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"TOCANDO PARA AS PAREDES": O TRABALHO DO MÚSICO E A

PANDEMIA NO RIO DE JANEIRO


GT 12 | MÚSICA E TRABALHO: OLHARES SOBRE O FAZER MUSICAL COMO
ATIVIDADE LABORAL
Álvaro Neder (UNIRIO)
alvaro.neder@unirio.br
Leandro Montovani da Rosa (UNIRIO)
leomontovani@edu.unirio.br
Pedro Luiz Fadel Ferreira (UNIRIO)
pedrofadel@edu.unirio.br
Gabriel Veras (UNIRIO)
gabrielveras@edu.unirio.br
Tássio da Rosa Ramos (UNIRIO)
tassioramos@edu.unirio.br
Leonardo Marques Vieira (UNIRIO)
leonardofunkguitar@edu.unirio.br

Resumo: Esta comunicação é dedicada ao estudo da situação laboral do músico atuante na cidade do
Rio de Janeiro, durante a pandemia de COVID-19, entre os meses de junho e novembro de 2020. O
problema principal identificado foi a suspensão das atividades de performance musical, em
decorrência das medidas de isolamento social. Buscou-se investigar o impacto da suspensão sobre as
condições de trabalho e renda e suas consequências emocionais e psicológicas. Utilizou-se o método
etnográfico na modalidade pesquisa-ação participativa, e a técnica de entrevistas semiestruturadas
realizadas pela internet e outros meios de comunicação remota. Os interlocutores foram dez (sendo
nove do gênero masculino e uma do gênero feminino), todos em atividade na cidade do Rio de
Janeiro, preponderantemente na Zona Sul e Centro do município, oito dos quais discentes dos cursos
superiores em Música da UNIRIO. Desenvolvido pelo LaboraMUS – Observatório do Trabalho em
Práticas Musicais do PPGM/UNIRIO, o estudo evidenciou que a grande maioria dos interlocutores
vem enfrentando um agravamento das diversas formas de precarização do trabalho do músico:
imposição de polivalência, baixa remuneração ou trabalho não pago, coerção ao
"empreendedorismo", desvalorização social, informalidade, irregularidade, incerteza, más condições
de trabalho e desqualificação profissional. Alguns integrantes possuem contratos temporários em
ONGs e escolas de música particulares, porém, a ampla maioria está largada à própria sorte,
negociando em condições desvantajosas com capitalistas dos setores do ensino privado e de bares e
restaurantes. Alguns apresentaram quadros de tristeza e desesperança com o atual momento, e,
sobretudo, com as perspectivas pós-pandemia. Esta situação tem impactado inclusive em suas
motivações profissionais, dificultando a continuidade de seu aprimoramento como músicos e a
preparação de repertório. Tais resultados apontam para necessidade de prosseguimento da pesquisa,
investigando o retorno (inseguro) das atividades laborais em espaços presenciais, como escolas de
música, casas de shows, ONGs, bares e outros espaços.
Palavras-chave: Trabalho do Músico. Pesquisa-ação Participativa. Pandemia. COVID-19.

Anais do X Encontro Nacional da Associação Brasileira de Etnomusicologia


Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Porto Alegre
08 a 12 de novembro de 2021 (virtual)
"Playing for the walls": the musician's work and the pandemic in Rio de Janeiro

Abstract: This paper discusses the labour situation of the musicians working in the city of Rio de
Janeiro, during the COVID-19 pandemic, between June and November 2020. The main problem
identified was the suspension of musical performance activities due to social isolation measures. We
sought to investigate the suspension’s impact on working conditions and income and their emotional
and psychological consequences. The ethnographic method was used in the participatory action-
research modality, and the technique of semi-structured interviews were conducted by Internet and
other remote media. Ten interlocutors were selected (nine male and one female), all active in the city
of Rio de Janeiro, predominantly in the South zone and downtown, eight of whom being
undergraduate Music students of UNIRIO. Developed by the LaboraMUS Observatory of Work in
Musical Practices of PPGM/UNIRIO, the study showed that the vast majority of interlocutors have
been facing a worsening of the various forms of precariousness of the musician's work: imposition of
polyvalence, low pay or unpaid work, coertion to "entrepreneurship", social devaluation, informality,
irregularity, uncertainty, poor working conditions and professional disqualification. Some members
have temporary contracts in NGOs and private music schools, but the vast majority are left to their
own devices, negotiating in disadvantageous conditions with capitalists in the private education
sectors, bars and restaurants. Some presented conditions of sadness and hopelessness with the current
moment, and, above all, with the post-pandemic perspectives. This situation has also impacted on
their professional motivations, hindering the continuity of their improvement as musicians and the
preparation of repertoire. These results point to the need to continue the research, investigating the
(unsafe) return of work activities in face-to-face spaces, such as music schools, concert halls, NGOs,
bars and other spaces.
Keywords: Music workers. Participatory action research. Pandemic. COVID-19.

Introdução

Esta comunicação é dedicada ao estudo da situação do músico atuante na cidade do Rio de


Janeiro, durante a pandemia de COVID-19, entre os meses de junho e novembro de 2020. Tendo
como foco as questões laborais, o estudo tem como problema principal a suspensão das atividades de
performance musical, em decorrência das medidas de isolamento social impostas para prevenir a
propagação do vírus, e as consequências advindas desta suspensão, mormente a perda de renda, abalos
psicológicos e o aumento da precarização da profissão. Trata-se de investigar o impacto da suspensão
das atividades de trabalho dos músicos, tanto em aspectos de saúde (questões emocionais,
psicológicas) quanto financeiros (renda). O estudo emprega o método etnográfico na modalidade
pesquisa-ação participativa, e a técnica de entrevistas semiestruturadas realizadas pela internet e
outros meios de comunicação remota. Foi selecionado um universo de dez musicistas (sendo nove do
gênero masculino e uma do gênero feminino), todos em atividade na cidade do Rio de Janeiro,
preponderantemente na Zona Sul e Centro do município, oito dos quais discentes dos cursos
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superiores em Música da UNIRIO.
A presente investigação foi desenvolvida pelo LaboraMUS – Observatório do Trabalho em
Práticas Musicais do Programa de Pós-Graduação em Música (PPGM) da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). O LaboraMUS é organizado a partir de princípios de
horizontalidade e autonomia obtidos pela prática dialógica proposta por Paulo Freire (FREIRE, 1970
e 1996), e da indissociabilidade entre pesquisa/ ensino/ extensão, seguindo a metodologia
desenvolvida desde 2011 pelo coordenador do grupo:

[. . .] os membros do grupo de pesquisa/extensão participaram ativamente de todas as fases


da pesquisa, desde o diagnóstico do problema até o estabelecimento de objetivos e
procedimentos, escolhendo certos conceitos e metodologias, finalmente chegando a
resultados de interesse para eles mesmos. Tais resultados, contrariamente aos procedimentos
tradicionais de pesquisa, não poderiam ser orientados de antemão [obedecendo a algum
pressuposto de “neutralidade científica”, por exemplo], mas foram necessariamente
desenvolvidos por meio do próprio processo dialógico empregado pela pesquisa participante.
Portanto, o interesse principal deste projeto de pesquisa/ extensão é poder desenvolver este
tipo de autonomia baseada no diálogo e na relação entre teoria e prática, para que o processo
integral do empreendimento de pesquisa/ extensão seja dirigido para os interesses e
necessidades dos participantes. (NEDER, 2019, p. 213).1

São evidentes os vínculos desta investigação com os projetos pioneiros de pesquisa


participativa do eminente etnomusicólogo Samuel Araújo (ARAUJO JUNIOR, 2006 e 2013), bem
como de seu colaborador de longa data, o também etnomusicólogo Vincenzo Cambria (ARAUJO
JUNIOR e CAMBRIA, 2013). No panorama da etnomusicologia brasileira, estes pesquisadores se
destacam na proposição de uma etnomusicologia “da cidade”, ou seja, que toma a cidade como
essencial ao objeto de estudo e gera sua teoria a partir da relação com o contexto urbano, e não
extrínseca ou acidental, como os estudos “na cidade”, que visam aplicar na cidade a teoria gerada em
outras realidades (REYES-SCHRAMM, 1982, p. 9). Também é importante assinalar como ponto de
contato entre os trabalhos de Araújo e Cambria e os nossos que, em nossas pesquisas, a violência
(tanto física quanto simbólica) tem figurado como problema mais relevante para as populações com
quem temos pesquisado – moradores de áreas periféricas, segregadas e sujeitas a conflitos, ou, como

1
“[. . .] the research/extension group members actively participated in all phases of research, from the problem
diagnosis to the establishment of objectives and procedures, choosing certain concepts and methodologies, finally
arriving to findings of interest to themselves. Such findings, contrary to traditional research procedures, could not be
determined beforehand, being necessarily developed throughout the very dialogical process employed in the
participative research. Therefore, the main point of the entire research/extension project is to be able to develop this
kind of autonomy based on dialogue and the theory-practice relationship, so the whole process of the research/extension
enterprise is directed to the participants’ interests and necessities.” (Trad. AN)
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no caso aqui abordado, dos músicos, enquanto trabalhadores sujeitos à violência da exploração
capitalista.
Já a literatura etnomusicológica sobre a questão específica das relações de trabalho do músico,
com foco nos problemas derivados da exploração capitalista, é bastante incipiente. Entre tais
problemas, como resultados de nossa pesquisa que pretendemos abordar ao longo deste texto: baixa
remuneração ou trabalho não pago, informalidade, irregularidade, precarização, incerteza, más
condições de trabalho – como o trabalho na rua, por exemplo –, desqualificação, desvalorização
social, coerção ao chamado "empreendedorismo", entre outros.
Há alguns trabalhos que tangenciam a questão (GARLAND, 2014; MOTTA, 2015). Garland
estuda especificamente a rede de coletivos denominada Fora do Eixo. O cerne do debate conduzido
pela autora, no entanto, não é a questão da exploração do trabalho não pago pela rede (o que foi objeto
de amplas denúncias públicas, e estaria mais próximo do estudo das relações de trabalho dos
músicos). Garland está empenhada em discutir o que lhe parecem “novas” maneiras de circulação da
cultura na sociedade, com a criação de “novas” estruturas e da comunicação digital. Por sua vez,
Motta (que, embora se utilize de certos autores da Etnomusicologia, principalmente Blacking e
Turino, não se define como etnomusicóloga), está interessada em defender que os cantos de trabalho
produzem “comunidades discursivas”, portanto, mais uma vez, afastando-se da análise das relações
de trabalho dos músicos.
Já a etnomusicóloga Ana Hofman (HOFMAN, 2015) entra na discussão sobre as condições
em que se dá a atividade dos trabalhadores da música, sob o ângulo dos estudos de gênero. Para tanto,
desenvolve uma reflexão com relação ao papel das profissionais musicistas enquanto trabalhadoras
do afeto (affective labourers). Revelando aspectos de estigmatização e marginalização destas
profissionais na Iugoslávia (estalinista) socialista, a autora busca chamar atenção para a resistência
generificada, transgressões e (re)apropriações.
A seguir, passaremos a apresentar os resultados da pesquisa e sua discussão.

Imposição de polivalência e despesas com equipamentos

Nossa pesquisa identificou uma intensificação da necessidade já imposta aos trabalhadores da


música nas últimas décadas: a necessidade de diversificar as atividades profissionais e de acumular
mais de uma função em seus ambientes laborais (REQUIÃO, 2008 e 2020).
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O ambiente online foi apontado, pelos interlocutores, como um recurso fundamental para a
continuidade das atividades profissionais de musicistas durante a pandemia. Porém, o acesso aos
equipamentos necessários foi apontado como um problema:

Essa vida online que a gente tá tendo, é pra quem pode, de certa forma [. . .] estar numa casa
com um ambiente silencioso; com uma [boa] conexão de internet; com aparelhos que
permitam [produzir audiovisuais] com uma qualidade [aceitável] pro mercado. (Interlocutor
7, violonista).

Desta forma, a participação do trabalhador da música no mercado de trabalho tornou-se


prejudicada caso não tenha acesso aos recursos financeiros e capacitação tecnológica. Ter um perfil
flexível significa estar apto a assumir funções (como editor de vídeo, editor de áudio, produtor, etc.)
que antes não eram de sua responsabilidade. É a isto que denominamos “polivalência”, e o fato de
que o músico é empurrado a esta condição em vez de assumi-la por livre e espontânea vontade
caracteriza uma imposição, representando, portanto, uma precarização de suas condições de trabalho.

Coerção ao empreendedorismo e trabalho não pago

Ter um perfil ativo nas redes sociais se tornou um fator crucial para conseguir ter acesso a
determinados trabalhos. Esta nova necessidade se junta à imposição de polivalência (sendo mais uma
manifestação dela) e despesas decorrentes, e também à pressão para que os músicos trabalhem de
graça (afinal, é a partir do trabalho não pago de produção de conteúdos, que acaba sendo explorado
pelas plataformas e redes sociais, que muitos músicos tentam evitar que “caiam no esquecimento”,
segundo suas próprias palavras). Como declara um dos nossos interlocutores:

Tem essa história de que todo mundo é empreendedor [. . .], se você não é um empreendedor,
não é um sucesso na internet. Teve uma produtora que eu tava tentando negociar um show e
ela falou: “ah, mas vocês estão muito parados na rede”. Eu falei: “Claro, a gente tá no meio
de uma pandemia, tá morrendo gente pra cacete, a gente não está num momento de festa”. [.
. .] Agora, se você olhar o histórico de trabalho que a gente tem, ninguém está parado, são
muitos anos de construção. (Interlocutor 6, pianista e sanfoneiro).

Um outro fator relevante para a maior parte dos nossos interlocutores foi a dificuldade em
adaptar toda a sua forma de trabalhar para o ambiente online (o que se enquadra nas duas categorias
já mencionadas, polivalência e empreendedorismo, com exigência de aumento de despesas):

Foi uma grande dificuldade [adaptar o trabalho para o ambiente online], principalmente por
causa do meu instrumento, o piano [. . .]. Você não fica de frente para a câmera e demonstra
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logo pro aluno o que você está passando. Então no início [. . .] eu ficava só com o celular e
toda hora trocava de câmera, eu fui ficando ansioso com isso, mas isso me fez pesquisar
bastante e compreender como é que a galera faz. E aí eu comecei a mudar completamente a
minha forma de dar aula online, que era algo que eu não me via fazendo de jeito nenhum.
(Interlocutor 4, pianista e tecladista).

Perda de alunos e de renda

Conjuntamente à dificuldade de adaptar o próprio trabalho às demandas online e à diminuição,


ou perda completa, da renda proveniente de apresentações ao vivo, está a variação negativa no número
de alunos, no caso da docência, e a perda da garantia de trabalho, de um modo geral. Com a crise
vivida na pele por toda a classe trabalhadora brasileira, agravada pela pandemia de COVID-19, a
capacidade dos alunos de música em continuar pagando por aulas de música caiu vertiginosamente,
principalmente em localidades pauperizadas e territórios periféricos do estado. Como conta nosso
interlocutor:

Caiu, vamos dizer, 80%. [. . .] porque também foi ruim pra todo mundo [. . .]. Aqui onde eu
moro, nem todo mundo tem grana guardada pra essas coisas que acontecem sem esperar, [.
. .] uma pandemia, então muita gente não ia gastar, investir seu dinheiro em um momento
incerto, numa aula de violão. Foi uma fase em que as pessoas tavam com medo, não sabiam
o que viria, o pessoal falava até em disputar comida no mercado, um negócio bem absurdo.
(interlocutor 9, violonista. Grifos nossos).

Em alguns casos, as estratégias utilizadas para manter os alunos e as oportunidades


profissionais passaram por um rebaixamento do valor do próprio trabalho. Tal rebaixamento influiu
diretamente na intensificação do processo de precarização do trabalho de nossos interlocutores, que,
em sua esmagadora maioria, não possuem vínculos empregatícios formais:

[. . .] Eu vi muitos alunos meus, que estavam comigo, sei lá, 3, 4 anos quererem continuar e
não poderem porque não tinham como pagar. Eu me prontifiquei a baixar esses valores, caso
a pessoa não pudesse pagar, pra poder continuar dando as aulas, até porque, senão eu ia
ficar sem aluno também. (Interlocutor 5, grifos nossos).

Desvalorização social

O trabalho do músico sofre diversas formas de desvalorização social. Há, entre os músicos,
ampla disseminação da crença de que a atividade musical é dependente de noções inatistas como
“dom” ou “gênio” (SCHROEDER, 2004). A consequência da insistência neste ideário é a fetichização
da noção de “artista” como algo que depende de uma “natureza” ou “dom”, o que desvaloriza anos
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de estudos, aprendizados, práticas, experiências. Evidentemente, esta é uma ideologia muito
conveniente para eventuais empregadores de músicos, pois algo que se obtém supostamente sem
esforço também não vale muito dinheiro no mercado de trocas simbólicas.
Como uma manifestação similar a esta, encontramos em nossas entrevistas a noção de música
como “encantamento”, “mágica”, prescindindo, portanto, de pagamento:

Tem uma parada mágica, você não está só pela grana, você está pelo projeto também. [. . .]
[Mesmo já] pagando as contas em casa, eu esquecia um pouco da grana, [. . .] ganhar a grana
era um bônus de certa forma. (Interlocutor 8, baterista).

Informalidade

A informalidade nas relações de trabalho foi narrada em diversas entrevistas e de várias


formas, tanto no âmbito da docência em escolas particulares, como atuando com performances em
bares e casas noturnas. A falta de contratos de trabalho por escrito parece ter condicionado nossos
interlocutores a afirmarem que seus trabalhos são informais, certamente devido à falta de garantias
trabalhistas. Inclusive, um deles nos relatou que já teve trabalho formal, mas em outras profissões:
“Já tive trabalho formal, trabalhei num estúdio de gravação, e lá era formal. Já tive também alguns
trabalhos de carteira assinada que não tinham a ver com a música, mas hoje [com música] não é
formal. É tudo indiretamente, quer dizer, tudo informal” (interlocutor 2, cantor e pianista).

Irregularidade

No que tange à regularidade de seus rendimentos, nossos interlocutores apontam que a tônica
da situação pré-pandemia, que já era marcada pela não-constância em seus rendimentos, se agravou
no momento presente, obrigando alguns a recorrerem ao trabalho na rua (o que acarreta,
adicionalmente, más condições de trabalho):

[Minha renda] não é nem um pouco regular [. . .]. Quando eu estava tocando com a [cantora]
e com a peça eu estava ganhando uma grana um pouco mais regular, mas quando começou a
parar os trampos, eu tive que ir para rua dar o meu jeito. (Interlocutor 8).

Editais privados e auxílios governamentais

Neste cenário de angústia e incerteza, a busca pela participação em editais públicos e privados

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e por auxílios governamentais é percebida por nossos interlocutores como um imperativo. Entretanto,
o acesso a tais iniciativas não é simples. Nota-se nos editais, por exemplo, uma predominância de
foco que deixa a descoberto diversas formas de expressão musical e atenta, finalmente, contra a
diversidade de manifestações musicais. Da mesma maneira, verifica-se que espaços geográficos
centrais e dominantes são privilegiados, em termos de cobertura de editais, em relação aos locais
periféricos:

Tem muitos editais voltados para certos casos específicos, por exemplo: eu tenho um quarteto
e a gente já tem um trabalho sólido, concreto para apresentar. Só que você vê uma gama
imensa de editais aparecendo, por exemplo, para canções, para compositores de canções, para
cantores de canções, e o meio da música instrumental não tem quase nada, já fica um ponto
difícil pro instrumentista. [. . .] Também é difícil você chegar até esses editais. Por exemplo,
eu moro em São Gonçalo, [. . .] uma cidade [. . .] bem pobre e grande. Então [. . .] abrem
editais para Niterói e pro Rio, mas pra cá, não abre. Então a gente vem trabalhando nos
lugares que estão sendo privilegiados [Niterói e Rio de Janeiro], mas a gente que trabalha lá
não é privilegiado [. . .] [E isso] deve ter muito, principalmente [em] cidades do interior.
(Interlocutor 5, grifos nossos).

É mister ressaltar, com respeito aos editais, que suas insuficiências ou especificidades
excessivas são apontadas tanto por interlocutores mais jovens, que estão em processo de consolidação
de suas carreiras, quanto por aqueles(as) com algum prestígio neste universo laboral, carreiras
consolidadas e melhores condições materiais e socioeconômicas:

Eu consegui entrar num edital do Itaú, por exemplo. Gravei três vídeos, três músicas e tudo.
A grana que vem não segura a onda, mesmo. E ainda tem uma grana de produção, eu não
mexo com vídeo, então tem que chamar alguém pra me ajudar [. . .], é claro que tem que
pagar essas pessoas também. E eu vi que entraram [no edital] pessoas que já estão com um
trabalho com algum tipo de reconhecimento no meio. Então isso não está direcionado [aos
que estão mais necessitados], não é uma política de ajuda. É mais um trabalho, a gente tá
gerando conteúdo para ficar lá, postado, é bom pra gente mas é bom [melhor] pra eles.
(Interlocutor 6, grifos nossos).

Nossos interlocutores também manifestam insatisfação, ou desconhecimento, sobre as


iniciativas de auxílio financeiro empreendidas pelo governo federal. O valor disponibilizado por tal
auxílio é percebido como insuficiente para a manutenção mínima da qualidade de vida, ou até mesmo
para arcar com os custos básicos de moradia. Segundo um de nossos interlocutores: “Eu acho que
ninguém vive de 600 reais! O que é mais preocupante pra mim é o Estado achar que está dando 600
reais para o povo e achar que está fazendo alguma coisa. Esse valor não dá nem metade de um
aluguel” (interlocutor 8).
A compreensão geral de nossos interlocutores é de que, para além de algumas menções à Lei
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Aldir Blanc, não há assistência por parte do poder público/governo federal. Na verdade, é notável a
percepção de que as ações de auxílio e solidariedade mais efetivas são empreendidas pelos próprios
trabalhadores da música, em redes de assistência, e de que o governo federal se coloca como inimigo
aberto dos(as) trabalhadores da cultura:

Eu acho que as relações mais efetivas são dos próprios trabalhadores da cultura, muito mais
do que o governo ou qualquer órgão de cultura. Até porque se depender desse governo
[Bolsonaro] morre todo mundo, ainda mais o pessoal da cultura. (Interlocutor 6, grifo
nosso).

Incerteza da oferta de trabalho

Como consequência dos elementos aqui debatidos ocorre também o fenômeno da incerteza de
ter ou não trabalho, tanto em curto como em longo prazo. Isto pode ser observado nas falas dos nossos
interlocutores: “Eu não sei quando que eu vou fazer um show, não tenho a menor ideia, é
desesperador!” (interlocutor 6).

Desânimo

Ao analisar o relato de nossos interlocutores, pudemos perceber que o impacto do isolamento


social e da interrupção de suas atividades profissionais influiu diretamente, não apenas em suas
rendas, mas também na motivação para continuar exercendo as atividades musicais ainda possíveis
de serem realizadas. Alguns deles nos relataram que a falta de atividade profissional é um fator que,
além da tristeza pela distância dos amigos e da própria rotina de trabalho remunerado, tem tornado
suas próprias rotinas de estudos em algo sem sentido:

Eu descobri [. . .] que o meu estudo depende de eu estar tocando. Pra eu ficar satisfeito com
aquele estudo metódico que eu faço em casa, [. . .] todo dia [. . .], eu tenho que estar tocando
em algum lugar. [. . .] porque aí você tem uma data, tem um compromisso [. . .] de estar em
dia com o seu instrumento. E aí, na quarentena, a gente tem que se esforçar pra [o estímulo]
acontecer, né? Porque a gente não sabe quando vai voltar. (Interlocutor 7).

Incerteza com o futuro

Mas, infelizmente, também tivemos relatos de musicistas, com vasta experiência que, devido
a incertezas com o futuro, com o longo período de inatividade, consideraram inclusive abandonar a
profissão: “Então, no início deu pra gente relevar, mas depois chegou uma época, passou quatro,
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cinco meses, que eu já estava pensando em desistir” (interlocutor 10, percussionista).

Más condições de trabalho

Já no período das entrevistas era possível observar o descumprimento das medidas sanitárias,
concomitantemente à reabertura das casas de shows. Podemos observar esta situação através de
declarações como: “Tô vendo e ouvindo falar de lugares que estão vendendo e divulgando que estão
respeitando as medidas sanitárias. MENTIRA! [. . .] Vai numa roda de samba pra tu ver!” (interlocutor
10).

Considerações finais

Nossa pesquisa constatou que, mesmo antes do período pandêmico, nossos interlocutores já
possuíam relações de trabalho com alto teor de informalidade, elevado grau de instabilidade e
irregularidade profissional, e uma nítida insatisfação com os seus rendimentos. Insatisfações que
estão diretamente ligadas às suas expectativas e investimentos realizados ao longo de anos de estudos
e o tempo exercido na profissão. Porém, com o isolamento social, este quadro ganhou contornos
dramáticos, com alguns interlocutores relatando a perda total de sua renda, uma vez que todos os seus
trabalhos cessaram, por tempo indeterminado. Alguns relataram estar vivendo exclusivamente com a
verba adquirida através do Auxílio Emergencial, oferecido pelo Governo Federal. Porém, nos foram
relatadas, quase como unanimidade, a insatisfação com seu valor e as dificuldades para acessá-lo.
Alguns integrantes possuem trabalhos com contratos temporários em ONGs e escolas de
música particulares, porém a ampla maioria está largada à própria sorte, negociando em condições
desvantajosas com capitalistas dos setores do ensino privado e de bares e restaurantes,
majoritariamente do Centro e Zona Sul da cidade. Também se verificou que alguns apresentaram
quadros de tristeza e desesperança com o atual momento vivido, sobretudo, em termos de realidade
pós-pandemia.
É necessário ressaltar que a situação dos(as) trabalhadores da música se agravou com a
progressiva flexibilização das medidas restritivas e com o rebaixamento do valor do auxílio
emergencial.
Relatos como esse nos preocupam, e apontam para a necessidade de continuidade da nossa

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pesquisa. Se, no presente trabalho, nos debruçamos sobre a suspensão das atividades laborais dos(as)
trabalhadores(as) da música, pretendemos, em investigações futuras, dar continuidade ao trabalho
empreendido, atentando para os impactos do retorno (inseguro) de tais atividades em espaços
presenciais, tais como escolas de música, casas de shows, ONGs, bares e outros espaços.

Referências

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REYES-SCHRAMM, Adelaida. Explorations in Urban Ethnomusicology: Hard Lessons from the
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SCHROEDER, Sílvia Cordeiro Nassif. O músico: desconstruindo mitos. Revista da ABEM, Porto
Alegre, V. 10, 109-118, mar. 2004.

Anais do X Encontro Nacional da Associação Brasileira de Etnomusicologia


Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Porto Alegre
08 a 12 de novembro de 2021 (virtual)

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