seu moço” põe o locutor em posição respeitosa
frente a seu interlocutor, o que pode revelar sua disposição subordinada, mais humilde e não
menos efetiva.
A antítese “Liberdade virou prisão” faz transparecer duas possibilidades de
entendimento. A primeira é a de transformação castradora da liberdade em controle. A
segunda é a de expressão poética da condição de impossibilidade de vida em outra situação
que não a de liberdade plena.
O artista começa, então, a fragmentar suas opiniões com sucessivas afirmações sobre
diferentes temas: amor, união, liberdade, insubmissão.
Ratificando o eixo-base ação X reação, percebe-se a defesa insistente da ideia “dar”
implica “receber” (Se é amor, deu e recebeu). Especificamente, neste momento, o compositor
aproveita para tratar de um assunto largamente abordado por ele em outra fase de sua carreira:
o amor. E o faz recorrendo à hipótese, de valor ilustrativo, que remete a momentos de
intimidade demarcados pela presença do vocábulo “suor”, da palavra denotativa“só”
(=apenas) e dos pronomes possessivos “meu” e “teu”.
78

Quando o conteúdo da proposição tem a ver com desempenho subjetivo, o artista é


direto, firme e convicto em seu posicionamento essencialmente coletivo. No verso “Verbo
“eu”, pra mim já morreu”, ele brinca com a classificação gramatical do pronome pessoal reto
“eu”, conferindo ao mesmo status de verbo; ou seja, tenta realçar a carga ativa referente a
movimentos, comum da maioria dos procedimentos verbais, com o fim de compor sua crítica
ao egocentrismo comodista. Corroborada pela afirmação pessoal “pra mim já morreu”,
entende-se que não se deve valorizar (conjugar) o que é puramente individual. Essa postura é
trabalhada de modo enfático, ao se aplicar no encerramento do texto a passagem hipotética
“Se é pra ir, vamos juntos, se não é, já não tô nem aqui.”, quando qualquer possibilidade de
ação solitária é prévia e calorosamente descartada. Desconsideração configurada pela
expressão oral “não tô nem aqui” que, em correspondência com a gíria não tô nem aí,
excluem o locutor de envolvimento ou comprometimento com a questão.
Por fim, o recado do eu-lírico comporta uma série de sugestões que dizem respeito à
compreensão advinda da experiência. Há que se passar por determinada situação para, então e
só assim, entendê-la (“É viver e aprender”/ “Vá viver e entender malandro”/ “Vá
compreender, vá tratar de viver”). Cabe indicar outro pronome de tratamento de cunho
popular “malandro” que, além de nos acordar sobre a estrutura interlocutora do recado,
mostra o tom informal da comunicação.

Música: Um sorriso nos lábios (1974)

RESUMO: Em Um sorriso nos lábios, gravada em 1974, Luiz Gonzaga Jr. expõe as
dificuldades quotidianas das camadas mais populares e sua busca por dias melhores; ainda
que à custa da prática exaustiva de sorrisos forçados, ou por meio de recomendações
equivocadas. O eu-lírico desvela a tentativa de exibição de uma crível felicidade, meramente
superficial e figurativa, utilizando os efeitos reiterativos e, por vezes, massacrantes da
repetição.

ESTUDANDO A MÚSICA (O TEXTO)...


Logo no primeiro verso, o autor surpreende seus interlocutores, ao quebrar uma
expectativa positiva, oriunda do anúncio reticente de uma refrescante sensação; qualificando-
a, posteriormente, de forma negativa, ao identificá-la como um mal-estar. Incômodo ilustrado
e enumerado durante todo o texto por termos como: vidro, areia, pedra, sangue, roubo,
79

morte, noventa e cinco, suando, desgraça, prestação, fome, dureza, fundos, cerco, circo,
silêncio e anormal.
A cada série de males, corresponde um seguimento imperativo que sugere um sorriso
como forma de resolução das questões desagradáveis. Tal sequência sugestiva aparece de
maneira efetiva (dezesseis vezes, no decorrer dos dezenove versos que compõem a obra),
corroborando para a compreensão da ideia como única alternativa adotada, ou como indicação
mandatária, autoritária do que deve ser feito.
Além desse aconselhamento recorrente, outras opções, não menos deprimentes, são
ofertadas como saída. Curioso é perceber que dentre essas novas soluções, três são
especialmente apresentadas entre aspas (“sonha que passa” “toma cachaça”, “acha graça: “é
tão pouca desgraça”” v. 6 e 8), isto é, atuam como uma tentativa de construção de um
discurso, do tipo indireto livre, que aponta para voz(es) extra-texto, contribuindo à sensação
de um juízo não proferido nem valorizado pelo autor; principalmente se contrapostas à
Aguenta firme irmão, na oração Deus tudo vê e Deus dará!, indicação não marcada por aspas,
e propiciadora de uma maior proximidade entre eu-lírico e ouvinte, devido ao uso do
vocábulo irmão.
A construção do panorama diário do brasileiro é realizada pela menção a fatos e
elementos rotineiros, populares, característicos do país, bem como pela citação de lugares
conhecidos: jornal, condução, jogo, loteca, nego, nega, futebol, taça, Sol, Rio de Janeiro, São
Paulo. Informações que servem de subsídios para o processo de familiarização com o tema,
composição do cenário; e que colaboram à ideia de que, no fim das contas, a vida segue, tudo
segue (“o Rio de Janeiro continua lindo!”, “São Paulo a São Paulo continua indo!”, “a vida é
linda!”).
Ademais, a questão da valorização da “aparência”, em detrimento da “essência”, é
ratificada, no fim, a partir do convite à consumação de um retrato (“X: olha a fotografia!...”),
considerando-se que em uma foto cabem apenas os aspectos exteriores, captados,
limitadamente, pela visão.
80

5 CONCLUSÃO

Encerrando minhas considerações acerca da observação estilística de parte da obra


musical de Luiz Gonzaga do Nascimento Jr com vias para apreciação em sala de aula, ouso
afirmar que tal estudo não se finda. Seguramente, para além das ponderações que aqui se
apresentaram, outras se acrescentarão visto a abrangência do tema: música no ensino e as
múltiplas possibilidades de leituras das canções apresentadas. Pontos técnicos essenciais, no
entanto, devem ser uniformemente percebidos como orientadores dos entendimentos-base que
permeiam a proposta.
Desde os apontamentos de cunho histórico, biográfico, passando pelas exposições
sobre poesia, música e ensino até o embasamento teórico e sua aplicação no corpus eleito,
tornou-se um prazer adentrar no universo musical de Gonzaguinha. O encantamento
proporcionado pelas conquistas políticas em tempos tão difíceis levou-me a invejar os que
naquela época viveram e que, como o artista em questão, fizeram algo pela história de seu
país.
A aproximação entre poesia e música me proporcionou apreciações que aguçaram
minhas percepções acerca da linguagem, seu alcance e suas potencialidades expressivas; daí o
interesse de seu uso no ensino de Língua Portuguesa.
A pesquisa de fundo teórico-metodológico concedeu-me o suporte científico de que
necessitava para apreender e demonstrar, de maneira técnica, traços da personalidade
linguística do autor, ou de qualquer outro artista ou gênero textual. A Estilística se mostra
uma ciência extremamente generosa ao considerar e desvelar a subjetividade humana por
meio da língua.
Descobri, então, que música e literatura apresentam poeticidade e lirismo
extremamente aproveitáveis em sala de aula, desde que o professor considere as distintas
concepções e situações sócio-comunicativas, bem como aponte suas agnações. Aproximar as
composições de um cantor como Gonzaguinha de poesias como a condoreira e a modernista,
por exemplo, parece-me oportuno e democrático, uma vez que proporciona ao educando uma
abordagem diferente da tradicionalmente ofertada nas escolas, contempla a
interdisciplinaridade de maneira efetiva e fomenta o interesse do estudante ao aproximar o
ensino de fatos – passados e/ou atuais – da vida real.
Perceber os resultados dos usos de determinadas classes gramaticais, as motivações e
propósitos do emprego de organização sintática específica, não mais em exemplos
81

artificialmente confeccionados e descontextualizados, mas em oportunidades integrais de


comunicação, auxilia na compreensão das alternativas linguísticas e na percepção de aspectos
relevantes como coesão e coerência. Não se trata de se valer de música para expor de forma
menos desagradável os conceitos de certo e errado, mas de explorar e degustar as peripécias
linguísticas de verdadeiros ourives do idioma: desde o simples falante ao mais sensível e
desenvolto artista.
Com essas pressuposições, observei que Gonzaguinha propagava suas ideias e ideais
forjando a língua a seus interesses: ora de denunciar, ora de desabafar, ora de enaltecer, ora de
mobilizar a sociedade. A partir de um gênero musical popular como o samba, difundia sua
percepção e consciência sobre a realidade nacional por meio de um discurso simples, direto,
irreverente com espaço para divertidas ironias e contundentes reflexões de cunhos social,
político, econômico e cultural, cuja difusão atingia facilmente desde as classes mais baixas
aos mais privilegiados ou poderosos cérebros da sociedade.
De forma expressiva, o artista retratou o quotidiano de dificuldades financeiras e
políticas superado por meio de preferências nacionais como o futebol e a música. Explanou as
dores e os prazeres de ser um brasileiro nas décadas de 70 e 80 com força poética advinda das
escolhas lexicais, que mesclam sintagmas de núcleos verbal e nominal delineadores da rotina
dos brasileiros pertencentes às classes menos favorecidas.
A energia lírica também é proveniente da total exposição do enunciador como
participante do processo de comunicação. O cantor assumia seu posicionamento pessoal e
expressava seus juízos de valor a partir da exposição da 1ª pessoa – ora do singular, ora do
plural; de adjetivos (substantivados ou não) que beiravam à agressão verbal e do uso do
discurso direto, que ressaltava seus ditos.
Quanto mais indignadas as suas falas, mais palavras de viés revoltado como panaca,
babaca e bunda aparecem nos textos. Conforme seus anseios democráticos, mais vocábulos
de cunho nacionalista como povo, nação e cidadão participavam da composição.
As inovações linguísticas, as gírias e a presença de palavras estrangeiras auxiliaram no
reflexo da dinâmica do idioma, bem como reproduziram a fala dos personagens.
Evidenciaram suas insatisfações, seus prazeres e configuraram a enunciação com a
combinação das modalidades oral e escrita da língua.
A morfossintaxe foi enfocada, assim, na recorrência dos substantivos e verbos. Os
primeiros caracterizados por adjetivos e locuções; os últimos explorados a partir da
recorrência das prescrições expressas pelo Modo Imperativo e das constatações – afirmativas
ou negativas – do tempo presente do Modo Indicativo.
82

Os versos mais longos arquitetaram frases de viés narrativo ou comportaram


enumerações expressivas. Os mais curtos, geralmente marcados por exclamações ou
sentenças imperativas, admitiram teor mais direto em suas declarações. Suas relações lógicas
se estabeleceram principalmente pelo uso da conjunção aditiva e, da adversativa mas, da
condicional se e da explicativa pois, também em seu valor conclusivo, delineando as ideias de
enumeração, oposição, condição, aclaração e definição recorrentes em seu discurso. As
repetições nominais ou verbais trataram da ratificação do tema ou do posicionamento do
autor, alternando o emprego dos mecanismos de coesão e coerência, de acordo com seus
objetivos expressivos.
Em termos gerais, as turmas em que desenvolvi atividades com textos musicais
puderam perceber que a formação de palavras se desdobra sobre possibilidades lexicais, que a
multiplicação de determinada(s) classe(s) de palavra(s) influencia na construção da mensagem
e que o uso de conjunções aponta para relevantes trações semânticos da elaboração sintática,
estabelecendo a coesão e a coerência .
Os jogos sonoros ressaltaram versos ou ratificaram seus conteúdos. Por muitas vezes,
a seleção vocabular explorou especialmente o tema, desvelando, na conjugação dos planos
sonoro e lexical, preferências que apontaram peculiaridades de fundo ideológico, subjetivo.
Rimas, repetição de fonemas e palavras, construções paralelísticas, versos curtos e longos
florearam a argumentação de Gonzaguinha, valorizando as palavras do compositor.
Dessa forma, no estudo linguístico-expressivo das canções, visando è evidenciação
do estilo do referido artista, a apreciação dos planos sonoro, morfossintático, léxico-semântico
e de enunciação mostrou-se como oportuna possibilidade didática para a apreciação de
músicas e outras composições artísticas que envolvam o idioma e variados autores.
Ao contrário do que comumente se julga, os jovens também são atraídos pelo que é
diferente de sua rotina ou tribo. Apresentar parte da obra e da história de Gonzaguinha a
adolescentes e pré-adolescentes foi extremamente compensador, pois, ao mesmo tempo em
que os estudantes construíam novos conhecimentos, os relacionavam, e até ajustavam, às suas
experiências. A partir dessa vivência, passaram a notar e a apreciar valores expressivos da
linguagem em artistas diversos e de distintos gêneros musicais. Assim, além de enriquecer o
contexto sóciolinguístico do aluno com a apresentação de um artista praticamente
desconhecido até então, preparou-se o educando para apreciação consciente e voluntária de
outros artífices da língua.
Por meio da observação da estruturação do plano ideológico presente na
argumentação, os jovens perceberam as relações normalmente estabelecidas entre enunciador
83

e co-enunciador em textos de protesto embasados por convicções políticas. Passaram a tecer


comentários sobre versos de rap e até acerca de slogans de candidatos políticos locais,
mostrando maior cuidado e consciência para com a recepção e o uso da língua.
Enfim, a variedade e o emprego competente dos recursos linguístico-expressivos
presentes na obra de Luiz Gonzaga do Nascimento Jr., bem como a história engajada do
artista autorizam o uso da música como eficiente e eficaz material para as aulas de Língua
Portuguesa propiciando práticas pedagógicas que, ademais de promoverem a aprendizagem
do conteúdo dito tradicional, permitem um ensino democrático ao aproximar o aluno de sua
língua materna numa abordagem dialógica mais consciente, que se pretende, se não
permanente, ao menos duradoura.
Apreciar produções contraculturais de tão alto nível, reveladoras de uma sensibilidade
agridoce incomum, desperta-nos para a mistura de sentimentos arrebatadores que envolvem
nossa relação com a nação a qual pertencemos. Contemplar continuamente um bardo
fascinado por seu país, sua gente, nos envaidece e acorda não só para a realidade, mas para as
possibilidades e para os augúrios venturosos derivados da inevitável luta. Como um profeta
generoso e guerreiro pró-ativo, Gonzaguinha nos brinda, adverte, encanta e inspira com
palavras e ações apaixonadamente contundentes.
84

REFERÊNCIAS

BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, Milton José de. Imagens e Sons. A nova cultura oral. 2. ed. São Paulo: Cortez,
2001. (Questões da nossa época).

ALVES, Ieda Maria. Neologismos. Criação Lexical. São Paulo: Ática, 1994.

ANDRADE, Mario de. Aspectos da Música Brasileira. São Paulo: Martins, 1965.

ALONSO, Damaso. Poesia espanhola. 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. Instituto Nacional do livro,
1960.

AZEREDO, José Carlos de. Fundamentos da Gramática do Português. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2000.

BASÍLIO, Margarida. Teoria Lexical. São Paulo: Ática, 1998.

BRANDÃO, Roberto de Oliveira. As figuras de linguagem. São Paulo: Ática, 1989.

BRÉAL, Michel. Ensaio de Semântica: ciência das significações. Trad. Aída Ferras... et. al.
São Paulo: EDUC, 1992.

CÂMARA Jr., Joaquim Mattoso. Contribuição à Estilística Portuguesa. 3. ed. ver.


reimpressão, Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico S.A, 1978.

CAMPADELLI, Samira Youssef. Poesia Marginal dos Anos 70. São Paulo: Scipione, 1995.
(Margens do Texto).

CARONE, Flávia de Barros. Morfossintaxe. São Paulo: Ática, 1998.

CARVALHO, Nelly. Empréstimos Lingüísticos. São Paulo: Ática, 1984.


85

CHAUÍ, Marilena de Sousa. Conformismo e Resistência. São Paulo: Brasiliense, 1994.

_______. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 5. ed. São Paulo:
Cortez, 1990.

COSTA, Nelson Barros da. As letras e a letra: o gênero canção na mídia literária. In:
DIONÍSIO, Ângela Paiva; MACHADO, Anna Rackel; BEZERRA, Maria Auxiliadora (org.).
Gêneros Textuais & Ensino. Rio de Janeiro: Ao livro Técnico, 1976.

CRESSOT, Marcel. O Estilo e Suas Técnicas. Lisboa: Edições 70, 1947.

CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. Nova Gramática do português Contemporâneo. 2. ed.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

DELAS, Daniel e FOLLIOLET, Jacques. Lingüística e Poética. São Paulo: Cultrix, 1975.

DUCROT, Oswald. TODOROV, Tzvetan. Dicionário das ciências da linguagem. 7. ed.


Lisboa: Don Quixote, 1991.

ECHEVERRIA, Regina. Gonzaguinha e Gonzagão: uma história brasileira. São Paulo:


Ediouro, 2006.

FARIA, Núbia Rabelo Bakker. Nas letras das canções a relação oralidade- escrita. Maceió:
EDUFPE, 1997.

FÁVERO, Leonor Lopes; ANDRADE, Maria Lúcia da Cunha V; de Oliveira; AQUINO,


Zilda Gaspar Oliveira de. Oralidade e escrita: perspectiva para o ensino da língua materna. 3
ed. São Paulo: Cortez, 2002.

FERREIRA, Martins. Como usar a música na sala de aula. 7. ed., 1. reimp. São Paulo:
Contexto, 2008

GARCIA, Othon Moacyr. Comunicação em Prosa Moderna. Rio de Janeiro: Fundação


Getúlio Vargas, 1974.
86

GOLDSTEIN, Norma. Versos, Sons, Ritmos. São Paulo: Ática, 2002.

GRAMSCI, Antonio. “Cadernos do Cárcere”. Edição Carlos Nelson Coutinho. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 2 v.

GUIRAUD, Pierre. A Estilística. Tradução de Miguel Maillet. São Paulo: Mestre Jou, 1978.

_______ . Essais de stylistique . Klincksieck: [s.n], 1969.

HENRIQUES, Cláudio Cezar & SIMÕES, Darcília Marindir P. (org.). A redação de


trabalhos acadêmicos: teoria e prática. Rio de Janeiro: EdUERJ,2002.

_______ . Língua e Cidadania: novas perspectivas para o ensino. Rio de Janeiro: Ed. Europa,
2004.

ILARI, Rodolfo. Introdução à Semântica – brincando com a gramática. São Paulo: Contexto,
2001.

JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes.
5. ed. São Paulo: Cultrix, 1971.

_______ . Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1995.

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. A Inter- ação pela Linguagem. 6. ed. São Paulo:
Contexto, 2001. (Repensando a Língua Portuguesa).

_______ . O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 2000.

LAPA, M. Rodrigues. Estilística da Língua Portuguesa. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes,
1998.

LIRA, Pedro. Conceito de Poesia. São Paulo: Ática, 1986.


87

LOBO, Luiza (org.). Teorias poéticas do Romantismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.

MARIZ, Vasco. A canção brasileira: erudita, folclórica e popular. 3. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977.

MARTINS, Nilce Sant’ Anna. Introdução à Estilística. A Expressividade na Língua


Portuguesa. São Paulo: T.ª Queiroz, 1989.

MATOS, Cláudia Neiva de; MEDEIROS, Fernanda Teixeira de; TRAVASSOS, Elizabeth
(org.). Ao Encontro da Palavra Cantada – poesia, música e voz. Rio de janeiro: 7 Letras,
2001.

_______ . Palavra Cantada: ensaios sobre poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7 Letras,
2008.

MEDINA, Carlos Alberto de. Música Popular e Comunicação. Petrópolis, Vozes: 1973.

MELO, Gladstone Chaves de. Estilística da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão,
1976.

MONTEIRO, José Lemos. A estilística: manual de análise e criação do estilo literário.


Petrópolis: Vozes, 2005.

_______ . Morfologia Portuguesa. Fortaleza: Edições UFC – PROED, 1986.

MUGGIATI, Roberto. Rock, o grito e o mito: a música pop como forma de comunicação e
contracultura. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1983.

NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de Usos da língua portuguesa. São Paulo:
Editora UNESP, 2000.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e Leitura. São Paulo: Cortez, 1999. (Passando a Limpo).

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.


88

PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. A questão estilística: de problemas e de alternativas. In:


PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves (org.). Língua e Linguagem em Questão. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 1977.

_______ . (org.). De textos sedutores e de suas possíveis leituras. Rio de Janeiro: UERJ.
DIALOGARTS, 2000. (Em questão)

PERRONE, Charles A. Letras e letras da MPB. Rio de Janeiro: Elo, 1988.

PIGNATARI, Décio. Informação. Linguagem. Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1965.

PORZIG, Walter. El mundo maravilloso del lenguaje. Madrid: Gredos, 1964.

POSSENTI, Sírio. Discurso, estilo e subjetividade. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

ROCHA, Ruth. O reizinho mandão. São Paulo: Quinteto, 1997.

SANDMANN, Antônio J. Morfologia Geral. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1993. (Repensando
a Língua portuguesa).

_______ . Morfologia Lexical. São Paulo: Contexto, 1992.

SANT’ ANNA, Affonso Romano de. Música popular e Moderna poesia Brasileira.
Petrópolis: Vozes, 1957.

SILVA, Emanuel Cardoso. Leitura: Sentido e Intertextualidade. São Paulo: Unimarco, 1997.

TATIT, Luiz. A canção: eficácia e encanto. São Paulo: Atual, 1986.

URBANO, Hudinilson et al. (org.). Dino Preti e seus temas: Oralidade, Literatura, Mídia e
Ensino. São Paulo: Cortez, 2001.

VALÉRY, Paul. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1999.


89

VANOYE, Francis. Usos da linguagem – problemas e técnicas na produção oral e escrita. 11


ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

VIEIRA, Airton. Você conhece esse moleque da cara Gonzaga?. Boa Vista: DLM, 2001. 1 v.

VILELA, Mário. Estudos de Lexicologia do Português. Coimbra: Almedina, 1994

ENDEREÇOS ELETRÔNICOS

CLIQUE MUSIC. Disponível em: <http://cliquemusic.com.br/artistas/gonzaguinha>. Acesso


em: 22 set. 2007

GONZAGUINHA. Disponível em: <http://gonzaguinha.com.br>. Acesso em: 22 set. 2007

DISCOGRAFIA

LUIZ GONZAGA JR. Luiz Gonzaga Jr.[S.l.]: EMI- Odeon, 1973. LP (Relançado em CD, em
1997, pela Gravadora EMI-Brasil).

LUIZ GONZAGA JR. Luiz Gonzaga Jr. [S.l.]: EMI- Odeon, 1974. LP (Relançado em CD,
em 1997, pela Gravadora EMI-Brasil).

LUIZ GONZAGA JR. Plano de vôo. [S.l.]: EMI- Odeon, 1975. LP (Relançado em CD, em
1997, pela Gravadora EMI-Brasil).

LUIZ GONZAGA JR. Começaria tudo outra vez. [S.l.]: EMI- Odeon, 1976. LP (Relançado
em CD, em 1997, pela Gravadora EMI-Brasil).
90

LUIZ GONZAGA JR. Moleque Gonzaguinha. [S.l.]: EMI- Odeon, 1977. LP (Relançado em
1997, pela Gravadora EMI-Brasil).

LUIZ GONZAGA JR. Recado. [S.l.]: EMI- Odeon, 1978. LP (Relançado em 1997, pela
Gravadora EMI-Brasil).

LUIZ GONZAGA JR. De volta ao começo. [S.l.]: EMI- Odeon, 1980. LP (Relançado em
1997, pela Gravadora EMI-Brasil).

LUIZ GONZAGA JR. Coisa mais maior de grande, PESSOA. [S.l.]: EMI- Odeon, 1981. LP
(Relançado em 1997, pela Gravadora EMI-Brasil).

LUIZ GONZAGA JR. Gonzagão e Gonzaguinha, discanso em casa, moro no mundo. [S.l.]:
EMI- Odeon/ RCA, 1981. Álbum duplo

LUIZ GONZAGA JR.Caminhos do coração. [S.l.]: EMI- Odeon, 1982. LP (Relançado em


1997, pela Gravadora EMI-Brasil).

LUIZ GONZAGA JR. Alô, Alô, Brasil. [S.l.]: EMI- Odeon, 1983. LP (Relançado em 1997,
pela Gravadora EMI-Brasil).

LUIZ GONZAGA JR. Olho de lince. [S.l.]: EMI-Odeon, 1985. LP (Relançado em 1997, pela
Gravadora EMI-Brasil).

LUIZ GONZAGA JR. Corações marginais. [S.l.]: Moleque- WEA, 1988. LP (Relançado em
CD, com o título É, na Alemanha, pela Gravadora World Pacific).

LUIZ GONZAGA JR. Cavaleiro Solitário. [S.l.]: SOM LIVRE, 1993. Ao vivo (Disco
póstumo)
91

ANEXO

1- Acalma (Disco: Corações marginais; 1988. Moleque- WEA/ Lado B, faixa 4)

Quando o tempo é de confusão, mantenha a calma no seu coração


Mantenha a calma: acalma!
Mantenha a fé e o pé no seu caminho
Mantenha o seu caminho, mantenha a alma: acalma!
Acalma, você já chegou aqui! Calma para prosseguir!
Fé para botar o pé no caminho a conquistar
Quando o tempo é de armação, mantenha firme a sua mão
Mantenha aceso o coração: atenção!
Mantenha a alegria que você já é
Não deixe que eles venham destruir o sonho por menor que for
É sempre bom a gente relembrar: calma não é irmã de frouxidão
Na calma a gente engendra a solução da ação
E a gente pode muito mais na calma, na calma
Quando o tempo é de armação, mantenha firme a sua mão
Mantenha aceso o seu coração
Mantenha a alegria que você já é
Não deixe que lês venham destruir: seria destruir o amor!
É sempre bom a gente relembrar, ô nego
Calma não é irmã da frouxidão, não
Calma é a força adonde a gente engendra a solução da ação
E a gente pode muito mais na calma, na calma, acalma!

2- A Cidade Contra o Crime (Disco: De volta ao começo; 1980. EMI- Odeon/ Lado B,
faixa 3)

- A cidade contra o crime!


- Cuidado Moreira!
92

- “zing”, “crash”, “pow”, “bang”, “pum”! Onda de violência se abate sobre as


cidades, todo mundo rouba todo mundo; ninguém sabe mais quem é ladrão ou quem é
polícia; cada vez pior o dia- a- dia!
Estava dando uns bordejos pelaí, quando, de repente, a figura apareceu
(E dentre tantos me escolheu!)
Mas, o barulho da cidade etá tão grande
Que eu não pude nem ouvir quando o pinta me rendeu:
(“não se movem aí ô meu!”)
Mas que pinóia, eu, o rei da paranóia
Que não largo a minha bóia mesmo quando estou a pé
(“Como é que eu dou esse azarão?”)
Eu faço parte desse medo coletivo
Já não sei nem se confio na polícia ou no ladrão
(A barra não ta mole não: ladrão já tem que andar com plaqueta de identificação
A dita anda dura mesmo com a abertura!)
O cara disse: “fica quieto e vai tirando toda a roupa
De conforme o que está no meu direito!”
(E eu só via um defeito)
A que eu vestia estava toda esburacada, remendada, esfarrapada
Bem puída, no maltrato (vou tentar fazer um retrato!)
Pensei depressa adonde estava aquela quina
Que sobrou do meu trocado que hoje chamam de salário
(trabalhador, tu é otário!)
E foi aí que eu notei que o pivete tremia muito mais que eu
Que tava pela bola sete (olhei melhor pro salafrário!)
Notei que a arma que o fulano segurava
Era meio que chegada a um cheiro de sabão
(Na rapidez meti a mão!)
O trinta e oito se partiu em zil pedaços
E o coitado do palhaço ficou meio sem ação
(Aproveita a confusão!)
Mandei que ele desvestisse a roupinha:
“tá mais limpa do que a minha!”
E inclusível a minha santinha (não esquece a sunguinha, hein, ô!)
93

Ele chorava de bobeira, me mostrando a carteira


Que continha a exploração do patrão:
-Me livra dessa, meu irmão, que eu não tive opção! A galinha comeu pipoca em cima
da minha solução! Tá caro tudo pro meu lado, já nem sei o que é feijão!
-Mas, acontece, meu amigo, que eu também tô a neném. A concorrência oficial não tá
deixando pra ninguém!

3- A Marcha do Povo Doido (Disco: De volta ao começo; 1980. EMI- Odeon/ Lado A,
faixa 3)

Esta é a Marcha do Povo Doido, seguindo o exemplo do “Samba do Crioulo Doido”,


feito por Stanislau Ponte Preta. Lá o crioulo ficou doido por ter que fazer o seu samba
enredo com todos os personagens da História do Brasil. Aqui quem está doido é o povo,
que parece ser o grande culpado pela crise de energia, pela carestia, pela polícia e
pelo mistério de uma coisa chamada anistia, que se você não sabe não permitiu ao
anistiado ser reintegrado ao seu trabalho, a não ser que passasse de novo por um novo
júri, uma nova censura, de modo que não atrapalhasse uma coisa chamada abertura!
Confesso: matei a “Dama de Tefé”! E muitos mais se ocê quiser
Eu sou qualquer José (mane) dos santos, da Silva, da vida
Confesso a culpa pela carestia e pela crise de energia
Eu sou o dono da Opep, ou Pepsi, ou Pop, ou Coca
Confesso (nem precisa bater!) e confessar me alivia
Vem, meu bem, me condena com aquela anistia
Me manda logo pra cadeia
Garanta um pouco a minha poupança
Pois, pelo menos estando em cana a minha pança
Vai ter um pouco de aveia ou feijão com areia.

4- Bom dia (Disco: Olho de lince; 1985. EMI-Odeon/ lado B, faixa 5)

Apesar de tudo estamos vivos


Pro que der e vier, prosseguir
Com a alma cheia de esperança
Enfrentando a herança que taí (meu Deus do céu!)
94

E nós atravessamos mil Saaras


Eu nunca vi gente melhor pra resistir
A tanta avidez, a triste estupidez
Ao “cada um por si”, ao brilho da ilusão
Digo na maior: melhores dias virão!
É um desejo desse enorme coração (e vamos!)
E vamos cuidar das úlceras, e vamos tratar dos pústulas
Justiça: remédio sensacional para levantar nossa moral
E para incrementar o ânimo, e pra fortalecer o fôlego
Um vinho constituinte bem popular
Para reforçar a saúde nacional (e então?!)
Bom- dia, bom- dia, alegria, alegria, alegria
Bom- dia, bom- dia, taí o que a gente merecia! (pra começar!)

5- Caminho da Roça (Disco: Moleque Gonzaguinha; 1977. EMI- Odeon/ Lado A,


faixa 5)

Eia! Vamos gente! Eia! Vamos povo!


Eia! Eia! Vamos cantar de novo!
Vivendo no escuro como sempre vive
Pulando a fogueira como sempre pula
Pisando na brasa como sempre pisa
Engolindo cobra como sempre engole
Vinho, muito vinho pra enganar a vida
Riso, muito riso pra esconder o pranto
Canto, muito canto pra quebrar o encanto
Suando na luta como sempre sua
Caminho da roça! Eia! Vamos lá!
Caminho na raça, fé no que virá!
Dança, roda, gira: tempo chegará!

6- Caminhos do coração- Pessoa= pessoas (Disco: Caminhos do coração; 1982. EMI-


Odeon/ Lado B, faixa 5)
95

Há muito tempo que eu saí de casa


Há muito tempo que eu caí na estrada
Há muito tempo que estou na vida
Foi assim que eu quis e assim eu sou feliz
Principalmente por poder voltar
A todos os lugares onde já cheguei
Pois lá deixei um prato de comida
Um abraço amigo, um canto pra dormir e sonhar
E aprendi que se depende sempre
De tanta, muita, diferente gente
Toda pessoa sempre é as marcas
Das lições diárias de outras tantas pessoas!
É tão bonito quando a gente entende
Que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá!
É tão bonito quando a gente pisa firme
Nessas linhas que estão nas palmas de nossas mãos!
É tão bonito quando a gente vai à vida
Nos caminhos onde bate mais forte o coração!

7- Coisa mais maior de grande (Disco: Coisa mais maior de grande, PESSOA; 1981.
EMI- Odeon/ Lado A, faixa 1)

Enquanto eu acreditar que a pessoa é a coisa mais maior de grande


Porque na sua riqueza revoluciona, ensina
Pois pelas aulas do tempo aprende, revolta por cima
Eu vou cantar... por aí!
Bonito é que gente é sempre assim tão diferente de gente
Assim como a voz que ecoa não é mais daquele que grita
E essa beleza na dessemelhança me aguça a cabeça, me agita
Eu vou cantar... por aí- que nada se repete sob o Sol
O movimento da vida não deixa que a vida seja sempre igual
(pois nada se repete, nem o Sol!)
Pois veja que o bem só é bem pra quem ele faz bem
Mas pr’um outro pode ser um mal (pois nada se repete sob o Sol!)
96

O pai já não é mais o filho, nem foi o avô e nem é o irmão


(nada se repete, nem o Sol!)
Que pena daquele que pensa na sua exata continuação
Na desparecença dos tempos aprendo as tranças e tramas das novas lições.

8- Comportamento Geral (Disco: Luiz Gonzaga Jr.; 1973. EMI- Odeon/ Lado B,
faixa 4)

Você deve notar que não tem mais tutu


E dizer que não está preocupado
Você deve lutar pela xepa da feira
E dizer que está recompensado
Você deve estampar sempre um ar de alegria
E dizer: tudo tem melhorado!
Você deve rezar pelo bem do patrão
E esquecer que está desempregado
Você merece, você merece
Tudo vai bem, tudo legal
Cerveja, samba e amanhã, seu Zé,
Se acabarem com teu carnaval?
Você deve aprender a baixar a cabeça
E dizer sempre: muito obrigado!
São palavras que ainda te deixam dizer
Por ser homem bem disciplinado
Deve, pois, só fazer pelo bem da nação
Tudo aquilo que for ordenado
Pra ganhar um fuscão no juízo final
E diploma de bem- comportado!

9- Contos de Fadas (Disco: Plano de vôo; 1975. EMI- Odeon/ Lado B, faixa 2)

Diga lá fada madrinha, diga lá fada madrinha


As delícias para a Corte
E o palhaço, para nós... rir e chorar (ê boi!)
97

Balas, doces, chocolates (baba na boca borrada)


Brindes, prendas e anzóis
Pra esse imenso bebê... se aquietar (ê boi!)
Dorme bem minha criança, se não essa bruxa avança
Corta a língua, olhos e ouvidos
Faz da vida escuridão
Coma a maçã (açucarando sonho)
Estanca sangue, corta insônia
(cabra- cega, bota- venda, tapa- vista, tudo- trevas
Mamãe posso ir?!... brincar!)
Diga, ó bela adormecida, diga, ó velha adormecida
Diga, ovelha adormecida
O que eu tenho na mão?... diz o feitor! (ê boi!)
E esse cego encantado teima em beijar a princesa
Se bem nunca acerta a sua branca linda boca linda branca
Mas se beija se espanta, não quebrava seu encanto
Não quer mesmo acordar de seus sonhos
Essa louca, essa louca, essa louca
Diga, ó bela adormecida, diga, ó velha adormecida
Tenho o teu coração... diz o feitor (ê boi!)
Diga, ó bela adormecida, balas,doces, chocolates
Baba na boca borrada
Pr’esse imenso bebê... se aquietar (ê boi!).

10- Coração de plástico (Disco: Alô, Alô, Brasil; 1983. EMI- Odeon/ Lado B, faixa 2)

Mamãe, ganhei um coração de plástico


Agora eu sou quase totalmente elástico
E sendo filho de Shazan, é só gritar e esperar
Que o raio que o parta, não caia exatamente em cima de mim
Mas se faiar, o super- homem que é um ser fantástico
Virá voando me ajudar nesse momento drástico
E o Bruce Lee e Fê Mê I e o Fê Bê I
Virão aqui também curtir aquela umazinha boa de me salvar
98

Virão também meter a mão


Onde mete um , mete dez, muitos mais, tudo bem?!
E virá também o João Wayne e a cavalaria inteira:
Indians go home, senão... indians go home!
Mamãe, eu sou um cara super otimístico
Sou brasileiro, viciado em momentos críticos
É que eu tenho um tio que trabalha lá no céu que diz
Que Deus mandou dizer que sempre estará por cima de nós
‘Güenta coração mais esta emoção
Nada como se poder viver perigosamente
‘Güenta coração, mais uma aventurazinha
Do Kid Pau- Brasil, o sex- herói polivalente.

11- Da maior liberdade- Do meu jeito (Disco: Gonzagão e Gonzaguinha, discanso


em casa, moro no mundo; 1981. EMI- Odeon/ RCA. Álbum duplo. Disco 2/ Lado D,
faixa 2)

Já não basta este dia após dia


Que é um peso constante sobre as costas da gente
Nesse tempo doente, à solta nas ruas
Colocando nas faces esse ar descontente
Já não basta a descrença e a desconfiança
Acabando com nossa esperança de felicidade
Já não basta a pressão dessa falsa moral
Encobrindo os atos de imoralidade
Ah! Por favor, meu menino
Não venha também me prender a cabeça, as pernas e braços
Eu te amo e este amor eu declaro
E grito e proclamo de peito bem limpo, de peito lavado
Não preciso provar, pois sei bem o que sou
E tintim por tintim dos meus traços e passos
Já cansei dessas velhas promessas
Dessas velhas palavras e cansados ditados
Já não basta esta coisa rolando aí fora
99

Nos castrando com garras e dentes


Nos forçando a viver tão somente de meias verdades
O importante é que o nosso coração sinta através do respeito
O que é ser, profundamente, uma pessoa da maior liberdade!

12- Dias de Santos e Silvas (Disco: Moleque Gonzaguinha; 1977. EMI- Odeon/ Lado
A, faixa 1)

O dia subiu sobre a cidade


Que acorda e se põe em movimento
Um despertador bem barulhento
Badala bem dentro em meu ouvido
Levanto e engulo meu café
Corro e tomo a condução
Que, como sempre vem cheia
Anda, pára e me chateia
E está quente pra chuchu, meu calo dói
A certeza, já me rói: levo bronca do patrão
Mas, sonhei e fiz até fé no avestruz
Que vai me dar uma luz: levo uma nota pra mão!
A tarde transcorre calma e quente
Batalham como eu o leite e o pão
Que o gato bebeu e o rato roeu
Aumenta tudo, aumenta o trem
Aumenta o aluguel e a carne também
“É, mas sei, vai melhorar
Pior que ta, não dá pra ficar!”
Ai, meu Deus, se o avestruz der na cabeça
Vou ganhar dinheiro à beça
Faço minha redenção
E vou lá dentro, no escritório do patrão
Peço aumento e ele não dá:
Mostro a grana e a demissão!
A noite desceu sobre a cidade
100

Nas filas: calor suor, cansaço


Meu corpo está que é só bagaço
E se está de pé é de teimoso
Eu desejando minha cama
Furam a fila e alguém reclama:
“Louvaram” a mãe do rapaz
Que diz que faz e desfaz
E só falta uma briguinha e eu ir para o xadrez
Pobre não tem mesmo vez:
Não dá sorte ou dá azar
E o danado do avestruz também não deu
Minha mulher vai reclamando o dinheiro que era seu
Que o gato comeu, o rato roeu
Alguém se... lambeu!

13- É (Disco: Corações marginais; 1988. Moleque- WEA/ Lado A, faixa 4)

É, a gente quer valer o nosso amor


A gente quer valer nosso suor
A gente quer valer o nosso humor
A gente quer do bom e do melhor
A gente quer carinho e atenção
A gente quer calor no coração
A gente quer suar, mas de prazer
A gente quer é ter muita saúde
A gente quer viver a liberdade
A gente quer viver felicidade
É, a gente não tem cara de panaca
A gente não tem jeito de babaca
A gente não está
Com a bunda exposta na janela pra passar a mão nela...
É, a gente quer viver pleno direito
A gente quer viver todo respeito
101

A gente quer viver uma nação


A gente quer é ser um cidadão

14- E por falar no rei Pelé... (Disco: Recado; 1978. EMI- Odeon/ Lado A, faixa 6)

Craque mesmo é o povo brasileiro


Corre o campo, se esforça o tempo inteiro
Vai pra ponta e centra e cabeceia
E ele mesmo é o goleiro que escanteia
É o gandula que apanha no fosso a pelota
E a galera que a equipe incendeia!
Craque mesmo é o povo brasileiro
Carregando esse “time de 3ª divisão”!
Nesse jogo sem gol, mas que emoção
Couro cru também é um mata fome
Sempre um bamba se esquece
E a bola come (ele ta com fome!)
Sempre um morre: é fatal a indigestão!
Craque mesmo é o povo brasileiro
Com os home em cima, na marcação
Transformando a partida em pedreira
Uma rinha sem gol, mas que emoção!
Na redonda ele se atira como leão
Ta pensando o que é um prato cheio de feijão
E não é não!

15- Erva Rasteira (Disco: Começaria tudo outra vez; 1976. EMI- Odeon/ Lado A,
faixa 3)

Erva rasteira é que pode ser pisada


Nasce, cresce, morre bem embaixo
Mas o homem que é homem de valor
Jamais se propõe a ser capacho!
É covarde aquele que, caído
102

Não tenta jamais se levantar


Sente em si tantos pés e ferido
Sem lamento se deixa acomodar!
Se um dia ele tenta abrir a boca
Se vê sem direito de falar
Seu destino é viver bem rente ao chão
Até que ele venha lhe tragar!
Erva rasteira é que pode ser pisada
Mas descuido, ela paga com espinho
O homem que é homem de valor
Se levanta e conquista o seu caminho!

16- Eu entrego a Deus ( Disco: Coisa mais maior de grande, PESSOA; 1981. EMI-
Odeon/ Lado B, faixa 1)

(Mais uma vez!)


Eu entrego a Deus o panaca que taca tanta água no meu leite
(não há quem aceite!)
Eu entrego ao Divino o cretino que me mata na fila do feijão
(não tem condição!)
Eu entrego ao Senhor o doutor que deu fim
Ao meu dinheiro o ano inteiro
Só não entrego ao diabo
Pois desconfio que o diabo é o diabo do patrão!

17- E vamos à luta (Disco: De volta ao começo; 1980. EMI- Odeon/ Lado A, faixa 5)

Eu acredito é na rapaziada
Que segue em frente e segura o rojão
Eu ponho fé á na fé da moçada
Que não foge da fera e enfrenta o leão
Eu vou à luta é com essa juventude
Que não corre da raia a troco de nada
Eu vou no bloco dessa mocidade
103

Que não tá na saudade e constrói a manhã desejada


Aquele que sabe que é mesmo o couro da gente
Que segura a batida da vida o ano inteiro
Aquele que sabe o sufoco de um jogo tão duro
E apesar dos pesares ainda se orgulha de ser brasileiro
Aquele que sai da batalha e entra num botequim, pede uma cerva gelada
E agita na mesa, logo, uma batucada
Aquele que manda um pagode
E sacode a poeira suada da luta e faz a brincadeira
Pois, o resto é besteira (e nós estamos pelaí!)
Acredito é na rapaziada!

18- Fliperama (Disco (Póstumo): Cavaleiro Solitário. Ao vivo; 1993. SOM LIVRE/
CD e LP/ Lado B, faixa 4)

Da minha janela aberta para o mundo eu vejo tudo


Eu vejo quase tudo!
Vejo quase tudo
Confortavelmente instalado
Na minha cadeira giratória
O giro da lente desfila
Todo avanço e eficiência da tecnologia
Minha mente distraída ainda elogia
As maravilhosas máquinas manejadas por meninos
(eram meninos!)
O fliperama ali na esquina
Oferece brinquedos eletrônicos
Com fascinantes ruídos
Inventando batalhas reais
Como era linda nos visores
A fluorescência daquelas explosões
Pena que aquela noite não fosse de festa
Fogos de artifício, São João!
Meu filho atropelava meu delírio
104

Apontando a entrevista do velho general


Personagem vencido noutras guerras
Fantasma daqueles velhos carnavais
Eis aí, a eficiência da ciência!
Eis aí o exemplo exato da mudança!
Eis aí, o esforço para a melhoria!
Das condições de vida do planeta!
O fliperama em nossa mesa
Oferecendo brinquedos eletrônicos
Com flashes via satélite das heranças atuais
Onde o porco ainda berra
O porco ainda sangra
E a espada está cravada em nossos corações
E a arca da paz jaz
Sob fantásticas jogadas comerciais
Mão na boca, barriga revolta, gases explodindo
Levanto, tropeço no meu próprio pé, caio
E vomito no vômito há muito espalhado pelo chão
Da minha janela aberta para o mundo engulo tudo
Engulo quase tudo...
Quase tudo!

19- Fotografia (Disco (Póstumo): Cavaleiro Solitário. Ao vivo; 1993. SOM LIVRE/
CD e LP/ Lado B, faixa 1)

O nome dessa música é Fotografia. Menino de rua que sou, nascido no morro de São
Carlos. É essa a fotografia!
Veja a cara dele sorrindo
Veja a cara dele sorrindo atrás do muro
Agora ele pode sorrir, pois o medo passou
Já está bem mais calmo seu coração
Ao invés do barulho do medo no ouvido
Ele ouve o ruído do vidro das bolas de gude
Agora ele pode brincar o jogo das bolas de gude
105

Menino de novo!
Veja na cara do outro a tensão
Na cara do outro a atenção no que vem
Aquele olho de lado, prestando atenção... vem alguém...
O exterminador! O torturador! O anjo damor! O anjo da dor!
Veja a cara daquele mais um
A cara de espanto daquele mais um
Com o trinta e oito na mão
Veja a fumaça saindo do cano
E o corpo de um outro menino caído no chão
Veja o gude largado no chão...

20- Geral (Disco: Geral; 1987. EMI-Odeon/ Lado B, faixa 4)

Aí ó! Se botar a lona por cima vira circo! Se cercar, já virou asilo. Brasil! Tá tudo bem,
mas que tá esquisito, tá ...
Assim não dá, não é mole não
Vamos dar uma geral nessa tal de transição (ou transação?!)
Assim não dá, não é mole não
Eles entram com o trem da alegria
E a gente com a cara pro bofetão!
Alguns da patota da estrela, coturno e dólmã
Tão doidos pra continuar comendo a maçã
Com pobre na vida querendo bancar “bam-bam-bam”
Só osso do moço sobrou na sessão “pam-pam-pam”
Herança maldita deixando a gente tantã
João, cala a boca e me esquece
Vê se vai pra Teerã – teu Brasil nunca mais!
Só porque aquele famoso Conde d´Eu
E Judá
E no Sudão
Esse negócio aí de “tem de dar!”
Com a gente não deu muito certo, não
Nós já deu tudo que tinha, meu bem
106

Tá na hora da gente comer também (e segura o Leão!)


Eles trabalham pra gente, a gente é que bota eles lá
E quem bota deve ter o direito de tirar
Anota o que eu vou te falar, escreve
É um recado pequeno, é breve:
“Desrespeitar meu amor ninguém se atreve
Se você não me valorizar, eu faço greve!”
- Aí, ó! Transição é mesmo assim: é no meio! É como se a gente tivesse passando no
meio de um corredor polonês: tomando porrada! Ou então, no meio de uma briga
de casal:
toma porrada! No meio de uma briga de bar: tomando porrada! Tomando no meio, no
meio da aliança (herancinha desgraçada)! E é o seguinte: confusão no meio de campo,
a bola não sei pr’onde é que foi, cadê? O nego ladrão roubou! Toma rapá, eles tem que
levar vantagem em tudo! Certo, certo! Ô do bigode: Ereção já! Ereção já!
Assim não dá...

21- Geraldinos e Arquibaldos (Disco: Plano de vôo; 1975. EMI- Odeon/ Lado B,
faixa 6)

Mamãe não quer... não faça!


Papai diz não... não fale!
Vovó ralhou... se cale!
Vovô gritou... não ande!
Placas de rua... não corra!
Placas no verde... não pise!
No luminoso... não fume!
Olha o hospital... silêncio!
Sinal vermelho... não siga!
Setas na mão... não vire!
Vá sempre em frente, nem pense
É contramão!
É cama de gato, melhor se cuidar
No campo do adversário é bom jogar com muita calma
Procurando pela brecha para poder ganhar
107

Acalma a bola, rola a bola, trata a bola


Limpa a bola que é preciso faturar
E esse jogo ta um osso, é um angu que tem caroço
E é preciso desembolar
E se por baixo não ta dando é melhor tentar por cima
(Oi!) com a cabeça dá!
Você me diz que esse goleiro é titular da seleção
Só vou saber, mas é quando eu chutar!
Matilda, Matilda!
No campo do adversário é bom jogar com muita calma
Procurando pela brecha pra poder ganhar.

22- Gravidez- Meninos eu vi (Disco: Grávido; 1984. EMI- Odeon/ Lado B, faixa 1)

Meninos eu vi o povo nas ruas querendo dar à luz


Para quem quisesse ver, para quem quisesse ganhar o brilho da luz
Meninos eu vi o povo nas ruas querendo dar o Sol
Para quem quisesse ver, para quem quisesse ganhar o brilho do Sol
Bebi com eles a coragem das cores na Avenida Brasil
(Aprender a coloriri)
Ergui com eles um brinde ao futuro sem o medo Brasil
(Caminhar e color rir)
Meninos eu vi que o luto não é pra chorar
É um verbo pra viver feliz!
Meninos eu vi o povo nas ruas em plena gravidez
Pra quiser saber, para quem quiser ganhar os filhos dessa gravidez.

23- Má- gica (Disco: Corações marginais; 1988. Moleque- WEA/ Lado A, faixa 2)

Num lindo passe de mágica, trágico assassinato


Agora você vê! Agora você vê mais não!
Rosa de Hiroshima, Laranja do Vietnã
O pacto de morte índio, a vida que vinha vem mais não
E quando a flor abortou e a água do rio matou
108

E a chuva, na pele doeu e o Sol não brilhou mais


O céu foi uma só cor: a mesma noite no dia
Foi tudo uma só estação, silêncio e solidão
E os frutos daquele chão não nasceram mais!
E os filhos daquela nação não nasceram mais!
Morte na Amazônia, morte no Pantanal
A morte do “véio Chico”
Beleza que tinha, tem mais não
E aquela criança chorando, perdida no meio do lixo
O pacto de morte índio, a vida que vinha vem mais não.

24- Meninos do Brasil (Disco: Corações marginais; 1988. Moleque- WEA/ Lado B,
faixa 3)

Filhos da sensatez, justiça e muito amor


Netos de boa herança, frutos da sã loucura
Fortes, sadios, lindos, pretos, brancos ou índios
Os meninos do Brasil pedem para desfilar
Césio lá de Goiânia adora brilhar no escuro
Nana que é de Belém, só brinca em cima do trem
Lívia e Miriele surfam só nas enchentes
Luizinho, do São Carlos, treina pra ser avião
Jorge faz seu preparo correndo da repressão
Lena, lá de Carangola, limpa o nariz com cola
Chico, Tadeu e Tavinho se divertem no arrastão
Solemar voltou pra casa: quer mais filhos com seu pai
Todos estão felizes, estão na televisão
Estão em todos os jornais vendendo só bom humor
São parte desse rolo, querem parte desse bolo
São meninos do Brasil, têm a cara do Brasil, o jeitinho do Brasil
Tão querendo desfilar e arrasar no carnaval (pois é, deixa rolar...).

25- O homem falou (Disco: Olho de lince; 1985. EMI-Odeon/ lado B, faixa 1)
109

Pode chegar que a festa vai começar agora


E é pra chegar quem quiser, deixa a tristeza pra lá
E traga o seu coração, sua presença de irmão
Nós precisamos de você nesse cordão
Pode chegar que a casa é grande e é toda nossa
Vamos limpar o salão para um desfile melhor
Vamos cuidar da harmonia, da nossa evolução
Da unidade vai nascer a nova idade
E é pra chegar sabendo que a gente tem o Sol na mão
E o brilho das estrelas é bem maior
E irá iluminar nossas manhãs
Vamos levar o samba com união
No pique de uma escola campeã
Não vamos deixar ninguém atrapalhar a nossa passagem
Não vamos deixar ninguém chegar com sacanagem
Vam’bora que a hora é essa e vamos ganhar
Não vamos deixar “uns e outro” melar
Êô êô êa- a festa vai apenas começar (vamos lá, meu amor!)
Êô êô êa- não vamos deixar ninguém dispersar (o homem falou!)

26- Pelo Brasil (Disco: Alô, Alô, Brasil; 1983. EMI- Odeon/ Lado B, faixa 4)

Rio Vitrine (RJ)


Porto Alegre (RS)
Sampa o pique (SP)
Belo Horizonte (MG)
João Pessoas (PB)
(MG) Luz Fortalezas (CE)
Braço do Norte (SC)
Pira se acaba (SP)
temos Saudade (SC)
da Terra Boa (PR)
vida Amargosa (BA)
pede Descanso (SC)
110

e haja Contenda (PR)


e haja Piquete (SP)
pra Redenção (PA)
Sul Maravilha (SC)
Norte Sombrio (SC)
Brasil Estrela (RG)
Porto União (SC)
Almas Calma Palmas Palmas (PR)
(AL) se Batalha Esperança (PB)
(MG) Nova Era virá
Ceará (CE)
Bela Vista (GO)

27- Pois é, seu Zé (Disco: Luiz Gonzaga Jr.; 1974. EMI- Odeon/ Lado A, faixa 5)

Ultimamente ando até matando cachorro a grito


(E a platéia aplaudindo e pedindo bis)
Nas refeições uma cachaça, às vezes um palito
(E a platéia aplaudindo e pedindo bis)
Ando tão mal que ando dando nó em pingo d’água
Só mato a sede quando choro um pouco a minha mágoa
Mas a platéia ainda aplaude, ainda pede bis
A platéia só deseja ser feliz!
Te vira, te vira, bota um sorriso nos lábios!
De tanto andar na corda bamba eu sou equilibrista
(E a platéia aplaudindo e pedindo bis)
Equilibrando a vida e a morte eu sou malabarista
(E a platéia aplaudindo e pedindo bis)
Mas não me queixo dessa sorte, eu sou um comodista
E já me chamam por aí de verdadeiro artista
Pois, a platéia ainda aplaude, ainda pede bis
A platéia só deseja ser feliz.
111

28- Recado (Disco: Recado; 1978. EMI- Odeon/ Lado B, faixa 1)

Se me der um beijo, eu gosto


Se me der um tapa, eu brigo
Se me der um grito, não calo
Se mandar calar, mais eu falo
Mas, se me der a mão, claro, aperto
Se for franco, direto e aberto
Tô contigo amigo, não abro
Vamos ver o diabo de perto
Mas, preste bem atenção seu moço
Não engulo a fruta e o caroço
Minha vida é tutano, é osso
Liberdade virou prisão
Se é amor, deu e recebeu
Se é suor, só o meu e o teu
Verbo “eu” pra mim já morreu
Quem mandava em mim nem nasceu
É viver e aprender
Vá viver e entender malandro
Vá compreender, vá tratar de viver
E se tentar me tolher é igual ao fulano de tal que taí
Se é pra ir, vamos juntos, se não é, já não tô nem aqui.

29- Tá certo, doutor? (Disco: Plano de vôo; 1975. EMI- Odeon/ Lado A, faixa 2)

É um atentado à moral e aos bons costumes vigentes


(por certo inconveniente!)
Deixar esse homem doente perambular pelas ruas
(a cometer tais falcatruas!)
Incompatível com os estatutos dessa nossa gafieira
Dançar dessa maneira, desrespeitando o salão
(ferindo as regras do padrão!)
Fere as normas do edital de formação da nossa firma atual
112

Esse homem está enfermo e nem precisa de exame sério


Seu mal está constatado: “depressa, depressa, põe no hospital!”
Deve ficar bem isolado
Em um quarto bem fechado, sem portas nem janelas
(Pois pode ser contagiante!)
Dieta mais que rigorosa, mediação bem adequada
E muita, muita observação
(Para que não haja agravante!)
Em tempo hábil deve ter até o centro de controle
Para atestar a sua boa condição:
(Se está fechada a ferida!)
Seu caso (nome) de ser lá anotado pro seu mal ser vigiado
(ele requer muita atenção!)
Pois traz perigo à nossa vida!
Não dou amparo nem guarida!
Dou guaraná com formicida!
E até mesmo pesticida!
Para acalmar minha dormida!
Não to a fim de pôr em risco a minha condição!
- Tá certo, doutor?!

30- Todo boato tem um fundo musical (Disco: Alô, Alô, Brasil; 1983. EMI- Odeon/
Lado A, faixa 3)

Se você quer dançar, traga seu par que o baile é livre


Copabacana abraça a favela, periferia o Nordeste
Venham todos dançar
Donas de casa, custo de vida
Desempregados e filas do INAMPS
Brasil vai ao fundo e agradece
Abertura, carne, fartura, liberdade vigiada
Sobem no palco e aprsentam show variado
Trabalhador dá uma prise na crise e já sai bailando
Num sarro bom, cheio de mãos coma inflação
113

Vamos lá relaxar e aproveitar esse agito legal


Chato é o Dólar jantando o Cruzeiro em pleno salão
Veja que tipo imoral
Disfarça, meu bem, finge que é normal.

31- Um sorriso nos lábios (Gravação em compacto simples/ 1974 EMI- Odeon)

Ponha um sorriso nos lábios: que refrescante sensação de... mal- estar!
Vidro moído, areia no café da manhã- e um sorriso nos lábios!
Ensopadinho de pedra no almoço e jantar- e um sorriso nos lábios!
O sangue, o roubo, a morte, um nego em cada jornal- e um sorriso nos lábios!
Noventa e cinco sorrisos suando na condução- e um sorriso nos lábios!
Mas, “sonha que passa!” ou “toma cachaça!”
Agüenta firme irmão, na oração Deus tudo vê e Deus dará!
Ou então acha graça: “é tão pouca desgraça!”
Mas, no fim do mês lembrar de pagar a prestação desse sorriso nos lábios
O jogo, a nega, a loteca, a fome e o futebol- e um sorriso nos lábios!
A taça, a vida, a dureza, viva a beleza do Sol- e um sorriso nos lábios!
Os olhos fundos, sem sono, os corpos como um só- e um sorriso nos lábios!
O cerco à vida, o circo, silêncio, um nego anormal- e um sorriso nos lábios!
Pois, o Rio de Janeiro continua lindo! (tem um sorriso nos lábios!)
São Paulo a São Paulo continua indo! (tem um sorriso nos lábios!)
Sorria, sorria, sorria, a vida é linda! Sorria!
Põe um sorriso nos lábios, põe um sorriso...
Essa refrescante sensação...
X: olha a fotografia!...

Você também pode gostar