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BRASÍLIA, 2019
2 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL
GUERRA FEDERAL:
RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL
Romance policial
Autores: Renato Júnior e Laurejan Ferraço / 2019 (2ª edição)
IMAGEM DA CAPA
Kjpargeter - Freepik.com
Prefácio...........................................................................................................................................6
Nota dos autores à 2ª edição..................................................................................... 10
NOVO CANGAÇO,
VELHOS CRIMES
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Prelúdio do fim
Sexta-feira 13 para o bandido mais procurado do Norte-Nordeste
brasileiro. Não sou lá muito supersticioso, mas reconheço oportuni-
dade de data azarada e estranhamente chuvosa para o momento: 13
de maio de 2016. O chefe de clã sanguinário do novo cangaço está
encurralado na zona rural do município de Morro Cabeça no Tem-
po, sul piauiense, no meio do nada, entre pó encrustado, lama tímida
e rochas esquecidas pela eternidade.
– Acabou, cabra! Tá cercado. Sai com as mãos na cabeça e deixa as
armas aí! – ordena um dos policiais, integrante de força-tarefa com-
posta por agentes da lei de três Estados.
Caçado como animal que é, nem imagina de onde surgiram tan-
tos macacos rajados, muito menos a chuva. Seu delírio provavelmente
transporta-o à época de Virgulino, inspirador-mor do levante atual de
sertanejos ainda em busca de seu lugar em país latifundiário, desigual,
corrupto até a alma futura de gerações a perder de vista. Ferido, debi-
litado, sabe que a caatinga cobra a conta pela longa estada em suas ins-
talações infernais de solo pobre e pedregoso, clima semiárido que não
o deixa raciocinar, arbustos secos e retorcidos como a pele queimada
de seus irmãos de armas.
Está há nove sóis no inferno, desde as primeiras horas do dia 5,
quando empreenderia mais um assalto bem planejado a uma agência
bancária do interior, desta vez a banco estatal em Curimatá, a 775
km de Teresina. Mas algo deu muito errado. A polícia já esperava seu
bando. Fugiram sem levar muita coisa, escudados por reféns atôni-
tos, frágeis, aterrorizados. No confronto inicial, ainda no mesmo dia,
tomba o primeiro companheiro. Resolve ativar o plano B: dividir a
quadrilha, embrenhar-se na caatinga, evitar estradas e trilhas e dei-
xar a poeira baixar, como sempre fez.
Apesar de bem treinados e equipados nos últimos anos, os “ra-
jados” não conversam entre si e limitam-se às fronteiras de seus
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Cidadela exposta
Natural de Paulista, na região metropolitana de Recife, posso
dizer que conheço bem o potencial bélico e a postura arrojada do
novo cangaço, movimento igualmente oriundo do sertão pernam-
bucano, a exemplo do grupo original de Lampião e companhia. Jo-
vem ainda – antes de entrar para a polícia – ouvia histórias de rixas
inconciliáveis entre famílias tradicionais de Floresta, Belém do São
Francisco, Cabrobó. O típico homem sertanejo entende qualquer
desavença como questão de honra, de vida e morte. Isso é cultu-
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ral. Se, desde o início do século 20, contentavam-se com brigas nas
urnas, revezando-se no poder político, em finais dos anos 1980
descambaram para disputas insanas de plantio e comércio de erva,
no hoje conhecidíssimo Polígono da Maconha, margeado em parte
por um conjunto monumental de terras devolutas banhadas pelo
Rio São Francisco.
Em um primeiro momento, o tráfico servia basicamente para fi-
nanciar a compra de armas como ataque e defesa na matança entre as
famílias. Não demoraria muito, porém, para que os assaltos a bancos,
cargas, carros-fortes, ônibus interestaduais e até veículos particulares
entrassem no rol criminoso de pais, tios, primos, irmãos, cunhados
e demais agregados rivais. Passaram a gostar do dinheiro fácil, da
adrenalina pulsando nas veias. A oferta era grande, mas a concorrên-
cia também. A celeuma estava feita.
O atual líder da principal família do novo cangaço, acuado em
uma sexta-feira 13 de 2016, estava fora dos radares de qualquer força
policial até 2014. Somente neste ano a Área de Inteligência da Polí-
cia Federal recebe sinal de um informante em Pernambuco de que o
“menino” começava a se juntar aos familiares das antigas, ligados ao
tio dele, morto em 2003. Outros avisos do contato ecoavam: “Ele é
diferente”. “Já mostra liderança, mesmo entre os mais velhos, cascas
grossas”. Iniciamos, então, um acompanhamento mais de perto. E
presenciamos sua rápida transformação em veterano aos olhos orgu-
lhosos e receosos dos companheiros da velha guarda.
Usa armas longas e muita truculência em assaltos pequenos ainda,
como em Curaçá e Patamuté, no norte baiano. O roteiro das ações ci-
nematográficas de sua quadrilha é sempre o mesmo: tomam a cidade
à base de muita bala, cercam a delegacia (se houver) e o posto da PM
com dois ou três policiais, vão ao banco, à lotérica ou aos Correios
e explodem o cofre com dinamite, fazem reféns entre funcionários,
clientes ou transeuntes e fogem rumo à caatinga para ultrapassar os
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confronto e outros cinco são presos. Seria um bom saldo se três não
tivessem escapado, entre eles um certo menino.
Para não morrer, deixa parte do dinheiro com outra equipe e se
embrenha na caatinga. Pode resistir o tempo que for preciso. É jo-
vem, forte, esperto. Com o conhecimento secular de sua família ser-
taneja, aproveita ao máximo os recursos naturais imersos na caatin-
ga. Não é evidente, mas a vida pulsa nesse bioma bem brasileiro. E a
morte também, caso não saiba tirar água de umbuzeiro, mandacaru,
xique-xique.
Privilegia frutos e raízes na alimentação. Acender fogueira signi-
fica delatar-se aos seus perseguidores. Poderia deleitar-se com um
teiú bem assado, lagarto de carne similar à galinha caipira, ou um
tatu-peba cozido da forma certa para eliminar sua inhaca caracterís-
tica. O cardápio é extenso: tamanduá, iguaria finíssima, suprassumo
de fonte proteica; jacu, primo distante e selvagem do faisão; lambu,
espécie de codorna de fácil captura; juriti, tipo um pombo ainda en-
contrado em abundância na caatinga; caititu, porco-do-mato de pe-
queno porte.
Porém, todos necessitam do enigmático e insubstituível fogo, in-
sumo natural controlado a tantas eras e o pior delator possível para
um fugitivo com rajados insistentes e igualmente conhecedores do
terreno no seu encalço. É melhor privar-se de carne por alguns dias.
Não levarão isso tão adiante, imagina. Mesmo a coleta de frutos e
raízes requer cuidados, tanto na forma da extração como na escolha
das opções. Eles adoram rastros de galhos quebrados e tubérculos
arrancados de solo rachado.
O mais crucial, entretanto, para um sertanejo desafiador da caa-
tinga (depois da água) é saber lidar com cada planta, arbusto, árvore.
As aparências desta flora guerreira enganam qualquer incauto que
pretenda sobreviver às suas astúcias evolutivas.
Alimenta-se sem medo de coroa de frade, quixaba, umbu. Jamais
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Inteligência intuitiva
Uma da madrugada do dia 1º de maio de 2016. Durmo o sono dos
justos. Faz muito bem de vez em quando. Toca o celular. Do outro
lado um companheiro agente da PF de Juazeiro, na Bahia. Um passa-
rinho contou-lhe que o novo homem do novo cangaço, agora deno-
minado Patrão, está há dois dias quieto, sumido. Coincidentemente,
um comparsa conhecido fora visto perambulando pelas bandas de
Curimatá e Avelino Lopes, ambas cidades do extremo sul do Piauí.
Como não acredito em coincidências, ligo imediatamente para
um colega major, caveira do Batalhão de Operações Especiais (BO-
PE-PI), um dos maiores conhecedores das movimentações de assal-
tantes a banco no Estado, e informo sobre provável situação Alpha-
-Bravo (Assalto a Banco). Na sequência, sem pestanejar, ele aciona o
secretário de Segurança e o comandante geral da PM do Piauí que,
de imediato, autorizam o deslocamento de duas equipes do BOPE e
uma equipe do Grupo de Repressão ao Crime Organizado da Polícia
Civil (GRECO), com o intuito de descer à localidade, realizar levan-
tamentos e prevenir possível assalto nas características violentas já
sabidas, que sempre expõe ao risco a população e policiais.
Ao mesmo tempo, o agente de Juazeiro solicita à Inteligência da PM
baiana (P2) que envie destacamento para a divisa entre Bahia e Piauí
na tentativa de identificar os veículos da quadrilha. Peço também apoio
aos comandos de inteligência da Bahia e de Pernambuco para liberarem
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Pau quebra
Alguns minutos além da meia-noite de 5 de maio de 2016. Poli-
ciais da P2, em campana em frente ao banco de Curimatá, avistam
um Ford Ranger e um Logan se aproximando em alta velocidade da
agência. Desesperados, veem oito homens fortemente armados de-
sembarcarem. Não devem agir, pois estão em flagrante desvantagem
numérica e de armamento.
Não muito longe dali, nos arredores da cidade, policiais do BOPE
não tiveram tempo hábil de abrigar seu atirador de precisão em local
seguro para visualizar a quadrilha e iniciar o confronto de manei-
ra a garantir a segurança das equipes e da população. A primeira
explosão dos caixas eletrônicos é ouvida e sentida pelos moradores
festeiros. A terra treme. O grupo de contenção dos assaltantes inicia
disparos intimidadores para todos os lados.
Ainda sem contato com o comando, os bravos policiais da P2
identificam o Patrão na calçada. Oportunidade assim subverte qual-
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Mocó
Contratempos justificáveis impossibilitam a prevenção ao roubo
e a prisão imediata dos ladrões. Por outro lado, surpreendidos, eles
só levam uns trocados do caixa eletrônico e, na pressa da fuga, não
conseguem reunir mantimentos necessários para a incursão pela ca-
atinga, já que não poderiam mais acessar seu ponto de apoio.
Ciente de que o planejamento inicial não aconteceu como o previsto,
pois praticamente todos os criminosos escaparam do primeiro cerco,
o major do BOPE deixa Teresina, de onde coordenava as estratégias à
distância, e desloca-se a Curimatá a fim de liderar a operação em campo.
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Ao mesmo tempo, para não dar sorte ao azar, solicito reforço aé-
reo. E então começaria nova via-crúcis. Piauí só dispunha de uma
aeronave, que estava em manutenção no estaleiro. Colegas da Inte-
ligência da Polícia Rodoviária Federal (PRF) responderam que seu
helicóptero mais próximo encontrava-se em uso na Paraíba. Nosso
contato de confiança do Grupo Tático Aéreo do Maranhão cumpria
missão no Rio de Janeiro em preparativos da Força de Segurança Na-
cional para as Olimpíadas, prestes a acontecer. Ouço também alguns
questionamentos, inclusive da PF: “Pra que helicóptero?”. Talvez seja
preciso voltar um pouco mais no tempo para entendermos essa re-
sistência.
Pilão Arcado, norte da Bahia, 2003. O então líder do novo can-
gaço, tio de nosso ex-menino (motivo da perseguição atual), faz a
limpa em agência bancária da cidade. Novidade! Do lado de fora,
trinta agentes da PF e 12 policiais militares aguardam a quadrilha de
oito integrantes. Segue-se intenso tiroteio de mais de uma hora, uma
eternidade em termos de confronto armado. Dois bandidos morrem
ali mesmo, inclusive o tio, e seis se embrenham na caatinga, você
sabe. Infelizmente, contudo, alvejam com uma bala de fuzil AR-15
um agente da PF que combate os assaltantes como operador em um
helicóptero da corporação. Não resiste e morre, assim como um pe-
dreiro que faz pequenas reformas na agência. Várias pessoas ficam
feridas, entre policiais, funcionários e clientes do banco. Em comba-
tes a crimes violentos, não admitimos mortes de reféns ou policiais,
independentemente da origem humilde ou da força a que perten-
çam. Foi um abalo profundo.
Não há como prever o desenrolar de acontecimentos dessa mag-
nitude. Mas há sim como aprender com os erros. Nossa intenção
com o helicóptero na perseguição de Curimatá e redondezas é que
ele sirva para remessa de mantimentos e deslocamento das tropas,
pura logística. Como vão andar 100 km de uma cidade a outra para
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Liberdade confortável
O revide dos policiais à insolência do Patrão é pesado. Estão todos
mortos de cansados, querendo voltar para o aconchego do lar. No
momento, o pobre diabo esconde-se em uma área de mata fechada,
de difícil acesso, provavelmente atrás de uma rocha ou de um tronco
mais robusto. Sua zombaria delirante deixa-os nervosos, putos nas
calças. Ele atira de volta. Repara que a munição está acabando.
– Ôxe, é só isso que conseguem fazer? Cheguem mais perto que
vou levar alguns de vocês comigo – recarrega o último pente de sua
Glock.
Pá! Pá! Pá! Pá!
Restam-lhe poucos minutos. Gostaria de viver mais, porém a pri-
são é castigo que não tolera. É homem livre, não baixa a cabeça para
ninguém. Lembra-se de outro famoso parente, contemporâneo de
seu tio. Pois esse parente é o verdadeiro fantasma da caatinga. Não
há fotos ou registro de nascimento que atestem sua existência entre
nós. Apenas um retrato falado esmaecido de barba rala, cabelo espe-
tado e olhar indefinível, aterrador, datado de 1998, além de relatos
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TEATRO DE
OPERAÇÕES
FEDERAIS
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Coisa de cinema
Dia 9 de março de 2013. Canavial qualquer entre tantos no Tri-
ângulo Mineiro. Bimotor faz um rasante sobre nossas cabeças, em
incursão preventiva de reconhecimento da pista de pouso rural e
clandestina. Em solo somos quatro agentes federais. Três traficantes
estão algemados, deitados, escondidos no meio da cana alta.
Bem entrosados, montamos a cena sem tempo para ensaios. Mi-
nutos antes, na cabeceira da pista, surpreendemos e dominamos os
traficantes que aguardavam a aeronave para descarregá-la. Sabemos
de cor nossos papeis: dois agentes assumem o lugar dos responsá-
veis pelo reabastecimento do avião. À paisana, acenam ao lado da
caminhonete dos detidos. A ideia é simular veracidade, pois o piloto
provavelmente conhece o veículo.
Camuflados entre as folhagens da cana, estamos eu, com a função
de proteger os parceiros em pista, e o quarto agente, que não tira os
olhos dos infratores já rendidos. Levo comigo meu amigo do peito,
um fuzil HK G36 C, além de 180 munições calibre 5.56. Nosso con-
tato na Bolívia garante que a aeronave vem carregada de drogas e
armamento de grosso calibre. A troca de tiros é possibilidade mais
do que razoável.
O avião ressurge ao longe, alinhado à pista, reduz a velocidade
para o pouso e toca o solo a uns seiscentos metros dos dois falsos
comparsas. Apesar da experiência dos agentes disfarçados, a tensão
salta aos olhos. Escondidos no canavial, imóveis, eu e o outro agente
acompanhamos aproximação barulhenta. O suspense aumenta en-
quanto o ronco violento dos motores serena aos poucos. O inusitado
de asas e hélices vigorosas, desproporcionais ao estreito e bucólico
caminho, encurta a distância de desfecho imprevisível. Inseto desavi-
sado flana na linha da mira do meu fuzil. O bimotor desliza pela pista
de terra. Motores e tempo desaceleram-se, como em uma câmera
lenta de ações capitais de filmes hollywoodianos.
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Motor!
Pou!
Acerto um, mas ainda tem o outro, e ambos continuam a funcio-
nar. Evito atirar nas asas a todo custo. É por onde o combustível pas-
sa até os motores. Possivelmente estão quase vazias, porém a grande
volatilidade gerada pelos gases que ainda há nos tanques representa
um perigo em caso de contato com uma faísca.
A PF explodiu uma aeronave no mês passado em operação simi-
lar. Um dos tiros de interceptação quebrou o bloco do motor e parou
o avião, mas provocou também a tal faísca, e o fogo se propagou às
asas. Piloto e copiloto paraguaios saíram a tempo de serem presos.
Melhor para eles. Na ocasião, dois outros traficantes em terra, teimo-
sos, trocaram tiros com os policiais. Um morreu na hora; o outro foi
socorrido ainda com vida, mas faleceu no hospital.
No momento em que processo essas informações e rememoro o
treinamento especializado, percebo que o avião está cada vez mais
perto do meu colega de trabalho. O policial experiente não tem como
reagir. Olha para mim resignado, estatelado, quase em despedida.
Os motores estão em potência máxima num zoado ensurdecedor,
lançando poeira e pressão absurda sobre meus ombros tensos, rígi-
dos. Encaro o piloto uma última vez. Encontro-me na diagonal em
relação a ele, quase na altura da cauda. Em poucos segundos nada
mais poderei fazer.
O arranque repentino dos robustos motores joga a cabeça do
piloto para trás. Não posso mais vê-lo pela janela. Ele segue pres-
sionando o manete de potência desesperadamente, sem se importar
que o avião passe por cima do acuado agente. Cinco metros separam
predador e vítima.
Responsável pela contenção na equipe policial, não tenho esco-
lha. A artimanha precipitada do piloto me obriga a uma última me-
dida extremada. Além do agente na borda da pista, à vista do piloto,
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nha a liberdade por não conseguirmos ligá-lo aos fatos, mesmo com
a nossa quase certeza, confirmada dias depois, de que ele é o guar-
dião do entorpecente e armamento da primeira aeronave. Lei é lei.
Passados dois dias de buscas na região, o local onde a droga foi
depositada é encontrado em uma chácara entre Nova Ponte e In-
dianópolis. Mais 542 kg de pasta base e dois fuzis são apreendidos.
Somando-se aos 447 kg pegos no segundo avião, chegamos à incrível
marca de quase uma tonelada de cocaína e cinco armas longas.
O nosso corredor fujão, que saiu pela porta da frente da delegacia,
é formalmente identificado como o locatário da chácara e tem prisão
preventiva decretada. Só seria preso de fato, porém, mais de três anos
depois, precisamente em 27 de setembro de 2016. Motivo? Mesmo
roteiro (tráfico internacional de drogas e armas usando aeronave em
pista clandestina), só que em locação diferente: Cáceres, no Mato
Grosso, juntamente com um ex-delegado da Polícia Civil do Estado.
Mas isso é história para outro filme.
***
“O piloto enlouqueceu!”, diz um dos presos deitado no canavial
de Indianópolis. Eles também correram risco de ser atropelados na
agressiva tentativa de fuga. Foi tanta loucura que ele nem deve ter
parado para pensar que a aeronave estava sem combustível e poderia
cair a alguns metros ou poucos quilômetros à frente – isso se conse-
guisse decolar.
Estávamos prontos para qualquer escolha dos traficantes: rendi-
ção e prisão ou troca de tiros justa. Entramos para a polícia com o
intuito de ir para o pau, prender bandidos e cumprir a missão maior
de “salvar o mundo”, como diz um colega sonhador. Só não imagi-
návamos que a arma deles, nesse caso, seria o próprio bimotor de sei
lá quantas toneladas de massa metálica bruta e lâminas decepantes.
Se não houvesse um colega na frente, prestes a ser massacrado, o
piloto não teria levado o tiro fatal. Quatrocentos quilos de coca nada
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Droga de vilania
“Eu não tenho chefe; só temo a Deus”. Esta frase é atribuída a uma
das mais brilhantes mentes do crime na atualidade em nosso país.
Não se iluda com a pegada religiosa repisada. Acreditamos tratar-
Reprise
Nova aeronave descerá na região do Triângulo. É o que apontam
colaboradores de agentes federais de Uberaba em início de maio de
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piloto a pista de Santa Vitória, pois não é bobo de arriscar uma pane
seca. Jogada de mestre do Japa.
Partimos para a segunda opção de abordagem, você já deve sa-
ber. Embrenhados no mato, caminhamos progressivamente até as
margens da pista de pouso e observamos os traficantes em solo. Um
deles, sentado na carroceria da caminhonete, tem em mãos um pano
vermelho certamente para sinalizar ao piloto a presença do pessoal
de apoio. Por ora brinca com o tecido chamativo como um corajoso
toureiro fintando perigo avassalador imaginário. Ensaio premonitó-
rio? Outros dois, entediados, buscam sombra em meio ao canavial.
Onze e meia da manhã. O som do avião, soberano, preenche o
espaço. Mais uns minutos e ele sobrevoa a pista em busca de qual-
quer ameaça. Assim que se afasta para a volta da descida, damos o
bote nos traficantes em segundos. Nada melhor do que uma equipe
policial treinada. Parece uma coreografia ensaiada à exaustão, com
atitudes contundentes e gestos leves ao mesmo tempo. Algemas,
mordaças, vendas, tudo para evitar alarde. O toureiro enfia o pano
vermelho entre as pernas. Dois agentes federais assumem seus pos-
tos na pista; outros dois colegas colocam-se no veículo e conferem
os últimos ajustes na câmera instalada no para-brisas. A ação, agora,
sairá do campo imaginário e desacreditado das histórias contadas,
das palavras faladas, para as imagens irrefutáveis da realidade nua
e crua gravada. Se apenas narrássemos o ocorrido, ninguém acre-
ditaria. Indianópolis não sai de nossas cabeças. Não esperávamos a
tentativa de fuga do piloto na ocasião. Como garantia, agora somos
quatro dentro do canavial, distribuídos por quase um quilômetro de
pista para dar segurança à equipe disfarçada, caso o piloto atual faça
alguma besteira ou qualquer tripulante desça armado. Estamos pre-
parados para tudo no meio das canas sem fim.
O avião toca o chão e taxia mais devagar do que o normal. Um
dos agentes acena e vai em direção à aeronave, em improviso não
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Mocinho providencial
Apreensões seguidas têm objetivo claro: desestabilizar o Mosca
Branca, forçá-lo a sair da toca, sentar na droga, atingi-lo no seu me-
lhor do “faça você mesmo”. De quebra, municiar a investigação para
que a Justiça perceba a continuidade delitiva de perigosa organização
criminosa transnacional.
Muitos integrantes da Justiça brasileira e do Ministério Público
caminham a passos lentos e não entendem a dinâmica da crimina-
lidade. Não podemos generalizar, é claro, mas esperar prender um
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Roteiros futuros
– Nossa tática não está dando certo. Sinto que só ficamos enxu-
gando gelo... – reclamo em breve momento de desânimo.
– Calma, meu caro. O degelo das calotas polares é inevitável.
Temos que nos adaptar e seguir em frente – diz um colega agente,
formado em Oceanografia. Trocamos boas ideias. Isso que é papo
cabeça.
Enxugar gelo e arriscar peles de agentes teimosos todos os dias é
o que nos cabe na PF e em qualquer outra força policial brasileira se
não investirmos urgente e decentemente em inteligência comparti-
lhada de verdade, não inteligências genéricas alardeadas por pseu-
doespecialistas de plantão. Missões espetaculares com tiros e mortes
só deveriam existir no cinema, como memória de eventos sombrios.
Infelizmente realidade suplanta ficção no país do eterno futuro per-
dido.
O flagelo de armas e drogas brota de tudo que é canto e em quan-
tidade cada vez mais aviltante. Afinal, o lucro produzido por tais
mercadorias é astronômico. Conduta óbvia, entretanto bastante con-
troversa ainda, é deixar passar carregamentos propositalmente para
que se possa rastrear o caminho até os maiorais e quebrar conexões,
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EXPLOSÃO
DO MEDO
62 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL
São quase três e meia. Hora de ir. Vai lá fora ver se a varrição
da estreita calçada terminou. E então percebe um carro escuro com
cinco homens parando de qualquer jeito no meio da rua. “Não é pos-
sível. Mais clientes? E a essa hora?”, engana-se.
***
Nesta época eu integro a equipe de inteligência da Polícia Fede-
ral de Uberaba. Acompanhamos as ações do Mosca Branca quando
descobrimos, por acaso, importante grupo de assaltantes oriundo de
Uberlândia. O líder da quadrilha entra em contato com os traficantes
e encomenda armas da Bolívia. Como o Mosca é o chefão da rota
que passa pelo Triângulo Mineiro, trazer armas para bandidos locais
não lhe causará transtorno algum. Pelo contrário, ganhará mais uma
possibilidade de faturar e ainda poderá ampliar sua vitaminada rede
de parcerias.
Indícios de que haverá assalto a uma agência bancária em Per-
dizes ou Guimarânia, ambas cidades do Triângulo, nos chegam por
meio de um colaborador da região. Junto a isso a estarrecedora in-
formação de que policiais militares de Uberlândia estão envolvidos
com as funções de relatar deslocamentos das viaturas, servir como
olheiros nas cidades a serem atacadas e, acredite, dar cobertura aos
bandidos, mesmo que seja para atirar em seus irmãos de farda.
Imediatamente, contatamos capitão da Inteligência da PM de
MG, o Lobo, o qual indica dois oficiais de sua estrita confiança para
acompanhar o caso: um de Araxá, que ficará responsável pelo mo-
nitoramento de veículos nas redondezas do município de Perdizes,
e outro de Patrocínio, para cobrir Guimarânia. E na maior discrição
possível, já que a frequência de rádio da corporação provavelmente
está comprometida, além de não sabermos quais policiais podem ter
envolvimento com os assaltantes.
A Delegacia de Polícia Federal de Uberaba não dispõe de quanti-
tativo suficiente para apoiar as duas cidades. E o fato de Guimarânia
64 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL
– Sujou, sujou!
Os dois marginais protegem-se atrás do carro e executam suas
funções com louvor. Afinal, sem medo de errar, pelo menos uma
centena de projetis zunem de lado a lado. Os outros três retornam do
banco sem conseguir explodi-lo e equilibram contenda de artilharia
pesada. Com banana de dinamite na mão, um dos meliantes de pavio
curto não pensa sequer uma vez: acende o cordel detonante e lança
o artefato em direção aos PMs, igualmente protegidos por viaturas
que se acumulam. É o intervalo que os cinco precisam para bater em
retirada. Entram no carro e abrem fogo com tudo o que têm, fugindo
pela BR 365, sentido Patrocínio.
O dono do boteco finalmente dá uma espiada. Tenta levantar,
mas sua cabeça pesa uma tonelada. Sente os cabelos úmidos e pensa
tratar-se de suor. Ao apoiar o braço no chão para erguer-se, desaba.
Só então percebe que fora atingido na cabeça de raspão, supõe, e
também no ombro direito. O ajudante de cozinha permanece inerte
ao lado da vassoura.
– Vamos, homem, levanta! Vamos entrar!
O fio da dinamite se apaga antes de atingir a nitroglicerina con-
centrada. O funcionário perde a luz antes de ver seu Galo campeão
da Libertadores de uma América sempre conflagrada.
***
No quarteirão abaixo, veículo suspeito é interceptado por equipe
de rastreamento – sabe-se que existe um segundo carro, até então
não identificado, na atividade criminosa.
– Oh, amigo. Estamos aqui numa situação de campana – diz o
primeiro homem.
– Isso mesmo, somos de Uberlândia em missão confidencial – o
outro tenta dar a famosa carteirada para se livrarem da averiguação.
– Vai me dizer que não ouviram os tiros? Saiam do carro, os dois!
Mão na cabeça!
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Esquilo voador
Chegamos a um novo grupo em novembro de 2013. Com inte-
grantes remanescentes de um líder anterior, preso em julho, um dos
mais procurados do país na época, esta quadrilha continuou a andar
com as próprias pernas. Até trombar conosco.
Dia 2, Aparecida de Goiânia, churrasco familiar com a presença
de esposas, crianças e idosos em setor residencial de classe média-
-alta. Eis o delicado palco planejado à exaustão, de modo a garantir
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final da tarde, ainda com luz natural satisfatória. Quase todos estão
na piscina, paralisados com o espetáculo inesperado e ensurdecedor
do Esquilo Voador. Enquanto isso, seguindo a tática da surpresa e
beneficiando-se da distração geral, a força especial já escalou muro e
portão e intercepta imediatamente os dois alvos principais. Um deles
tentava correr para dentro da casa – onde havia armas, saberíamos
depois –, mas sem sucesso. Ação extremamente técnica, sem mortos
ou feridos, nenhum tiro disparado.
Só na casa de muro alto são apreendidos dois carros usados em
roubos a banco em Goiás, uma metralhadora 9 milímetros, uma pis-
tola 380, seis explosivos, rolos de cordel detonante e boa quantia em
dinheiro. Em outros dois endereços na região, mais dois comparsas
presos com dinheiro, duas escopetas, um fuzil AK-47, além da te-
mida metralhadora ponto 50, capaz de derrubar aeronaves como o
icônico Esquilo do GRAER.
As investigações continuam na região.
Estranho no ninho
Meia-noite molhada de 1º de dezembro de 2013. O movimento
de entra e sai é intenso na apertada porta iluminada por luz ver-
melha de bairro residencial em Aparecida de Goiânia, novamente.
No interior, homem acompanha mesa próxima lotada de uísque de
procedência irrastreável, cerveja, energético. E mulheres, claro, atra-
ídas por concentração bombástica de testosterona, grana e animação
sem limites de indivíduos esbanjadores. Admite a si mesmo ponta de
inveja por causa da vida espartana de controle físico, mental, finan-
ceiro e moral que leva. Os caras sabem curtir suas curtas existências,
isso é fato. Repreende seu devaneio e volta à real de seu guaraná zero,
como se cowboy preparado para o duelo fosse, ao receber chamado
no celular.
Identificação confirmada, mas abordagem arriscada no momen-
72 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL
to, sinaliza. Uma zona de música baiana, ou seja lá o que for, e luzes
estroboscópicas fatiam a escuridão e deixam os gestos picotados,
quadro a quadro. “Sou o rei, sou o rei, sou o rei do puteiro, fi de rapari-
gueiro, fi de raparigueiro” está em looping e toca repetidamente noite
adentro, sem sair de cima. Definitivamente não é o melhor cenário
para deter bandidos violentos e eufóricos. E ainda falta um integran-
te da perigosa quadrilha envolvida com roubo a bancos na região.
Provavelmente o que fora ao Paraguai comprar armas e drogas, se-
gundo informações da Inteligência da Polícia Federal de Uberlândia.
O informe dos federais aponta ainda o inferninho como base opera-
cional do bando. É ali que eles comemoram ações bem-sucedidas e
também planejam futuros assaltos.
Missão cumprida, por ora, dispensa educadamente a branquinha
mignon que investiu nele boa parte da noite. Sua companhia cheirosa,
alegre, sua pele tenra, firme, sua boca profana, tentadora, com aquele
“quê” apaixonante que só as goianas têm, acabaram se transformando
em cobertura ideal para o seu disfarce. Além disso, ela lhe passou, in-
genuamente, importantes relatos sobre a estrutura da casa (janelas nos
quartos que poderiam configurar rotas alternativas de fuga, por exem-
plo), bem como sobre a dinâmica de seus principais frequentadores.
Já levantou informações, identificou pessoas. Cada minuto a mais
que ali permaneça pode colocar em risco a missão, a vida de inocen-
tes e sua própria existência. Isso se a música não o matar antes. Con-
fusão fortuita é capaz de jogar fagulha no barril de pólvora em que se
encontra atolado até o pescoço. É apenas um forasteiro de passagem,
situação que, por si só, atrai holofotes indesejáveis. Com humilda-
de, discrição e certa dose de submissão, conseguiu ser tolerado sem
maiores importunações. Hora de juntar-se à equipe do serviço re-
servado do Graer, sempre eles. Lá fora, seus colegas monitoram as
imediações de dentro de uma caminhonete e consultam cada placa
de carro dos clientes.
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 73
Penetração
No final da tarde, o arrombamento é extremado, virulento, defini-
tivo. Utilizam um aríete, cilindro maciço que detona porta, fechadura,
portal. Em segundos dominam a situação. Três homens e três mulhe-
res, alheios a tudo, não têm tempo para esboçar qualquer reação, a não
ser obedecer aos comandos dos policiais. Atônitos, não entendem o que
acabara de acontecer.
76 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL
Na surdina
Pressão alta, estresse, cansaço constante, males súbitos. Estou em
parafuso? Em abril de 2015 peço transferência a Campinas para me
cuidar em um dos melhores centros de saúde da América Latina,
na Unicamp. Único problema: entro de cabeça no olho do furacão,
cercado de atividades criminosas por todos os lados. Só posso ter um
para-raios de confusão...
Distante cerca de 100 km da capital do Estado e com população
estimada em mais de um milhão de habitantes em 2015, Campinas
abriga o maior aeroporto intermodal da América Latina, recebendo
em média dez mil toneladas de cargas importadas por mês. Tam-
bém sedia o maior parque tecnológico do interior de São Paulo, o
que acarreta elevado fluxo de aparelhos e componentes eletrônicos
em rodovias como Anhanguera, Bandeirantes e Dom Pedro I, área
então conhecida como “Triângulo das Bermudas das Cargas” – que
compete em igual importância com a região de Uberlândia, no Tri-
ângulo Mineiro, aglutinadora das principais empresas de logística do
84 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL
4. Denúncia feita pelo Ministério Público Federal, em 2 de agosto de 2017, e aceita pela Justiça.
90 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL
lante. Nunca vi cabra da peste tão feio na minha vida. A essa altura os
colegas rolam no chão de tanto rir.
– Agora vai ter que casar ahahahahah! – sacaneia o Carioca.
De posse de nome e foto do Azulão, envio os dados no dia seguin-
te ao nosso melhor especialista em fontes abertas, um agente federal
de Sorocaba que consegue aglutinar tudo sobre o indivíduo e o qua-
lifica bem rápido. Para não deixar desconfianças no ar, mantenho o
namoro a distância por mais uns dias. Corto o coração dos colegas
noveleiros ao terminar tudo com ele. Desculpa: “reatei namoro com
antiga paixão da minha cidade natal e voltarei ainda hoje”. Sobem os
créditos finais.
Uma semana depois Azulão é preso ao roubar uma loja em Dia-
dema. Era o que precisávamos para chegar ao Paraíba. Mas esta é
história para outra novela.
***
Recinto de investigações secretas da PF em Campinas, 6 de no-
vembro de 2015, 8 horas da manhã. Nada de novo no front. Tranqui-
lidade relativa impera desde quando derrubamos grande parte das
quadrilhas de roubo de cargas atuantes na região. Toca o telefone.
– Seguinte, pessoal, atacaram uma base de transporte de valores
aqui de Campinas nessa madrugada.
– Tá, mas essas bases são como um bunker. Eles seguraram até a
chegada da PM, né? – questiona um agente.
– Vocês não estão entendendo. Cerca de 30 homens armados
com fuzis e metralhadoras explodiram tudo e levaram muita grana
ao que parece. O Gate [Grupo de Ações Táticas Especiais] está vindo
de São Paulo porque eles deixaram para trás alguns explosivos na
porta da base.
– Vamos lá ver isso!
Concreto despedaçado, vergalhões retorcidos, carros-fortes tom-
bados e notas de cem reais chamuscadas anunciam – aos gritos e
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 95
Na verdade, pode ser até mais, pois ninguém sabe ao certo quanto
algumas destas empresas guardam em valores. A fiscalização é frou-
xa, principalmente nas empresas menores. Rumores sinalizam a exis-
tência de dinheiro ilegal do tráfico de drogas e também de propinas
desviadas por políticos, além de caixa 2 de grandes magazines, redes
atacadistas, supermercados e outras empresas. Nada de bom justifica
guardarem tanto dinheiro fora da rede bancária, que, inclusive, não
cobra por este serviço e ainda remunera o depositário. Parece óbvio
deduzir que os assaltantes saibam dessa procedência diversa. Então,
vão lá e pegam. Afinal, ladrão que rouba ladrão...
Em família
Noite de 26 de agosto de 2016, rodovia em Hortolândia, Es-
tado de São Paulo. Blitz transparece operação normal em uma
sexta-feira qualquer. Alguns carros até são parados, porém o alvo
é um só.
– Atenção, veículo se aproximando do ponto de interceptação.
Tenham cuidado, alvo de extrema periculosidade.
Policiais do Batalhão de Ações Especiais de Polícia (BAEP) man-
dam o carro de passeio encostar com gestos serenos, mas firmes.
– Tem uma criança no banco traseiro. É esse mesmo? – o oficial
tira dúvida via rádio.
– Afirmativo, pode abordar. Estamos chegando aí, mas o trânsito
é intenso.
Casal acompanhado de filho de 7 anos presumíveis mostra espan-
to calculado.
– Pois não, senhor policial. Algo errado? Nunca vi barreira por
aqui a esta hora – questiona o homem ao volante.
– Ai, meu Deus! Espero que você não tenha bebido hoje. Já falei
um milhão de vezes, se for pra pegar o carro depois de ter bebido,
deixa que eu... – a mulher é interrompida em seu ensaio de discussão.
112 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL
Volta ao berço
A detenção do Baiano, em agosto de 2016, traz um pouco de paz
ao Estado de São Paulo até o fim do ano. Afinal, quebrou-se ali rele-
vante elo entre assaltantes da região. Contudo, o modelo de roubos
violentos ganha status de demonstração de força, aliada à subtração
eficaz de grandes somas de dinheiro. Tudo isso nas barbas das auto-
ridades de segurança pública – desarticuladas, mal equipadas, im-
potentes.
Testado e aprovado, este terrível modelo serve como fonte inspi-
radora a ser replicado por outras quadrilhas, dotadas de experiência
própria a grupos paramilitares em termos de planejamento, estru-
tura de comando, armamento e capacidade técnica para confrontos
cada vez mais frequentes com a polícia.
A “Tomada de Cidades” para explosão de bancos e empresas de
guarda de valores já é uma triste realidade brasileira. Se continuar-
mos a dar respostas apenas reativas e desconexas a este fenômeno
criminal tão nosso, a tendência é que a tomada evolua para o “Do-
mínio de Cidades”, quando então os bandidos deverão atacar alvos
múltiplos. Além das explosões para roubos simultâneos, aproveita-
riam o controle da situação para liberar presos, executar desafetos,
enfim, subjugar toda a população de um município. Sombria, e a
cada dia mais possível, a tese representa oportunidade de discussão
sobre qual país queremos em um futuro próximo.
Evento trágico ocorrido no oeste da Bahia em janeiro de 2017
direciona nossa atenção a ladrão conhecido, mas fora do foco da PF
há alguns anos. Agora é um renomado líder de quadrilha especia-
lizada em assaltos a carros-fortes, bancos e mineradoras. Além de
118 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL
ples balde de plástico nos coloca de volta ao jogo. Não existe crime
perfeito.
Prova de bandeja
Filial de imponente mineradora multinacional situada em Crixás,
no Estado de Goiás, é o novo alvo na madrugada (sempre ela) de 8 de
março de 2017. Cinco meses antes, outra mineradora fora assaltada
pelo mesmo grupo no pequeno vilarejo de Itapicuru, município de
Jacobina, norte da Bahia. Na ocasião, os bandidos executaram um
vigilante, pai de família devastada, com desnecessários tiros nas cos-
tas, segundo testemunhas, e levaram o equivalente a R$ 8,5 milhões
em barras de ouro, além de armas, munições e coletes dos demais
seguranças.
Confiantes como nunca, rendem agora dois policiais militares
goianos em um posto de combustível próximo à nova mineradora e
também vigilantes da empresa, ação temerária dado o histórico sinis-
tro de assassinos muito bem armados. Isolam funcionários e iniciam
os preparativos para a explosão, mas são avisados de que reforços
estão a caminho. Desta vez, inesperadamente, resolvem abandonar o
local sem o produto do roubo, nem vítimas fatais. Porém, o confron-
to é inevitável, já que ignoram de forma solene vozes de prisão das
autoridades. Corrijo: ignoram não; revidam.
– Anda logo, joga os pregos! – grita o condutor do último carro ao
comparsa no banco traseiro. São responsáveis diretos por arriscadas
medidas de proteção do grupo.
Projetis rasgam a escuridão de lado a lado enquanto os bandidos
fogem em carreira desenfreada. Nervoso, o encarregado da tarefa
pega o pesado balde com miguelitos e vira-o vagarosamente dando
repetidas sacudidelas para despejar o conteúdo espinhoso de forma
homogênea e cobrir o máximo possível da via. Manobra evasiva do
piloto e disparo da polícia que passa rente ao seu rosto fazem com
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 127
Faro perdigueiro
Apesar do empenho da força-tarefa em localizar os criminosos,
cabe a uma abordagem de rotina, feita por policiais atentos, o crédito
por achar importante fio solto. Caminhonete portentosa trafega va-
garosamente por região erma de Jussara, município de Goiás, em 3
de maio. Suspeição imediata faz com que os PMs parem o veículo, do
qual desce sujeito com bom semblante, faces cheias e coradas, bem
nutrido. Seu sotaque nordestino, no entanto, reacende luz de alerta.
Sem bairrismos ou preconceitos; apenas o perfil não se encaixa ao
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 129
Círculo vicioso
Fim da história? Ainda não. Mas urge estabelecermos um marco
limitador para este livro, obra física carente de um corte, abrupto
que seja. Logo adiante encararemos a fronteira final de viagens ex-
ploratórias de outro mundo, com consequências difíceis de assimilar.
Porém, as personagens carregam em seu DNA, desde sempre, mar-
cas bem humanas. Não se engane. Quanto mais puxamos os fios do
novelo, mais os nós se sobrepõem, se apertam. Truculência pura não
resolve; contudo, por vezes, torna-se o único caminho menos inse-
guro e, portanto, irrefreável. Rupturas necessárias...
Os comparsas próximos ao ex-Senhor das Armas estão por perto.
Ele não roubaria nada sozinho, estava a léguas de qualquer supervi-
lão ficcional quase indestrutível dos quadrinhos. Precisamos recupe-
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 131
dias antes, encontrados dentro dos veículos usados por eles, elimi-
nam qualquer resquício de dúvida sobre a participação do trio, ape-
sar das tentativas de negação.
– Onde está o resto do dinheiro? Onde estão as armas? – pergun-
ta objetivamente o oficial durante a entrevista.
– Não sabemos de nada não, senhor. Só ajudamos na logística.
Esse foi nosso pagamento. Não conhecemos ninguém – defende-se
um dos meliantes, com cara de coitadinho.
– Senhor, veja as coordenadas que encontramos no GPS desse
veículo – mostra o soldado, feliz por contribuir na resolução de caso
enroscado. O policial mais experiente coloca as coordenadas no
Google Maps de seu celular e o trajeto se desenha até a divisa com o
Distrito Federal.
Chácara em Formosa – outra cidade goiana do entorno, diame-
tralmente oposta a Alexânia – esconde R$ 426 mil enterrados em
chão de alqueires improdutivos. Árvores não dão dinheiro nessa ter-
ra, mas seu solo é bem rico. Em se plantando, pode-se dar de tudo
ali. Na mesma localidade indicada pelo informante, os suspeitos (já
pensando em redução de pena) mostram lugar exato onde brotam
sete fuzis, pistolas, carregadores e munições variadas.
Testes balísticos posteriores confirmariam o que já sabíamos:
chegamos à quadrilha central do Senhor das Armas. Fizeram, na or-
dem, os municípios baianos de Jacobina, Bom Jesus da Lapa, Irecê; e
os mineiros Cabeceira Grande e Unaí. Isso o que pudemos compro-
var do ano de 2016 a maio de 2017. Mas e a ponto 50 usada em Unaí?
Onde está?
Na manhã do outro dia, persistentes que são, equipes da Com-
panhia de Patrulhamento Tático, juntamente com policiais de Unaí/
MG, localizam ainda apetrechos de vestuário, coletes, mais dezenas
de carregadores e milhares de munições, além das temidas emulsões
e espoletas, nomes técnicos de explosivos capazes de garantir um le-
138 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL
vante civil. Porém, sabemos que a guerra particular deles é por di-
nheiro.
Bem recompensado após entregar parte do grupo criminoso, o
informante quadrilheiro chama atenção para outro fato muito im-
portante:
– Sim, ainda têm alguns por aí, mas vocês devem ficar de olhos
abertos é em um dos irmãos mais novos do Senhor das Armas, tam-
bém truká. É ele que tá reativando e liderando a quadrilha.
Uma chácara nos leva a outra, também em Formosa. Manhã de
domingo do dia 28 de maio desvenda a famigerada ponto 50. Não há
adversários quando ela está no jogo. E essa trapaça só acontece em
favor do lado de lá, já que o de cá se vira como pode na “guerra assimé-
trica” de todos os dias. Sugestão: faça um exercício de empatia e tente
entender o quanto vale apreensão de uma única arma deste naipe, em
termos de segurança, para policiais na rua, apesar de todo o derrame
sabido nas fronteiras.
Mais um desdobramento da missão persecutória dos remanes-
centes quadrilheiros ligados ao Senhor das Armas (morto e enterra-
do), a Operação Nostradamus conta com um trabalho investigativo
preciso para localizar o enigmático ladrão Vidente, baiano franzino
de ficha corrida invejável para asseclas de sua laia. A força-tarefa da
vez é composta por PM de Goiás, da Bahia e PF.
Também residente no Distrito Federal, na icônica Taguatinga
(cidade-satélite imortalizada por Renato Russo), é encontrado por
um pequeno vacilo. Sempre cultivou a fama de prever aproximações
indesejadas e escapar pela tangente. Tanto que é um dos últimos do
bando. Mas uma hora o tropeço acontece.
Estamos em 7 de junho de 2017 e ele se esconde, com documento
falso, em hotelzinho fuleiro de Águas Lindas de Goiás, no entorno da
capital do país. Seu erro é levar a namorada, completamente qualifi-
cada por nós, da cabeça aos pés. Quando em apuros, você não pode
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Gafanhotos vorazes
Porém, ainda falta uma última ponta solta. Última se considerar-
mos este caso específico de uma das maiores e mais violentas qua-
drilhas de roubos a bancos, carros-fortes e bases de guarda e trans-
porte de valores em atividade, com grande parte de seus integrantes
oriunda de Cabrobó e localidades vizinhas, no sertão pernambuca-
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7. Para manter a orientação de não revelar nomes reais que inspiraram as histórias do
livro, os autores colocaram pseudônimos para se referirem aos irmãos trukás na música.
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