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“Tudo o que eu podia oferecer era uma opinião sobre um tópico menor: de que uma

mulher, para escrever ficção, precisa ter dinheiro e um quarto só seu.” (WOLF, 2022, p.
p. 22)

“A ficção deve se ater aos fatos e, quanto mais verdadeiros esses fatos, melhor é a
ficção – assim nos dizem.” (WOLF, 2022, p. 41)

“Pois parta bancar uma faculdade seria preciso suprimir as famílias em si. Fazer fortuna
e ter treze filhos – nenhum ser humano é capaz disso. Basta considerar os fatos, nós
dissemos. Primeiro, são nove meses antes de o bebê nascer. Depois ele nasce. Então
vêm três ou quatro meses de amamentação. Depois que o bebê é alimentado, certamente
são uns cinco anos brincando com ele, Não é possível, aparentemente, deixar as crianças
correndo soltas pelas ruas. Pessoas que as viram correr sem rumo na Rússia dizem que a
imagem não é agradável. As pessoas também dizem qu a natureza humana toma forma
entre o primeiro e o quinto ano de vida.” (p. 56)

“Além disso, é igualmente inútil perguntar o que teria acontecido se a sra. Seton, sua
mãe e sua avó tivessem acumulado grande fortuna e a despejado nas fundações de
faculdades e bibliotecas, pois, primeiro, ganhar dinheiro era impossível para elas e,
segundo, mesmo que fosse possível, a lei não lhes concedia a posse do dinheiro ganho.
Só nos últimos quarenta e oito anos é que a sra. Seton ganhou o direito de ter um
centavo todo seu. Durante os séculos anteriores, o direito seria propriedade do marido –
um pensamento que talvez tenha ajudado a manter a sra Seton, suia mãe e sua avó
afastadas da Bolsa de Valores. Todo o centavo que eu ganhar, elas podem ter dito, será
tirado de mim e despendido de acordo com a sabedoria do meu marido – talvez para
bancar ou financiar pesquisas no Balliol ou no King’s College –, de modo que ganhar
dinheiro, mesmo que isso fosse possível, não é um assunto que me desperta grande
interesse. Melhor deixar para o meu marido.” (p. 56-57)

Por que os homens bebiam vinho e as mulheres água? Por que um sexo era tão próspero
e o outro, tão pobre? Qual o efeito da pobreza sobre a ficção? Que condições são
necessárias para a criação de obras de arte? Mil perguntas se apresentaram ao mesmo
tempo. (p. 63)

Eis o que diz Pope: “A maioria das mulheres não tem nenhum caráter”. E La Bruyère:
“As mulheres são extremas, elas são melhores ou piores do que os homens”. Uma
contradição direta entre aguçados observadores que foram contemporâneos. Seriam as
mulheres capazes ou incapazes de receber educação. Napoleão as julgava incapazes. O
dr. Johnson pensava o posto. Teriam as mulheres uma alma? Alguns selvagens dizem
que não. Outros, ao contrário, afirmam que elas são metade divinas, e por isso as
adoram. Alguns sábios acham que elas são mais rasas intelectualmente; outros, que sua
consciência é mais profunda. Goethe as estimava; Mussolini as despreza. Por onde quer
que se olhasse, os homens pensavam sobre as mulheres, e pensavam de forma diferente.
(p. 68)

Qualquer um que pegasse esse jornal, pensei, ainda que fosse um visitante de passagem
neste planeta, não poderia deixar de notar mesmo a partir de testemunhos tão dispersos,
que a Inglaterra está sob o poder do patriarcado. Ninguém em pleno domínio das
faculdades mentais deixaria de perceber a dominância do professor. Era dele o poder, o
dinheiro e a influência Era ele o dono do jornal, o editor e o subeditor. Era ele o
Ministro das Relações Exteriores e o juiz. Era ele o jogador de críquete, o dono das
corridas de cavalos e dos iates. Era ele o diretor da empresa que pagava duzentos por
cento a seus acionistas. Ele deixou milhões de libras a instituições de caridade e
faculdades comandadas por si próprio. Foi ele quem suspendeu a atriz em pleno ar. Ele
irá decidir se o cabelo no cutelo de carne é humano; é ele quem irá inocentar ou
condenar o assassino, enforcando-o ou deixando-o sair em liberdade. Ele parecia
controlar tudo, com exceção da neblina. E ainda assim, ele tinha raiva. [...] E apesar
disso me parecia absurdo, pensei, virando a página do jornal, que um homem com tanto
poder pudesse estar com raiva. Ou será que a raiva é, de alguma forma, o espírito
habitual e vigente no poder. (p. 73-75)

É possível que o professor, ao insistir de forma tão enfática na inferioridade das


mulheres, não estivesse preocupado com a inferioridade delas, mas com sua própria
superioridade. Era isso o que ele protegia um tanto acaloradamente e com demasiada
ênfase, pois se tratava de uma joia do mais raro valor. A vida para ambos os sexos – e
observei as pessoas que abriam caminho pela calçada – é árdua, difícil, uma batalha
perpétua. [...] E como podemos produzir mais rapidamente essa qualidade imponderável
e, no entanto, tão inestimável? Pensando que os outros são inferiores a nós. (p. 75)

Durante os últimos séculos, as mulheres serviram como espelhos dotados do poder


mágico e delicioso de refletir a silhueta dos homens com o dobro do tamanho real. Sem
esse poder provavelmente o planeta ainda seria pântanos e selvagens. (p. 76)

É por isso que tanto Napoleão como Mussolini insistem na inferioridade das mulheres
de forma tão enfática, pois, se estas não fossem inferiores, então deixariam de
amplificá-los. Isso serve para explicar, em parte, a necessidade que a mulher
frequentemente representa para os homens. E serve para explicar o quanto eles se
incomodam as críticas dela; como é impossível para ela dizer que este livro é ruim, que
este quadro é medíocre, ou coisa do tipo, sem causar mais dor ou provocar mais raiva do
que ocorre quando um homem oferece o mesmo tipo de crítica. Pois se ela começa a
dizer a verdade, a imagem no espelho se encolhe; a disposição para a vida diminui.
Como ele poderia continuar fazendo seus julgamentos, civilizando nativos, criando leis,
escrevendo livros, se vestindo com elegância e discursando em banquetes, a menos que
consiga enxergar a si mesmo no café da manhã e no jantar com pelo menos o dobro do
tamanho que realmente tem? (p. 80)
A notícia da minha herança chegou a mim certa noite, mais ou menos na mesma época
em que se aprovou a lei que dava às mulheres o direito ao voto. A carta de um advogado
caiu na minha caixa de correio e, ao abri-la, descobri que ela havia me deixado
quinhentas libras anuais para sempre. Dessas duas coisas – o voto e o dinheiro –, admito
que o dinheiro me pareceu infinitamente mais importante. (p. 81)

Acho que não preciso descrever em detalhes como o trabalho era árduo, pois vocês
talvez conheçam mulheres que desempenham tis ofícios; tampouco preciso falar da
dificuldade de viver do próprio trabalho, pois vocês talvez tenham tentado. Mas o que
ainda permanece comigo, como um tormento pior do que tudo, é o veneno do medo e da
amargura que aqueles dias produziram em mim para começo de conversa estar sempre
realizando um trabalho que não se deseja, e feito uma escrava – adulando e bajulando, o
que talvez não fosse sempre exigido, mas me parecia necessário, e, além do mais, havia
muita coisa em jogo para correr riscos. Depois, a ideia de que aquele único talento que
seria mortal ocultar – um talento pequeno, mas valioso a quem o possuía – estava se
extinguindo. E com ele o meu ser e a minha alma... Tudo isso era como uma ferrugem
corroendo o florescer da primavera, e destruindo a árvore por dentro. Porém, como eu
disse, minha tia morreu; agora, toda vez que toco uma nota de xelins, um pouco essa
ferrugem e corrosão é removida, e o medo e amargura vão embora. (p. 81-82)

Na verdade, pensei, jogando as moedas na bolsa e recordando a amargura daqueles dias,


é incrível a mudança de humor que traz um rendimento fixo. Nenhuma força do mundo
irá tirar as minhas quinhentas libras. A comida, a casa e as roupas são minhas para
sempre. Consequentemente, não só o esforço e o trabalho cessam, mas também a raiva e
a amargura. Não preciso adular nenhum homem, eles não tem nada a me oferecer. (p.
82)

Sem sermos historiadores, podemos ir até mais além e dier que as mulheres brilharam
feito faróis em todas as obras dos poetas desde o início dos tempos – Clitemnestra,
Antígona, Cleópatra, Lady Macbeth, Fedra, Créssida, Rosalind, Desdêmona, a duquesa
de Malfi, entre os dramaturgos; então entre os porsadores: Millamant, Clarissa, Beck
Sharp, Anna Kariênina, Emma Bovary, Madame de Guermantes... Os nomes afluem à
mente, e nenhum deles evoca mulheres que “parecem carecer de personalidade e
temperamento.” De fato, se a mulher não existisse fora da ficção escrita pelos homens,
poderíamos imaginar que ela fosse uma pessoa de maior importância, muito variada;
heroica e cruel; esplêndida e sórdida; infinitamente bela e feia ao extremo; tão grande
quanto um homem e, segundo alguns, até maior. Mas essa é a mulher na ficção. Na vida
real, como o prof. Trevelyan aponta, ela era trancada, espancada e jogada de um lado
para o outro em seu quarto. (p. 91)

Mas o que eu acho deplorável, prossegui, examinando novamente as prateleiras, é que


não se sabe nada sobre as mulheres antes do século XVIII. Não disponho de nenhum
modelo mental para fundamentar esta ou aquela reflexão. Aqui estou eu, perguntando
por que as mulheres não escreviam poesia na época elisabetana, quando não sei como
elas foram educadas, se aprenderam a ler e escrever, se tinham quartos só delas, quantas
tiveram filhos antes dos vinte e um anos de idade, e o que, em resumo, elas faziam das
oito da manhã às oito da noite. Evidentemente elas não tinham nenhum dinheiro; de
acordo com o Prof. Trevelyan, elas se casavam mesmo contra a vontade e antes até de
saírem dos cuidados das babás, provavelmente aos quinze ou dezesseis anos. Seria
extremamente estranho se, mesmo depois de tudo isso, uma delas tivesse de repente
escrito as peças de Shakespeare, concluí, e pensei naquele velho senhor, já falecido, mas
que era bispo, acho que declarou ser impossível qualquer mulher – no passado, presente
ou futuro – ter a genialidade de Shakespeare. [...] Seja como for, não pude deixar de
pensar, olhando para as obras de Shakespeare, que o bispo estava certo pelo menos
nisto: seria impossível, absoluta e inteiramente, que mulher tivesse escrito as peças de
Shakespeare. (p. 95-98)
Deixe-me imaginar, já que os fatos são tão difíceis de obter, o que teria acontecido se
Shakespeare tivesse tido uma irmã maravilhosamente talentosa, digamos, chamada
Judith. O próprio Shakespeare frequentou, muito provavelmente, a escola [...] onde deve
ter aprendido latim [...] além dos fundamentos de gramática e lógica. [...] [Ele] foi
obrigado a se casar, mais rápido do que deveria, com uma mulher da vizinhança, que
deu à luz antes do que seria o correto. Essa escapada o levou a buscar a sorte em
Londres. Ele tinha aparentemente um gosto pelo teatro; começou vigiando cavalos na
porta do estabelecimento. Logo passou a trabalhar no ramo, tornou-se um ator bem
sucedido e viveu no centro do mundo, encontrando e conhecendo a todos, praticando
sua arte nos palcos, exercendo sua esperteza nas ruas e até ganhando acesso ao palácio
da rainha. Enquanto isso, sua irmã extraordinariamente talentosa, pode-se supor, ficou
em casa. Ela era tão aventureira, tão imaginativa, tão impaciente para conhecer o mundo
quanto o irmão. Mas não foi mandada à escola. Não teve a chance de aprender
gramática e lógica, nem de ler Horácio e Virgílio. De vez em quando pegava um livro,
talvez do irmão, e lia algumas páginas. Mas então seus pais apareciam e lhe mandavam
cerzir meias e cuidar do guisado, em vez de ficar devaneando com livros e papéis. [...]
Talvez ela rascunhasse algumas páginas no sótão onde guardava as maças, mas tinha o
cuidado de escondê-las ou queimá-las. Em pouco tempo, porém, antes que saísse da
adolescência, ela ficaria noiva do filho de um comerciante de lãs da vizinhança. Gritou
que achava o casamento odioso, e por causa disso foi severamente espancada pelo pai.
Então ele parou de ralhar com ela. Em vez disso, implorou que não o magoasse, que não
o desonrasse nesse assunto do casamento. Ele lhe daria um colar de contas ou uma bela
anágua, disse, com lágrimas nos olhos. Como ela poderia lhe desobedecer? Como
poderia partir seu coração. A mera força de seu talento a levou a isso. Fez um pequeno
pacote com seus pertences, desceu por uma corda em uma noite de verão e tomou a
estrada até Londres. Não tinha nem dezessete anos. [...] Possuía uma inclinação
apurada, um talento, como o do irmão, para a melodia das palavras. Também como ele,
tinha gosto pelo teatro. Parou na porta de um: queria atuar, disse. Os homens riram da
cara dela. O diretor – um homem gordo e falastrão – irrompeu em gargalhadas. Urrou
algo sobre poodles que dançam e mulheres que atuam – nenhuma mulher poderia ser
atriz, disse. [...] Ela não teria como aprender seu ofício. Não tinha nem a possibilidade
de jantar em uma taverna ou de vagar pelas ruas à meia noite. Ainda assim, seu talento
era para a ficção, e ela tinha ânsia de se alimentar das vidas dos homens e das mulheres,
estudando seus costumes. Por fim ]...] o ator-diretor Nick Greene ficou com pena dela;
ela se viu grávida desse cavalheiro, e então – quem poderia medir o ardor e a violência
de um poeta preso e enredado em um corpo feminino? – ela se matou numa noite de
inverno, e jaz enterrada em alguma encruzilhada onde hoje os ônibus param, em
Elephant and Castle. (p. 98-102)

Mas, de minha parte concordo com o bispo falecido, se é que ele era mesmo um bispo: é
impensável que qualquer mulher na época de Shakespeare tenha tido a genialidade de
Shakespeare. Pois uma genialidade como a dele não nasce entre pessoas trabalhadoras,
incultas e servis. Não nasceu na Inglaterra dos saxões e bretões. Não nasce hoje entre as
classes trabalhadoras. Como, então, poderia ter nascido entre as mulheres cujo trabalho
começava, de acordo com o prof. Trevelyan, quase antes de saírem dos cuidados das
babás, e ao qual era impelidas pelos pais e obrigadas pelo poder da lei e dos costumes?
Ainda assim, deve ter havido algum tipo de genialidade entre mulheres, da mesma
forma como deve ter havido entre as classes trabalhadoras [...] mas o que era verdadeiro
nisso, assim me pareceu, revendo a história da irmã de Shakespeare conforme a
inventei, é que qualquer mulher nascida com um grande talento no século XVI
certamente teria enlouquecido, se suicidado, ou terminado seus dias em alguma cabana
solitária distante do vilarejo – meio bruxa, meio feiticeira, temida e ridicularizada. (p.
102-103)

Ao mundo não interessa se Flaubert encontra a palavra justa ou se Carlyle verifica


escrupulosamente este ou aquele fato. E assim o escritor – Keats, Flaubert, Carlyle –
experimenta, em especial nos anos criativos da juventude, toda espécie de distração e
desencorajamento. Um impropério, um grito de agonia, emerge desses livros de análise
e confissão. [....] Mas para as mulheres, pensei, olhado as prateleiras vazias, essas
dificuldades eram infinitamente maiores. Em primeiro lugar, ter um quarto só seu - que
dirá um quarto tranquilo ou à prova de som - estava fora de questão, a menos que seus
pais fossem excepcionalmente ricos ou muito nobres, até mesmo tão recentemente
quanto no início do século XIX. Como sua mesada, que dependia da boa vontade do pai,
mal era suficiente para comprar roupas, ela não contava nem com as distrações
permitidas a Keats, Tennyson ou Carlyle, todos homens pobres, como fazer uma
excursão guiada, uma viagem breve à França ou viver em um teto separado que, por
mais que fosse miserável, os protegia das demandas e tiranias de suas famílias. Tais
dificuldades materiais eram imensas; mas muito piores eram as imateriais. A indiferença
do munido – que Keats, Flaubert e outros gênios acharam tão difícil de suportar – era,
no caso delas, hostilidade. O mundo não dizia a elas: “Escreva se quiser, não faz
diferença”, como dizia a eles. O mundo dizia, com uma gargalhada, “escrever? Para que
você vai escrever?”. (p. 106-108)

Porém, ainda que isso seja possível agora, tais opiniões vindas de pessoas importantes
devem ter tido um enorme peso cinquenta anos atrás. Vamos imaginar que um pai, por
motivos dos mais elevados, não desejasse que sua filha saísse de casa para se tornar
escritora, pintora ou acadêmica. [...] “a essência das mulheres é que elas são sustentadas
pelos homens, e a eles servem”, disse o sr. Greg enfaticamente –, havia um enorme
conjunto de opiniões masculinas dizendo que não se pode esperar nada das mulheres
intelectualmente. Mesmo que o pai dela não lesse tais opiniões em voz alta, qualquer
garota era capaz de lê-las sozinha; e essa leitura, mesmo no século XIX, deve ter
diminuído sua vitalidade e influenciado profundamente seu trabalho. Sempre haveria
essa afirmação [...] contra a qual protestar, a qual superar. Para uma romancista, esse
germe provavelmente não tem mais tanto efeito, pois já houve mulheres romancistas de
mérito. Mas para as pintoras ele ainda causa algum dano; e para as musicistas, imagino,
está até hoje e continua extremamente tóxico. A mulher compositora se encontra na
mesma situação que a atriz na época de Shakespeare. (p. 109)

[...] é bastante evidente que, mesmo no século XIX, uma mulher não era encorajada a
ser artista. Pelo contrário: ela era esnobada, estapeada, reprovada e desaconselhada. A
necessidade de se opor a isso e provar o contrário deve ter exaurido sua mente e
diminuído sua vitalidade. E aqui entramos de novo no âmbito daquele interessantíssimo
e obscuro complexo masculino que tanta influencia tem exercido sobre o movimento
das mulheres: o desejo arraigado não tanto de que ela seja inferior, mas de que ele seja
superior, desejo que o coloca no comando das artes por toda parte e que também barra a
entrada das mulheres na política, mesmo quando o risco para ele é minúsculo e a
suplicante é humilde e devotada. (p. 112)

Afinal, mesmo qiando dizemos que nada sabemos sobre o estado do espírito de
Shakespeare, já estamos informando algo sobre o estado de espírito dele. O motivo pelo
qual nós talvez saibamos tão pouco de Shakespeare – em comparação a Donne, Bem
Jonson ou Milton – é que seus rancores, mágoas e antipatias estão ocultos de nós. [...]
Portanto, sua poesia pode fluir de forma livre e desempedida. Se alguém no mundo
conseguiu ter sua obra completamente expressa, foi Shakespeare. Se alguma mente foi
incandescente e desimpedida, pensei, olhando de volta para a estante, foi a mente de
Shakespeare. (p. 115)

Sem essas precursoras, Jane Austen, as Brontё e George Eliot não poderiam ter escrito
nada, não mais do que Shakespeare poderia ter escrito sem Masrlowe, ou Marlowe sem
Chaucer, ou Chaucer sem aqueles poetas esquecidos que abriram caminho e domaram a
selvageria natural do idioma. Pois obras-primas não são nascimentos solitários: são o
resultado de muitos anos de pensamento coletivo, de pensamentos em comum, de modo
que a experiência das massas esteja por trás de uma voz singular. (p. 128)

Além disso, pensei, olhando ara os quatro nomes famosos, o que George Eliot tinha em
comum com Emily Brontё? E Charlotte Brontё não havia falhado miseravelmente em
entender Jane Austen? Tirando o fato possivelmente relevante que nenhuma delas teve
filhos, não poderia haver quatro personalidades mais incongruentes para se juntar em
uma sala – tanto que é tentador imaginar um encontro e um diálogo entre elas. E ainda
assim, impelidas por alguma estranha força, elas escreveram romances. (p. 129)

E em sua maioria, é claro, os romances realmente falham em algum lugar. A


imaginação cambaleia sob a enorme tensão. A percepção se confunde; não é mais capaz
de distinguir entre o falso e o verdadeiro, não tem mais forças para seguir com o enorme
esforço que clama, a todo instante, pelo uso de tantas faculdades diferentes. Mas como
tudo isso poderia ser afetado pelo sexo do romancista?, imaginei, olhando para Jane
Eyre e os outros. Será que o sexo tem alguma influência sobre a integridade da
romancista mulher – essa integridade que considero ser a espinha dorsal do escritor? (p.
138)

E como os romances têm essa correspondencia com a vida real, seus valores são, em
certa medida, aqueles da vida real. Mas é óbvio que os valores das mulheres muitas
vezes diferem dos valores que foram estabelecidos pelo sexo oposto; naturalmente é
assim. No entanto, são os valores masculinos que prevalecem. (p. 139)

Uma jovem em 1828 precisaria ser muito forte para desprezar todas essas afrontas,
reprovações e promessas de prêmios. Precisaria ser uma espécie de agitadora para dizer
a si mesma: “Ah, mas eles não podem comprar a literatura também. A literatura está
aberta a todos. Me recuso a permitir que você, mesmo que seja um bedel, me expulse do
gramado. Tranque as bibliotecas, se quiser: não há portão, fechadura ou cadeado que
possa colocar na liberdade da minha mente.”

Mas seja qual tenha sido o efeito do desencorajamento e das críticas sobre seus escritos
-e acredito que tiveram um efeito bem grande –, isso não era importante em comparação
à outra dificuldade que surgia (eu ainda estava considerando aquelas romancistas do
início do séc. XIX) quando elas se punham a registrar seus pensamentos o papel – ou
seja, o fato de que não havia nenhuma tradição para ampará-las, ou que essa tradição era
tão recente e parcial que de pouco lhes servia. Pois, se somos mulheres, pensamos no
passado através de nossa mãe. (p. 141)

Na verdade, já que a liberdade e a plenitude de expressão são essenciais para a arte,


tamanha falta de tradiçao, tamanha escassez e inadequação de ferramentas devem ter
marcado imensamente a escrita das mulheres. Além disso, um livro não é feito de frases
dispostas uma atrás da outra, mas de frases construídas – se uma imagem ajuda – em
arcadas e domos. E esse contorno também foi criado pelos homens, e a partir de suas
próprias necessidades e para os seus próprios usos. (p. 143)

Não há motivos para pensar que o contorno da peça épica ou poética seja adequado a
uma mulher, não mais do que o fraseado lhe é adequado. Mas todas as mais antigas
formas de literatura já estavam consolidadas e estabelecidas na época em que ela se
tornou escritora. Só o romance era jovem o suficiente para ser moldados em suas mãos
– outro motivo, talvez, para ela escrever romances. (p. 143-144)

O livro precisa, de alguma forma, adaptar-se ao corpo, e de repente até podemos dizer
que os livros das mulheres devem ser mais curtos, mais concentrados, do que os livros
dos homens, e estruturados de forma a não exigir longas horas de trabalho constante e
ininterrupto. Pois sempre vai haver interrupções. De novo, os nervos que alimentam o
cérebro parecem ser diferentes nos homens e nas mulheres e, para fazê-los trabalhar
mais e melhor, é preciso descobrir que tipo de tratamento lhes é mais apropriado – se
são aquelas horas de preleções, por exemplo, supostamente concebidas pelos monges
centenas de anos atrás – e de qual alternância entre trabalho e descanso eles precisam –
e por “descanso” não quero dizer fazer nada, mas fazer algo diferente (e qual deve ser
essa diferença?). Tudo isso deve ser debatido e descoberto; tudo isso faz parte da
pergunta sobre as mulheres e a ficção. (p. 144-145)

Pois os livros são continuações uns dos outros, apesar do nosso hábito de julgá-los em
separado. (p. 148)

Era estranho pensar que todas as grandes mulheres da ficção foram, até a época de Jane
Austen, não só vistas pelo sexo oposto, mas vistas apenas em relação ao sexo oposto. E
esta é uma parte pequena da vida de uma mulher; e é muito pouco o que um homem
pode saber mesmo a esse respeito ao observá-la com os óculos escuros ou cor-de-rosa
que o sexo coloca sob seu nariz. Daí, talvez, a natureza peculiar das mulheres na ficção,
os impressionantes extremos de sua beleza e horror, sua alternância entre bondade
celestial e depravação demoníaca – pois é como seu amante iria enxergá-la, conforme o
amor aumentasse ou declinasse, se fosse próspero ou desaventurado. (p. 152)
Suponha, por exemplo, que os homens fossem retratados na literatura apenas como
amantes das mulheres, e que nunca fossem amigos de outros homens, ou soldados,
pensadores, sonhadores; nesse caso, como seriam poucos os papeis masculinos em
Shakespeare, e como a literatura iria sofrer! [...] a literatura ficaria incrivelmente
empobrecida, assim como a literatura é de fato empobrecida para além da conta quando
as portas são fechadas às mulheres. Casadas contra a vontade, limitadas a um quarto e a
uma ocupação – como poderia um dramaturgo começar um relato completo,
interessante ou verdadeiro sobre elas? (p. 153)

Pois, se as mulheres passaram milhões de anos sentadas em salas, a essa altura as


próprias paredes estão impregnadas de sua força criativa, a qual, de fato, sobrecarregou
tanto a capacidade dos tijolos e do cimento que precisou se transferir para canetas,
pincéis, negócios e políticas. (p. 167-168)
Mas esse poder criativo difere muito do poder criativo dos homens. E somos obrigadas
a concluir que seria uma pena se fosse tolhido ou desperdiçado, pois foi conquistado
através de séculos da mais drástica disciplina, e não há nada para tomar seu lugar. (p.
168)

Seria uma pena se as mulheres escrevessem como os homens, ou vivessem como os


homens, ou se assemelhassem aos homens, pois, se dois sexos não são exatamente
suficientes, considerando a vastidão e a variedade do mundo, com o faríamos com
apenas um? Será que a educação não deveria enfatizar e fortalecer as diferenças, em vez
das similaridades? Pois já temos semelhanças demais do jeito que está, e nada seria
mais útil para a humanidade do que um explorador que viesse a nós trazendo notícias de
outros sexos, após olhar através dos ramos de outras árvores para outros céus; e afinal
teríamos o imenso prazer de ver o professor X ir correndo buscar a sua fita métrica só
para provar que é “superior”. (p. 168)

No entanto, a maioria das mulheres não é prostituta ou cortesã; nem passa uma tarde
inteira de verão acariciando cachorros pug sobre um tecido empoeirado de veludo. Mas
então o que elas fazem? [...] Com os olhos da imaginação vi uma senhora muito idosa
para atravessar a rua de braços dados a uma mulher de meia idade, talvez sua filha [...]
E se alguém perguntasse, na tentatia de especificar o momento com a data e a estação, o
que ela estava fazendo em 5 de abril de 1868, ou em 2 de novembro de 1875, ela
lançaria um olhar vago e diria não se lembrar de nada. Nada resta dessas coisas. Tudo
desapareceu. Nenhuma biografia ou livro de história tem uma palavra para dizer a esse
respeito. (p. 169)

Dê a ela mais uns cem anos, concluí, lendo o último capítulo – o nariz e os ombros
desnudos das pessoas apareciam sobre um céu estrelado, pois alguém havia puxado a
cortina na sala de estar –, dê-lhe um quarto só seu e quinhentas libras por ano, deixe-a
falar o que pensa e corte metade do que ela hoje inclui, e ela irá escrever um livro
melhor qualquer dia desses. Ela será uma poeta, eu disse, recolocando A aventura da
vida, de Mary Carmichael, na ponta da prateleira, daqui a uns cem anos.
Nenhuma época pode ter tido uma consciência dos sexos mais estridente do que a nossa;
prova disso são aqueles incontáveis livros sobre as mulheres escritos por homens no
Museu Britânico. A campanha pelo sufrágio é, sem duvida, a culpada por isso. Deve ter
despertado nos homens um desejo extraordinário de autoafirmação; deve tê-los levado a
enfatizar o próprio sexo e suas características, coisas nas quais eles nem teriam se
incomodado de pensar se não tivessem sido desafiados. E quando alguém é desafiado,
mesmo por poucas mulheres em boinas pretas, pode responder de forma um tanto
excessiva, sobretudo se nunca tiver sido desafiado antes. (p. 185)

Ainda assim, a primeira frase que eu escreveria aqui, disse, aproximando-me da


escrivaninha e pegando a folha com o título “As mulheres e a ficção”, é que é fatal, para
alguém que escreve, pensar no próprio sexo. É fatal ser homem ou mulher, pura e
simplesmente: devemos ser masculinamente femininos ou femininamente masculinos.
Para uma mulher, é fatal dar a menor ênfase para qualquer queixa; defender, mesmo
com justiça, qualquer causa; falar conscientemente, de qualquer forma, como mulher. E
“fatal” não é figura de linguagem, pois qualquer coisa escrita com esse viés consciente
está fadada a morte. Deixa de ser proveitosa. Por mais brilhante e eficaz, poderosa e
magistral que possa parecer por um ou dos dias, irá definhar ao cair da noite; não é
capaz de crescer na mente dos outros. Algum tipo de colaboração entre a mulher e o
homem deve ocorrer na mente antes que se possa lograr a arte da criação. (p. 192-193)

“Este ótimo livro”, “este livro inútil” – o mesmo livro é chamado de ambas as coisas.
Tanto o elogio quanto a censura não querem dizer nada. Não, por mais agradável que
seja o passatempo de julgar, é a mais fútil das ocupações, e submeter-se aos decretos
dos julgadores é a mais servil das atitudes. Tudo o que importa é que você escreva o que
quiser escrever, e se irá importar por séculos ou só por algumas horas, ninguém pode
dier. Mas sacrificar um único fio de cabelo de sua visão, uma mera tonalidade de sua
paleta de cores, em deferência a um diretor com um troféu prateado nas mãos ou a um
professor com uma fita métrica na manga é a traição mais abjeta; e o sacrifício da
riqueza e da castidade, que diziam ser as maiores tragédias para um ser humano, não
passam, em comparação, meras mordidas de pulga. (p. 198)

Pode parecer uma coisa cruel de se dizer, e é uma coisa triste de se dizer: mas a dura
realidade é que a teoria de que a genialidade poética sopra onde quiser, e igualmente em
pobres e ricos, não contém muita verdade. A dura realidade é que nove desses doze
[nomes da poesia] frequentaram a universidade: o que significa que, de uma forma ou
de outra, encontraram um modo de obter a melhor educação que a Inglaterra tem a
oferecer. [...] Por mais que isso seja uma vergonham para a nossa nação, é certo que, por
alguma falha de nosso sistema, o poeta pobre não tem a menor chance em nossa época,
assim como não teve nos últimos duzentos anos. Acreditem – e passei uns bons dez
anos observando algo como trezentos e vinte estudantes do ensino básico –, podemos
falar muito em democracia, mas, na verdade, uma criança pobre na Inglaterra tem tantas
chances quanto o filho de um escravo ateniense de ganhar acesso a essa liberdade
intelectual da qual nascem os grandes escritos. (QUILLER-COUCH apud WOLF, p.
201-200).
A liberdade intelectual depende de coisas materiais. E as mulheres sempre foram
pobres, não só nos últimos duzentos anos, mas desde o início dos tempos. As mulheres
possuem menos liberdade intelectual do que os filhos de escravos atenienses. As
mulheres, portanto, não têm a menor chance de escrever poesia. Foi por isso que dei
tanta ênfase no dinheiro e em um quarto só seu. Porém, graças à labuta daquelas
mulheres no passado, de quem eu gostaria que soubéssemos mais coisas, e graças,
curiosamente, a duas guerras [...] esses males estão sendo corrigidos. (p. 200)

Portanto, peço a vocês que escrevam todo tipo de livros, não hesitando diante de
nenhum tema, por mais trivial ou extenso que seja. De uma forma ou de outra, espero
que disponham de dinheiro suficiente para viajar e andar por aí, para contemplar o
futuro ou o passado do mundo, para sonhar com livros, para vagar nas esquinas e deixar
a linha do pensamento afundar na correnteza. Pois não estou, de modo algum,
restringindo vocês à ficção. Se dependesse de mim – e há milhares como eu –, vocês
escreveriam livros de viagem e aventura, de pesquisa e estudos acadêmicos, de história
e biografia, de crítica, filosofia e ciência. Ao fazê-lo, certamente irão contribuir com a
arte da ficção. Pois os livros têm um jeito de influenciar uns aos outros. (p. 201)

No decorrer deste artigo, eu lhes disse que Shakespeare tinha uma irmã; mas não
procurem por ela na biografia do poeta, escrita por sir Sidney Lee. Ela morreu jovem –
infelizmente nunca escreveu uma palavra. Está enterrada onde os ônibus hoje param,
diante de Elephant and Castle. Agora, eu acredito que essa poeta que nunca escreveu
uma palavra ainda vive. Ela vive em você e em mim, e em muitas outras mulheres que
não estão aqui hoje à noite, pois estão lavando a louça e botando as crianças para
dormir. Mas ela vive, pois os grandes poetas não morrem; são presenças constantes;
precisam apenas de uma oportunidade de para caminhar entre nós em carne e osso. (p.
213)

Essa oportunidade, penso eu, logo estará ao alcance de vocês. Pois acredito que, se
vivermos por aproximadamente mais um século – estou falando da vida comum que é a
vida real, e não das vidinhas isoladas que temos individualmente –, e se tivermos
quinhentas libras por ano e quartos próprios; se cultivarmos o costume da liberdade e a
coragem de escrever exatamente o que pensamos; se escaparmos um pouco da sala de
estar comum para enxergar os seres humanos não só em relação uns com os outros, mas
com a realidade; e também com o céu, as árvores ou qualquer coisa que possa existir em
si mesma; se olharmos para além do fantasma de Milton, pois nenhum ser humano deve
encobrir nossa visão; se encararmos o fato (pois é um fato) de que não há nenhum braço
em que nos apoiarmos, mas que seguimos sozinhas e que nossa relação é com o mundo
da realidade, não só com o mundo dos homens e mulheres, então a oportunidade
surgirá, e a poeta morta que foi a irmã de Shakespeare irá vestir o corpo que tantas
vezes abandonou. Extraindo sua vida da vida das desconhecidas que foram suas
precursoras, como o irmão dela fez no passado, ela irá nascer. Quanto à sua vinda sem
essa preparação, sem esse esforço de nossa parte – sem a certeza de que, quando
renascer, ela verá que é possível viver e escrever sua poesia –, isso não podemos
esperar, pois seria impossível. Mas insisto que ela virá se trabalharmos por ela, e que
portanto trabalhar, mesmo na pobreza e na obscuridade, vale a pena.

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