Você está na página 1de 151

RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 1

BRASÍLIA, 2019
2 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

Certidão de Registro ou Averbação


Escritório de Direitos Autorais / Fundação Biblioteca Nacional
(Ministério da Cultura)
Número do registro: 761.633 / Livro: 1.477 / Folha: 148 / Ano: 2018

GUERRA FEDERAL:
RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

Romance policial
Autores: Renato Júnior e Laurejan Ferraço / 2019 (2ª edição)

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO


Marcelo Pires (marcelopiresdesigner.com.br)

IMAGEM DA CAPA
Kjpargeter - Freepik.com

Copyright © 2018 Renato Júnior e Laurejan Ferraço


Todos os direitos reservados.
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 3

“A sociedade que separa seus estudiosos dos


seus guerreiros terá seus pensamentos feitos
por covardes e suas lutas feitas por tolos.”
(Tucídides)
4 SUMÁRIO
GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

Prefácio...........................................................................................................................................6
Nota dos autores à 2ª edição..................................................................................... 10

NOVO CANGAÇO, VELHOS CRIMES...................................... 13


Prelúdio do fim........................................................................................................................14
Cidadela exposta..................................................................................................................15
Inteligência intuitiva............................................................................................................21
Pau quebra............................................................................................................................... 23
Mocó.............................................................................................................................................. 24
Liberdade confortável......................................................................................................28

TEATRO DE OPERAÇÕES FEDERAIS..................................... 33


Coisa de cinema................................................................................................................... 34
Droga de vilania.................................................................................................................... 44
Reprise.........................................................................................................................................50
Mocinho providencial....................................................................................................... 53
Roteiros futuros..................................................................................................................... 57

EXPLOSÃO DO MEDO. . ........................................................... 61


Segurança pelos ares.......................................................................................................62
Esquilo voador.......................................................................................................................68
Estranho no ninho................................................................................................................71
Penetração................................................................................................................................ 75
Mestre dos disfarces.........................................................................................................79
Na surdina.................................................................................................................................83
Crime tipo exportação.....................................................................................................95
São Paulo sitiado................................................................................................................104
Em família................................................................................................................................. 111
Volta ao berço.......................................................................................................................117
Prova de bandeja...............................................................................................................126
Faro perdigueiro..................................................................................................................128
Círculo vicioso......................................................................................................................130
Gafanhotos vorazes..........................................................................................................139
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 5
6 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL
PREFÁCIO

Lidar com segurança pública no Brasil representa desafio dos


mais imprevisíveis, recorrentes e perigosos. Não temos guerra decla-
rada contra inimigo formal, com objetivos específicos e conhecidos.
No entanto, grande parte dos habitantes sente, na pele e na alma,
os terríveis efeitos de intensos eventos criminosos traumáticos. E as
estatísticas, muitas vezes, até superam os mais sangrentos conflitos
oficiais da atualidade mundo afora. Quando interpretados sem fil-
tros manipuladores, os números não mentem. É possível afirmar que
vivemos em uma guerra assimétrica em meio a qual sucumbem dia-
riamente vítimas, agentes do estado e população civil.
Confesso ter sido surpreendido e arrebatado pelo vigor narrativo
e pela riqueza de detalhes investigativos de bastidor encontrados em
Guerra Federal – retratos do combate a crimes violentos no Brasil. Li o
livro de supetão, em um só fôlego, no susto e na alegria de deparar-me
com material ousado, repleto de ações e reflexões sobre tema tão rele-
vante e, ao mesmo tempo, tão negligenciado por governos de qualquer
esfera de poder ou cor partidária. É o retrato de uma polícia que pouco
aparece na mídia - a que combate crimes violentos e correlatos.
A questão do novo cangaço (e sua temerária evolução ainda em
curso, segundo os autores) é emblemática por mostrar as entranhas
reprodutivas de um movimento dado como morto e enterrado após
seguidas decapitações de cangaceiros, sendo Lampião o maior troféu
de todos, é claro. Contudo, o que acontece poucas décadas depois
no mesmo sertão nordestino? O ressurgimento do cangaço sob nova
configuração – mais sóbria, articulada, moderna, porém não menos
letal: roupas com proteção em couro e alforjes costurados por pren-
dadas mulheres rendeiras dão lugar a coletes antibalísticos e mochi-
las pretas; vistosos chapéus de abas viradas, cravejados de moedas e
símbolos pictóricos abrem passagem a balaclavas ou toucas ninjas
igualmente negras para dificultar identificação; tradicionais rifles
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 7

papo amarelo, mosquetões e punhais de lâminas longas perdem a vez


para potentes artefatos explosivos e armamento “pesado” de última
geração e uso restrito.
Se, no passado, Lampião tombou ante a devastadora metralhado-
ra portátil empunhada pelos “macacos”, hoje o tráfico internacional
de armas e o poderio econômico de inúmeras organizações crimi-
nosas transnacionais invertem o fiel da balança. Agora, quem está
em desvantagem são as “volantes” de policiais destemidos, mas opri-
midos por baixos salários, formação deficiente, equipamentos suca-
teados e pouco ou nenhum direcionamento de esforços para alvos
prioritários. Neste vácuo deixado pelo poder público, as quadrilhas
de assaltos a bancos, carros-fortes e bases de valores se alastram em
ritmo exponencial.
Mesmo assim, sempre há esperança. Principalmente quando ve-
mos, nesta obra literária, iniciativas de integração de forças policiais,
exaustivos esforços investigativos orientados por técnicas de inteli-
gência, ponderações sobre a inadiável redução da população carce-
rária, entre outras medidas. Toda essa movimentação do bem propõe
uma alternativa salutar ao exaurido modelo de segurança pública
calcado na força bruta. O policial possui, sim, todas as credenciais
necessárias para assumir o protagonismo da promoção dos direitos
humanos, sem abrir mão da prerrogativa do uso da força repressiva
em momentos de crise. Afinal, são os agentes da lei que garantem os
direitos individuais e coletivos mais básicos de milhões de brasilei-
ros, como o de ir e vir e o da manutenção da ordem pública. Greves
recentes e corriqueiras de algumas categorias de policiais pelo país
nos fazem pensar no caos que seria uma sociedade sem polícia. En-
tretanto, antes de tudo, o policial também é um cidadão. E precisa
reconquistar sua autoestima e resgatar a importância de seu papel
social em uma nação carente de exemplos positivos.
8 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

Guerra Federal faz parte desta virada de mentalidade. E, ouso di-


zer, já integra um seleto grupo de novos títulos da literatura policial,
na qual histórias ficcionais são muito bem estruturadas sobre alicer-
ces de uma realidade que vai muito além das apurações jornalísticas
generalistas e dos protocolares boletins de ocorrência das delegacias.
Esta ótica diferenciada, só possível de ser apresentada por quem está
no “olho do furacão”, jogará você (leitor e leitora) na espiral eletri-
zante dos mais recentes enfrentamentos a crimes violentos no país.
Prenda a respiração. A aventura começa agora!

Romildson Farias Uchôa


Especialista em Ciências Penais
Brasília, setembro de 2018
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 9
10 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL
NOTA DOS AUTORES À 2ª EDIÇÃO

O que nos motiva a publicar a segunda edição de um livro inde-


pendente? Reconhecimento de entrar no mercado editorial formal
– com direito a impressão, distribuição e divulgação bancadas por
editora de grande porte – passa distante do objetivo, já que as por-
tas costumam se fechar em definitivo para obras que não tragam o
frescor do ineditismo. E, convenhamos, o cenário só tende a piorar
quando as histórias são narradas por ilustres desconhecidos. Sem
mágoas, apenas uma constatação.
Decididos a não mais esperar sentados por respostas negativas,
evasivas e padronizadas de editoras avessas ao risco em país flagran-
temente pobre no hábito da leitura, nós (Renato Júnior e Laurejan
Ferraço) partimos para o ataque e encontramos na autopublicação
a liberdade criativa para sermos quem quisermos e seguirmos em
frente. Sinais de novos tempos.
Lançada em setembro de 2018 somente como versão e-book para
Kindle, disponível na Amazon, a primeira edição de Guerra Federal –
retratos do combate a crimes violentos no Brasil teve recepção no mí-
nimo curiosa, positivamente falando. As vendas em si são pífias ain-
da. Porém, até o momento, são quase 3 mil acessos de assinantes do
plano Unlimited. Significa que está rodando.
É esta grata receptividade que nos impulsiona, agora, a oferecer
também a versão física do livro, novo desafio. Folhear página a pági-
na ao bel-prazer, sentir o cheiro da tinta no papel, carregá-lo à mão
como troféu ou amuleto ou confidente... várias ainda são as razões
para curtirmos um livro impresso.
Por isso mesmo, aproveitando a ocasião, resolvemos turbiná-lo
com atualizações necessárias a um tema tão dinâmico e, ainda, am-
pliá-lo com passagens adicionais que se encaixam como uma luva
em seu fechamento. Sem spoiler, só podemos dizer que ficou um
pouco menos incompleto diante da infinitude de eventos criminosos
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 11

violentos que assolam nossas existências desde sempre, mas manteve


o foco no novo cangaço e seus desdobramentos.
O crime igualmente possui suas escolas de formação. E esse sis-
tema institucionalizado de ensino-aprendizagem germina e prolife-
ra ao largo da sociedade dita de bem, até que se prove o contrário.
Apartado em unidades de custódia praticamente autônomas, regidas
por leis próprias, tacitamente distorcidas, esse sistema carcerário ins-
tituído no Brasil será um dos temas do nosso segundo livro, já em
avançadas discussões. Isso tudo junto com modelos futurísticos de
toda a desgraça que está por vir, como a perigosa sedimentação do
domínio de cidades em nosso território, modelo de exportação para
o resto de um mundo mais caótico do que nunca daqui a, digamos,
trinta anos.
Pronto, falamos.

Renato Júnior é policial com experiência e atuação contundente


no terrível cenário de crimes violentos contra o patrimônio. É um so-
brevivente.

Laurejan Ferraço é comunicador com atuação em publicidade e


jornalismo. Meteu-se a traduzir toda a carga dramática de histórias
inquietantes. Já foi um curioso. Agora, encontra-se numa verdadeira
especialização em Segurança Pública.

Brasília, junho de 2019


12 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 13

NOVO CANGAÇO,
VELHOS CRIMES
14 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

Prelúdio do fim
Sexta-feira 13 para o bandido mais procurado do Norte-Nordeste
brasileiro. Não sou lá muito supersticioso, mas reconheço oportuni-
dade de data azarada e estranhamente chuvosa para o momento: 13
de maio de 2016. O chefe de clã sanguinário do novo cangaço está
encurralado na zona rural do município de Morro Cabeça no Tem-
po, sul piauiense, no meio do nada, entre pó encrustado, lama tímida
e rochas esquecidas pela eternidade.
– Acabou, cabra! Tá cercado. Sai com as mãos na cabeça e deixa as
armas aí! – ordena um dos policiais, integrante de força-tarefa com-
posta por agentes da lei de três Estados.
Caçado como animal que é, nem imagina de onde surgiram tan-
tos macacos rajados, muito menos a chuva. Seu delírio provavelmente
transporta-o à época de Virgulino, inspirador-mor do levante atual de
sertanejos ainda em busca de seu lugar em país latifundiário, desigual,
corrupto até a alma futura de gerações a perder de vista. Ferido, debi-
litado, sabe que a caatinga cobra a conta pela longa estada em suas ins-
talações infernais de solo pobre e pedregoso, clima semiárido que não
o deixa raciocinar, arbustos secos e retorcidos como a pele queimada
de seus irmãos de armas.
Está há nove sóis no inferno, desde as primeiras horas do dia 5,
quando empreenderia mais um assalto bem planejado a uma agência
bancária do interior, desta vez a banco estatal em Curimatá, a 775
km de Teresina. Mas algo deu muito errado. A polícia já esperava seu
bando. Fugiram sem levar muita coisa, escudados por reféns atôni-
tos, frágeis, aterrorizados. No confronto inicial, ainda no mesmo dia,
tomba o primeiro companheiro. Resolve ativar o plano B: dividir a
quadrilha, embrenhar-se na caatinga, evitar estradas e trilhas e dei-
xar a poeira baixar, como sempre fez.
Apesar de bem treinados e equipados nos últimos anos, os “ra-
jados” não conversam entre si e limitam-se às fronteiras de seus
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 15

Estados falidos. Por que fizeram diferente agora? – deve se indagar.


Justo agora que acumulara poder, experiência, respeito e armamento
suficiente para detonar seus rivais (bandidos e policiais) e finalmen-
te vingar a morte de seu tio, uma lenda da região do Vale do São
Francisco, destemido líder de sua família nos anos 90 e início dos
anos 2000, quando foi perseguido e morto em confronto na cidade
de Pilão Arcado, na Bahia, após toda uma vida de crimes.
Quem sabe não tenha pensado em sua Abaré natal, no noroeste
baiano, banhada pelo Velho Chico, refúgio perfeito com inúmeras e
belas ilhas verdinhas de maconha? A caatinga para essas bandas do
Piauí não é tão convidativa assim. Porém, essa é sua realidade mo-
mentânea: insolação, fome e sede, lá onde o bafo quente do Tinhoso
faz a curva, onde Judas perdeu as botas. Lá nessa terra de ninguém
que ele insiste em explorar a cada fuga de risco calculado por quem
tem colhão de sorrir para a morte.
– Cai pra dentro, seus vermes! Não me entrego não, morro como
cabra homem, ahahah! pá, pá, pá, pá! pou, pou, pou! – gargalha em
descontrole evidente e atira a esmo, alternando-se entre pistola e fu-
zil. Já deixou o dinheiro para trás, mas suporta o peso salvador de ar-
mamento de grosso calibre e farta munição, esses sim companheiros
inseparáveis de um cangaceiro moderno que se preze.

Cidadela exposta
Natural de Paulista, na região metropolitana de Recife, posso
dizer que conheço bem o potencial bélico e a postura arrojada do
novo cangaço, movimento igualmente oriundo do sertão pernam-
bucano, a exemplo do grupo original de Lampião e companhia. Jo-
vem ainda – antes de entrar para a polícia – ouvia histórias de rixas
inconciliáveis entre famílias tradicionais de Floresta, Belém do São
Francisco, Cabrobó. O típico homem sertanejo entende qualquer
desavença como questão de honra, de vida e morte. Isso é cultu-
16 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

ral. Se, desde o início do século 20, contentavam-se com brigas nas
urnas, revezando-se no poder político, em finais dos anos 1980
descambaram para disputas insanas de plantio e comércio de erva,
no hoje conhecidíssimo Polígono da Maconha, margeado em parte
por um conjunto monumental de terras devolutas banhadas pelo
Rio São Francisco.
Em um primeiro momento, o tráfico servia basicamente para fi-
nanciar a compra de armas como ataque e defesa na matança entre as
famílias. Não demoraria muito, porém, para que os assaltos a bancos,
cargas, carros-fortes, ônibus interestaduais e até veículos particulares
entrassem no rol criminoso de pais, tios, primos, irmãos, cunhados
e demais agregados rivais. Passaram a gostar do dinheiro fácil, da
adrenalina pulsando nas veias. A oferta era grande, mas a concorrên-
cia também. A celeuma estava feita.
O atual líder da principal família do novo cangaço, acuado em
uma sexta-feira 13 de 2016, estava fora dos radares de qualquer força
policial até 2014. Somente neste ano a Área de Inteligência da Polí-
cia Federal recebe sinal de um informante em Pernambuco de que o
“menino” começava a se juntar aos familiares das antigas, ligados ao
tio dele, morto em 2003. Outros avisos do contato ecoavam: “Ele é
diferente”. “Já mostra liderança, mesmo entre os mais velhos, cascas
grossas”. Iniciamos, então, um acompanhamento mais de perto. E
presenciamos sua rápida transformação em veterano aos olhos orgu-
lhosos e receosos dos companheiros da velha guarda.
Usa armas longas e muita truculência em assaltos pequenos ainda,
como em Curaçá e Patamuté, no norte baiano. O roteiro das ações ci-
nematográficas de sua quadrilha é sempre o mesmo: tomam a cidade
à base de muita bala, cercam a delegacia (se houver) e o posto da PM
com dois ou três policiais, vão ao banco, à lotérica ou aos Correios
e explodem o cofre com dinamite, fazem reféns entre funcionários,
clientes ou transeuntes e fogem rumo à caatinga para ultrapassar os
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 17

limites do Estado assaltado e dificultar a captura, deixando um rastro


de destruição e pânico.
Assim seria também em Uauá, na Bahia. Na visão impulsiva e
autoconfiante dele, um menino. Perigoso, mas menino. Trinta de
outubro de 2014, dez e meia da manhã. Está ficando cada vez mais
fácil. O batedor sinaliza que a calmaria reina. A única agência es-
tatal do local abriu há pouco e alguns aposentados já movimen-
tam ninharias individuais de uma vida inteira de trabalho árduo. A
soma de exploração aviltante, no entanto, ganha vulto interessante
em relação ao baixo risco de confronto. Cenário ideal para mais um
crime perfeito.
Dez homens com funções bem definidas invadem cidadela em
duas picapes desferindo uma saraivada ensurdecedora e ininterrupta
de tiros para o alto, para o banco, para a delegacia, para a PM. Mu-
nição é o que não falta, muito menos coragem. O fator surpresa e o
estrago psicológico de ação contundente infligidos à população e aos
escassos policiais locais, completamente submissos, são a chave para
a tomada integral de Uauá. Dois seguranças são baleados sem gravi-
dade. Entendem que nada podem fazer contra fuzis, metralhadoras,
espingardas e pistolas automáticas. O especialista em explosivos ca-
pricha dessa vez. Praticamente tudo vem abaixo e o cofre é esvaziado.
Vinte minutos de terrorismo cangaceiro, hora de ir embora. Por
garantia, dois funcionários reféns acompanham o grupo. Um deles,
coitado, amarrado ao para-brisa do veículo, do lado de fora, de frente
para a ação. Como forma de desfazer qualquer mal entendido com
os moradores, e preservar certa aura altruísta do novo cangaço, notas
de cinco reais são jogadas ao vento. É uma festa! Tudo perdoado.
Ocorre que o bandido prodígio já estava sendo acompanhado por
policiais abnegados que se ausentam por longos períodos de seus
lares para entender a tendência da evolução do crime organizado.
Não vou entregar aqui o ouro a bandido e explicar tintim por tintim
18 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

nossas várias técnicas de inteligência. Seria burrice. Só posso dizer


que os resultados não são tão exatos como muitos imaginam, nem
imediatos como todos desejam. Mesmo assim, identificamos que ele
estava em Uauá. Tardiamente para surpreendê-lo no roubo, mas a
tempo de organizar um cerco efetivo.
De posse de informações preocupantes sobre a periculosida-
de do bando, tentamos viabilizar ação conjunta com os rajados da
Companhia Independente de Policiamento Especializado (CIPE -
Caatinga)1, grupo de elite da PM baiana, e o Batalhão Especializado
de Policiamento do Interior (BEPI)2, de Pernambuco. Rajado é um
apelido dado pelos bandidos aos policiais destas forças especiais, que
usam uniforme camuflado de cor ocre e impressões digitais “caatin-
guentas”. Se os safados se deram ao trabalho de inventar um apelido,
significa que o fardamento – livremente inspirado no modelo usado
por tropas norte-americanas no Iraque, na operação Tempestade no
Deserto – funciona enquanto marca institucional indelével de que o
bicho pega se você cruzar com um rajado pelo sertão.
Pelo fato de os assaltantes estarem em território baiano e movi-
da por sentimento de autossuficiência, contudo, a CIPE dispensa o
apoio do coirmão BEPI. Dariam conta, avisaram. Vaidades. De fato,
eles são muito bons, conhecem profundamente a região, têm experi-
ência em progressão em terreno adverso e inóspito, mas não possuí-
am efetivo necessário para aquela situação extrema. Bastava ao BEPI
atravessar o Velho Chico para pisar em solo baiano. Não foi dessa vez
que a força-tarefa ganhou liga.
Na madrugada do dia seguinte, 31, os assaltantes são cercados
na mata de Patamuté, município de Curaçá. Dois deles morrem no

1. Antiga Companhia de Polícia de Ações em Caatinga (CPAC).


2. Antiga Companhia Independente de Operações e Sobrevivência em Áreas de
Caatinga (CIOSAC).
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 19

confronto e outros cinco são presos. Seria um bom saldo se três não
tivessem escapado, entre eles um certo menino.
Para não morrer, deixa parte do dinheiro com outra equipe e se
embrenha na caatinga. Pode resistir o tempo que for preciso. É jo-
vem, forte, esperto. Com o conhecimento secular de sua família ser-
taneja, aproveita ao máximo os recursos naturais imersos na caatin-
ga. Não é evidente, mas a vida pulsa nesse bioma bem brasileiro. E a
morte também, caso não saiba tirar água de umbuzeiro, mandacaru,
xique-xique.
Privilegia frutos e raízes na alimentação. Acender fogueira signi-
fica delatar-se aos seus perseguidores. Poderia deleitar-se com um
teiú bem assado, lagarto de carne similar à galinha caipira, ou um
tatu-peba cozido da forma certa para eliminar sua inhaca caracterís-
tica. O cardápio é extenso: tamanduá, iguaria finíssima, suprassumo
de fonte proteica; jacu, primo distante e selvagem do faisão; lambu,
espécie de codorna de fácil captura; juriti, tipo um pombo ainda en-
contrado em abundância na caatinga; caititu, porco-do-mato de pe-
queno porte.
Porém, todos necessitam do enigmático e insubstituível fogo, in-
sumo natural controlado a tantas eras e o pior delator possível para
um fugitivo com rajados insistentes e igualmente conhecedores do
terreno no seu encalço. É melhor privar-se de carne por alguns dias.
Não levarão isso tão adiante, imagina. Mesmo a coleta de frutos e
raízes requer cuidados, tanto na forma da extração como na escolha
das opções. Eles adoram rastros de galhos quebrados e tubérculos
arrancados de solo rachado.
O mais crucial, entretanto, para um sertanejo desafiador da caa-
tinga (depois da água) é saber lidar com cada planta, arbusto, árvore.
As aparências desta flora guerreira enganam qualquer incauto que
pretenda sobreviver às suas astúcias evolutivas.
Alimenta-se sem medo de coroa de frade, quixaba, umbu. Jamais
20 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

de maracujá-de-estalo, dotado de toxina superior ao veneno da ja-


raraca. Também passa longe do cansanção. Tem muito respeito por
esta planta. Na verdade reconhece certo trauma infantil por presen-
ciar seu falecido tio usar efeito urticante de folhas medicinais contra
desafetos. O homem mais próximo do conceito abstrato de família
que já conheceu esfregava a folha peluda do cansanção nas virilhas e
partes baixas dos pobres inimigos, que urravam e se contorciam em
queimação, e bolhas apareciam quase instantaneamente. Erva dani-
nha do diabo!
Agora, se quer realmente se safar, precisa manter-se alerta, com
a cabeça no lugar. A jurema preta é tentadora, pensa enquanto passa
ao lado do arbusto de aparência frágil e pequenos pontinhos escuros
nas extremidades das folhas. Já participou de uma pajelança com a
bebida feita da casca da raiz da jurema, planta sagrada para a família
a qual pertence no sertão pernambucano. A ocasião marcou seu rito
de passagem à fase adulta. A experiência psicodélica de droga aluci-
nógena semelhante à mescalina, presente no LSD, foi longa, intensa,
indescritível. Melhor seguir em frente.
Até que, em suas andanças, olhando para o céu azul inclemente,
percebe fios de uma rede de transmissão de energia da Companhia
Hidrelétrica do São Francisco (CHESF). Serão o seu guia até a civili-
zação mais próxima. Essa foi por pouco.
O trauma em Uauá representa batismo de fogo para o menino
atrevido. Torna-se arredio, paranoico, estuda com mais afinco os al-
vos dos roubos, coopta bandidos locais para prestarem apoio logísti-
co e traçarem rotas seguras de fuga, recrudesce a violência das ações.
Enfim, cresce, vira homem, bicho solto.
Possui um plano maior – daqueles que só o ódio e a vingança
são capazes de conceber –, mas ainda precisa de dinheiro para com-
prar mais armas. No período de 2015 a início de 2016, ganha cidades
como Buíque, Betânia, Dormentes, além de carros-fortes no sertão
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 21

pernambucano. Finalmente desperta a atenção que merece das auto-


ridades nordestinas. Um último assalto e ele poderá pôr em prática
seus objetivos nefastos de retomar o poder da família, aniquilar os
adversários históricos, incrementar o plantio e a venda da maconha
e executar o máximo possível de policiais, principalmente os vermes
rajados baianos e pernambucanos, ditos responsáveis pela morte de
seu tio. Próxima parada: Curimatá.

Inteligência intuitiva
Uma da madrugada do dia 1º de maio de 2016. Durmo o sono dos
justos. Faz muito bem de vez em quando. Toca o celular. Do outro
lado um companheiro agente da PF de Juazeiro, na Bahia. Um passa-
rinho contou-lhe que o novo homem do novo cangaço, agora deno-
minado Patrão, está há dois dias quieto, sumido. Coincidentemente,
um comparsa conhecido fora visto perambulando pelas bandas de
Curimatá e Avelino Lopes, ambas cidades do extremo sul do Piauí.
Como não acredito em coincidências, ligo imediatamente para
um colega major, caveira do Batalhão de Operações Especiais (BO-
PE-PI), um dos maiores conhecedores das movimentações de assal-
tantes a banco no Estado, e informo sobre provável situação Alpha-
-Bravo (Assalto a Banco). Na sequência, sem pestanejar, ele aciona o
secretário de Segurança e o comandante geral da PM do Piauí que,
de imediato, autorizam o deslocamento de duas equipes do BOPE e
uma equipe do Grupo de Repressão ao Crime Organizado da Polícia
Civil (GRECO), com o intuito de descer à localidade, realizar levan-
tamentos e prevenir possível assalto nas características violentas já
sabidas, que sempre expõe ao risco a população e policiais.
Ao mesmo tempo, o agente de Juazeiro solicita à Inteligência da PM
baiana (P2) que envie destacamento para a divisa entre Bahia e Piauí
na tentativa de identificar os veículos da quadrilha. Peço também apoio
aos comandos de inteligência da Bahia e de Pernambuco para liberarem
22 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

seus respectivos grupos especiais (CIPE e BEPI) a fim de comporem um


cerco na região.
Começava aí uma força-tarefa de respeito, unindo três Estados
e a Polícia Federal, porém com informações inconsistentes ainda.
Não sabíamos se atacariam, nem onde, muito menos quando. É
importante esclarecer que a urgência da situação nos faz trabalhar,
na maior parte das vezes, no escuro, no faro, no fio da navalha, nas
deduções que apenas a experiência acumulada tem capacidade de
intuir. Para tanto é primordial a existência de um time coeso de cabe-
ças pensantes, dotado de habilidades específicas e complementares.
Depois de Uauá, a força-tarefa agora amadurece. Com humilda-
de, todos entendem a gravidade do momento e aceitam nossas orien-
tações. Conhecemos o líder há dois anos, quando nasceu para a cri-
minalidade. Sabemos como ele se comporta, tanto no planejamento
dos roubos como no improviso do confronto aberto na caatinga.
Dias 2 e 3: equipes de prontidão em propriedade na zona rural
de Curimatá. Incursão de tantos policiais prima por discrição em
entradas esparsas e à paisana para não chamar a atenção de coiteiros
e olheiros desconfiados. Inteligência da PF confirma abastecimento
em dinheiro de todos os bancos, lotéricas e agências dos Correios em
Curimatá, Avelino Lopes e Morro Cabeça no Tempo, subindo para
três as cidades que podem ser tomadas na região.
No dia 4 apostamos quase todas as fichas em Curimatá. Movi-
mentos progressivos e incisivos de bandidos sem muito jogo de cin-
tura para blefes escancaram o alvo. E o ataque ocorrerá nas próximas
horas. A divisão de tarefas prevê que a CIPE-BA e o BEPI-PE fecha-
rão o perímetro externo, evitando saídas da cidade; o BOPE-PI fará
o primeiro confronto nas imediações da agência bancária; a Força
Tática-PI garantirá a retaguarda; e a P2-BA será infiltrada num pré-
dio em construção em frente ao banco apenas com a função de dar o
sinal verde para as demais equipes.
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 23

O mundo feliz do planejamento, contudo, nunca se confirma


frente à caótica realidade de acontecimentos imprevistos em cadeia.
A praça central da cidade é uma agitação só durante a noite, com
muitas pessoas circulando e se divertindo, imprevisto que atrasa
consideravelmente a execução do plano traçado. Apenas a P2 e a
Força Tática conseguem assumir seus postos sem alarde.
Para aumentar a tensão – como se não estivesse elevada –, dis-
persas em pontos estratégicos na cobertura do perímetro, as equipes
perdem contato com os seus comandos. Falhas na rede de celular
geram sombras entre os municípios e impedem a comunicação; não
dispomos de aparelhos telefônicos satelitais, problema sério para
missão tão complexa. A noite avança, e o pessoal de campo perma-
nece isolado em seus anseios, sem meios de saber o que está para
acontecer.

Pau quebra
Alguns minutos além da meia-noite de 5 de maio de 2016. Poli-
ciais da P2, em campana em frente ao banco de Curimatá, avistam
um Ford Ranger e um Logan se aproximando em alta velocidade da
agência. Desesperados, veem oito homens fortemente armados de-
sembarcarem. Não devem agir, pois estão em flagrante desvantagem
numérica e de armamento.
Não muito longe dali, nos arredores da cidade, policiais do BOPE
não tiveram tempo hábil de abrigar seu atirador de precisão em local
seguro para visualizar a quadrilha e iniciar o confronto de manei-
ra a garantir a segurança das equipes e da população. A primeira
explosão dos caixas eletrônicos é ouvida e sentida pelos moradores
festeiros. A terra treme. O grupo de contenção dos assaltantes inicia
disparos intimidadores para todos os lados.
Ainda sem contato com o comando, os bravos policiais da P2
identificam o Patrão na calçada. Oportunidade assim subverte qual-
24 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

quer ordem preestabelecida. Ignoram pudores e acertam o chefe, re-


cebendo de volta chumbo grosso dos comparsas, claro. A segunda
explosão não vence o cofre, onde o montante principal da grana é
guardado.
Ferido e temendo a chegada de mais policiais, Patrão decide ba-
ter em retirada e, como de costume, faz reféns entre curiosos dando
sopa por ali. Assumem o aterrorizante papel de escudos humanos.
Reagrupados, os caveiras piauienses armam barreira na saída de
Curimatá, mas abrem passagem para evitar a morte de inocentes.
Sabem que o jogo está só começando. Os bandidos dividem-se em
dois grupos: um vai em direção a Avelino Lopes; o outro ruma para
Morro Cabeça no Tempo.
Surpreendem-se com o policiamento de contenção da CIPE, que
confronta o Ranger e os obriga a retornar para Curimatá. Abando-
nam o veículo dois quilômetros antes da entrada da cidade e fogem a
pé pela mata, deixando para trás o primeiro bandido abatido, ao lado
de um fuzil Mosquefal, calibre 7.62mm. O grupo do Logan igual-
mente não vai longe e larga o carro com os pneus furados na estrada
Carroçal, que liga Curimatá a Morro Cabeça no Tempo. Os reféns
são resgatados em segurança.

Mocó
Contratempos justificáveis impossibilitam a prevenção ao roubo
e a prisão imediata dos ladrões. Por outro lado, surpreendidos, eles
só levam uns trocados do caixa eletrônico e, na pressa da fuga, não
conseguem reunir mantimentos necessários para a incursão pela ca-
atinga, já que não poderiam mais acessar seu ponto de apoio.
Ciente de que o planejamento inicial não aconteceu como o previsto,
pois praticamente todos os criminosos escaparam do primeiro cerco,
o major do BOPE deixa Teresina, de onde coordenava as estratégias à
distância, e desloca-se a Curimatá a fim de liderar a operação em campo.
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 25

Ao mesmo tempo, para não dar sorte ao azar, solicito reforço aé-
reo. E então começaria nova via-crúcis. Piauí só dispunha de uma
aeronave, que estava em manutenção no estaleiro. Colegas da Inte-
ligência da Polícia Rodoviária Federal (PRF) responderam que seu
helicóptero mais próximo encontrava-se em uso na Paraíba. Nosso
contato de confiança do Grupo Tático Aéreo do Maranhão cumpria
missão no Rio de Janeiro em preparativos da Força de Segurança Na-
cional para as Olimpíadas, prestes a acontecer. Ouço também alguns
questionamentos, inclusive da PF: “Pra que helicóptero?”. Talvez seja
preciso voltar um pouco mais no tempo para entendermos essa re-
sistência.
Pilão Arcado, norte da Bahia, 2003. O então líder do novo can-
gaço, tio de nosso ex-menino (motivo da perseguição atual), faz a
limpa em agência bancária da cidade. Novidade! Do lado de fora,
trinta agentes da PF e 12 policiais militares aguardam a quadrilha de
oito integrantes. Segue-se intenso tiroteio de mais de uma hora, uma
eternidade em termos de confronto armado. Dois bandidos morrem
ali mesmo, inclusive o tio, e seis se embrenham na caatinga, você
sabe. Infelizmente, contudo, alvejam com uma bala de fuzil AR-15
um agente da PF que combate os assaltantes como operador em um
helicóptero da corporação. Não resiste e morre, assim como um pe-
dreiro que faz pequenas reformas na agência. Várias pessoas ficam
feridas, entre policiais, funcionários e clientes do banco. Em comba-
tes a crimes violentos, não admitimos mortes de reféns ou policiais,
independentemente da origem humilde ou da força a que perten-
çam. Foi um abalo profundo.
Não há como prever o desenrolar de acontecimentos dessa mag-
nitude. Mas há sim como aprender com os erros. Nossa intenção
com o helicóptero na perseguição de Curimatá e redondezas é que
ele sirva para remessa de mantimentos e deslocamento das tropas,
pura logística. Como vão andar 100 km de uma cidade a outra para
26 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

buscar água, comida, medicamento ou socorrer um guerreiro de


caatinga ferido? É mais sensato deixar esse desafio suicida para os
marginais. Sequer cogitamos a possibilidade de usá-lo na ação em si
para enfrentamento direto. Eles portam armas longas e potentes, que
podem perfurar mesmo blindagens das boas.
Como diz um dos melhores profissionais de segurança pública do
país, major da PM de Goiás: “O apoio aerotático, quando empregado
em consonância com as equipes em terra, é extremamente vital para
operações dessa envergadura. O efeito psicológico nos assaltantes,
o ‘fogo de cobertura’ à distância, se for o caso, e, principalmente, a
observação e o cerco fazem a diferença”.
Após exaustivas negociações, conseguimos uma aeronave da
Bahia por dois dias. Logo a seguir, o secretário de Segurança Pública
do Piauí – político, deputado federal, mas homem de polícia, capitão
da PM – entrega pessoalmente o helicóptero que ficaria à disposição
do comando até o término do cerco. Eis um bom exemplo de lide-
rança política aliada à atuação prática de uma profissão, base que o
elegeu. Este preceito deveria ser regra para todos os políticos, prin-
cipalmente os que assumem cargos não eletivos de direção e chefia
em órgãos públicos.
Somamos cinquenta homens de campo de cinco forças especia-
lizadas (BOPE-PI, FT-PI, BEPI-PE, CIPE-BA e P2-BA) trabalhando
em conjunto com a Polícia Civil do Piauí e Federal. Uma beleza de se
ver. A prioridade é prender o líder, o chefe, o Patrão.
No comando da operação de campo, o major do BOPE detém
o respeito dos demais especializados; agora, membros dos Estados
envolvidos discutem questões de inteligência policial sem melindres
ou vaidades. Alguns oficiais em posição de comando não imaginam
o quão complexa é uma operação deste porte. Muitos não têm noção
das minúcias que conseguimos juntar nos dois últimos anos antes do
assalto a Curimatá. Em situações-limite assim, apenas os diretamen-
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 27

te envolvidos são capazes de evitar que populares e policiais sejam


feridos ou, pior, mortos na ação.
Depois do primeiro embate na saída da cidade, no dia 5, o major
estuda as rotas de fuga com o auxílio de mapas e de companheiros
conhecedores da região. Intensifica barreiras policiais em pontos es-
tratégicos e usa o helicóptero também para saturar o trecho entre
Curimatá e Avelino Lopes, com toda a precaução possível. O preen-
chimento dos espaços pela aeronave – longe da linha de tiro, mas vi-
sível em sua missão logística – acua os foragidos e assegura minutos
preciosos para que as tropas de solo cheguem às áreas já rastreadas
pelas equipes de busca. Paciência e virulência são lados da mesma
moeda.
Longos dias sem informações precisas representam martírio para
as equipes envolvidas no encalço dos fugitivos. Em 9 de maio o cerco
aperta e populares próximos à fazenda Serra Negra informam terem
visto três indivíduos perambulando pela mata. Rastreadores raja-
dos farejam deslocamentos suspeitos até o Povoado Desejado, onde
dão de cara com uma caminhonete, que fora roubada mais cedo, em
frente à igreja local. Tiroteio, fuga, perseguição. No Povoado Arroz,
vizinho, largam o Chevrolet e adentram na mata, deixando para trás
um fuzil 5.56mm, uma metralhadora e mais um refém, dono do veí-
culo. Seu relato não deixa dúvidas: o Patrão esteve ali.
Ao amanhecer do dia 10, policiais do BOPE e da Inteligência da
PM invadem a caatinga, enquanto equipe da PF lança um drone com
câmera acoplada para localizar os indivíduos e orientar os destaca-
mentos na mata. Logo o equipamento é derrubado, mas os disparos
dos criminosos denunciam sua localização. Novo cerco resulta na
morte de dois outros quadrilheiros familiares e na apreensão de dois
fuzis – um Ruger 5.56mm e um Mosquefal 7.62mm. O Patrão e ou-
tro comparsa novamente escapam.
Mais dois dias de ações coordenadas e integradas: BEPI no ras-
28 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

treio, CIPE no primeiro nível de contenção, FT no segundo perí-


metro, BOPE responsável pelos cercos e confrontos, helicóptero no
saturamento aéreo e logística e Inteligência da PM e PF na coleta de
informações e coordenação estratégica.
Rastros na saída do Povoado Arroz remetem ao Patrão e seu as-
secla no sentido de Morro Cabeça no Tempo. O chefe contorna a
cidade pela esquerda, enquanto o comparsa segue caminho à direita,
onde é abatido após intenso tiroteio. São teimosos, não se entregam,
caem atirando.
Patrão ganha mais um dia e refugia-se na zona rural saqueando
mantimentos em residências esparsas para esticar sua sobrevida. Até
que chega a sexta-feira 13.

Liberdade confortável
O revide dos policiais à insolência do Patrão é pesado. Estão todos
mortos de cansados, querendo voltar para o aconchego do lar. No
momento, o pobre diabo esconde-se em uma área de mata fechada,
de difícil acesso, provavelmente atrás de uma rocha ou de um tronco
mais robusto. Sua zombaria delirante deixa-os nervosos, putos nas
calças. Ele atira de volta. Repara que a munição está acabando.
– Ôxe, é só isso que conseguem fazer? Cheguem mais perto que
vou levar alguns de vocês comigo – recarrega o último pente de sua
Glock.
Pá! Pá! Pá! Pá!
Restam-lhe poucos minutos. Gostaria de viver mais, porém a pri-
são é castigo que não tolera. É homem livre, não baixa a cabeça para
ninguém. Lembra-se de outro famoso parente, contemporâneo de
seu tio. Pois esse parente é o verdadeiro fantasma da caatinga. Não
há fotos ou registro de nascimento que atestem sua existência entre
nós. Apenas um retrato falado esmaecido de barba rala, cabelo espe-
tado e olhar indefinível, aterrador, datado de 1998, além de relatos
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 29

folclóricos e espectrais de ações sanguinárias de outro mundo. Assim


como surgiu, sumiu sem deixar rastros. Deseja evaporar como ele,
reintegrando-se à sua caatinga amada, mas os vermes não o deixam
em paz.
Ouve estalo de galhos mortos e botinas pesadas no chão de pe-
dras esfareladas. Mal sustenta a pistola em posição de tiro. As pál-
pebras pesam uma tonelada. Tem absoluta certeza de que sua queda
não será em vão. Seus familiares irão vingá-lo no círculo vicioso la-
biríntico do qual ninguém mais consegue ou quer sair.
Impactos estrondosos perfuram e rasgam sua carne bruta e con-
ferem estranho conforto a alma ensandecida. É o grande final para
que os populares possam venerá-lo como um mito injustiçado e caí-
do, mas vivo no coração do povo sertanejo.
Menos, menino. Menos. Você foi um bandido precoce que deu
certo trabalho e cavou sua própria cova. Ponto.
***
Caveiras e rajados, abraçados em círculo, exaltam o feito e ofere-
cem a oração do Guerreiro de Caatinga ao oponente morto:
“Senhor!
Vós que fostes sábio ao criar os rios e os mares
Pareceis ter esquecido do nosso sertão
Vós que destes aos homens
A terra para dela tudo tirar
Não nos destes a mesma sorte
Porém hoje, oh Deus
Vejo quão generoso fostes
A nós GUERREIROS DE CAATINGA
Deste-nos a resistência ao Sol
A sapiência para da natureza tudo aproveitar
A força de vontade para continuar a lutar
E ante o inimigo jamais recuar
30 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

Obrigado, Senhor Deus,


Porque criastes um ambiente
Onde um ser humano comum não possa sobreviver
Pois só os perseverantes
E os fortes de espírito
Aqui conseguem lutar
Brasil, Sertão!”

Pelas circunstâncias de reiteradas e violentas resistências à prisão,


a morte do Patrão foi inevitável. Sua rápida ascensão era preocupan-
te, pois demonstrava potencial para se tornar um novo líder nacional
de facção criminosa. Nada a lamentar.
Dos 14 elementos incriminados no roubo de Curimatá, seis aca-
baram atrás das grades, cinco morreram e três foragidos do grupo
secundário nunca foram encontrados. Para a polícia local, o mais
provável é que tenham sucumbido às agruras da caatinga ao tenta-
rem alcançar a cidade de Bom Jesus; para os familiares, eles foram
executados e enterrados em cova rasa qualquer, tese que não faz sen-
tido por existir número razoável de mortos oficiais durante a perse-
guição. Onde morrem cinco, morrem oito.
O fato é que o novo cangaço está longe da extinção. As mazelas
criadoras de Lampião continuam firmes e fortes a parir descendentes
em série no Nordeste brasileiro. Juras de vingança a macacos ou ra-
jados ou policiais encontram eco agora em mensagens via aplicativo
de celular, potencializando raiva, reverberando barbárie. As chaci-
nas, o tráfico, a escuridão vão continuar a ceifar vidas e sonhos. De
todos nós, sem discriminações.
A pergunta que não quer calar é a seguinte: de onde vêm tantas
armas para alimentar essa sanha assassina, afinal?
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 31
32 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 33

TEATRO DE
OPERAÇÕES
FEDERAIS
34 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

Coisa de cinema
Dia 9 de março de 2013. Canavial qualquer entre tantos no Tri-
ângulo Mineiro. Bimotor faz um rasante sobre nossas cabeças, em
incursão preventiva de reconhecimento da pista de pouso rural e
clandestina. Em solo somos quatro agentes federais. Três traficantes
estão algemados, deitados, escondidos no meio da cana alta.
Bem entrosados, montamos a cena sem tempo para ensaios. Mi-
nutos antes, na cabeceira da pista, surpreendemos e dominamos os
traficantes que aguardavam a aeronave para descarregá-la. Sabemos
de cor nossos papeis: dois agentes assumem o lugar dos responsá-
veis pelo reabastecimento do avião. À paisana, acenam ao lado da
caminhonete dos detidos. A ideia é simular veracidade, pois o piloto
provavelmente conhece o veículo.
Camuflados entre as folhagens da cana, estamos eu, com a função
de proteger os parceiros em pista, e o quarto agente, que não tira os
olhos dos infratores já rendidos. Levo comigo meu amigo do peito,
um fuzil HK G36 C, além de 180 munições calibre 5.56. Nosso con-
tato na Bolívia garante que a aeronave vem carregada de drogas e
armamento de grosso calibre. A troca de tiros é possibilidade mais
do que razoável.
O avião ressurge ao longe, alinhado à pista, reduz a velocidade
para o pouso e toca o solo a uns seiscentos metros dos dois falsos
comparsas. Apesar da experiência dos agentes disfarçados, a tensão
salta aos olhos. Escondidos no canavial, imóveis, eu e o outro agente
acompanhamos aproximação barulhenta. O suspense aumenta en-
quanto o ronco violento dos motores serena aos poucos. O inusitado
de asas e hélices vigorosas, desproporcionais ao estreito e bucólico
caminho, encurta a distância de desfecho imprevisível. Inseto desavi-
sado flana na linha da mira do meu fuzil. O bimotor desliza pela pista
de terra. Motores e tempo desaceleram-se, como em uma câmera
lenta de ações capitais de filmes hollywoodianos.
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 35

Cem metros. Tons de cinza tomam conta do horizonte, atrás do


bimotor. O pó da terra, inexorável, precipita-se à passagem das hé-
lices. Meu devaneio se esvai a 50 metros e dá lugar a uma visão de
túnel e foco pleno num piloto ressabiado, aproximando-se devagar,
baixando a potência dos motores.
Trinta metros. As hélices ainda rodam, mas a desaceleração pro-
duz o efeito visual de slow motion. Ora parecem girar para um lado.
Ora para outro, vagarosamente. Trazem o vento, perceptível na vege-
tação e em nossos rostos.
Vinte metros. Os ruídos, cada vez mais próximos e assustadores,
indicam que os motores perdem rotação, como se fossem realmente
parar. Atônitos, os três traficantes deitados no canavial suam em bi-
cas, sob controle absoluto do agente federal.
Quinze metros. Já é possível visualizar o interior da cabine. Algo
não vai bem com a fisionomia do piloto: a testa ganha repentinas
linhas de expressão, os olhos cerram-se para adquirir melhor niti-
dez de imagens. Ele sabe que brigas entre quadrilhas costumam ser
sangrentas. Cargas preciosas geram cobiça. A presença de agentes
disfarçados, não infiltrados, é importante diferenciar, também pode
suscitar desconfiança no piloto, tão perto.
O combinado são dois traficantes em solo, para auxiliarem no
descarregamento da droga e das armas e no reabastecimento do
avião. Não os conhece. Devem usar uma caminhonete prata. Tudo
está ali: a caminhonete, que logo identificara ao sobrevoar a pista,
e dois homens a acenar de forma tranquila, amigável, convidativa.
Parece tudo certo, mas a tensão também o domina. Está vulnerável
em solo. Quer fazer a entrega e o reabastecimento rapidamente para
partir. Permanece apreensivo, contudo o cenário lá fora é igual ao
que encontrou em vários outros pousos clandestinos. “Tudo bem, é
só paranoia”. Finalmente o avião para junto aos dois homens.
É nossa hora de agir!
36 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

Único vestido como policial no ambiente, identificado com co-


lete da PF, saio do abrigo para que o piloto entenda que o jogo
acabou. Em seguida, os dois agentes disfarçados sacam as pistolas
que portavam dissimuladamente. Sinalizo com a mão esquerda o
fim da linha para o “trem que voa”, como dizem os mineiros ao
meu lado.
– Polícia Federal! Desliga e desce, agora! – grito com meu ami-
gão em punho, enquanto tomo posição de segurança, tendo o piloto
sempre à vista. Preciso estar pronto para reagir a qualquer ameaça
vinda da aeronave. Os dois agentes na pista tentam tomar cautela,
mas tudo pode mudar em instantes.
Os três traficantes rendidos percebem o que está acontecendo a
poucos metros. Sob a mira do agente federal, compreendem que até
o “Adamastor voador” foi domado. Acabou a esperança. Fim da tor-
menta.
“Tudo dominado” – pensamos nós, agentes federais, na fração de
segundo em que nos entreolhamos, diante do gigante parado.
Tudo dominado?
Num ímpeto tresloucado, o piloto revive o rugir estrondoso dos
motores. Dá-lhes potência, passa por nós, porém não há mais pista.
Efetua manobra brusca de 180º e realinha a aeronave para a direção
de onde viera. Quer decolar, fugir espetacularmente, não importa o
que ou quem esteja à sua frente. Afasto-me instintivamente e busco
proteção junto ao carro, já pensando em onde atirar. Com a manobra
inconsequente, a máquina assassina vai em direção a um dos agen-
tes, na lateral da pista.
Pneus!
Pou!
Pou!
Não adianta. Está perto demais do agente. Esquivo-me da asa es-
querda.
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 37

Motor!
Pou!
Acerto um, mas ainda tem o outro, e ambos continuam a funcio-
nar. Evito atirar nas asas a todo custo. É por onde o combustível pas-
sa até os motores. Possivelmente estão quase vazias, porém a grande
volatilidade gerada pelos gases que ainda há nos tanques representa
um perigo em caso de contato com uma faísca.
A PF explodiu uma aeronave no mês passado em operação simi-
lar. Um dos tiros de interceptação quebrou o bloco do motor e parou
o avião, mas provocou também a tal faísca, e o fogo se propagou às
asas. Piloto e copiloto paraguaios saíram a tempo de serem presos.
Melhor para eles. Na ocasião, dois outros traficantes em terra, teimo-
sos, trocaram tiros com os policiais. Um morreu na hora; o outro foi
socorrido ainda com vida, mas faleceu no hospital.
No momento em que processo essas informações e rememoro o
treinamento especializado, percebo que o avião está cada vez mais
perto do meu colega de trabalho. O policial experiente não tem como
reagir. Olha para mim resignado, estatelado, quase em despedida.
Os motores estão em potência máxima num zoado ensurdecedor,
lançando poeira e pressão absurda sobre meus ombros tensos, rígi-
dos. Encaro o piloto uma última vez. Encontro-me na diagonal em
relação a ele, quase na altura da cauda. Em poucos segundos nada
mais poderei fazer.
O arranque repentino dos robustos motores joga a cabeça do
piloto para trás. Não posso mais vê-lo pela janela. Ele segue pres-
sionando o manete de potência desesperadamente, sem se importar
que o avião passe por cima do acuado agente. Cinco metros separam
predador e vítima.
Responsável pela contenção na equipe policial, não tenho esco-
lha. A artimanha precipitada do piloto me obriga a uma última me-
dida extremada. Além do agente na borda da pista, à vista do piloto,
38 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

a hélice também põe em risco quatro vidas ocultas pelo canavial: os


três traficantes mantidos pelo outro policial.
Pou!
O tiro derradeiro atravessa a fuselagem e atinge o piloto na têm-
pora, entre o olho e a orelha esquerda. Ele cai de rosto no manche e o
avião roda em seu próprio eixo, acertando a caminhonete com uma
das asas. Ainda girando de forma veloz, a hélice atinge um galão va-
zio na beira da pista (usado no reabastecimento do primeiro avião)
e arremessa-o violentamente na direção do colega que, bastante pi-
lhado, esquiva-se do petardo como um pugilista no auge da forma.
O pesado recipiente de polímero duro quase acerta sua cabeça. Seria
um golpe fatal.
Chega de desastres. A ameaça cessa no ato.
– Eu não tinha o que fazer, parceiro. Muito obrigado – agradece
aliviado o agente imóvel, ainda na pista.
– Você tá bem?
– Pensei que iria morrer!
– Eu também! – respondo, igualmente travado pela adrenalina.
Reunimos a equipe policial e os detidos. Em segurança, vistoria-
mos o avião: quase meia tonelada de pasta base de cocaína e três
fuzis. Infelizmente, o piloto já estava sem vida.
***
Dois dias antes nossa equipe de Brasília estava em Uberaba
acompanhando investigações da Unidade de Inteligência da PF lo-
cal, responsável pela Operação Sarahah, um marco no combate a
quadrilhas internacionais de tráfico de drogas e armas no Triângulo
Mineiro. Região abastada e bem localizada, com pretensões eman-
cipatórias, o Triângulo faz divisa com Mato Grosso do Sul a oeste
(Estado fronteiriço a Paraguai e Bolívia); Goiás e Brasília ao norte;
a capital Belo Horizonte a leste; e a maior cidade do país, São Pau-
lo, ao sul – tudo orbitando em um raio aproximado de apenas 500
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 39

km. Logo virou ponto estratégico para os traficantes sul-americanos,


que invadem o espaço aéreo brasileiro e descarregam toneladas de
cocaína e armamento pesado em país ainda tido como entreposto,
pela fragilidade de suas fronteiras aliada à proximidade de vizinhos
produtores, mas também alçado a grande centro consumidor, seja de
drogas ou armas.
Nas primeiras horas do dia 9, a informação é de que dois aviões
descerão em pista ignorada com grande quantidade de pasta base
de cocaína e, possivelmente, de armas. E só. Cheios de dúvidas, par-
timos 13 agentes para Indianópolis em cinco viaturas descaracteri-
zadas. A divisão é necessária porque não sabemos ao certo onde os
pousos ocorrerão.
Às dez e meia, ainda formados para decidir qual a melhor estra-
tégia a ser tomada, avistamos o primeiro avião descendo a uns 3 km
canavial adentro. Estamos na BR 365, estrada que liga Uberlândia a
Patrocínio, nas imediações do ponto de entrada para a pista, segun-
do informações da Área de Inteligência obtidas de traficantes rivais
bolivianos. Dividimos os grupos e margeamos as proximidades mais
prováveis de aterrissagem na tentativa de identificar suspeitos para
posterior abordagem. Somos três agentes na equipe em que me in-
cluo. Todo o cuidado é pouco. Afinal, desconhecemos o poder de
fogo dos bandidos.
Uma caminhonete com três indivíduos abaixo de toda inocência
progride em direção ao que desconfiamos ser o ponto de pouso. Em
seguida, dois elementos igualmente suspeitos conduzem um carro
de menor porte equipado com grande antena, tipo radiocomunica-
dor, no mesmo sentido. Para variar, nossos celulares estão fora da
área de cobertura e os rádios só alcançam um raio de 5 km. Ou seja,
não conseguimos contato para juntar as equipes.
Claro que existe tecnologia para suplantar tal deficiência. Tec-
nologia cara, se você considerar a comunicação item supérfluo em
40 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

atividades policiais de inteligência e campo. Os traficantes profis-


sionais sabem muito bem disso e compreendem a necessidade de
investimento em comunicação, vide a antena do carro menor. Note
que inteligência e campo precisam manter relação simbiótica para
gerar resultados. Em nosso arranjo informal e azeitado de confiança
no âmbito da segurança pública, inteligência depende de campo. E a
recíproca é igualmente verdadeira. Só queremos cumprir as missões
e cuidar uns dos outros.
Decidimos aguardar o segundo avião, visto que estamos em bom
local de observação, escondidos no matagal junto à pista. A antena
reaparece ao longe. A abordagem é inesperada, rápida, contundente.
– Polícia Federal! Sai do carro, mão na cabeça!
Ambos obedecem sem resistência. Um deles é o batedor, conhe-
cedor da região contratado para alertar sobre qualquer ocorrência.
Pego de surpresa, não tem tempo de fazer o seu trabalho.
– Não sei de nada. Não posso nem ficar perto dos aviões. Minha
função é só pegar o pessoal e levar para a estrada. O próximo vai des-
cer logo ali – indica a pista, em uma mistura de medo e ingenuidade.
– Ótimo, então você leva a gente lá – aproveito.
Nesse momento, passa a caminhonete, imediatamente aborda-
da por nós três. Agora são cinco traficantes rendidos. Conseguimos
contato por rádio e outros dois agentes se juntam à nossa equipe, re-
equilibrando o jogo: cinco a cinco. Então nos dividimos novamente.
Precisamos agir, pois o segundo avião já está para descer. Um colega
esconde-se no mato com os dois carros da PF e quatro presos, en-
quanto eu e um parceiro assumimos a caminhonete e os outros dois
agentes dirigem-se ao outro carro na companhia do olheiro.
– Tem certeza que não conhece o piloto? Vamos todos juntos. Se
der merda, você estará no meio – aviso. Muito nervoso, ele só balan-
ça a cabeça negativamente.
Na pista há mais dois malas esperando o bimotor pousar para
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 41

reabastecê-lo. A princípio, nem suspeitam de nossa aproximação nos


veículos dos traficantes. Quando percebem algo errado, já é tarde.
– Polícia! Deita, deita, mão na cabeça, porra!
Começamos a ouvir o ronco do avião. As outras equipes estão
próximas, mas não podem chegar mais perto sob pena de compro-
meter a missão. Agora somos apenas nós quatro contra o imponde-
rável.
***
Apesar de ter levado um balaço de fuzil na cabeça, estrago nada
bonito de se ver, o piloto parece manter um sopro de vida, tomado
por espasmos involuntários de estertores carnais. As equipes se jun-
tam e chamamos socorro aéreo urgente. Uma hora se passa, o piloto
canta para subir (ou descer) e nada de apoio aéreo.
Decidimos então, eu e um colega, sair com o carro da antena para
procurar o veículo que se evadiu com drogas e armas do primeiro
avião. Na aeronave abatida encontramos 447 kg de pasta base de co-
caína e três fuzis, um deles das Forças Armadas da Colômbia, com
lançador de granadas e farta munição. Montante similar deve estar
por aí, escondido em lugar qualquer. No entanto, sem informações,
é como procurar uma agulha no palheiro, desculpe o clichê. Nossa
impulsividade nos coloca ainda em sério risco. A Inteligência da PM
do Triângulo Mineiro toma ciência da operação e também das ca-
racterísticas dos veículos dos traficantes. E nós, destemidos agentes
da PF, cegos no calor do combate, dirigimos qual carro mesmo? Um
Fiat Strada branco com antena gigante...
No instante em que percebo a sandice de deslocamento temerá-
rio, ouço o girar nervoso de hélices bem acima. Canavial a dar com o
pau, carro de bandido, helicóptero da polícia mineira. Nitroglicerina
pura, adrenalina a mil! À paisana, meu parceiro para o carro e pren-
de a respiração. Instintivamente, eu saio com as mãos ao alto e me
debruço no capô rezando para que identifiquem as letras garrafais da
42 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

Polícia Federal nas costas do meu colete salvador. São os segundos


mais longos da minha vida. Eles entendem o recado e seguem no
sentido do bimotor perfurado. Pensar rápido e agir com parcimônia
sob forte estresse faz a diferença nessas horas. Quase dá merda.
O dia 9 de março de 2013 está longe do fim. Conduzimos os sete
suspeitos à delegacia para lavrar o flagrante e registrar a morte do
piloto. Pouco depois das nove da noite, quando nos preparamos para
comer algo e esticar o esqueleto, percebo muitas, mas muitas chama-
das não atendidas de minha insistente esposa. O celular não pegava
no canavial. Mesmo se funcionasse, não teria como atendê-la em um
dia louco como este. Vai tentar explicar isso a uma pernambucana...
– Tu tava onde? Tô te ligando o dia inteirinho e nada de tu atender!
– Calma, meu amor. Está tudo bem. Acabo de derrubar um avião.
– Ah, é? E esse avião é loira ou morena? – desliga!
Depois de tudo o que enfrentei, tal diálogo parece piada, só que
não é mesmo. No meio da minha defesa, com os colegas ao lado se es-
cangalhando de rir da gagueira nervosa do marido coberto de razão,
mas mesmo assim enrolado, membros da Inteligência da fronteira
com a Bolívia informam que o indivíduo responsável pelo transporte
da primeira remessa de cocaína e armas estaria comemorando seu
sucesso em frente a uma boate conhecida no centro de Uberlândia.
E lá vamos nós para a balada uberlandense, sem minha esposa
saber, é claro. Após tempo considerável de rastreamento, avistamos
o cabra, feliz que nem pinto no lixo. Contudo, antes que nos iden-
tifiquemos, ele percebe um de nossos agentes com olhar de lince e
bate em retirada no meio dos frequentadores. Sabadão enluarado é o
palco de carreira desembestada a pé. É tudo o que eu não preciso. As
pernas já não obedecem aos meus comandos e estou prestes a levar
poeira de um pançudo de meia idade. Por sorte, um motoboy ligado
na ação estica a perna no momento em que o fugitivo passa voando
ao seu lado. O estabaco é espetacular. Sem flagrante, no entanto, ga-
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 43

nha a liberdade por não conseguirmos ligá-lo aos fatos, mesmo com
a nossa quase certeza, confirmada dias depois, de que ele é o guar-
dião do entorpecente e armamento da primeira aeronave. Lei é lei.
Passados dois dias de buscas na região, o local onde a droga foi
depositada é encontrado em uma chácara entre Nova Ponte e In-
dianópolis. Mais 542 kg de pasta base e dois fuzis são apreendidos.
Somando-se aos 447 kg pegos no segundo avião, chegamos à incrível
marca de quase uma tonelada de cocaína e cinco armas longas.
O nosso corredor fujão, que saiu pela porta da frente da delegacia,
é formalmente identificado como o locatário da chácara e tem prisão
preventiva decretada. Só seria preso de fato, porém, mais de três anos
depois, precisamente em 27 de setembro de 2016. Motivo? Mesmo
roteiro (tráfico internacional de drogas e armas usando aeronave em
pista clandestina), só que em locação diferente: Cáceres, no Mato
Grosso, juntamente com um ex-delegado da Polícia Civil do Estado.
Mas isso é história para outro filme.
***
“O piloto enlouqueceu!”, diz um dos presos deitado no canavial
de Indianópolis. Eles também correram risco de ser atropelados na
agressiva tentativa de fuga. Foi tanta loucura que ele nem deve ter
parado para pensar que a aeronave estava sem combustível e poderia
cair a alguns metros ou poucos quilômetros à frente – isso se conse-
guisse decolar.
Estávamos prontos para qualquer escolha dos traficantes: rendi-
ção e prisão ou troca de tiros justa. Entramos para a polícia com o
intuito de ir para o pau, prender bandidos e cumprir a missão maior
de “salvar o mundo”, como diz um colega sonhador. Só não imagi-
návamos que a arma deles, nesse caso, seria o próprio bimotor de sei
lá quantas toneladas de massa metálica bruta e lâminas decepantes.
Se não houvesse um colega na frente, prestes a ser massacrado, o
piloto não teria levado o tiro fatal. Quatrocentos quilos de coca nada
44 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

representam do que entra pela peneira de nossas fronteiras. Mas, a


partir do momento em que ele investe contra um agente portando a
aeronave como arma, tivemos de agir rápida e friamente. O tiro foi
para desligar o piloto.
Julgamentos são ossos do nosso ofício. Estamos sujeitos a avalia-
ções de conduta a toda hora. Sentadas em suas salas refrigeradas, as
autoridades que analisam a atuação policial só não podem ignorar
o terror físico e psicológico que é estar frente a frente com a morte
constantemente. Nas palavras de um experiente policial aposentado,
com grande conhecimento acumulado: “Apenas 5% do nosso cére-
bro é consciente. Nos outros 95%, é inconsciente. Não temos acesso
a essa parte. É onde o coração bate, o sangue corre. A química do
corpo conduz nossas emoções, e sua produção não ocorre na área
consciente, mas na inconsciente. Eu não provoco adrenalina na hora
que quero, por exemplo. Só o policial na rua, diante da morte, é ca-
paz de entender: a pupila dilata, a tez fica gelada, a barriga encolhe, a
perna treme, a capacidade de raciocínio vai para o espaço. Mas tudo
isso pode ser melhor administrado com muito treinamento”.3
O instinto animal de autopreservação assume o controle do cére-
bro e, em consequência, das ações do policial em situações capitais.
Ele, e todo o seu ser, apenas reage a uma iniciativa inesperada de um
agressor preparado para o que der e vier.
Vamos lá, vida que segue.

Droga de vilania
“Eu não tenho chefe; só temo a Deus”. Esta frase é atribuída a uma
das mais brilhantes mentes do crime na atualidade em nosso país.
Não se iluda com a pegada religiosa repisada. Acreditamos tratar-

3. N. G., coronel da PM, em entrevista à TV Câmara – Bauru.


RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 45

-se de artifício deliberado para mascarar inteligência fora da curva,


autoconfiança inabalável, empreendedorismo inato, comunicação
interpessoal cativante, ambição desmedida, nem tanto de dinheiro
pura e simplesmente, mas de “poder e adrenalina”. Ele é uma mosca
branca. Figura rara, nunca se expõe, não dá bobeira, jamais senta na
droga ou nas armas ou no dinheiro – moedas de troca no seu intrin-
cado negócio de criminalidade mais do que organizada.
Estamos em abril de 2013 e confirmamos que ele é o responsável
pela rota do tráfico no Triângulo Mineiro. Quem controla as rotas
domina o tráfico, isso é básico. E o Mosca Branca desempenha muito
bem esse papel ao cercar-se de contatos que incluem megatraficantes
sul-americanos, chefes do tráfico brasuca, pilotos de teco-tecos, ba-
tedores, olheiros, transportadores, estocadores, receptadores, assal-
tantes de bancos, carros-fortes e bases de valores, advogados, juízes,
policiais, doleiros, agentes penitenciários, alfandegários, portuários,
aeroportuários, ou seja, um sem-fim de colaboradores interdepen-
dentes em complexa rede marginal de delicado equilíbrio.
Drogas e armas entram no país vindos principalmente de Bolívia,
Peru, Colômbia e Paraguai e saem para os mercados europeu, afri-
cano, asiático. De nada adianta alguém produzir se não controla os
caminhos corruptos para escoar produção proibida altamente reque-
rida mundo afora. No Brasil também, é claro, mas o Mosca deixa essa
função para as facções internas. O lucro fala mais alto para o público
externo. Seu esquema de contatos fiéis (esse sim o rebanho de sua
religião) e pagamentos à altura da lealdade conquistada permitem
até mesmo a venda sem sobressaltos a países ditatoriais e declarada-
mente inclementes a mulas isoladas e ingênuas. Márcio Archer, na
Indonésia, e Yasmin Fernandes, nas Filipinas, que o digam.
Quer mais? Voltemos a 2005, Fortaleza. Baiano de fala mansa,
nossa mente brilhante do crime, pedra no coturno da Polícia Fede-
ral, articula aliança entre facções criminosas, assaltantes de banco no
46 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

Ceará e fugitivos do Carandiru para um plano inimaginável: o furto


ao Banco Central. A ideia surgiu da fuga de 105 detentos da fatídica
penitenciária paulista em 2001.
Tatuzão, parceiro de assaltos do Mosca, capitaneou a construção
do túnel rumo à liberdade. Por que não usar o mesmo princípio (tú-
nel) e mão de obra (Tatuzão e companhia) para sorrateiramente en-
trar no banco? Não foi roubo ou assalto, mas um furto genial de mais
de R$ 160 milhões sem um único tiro disparado. Um dos financia-
dores e planejadores da empreitada, Mosca Branca teria tido o privi-
légio de adentrar o cofre e acompanhar a ação (adrenalina!). Porém,
não foi detectado como um dos mentores do furto pela excelente
equipe de policiais montada para elucidação do crime. Não é para
qualquer um. Investigações posteriores chegam a seu nome real, o
qual nunca fez questão de esconder, mas ele desaparece. Até 2008.
Favela de Paraisópolis, zona sul de São Paulo. Posicionado em vie-
la para missão que não vem ao caso agora, agente da PF, com cabelo
estilo moicano, desconfia de homem não tão bem vestido descendo a
escadaria a exalar agradável odor de perfume italiano. Faro apurado
de policial é assim mesmo. “Tem coisa esquisita ali”, pensa. E logo o
aborda junto com seu parceiro. Documentos em ordem, limpo, sem
flagrante. Têm de liberá-lo. Ainda encucados, acionam o comando e
passam as informações.
– Quem?! Pode segurar. É o cara!
– É para prender mesmo?
– Rapaz, corre lá e pega o cara agora! Ele é o único que usou os
documentos verdadeiros na fuga do Banco Central. É seguro e fol-
gado!
E assim o Mosca Branca, chefão do tráfico em Paraisópolis, um
dos financiadores do maior furto a banco da história brasileira, é
preso pela primeira vez. Ponto para a dupla dos experientes agentes
Moicano e Armênio.
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 47

De São Paulo, é levado a Brasília para interrogatório e, de lá, a


Fortaleza em avião de carreira. Na ida à capital cearense, diz que não
come há dois dias. Solicitamos dois sanduíches à equipe de bordo –
tempos em que serviam lanches nas aeronaves sem termos de pagar
a mais pelo serviço.
Zeloso e curioso, o comandante confere quem é o homem sob
custódia e também a dupla de policiais que o escoltam: o outro poli-
cial, neste caso, é um escrivão operacional. Lá no céu de brigadeiro,
em voo cruzeiro, Mosca comenta que tentou ser jogador de futebol
na adolescência e até atuou no Palmeiras, lembra com ar nostálgi-
co, sorriso ameno. Papos triviais de um bandido cerebral e perigoso.
Pergunto-me em que momento o jogo virou para ele. Negativas da
vida? Falta de oportunidades? Quem não as têm? Seja o que for, ele
não parece arrependido. Pelo contrário, sua calma revela certa arro-
gância e uma perturbadora confiança na impunidade.
Chegando a Fortaleza, vamos à Superintendência da Polícia Fe-
deral e, no outro dia, o conduzido é ouvido pelo juiz do caso. Um
homem das leis. Correto, justo e focado no crime de grande reper-
cussão nacional a ser julgado. Outros membros do grande furto tam-
bém prestam seus depoimentos e, como o grupo já soma dez homens
investigados e perigosos, é providenciada a transferência de todos a
presídio federal. Desta vez o jato da PF leva os envolvidos até Mato
Grosso do Sul, com escala em Brasília.
Na penitenciária federal de Campo Grande – onde ficaria pouco
tempo, beneficiado por atenuantes previstos no Código Penal, como
ser primário (apesar de vários anos na criminalidade), e por outras
motivações extrajudiciais, quem sabe –, Mosca Branca conhece um
piloto de aeronave outrora ligado a chefão de facção criminosa ca-
rioca. Logo logo voltariam à ativa, e com doutorado na universidade
prisional de segurança máxima.
Retornando a abril de 2013, o Mosca não tem a mínima noção
48 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

de que seus planos são repassados à PF por colaboradores preciosos.


Entre saraivada de apelidos e códigos cifrados fornecidos por vá-
rios desafetos de grupos rivais, montamos um mapa assustador dos
tentáculos de uma possível organização internacional investigada.
O universo das informações sobre crimes é enorme. Há corrupção
por agentes públicos, lavagem de dinheiro, tráfico de drogas, armas e
pessoas, além de assaltos a bancos e carros-fortes. Focamos parte de
um dos tentáculos: tráfico de drogas e armas com passagem pelo Tri-
ângulo Mineiro. Ligado a este foco, detectamos um plano para um
grande assalto a um congênere Banco Central da Bolívia, em Santa
Cruz de la Sierra. E desta vez o Mosca Branca vai averiguar a situa-
ção de perto com um amigo ladrão que prometeu à esposa não mais
voltar ao Brasil por causa das extorsões infligidas a ele por policiais
paulistas após diversos sequestros sofridos. Paciência de bandido
também tem limite.
No dia 11 de abril, Mosca chega a Santa Cruz de La Sierra para
encontrar-se com amigo e grande assaltante brasileiro no Shopping
Fidalga. Ambos se deslocam a uma franquia mundial de sandu-
íches, perto da Catedral de Santa Cruz, local em que começam a
estudar a possibilidade de investir em um futuro assalto na região
com intenso fluxo de transporte de valores. O Grupo de Investi-
gaciones e Operaciones Especiales – GIOE, da Bolívia, é acionado
para monitorar seus passos. Até hoje não há informações concretas
sobre este fato.
De Santa Cruz de la Sierra, nosso desocupado cidadão do mundo
(não tem emprego fixo, mas possui imóvel avaliado em R$ 3 milhões
no Brasil, patrimônio modesto, contudo, para bandidos de sua es-
tirpe) cuida de seus afazeres e aproveita para acertar encomenda de
armas de grosso calibre para parceiro da maior facção do país, mega-
traficante cearense de “cabeça grande” que ganhou o mundo, esteve
trancafiado até pouco tempo mas, nesta época, curtia os benefícios
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 49

do benevolente regime semiaberto. De quebra, ajusta os ponteiros


para novas remessas de cocaína.
Sob olhar discreto de agentes federais, Mosca volta a Guarulhos
em meados do mês, com conexão direta a Fortaleza, onde se hos-
peda em tradicional hotel praiano para fortalecer rotas nordestinas
junto a traficantes com pretensões políticas em nível nacional. Mais
à vontade, goza há bastante tempo da liberdade provisória desde sua
prisão em 2008, lembra? Já seu compadre de traficâncias, o nativo do
Ceará, amarga o incômodo semiaberto, que atrapalha seu trampo,
principalmente quando esquemas superiores começam a ruir.
– O doutor vai rodar. A bomba vai explodir. Eu ainda não tinha
direito a semiaberto não.
– Qualquer coisa mete o pé pra cá. Tô em Fortaleza. Aí desenro-
lamos um papel daqui.
Uma mão lava a outra. Um dos líderes de facção, temente à jaula,
pede ajuda. E amigo freelancer, pois não integra estrutura formal de ne-
nhuma organização criminosa, oferece compreensível apoio interessei-
ro e salutar para a manutenção de tênue equilíbrio de redes interligadas.
Estende a mão e ganha pontos incalculáveis no xadrez de todos os tabu-
leiros a que tem acesso.
O doutor em questão é um magistrado titular da vara de execu-
ções penais em Minas Gerais. O esquema já sondado envolve a ven-
da de decisões judiciais em favor de cupinchas de facções. O togado
infame também orienta a advogada da quadrilha, sua amante igual-
mente quadrilheira, a forjar documentos com pedidos de transfe-
rência para seu alcance mineiro. O traficante usa atestados médicos
devidamente comprados para a migração imediata de regime fecha-
do em semiaberto e, depois, aberto. Isso que é progressão de pena!
Nossa mente brilhante e workaholic intensifica ações, diversifi-
ca rotas. Organiza vindas de caminhões recheados saídos da Bolí-
via com entrada em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Percurso
50 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

longo, sinuoso, custoso até o Porto de Santos, escoamento natural


para cargas tão pesadas. Preocupado com equipamentos móveis de
raios X da Polícia Rodoviária Federal para detectar drogas e armas
misturadas às cargas, principalmente em rodovias que passam por
Cáceres, Ponta Porã e Corumbá, encomenda placas de chumbo com
o objetivo de revestir os veículos e proteger o material ilícito do es-
caneamento policial. Funcionaria se não estivéssemos tão próximos.
Precavido, desconfiado, o Mosca combina ainda com seu com-
parsa do semiaberto uma terceira via de remessa para a Europa: ma-
rítima. Isso mesmo, terra, ar, mar. Ciclo intermodal completo. Desta
vez, colombianos estão na jogada e o plano é levar entorpecentes do
litoral cearense, por meio de embarcação, para entrega a navios em
águas internacionais, já fora do controle brasileiro. Essa reunião é o
motivo de sua ida a Fortaleza, constatam os agentes em campo.
Peço desculpas. Disse que focaria o Triângulo Mineiro e acabei à
deriva, em alto mar, nessa vastidão perturbadora de ações crimino-
sas ininterruptas.
Em Uberlândia, o chefe da inteligência da PM, um major, ofe-
rece toda a liberdade para atuarmos com seus comandados. E dois
policiais militares do serviço reservado começam a fazer a diferença
em campanas diuturnas e levantamentos de informações na região,
sob a orientação de seu capitão, verdadeiro lobo e líder da alcateia,
responsável pelas missões de campo. Neste momento sabemos que a
integração entre as polícias está consolidada. Não há vaidades, nem
oficiais ou subordinados dentro da hierarquia militar. Na medida do
possível, é claro. O controle é regido por quem detém a informação, e
não por uma patente. Receita do sucesso que está por vir.

Reprise
Nova aeronave descerá na região do Triângulo. É o que apontam
colaboradores de agentes federais de Uberaba em início de maio de
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 51

2013. Carga aproximada de 230 kg de cloridrato de cocaína (cristais


brancos puros) tem a Holanda como destino final. Data confirmada,
na madrugada do dia 8 as equipes designadas se reúnem no muni-
cípio de Ituiutaba, no extremo oeste de Minas, perto da divisa com
Goiás, próximo ao provável local de aterrissagem. Sabemos que a
pista clandestina fica a uns 700 metros de uma rodovia em constru-
ção, com homens trabalhando intensamente para uma construtora
certamente envolvida em pagamento de propinas em época pré-Lava
Jato.
Após análises de imagens via satélite e dados dos agentes de inte-
ligência da PM de Uberlândia, deduzimos que o possível local será
no município de Santa Vitória/MG, por bater com as características
descritas pelo nosso informante.
Breve reunião define duas formas de abordagem: a primeira é
usar o caminhão da obra para infiltrar seis agentes com roupas ca-
mufladas próximos à pista, no intuito de manter vigilância rural dis-
creta até o pouso do avião. A segunda, mais arriscada, é identificar o
veículo de apoio dos traficantes e, quando se aproximar da pista na
hora do pouso, render os meliantes. Já vimos este filme antes, não é
mesmo?
Paralelamente, o Serviço de Inteligência da PF, com apoio da Ae-
ronáutica, intercepta mensagem de rádio enviada à aeronave clan-
destina mudando o pouso para uma coordenada geográfica junto a
Campina Verde, distante cerca de 130 km do ponto em que estamos.
Balde de água fria. Apenas para quem não pensa nem age rapida-
mente. O Japonês, analista na Base de Inteligência da PF de Uberaba,
ciente dos acontecimentos, aciona o nosso Lobo no Serviço de Inte-
ligência da PM/MG (P2) e solicita imediata confluência de viaturas
policiais nas imediações da nova área de pouso. Os policiais militares
da região, mesmo sem saber o que estão fazendo efetivamente, obe-
decem ao comando da inteligência. Com o local saturado, resta ao
52 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

piloto a pista de Santa Vitória, pois não é bobo de arriscar uma pane
seca. Jogada de mestre do Japa.
Partimos para a segunda opção de abordagem, você já deve sa-
ber. Embrenhados no mato, caminhamos progressivamente até as
margens da pista de pouso e observamos os traficantes em solo. Um
deles, sentado na carroceria da caminhonete, tem em mãos um pano
vermelho certamente para sinalizar ao piloto a presença do pessoal
de apoio. Por ora brinca com o tecido chamativo como um corajoso
toureiro fintando perigo avassalador imaginário. Ensaio premonitó-
rio? Outros dois, entediados, buscam sombra em meio ao canavial.
Onze e meia da manhã. O som do avião, soberano, preenche o
espaço. Mais uns minutos e ele sobrevoa a pista em busca de qual-
quer ameaça. Assim que se afasta para a volta da descida, damos o
bote nos traficantes em segundos. Nada melhor do que uma equipe
policial treinada. Parece uma coreografia ensaiada à exaustão, com
atitudes contundentes e gestos leves ao mesmo tempo. Algemas,
mordaças, vendas, tudo para evitar alarde. O toureiro enfia o pano
vermelho entre as pernas. Dois agentes federais assumem seus pos-
tos na pista; outros dois colegas colocam-se no veículo e conferem
os últimos ajustes na câmera instalada no para-brisas. A ação, agora,
sairá do campo imaginário e desacreditado das histórias contadas,
das palavras faladas, para as imagens irrefutáveis da realidade nua
e crua gravada. Se apenas narrássemos o ocorrido, ninguém acre-
ditaria. Indianópolis não sai de nossas cabeças. Não esperávamos a
tentativa de fuga do piloto na ocasião. Como garantia, agora somos
quatro dentro do canavial, distribuídos por quase um quilômetro de
pista para dar segurança à equipe disfarçada, caso o piloto atual faça
alguma besteira ou qualquer tripulante desça armado. Estamos pre-
parados para tudo no meio das canas sem fim.
O avião toca o chão e taxia mais devagar do que o normal. Um
dos agentes acena e vai em direção à aeronave, em improviso não
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 53

combinado. Na metade da pista o piloto dá meia volta, sem perigo


de atropelamentos desta vez, e alguém de dentro começa a descartar
fardos da droga. A reação dos agentes na caminhonete tomada dos
traficantes é imediata. Partem atrás atirando nos pneus. Disparos
ocorrem também do mato; não ao piloto, registre-se.
– Calma, calma, vai na cauda, vai, vai, vai! – grita um dos agentes
em solo.
O policial no banco do carona atira e vê que a pancada será do
seu lado.
– Abaixa, abaixa, abaixa! – diz o motorista.
Pou, crash, tum!
Em abalroamento de direção ofensiva, o motorista joga a lateral
direita da caminhonete dos bandidos contra o leme e o estabilizador
traseiro da aeronave, forçando-a para fora da pista. Gritos intimi-
dadores de autoridade constituída inibem qualquer possibilidade de
revide de tripulantes atônitos. A cena é brutalmente controlada.
Resultado: cinco traficantes presos e ilesos, ligados ao Mosca e ao
cearense do semiaberto, além da guarda de 234 kg de cocaína pura
e galões de combustível para abastecimento em pleno voo por meio
de bomba de sucção. Ainda bem que nenhum tiro acertou os galões
dentro do avião. Esse pessoal inventa...

Mocinho providencial
Apreensões seguidas têm objetivo claro: desestabilizar o Mosca
Branca, forçá-lo a sair da toca, sentar na droga, atingi-lo no seu me-
lhor do “faça você mesmo”. De quebra, municiar a investigação para
que a Justiça perceba a continuidade delitiva de perigosa organização
criminosa transnacional.
Muitos integrantes da Justiça brasileira e do Ministério Público
caminham a passos lentos e não entendem a dinâmica da crimina-
lidade. Não podemos generalizar, é claro, mas esperar prender um
54 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

criminoso como esse sem acompanhá-lo diuturnamente é missão


quase impossível. Jamais iremos forjar um flagrante. No entanto,
temos de pressionar até conseguirmos vincular o meliante aos cri-
mes sequenciais cometidos. E, para atingir meta desafiadora como
esta, algum investigador ficará sem dormir ou terá sua vida familiar
e social prejudicada por semanas, meses ou anos. Este é o preço por
querer “salvar o mundo”.
Em São Paulo descobrimos então o cara perfeito para arrochar
ainda mais o planejado. Policial militar bravo, honesto, peão avança-
do no xadrez dos mocinhos. Atua na região de São José do Rio Preto,
entroncamento que liga o sul de Goiás, saindo do Delta de Minas, ao
Porto de Santos, rota para o resto do globo.
As encomendas vindas do Triângulo transitam irremediavelmen-
te por ali.
– Meu irmão, carga pesada vem aí hoje.
– Deixa comigo, vou pegar!
Nosso networking informal de inteligência nacional começa a ga-
nhar corpo. Avisamos diretamente ao colega sobre drogas e armas
que cruzam o Estado de São Paulo. Alertar o comando de inteligên-
cia, atolado em burocracia, é perda de tempo. Homens de inteligên-
cia policial fazem inúmeras investigações sociais solicitadas por vá-
rios órgãos estaduais. Com isso, ficam sem tempo para o primordial:
trabalho de polícia. Cansamos de implorar apoios imediatos sem
melindres ou ter de desenhar em papel a urgência de pedidos para
um oficial PM qualquer se dispor a avaliar o cabimento das solici-
tações. Em algumas vezes, o policial disponibilizado não tem a mí-
nima ideia da importância de investigações desta envergadura para
São Paulo e para o país, pois não conhece a dinâmica de tais ações
por nunca ter participado efetivamente delas. Tentamos ao máximo
evitar que policiais desavisados coloquem suas vidas em risco; muito
menos sermos imprudentes em acionar a polícia pela via convencio-
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 55

nal (190). Policiais podem ser surpreendidos e mortos em situações


pontuais como estas.
Porém, o PM destemido, desapegado das vaidades, não quer sa-
ber se está de férias, folga, se é feriado, domingo, dia, noite. Vai e
pega. Esse contato pessoal com quem resolve é inestimável. Lamen-
tavelmente, no nosso modelo de segurança pública, as relações deste
tipo são pessoais e não institucionais.
Durante três ou quatro meses, semanalmente, o incansável PM
derruba caminhão atrás de caminhão, todos carregados de entorpe-
centes. Nesta rota, de Santa Cruz de la Sierra a Amsterdã, a droga é
paga por meio de doleiros. Os traficantes não mexem com dinheiro,
mas precisam dos serviços de um intermediário no Brasil, o sujei-
to responsável pela logística. E estamos em cima. Estrategicamente,
as apreensões ocorrem em locais distintos, sem a PF aparecer, para
gerar confusão entre os infratores. Se não dá para pegar no pouso,
abordamos no meio do caminho. Cargas caem em Rio Preto, Arara-
quara, Leme, Campinas, São Paulo. Por meio de ações controladas,
com autorização da Justiça, deixamos também algumas cargas passa-
rem para derrubarmos no próprio Porto de Santos.
Bem orientado, o PM aparece com efetivo intimidador nas mis-
sões, o que evita confrontos. Bandido que é bandido tem medo de
morrer. Os superiores, apesar de brilharem nos holofotes da mídia,
desconfiam de seguidas e pomposas apreensões: “Não é possível, esse
cara tem bola de cristal? Ou está envolvido com o tráfico? Quer que-
brar os inimigos e beneficiar seus aliados?”.
Acusado de exercer seu trabalho sem reservas ou concessões, o po-
licial da bola de cristal é afastado. Responde a processo administrati-
vo disciplinar militar e, mesmo assim, mantém-se firme, íntegro, fiel
a seu colaborador, no caso um agente da Polícia Federal. Intervimos,
obviamente, abrindo detalhes dos trabalhos à alta cúpula da Segurança
Pública de São Paulo. Nesse meio é muito difícil confiarmos cem por
56 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

cento em superiores atrás de suas mesas. E o PM, homem de fibra, fi-


nalmente é promovido pelo comprometimento e experiência policial.
***
Nove de maio de 2013. Mosca Branca, atarefado em Fortaleza,
ainda desconhece a apreensão do avião por policiais federais em
Santa Vitória, um dia antes. Suas relações estão estremecidas com o
atravessador, traficante de Uberlândia/MG e Itumbiara/GO, respon-
sável pela logística do transporte. Já pensa mesmo em pôr um ponto
final na parceria, não com tortura ou violência, que não são do seu
feitio, mas por morte rápida e limpa. Tem verdadeiro asco a traições.
E também a sujeiras.
Outro caminhão chegará no dia 10 a São Paulo. Sairá do sudoeste
de Goiás com mais de 400 kg de cocaína em caixotes vazios, sem
uma folhinha de alface que seja para disfarçar. Recebemos informa-
ções de que Mente Brilhante (o Mosca) estará por perto para flagrar
o traidor relaxado. Oportunidade de ouro!
Já pela manhã, deixamos o Núcleo de Operações da Especializada
em São Paulo de sobreaviso para que identifiquem caminhão e carro
dos batedores, que virá ocupado pelo primo do atravessador com a
corda no pescoço e um ajudante. Perto das 16 horas um Gol preto
com placa de Uberaba é reconhecido e seguido nas proximidades
de Jundiaí até o km 28 da Rodovia dos Bandeirantes, junto à capital.
O bote tem de ser certeiro, sem afobações. Falta ainda o veículo
do Mosca Branca, incógnito como sempre. À frente das equipes do
Tático Ostensivo Rodoviário (TOR), nosso recém-promovido PM
deflagra a abordagem, no limite, quando o Gol encosta no caminhão
estacionado em um posto de gasolina às margens do km 34. Mais
412 kg de pasta base para o currículo do destemido policial e sua
equipe. No decorrer da ação, um veículo prata suspeito evade-se ra-
pidinho do local. O Mosca estava acompanhando bem de perto, mas
fora dos nossos radares, soubemos depois...
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 57

A noite é de choque e desespero para quadrilha que se considera


acima do mal, já que o bem não faz parte de sua cartilha. Agora cien-
te de sua suspeita infundada contra atravessador derrotado, Mente
Brilhante convoca reunião com narcotraficantes sul-americanos em
hotel chique de Sampa a fim de reestruturarem estratégias. Elos que-
braram-se, mas serão reconstruídos e rearranjados sob outras rami-
ficações. Conhecem nossas deficiências e sabem perfeitamente que
podem cobrir prejuízo momentâneo com uma simples mudança de
rota. Até chegarmos lá de novo, pela milésima vez, eles já estarão em
outra e outra e outra. Sempre na vanguarda e, claro, no lucro.

Roteiros futuros
– Nossa tática não está dando certo. Sinto que só ficamos enxu-
gando gelo... – reclamo em breve momento de desânimo.
– Calma, meu caro. O degelo das calotas polares é inevitável.
Temos que nos adaptar e seguir em frente – diz um colega agente,
formado em Oceanografia. Trocamos boas ideias. Isso que é papo
cabeça.
Enxugar gelo e arriscar peles de agentes teimosos todos os dias é
o que nos cabe na PF e em qualquer outra força policial brasileira se
não investirmos urgente e decentemente em inteligência comparti-
lhada de verdade, não inteligências genéricas alardeadas por pseu-
doespecialistas de plantão. Missões espetaculares com tiros e mortes
só deveriam existir no cinema, como memória de eventos sombrios.
Infelizmente realidade suplanta ficção no país do eterno futuro per-
dido.
O flagelo de armas e drogas brota de tudo que é canto e em quan-
tidade cada vez mais aviltante. Afinal, o lucro produzido por tais
mercadorias é astronômico. Conduta óbvia, entretanto bastante con-
troversa ainda, é deixar passar carregamentos propositalmente para
que se possa rastrear o caminho até os maiorais e quebrar conexões,
58 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

redes, cadeias de comando do crime. Isso é inteligência, o que no


meio jurídico chamam de ação controlada. Temos sido burros ou
ingênuos ou, pior, coniventes com políticas de políticos perdidos que
nem cegos em tiroteio. Se em uma única dica de pistas clandestinas
no Triângulo Mineiro derrubamos reles três ou quatro toneladas de
coca e sei lá quantas armas em um ano e meio de ações ininterruptas
(meros 10% presumíveis do movimentado na região), quanto você,
curioso leitor, acha que produtos singulares prosperam em território
insondável de fronteiras continentais e marítimas diariamente?
– O que apreendemos é apenas a ponta do iceberg – constato.
O tráfico-formiga não é pequeno, absolutamente. Deve ser re-
primido, sim, quando pego em situação flagrante. Porém, tal varejo
entranhado no dia a dia do cidadão – seja em consumo de crack
por zumbis esquecidos nos grandes centros urbanos ou de pó por
abastados mauricinhos de berço – pulveriza esforços investigativos.
E elege “zé ruelas” da vida como reis do pedaço a inflar penitenciá-
rias, perdoe o desabafo. Não é o foco da PF. O trabalho tem de ser na
fronteira, no atacado.
Segundo um amigo especialista, a falta de policiais experientes
em postos de comando prejudica o trabalho intensivo e continuado
da inteligência. Além disso, as forças de segurança pública pecam
por segmentar demais suas áreas de atuação, fatiando esforços que
estancam linhas de investigação sem saída. São inúmeras divisões
que pouco ou nada conversam entre si. Bandido profissional dos
bons, como o Mosca Branca, empreende ilicitudes em várias frentes
simultâneas e integradas a outros criminosos. Para que existem di-
visões segmentadas e especializadas em armas e drogas nas diversas
forças policiais se uma e outra ficam melindradas quando ocorrem
apreensões cruzadas de mercadorias, algo normal, já que os crimi-
nosos atuam em bloco? Ciumeira indefensável, frise-se. Daí a difi-
culdade de se montar forças-tarefa eficientes entre polícias distintas.
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 59

Exatamente por essa razão, as grandes quadrilhas organizadas


deveriam ser acompanhadas por grupos multifuncionais, dotados de
especialistas em assaltos a bancos, roubos de cargas, tráfico de dro-
gas e armas, crimes financeiros, homicídios, sequestros, tudo junto.
Devaneios utópicos de um sonhador? Sinceramente, não. É viável,
possível.
***
Após a tentativa frustrada de pegar Mosca Branca, junho de
2013 chega com as inaugurações do núcleo de inteligência da PF
em Uberlândia, para onde sou designado. Explico o plural “inau-
gurações”. Com o sucesso das apreensões do primeiro semestre, e
consequentes repercussões midiáticas positivas, a criação do novo
núcleo de Uberlândia é cercada de expectativas. No primeiro even-
to inaugural, a ausência de autoridade superior motiva a marcação
de uma segunda data. Uma semana depois, agentes perfilados nova-
mente para homenagens protocolares da solenidade encaram outro
adiamento, desta vez pela falta de um político influente. Por fim, na
terceira vez, vários rostos desconhecidos chegam aos montes, traja-
dos de ternos e gravatas, e são “atacados ferozmente” pela nossa fiel
escudeira mascote “Cotinha”, uma vira-latas com estirpe federal que
fez aqueles homens correrem de um lado a outro, apavorados. Após
este fato hilário, o núcleo de inteligência recebe o aval oficial para
tocar os trabalhos. Ufa!
Fora a politicagem, mergulhamos fundo em assaltos a bancos, ba-
ses de valores, roubos de cargas e tráfico de drogas. Crimes pesados
e violentos vêm aí. Prepare-se!
60 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 61

EXPLOSÃO
DO MEDO
62 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

Segurança pelos ares


– Finalmente agora dá pra fechar – o dono do bar respira aliviado
e feliz.
– O senhor tem é que agradecer ao Galo – o funcionário atletica-
no e sacana espeta o patrão, cruzeirense doente.
– Como é? Não entendi – faz-se de sonso.
– Essa sede toda é entusiasmo, patrão! O pessoal sabe que esse
ano vai. Em 2012 batemos na trave no Brasileirão, mas agora vamos
ganhar é a Libertadores! E comemorar muito nos bares da vida – vi-
bra o profético fã do Milton.
– Ahahahah! Sonha, você é muito bom nisso. Mas sonha com a
vassoura na mão que lá fora tá a maior sujeira. Esses atleticanos não
têm educação mesmo – resmunga entre um bocejo e outro enquanto
lava os últimos copos.
– O senhor não quer admitir, eu sei!
“Foi nos bares da vida ou num bar em troca de pão...”. Ajudante de
cozinha, o rapaz sai cantarolando e dançando com a vassoura, sob
olhar paternal do dono. É um ótimo funcionário. Honesto, trabalha-
dor, de bem com a vida. Passa das três horas da madrugada de uma
quarta-feira, 17 de abril de 2013, e ele ainda consegue fazer piada? A
clientela gosta desse jeito brincalhão, cativante, sempre com muito
respeito, o que é ótimo para o boteco localizado no centro de peque-
na e pacata cidade do Alto Paranaíba, em Minas.
O dono aprecia a vida no interior, a simplicidade dos moradores,
a tranquilidade em termos de segurança. Seu estabelecimento, por
exemplo, jamais fora assaltado. Tem tudo ali perto: farmácia, mer-
cadinho, padaria e até uma agência bancária quase ao lado do seu
botequim. É onde paga as contas, pega o dinheiro dos funcionários
e faz sua poupancinha para quando não tiver mais forças. É sua ga-
rantia de um futuro digno, sem depender tanto da abençoada, porém
minguada, aposentadoria do roçado. Sente-se no paraíso.
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 63

São quase três e meia. Hora de ir. Vai lá fora ver se a varrição
da estreita calçada terminou. E então percebe um carro escuro com
cinco homens parando de qualquer jeito no meio da rua. “Não é pos-
sível. Mais clientes? E a essa hora?”, engana-se.
***
Nesta época eu integro a equipe de inteligência da Polícia Fede-
ral de Uberaba. Acompanhamos as ações do Mosca Branca quando
descobrimos, por acaso, importante grupo de assaltantes oriundo de
Uberlândia. O líder da quadrilha entra em contato com os traficantes
e encomenda armas da Bolívia. Como o Mosca é o chefão da rota
que passa pelo Triângulo Mineiro, trazer armas para bandidos locais
não lhe causará transtorno algum. Pelo contrário, ganhará mais uma
possibilidade de faturar e ainda poderá ampliar sua vitaminada rede
de parcerias.
Indícios de que haverá assalto a uma agência bancária em Per-
dizes ou Guimarânia, ambas cidades do Triângulo, nos chegam por
meio de um colaborador da região. Junto a isso a estarrecedora in-
formação de que policiais militares de Uberlândia estão envolvidos
com as funções de relatar deslocamentos das viaturas, servir como
olheiros nas cidades a serem atacadas e, acredite, dar cobertura aos
bandidos, mesmo que seja para atirar em seus irmãos de farda.
Imediatamente, contatamos capitão da Inteligência da PM de
MG, o Lobo, o qual indica dois oficiais de sua estrita confiança para
acompanhar o caso: um de Araxá, que ficará responsável pelo mo-
nitoramento de veículos nas redondezas do município de Perdizes,
e outro de Patrocínio, para cobrir Guimarânia. E na maior discrição
possível, já que a frequência de rádio da corporação provavelmente
está comprometida, além de não sabermos quais policiais podem ter
envolvimento com os assaltantes.
A Delegacia de Polícia Federal de Uberaba não dispõe de quanti-
tativo suficiente para apoiar as duas cidades. E o fato de Guimarânia
64 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

não pertencer à circunscrição de Uberaba, mas sim de Uberlândia,


faz com que desloquemos um grupo de pronta intervenção compos-
to por três policiais federais para atuação conjunta com os PMs de
Araxá, no caso de embate em Perdizes. Quanto à Guimarânia, fica
única e exclusivamente a cargo da PM de Patrocínio, com conven-
cionais cheios de vontade, mas sem a experiência em confrontos dos
especializados.
No decorrer do dia, o informante avisa que o chefe da quadri-
lha, conhecido como Padeiro, levou sua filha menor a um hospital,
sem mencionar qual unidade ou dar detalhes do estado de saúde da
criança. A noite avança e não sabemos se haverá roubo de fato, nem
onde. Nunca é fácil.
Mesmo assim transmitimos aos oficiais de Araxá e Patrocínio
toda a forma de atuação do grupo criminoso, que tem sido investi-
gado desde Uberlândia. Usam a tática do “minicangaço noturno” ao
invadirem cidades pequenas dotadas de escasso efetivo policial, sem
poder bélico para confrontá-los. E disseminam o terror ao disparar
tiros à vontade para qualquer lado com armas de grosso calibre, só
para intimidar, além de detonar caixas eletrônicos com artefatos ex-
plosivos, na marra. Ao deixarem o local em escombros, espalham
miguelitos pelo caminho – pregos entrelaçados e soldados em for-
mato de estrela, de modo que sempre haverá pontas afiadas voltadas
para cima, prontas a estourar pneus de viaturas policiais desavisadas
no breu da madrugada.
Recebemos confirmação de que Padeiro, pai presente, deixa o
hospital à meia-noite e meia rumo ao local combinado. Deste mo-
mento em diante, não há mais dados de inteligência para subsidiar as
equipes de campo. Sinal de que a chapa vai esquentar.
– Atenção, só dê voz de prisão se estiver em vantagem. Eles são
perigosos e audaciosos – reforço, sem ter mais o que fazer.
***
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 65

– Encosta na parede, porra! Encosta, encosta!


– Calma, por favor. Somos do bar, pode levar o que quiser – fala
o dono.
– Tá armado? Deixa eu ver, levanta a camisa!
– Não, não, senhor. Já tava fechando – olha para seu pálido aju-
dante estatelado.
– Deita aí os dois agora! Cabeça pra baixo. Se olhar leva bala,
entenderam?
Segundos de revista íntima maximamente invasiva e de pressão
insuportável colocam reféns em seu temido lugar na provável linha
de tiro. Três bandidos mascarados correm com malotes, ferramentas
e explosivos para o banco. Ao mesmo tempo, outro elemento distan-
cia-se alguns metros à frente em direção à esquina que pode repre-
sentar algum perigo. Entretanto, só louco para encarar sua escopeta
12 de cano curto fumegante. Ninguém se atreverá a tanto nessa “pe-
quena cidade do interior mineiro”, acredita piamente.
Da mesma fé não comunga o assecla encarregado de vigiar a face
oposta da rua e também os reféns rendidos, deitados, imersos em
preces frente à premência da morte, vai saber. Nervoso, anda de um
lado a outro como um tigre borgiano, limitado a sua pequena jaula
imaginária, perímetro entre o bar e o banco estipulado no plano da
quadrilha. Decorou suas ordens de cabo a rabo e, de certa forma,
identifica-se com o ajudante de cozinha abraçado à vassoura, seu
único alento em momento tão capital. O ladrão mascarado entende
ali que são iguais, apesar das escolhas díspares de cada um. Poderiam
ser amigos, dividir descobertas, angústias, mas quem está armado
é ele. O subjugado, entregue ao próprio azar de subsistência humi-
lhante, parece ter desistido de tudo com sua cabeça baixa.
Os disparos do incrédulo segurança do bando são avassaladores
assim que viaturas da PM despontam na esquina. Em desvantagem,
ele recua.
66 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

– Sujou, sujou!
Os dois marginais protegem-se atrás do carro e executam suas
funções com louvor. Afinal, sem medo de errar, pelo menos uma
centena de projetis zunem de lado a lado. Os outros três retornam do
banco sem conseguir explodi-lo e equilibram contenda de artilharia
pesada. Com banana de dinamite na mão, um dos meliantes de pavio
curto não pensa sequer uma vez: acende o cordel detonante e lança
o artefato em direção aos PMs, igualmente protegidos por viaturas
que se acumulam. É o intervalo que os cinco precisam para bater em
retirada. Entram no carro e abrem fogo com tudo o que têm, fugindo
pela BR 365, sentido Patrocínio.
O dono do boteco finalmente dá uma espiada. Tenta levantar,
mas sua cabeça pesa uma tonelada. Sente os cabelos úmidos e pensa
tratar-se de suor. Ao apoiar o braço no chão para erguer-se, desaba.
Só então percebe que fora atingido na cabeça de raspão, supõe, e
também no ombro direito. O ajudante de cozinha permanece inerte
ao lado da vassoura.
– Vamos, homem, levanta! Vamos entrar!
O fio da dinamite se apaga antes de atingir a nitroglicerina con-
centrada. O funcionário perde a luz antes de ver seu Galo campeão
da Libertadores de uma América sempre conflagrada.
***
No quarteirão abaixo, veículo suspeito é interceptado por equipe
de rastreamento – sabe-se que existe um segundo carro, até então
não identificado, na atividade criminosa.
– Oh, amigo. Estamos aqui numa situação de campana – diz o
primeiro homem.
– Isso mesmo, somos de Uberlândia em missão confidencial – o
outro tenta dar a famosa carteirada para se livrarem da averiguação.
– Vai me dizer que não ouviram os tiros? Saiam do carro, os dois!
Mão na cabeça!
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 67

Pistolas apreendidas e aparelhos celulares com mensagens com-


prometedoras incriminam os policiais, presos em flagrante por en-
volvimento irrefutável na ação delituosa. É digno de registro que a
Polícia Militar do Estado de Minas Gerais não passa a mão na cabeça
dos seus, cortando na própria carne como foi no caso de Guima-
rânia. Não admitem desvios de conduta. Os detidos são levados à
Justiça e todas as medidas administrativas são tomadas para punir os
infratores no rigor da lei.
Viaturas que venceram os miguelitos seguem no encalço dos fu-
gitivos em carro turbinado. Toucas ninjas e uma pistola descarregada
são descartadas em via pública. Nada que tire o foco da perseguição.
Matagal à beira da estrada surge como oportunidade de ouro para
evasão estratégica. Deixam o possante para trás, junto com carrega-
dores de pistolas, munições de fuzis e explosivos intactos. O dia será
longo. Ainda é madrugada, e os colegas de Uberaba que estavam em
Perdizes chegam a Guimarânia e relatam pelo celular o cenário de
guerra encontrado, com dezenas de cápsulas deflagradas por todos
os lados.
Clareia, manhã, o sol vai revelar a assustada cidade do interior
mineiro, que vira palco de confluência solidária de forças policiais
da região, inclusive com apoio aéreo do Pégasus. Afinal, cinco cri-
minosos estão foragidos. Também vira pauta jornalística inevitável,
com tristes cenas exploradas por veículos de comunicação, inclusive
nacionais. Sem falar das marcas físicas de bom rapaz morto e micro-
empresário ferido (realmente de raspão), o episódio finca buracos
em paredes e mentes de pacatos cidadãos, então alheios à violência
crescente ao redor.
Por volta das nove horas, a aeronave localiza o Padeiro, líder da
quadrilha, escondido na vegetação. Baleado na mão, no pé e com
ferimentos em ambas as panturrilhas, não pôde ir muito longe. O
cerco na mata continua por mais três dias, porém os outros quatro
68 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

escapam de volta a Uberlândia. Meses depois, esforços investigativos


levam à prisão de todo o grupo.
As ações policiais integradas no Triângulo Mineiro em 2012 e
2013, tanto as de combate a roubo de bancos como tráfico de drogas,
desencadeiam conhecido efeito colateral: a migração da bandidagem
para outro lugar, no caso o sudeste de Goiás. A quadrilha presa em
Guimarânia juntava-se a outros grupos esporadicamente para em-
preenderem ações mais robustas. Juntos ou separados em roubos
orquestrados, esses bandos se reagrupam, se reerguem, exigindo
acompanhamento constante.
Somente em 2013 foram 86 ataques a caixas eletrônicos no Esta-
do de Goiás, uma explosão a cada quatro dias. Nesta época muitos
caixas ainda eram recheados com até R$ 190 mil cada, sua capaci-
dade máxima aproximada. Se arrombassem cinco, seria quase um
milhão de reais na mão grande, sem resistência. Depois os membros
dos setores de inteligência dos bancos foram se mexendo, trocando
informações e começaram a diminuir o montante do dinheiro, prin-
cipalmente à noite, a manchar as notas, inundar o local a ser atacado
com fumaça para atrapalhar a ação dos ladrões. Exemplos de cidades
sitiadas no sudeste de Goiás: Corumbaíba, Catalão, São Miguel de
Passa Quatro, Leopoldo de Bulhões, Vianópolis, Gameleira...
Como sempre, nós da PF vamos atrás.

Esquilo voador
Chegamos a um novo grupo em novembro de 2013. Com inte-
grantes remanescentes de um líder anterior, preso em julho, um dos
mais procurados do país na época, esta quadrilha continuou a andar
com as próprias pernas. Até trombar conosco.
Dia 2, Aparecida de Goiânia, churrasco familiar com a presença
de esposas, crianças e idosos em setor residencial de classe média-
-alta. Eis o delicado palco planejado à exaustão, de modo a garantir
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 69

a segurança da equipe em campo e também de parentes inocentes.


Como existem ladrões em todo canto, e cada vez mais articulados
entre si, a estratégia da Polícia Federal é acompanhar suas movimen-
tações, caracterizar o alcance interestadual ou mesmo internacional
destas empreitadas, traçar perfis de liderança dentro das quadrilhas
e torná-los alvos prioritários. É a melhor maneira de desmantelar re-
des criminosas, mesmo que temporariamente. Marginais de menor
inteligência e pouca coragem não sabem qual o próximo passo a dar.
Ficam iguais a “baratas tontas” e metem os pés pelas mãos.
No caso dos graúdos, como a importante dupla de criminosos
presentes na confraternização prestes a ser interrompida, as inves-
tigações da inteligência correspondem a uma preparação essencial
para surpreendê-los no primeiro vacilo, que é agora, quando estão
vulneráveis em companhia de familiares. Já temos um esboço proba-
tório de fotos, imagens e documentos contra eles. Só falta pegá-los.
Membros do serviço reservado do Grupo de Radiopatrulha Aé-
rea da PM de Goiás (GRAER) procuram o ponto exato da festa. As
coordenadas geográficas são imprecisas. Apesar de conseguirmos fa-
zer o rastreamento físico triangular do possível local onde se encon-
tram, com ajuda de satélites, resta aos agentes da lei cobrir um raio
de 500 metros, o que significa várias residências em ruas diferentes
a monitorar.
– São muitas casas na área, todas com muros altos, sem visibilida-
de interna – informa um dos P2.
– Certo, fique atento aos movimentos, aos sons, eles estão por aí e
querem comemorar – oriento da base da PF.
– Sim, mas é sábado. Praticamente todas tocam música – diz o
PM, confuso.
– Ok, seguinte: detectamos que eles adoram esse sertanejo novo,
da atualidade. Só ouvem isso. Não escutam nada mais tradicional ou
de raiz.
70 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

Detalhes que, em uma primeira análise, possam parecer inser-


víveis ou desnecessários salvam uma operação. Não devem ser des-
cartados. Daí a relevância de perfis bem elaborados, trabalho árduo
que demanda tempo, dedicação, sensibilidade e também, como neste
caso, conhecimento eclético da ampla gama musical de nosso belo
país, concorde ou não com certas melodias fabricadas sob compas-
so comercial discutível. A dica reduz as opções para duas casas na
mesma rua.
Uma toca:
“Gatinha assanhada, cê tá querendo o quê? Eu quero mexer, eu
quero mexer”.
A outra ecoa:
“Agora eu fiquei doce igual caramelo. Tô tirando onda de Camaro
amarelo”.
– Só pode ser uma delas. Estamos em bom lugar entre as duas –
afirma o PM à paisana.
– Vamos aguardar identificação – recomendo.
Após horas de campana, a certeza vem no início da tarde, quando
na casa do portão que se abre toca o som de badalado novo cantor
sertanejo. Dois indivíduos saem para renovar o estoque de bebidas.
Um deles, assaltante de banco mais procurado do Estado, suspeito
de explodir caixas eletrônicos em Cadalzinha dias antes, em 31 de
outubro. Mas o outro integrante da quadrilha continua lá dentro.
– Agora não. Deixem pra pegar os dois juntos. E dentro da casa
pra dar o flagrante – alerto.
Equipe auxiliar de policiais segue-os até birosca próxima. Às gar-
galhadas, descontraídos, retornam com engradado de cerveja e duas
garrafas de pinga. A ideia é essa: deixá-los se embriagarem à vontade
para que não tenham condições de revidarem à abordagem e pôr em
risco algum inocente.
Horas depois o helicóptero do GRAER sobrevoa a residência no
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 71

final da tarde, ainda com luz natural satisfatória. Quase todos estão
na piscina, paralisados com o espetáculo inesperado e ensurdecedor
do Esquilo Voador. Enquanto isso, seguindo a tática da surpresa e
beneficiando-se da distração geral, a força especial já escalou muro e
portão e intercepta imediatamente os dois alvos principais. Um deles
tentava correr para dentro da casa – onde havia armas, saberíamos
depois –, mas sem sucesso. Ação extremamente técnica, sem mortos
ou feridos, nenhum tiro disparado.
Só na casa de muro alto são apreendidos dois carros usados em
roubos a banco em Goiás, uma metralhadora 9 milímetros, uma pis-
tola 380, seis explosivos, rolos de cordel detonante e boa quantia em
dinheiro. Em outros dois endereços na região, mais dois comparsas
presos com dinheiro, duas escopetas, um fuzil AK-47, além da te-
mida metralhadora ponto 50, capaz de derrubar aeronaves como o
icônico Esquilo do GRAER.
As investigações continuam na região.

Estranho no ninho
Meia-noite molhada de 1º de dezembro de 2013. O movimento
de entra e sai é intenso na apertada porta iluminada por luz ver-
melha de bairro residencial em Aparecida de Goiânia, novamente.
No interior, homem acompanha mesa próxima lotada de uísque de
procedência irrastreável, cerveja, energético. E mulheres, claro, atra-
ídas por concentração bombástica de testosterona, grana e animação
sem limites de indivíduos esbanjadores. Admite a si mesmo ponta de
inveja por causa da vida espartana de controle físico, mental, finan-
ceiro e moral que leva. Os caras sabem curtir suas curtas existências,
isso é fato. Repreende seu devaneio e volta à real de seu guaraná zero,
como se cowboy preparado para o duelo fosse, ao receber chamado
no celular.
Identificação confirmada, mas abordagem arriscada no momen-
72 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

to, sinaliza. Uma zona de música baiana, ou seja lá o que for, e luzes
estroboscópicas fatiam a escuridão e deixam os gestos picotados,
quadro a quadro. “Sou o rei, sou o rei, sou o rei do puteiro, fi de rapari-
gueiro, fi de raparigueiro” está em looping e toca repetidamente noite
adentro, sem sair de cima. Definitivamente não é o melhor cenário
para deter bandidos violentos e eufóricos. E ainda falta um integran-
te da perigosa quadrilha envolvida com roubo a bancos na região.
Provavelmente o que fora ao Paraguai comprar armas e drogas, se-
gundo informações da Inteligência da Polícia Federal de Uberlândia.
O informe dos federais aponta ainda o inferninho como base opera-
cional do bando. É ali que eles comemoram ações bem-sucedidas e
também planejam futuros assaltos.
Missão cumprida, por ora, dispensa educadamente a branquinha
mignon que investiu nele boa parte da noite. Sua companhia cheirosa,
alegre, sua pele tenra, firme, sua boca profana, tentadora, com aquele
“quê” apaixonante que só as goianas têm, acabaram se transformando
em cobertura ideal para o seu disfarce. Além disso, ela lhe passou, in-
genuamente, importantes relatos sobre a estrutura da casa (janelas nos
quartos que poderiam configurar rotas alternativas de fuga, por exem-
plo), bem como sobre a dinâmica de seus principais frequentadores.
Já levantou informações, identificou pessoas. Cada minuto a mais
que ali permaneça pode colocar em risco a missão, a vida de inocen-
tes e sua própria existência. Isso se a música não o matar antes. Con-
fusão fortuita é capaz de jogar fagulha no barril de pólvora em que se
encontra atolado até o pescoço. É apenas um forasteiro de passagem,
situação que, por si só, atrai holofotes indesejáveis. Com humilda-
de, discrição e certa dose de submissão, conseguiu ser tolerado sem
maiores importunações. Hora de juntar-se à equipe do serviço re-
servado do Graer, sempre eles. Lá fora, seus colegas monitoram as
imediações de dentro de uma caminhonete e consultam cada placa
de carro dos clientes.
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 73

– Falta um, mas ele vem.


– Que horas?
– Isso não deu pra saber. Hoje ainda, talvez.
O jeito é esperar na surdina, de campana. Esses homens da P2 são
verdadeiros heróis sem rosto, fantasmas que se misturam a qualquer
ambiente sem chamar atenção, mestres da dissimulação corriquei-
ra, invisíveis a olhos viciados no panorama repetitivo que nos cerca.
Entram de cabeça, mergulham fundo nas entranhas do submundo
para ungirem-se de credibilidade e emergirem incólumes, dentro do
possível.
Amanhece e o vai e vem de clientes calientes arrefece. Muitos vão
embora de pernas bambas, felizes da vida. Menos a dupla da mesa
animada. Certamente não é só o energético. E o terceiro integrante
ainda não deu as caras.
Terreno baldio em frente à casa de tolerância infinita torna-se o
terceiro ponto de observação. Não tão próximo como o interior já
vasculhado e mapeado, porém bem mais perto do que a caminhone-
te estacionada a distância segura, contudo incapaz de amealhar de-
talhes cruciais para a invasão fulminante que se avizinha. Atolado na
lama, o veículo é de propriedade do oficial responsável pela atuação
de campo, já que a corporação não possui viaturas descaracterizadas
suficientes no momento. Para realizar o serviço, muitas vezes usam
os próprios recursos, algo natural no dia a dia de quem faz a hora.
O fantasma apaixonado fica no mato abandonado, junto ao co-
lega de farda, irmão de combate a quem sabe que pode confiar sua
vida. O sol castiga após noite chuvosa. Nem mesmo o capim alto
ameniza o calor, potencializado pela vestimenta grossa e camuflada
dos policiais.
Analisam os recursos disponíveis para tornar a espera suportável.
O arbusto de mamonas está distante do ponto ideal de observação,
mas suas folhas grandes e espalmadas podem servir muito bem de
74 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

abrigo e ainda incrementar a camuflagem. “Onde estão os pés de


mamona da minha infância? Por que é tão difícil achá-los agora?”,
questiona-se um deles, lembrando as “batalhas homéricas” a que se
lançava com amigos, todos portando o fruto espinhoso como muni-
ção. A única restrição era o uso de estilingue.
Vão até lá, cortam a folhagem e, mais uma surpresa, encontram
uma cadeira velha de madeira em meio a entulhos. Pegam tudo e
improvisam um belo cafofo no local combinado.
– Agora sim, posso até morar aqui – brinca o parceiro recostan-
do-se no assento corroído por cupins.
– Ahahahah, é mesmo! E ainda tem essa bela vista – completa o
outro, já com saudades da visita na noite anterior. Breve devaneio
traz à sua mente a lendária canção folk americana “House of Rising
Sun”, de autoria desconhecida, cantada e gravada por inúmeras ge-
rações de artistas. Conheceu de perto o poder sedutor e destruidor
de reputações que um local como este exerce sobre “muitos garotos
pobres”, entre os quais se inclui.
– Peraí, alguém tá saindo. Olha lá, reconhece? – o companheiro
passa o binóculo.
– É ela!
Duas mulheres entram em veículo estacionado em frente à casa.
Uma delas é a branquinha miúda. A outra, a cafetina. Ele sabe que
a primeira é inocente. Conversou bastante com ela, teria percebido
qualquer desvio. Defende seu ganha-pão com a profissão mais antiga
do mundo. Tem menino pequeno para criar, o pai sumiu, não teve
oportunidade de estudar, sempre a mesma cantilena, mais parecida a
um embuste marxista. Porém, é inofensiva. Já pela cafetina não bota
a mão no fogo. Avisa a uma das equipes para acompanhar o veículo,
pois elas podem levar a alguma pista.
Enquanto isso, outro grupo da inteligência do GRAER localiza a
proprietária do imóvel por meio de dados constantes no cadastro da
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 75

boate. A zona é regularizada! Após abordagem de rotina, procede-se


uma entrevista e a mulher entrega que alugou a residência para a
cafetina, que também é envolvida com conhecida quadrilha de rou-
bo a bancos. O círculo está fechando. O P2 sente certo alívio com
a notícia de que sua branquinha desembarcou na penitenciária da
cidade. Foi fazer um extra com os presos enquanto o prostíbulo não
abre, afinal passou em branco com ele na noite anterior. Pensando
que essas guerreiras têm vida fácil?
As horas calorentas andam devagar. A casa continua fechada, re-
cuperando-se da farra da madrugada. Os policiais no mato aguardam
pacientemente enquanto empurram barrinhas de cereais com água es-
tômago adentro. Sabem que não existe glamour neste tipo de trabalho.
Eis que, às quatro da tarde, chega o elemento que faltava. Encos-
ta o carro, demora bons segundos para sair, olha ao redor, descon-
fiado. Os PMs percebem, de longe, volume suspeito na cintura do
homem, sob a camisa. A porta da casa é rapidamente aberta e logo
fechada após sua entrada. Acionam o sinal verde para a equipe de
abordagem, com recomendação de máxima cautela porque os de-
mais bandidos possivelmente também estão armados. Desmontam o
cafofo, retornam a cadeira para o entulho e ficam distantes do local
a ser abordado. Passam o bastão. Agora é com a equipe ostensiva do
GRAER. Difícil vai ser esquecer a música chiclete desses “fi de rapa-
rigueiro” da banda Gasparzinho.

Penetração
No final da tarde, o arrombamento é extremado, virulento, defini-
tivo. Utilizam um aríete, cilindro maciço que detona porta, fechadura,
portal. Em segundos dominam a situação. Três homens e três mulhe-
res, alheios a tudo, não têm tempo para esboçar qualquer reação, a não
ser obedecer aos comandos dos policiais. Atônitos, não entendem o que
acabara de acontecer.
76 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

Durante a qualificação dos suspeitos – coleta de dados como


nome completo, nome dos genitores, alcunha, profissão, naturalida-
de, local e data de nascimento, residência, lugar de trabalho, estado
civil, grau de instrução –, o documento de identidade apresentado
pelo último homem a chegar, o mais frio por sinal, parece falsifi-
cado, apesar de bem feito. A experiente equipe policial então checa
um arquivo com mais de mil fotos cadastradas de ladrões de banco.
Correm imagem por imagem e identificam-no como um criminoso
tarimbado, foragido da Justiça de Minas Gerais e Goiás, autor de au-
daciosos assaltos a bancos, carros-fortes e joalherias, inclusive com
trocas de tiros com forças policiais.
– Você tem irmão gêmeo por acaso?
– Não, senhor. O documento é falso mesmo. Tenho uns rolos pas-
sados aí com a justiça, sabe? Mas aqui não estamos fazendo nada
demais.
– E que papeis são esses do Paraguai no seu carro? O que foi fazer lá?
– Só a passeio, senhor. Fui comprar umas muambas pras amigas
– solta riso debochado no canto da boca.
Mentira tem perna curta quando policiais bem treinados usam a
técnica de entrevistas em separado com os abordados. Contradições
em questões pontuais logo aparecem, e máscaras caem.
– Temos o endereço de sua residência.
– Hein!? Quem passou? – a autoconfiança desmorona.
– Isso não é da sua conta. Você nos dá permissão para irmos até
lá agora? De qualquer forma o mandado judicial chegará em breve.
Preocupado com sua esposa, que está em casa com os dois filhos
pequenos e poderá ser implicada como cúmplice, ele confessa que
guarda no local um fuzil Bushmaster XM15, calibre 556, juntamente
com dois quilos de pasta base de cocaína. Tudo trazido mesmo do
Paraguai, escondido em um fundo falso no para-choque traseiro do
veículo.
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 77

É comum que armamentos sejam batizados com o nome de seus


criadores ou financiadores. Essa premissa vale para o destruidor AK-
47 (do russo Avtomat Kalashnikova), fuzil automático inventado por
Mikhail Kalashnikov em 1947. Outros exemplos: Samuel Colt (nor-
te-americano), Gaston Glock (austríaco), Ceská Zbrojovka (tcheco,
logo abaixo). Será que o Bushmaster, fuzil de assalto largamente usa-
do pelas tropas ianques, remete a algum nome conhecido de família
ligada secularmente a petróleo, armas e poder? Ou denota apenas o
sentido literal de “Mestre da Selva”?
– Senhor, acrescenta aí mais um item pra lista – interrompe um
dos policiais que vasculham as dependências do puteiro. – Olha o
que achamos em um dos quartos.
– Veja só, uma pistola CZ 9 milímetros. Fabricação tcheca, não é
isso? Temos algo mais a encontrar? Será que não estamos procuran-
do direito?
– Tudo bem, é minha sim. E fique sabendo que, se eu tivesse tido
tempo, a minha prisão não seria moleza assim não. Vai ter volta – o
bandido fulmina o oficial com olhos de matador sem remorso. Infe-
lizmente fugiria da penitenciária de Aparecida na madrugada de 2 de
abril de 2017. Mais um para a lista de preocupações do nobre policial
fardado, que ainda tem de se virar para tirar sua caminhonete parti-
cular do atoleiro. Ao término da operação, ele e seus companheiros
são lama da cabeça aos pés. Entretanto, sabem perfeitamente que
toda essa sujeira não é deles.
Consolidando os dados de 1º de dezembro de 2013: quatro sus-
peitos presos, incluindo a cafetina, além da apreensão de fuzil, pis-
tola, farta munição, cocaína, carro adaptado ao transporte de armas
e drogas, documentos falsos (foram localizadas outras cédulas em
branco), dinheiro vivo, cheques e um jammer, aparelho que bloqueia
o rastreamento de veículos, muito usado em roubo de cargas. Des-
cobriu-se ainda um plano em andamento para assalto a um banco
78 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

em Ananindeua, no Pará. Já haviam até alugado uma casa ao lado da


agência bancária.
Dezembro fecha com a prisão de um remanescente desgarrado
destas quadrilhas, capturado em uma unidade de saúde da cidade
goiana de Marzagão. A barata tonta explodiu-se ao tentar detonar,
de forma atabalhoada, um caixa eletrônico. Sua mão de caveira ficou
com carpo, metacarpo e falanges expostos como em um filme B do
Zé do Caixão. Transferido ao Hospital Municipal de Caldas Novas e,
depois, ao Hospital de Urgências de Goiânia, teve o membro supe-
rior direito amputado.
***
Tamanho entrosamento entre Polícia Federal de Uberlândia e
Polícia Militar de Goiás, nestes exemplos pontuais de Aparecida de
Goiânia, não ocorre à toa, do dia para a noite. Na verdade, nada tem
a ver com as instituições de segurança pública em si. Infelizmente.
Mas sim com movimento espontâneo, arranjo informal de policiais
de diferentes forças e Estados que não se contentam com canais tra-
dicionais para partilhar informações cruciais à elucidação de crimes
violentos que tanto afligem a população.
Prisões seguidas e seguras representam um baque para quadri-
lhas da região, mas não o fim dos crimes. Investigações policiais nun-
ca devem se encerrar com a captura de determinado grupo. O vácuo
que bandidos deixam ao serem presos fatalmente é preenchido por
outros. E os que ficam atrás das grades continuam a atuar de den-
tro das cadeias superlotadas, não há como negar. O jeito é iniciar
a montagem de novos perfis, em um ciclo ininterrupto de trabalho
investigativo.
Foi daí que surgiu a ideia de, em outubro de 2013, promovermos
encontro de policiais de diversas partes do país. Todos vieram por
conta própria participar de um almoço no Restaurante Fazendinha,
em Uberlândia, onde decidiríamos as estratégias de como trabalhar
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 79

de forma integrada sem as formalidades burocráticas que engessam


o nosso sistema de segurança pública. Neste encontro estiveram pre-
sentes algumas lendas vivas do combate à criminalidade violenta e
ao tráfico de drogas.
O principal produto desta aproximação foi a criação do grupo AB
Brasil, de Alpha-Bravo (Assalto a Banco), composto por abnegados
policiais insones em um aplicativo de mensagens. Estreitar relações
e compartilhar dados para as ações de inteligência e campo fluírem
mais e melhor são os objetivos deste fórum de discussão, aberto 24
horas por dia, sete dias por semana.
Funciona que é uma maravilha, dada a seleção rigorosa de no-
vos convites. Confiança, competência, disponibilidade, compro-
misso, disposição de ir lá e resolver são requisitos indispensáveis
para fazer parte desta confraria armada de muita vontade de “mu-
dar o mundo”.
Assim chegamos ao Patrão, em Morro Cabeça no Tempo, apre-
endemos vários carregamentos do Mosca Branca, desbaratamos
quadrilhas de roubo a bancos no Triângulo Mineiro e no sudeste de
Goiás. Assim conheceríamos um novo personagem, envolvido com
roubos de cargas e assaltos a bases de valores em São Paulo. Aperte o
cinto, a pauleira vai piorar!

Mestre dos disfarces


– Oi, você é novo? Nunca te vi por aqui.
– Sim, começando hoje, graças a Deus!
– Conheço esse sotaque arrastado. Baiano, né?
– Com muito orgulho, senhor.
– Parabéns, seja bem-vindo! Você vai gostar do pessoal. A gente
brinca, mas é muita responsabilidade, sabe?
O estoquista sênior, muitos anos de casa, espécie de líder infor-
mal de chão de fábrica, assunta funcionário recém-contratado en-
80 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

quanto caminham até o portão principal da central de distribuição


de conhecida loja de departamentos em São Paulo. Estranha o fato
de seu supervisor não tê-lo avisado. Cultiva bom relacionamento
também com os superiores e costuma receber informes deste tipo
com antecedência, até mesmo para atuar como tutor dos novatos,
dada a sua experiência.
– O senhor trabalha há muito tempo aqui, não é mesmo? Deve
conhecer tudo isso como a palma da sua mão – o novato esperto
puxa conversa já em frente ao portão. Lisonjeado com a pergunta re-
tórica, reconhecimento explícito de sua influência, o estoquista deixa
escapar sorriso de satisfação ao acenar positivamente com a cabeça
para o coordenador de segurança do lado de dentro, que logo aciona
a abertura do portão.
É meia-noite em ponto, hora da troca de turno dos funcionários
em início de madrugada de 2 de maio de 2015. Por segundos deter-
minantes, chega a esquecer a cisma que lhe causaram um “olho de
vidro”, bigode esquisito e cabelos sem vida, duros, de seu simpático
interlocutor. “Cisma boba, ora. Deve ser mais uma moda dessas aí”,
ameniza a desconfiança. “E ainda usa uniforme impecável e crachá
da empresa. O que pode haver de errado?”.
– Sabe, você é bom observador – afirma o vaidoso veterano já
dentro do depósito. – Terá um futuro promissor na empresa e eu
posso ajudá-lo a... – é interrompido bruscamente.
– Escuta aqui, seu babaquara enxerido. Meu futuro eu faço agora.
Reúne o pessoal todo ali na frente. E não faz nenhuma besteira que
eu tô de olho – o Baiano até então boa-praça saca uma pistola e muda
o tom e o semblante da água para o vinho.
Outros dois comparsas de perucas e bigodes postiços, até então
incógnitos na turma do fundo com fuzil e metralhadora, rendem a
dupla de vigilantes da entrada, incluindo o coordenador da área.
– Você, fica quietinho aí. Não vem dar uma de herói não! Sabe-
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 81

mos onde tu e sua família moram – não brinca em serviço e enqua-


dra também o chefe da segurança.
– Pelo amor de Deus, faço o que vocês quiserem – implora.
– Sim, eu sei. É claro que vai fazer.
Logo imbicam duas carretas e oito caminhões de menor porte,
todos com logomarca da empresa e em situação corriqueira, acima
de qualquer suspeita.
Acompanhados do chefe da segurança, entram na sala de contro-
le onde outros três vigias conversam alheios à invasão. Apreendem
cinco revólveres, quatro coletes balísticos e também computadores
que armazenam imagens das câmeras internas de segurança. Os vi-
gilantes são instruídos a permanecer em seus postos, desarmados,
como se nada de anormal estivesse acontecendo.
O bando recolhe ainda os telefones celulares dos funcionários
rendidos, posiciona capetinhas (bloqueadores de sinal) em pontos
estratégicos e vai direto à sala-cofre dos eletroeletrônicos, onde está
guardada a sete chaves a nata do aparato tecnológico descartável
atual, que tanto fascina usuários sem distinções de classe. Usam os
próprios trabalhadores do depósito para encher os caminhões de ce-
lulares, tablets e laptops, além de televisores de última geração. Uma
carga estimada em mais de R$ 100 milhões, saberíamos depois.
Como imobilizar tanta gente para que não deem com a língua nos
dentes antes de um momento seguro? São cerca de 80 funcionários a
testemunhar quatro horas de ação meticulosamente planejada. Tran-
quilos, os bandidos trancam todos no cofre.
– Não se preocupem. Vocês têm uns cinco dias de ar aí dentro.
Aproveitem o fim de semana!
Baiano é só felicidade. “O velhote está certo. O futuro é roubo de
cargas!”, comemora antes de entrar na carreta para sumir por outra
boa temporada.
***
82 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

Imagina pegar um bicho solto nordestino, dotado da coragem


naturalmente seletiva de um novo-cangaceiro, e inseri-lo na en-
grenagem organizada da criminalidade paulista. Só pode dar o que
não presta. Esse é o breve currículo do Baiano, que tem evoluído
gradativamente, sem a afobação suicida de jovens como o Patrão,
por exemplo, e vem conquistando espaço em mercado mortalmente
competitivo. Esta história revela como o crime organizado ultrapas-
sou as barreiras estaduais. O Baiano sai de sua terra natal para criar
asas em São Paulo.
Já foi preso algumas vezes por crimes menores, mas, quando faz
seu nome na praça, fica difícil ignorar propostas tentadoras. Perce-
be um nicho interessante para alavancar de vez sua carreira: roubo
de cargas. Não é tão violento como os assaltos a banco na tora com
os quais está acostumado. O risco de embates é reduzido porque,
em nossa avaliação, em mais de 80% dos roubos de cargas o pro-
duto transportado (ou guardado) é dado. Ou pelo motorista, ou
pelo transportador, ou pelo segurado. Suspeita-se também da par-
ticipação de maus policiais, que fariam convenientes vistas grossas à
bandalheira. O cara vai lá, pega e repassa. Todos ganham, menos a
seguradora.
O assalto à central de distribuição do magazine famoso, numa
cidade perto de Campinas, no Estado de São Paulo, é mais compli-
cado por envolver muitas vítimas. Cooptar ou intimidar um e outro
mais vulnerável, vá lá. Porém, usar tal tática com 80 pessoas de uma
vez resulta em empreitada praticamente impossível. Daí o plano ela-
borado dos disfarces e a adesivagem dos veículos. Mesmo assim, só
para garantir, pesquisam a vida do chefe de segurança, com a ajuda
de policiais corruptos, e ameaçam sua família. Além disso, sabem
exatamente qual o tipo de carga querem, se tem como ser rastreada
e já dispõem de contrabandistas receptadores para escoamento do
material.
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 83

O lado negativo, para o Baiano, é a inevitável exposição midiá-


tica que roubos espetaculares assim atraem. Passa a ser procurado
por este e outros assaltos similares, como o do terminal de cargas
do Aeroporto Internacional de Viracopos, em Campinas, de onde
foram levados R$ 11 milhões em processadores de celular, em feve-
reiro de 2015; e o de uma fábrica multinacional coreana, igualmente
localizada na cidade campinense, com a subtração de R$ 20 milhões
em tablets, celulares e notebooks, em julho de 2014. Para piorar sua
situação, o Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Orga-
nizado (GAECO), vinculado ao Ministério Público do Estado de São
Paulo, entra na investigação.
Foragido da Justiça, Baiano cairia no radar da Polícia Federal, en-
tretanto, por outros motivos.

Na surdina
Pressão alta, estresse, cansaço constante, males súbitos. Estou em
parafuso? Em abril de 2015 peço transferência a Campinas para me
cuidar em um dos melhores centros de saúde da América Latina,
na Unicamp. Único problema: entro de cabeça no olho do furacão,
cercado de atividades criminosas por todos os lados. Só posso ter um
para-raios de confusão...
Distante cerca de 100 km da capital do Estado e com população
estimada em mais de um milhão de habitantes em 2015, Campinas
abriga o maior aeroporto intermodal da América Latina, recebendo
em média dez mil toneladas de cargas importadas por mês. Tam-
bém sedia o maior parque tecnológico do interior de São Paulo, o
que acarreta elevado fluxo de aparelhos e componentes eletrônicos
em rodovias como Anhanguera, Bandeirantes e Dom Pedro I, área
então conhecida como “Triângulo das Bermudas das Cargas” – que
compete em igual importância com a região de Uberlândia, no Tri-
ângulo Mineiro, aglutinadora das principais empresas de logística do
84 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

país. Só em 2014 a cidade de Campinas registrou uma média de dois


roubos de carga por dia.
O grupo do qual Baiano faz parte como um dos líderes, e que
também empreende assaltos a bancos, comporta pelo menos 60 cri-
minosos que aterrorizam a região. Extremamente organizada e pro-
fissional, a quadrilha distribui tarefas bem definidas a seus integran-
tes, dividindo-se em células menores, além de aliciar informantes
de dentro das empresas a serem assaltadas para repassarem detalhes
sobre os produtos e o esquema de segurança.
É neste cenário tenso que me apresento na Base de Inteligência da
PF local, uma unidade secreta, sem identificação, estruturada em bair-
ro residencial de classe média-alta. Casa grande com piscina e vários
dormitórios para receber equipes de policiais à paisana. Churrascos
ocasionais são “organizados” para justificar tantos machos-alfa con-
finados em um mesmo recinto. Os vizinhos, sempre muito discretos,
nem desconfiam. Toda a precaução ocorre para preservar nossa iden-
tidade e autonomia investigativa, já que não sabemos quem das forças
policiais pode estar envolvido nos desmandos da localidade.
Iniciamos nosso trabalho de formiguinha com o bom e velho le-
vantamento de perfis. Mapeamos quem é quem por meio de fotogra-
fias, filmagens e relatos de colaboradores. Estabelecemos parcerias
com policiais confiáveis da PM – Batalhão de Ações Especiais de Po-
lícia (BAEP), Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (ROTA), Comandos
e Operações Especiais (COE) –, sempre trocando informações com
grupos pontuais em aplicativos de mensagens instantâneas e, prin-
cipalmente, pelo AB Brasil, atuante como nunca. E aguardamos a
melhor hora para agir.
As pancadas nos assaltantes de carga vêm em sequência. Em 2015
são 166 prisões atribuídas às investigações de nossa base secreta. Um
estrago e tanto. Expandimos a atuação também para a região de Jun-
diaí e Grande São Paulo, com foco na zona norte, leste e divisa com
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 85

o Parque Novo Mundo, junto a Guarulhos. Mas nada de acharmos o


Baiano, que praticamente não se comunica e sabe se esconder como
ninguém. Além disso, bandidos mais bem relacionados, vamos dizer
assim, ganham liberdade sumária logo após repetidos flagrantes.
– Os meninos tão presos aí, mas são trabalhadores, tão produzin-
do – diz o advogado.
– Parece que foram pegos com a boca na botija, doutor – replica
o delegado.
– Nada, estavam ali na hora errada, no lugar errado – atenua.
– Sei.
– Veja bem, o que é preciso pra soltar os rapazes? – direto ao
ponto.
– Cento e cinquenta mil – dá o preço na lata.
Muito difícil engolir a seco corrupção deslavada. Sabemos que al-
gumas pessoas lucram com nossa produtividade em prender ladrão,
e não é a sociedade.
Por vezes a tática de infiltração virtual controlada é recomendada
para disseminar desconfiança, colocar uns contra os outros por meio
da invasão de rede criminosa como um vírus do avesso, usando as
mesmas armas e subterfúgios sórdidos dos bandidos para desnortear
quadrilhas estruturadas.
– Hoje me ligou um cara de número privado falando uma porção de
besteira – diz um preocupado dono de galpão, receptador de produtos
roubados.
– É? Que cara? Falou o quê? – pergunta o advogado de forma
meio displicente, conhecedor profundo dos meandros e das brechas
da lei.
– Disse que a gente tá fazendo acordo com os polícia errado, que
eu vou sofrer as consequência. Xingou o delegado de tudo que é pa-
lavrão, xingou o senhor também. Até pra minha mulher esse desgra-
çado ligou. Ela tá desesperada.
86 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

– Como assim? Que treta é essa? – perde um pouco da arrogância.


– Fui falar com os irmão lá, certo? Disseram que não foi nada
deles não, mas que é assim mesmo. Quando pegam, tem que pagar,
mesmo que sejam de outra área. Isso é praxe.
– Será, mano? Como ele fala? É estilo de malandro ou policial?
– Ele me pegou desprevenido, fiquei nervoso. Tô esperando ligar
de novo pra gravar. Mas é 90% de chance de ser conhecido nosso.
Conhece todo o esquema.
– Que isso, meu? E falou mal de mim também, é?
– Que o senhor corre pra dar dinheiro pros polícia e tal. Bem, é só
pro senhor ficar com as antena ligada, ok?
– Sim, claro, claro. Obrigado por ter ligado.
Nossa Inteligência passa-se por polícia e ladrão e instala rebuliço
que não é brincadeira. Estratégia ousada desvenda nomes e funções
de outros quadrilheiros (sim, houve mais ligações) e contamina irre-
versivelmente engrenagem até então perfeita.
Depois de estocada forte dessas, com identificação e prisão in-
clusive de policiais envolvidos, delegacias vizinhas descobrem que
a Polícia Federal está por trás, aliada ao GAECO, e são obrigadas a
puxar o freio de mão nos intentos de corrupção desvairada. Não tem
conversa. Até a Polícia Rodoviária Federal percebe a queda vertigi-
nosa de roubo de cargas em região das rodovias Presidente Dutra e
Fernão Dias, antes endêmica.
Vale destacar um princípio inegociável que seguimos como um
mantra sempre que nos dispomos a trabalhar em conjunto com ou-
tras equipes especializadas da polícia, seja civil, militar, rodoviária
ou até mesmo da federal. Atuamos cirurgicamente no acompanha-
mento de grupos criminosos específicos que estejam assolando de-
terminada área. Não escolhemos quem será investigado, agimos em
cima dos fatos. Os suspeitos é que se colocam de forma temerária em
nosso caminho inabalável. Nestes casos, não importa se é político,
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 87

policial, mãe de ladrão. Se cair na rede, vira peixe e então vamos


para cima como uma locomotiva firme nos trilhos. Não podemos e,
o mais importante, sequer cogitamos desviar um milímetro que seja
do foco em solucionar crimes. De imediato, já na primeira conversa,
deixamos avisado todo e qualquer postulante a compartilhar infor-
mações de inteligência conosco: “Se ficar parado no trilho, na frente
do trem, será atropelado. Não se envolva!”.
Para atingir tal resultado, é preciso imersão, talento, coragem.
Não é para qualquer um. Digo isso porque, no local resguardado do
Grupo Especial de Investigação, há um policial que nunca prendeu
alguém, não possui informantes, mas se acha superior por ter uma
inteligência específica e fora do comum, é verdade, para decifrar nú-
meros, códigos, situações que envolvam lógica pura. Tentamos aler-
tá-lo para o fato de que “polícia” não é apenas teoria abstrata, muito
menos matemática. E ele, fechado em seu mundo autista, pretenden-
do resolver sozinho todas as intrincadas equações reais da segurança
pública nacional, não nos “dá bola”.
O que faz a diferença em um policial competente, necessariamen-
te, é a experiência acumulada do dia a dia, sua bagagem. É saber
trabalhar em equipe, ter tirocínio desenvolvido após anos de enfren-
tamento de situações adversas. Não existe manual ou gênio autos-
suficiente que ensinem a jogar o jogo dos criminosos, instigando-os
a falar entre si e a entregar de maneira involuntária o organograma
da organização, só para exemplificar. Isso se chama trabalho com-
partilhado, integração sem vaidades. É ter ciência de que já errou e
usar tal histórico para minimizar embates futuros. É não saber exa-
tamente o que fazer para dar certo, mas saber como fazer para não
dar errado.
– Se o suspeito não usa celular ou um aplicativo de mensagens
instantâneas, como você faz pra localizá-lo?
– Ah, aí não sei, não é comigo – desconversa.
88 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

– Não funciona assim. Trabalho de inteligência não é uma receita


de bolo.
Incapaz de pensar fora da lógica, ele emudece e se isola ainda
mais do grupo de investigadores. É convidado a deixar a base como
promessa não concretizada.
Pouco antes de sua saída, só para ilustrar, chegamos a um trafi-
cante internacional de drogas. Árabe, ligado a outro traficante es-
trangeiro, este de origem libanesa e em patamar mais elevado na
hierarquia criminosa. Essa passagem serve também para mostrar
que, apesar de termos crimes contra o patrimônio como atribuição
principal em nossa especializada, não escolhemos a modalidade cri-
minosa em que vamos atuar. Se cruzar nosso caminho, tentaremos
resolver. Neste caso deu certo.
Detido no entorno de Campinas, onde se diz cansado de reitera-
das extorsões policiais entre Sumaré e Nova Odessa (não desta vez,
é bom ressaltar), esse pacato, mas frio traficante muçulmano afirma
já ter sido preso e torturado em diversas partes do mundo, inclusive
no Brasil.
Para reforçar sua “importância” e quem sabe angariar alguns vo-
tos de confiança nossos, começa a abrir informações valiosas que diz
ter recebido de seu superior libanês – famoso por construir man-
são de R$ 40 milhões e atualmente foragido após receber progressão
para o regime semiaberto. Que coisa! Sabemos que o árabe falastrão
não passa de um pau mandado, mas damos corda à sua tentativa de
nos impressionar.
– Drogas e armas andam juntas. Uma não sobrevive sem a outra.
Existe uma rota de tráfico de armas que vocês nem desconfiam – diz
em tom anasalado e cadenciado pelo esforço de escolha das palavras.
– O que você está falando?
– É verdade, já passou muita, muita arma por ali – solta aos pou-
cos, esperando despertar nosso interesse.
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 89

– Ali onde? Desembucha logo – um colega perde a paciência.


– Desembucha?! Que palavra engraçada...
– Ah, porra, deixa esse árabe pra lá.
– Calma, senhor. Vejo que vocês são sérios. Difícil encontrar poli-
ciais assim. Só sei que são produzidas no Azerbaijão, mandadas para
o Canadá, descem a Miami e chegam ao Rio em aviões comerciais.
Apesar de estapafúrdia em um primeiro momento, a revelação
é anotada para posterior checagem. Continuamos a conversar e rir
com essa figura de traços culturais e linguísticos tão diferentes. Já na
delegacia, todos descontraídos aguardando os trâmites, ele muda o
semblante, coça a cabeça e pergunta em um canto:
– Vem cá, esse aí é polícia? Não foi ele que me prendeu não, né? –
refere-se ao policial autista.
– Não, não, foi não – responde um colega carioca de forma nega-
tiva e veemente. Estamos a certa distância, e o agente caladão nada
percebe.
– Ah, bem. Dá pra ver que esse menino foi criado por vó – alivia-se.
Complicado segurar o riso, viu?
Cerca de um ano após o episódio, em 1º de junho de 2017, o país
fica estarrecido com a apreensão de 60 fuzis de guerra no Aeroporto
Internacional do Rio de Janeiro: 45 AK-47, 14 AR-10 e um G3. Po-
rém, nesta mesma rota, outras 75 cargas clandestinas semelhantes
podem ter derramado pelo menos 1.043 armas e centenas de milha-
res de munições para a principal facção criminosa do Estado entre
2014 e 20174.
Dados oficiais da Secretaria de Segurança revelam a situação de
penúria do Estado fluminense, com crescentes apreensões de fuzis:
279 em 2014, 344 em 2015, 369 em 2016 e 499 em 2017 – neste úl-

4. Denúncia feita pelo Ministério Público Federal, em 2 de agosto de 2017, e aceita pela Justiça.
90 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

timo período um recorde histórico, com 32,5% a mais deste arma-


mento confiscado em relação a 2016.
Sabe-se que a fronteira com o Paraguai, país onde a venda de ar-
mas é legalizada, representa a maior porta de entrada de material
bélico contrabandeado para o Brasil. Mas descobrir uma rota direta
Miami-Rio, via aeroporto, é surpreendente. O envolvimento de ser-
vidores públicos é escancarado neste caso.
Temos ainda outras sangrias factuais devido a questões sociopolí-
ticas e econômicas de nossos vizinhos, como o esfarelamento da Ve-
nezuela bolivariana – desesperada por fazer dinheiro com armas em
troca de condições básicas de sobrevivência – e a dissolução das For-
ças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) enquanto grupo
paramilitar. “Para que tanto armamento agora?”, devem pensar os
ex-guerrilheiros ao olharem para os abastados criminosos brasilei-
ros. Qualquer leigo em Economia entende a lei da oferta e da deman-
da. “Juntar a fome com a vontade de comer” é a melhor maneira de
realizar negócios satisfatórios para ambos os lados.
Duas apreensões feitas pela Alfândega Nacional da Bolívia (ANB),
em fevereiro e março de 2017, também chamam atenção. Nada me-
nos do que 53 armas longas (entre fuzis, metralhadoras e carabinas),
41 pistolas e munições variadas entrariam no Brasil escondidas em
fundos falsos de contêineres de caminhões. Fabricado em nações
guerreiras por excelência – Hungria, Sérvia, Rússia e, claro, Estados
Unidos –, o armamento saiu de Miami (de novo!), seguindo por Re-
pública Dominicana, Peru, Chile até chegar à Bolívia por terra. De
Puerto Suárez, invadiria a fronteira com Mato Grosso do Sul para
abastecer facções criminosas, sempre elas.
Contudo, como números existem para serem batidos, março de
2019 desponta como o mês em que ocorreu a maior apreensão de
fuzis da história do Rio de Janeiro. Após buscas em endereços rela-
cionados a um certo PM reformado (vizinho do presidente da Repú-
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 91

blica!), suspeito de integrar a milícia carioca e matar covardemente


uma combativa vereadora da Cidade Maravilhosa e seu motorista,
a polícia descobre, por acaso, exatos 117 fuzis incompletos (apenas
sem o cano), prontos para a montagem final.
No total, tente calcular quantas armas de grosso calibre passaram
(e continuam passando) e estão hoje nas mãos sujas de seus destina-
tários...
***
Voltando à linha do humor (sim, é possível rirmos nesse ofício!),
iniciamos investigação de um pessoal da Paraíba que vinha assal-
tando bancos no interior de São Paulo, principalmente na região de
Cotia e Sorocaba. Difícil de localizar, o líder valia-se do já conhecido
esquema do cangaço noturno e extrema violência. Até que intercep-
tamos um certo Azulão, ladrão sem cacife para virar alvo da PF, en-
carregado de fazer levantamentos em agências de Correios e casas
lotéricas para pequenos roubos, mas ambicioso. Tanto que se liga
ao Paraíba. Então, por meios cruzados, começamos a acompanhá-lo.
Após alguns roubos independentes na região de Campo Limpo e
Capão Redondo, ele se direciona ao ABC Paulista e à área de Embu
das Artes e Carapicuíba. Como só se comunica por aplicativos de
mensagens instantâneas, saco meu celular bombinha (frio, o mesmo
aparelho utilizado na infiltração virtual contra os assaltantes de car-
gas) e insiro o Azulão na lista de contatos.
Perfil: linda jovem loira, 22 aninhos, vinda do interior do Paraná
para tentar a sorte na cidade grande. Envio mensagem enigmática
para ele, mas logo peço desculpas pelo “engano”. Visgo preparado, o
negro mulherengo e notívago, doido por uma branquinha, faz con-
tato imediato e puxa conversa:
– Oi, quem é você, amor?
Reluto alguns minutos e então entro no jogo dele aos poucos, sem
expor a “menina”.
92 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

– Ninguém não. Botei o número errado.


– Errado nada, esse número é muito certo, gracinha kkkkkkk!
– É que não me acostumo com essa tecnologia toda não. Sou do
interior, sabe? – enceno o clássico papel de donzela frágil e inocente.
– Você estuda, trabalha... namora?
– Namoro não, os homens não querem nada sério. São todos
iguais.
– Oh, minha flor, acredita em destino?
– Acho que sim...
– Pois você não me chamou por engano não.
Enquanto teclo, às gargalhadas, que pretendo casar e ter filhos um
dia, mas que antes preciso estudar para arranjar um bom emprego
porque a vida não está fácil para ninguém, um colega da base em
Campinas se aproxima e começa a bisbilhotar. Logo todos param o
que estão fazendo, menos o autista, e vejo-me cercado de marmanjos
se acabando de rir do meu jogo de sedução.
Aposto em um bom gancho para deixá-lo bem interessado antes
de encerrar a conversa. Como sei que frequenta localidades próxi-
mas a Osasco para fazer seus roubos, comento que irei passar uns
dias na casa de uma suposta tia que mora por lá. O cara endoida e
suplica para nos conhecermos pessoalmente. Xeque! Hora de dar um
gelo no ladrão safado. Qual homem nunca foi vítima deste maquia-
vélico estratagema feminino?
Faço charme por dois dias a fim de aumentar a tensão. Ele não
aguenta e tenta ligar. Não atendo.
– Assim o coitado desiste de você! – dá palpite o policial do lado,
aflito como um noveleiro assíduo de tramas mexicanas, preocupado
com o desenrolar dos próximos capítulos.
– Calma que eu sei o que faço – respondo no controle da situação.
Finalmente, retomo o contato, explico que estou na luta por em-
prego e que não tenho créditos.
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 93

– É melhor usar o wi-fi – sugiro.


Com o objetivo de qualificar o Azulão, torno-me um pouco mais
insinuante e pergunto seu nome. Ao que retorna com o prenome
verdadeiro e continua a babar uma porção de baboseiras, que está
interessado em mim e tal...
Em mais um movimento ousado, mando uma foto de corpo in-
teiro, algo que ele pedia insistentemente. Escolho a dedo no meu
banco de dados. Sou realmente estonteante! E ele pira.
– Vamos nos encontrar agora! Fala onde você está que eu te bus-
co. Esquece sua tia de Osasco. Vem morar comigo, mina!
– Tenho que procurar emprego hoje de novo. À noite te chamo
pra gente se conhecer um pouco mais, ok?
– Ok!!!
Ele já começa a chamar às seis e meia da noite. Ignoro. Está lou-
co, completamente entregue aos encantos de sereia da Ilha do Mel,
ponto turístico paradisíaco na embocadura da Baía de Paranaguá,
onde prometo levá-lo. Dou mais um tempo para o pobre diabo en-
cher a cara e então apareço. O tema musical dos protagonistas desse
novelão poderia ser perfeitamente “Love hurts”, da banda Nazareth.
– Vai um vinhozinho aí pra apimentar o romance? – Carioca, o
mais sacana dos espectadores, bota pilha. A gargalhada é geral.
Lá para a meia-noite, após mais de duas horas de papo:
– Agora é sua vez. Manda uma foto sua, vai! – posiciono-me para
o ataque final.
– Tenho não, princesa. Vamos deixar isso pro encontro de ver-
dade.
– Hein? Tudo até agora foi mentira pra você?
– Não, não, de jeito nenhum, quis dizer cara a cara.
– Então tira uma selfie sua, pelo menos do rosto. É só isso que te
peço – xeque-mate.
Não demora muito e chega imagem de monstruosidade horripi-
94 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

lante. Nunca vi cabra da peste tão feio na minha vida. A essa altura os
colegas rolam no chão de tanto rir.
– Agora vai ter que casar ahahahahah! – sacaneia o Carioca.
De posse de nome e foto do Azulão, envio os dados no dia seguin-
te ao nosso melhor especialista em fontes abertas, um agente federal
de Sorocaba que consegue aglutinar tudo sobre o indivíduo e o qua-
lifica bem rápido. Para não deixar desconfianças no ar, mantenho o
namoro a distância por mais uns dias. Corto o coração dos colegas
noveleiros ao terminar tudo com ele. Desculpa: “reatei namoro com
antiga paixão da minha cidade natal e voltarei ainda hoje”. Sobem os
créditos finais.
Uma semana depois Azulão é preso ao roubar uma loja em Dia-
dema. Era o que precisávamos para chegar ao Paraíba. Mas esta é
história para outra novela.
***
Recinto de investigações secretas da PF em Campinas, 6 de no-
vembro de 2015, 8 horas da manhã. Nada de novo no front. Tranqui-
lidade relativa impera desde quando derrubamos grande parte das
quadrilhas de roubo de cargas atuantes na região. Toca o telefone.
– Seguinte, pessoal, atacaram uma base de transporte de valores
aqui de Campinas nessa madrugada.
– Tá, mas essas bases são como um bunker. Eles seguraram até a
chegada da PM, né? – questiona um agente.
– Vocês não estão entendendo. Cerca de 30 homens armados
com fuzis e metralhadoras explodiram tudo e levaram muita grana
ao que parece. O Gate [Grupo de Ações Táticas Especiais] está vindo
de São Paulo porque eles deixaram para trás alguns explosivos na
porta da base.
– Vamos lá ver isso!
Concreto despedaçado, vergalhões retorcidos, carros-fortes tom-
bados e notas de cem reais chamuscadas anunciam – aos gritos e
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 95

sirenes e alarmes – o terror que se aproxima. Estamos no cenário de


guerra tentando processar o ocorrido quando cai na rede de rádio ou-
tro assalto em curso, desta vez a uma agência bancária que acaba de
abrir no centro de Itupeva, localizada a uns 20 minutos da empresa de
transporte de valores destruída.
Também fortemente armados, bandidos tentam assaltar o banco
e são surpreendidos por policiais que passam ali na hora. Na fuga
atiram no helicóptero Águia, que auxilia na perseguição, apesar de
não ser blindado. Nenhum tiro atinge a aeronave. Deslocamo-nos
imediatamente para lá e chegamos dez minutos depois do primeiro
conflito com a PM, com alguns assaltantes mortos, outros feridos,
mas antes da polícia científica.
Marginal de alta periculosidade, bastante renomado na região,
encontra-se morto dentro do carro, ainda pingando sangue fresco.
Logo é reconhecido como integrante do grupo do Baiano. Eu e meu
colega agente nos entreolhamos e pressentimos: “Começou”.

Crime tipo exportação


Vinte e quatro de abril de 2017, meio-dia e meia, zona rural de
Itaipulândia (oeste do Paraná), orla do Lago Itaipu.
– Acho que a gente achou aqui a área da fuga dos caras. Roupa
largada na margem, carregador de AK-47 também, copiado?
O alerta de dupla de agentes do Núcleo Especial de Polícia Maríti-
ma (NEPOM-PF), durante diligência para verificar denúncia rotineira
de tráfico de drogas e contrabando, nos faz pensar sobre o constante
e perigoso acaso de oportunidades que se apresenta no dia a dia da
atividade policial.
Sabem vagamente que, nesta madrugada, houve um grande assal-
to a uma empresa transportadora de valores na vizinha Ciudad del
Este. Mesmo assim, nenhuma orientação excepcional lhes foi passa-
da em termos de cautela em crítico período. Afinal, seria muito azar
96 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

bater de frente com criminosos profissionais armados até os dentes


em um dos milhares de portos clandestinos escondidos em inúmeras
entrâncias e reentrâncias de 170 km de margens do Rio Paraná entre
Foz do Iguaçu e Guaíra, incluído aí o Lago de Itaipu.
Estão no lugar errado, na hora certa.
Contam 12 homens, 15 malotes e um punhado de fuzis saindo da
vegetação ribeirinha e entrando em dois veículos estacionados. Cara
a cara, o confronto é inevitável, até pelo reflexo. Nenhum dos dois
lados quer isso, porém. Os fugitivos, em maior número e armamento
nem se fala, para não chamar atenção em momento ainda precoce;
os policiais para não morrerem ali em vão. Mas acontece.
– Troca de tiro... apoio urgente no Rocha. Muito tiro, muito tiro!
Muito fuzil, copiado? Vem rápido, rápido!
Cinco minutos de tiroteio ininterrupto são um martírio, princi-
palmente se você estiver no lado mais fraco de relação doze por dois.
Se levarmos em conta que um único Kalashnikov possui cadência de
600 tiros por minuto (sem contar o tempo da troca do carregador,
é claro), imagina o que os valentes agentes do NEPOM passaram.
Saem em retirada com tiros de contenção e adentram em milharal
próximo. Se fosse época de soja, provavelmente não sobreviveriam.
Nascem de novo.
Ali perto:
– A equipe... tá deslocando. Aqui é a equipe do BPFron... esta-
mos bem... eles levaram a viatura. Eles tão... fortemente armadas...
armados. E a gente tá indo atrás. ROTAM, PRF. A gente tá na outra
viatura... sentido... Santa Mônica...
Complicado passar para o papel toda a carga dramática de quem
vê a morte bem de perto. O comunicado de uma soldado do Batalhão
de Polícia de Fronteira (BPFron), unidade especializada da Polícia
Militar do Estado do Paraná – permeado de pausas para recuperar o
fôlego de respiração ofegante e o sentido de pensamentos confusos –,
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 97

exprime o realismo impactante de um confronto desigual de forças.


“Santa Mônica” sai em um fio de voz, como se a brava policial esti-
vesse para desfalecer após injeção descomunal de adrenalina.
Ouviram disparos ao longe (confronto inicial com os federais do
NEPOM) e começaram a progressão para descobrir o que se passa-
va. Ao descerem da viatura, trombaram com grupo assustador de
marginais que, imediatamente, avançaram em direção aos policiais
já atirando. Precisavam do veículo para a fuga e nada os deteria. Res-
tou aos agentes do BPFron bater em retirada e se abrigar no matagal.
Ninguém em sã consciência fica para morrer.
Soa o alarme. Junta polícia de todo o Estado na caçada aos sus-
peitos do roubo, logo alçado pela imprensa e autoridades paraguaias
como o maior de todos os tempos no país vizinho. Os primeiros re-
latos dão conta de que cerca de 50 bandidos brasileiros levaram algo
próximo de 40 milhões de dólares, não sem antes espalharem o caos
na cidade.
Ao menos cinco explosões desfiguram a fachada e o cofre da base
de valores, distante cerca de 4 km da Ponte da Amizade. Atiradores
estrategicamente posicionados em telhados de casas ao redor e em
ruas próximas dão cobertura à equipe invasora e promovem ataques
simultâneos às sedes da Chefia de Polícia e do Governo de Ciudad
del Este. Munidos de fuzis ponto 50, fuzis de outros calibres, grana-
das e explosivos, incendeiam 20 veículos, alguns com munições den-
tro, causando também falsos disparos. Deixam ainda explosivos ar-
mados em vários pontos da cidade, que são detonados remotamente
para acuar as forças de segurança local e gerar consequente pânico
nos habitantes, que tudo registram por meio de impressionantes gra-
vações amadoras em tempo real.
Na ação, que dura mais de três horas, matam um policial para-
guaio que trabalhava em frente à transportadora como segurança
particular e dispersam em pequenos grupos, cada um com rota de
98 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

fuga própria, deixando para trás perplexidade e miguelitos, muitos


miguelitos.
Já nos dias seguintes ao roubo, o saldo da força-tarefa contabiliza
18 suspeitos presos, sendo 16 no Brasil, e três mortos, além da apre-
ensão de seis fuzis, 7 kg de explosivos, sete veículos (incluída a viatu-
ra do BPFron), duas embarcações usadas para atravessar a fronteira
pelo rio e um malote com R$ 4,5 milhões entre dólares, guaranis e
reais. Dos presos, oito são liberados pela Justiça sob a alegação de
que não há vinculação com o assalto em solo estrangeiro.
Um dos que permanece detido, entretanto, é um velho conheci-
do nosso da época de Campinas. E possivelmente também se safaria
ao apresentar uma de suas várias identidades falsas durante aborda-
gem a um ônibus feita pela Polícia Rodoviária Federal em Cascavel,
no dia seguinte ao mega-assalto. Foragido da Justiça desde sua fuga
da Penitenciária de Lavínia, em São Paulo, em 2009, esse duas ca-
ras da bandidagem é líder de quadrilha especializada em roubo de
carros-fortes e empresas de transporte de valores – perfil mais do
que encaixado para a empreitada do consórcio criminoso brasileiro
no Paraguai.
Liso, escorregadio, tinha a bela Balneário Camboriú como prová-
vel local de moradia. E para lá correria se não estivéssemos atentos,
lá de Brasília, às perseguições – apesar de ser encontrado com ele um
tíquete de passagem até Curitiba e, de lá, a Caruaru, em Pernambuco.
Vai entender... Ao vermos sua imagem de olho caído associada a um
nome falso, mas já conhecido por nós, comunicamos imediatamente
todo o histórico delitivo do elemento à delegacia de Cascavel, que logo
o segura. Por quanto tempo?
Ladrões, assassinos e traficantes brasucas também se divertem
com séries televisivas gringas que abordam técnicas de polícia cien-
tífica do primeiro mundo, mera ficção para país eternamente esta-
cionado no subdesenvolvimento, certo? Nem tanto.
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 99

Outubro de 2013. Assalto a carro-forte em Suzano, cidade da


Grande São Paulo, leva tiroteio e explosões a Estado ainda não
acostumado a atitudes do tipo. Dois milhões de reais somem na
ação, porém rastros comuns de sangue mancham estofado de um
dos carros dos bandidos evadidos, bem como de colete e radioco-
municador igualmente deixados para trás. As amostras do material
genético, idênticas, juntam-se a outros quase dois mil DNAs sem
nome no banco de dados do conceituado Instituto de Criminalís-
tica de São Paulo. Pois então nosso duas caras caolho – problema
causado por tiro levado durante esta ação de Suzano – é multi-
plamente incriminado após a prisão em Cascavel. Cai em outros
roubos também. Provas materiais assim não se contestam. São ir-
refutáveis e, portanto, irrecorríveis. Esse vai ficar um bom tempo
na cadeia.
Os fatos ligam-se uns a outros em pontas aparentemente soltas de
um novelo sem fim. Quer ver?
No início de setembro de 2016 executam um Agente Penitenciá-
rio Federal (Agepen), em Cascavel/PR. Um de poucos profissionais
que tomam conta de apenados de alta periculosidade guardados em
presídios federais. Como em tese morre pela natureza de seu serviço,
a investigação vira responsabilidade da PF. Acionamos informantes
na região e chegamos ao assassino de trabalhador morto ao reduzir a
velocidade de seu veículo por causa de quebra-molas próximo à sua
residência. Dezoito disparos acabam com a vida do pai de dois filhos,
casado. Não conseguimos vincular o autor ao crime. O interessante é
que este homicida torna-se um dos presos nas perseguições pós-fuga
do Paraguai em abril de 2017.
A ordem para matar o agente penitenciário saiu de dentro da
prisão, feita por líderes de facção criminosa, segundo investigações
em curso. O cerne da questão é o Regime Disciplinar Diferenciado
(RDD), “castigo” previsto em lei aplicado a condenados mal acostu-
100 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

mados, dispostos a manterem regalias inaceitáveis durante sua esta-


da prisional.
Não entraremos aqui no mérito de flagelos regionais – como os
Salves de 2006 e 2012 em São Paulo (este último com interferência
direta do Mosca Branca no sentido de apaziguar ânimos e preservar
a normalidade de negócios ilícitos na favela de Paraisópolis) ou as
atrocidades cometidas no Amazonas e Rio Grande do Norte, em iní-
cio de 2017. Tamanha complexidade animalesca de esquartejamen-
tos, decapitações e horrores afins, inspiradas em táticas terroristas do
Estado Islâmico, fica para quem tiver mais estômago.
Contudo, penitenciárias federais possuem caráter muito mais res-
trito, seleto. As unidades de Porto Velho/RO, Mossoró/RN, Campo
Grande/MS e Catanduvas/PR – com seus 529 presos em espaçosas 832
vagas5 – não podem acompanhar hordas selvagens de sistemas esta-
duais entupidos de todo tipo de criminoso. Foram criadas para isolar
e acompanhar a elite da bandidagem, mais carniceira do que muitos
imaginam, certamente.
Porém, apesar das sanções do RDD, perigosas ligações extramu-
ros possibilitam novos atentados, como forma de intimidar agentes
públicos e obrigar o Estado a afrouxar o nó.
Em abril de 2017 um segundo Agepen é morto a tiros em Mos-
soró. Estava de folga em um bar e nem teve tempo de reagir. Ce-
gos em seu intento rebelde, os bandidos encarcerados extrapolam
qualquer limite ao elegerem o mês seguinte para executarem a pró-
xima vítima: psicóloga do presídio federal de Catanduvas, respon-
sável por avaliar perfis psicológicos dos detentos, mãe de um bebê
de dez meses de idade, esposa de policial civil lotado em delegacia

5. Dados de janeiro de 2017. A penitenciária federal de Brasília seria inaugurada em


outubro de 2018, com mais 208 vagas.
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 101

da vizinha Cascavel, cidade onde moram.


Todo o perfil fora traçado meses antes por reduzido grupo da
facção, concentrado em dedicação exclusiva à causa, de acordo com
fontes não oficiais da PF. Inicialmente, estranham o alvo. Uma mu-
lher com filho pequeno não é lá missão digna de nota. Mas, para cri-
minosos sem escrúpulos, a ordem tem de ser seguida à risca. A célula
de inteligência marginal teria monitorado, ainda, a rotina diária da
especialista, bem como alugado casa de apoio e estabelecido rotas de
fuga após a consumação do plano cruel.
O resto da tragédia anunciada está plenamente documentada em
veículos midiáticos sensacionalistas, verdadeiros cemitérios de so-
nhos e vidas, inclusive com imagens de câmera instalada em condo-
mínio oposto ao da família. A polícia diz que a escolha da psicóloga
ocorreu por ela andar desarmada, ser presa fácil (nesse caso, a tal
célula de “inteligência” parece ter negligenciado a presença do ma-
rido policial). É um ataque direto ao Estado; não aos profissionais.
Já o Conselho Federal de Psicologia, em nota de pesar, defende “que
a atuação de psicólogas(os) no sistema prisional seja voltada para o
cuidado das pessoas e não para a assinatura de pareceres”.
Felizmente, a pequena criança órfã de mãe e quase de pai – que
reage à emboscada, mata um marginal, fere outro, é alvejado oito
vezes e sobrevive – nada sofre. Por ora. Isso tem que parar.
Retomando a questão dos fios soltos, no decorrer dos esforços
investigativos após a execução do primeiro Agepen, em setembro de
2016, recebemos a informação de que algo grande estaria para acon-
tecer no oeste do Paraná, entre Maringá e Londrina, ou do outro lado
da fronteira. Muita movimentação, mas pouca comunicação. Apenas
o informante dizendo que “coisa grande vem aí”. Repasso o relato
a meus colaboradores policiais paranaenses, para que se preparem,
mas reconheço a dificuldade (ou mesmo impossibilidade) de se tra-
balhar em escuridão frustrante. Depois do ocorrido ficou claro que a
102 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

“coisa grande” era o assalto à transportadora de valores do Paraguai.


Existem mais pontos nesse novelo, acredite! Vamos voltar um
pouco mais no tempo.
***
Novembro de 2013, dois parceiros confabulam, de acordo com
colaboradores:
– Rapaz, irei aí no Paraguai para falar sobre aquele “projeto” nos-
so – diz o Mosca Branca; sim, ele de novo.
– Tá, vem mesmo porque preciso falar contigo pessoalmente –
pede o Cearense do Semiaberto, no conforto de uma de suas fazen-
das, esta na Bolívia, próxima a Corumbá.
– Tô meio quebrado. Perdi muitas cargas no Triângulo Mineiro
e na “rota caipira” de São Paulo. Tá parecendo que os caras têm bola
de cristal. Muito estranho. Preciso fazer algo grande pra dar uma
fortalecida nos negócios. O “projeto” tá bem adiantado já. Mas, igual
lá no Ceará, precisamos montar o escritório. Tá faltando grana pro
aluguel. O Paulista já providenciou os veículos e um depósito.
– Sei, e quanto será investido nisso, tem ideia?
– Creio que uns 200 mil para arcar com as despesas fixas e emer-
genciais e ainda comprar os equipamentos para o disfarce do local.
– Será o que lá?
– Uma loja de autopeças especializada em reciclagem de pneus.
– Eu tô em outra situação, mas vou querer participar dessa aí tam-
bém. Então nos encontramos e a gente conversa.
– Tranquilo. Vamos devagar e sempre. Creio que dará certo. Va-
mos tocar o terror lá e sumir. Desta vez os “fifa” [policiais federais]
não serão problema pra nós – vende o peixe e despede-se.
Mais para o final do mês, Mosca Branca encontra-se com vi-
gilantes cooptados para dar a planta do local a ser assaltado, bem
como informações sobre o sistema de alarme e o circuito interno
de monitoramento das câmeras. Entrega-lhes aparelhos discretos de
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 103

filmagem, com os quais gravam todo o recinto. Ao mesmo tempo


organiza até as vestimentas que serão usadas na ação (meias grossas,
calças e camisas de mangas compridas), além de orientar comparsas
a passarem com aparelho para cortar mármore pela fronteira sem
levantar suspeitas.
– Por que não compramos tudo aí mesmo em Ciudad del
Este? Vão desconfiar se levarmos daqui – preocupa-se um velho
conhecido do bando, agora solto, mas que havia sido preso em
2006 numa tentativa de assalto em Porto Alegre, dentro de um
túnel ainda em acabamento.
– Aqui é difícil de achar o que precisamos e de péssima quali-
dade. Os originais são caros demais. Dá pra colocar no caminhão,
poderemos comprar tudo na capital aqui e levar até Foz do Iguaçu e
passaremos tranquilo aí na ponte.
– Tudo bem então.
– E mais uma coisa: não comentem o projeto com ninguém que não
esteja na ação do financiamento ou no planejamento. Esse pessoal da
facção que será chamado não precisa saber o que iremos fazer lá. Deixa
para contar a eles quando estiverem trabalhando no local. Não iremos
cometer os erros passados. O nosso lema é cuidado, segredo e blinda-
gem, entenderam?
– Sim, ok!
– Vamos lá então, mãos à obra! Temos alguns metros pra cavar
até as galerias.
Espere um pouco. Cavar? Mosca? Já falamos sobre isso antes, não
é mesmo?
Oito meses depois, em julho de 2014, uma cratera enorme surge
no pátio de uma certa empresa transportadora de valores em Ciudad
del Este, no Paraguai, a menos de sete metros do cofre. No buraco,
seis “escavadores” sujos e fedorentos são surpreendidos por seguran-
ças incrédulos.
104 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

O plano era usar os frequentes barulhos de fogos de artifício na


cidade durante as partidas da Copa do Mundo, realizada no Bra-
sil, para abafar o som dos explosivos manuseados pela quadrilha
e abrir caminho no túnel, equipado com sistemas de ventilação e
comunicação. Porém, algum erro de cálculo na medição da estru-
tura de engenharia joga por terra esforço descomunal. Morrem na
praia.
O ano de 2014 segue problemático para o Mosca, que seria pre-
so em novembro, novamente pela PF, acusado de integrar quadrilha
especializada em tráfico internacional de drogas. Já vinha meio cam-
baleante após as sucessivas apreensões de carregamentos seus que
fizemos ao longo de 2013. Talvez por isso tenha apostado boa parte
de suas fichas no fracassado roubo do Paraguai.
O fato é que não esquenta nem três meses a cama de concreto frio
da penitenciária. Indiciado apenas por associação ao tráfico, logo é
solto pelo juiz. Ninguém entende nada, pois, inicialmente, o magis-
trado aceitou a denúncia feita pelo Ministério Público Federal, que,
posteriormente, levou o Mosca à prisão. Porém, depois reviu a pró-
pria decisão, desconsiderando mais de um ano de investigações. A
organização criminosa deve ser muito poderosa mesmo, visto que a
mente brilhante do crime consegue se safar, e as causas são obscuras.
Será que houve ameaças? Ou a denúncia continha erros? Uma
coisa é certa: os investigadores são os mais experientes entre os espe-
cialistas em crime organizado e violento no país.
Mosca promete a si mesmo que dará a volta por cima. Será que,
depois do bem-sucedido assalto paraguaio em 2017, alguém ainda
duvida?

São Paulo sitiado


O megarroubo em Ciudad del Este é emblemático por eviden-
ciar o elevado nível de organização e comunhão a que chegaram
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 105

quadrilhas brasileiras inspiradas no novo cangaço. Só que, agora, a


criminalidade evoluiu a um novo patamar; o ponto de inflexão da
violência criminal está na sua ascendente. O céu é o limite para esse
pessoal, que não encontra tanta resistência assim de certos setores da
polícia. Diria que, por vezes, recebem até um empurrãozinho para
manterem a engrenagem funcionando, a roda da economia girando.
Não existem mais “causas nobres e de honra” como objetivo, mas
tão somente o dinheiro pelo dinheiro, a ganância como fim em si
mesma, a mais assustadora causa possível. A promiscuidade com
outras modalidades criminosas, como o tráfico de drogas, também é
latente, visto que se financiam alternadamente, conforme a necessi-
dade. Mosca Branca personifica a confirmação da tese.
Alguns degraus abaixo, ainda, Baiano trilha a linha de frente das
ações. Tem cérebro, contudo o sangue quente e o destemor falam
mais alto. As investidas de incessantes investigações para combater
os roubos de cargas forçam sua volta aos assaltos mais belicosos. E a
invasão a bases de valores torna-se o novo nicho a partir do evento
de Campinas, em novembro de 2015, no qual ele nega participação.
Há um relevante detalhe sobre este assalto inaugural, quando
quase R$ 30 milhões foram levados da empresa que custodia valo-
res. É muito raro me encontrar pessoalmente com colaboradores
que transitam no meio da bandidagem e não conseguem distinguir
a linha tênue entre o certo e o errado. Apesar de necessário, esse
tipo de relação não é sadio. E, na verdade, nem encontro foi, por-
que sou pego de surpresa.
– Há quanto tempo. Tudo certo? – interpela-me o tal colaborador.
Estou em Itupeva vendo o bandido recém-morto, ligado ao Baiano,
ainda a pingar sangue fresco.
– O que faz aqui? Não é seguro, tá cheio de gente, não vê?
– Soube que você estava na área e imaginei que apareceria nessa
cena.
106 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

– Fala logo, o que é? – puxo-o para um canto, atrás do veículo


cravejado de balas do confronto com a PM.
– Um presente. Guarda, vai. Depois você vê.
– Ok, agora saia daqui.
– Com essa estamos quites. Não te devo mais nada. Sinto que
paguei minha dívida.
– Mas você nunca me deveu nada. Eu quase te prendi, você me
ajudou e também se ajudou, não foi?
– Devia sim. Você foi correto, não esculachou. Aprecio isso. Só
queria te dizer que tô me aposentando. Não nos veremos mais.
– Tudo bem, vai em paz.
De volta à base secreta, constato que o presente representa ferra-
menta muito além das minhas expectativas: o celular pessoal, tipo
smartphone, do defunto de sangue fresco, com inúmeros contatos
ainda ativos. Perdi um bom colaborador, mas ganhei, de fato, uma
bela ajuda.
A atribuição de investigação do roubo à base de transporte de
valores em Campinas é da Polícia Civil, mas acompanhamos à dis-
tância. Há fortes indícios de que Baiano esteja por trás e use cone-
xões familiares em seu Estado para lavar sua parte do dinheiro, o
que configura um caráter interestadual aos crimes. Além disso, pede
a bandidos de São Paulo que encomendem armamento pesado do
Paraguai, a fim de viabilizar os assaltos cinematográficos. Já vimos
por onde uma ponto 50 da vida atravessa a fronteira, não é mesmo?
Com bons informantes na região, policiais de Campinas chegam
a um pedaço da quadrilha. Em vez de prendê-los, entretanto, iniciam
aproximação temerária com os líderes e enquadram um ou outro
“zé ninguém” de terceiro e quarto escalões só para mostrar serviço.
Enquanto isso, aguardam novo assalto.
***
Madrugada de 14 de março de 2016. Outra base de custódia de
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 107

valores, em Campinas, é assaltada. Comboio de veículos puxado por


caminhão aproxima-se da empresa. Homens com fuzis desembar-
cam e disparam contra a guarita de segurança e também na direção
do transformador de energia, que explode e interrompe o forneci-
mento de luz na redondeza. O pânico dos seguranças é visível pelas
imagens de circuito interno das câmeras de gravação.
Explosões derrubam o muro que dá acesso à estrutura física da
empresa. Equipes ordenadas invadem o local, a começar pelos es-
pecialistas em explosivos, que portam óculos especiais e lanternas
de mineradores presas nos capacetes. Poeira e escuridão dominam
o cenário, acompanhados dos estampidos secos e intermitentes de
fuzis e metralhadoras. Dadas a especialização e a periculosidade do
ofício de mandar tudo pelos ares, tais marginais experientes ocu-
pam o segundo escalão da quadrilha. Sem tempo a perder, com a
planta da empresa em mãos, já sabem o melhor ponto para entra-
rem na transportadora. Instalam a prancha de explosivos na parede
e cobrem-na com pesada placa de aço de um palmo de espessura
com apoio de tripés. Desta forma, a explosão é bem direcionada.
Do contrário, a construção inteira pode ruir e ninguém roubará
nada.
Seguranças locais, entrincheirados na sala de comando, acionam
cortina de fumaça, que se dissipa rapidamente e não surte o efeito de-
sejado para dificultar o assalto. Estrondo controlado abre cratera pro-
videncial na parede, mas a entrada ainda não é possível. Malha estreita
de vergalhões reforça a estrutura de concreto maciço. Hora do terceiro
escalão atuar: pegam seus alicates de pressão e cortam ferro por ferro,
aço por aço. Lá fora, integrantes do quarto escalão espalham migueli-
tos e ateiam fogo em veículos abandonados no meio de vias de acesso,
dificultando a aproximação policial. Carregadores do dinheiro a ser
roubado e motoristas permanecem a postos, aguardando sua vez, que
logo chega com a explosão do cofre. Já se passou mais de uma hora do
108 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

assalto e as forças de segurança pública de Campinas não conseguem


avançar para o local dominado.
Responsáveis pelo planejamento e também pela proteção de todo
o grupo durante a ação, atiradores do primeiro escalão detêm o res-
peito dos demais. Entre eles, destaca-se um de costas levemente ar-
queadas, que se sobressai pelos comandos dados aos subordinados.
Conhecemos esta figura de andar inconfundível e “olho de vidro”.
Apesar de luvas e balaclava, roupa comprida e colete balístico, é im-
possível para esse “Hércules-Quasímodo” – homem da caatinga ma-
gistralmente descrito por Euclides da Cunha no clássico “Os sertões”
– disfarçar modos e gestos característicos.
Após o anúncio deste segundo assalto a transportadoras de va-
lores pela imprensa paulista, principalmente, captamos a seguinte
mensagem num aplicativo do celular que me foi dado de presente
pelo colaborador:
– O dinheiro dos meninos já tá separado. Todo mundo pago.
Todo mundo quem, cara pálida? Policiais? Algum colaborador
ou informante do lado deles? Alguém de dentro da empresa, que deu
informações sobre dispositivos de segurança ou quantidade aproxi-
mada de dinheiro que haveria?
Dados não oficiais indicam que, desta vez, cerca de R$ 50 milhões
são roubados. Trocamos informações com o GAECO sobre as movi-
mentações suspeitas dos policiais corruptos. Em tentativa de forjar um
flagrante, um dos colaboradores dos policiais aluga um galpão e desig-
na dois ou três “pés-de-chinelo” com fuzis velhos para tomarem conta
de poucos milhares de reais. Policias fazem uma batida e caem para
dentro, alardeando aos quatro ventos imponente prisão. A farsa sai nos
jornais, que muitas vezes engolem qualquer engodo sem questionar.
Dias depois o GAECO deflagra operação e prende alguns poli-
ciais, mas outros fogem. Na casa de um dos policiais detidos repou-
sam R$ 420 mil ainda com lacre da empresa roubada.
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 109

Os ataques a transportadoras de valores no Estado de São Paulo


continuam em 2016: Santos, em 4 de abril; Ribeirão Preto, em 5 de
julho; Santo André, em 17 de agosto. E mantêm o padrão já des-
crito, com uma ou outra variação. Em Santos, por exemplo, a inva-
são à base é diferente. Mesmo protegido do lado de dentro por um
carro-forte atravessado por toda sua extensão, o portão não resiste
à colisão frontal da carreta dirigida pelos bandidos. Assim, abrem
caminho ao pátio interno até com certa facilidade. Infelizmente, dois
policiais militares, sem a mínima noção do que está acontecendo, e
um morador de rua são mortos durante a fuga. Policiais convencio-
nais não têm a menor chance em confrontos abertos contra este tipo
de assaltante. Desde então, nenhum dos líderes foi preso.
– Os caras tão dentro da base de Ribeirão há uns dez minutos. O
que eu faço? Aquilo lá tá um inferno! – o desespero é evidente na voz
do supervisor de segurança da transportadora. Não são nem cinco da
matina ainda e levanto correndo da cama para entender melhor a situ-
ação. Quinze veículos blindados, um caminhão e cerca de 40 homens
invadem a base de valores da vez, em Ribeirão Preto, interior de São
Paulo, cidade considerada por muitos como a capital da “Rota Caipira”
do tráfico de drogas.
Temos acompanhado a movimentação dos bandidos e também
estabelecemos contatos de inteligência junto a gerentes e membros
da alta direção destas empresas, mas somos constantemente alerta-
dos de que a atribuição para investigar tais crimes é da Polícia Civil,
apesar da clara ligação destas ações com o tráfico internacional de
drogas e armas – e ainda do trânsito constante dos marginais entre
um Estado e outro da Federação.
– Segura as pontas que já estamos indo. Deixa que eu faço contato
com a PM.
Imediatamente aviso a colaboradores da inteligência da Polícia
Militar sobre a gravidade do momento. O que tem acontecido em
110 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

casos similares é a população, aterrorizada, ligar para o 190 e a cor-


poração enviar efetivo pequeno e despreparado para enfrentar ban-
didos dispostos a tudo.
– Atenção, cerca da melhor maneira até a chegada dos especiali-
zados. Não vai pra cima, nem fica isolado dentro da viatura, copiou?
Do primeiro contato feito pelo supervisor de segurança até che-
garmos à transportadora em Ribeirão Preto, passa-se uma hora e
meia. Os ladrões já deixaram o local. Minutos depois do assalto, ao
avistar veículos suspeitos cruzando determinado ponto na via, um
policial das Táticas Ostensivas Rodoviárias (TOR), orientado como
todos os outros, resolve retornar à viatura para informar pelo rádio
a direção em que o comboio seguiu, atitude de herói, mas arrisca-
da. É alvejado mortalmente na cabeça por um tiro de fuzil desferido
do interior de um veículo desgarrado, antes mesmo de completar a
mensagem.
***
No espaço de três anos (novembro de 2015 a novembro de 2018)
nada menos do que dez roubos são consumados no país, sendo
nove contra bases de guarda e transporte de valores: Campinas/
SP, em 6/11/2015 e 14/3/2016; Santos/SP, em 4/4/2016; Barreiras/
BA, em 22/4/2016; Ribeirão Preto/SP, em 5/7/2016; Marabá/PA, em
5/9/2016; Recife/PE, em 21/2/2017; Araçatuba/SP, em 16/10/2017;
Uberaba/MG, em 6/11/2017; e um Setor Regional de Tesouraria do
Banco do Brasil em Bacabal/MA, em 25/11/2018. E, além de São
Paulo, a nova modalidade de assalto violento, sem precedentes no
mundo (segundo especialistas), começa a ramificar-se a outros Esta-
dos. O rombo total estimado nestes casos passa de R$ 360 milhões.
Isso sem falar nos supostos U$ 11,7 milhões (cerca de R$ 40 mi-
lhões) entre reais, guaranis e dólares americanos levados do Paraguai
em abril de 2017 – roubo atribuído a brasileiros, com participação de
faccionados paulistas.
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 111

Na verdade, pode ser até mais, pois ninguém sabe ao certo quanto
algumas destas empresas guardam em valores. A fiscalização é frou-
xa, principalmente nas empresas menores. Rumores sinalizam a exis-
tência de dinheiro ilegal do tráfico de drogas e também de propinas
desviadas por políticos, além de caixa 2 de grandes magazines, redes
atacadistas, supermercados e outras empresas. Nada de bom justifica
guardarem tanto dinheiro fora da rede bancária, que, inclusive, não
cobra por este serviço e ainda remunera o depositário. Parece óbvio
deduzir que os assaltantes saibam dessa procedência diversa. Então,
vão lá e pegam. Afinal, ladrão que rouba ladrão...

Em família
Noite de 26 de agosto de 2016, rodovia em Hortolândia, Es-
tado de São Paulo. Blitz transparece operação normal em uma
sexta-feira qualquer. Alguns carros até são parados, porém o alvo
é um só.
– Atenção, veículo se aproximando do ponto de interceptação.
Tenham cuidado, alvo de extrema periculosidade.
Policiais do Batalhão de Ações Especiais de Polícia (BAEP) man-
dam o carro de passeio encostar com gestos serenos, mas firmes.
– Tem uma criança no banco traseiro. É esse mesmo? – o oficial
tira dúvida via rádio.
– Afirmativo, pode abordar. Estamos chegando aí, mas o trânsito
é intenso.
Casal acompanhado de filho de 7 anos presumíveis mostra espan-
to calculado.
– Pois não, senhor policial. Algo errado? Nunca vi barreira por
aqui a esta hora – questiona o homem ao volante.
– Ai, meu Deus! Espero que você não tenha bebido hoje. Já falei
um milhão de vezes, se for pra pegar o carro depois de ter bebido,
deixa que eu... – a mulher é interrompida em seu ensaio de discussão.
112 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

– Documentos, por favor – o agente da lei é personagem do teatro


montado.
Neste momento, nossa viatura descaracterizada também é “abor-
dada” pela intervenção controlada. Descemos e acompanhamos a
certa distância. Como esperado, ambos apresentam documentos fal-
sos, cada vez com acabamentos mais verdadeiros. Algumas pergun-
tas e respostas contraditórias depois, aceitam a derrota e confessam
quem são na realidade. Parceira de crimes, cúmplice na movimenta-
ção de dinheiro sujo, a mulher cai em si e desaba em pranto convul-
sivo. Em choque, o filho nada entende. Peço então para uma policial
feminina ficar com o garoto enquanto providenciamos a remoção
dos dois à delegacia da Polícia Federal em Campinas.
Situações como esta são traumatizantes para uma criança, é claro,
e não custa usarmos figura feminina no intuito de amenizar um pou-
co sofrimento inevitável. A tática dá certo e o menino, até então bas-
tante assustado, sente-se acolhido em seio alheio. A mãe se acalma
e a tensão diminui. O que ela e quase ninguém sabe é que a policial
que cuida do seu filho, integrante do serviço reservado da PM (P2),
de fato afeiçoou-se ao pequeno, não apenas por instinto maternal,
mas porque já o conhece.
Esperto como sempre, o homem algemado me encara de longe,
em aprovação praticamente imperceptível, com sua postura curvada
e seu olho de vidro refletido por giroscópios das viaturas ostensivas
do BAEP.
***
Três meses antes, alçamos Baiano a um dos bandidos mais procu-
rados da região. Já havia mandados de prisão expedidos pela Justiça
a pedido do GAECO contra ele, referentes a roubos de cargas, entre
os quais o do famoso magazine. Além disso, tínhamos informações
confiáveis de que ele vinha atuando também como membro de pri-
meiro escalão na quadrilha responsável por explodir transportado-
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 113

ras de valores no Estado.


Consequência indubitável de tantas evidências é a nossa entrada
para valer na corrida por sua cabeça. Para tanto interagimos, inclu-
sive, com algumas divisões esparsas da Polícia Civil de São Paulo,
nada muito diferente da desagregação da segurança pública em nível
nacional. Não é de se espantar que ninguém chegasse nele, um cara
que não se comunica com outros bandidos, pelo menos tecnologi-
camente.
Casos assim exigem técnicas tradicionais de investigação, a cha-
mada old school, em que a fonte humana torna-se o principal, se não
o único, material a ser trabalhado. Se nosso personagem prioritário
permanece incógnito, vamos acompanhar os coadjuvantes que or-
bitam mais próximos a ele: mãe, pai, esposa, amante. Vamos infil-
trar agentes, cooptar informantes, ativar colaboradores. Tudo válido,
dentro da lei.
Old school, entretanto, não pode representar sinônimo de anacro-
nismo, comum em policiais de raiz (responsáveis por enfrentamen-
tos de vida e morte, ressalte-se). Atentos a teorias inovadoras fer-
vilhantes na atualidade6, levamos em conta também a importância
de diferentes elos que mantêm a conexão do crime organizado, por
meio de vértices (pessoas) e arestas (ligações), em complexas redes
informacionais. Segundo um destes estudos – baseado em conceitos
da Física e da Matemática –, prender um indivíduo periférico, cha-
mado de “laço fraco”, porém com boa capacidade de unir pessoas e
grupos (tipo um contador, por exemplo), é mais interessante do que
partir com tudo no encalço do líder de uma quadrilha ou facção,
que terá óbvios privilégios no sistema prisional e, por conseguinte,
continuará a manter seu poder decisório. A teoria é válida, mas pode

6. Da Cunha, B. R. et al. “Fast Fragmentation of Networks Using Module-Based Attacks”.


114 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

ser modificada combinando a captura de laços fracos e fortes para,


assim, evitar a reconexão da rede.
De qualquer forma, a dificuldade persevera. Por onde começar,
visto que pouco temos de palpável sobre o Baiano? Surge então a
ideia de falarmos com a Delegacia Especializada Antissequestro
(DEAS).
– Estávamos esperando para ver quem da PF viria – sorri um
policial das antigas, muito bem conceituado pela retidão de caráter.
Talvez, por isso, ocupante do mesmo espaço em delegacia precária
há mais de 15 anos.
– É mesmo? Nem falei sobre o assunto que me traz aqui – retruco
de maneira afável e aperto sua mão.
– São as bases de valores, né? – pergunta seu parceiro sentado em
um canto da sala, hábil observador.
– Isso mesmo. Vocês podem nos ajudar?
A opção pela DEAS é simples, razão pela qual deveria ter sido
aventada bem antes. Porém, nunca é tarde para corrigir rotas investi-
gativas. Crimes de sequestro são complexos por sua natureza multi-
disciplinar, vamos considerar assim. Os líderes costumam ser muito
inteligentes e têm a necessidade de coexistir com outras classes de
bandidos para tocarem toda a estrutura e logística de captura do re-
fém, manutenção do cativeiro e negociação do resgate. Ou seja, um
grande sequestrador procura cativar ampla rede de contatos entre
seus iguais de outros ramos criminosos. E este mapa interligado da
bandidagem é construído detalhadamente por caras como a dupla de
policiais à minha frente, que nada descartam. São acumuladores de
informações por excelência. Juntam nomes, apelidos, hábitos, costu-
mes, fotos, vídeos, relacionamentos... enfim, uma infinidade de da-
dos preciosos muito bem correlacionados e arquivados sob a forma
de dossiês. Entretanto, não possuem atribuição para investigar tanto
descalabro. Devem manter foco em sequestros. Melhor para eles.
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 115

E adivinhe sobre quem guardam um dossiê?


– Ninguém mais procurou esse tesouro de vocês? – meus olhos
brilham em segundos de leitura dinâmica do documento.
– Sim, mas não levaram – responde o veterano, lacônico.
Presumo que não queira entrar em detalhes sobre desconfiança
provavelmente nutrida a respeito de outros policiais. Não verbaliza,
mas sua inquietude incômoda diz muito.
– E nós? Vamos levar por quê? – não resisto à curiosidade.
– Apenas pega e cai fora, amigo – o parceiro observador ofere-
ce o calhamaço para mim, com sorriso aberto até o canto da boca.
Logo em seguida, pergunta se estou caminhando também aos fins de
semana em bairro nobre, junto a restaurante famoso... Entendo na
hora que a base da PF em Campinas não é tão secreta assim.
O nosso especialista em banco de dados e fontes abertas entra em
ação. O colega é a lata do Mr. Bean, mas só na aparência, visto que
é um dos mais conceituados profissionais de segurança pública do
país.
Após feliz episódio, abrimos o leque e repentinamente ganhamos
ótima mão para entrarmos de vez no jogo. E blefes fazem parte, to-
dos sabemos. Mascarar identidades, escamotear intenções, insinuar
mentiras ou verdades, inventar razões. Não é um vale-tudo para nós,
policiais – presos a normas legais, por sorte –, mas flertamos sim
com o lado negro. De qualquer força. Quando falo que a linha entre
o certo e o errado é tênue, tenha certeza de que não é da boca para
fora. Só quem transita dos dois lados é capaz de assimilar, e aceitar,
o caráter volúvel e irrevogável de decisões extremas. Por isso mesmo
urgentes, agudas, tomadas em segundos que não se repetirão no ins-
tante seguinte. Podemos até errar, e erramos, mas tentamos fazer a
coisa certa sempre.
Nada é de mão beijada, entretanto. Material bruto é destrinchado,
analisado, comparado, refinado. E descobrimos provável escola onde
116 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

o pequeno filho do Baiano estuda. O pai não teve tal oportunidade


de ouro. Virou-se como pôde no autodidatismo fortalecedor de so-
brevivência sertaneja. E tenta mudar a sina do filho por caminhos
tortos. Não é ladrão bobo e sabe que, para seu herdeiro não ser ca-
çado, terá de se adequar ao convívio social. Educação é a única saída
que vê para o rebento, o mesmo menino assustado que fora acom-
panhado de perto por uma policial infiltrada como mãe de aluno
fictício na mesma instituição de ensino.
Outros parceiros primordiais, os colegas do serviço reservado do
BAEP de Campinas assumem o monitoramento diuturno de estreitas
relações parentais e extraconjugais do Baiano. Sem efetivo suficiente
para conferir continuidade ininterrupta que o caso exige, a PF per-
deria a meada se estivesse sozinha. É a velha história de se construir
forças-tarefas sobre pilares sólidos de confiança mútua.
Confirmada a identidade do filho do investigado, nos debruça-
mos no planejamento da melhor estratégia para capturá-lo. Crimi-
nosos do seu porte raramente baixam a guarda. E costumam contar
com rede de proteção composta por guarda-costas, informantes e
outros auxiliares, inclusive agentes da lei. Eles também trabalham
com dados de inteligência. A família, no entanto, representa brecha
de vulnerabilidade. Todos temos nossos pontos fracos. Tão acostu-
mado a usar reféns como escudos humanos em seus assaltos, fica
sem ação ao ser interpelado com mulher e filho no carro. Sem saída,
a rendição é a única alternativa.
Na delegacia, calado enquanto espera a hora do depoimento, ele
me olha mais uma vez, agora ao meu lado. Como esquecer expressão
indefinível a mim direcionada? Prefiro interpretá-la como espécie de
reconhecimento tácito de prisão justa, algo que ele sabia que poderia
acontecer a qualquer momento, faz parte do jogo. O que importa em
sua percepção de nordestino honrado não é tanto o que ocorreu, mas
como. Negócio de homem, cabra macho. Perfeitamente natural ha-
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 117

ver respeito entre adversários postados em polos opostos do espectro


ético da tal linha tênue.
Mais um em dívida comigo?

Volta ao berço
A detenção do Baiano, em agosto de 2016, traz um pouco de paz
ao Estado de São Paulo até o fim do ano. Afinal, quebrou-se ali rele-
vante elo entre assaltantes da região. Contudo, o modelo de roubos
violentos ganha status de demonstração de força, aliada à subtração
eficaz de grandes somas de dinheiro. Tudo isso nas barbas das auto-
ridades de segurança pública – desarticuladas, mal equipadas, im-
potentes.
Testado e aprovado, este terrível modelo serve como fonte inspi-
radora a ser replicado por outras quadrilhas, dotadas de experiência
própria a grupos paramilitares em termos de planejamento, estru-
tura de comando, armamento e capacidade técnica para confrontos
cada vez mais frequentes com a polícia.
A “Tomada de Cidades” para explosão de bancos e empresas de
guarda de valores já é uma triste realidade brasileira. Se continuar-
mos a dar respostas apenas reativas e desconexas a este fenômeno
criminal tão nosso, a tendência é que a tomada evolua para o “Do-
mínio de Cidades”, quando então os bandidos deverão atacar alvos
múltiplos. Além das explosões para roubos simultâneos, aproveita-
riam o controle da situação para liberar presos, executar desafetos,
enfim, subjugar toda a população de um município. Sombria, e a
cada dia mais possível, a tese representa oportunidade de discussão
sobre qual país queremos em um futuro próximo.
Evento trágico ocorrido no oeste da Bahia em janeiro de 2017
direciona nossa atenção a ladrão conhecido, mas fora do foco da PF
há alguns anos. Agora é um renomado líder de quadrilha especia-
lizada em assaltos a carros-fortes, bancos e mineradoras. Além de
118 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

participar diretamente de ações com seu bando específico, também


é temido por sua atuação arrojada no lucrativo negócio de aluguel
de armamento pesado a diversas outras lideranças do novo cangaço,
entre elas o Patrão, morto em maio de 2016.
O ciclo alucinante dos acontecimentos remete-nos violentamente
ao começo do livro. Fios soltos do novelo conectam-se de maneira
inequívoca no caótico emaranhado de redes criminosas interativas.
Neste contexto, o Senhor das Armas, nosso foco atual, é ou não é
mais um vértice a ser quebrado?
Antes de merecer um apelido definidor de sua principal atribui-
ção delituosa, entretanto, o Senhor das Armas teve uma origem. E ela
se dá em um dos municípios com maior risco de desertificação do
país, berço do cangaço e do novo cangaço, campo de sangrentas ba-
talhas entre etnia indígena esfacelada, tradicionais famílias sertane-
jas rivais, posseiros inescrupulosos, comunidades quilombolas resis-
tentes e, mais recentemente, frios e calculistas traficantes de drogas.
Os termos “caa” (árvore ou mato) e “orobó” (urubu) conferem
significado nefasto a Cabrobó, cidade do sertão pernambucano que
abriga o povoado da Ilha de Assunção, às margens do Velho Chico,
território ancestral da tribo Truká, da qual nosso personagem da vez
descende. Flambado nesse caldeirão de históricas mazelas, ele não se
encaixa nas tradições centenárias de suas raízes indígenas, que ainda
hoje utilizam a agricultura e a pesca como meios de subsistência.
Quer mais. E tem muitos em quem se espelhar. Laços familiares
são sagrados no sertão nordestino, onde nomes parecidos recebem
apêndices peculiares para personificar sobre quem de fato se fala:
Toinho do Brejo, que é filho de Quitéria Sururu, que é prima de Jose-
fa do Agreste, que é viúva de Chico Pamonha... Brincadeiras à parte,
o jovem cabroboense busca o modelo ideal de conduta honrada na
imagem de parentes nota dez na escola do crime.
Só para incrementar o cenário, peço licença ao preencher algu-
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 119

mas linhas a mais de maneira a melhor caracterizar dois irmãos da


linhagem Bicho-Pau, tios do Senhor das Armas. Espertos, demons-
tram incondicional amor à vida. Quando o “bicho pega”, despem-
-se de qualquer pudor ou vaidade e logo se rendem, não sem antes
ligarem para as respectivas patroas e pedirem para chamar seus ad-
vogados, segundo um informante. Por isso, esses ladrões velhacos
acumulam 45 e 49 anos de idade.
O mais novo, o Azarado, responde a processos criminais nos Es-
tados de Pernambuco, Pará, Rio Grande do Norte, Ceará e Mara-
nhão. Um deles em consequência de assalto a banco na cidade de
Lajes, em 2006, com a presença do irmão mais velho e companhia.
Após o roubo bem-sucedido, refugiam-se em casa na divisa com
Natal, à espera de outro grupo para resgatá-los em segurança. Mas
quem aparece é a polícia.
– Ouve bem, fia. Pede pro advogado vir aqui pras bandas de
Parnamirim. É só seguir o barulho dos tiro – Bicho-Pau mais novo
orienta a companheira com a maior naturalidade do mundo, que pa-
rece cair sobre sua cabeça diante de tanta bala e gritaria.
– Que que tá acontecendo, amor? – a mulher apaixonada faz per-
gunta retórica em genuíno esforço para não entrar em desespero.
– Viemo fazer um serviço, mas os homi cercaram tudo. Chama
lá o doutor, por favor – fala com voz cantada e tranquilidade de im-
pressionar até mesmo o informante cascudo, testemunha ocular da
história.
E o pau comendo solto. Vira-se para um parceiro ao lado: “Ou a
gente se entrega, ou morre. Vamos se render”.
– A gente se rende! – grita em busca de trégua.
– O quê? Certeza? – voz do lado de fora.
– A gente se rende! Esculacha não, visse? Tamo saindo!
Bicho-Pau mais velho, cavanhaque espesso e rosto vincado pelo
tempo violento de roubos extremados, também merece sua passa-
120 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

gem. Cérebro da quadrilha, checa os últimos detalhes para o assalto


a carro-forte que passará em estrada no Maranhão, em 2010. Além
de transportar os companheiros, o caminhão-baú tem a função de
obstruir a via. Já a caminhonete é adaptada para comportar fuzil
ponto 50 e outras armas de grosso calibre. Devem começar a se pa-
ramentar, pois está quase na hora. Coletes à prova de balas, roupas
camufladas, óculos de proteção, balaclavas, radiocomunicadores, pés
de cabra, lanternas, coquetéis molotov, combustível, granadas, ex-
plosivos, esmerilhadeira portátil. A lista é grande. Ele e outros oito
bandidos, entre os quais o seu irmão, estão em uma chácara e não
percebem o cerco formado por dezenas de agentes da Polícia Federal
no início da manhã.
Depois de muitos tiros e algumas ligações, são presos novamente.
Somando-se à parafernália já descrita, mantêm em seu poder cinco
fuzis, duas submetralhadoras, duas escopetas, duas carabinas, um ri-
fle, três pistolas e uma infinidade de munições, tudo fornecido pelo
sobrinho querido.
Esse é o modelo de conduta do Senhor das Armas. Vamos retor-
nar à sua história?
Deixa-se aliciar por facção criminosa que controla o Polígono da
Maconha na região. E sua Ilha de Assunção natal – composta por
cerca de 70 ilhotas acidentalmente distribuídas em 21 km2 de difícil
acesso – torna-se uma das principais áreas de cultivo da erva ilícita.
Sorte? Coincidência? O fato é que ele sempre esteve preparado.
A escalada é meteórica: soldado do tráfico, assassino de policiais
e índios contrários à invasão da reserva, chefe de facção local, assal-
tante destemido. Sua extensa ficha corrida leva-o a seguidas prisões
(veja aí a influência dos seus tios) e ao consequente respeito crescen-
te no mundo do crime. O salto de qualidade acontece após tempo-
rada em presídio federal, onde realiza contatos preciosos com a nata
da bandidagem, entre os quais o capo de facção do Sudeste. Nasce o
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 121

Senhor das Armas, que encontraria no centro do poder de Brasília,


mais tarde, o ambiente ideal de residência, juntamente com grande
parte de seu bando.
Os contratos, verbais, são simples: sob encomenda, ele fornece
fuzis, munições, metralhadoras ponto 50, o que for preciso para gru-
pos do novo cangaço conseguirem seus intentos. E ganha um per-
centual dos roubos, além da garantia de volta das armas. Do contrá-
rio, é só encomendar o caixão. Assim, passa a juntar mais dinheiro
e sem se expor tanto. Por outro lado, as quadrilhas terceirizam tal
serviço especializado a uma única fonte confiável e profissional. Evi-
tam o risco desnecessário de terem integrantes presos ao cruzarem
fronteiras com Bolívia ou Paraguai carregados de armas traficadas.
O mercado interno pode ser igualmente atrativo se você souber
onde estão as armas e tiver capacidade de planejar um bom caminho
para chegar a elas. O furto coordenado de 61 armas longas em cinco
batalhões da Polícia Militar na região de Salgueiro/PE, em outubro
de 2009, levanta justificadas suspeitas contra o Senhor das Armas,
bastante atuante em seu Estado natal. O “caminho” utilizado foi um
oficial da PM. Com mulher e filha sequestradas, não lhe restou op-
ção a não ser recolher o armamento e entregá-lo aos bandidos como
pagamento do resgate.
Estranho para você? Para a PF também, principalmente após o
truká se apresentar espontaneamente à delegacia na companhia de
sua advogada e esposa, uma só pessoa, para deixar claro. Bom apren-
diz dos Bicho-Pau, ele uniu duas tacadas com o enlace matrimonial.
De quebra, ainda oferece convincente álibi.
Meses depois do falso sequestro, capitão preso, reconhecemos
que fomos induzidos a suspeitar de pessoa errada, pelo menos na-
quele caso. Fora a decepção com o policial, ficou o acerto de no-
vamente termos o Senhor das Armas sob vigilância. A condição de
ex-bandido não existe para elementos como ele.
122 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

O volume de negociações intensifica-se e seu nome aparece em


relatos de colaboradores (estes mais confiáveis) já no primeiro assal-
to à base de valores de Campinas, em novembro de 2015, ao lado do
Baiano. Mais pontas interligadas, óbvio.
Seu principal fornecedor é mais um antigo conhecido da polícia,
de alcunha Careca, intitulado o “Rei da Fronteira”. O mesmo que
autoridades nacionais e paraguaias pensam ter sido brutalmente as-
sassinado em junho de 2016, na cidade de Pedro Juan Caballero, de-
corrente de desavenças com facções brasileiras, que teriam se aliado
ao chefe de seu pequeno exército de guarda-costas para implementa-
rem o atentado exitoso. No entanto, a verdade quanto ao mandante
de massacre descomunal – levado a cabo por mercenários altamente
treinados em guerrilha urbana e técnicas de emboscada – parece re-
pousar incógnita em terras além-mar, lá para o sul da Itália. É o que
traficantes relevantes comentam por aí.
Então chega janeiro de 2017.
***
Cerca de 20 homens invadem pequena e pacata cidade do oeste
baiano, com toda a redundância possível, para explodir setor recep-
tador e distribuidor de dinheiro de banco estatal. Só por garantia,
ou vício, ou maldade mesmo, fazem reféns dois policiais militares
fardados, ostensivos, alvos fáceis na entrada da localidade. Jovens
homens de polícia abaixo dos 30, com menos de dois anos de cor-
poração, ficam à mercê de bando desalmado. Desta vez, nem o bom
Jesus será capaz de evitar lapada covarde contra a liberdade da vida
após o fracasso do assalto. São pegos de surpresa por uma guarnição
do BOPE, que revida.
Temos ou não terroristas entre nosso povo cordial? Ações imoti-
vadas por questões passionais, do coração, são as que mais matam.
E não precisam de argumentações políticas ou religiosas para dar
guarida a suas sandices.
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 123

– Seus colegas são burros. Por que nos confrontar? É só deixar


a gente explodir o banco e seguir em paz – diz um calmo líder da
quadrilha depois de conseguir furar o bloqueio.
– Você sabe que não funciona assim – responde um dos reféns,
olho no olho.
Ele está certo. Representa a lei. Não pode simplesmente fechar os
olhos a ataques brutais e deixar que os bancos se resolvam com suas
seguradoras. Há ainda a população no meio desse fogo cruzado, que
depende do fluxo de dinheiro circulante (possibilitado pelas bases de
valores e seus carros-fortes) para o funcionamento normal das ati-
vidades comerciais que movimentam nossa já combalida economia.
– Merda, e agora? – pergunta um ladrão nervoso, balaclava torta
na cara.
– Não vimos vocês, é só deixar a gente amarrado aqui e fugir –
clama pela vida, sem mostrar desespero, o outro policial.
– Você sabe que não funciona assim – em tom mórbido e finali-
zador, o chefe apropria-se da frase e retira a máscara, mostrando sua
cabeça grande e cara redonda. Sentença proferida.
Os corpos dos bravos PMs são encontrados a dois quilômetros do
local da tentativa de roubo, já na rota de fuga dos assaltantes assassi-
nos. Melhor não dar detalhes...
***
Como estamos chegando ao final do livro – esse conjunto pul-
sante de memórias vivas em profusão –, tentarei relatar em curtas
e dolorosas palavras a espiral de ódio e vingança que ganha volume
e velocidade impressionantes logo após casos emblemáticos assim,
infelizmente.
Os dias seguintes são de gato e rato, polícia e ladrão, na melhor
acepção do termo. A ousadia dos caras é intensa, mas efêmera. Tem
prazo de validade. Por mais organizados que sejam no decorrer de
ações espetaculares meticulosamente planejadas, sabem que irão se
124 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

dispersar e perder a força do conjunto logo que a ação criminosa


tenha êxito. É sua sina, seu momento vulnerável, até que consigam
escapar, usufruir do prêmio e se reagrupar para novos delitos. Mui-
tos morrem tentando, já que cadeia não é opção para a maioria. E a
polícia entra nesse caos como solução final para todos os males. Não
é. Mas assume a missão.
No justo confronto inicial com o BOPE, morre o primeiro ladrão,
natural de Cabrobó, conhecido parceiro do Senhor das Armas. Dois
dias depois, outro cabroboense tomba em razão de ferimentos na
noite da investida frustrada. É achado na cidade de Senhor do Bon-
fim, noroeste da Bahia.
As buscas continuam com ação coordenada de força-tarefa entre a
Polícia Federal e PMs da Bahia e do Goiás. Investigações confirmam
que o armamento vem do Paraguai, aos cuidados do Senhor das Ar-
mas, e alimenta vários grupos criminosos oriundos do Nordeste e
Centro-Oeste principalmente. Ao mesmo tempo, um de nossos con-
tatos de confiança do GRAER, em Goiás, recebe promoção ao cargo
maior de inteligência do Estado. Ótima aquisição para a segurança
pública da região. Na reunião do Conselho de Coronéis, é escolhido o
homem certo para o lugar certo.
Mais três dias, mais um morto. Desta vez em novo confronto na
própria Bom Jesus. O falecido era bastante requisitado por sua, di-
gamos, intimidade em manusear fuzis e metralhadoras calibre ponto
50. Dispara tiros de revólver 38 na abordagem e logo é neutralizado.
Um quarto integrante da quadrilha retorna às origens em busca
de proteção na sua Ilha de Assunção, em Cabrobó. Não, não se trata
do Senhor das Armas, muito esperto para cometer vacilo primário
assim, mas de outro parceiro conterrâneo de longa data. Cercado por
CIPE, BOPE e outras unidades especializadas em ações na caatinga,
revida e sela seu destino. Mais ou menos como o Patrão no início do
livro.
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 125

Este fiel relato documental repisa no mais do mesmo a fim de


ilustrar a incessante roda-gigante de vida e morte em que estamos
embarcados desde o início dos tempos. Alguns são presos embaixo
da terra, outros atrás de grades. Muitos escapam, entre eles o Senhor
das Armas. Porém este, especificamente, é relevante demais para dei-
xarmos evaporar.
Representa tronco comum de inúmeras ramificações crimino-
sas. Derrubá-lo significa pôr abaixo, de uma vez, uma penca de
bandidos ordinários. Devido às perdas recentes, todos estão quie-
tos, afastados. Recebemos informes esparsos e confusos vindos
de Uberlândia, Barreiras, Irecê, Cabrobó e ainda de cidades de
Goiás, Tocantins. O novelo embaralha-se em conexões interesta-
duais como clara forma de autopreservação. Contudo, em algum
momento eles terão de se encontrar. E não tardará, porque roubo
é o meio de vida deles. A primeira capital do país a ter um bairro
inteiro tomado calha de ser Recife, terra querida.
Dois mil e dezessete avança à madrugada do dia 21 de feverei-
ro. Além de bloquearem cinco pontos estratégicos nas redondezas
da empresa de custódia de valores, localizada na zona oeste da ci-
dade, a quadrilha impede a progressão de ninguém menos do que
os policiais da 1ª Companhia Independente de Operações Especiais
(CIOE), considerada a base dos seals pernambucanos.
Acuada em sua própria sede, isolada na mata do bairro do Jiquiá,
a tropa de elite do Estado opta por realizar um confronto mais preca-
vido, dado o poderio bélico do oponente. Tiroteio aberto pode virar
uma guerra federal. E ninguém quer flagelo escandaloso em seu pró-
prio terreno. Enquanto isso, os explosivistas botam para quebrar e
mais algumas dezenas de milhões de reais vão para o bolso do bando,
que escapa deixando rastro conhecido de destruição.
Estamos perto, mas não conseguimos dar o bote certeiro. Parece
que sempre se antecipam aos nossos movimentos. Até que um sim-
126 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

ples balde de plástico nos coloca de volta ao jogo. Não existe crime
perfeito.

Prova de bandeja
Filial de imponente mineradora multinacional situada em Crixás,
no Estado de Goiás, é o novo alvo na madrugada (sempre ela) de 8 de
março de 2017. Cinco meses antes, outra mineradora fora assaltada
pelo mesmo grupo no pequeno vilarejo de Itapicuru, município de
Jacobina, norte da Bahia. Na ocasião, os bandidos executaram um
vigilante, pai de família devastada, com desnecessários tiros nas cos-
tas, segundo testemunhas, e levaram o equivalente a R$ 8,5 milhões
em barras de ouro, além de armas, munições e coletes dos demais
seguranças.
Confiantes como nunca, rendem agora dois policiais militares
goianos em um posto de combustível próximo à nova mineradora e
também vigilantes da empresa, ação temerária dado o histórico sinis-
tro de assassinos muito bem armados. Isolam funcionários e iniciam
os preparativos para a explosão, mas são avisados de que reforços
estão a caminho. Desta vez, inesperadamente, resolvem abandonar o
local sem o produto do roubo, nem vítimas fatais. Porém, o confron-
to é inevitável, já que ignoram de forma solene vozes de prisão das
autoridades. Corrijo: ignoram não; revidam.
– Anda logo, joga os pregos! – grita o condutor do último carro ao
comparsa no banco traseiro. São responsáveis diretos por arriscadas
medidas de proteção do grupo.
Projetis rasgam a escuridão de lado a lado enquanto os bandidos
fogem em carreira desenfreada. Nervoso, o encarregado da tarefa
pega o pesado balde com miguelitos e vira-o vagarosamente dando
repetidas sacudidelas para despejar o conteúdo espinhoso de forma
homogênea e cobrir o máximo possível da via. Manobra evasiva do
piloto e disparo da polícia que passa rente ao seu rosto fazem com
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 127

que tudo caia de uma vez – pregos e balde. O suficiente, no entanto,


para encerrar a perseguição das viaturas. Não levam nada, mas nin-
guém é preso. Ainda.
Na manhã do mesmo dia, nosso homem de confiança em Goiás
(alçado ao posto de Comando da PM) ordena que equipe de inteli-
gência do GRAER vá de imediato à mineradora e ao local do conflito
em busca de sinais, como miguelitos bem similares aos usados em
Jacobina e Bom Jesus da Lapa, por exemplo. É um bom indicativo,
pois existem vários modelos diferentes. Contudo, a cereja do bolo
é o balde. Sujo, amassado, riscado. E com código de barras intacto
da loja em que foi adquirido, em região administrativa do Distrito
Federal.
Fontes abertas, na imprensa, do que ocorreu depois da prisão
de irmãos bandidos travestidos de empresários candangos dão a
dimensão do fosso que separa as polícias civil e militar do DF, em
plena capital do país. Devido a compreensível espírito de corpo, o
serviço de inteligência da PM goiana comunica seu grande achado (o
balde) à PM do DF, que desloca agentes da P2 para o endereço após
flagrante de arsenal.
Bastante desconfortáveis com o que consideram uma invasão de
sua seara de polícia judiciária investigativa, apuradora de infrações
penais, policiais civis tentam desqualificar a ação e acusam os mi-
litares de usurpação de função e interferência na cena do crime. A
Justiça reconhece a legalidade da operação e, mais tarde, em meados
de junho de 2017, membros do Ministério Público publicam reco-
mendação para possibilitar maior regramento e transparência de
ambas as corporações, que agiam como se fossem oponentes. Inter-
venção triste, mas imprescindível para o bem maior da segurança da
população da capital federal. Basicamente, estipulam condições para
a atuação de policiais militares integrantes do que chamam “serviço
velado” (P2).
128 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

O fato é que, de bandeja, considerável arsenal do Senhor das Ar-


mas é apreendido na loja a partir de um reles balde: fuzil, escopeta,
pistola, revólveres, milhares de cartuchos de diversos calibres, carre-
gadores e até uma máquina para fabricar munições. Faltou só um fu-
zil ponto 50 que não foi encontrado no momento por causa das desa-
venças nas corporações policiais. Definitivamente, o pecado favorito
do Advogado do Diabo. E a bandidagem agradece. Mas rivalidades
perdem qualquer sentido diante de apreensões como esta.
Avançamos nas investigações e antecipamos algumas de suas jo-
gadas, ainda no escuro de madrugadas, é verdade. E são insaciáveis.
Contam sempre com a desagregação das forças de segurança para
transitarem à margem da lei. O próprio Distrito Federal e seu entor-
no começam a abrigar esses bandidos impetuosos e seus armamen-
tos, levando-nos a justificáveis conjecturas de migração deste tipo de
assalto violento à capital federal, onde existem sete empresas de cus-
tódia e transporte de valores. Só que não percebem o fortalecimento
de alguns laços policiais.
Vinte de março amanhece com nova tentativa capenga de roubo
à base de setor de guarda de banco estatal, em Irecê, na Bahia. Mes-
mo modus operandi mais uma vez frustrado pela polícia. Estão sem
dinheiro, acuados, nervosos. São um perigo ambulante e constante.

Faro perdigueiro
Apesar do empenho da força-tarefa em localizar os criminosos,
cabe a uma abordagem de rotina, feita por policiais atentos, o crédito
por achar importante fio solto. Caminhonete portentosa trafega va-
garosamente por região erma de Jussara, município de Goiás, em 3
de maio. Suspeição imediata faz com que os PMs parem o veículo, do
qual desce sujeito com bom semblante, faces cheias e coradas, bem
nutrido. Seu sotaque nordestino, no entanto, reacende luz de alerta.
Sem bairrismos ou preconceitos; apenas o perfil não se encaixa ao
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 129

local. Documento em ordem, nome limpo e ausência de qualquer


indicativo de flagrante, contudo, sinalizam que nada mais há de se
fazer, a não ser liberá-lo. E ele trata de sair logo, desta vez com pressa.
Acontece que policial encucado é mais teimoso do que cão per-
digueiro. Sem que o abordado tenha percebido, anotou a placa do
veículo e outro agente da lei fotografou a habilitação apresentada e
enviou-a a grupos de mensagens instantâneas do Estado: “Alguém
conhece esse cara?”. Silêncio e negativas dos companheiros. Então,
nosso colega número um da inteligência de Goiás, igualmente intri-
gado, remete a imagem para o grupo AB Brasil. Com tal medida, a
abrangência da mensagem muda de figura e rapidamente o identifi-
camos como o Senhor das Armas.
– É ele, cem por cento. Onde está? Pega, segura! – meu coração
acelera com a iminente e eminente prisão. Estamos atrás dele há um
bom tempo.
Outro colega no grupo reforça:
– Putz! É ele, duzentos por cento.
– Calma, isso ocorreu mais cedo. Foi abordado e liberado – afir-
ma o policial goiano.
– Sim, o documento é falso. Ele deve estar procurando algum
ponto de apoio. Vão fazer alguma coisa por aí.
– Tudo bem, temos já uma ideia para onde vai.
– Te mando agora tudo o que conseguimos sobre o suspeito. É
extremamente perigoso, cuidado!
– Obrigado pelas informações, amigo. Deixa com a gente.
Sinto falta da ação. Hoje estou à distância, como espectador pas-
sivo. É entediante e enervante para um cara ansioso como eu. Ajudo
da maneira que posso, diante das impossibilidades momentâneas.
Oficiais do Comando de Polícia Especializada da PM de Goiás
deslocam-se para áreas extremas do Estado na madrugada do dia 4
de maio: Itumbiara, Alexânia, Jataí, Uruaçu e Aragarças. O provável
130 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

alvo da quadrilha é um carro-forte em Mato Grosso, de acordo com


o nosso colaborador. Devido a este dado de inteligência, a orienta-
ção é deslocar os especialistas para Barra do Garças naquele Estado.
Porém, o criminoso experiente poderá querer evitar surpresa depois
da abordagem do dia anterior. Por isso, a necessidade de mobilização
em várias cidades. A ordem é prendê-lo!
A caminhonete é identificada às 9h13 em povoado simples, de
chão batido. Dentro, um só ocupante. Não sabem se é ele. Atiradores
cercam o perímetro enquanto viatura descaracterizada aproxima-se
com segurança. O truká percebe, dispara seguidas vezes pela janela
aberta do carro e, ao mesmo tempo, acelera em alta velocidade. Avis-
ta policiais identificados à frente solicitando a parada e manda bala
com o veículo em movimento, seu tanque de guerra particular, que
passaria por cima de qualquer um sem pestanejar.
Nem deve ter sentido morte instantânea e terrível causada por
dois projetis de AR-10 que arrancam parte do seu crânio. Deixa a
vida vítima de uma das mais letais armas que traficava.

Círculo vicioso
Fim da história? Ainda não. Mas urge estabelecermos um marco
limitador para este livro, obra física carente de um corte, abrupto
que seja. Logo adiante encararemos a fronteira final de viagens ex-
ploratórias de outro mundo, com consequências difíceis de assimilar.
Porém, as personagens carregam em seu DNA, desde sempre, mar-
cas bem humanas. Não se engane. Quanto mais puxamos os fios do
novelo, mais os nós se sobrepõem, se apertam. Truculência pura não
resolve; contudo, por vezes, torna-se o único caminho menos inse-
guro e, portanto, irrefreável. Rupturas necessárias...
Os comparsas próximos ao ex-Senhor das Armas estão por perto.
Ele não roubaria nada sozinho, estava a léguas de qualquer supervi-
lão ficcional quase indestrutível dos quadrinhos. Precisamos recupe-
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 131

rar o armamento de sua quadrilha de fé, que certamente tentará dar


andamento aos trabalhos ilícitos do grande chefe morto. Já temos
boas linhas investigativas sobre os remanescentes baratas tontas, po-
rém outra vez fato novo atropela planejamentos, dando início à mais
recente saga de tragédias e vinganças em série da semana. Falta pou-
co para o corte abrupto do livro. Pena que não dos crimes violentos.
***
Outra quadrilha, ligada ao finado truká apenas na qualidade de
locatária fiel de armas de grosso calibre, e também desesperada por
dinheiro, entra em confronto com policiais militares de Mato Gros-
so diante de bloqueio corriqueiro, sem feridos por sorte. O dia é
12 de maio de 2017 e a viatura alvejada encontra-se em Peixoto de
Azevedo, no distrito de União do Norte. Missão mais do que per-
feita para os caveiras do BOPE estadual, que partem com sangue
nos olhos no encalço de bandidos sem noção.
Na manhã do dia 13, matam um suspeito em alegada troca de
tiros e prendem outros três escondidos na vizinha Matupá, distante
720 km ao norte da capital. Com eles dois fuzis, outras armas, mu-
nições... mesmo dia, final da tarde, novo cerco, agora em matagal
da zona rural da região. E então, com muito pesar, mais um jovem
promissor de escassos 28 anos, recém-formado tenente do BOPE há
curtos e intensos dois meses, toma um tiro de fuzil no abdômen e
tomba ao lado de seus irmãos caveiras.
Esse é o fim, ou recomeço, que nos espreita a qualquer momento,
como assombração real do grande ceifador sempre presente em nos-
sos pesadelos. Somos diferentes, não tem jeito. Para mim, a morte
não significa um acaso inesperado de acontecimentos caóticos a bai-
larem no tecido inexplorado do espaço-tempo, ou uma vontade ca-
prichosa de Deus, mas uma companheira bem próxima de todos os
dias, que acalenta medos, embaralha lembranças, conforta destinos.
Escolhemos o risco capital por motivos diversos, muitas vezes
132 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

inalcançáveis às demais pessoas. Sabemos que é difícil se colocarem


em nosso lugar, sentirem empatia por heróis anônimos que parecem
viver e morrer em realidades paralelas impregnadas do “cheiro fétido
de suor, sangue e lágrimas”, nas palavras de um amigo do BOPE de
Mato Grosso, superior consternado do jovem tenente ido.
Por qual maldita razão bons homens e boas mulheres oferecem
suas próprias existências em sacrifício inócuo de uma “guerra as-
simétrica” praticamente perdida? A mesma que autoridades incon-
sequentes “fazem questão de fingir não existir” ao ignorarem “fuzil
produzido há mais de 20 anos, doado pela Marinha” ao tenente aba-
tido. Reflita, por favor, sobre o desabafo do major caveira, engajado
na luta por condições dignas do trabalho policial. Escrevo em pranto
reprimido por urgências do ofício. Um ótimo policial se foi prema-
tura e honradamente. E mortes assim não costumam ser digeridas.
Nunca.
***
Antes de seguirmos com eventos inconsequentes do grupo crimi-
noso ligado diretamente ao truká abatido em Aragarças, entretanto,
vale um adendo nefasto sobre a morte do tenente do BOPE. E não
há outra forma de abordar assunto tão espinhoso senão com fatos
novos, para contextualizar versões antagônicas que enevoam a busca
pela verdade. Esse triste episódio merece uma lupa esclarecedora.
Fato 1: Divididos em dois veículos, os criminosos tinham por ob-
jetivo assaltar avião de transporte de ouro proveniente de garimpos
desde o sul do Pará até o norte de Mato Grosso, incluindo as cidades
de Peixoto de Azevedo, Matupá e Guarantã do Norte. Um primeiro
grupo parte de Imperatriz/MA e desce a Araguaína/TO, onde se en-
contra com outros infratores, e deslocam-se a Santana do Araguaia/
PA, na divisa com Mato Grosso. A aeronave seria atacada na sexta-
-feira, 12 de maio, pois era o dia da semana com o maior recolhimento
do metal precioso. Por isso, na quinta à noite, pegaram o rumo de Pei-
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 133

xoto de Azevedo. Foi neste caminho, já na sexta de manhã, que as duas


caminhonetes recebem ordem de parada de uma viatura da PM local,
em Matupá. Os bandidos não obedecem, são perseguidos e reagem
efetuando vários disparos contra os policiais. Um dos veículos some
de vista; o outro é abandonado às margens de uma mata.
Fato 2: Como a quadrilha tinha características de atuar em as-
saltos a bancos na modalidade violenta do novo cangaço, o BOPE
é acionado. E, imediatamente, uma equipe avançada de reconheci-
mento é enviada, de avião, da capital Cuiabá à região do confronto.
Ainda é sexta à noite. À frente do grupo, o jovem tenente chega cheio
de gás para a sua primeira missão, acompanhado dos experientes 3º
sargento, cabo e soldado. Outras equipes do BOPE também estão a
caminho, mas de carro.
Versão 1: A caminhonete que conseguira escapar no dia anterior
é encontrada em um posto de combustível de Matupá. Detido, o mo-
torista informa a localização dos demais suspeitos. Outros dois são
presos em uma casa e um terceiro tenta fugir apontando sua arma
para o cabo do BOPE, quando é morto pelo policial.
Versão 2: Na manhã de sábado, os três suspeitos encontrados na
casa estão rendidos e desarmados. Com fama de indisciplinado e
agressivo ao extremo, o cabo resolve executar um deles. E assim o faz.
Sempre correto, técnico, legalista, porém sem experiência de coman-
do na prática, o tenente discute asperamente com o cabo na frente de
outros policiais locais, a ponto de dar voz de prisão ao subordinado.
Aconselhado a relatar os fatos no retorno a Cuiabá, o tenente decide
pegar os outros criminosos que se embrenharam na mata.
Fato 3: Em vez de esperar as demais equipes do BOPE chegarem,
o tenente parte sozinho com seus homens cansados e estressados. Já
é final da tarde e eles enveredam por 160 km de estrada de terra até o
ponto em que a segunda caminhonete fora largada.
Versão 3: Entram na floresta em busca de pistas dos fugitivos,
134 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

e descobrem uma clareira. Começa a escurecer, contudo o tenente


sugere que fiquem no local à espreita. O cabo então sustenta que o
melhor para a segurança da equipe seria retornarem no dia seguinte
com os reforços. O tenente concorda e, quando estão a quase cem
metros da viatura na estrada, ouvem barulho de movimentação no
mato, do outro lado da rodovia. Todos se deitam no chão e permane-
cem estáticos por quarenta minutos. Sem nada mais perceber, tenen-
te levanta-se e diz: “Bora”. É sua última palavra proferida. Um único
tiro atinge o comandante na barriga. Ele cambaleia, urra de dor e
desaba. Ninguém da equipe revida. Só pensam em tirar o tenente
dali e levá-lo ao hospital mais próximo. No entanto, ele não resiste ao
disparo de fuzil feito por um dos bandidos do outro lado da estrada
e morre.
Fato 4: No dia seguinte, 14 de maio, enquanto o corpo do tenente
é velado, tem início uma grande operação para descobrir o paradeiro
dos marginais “homicidas”. Cerca de 150 policiais de várias forças
unem-se para caçá-los. O enterro acontece na manhã do dia 15, em
despedida marcada pela comoção.
Fato 5: Os dias passam, mas o rígido cerco policial não consegue
localizar os fugitivos. Após dez dias imersos no mato, bebendo água
estocada da chuva e famintos, acessam a rodovia e abordam um ca-
minhão com câmara frigorífica. A “carona” providencial leva-os à
cidade de Confresa, ainda no Mato Grosso. De lá debandam cada um
para o seu lado. Tais informações são do caminhoneiro, em depoi-
mento à polícia. Quando um destes suspeitos retorna ao Tocantins, é
preso. Os demais somem.
Fato 6: Reviravolta no caso. A munição que atingiu frontalmente
o abdômen do líder da missão em 13 de maio de 2017 teve como ori-
gem o fuzil do cabo, um de seus subordinados na equipe. Fato com-
provado por exame de balística, após inquérito instaurado a pedido
da Corregedoria da Polícia Militar de Mato Grosso. Prova irrefutável
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 135

divulgada em 6 de julho, menos de dois meses depois do fato. Efetua-


do a menos de três metros de distância, de baixo para cima, o disparo
varou o fuzil do tenente, que estava atravessado ao corpo, em posição
de descanso, furou o colete e parou perto de sua coluna.
O que fazer, então, com os depoimentos dos companheiros cavei-
ras, presentes na ocorrência? Alegaram que o tiro inesperado veio de
suspeito não identificado escondido em matagal, ao longe. Máscaras
de um teatro macabro logo caem. Os envolvidos são afastados e o
processo segue.
Versão 4: Sem ter mais como negar que foi o autor do disparo, o
cabo muda seu depoimento, mas afirma ter confundido o tenente
com um dos assaltantes, insistindo na tese de “fogo amigo”. O sar-
gento e o soldado mantêm-se firmes em dizer que não sabem de
onde partiu o tiro. Muitas perguntas ficam sem respostas: Por que
só houve um disparo? Ladrões do novo cangaço costumam descar-
regar suas abundantes munições nos “vermes” das volantes. Por que
ninguém da equipe revidou à agressão ao seu comandante? Estavam
no mato. Poderiam atirar à vontade. Se o tiro foi tão de perto, como
comprova a balística, como se pode confundir o alvo? Todas as ver-
sões mostram-se contraditórias e insustentáveis.
Fato 7: Em atitude no mínimo insensível da parte da corporação,
o autor do disparo que deu cabo do tenente recebe, em junho de
2018, medalha de honra ao mérito por “serviços prestados” à Polícia
Militar. A viúva do tenente se revolta e faz alarde nas redes sociais.
Fato 8: Janeiro de 2019 é marcado pela denúncia dos três policiais
do BOPE/MT. O Ministério Público do Estado considera que ocor-
reu um crime deliberado, ocasionado pelo trio subalterno, para evi-
tar possível acusação que a vítima faria sobre a “morte desnecessária”
do bandido abatido na manhã do dia 13 de maio de 2017, lembra?
Motivação torpe para crime vil, triplamente qualificado. O bolo de
acusações começa a ficar indigesto.
136 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

Fato 9: Já que invadimos 2019, no dia 15 de março é pedida a


prisão preventiva dos três, sob o argumento de que simularam con-
fronto com a quadrilha que de fato perseguiam para encobrir o as-
sassinato de seu superior imediato. Tudo muito grave.
Fato 10: A primeira audiência de instrução para julgamento dos
PMs acusados de assassinar o tenente acontece em abril de 2019, na
11ª Vara Criminal de Cuiabá, especializada em Justiça Militar. O jul-
gamento ainda não tem data agendada.
***
Voltando ao grupo quadrilheiro remanescente do ex-Senhor das
Armas, a pequena cidade mineira de Unaí, que faz divisa com o Dis-
trito Federal, surge na sequência de 22 de maio de 2017 com explo-
são de carro-forte na BR-251, sentido Brasília, só como referência
geográfica de que estão chegando à capital federal, pedra já cantada.
Seguranças precavidos abandonam o veículo blindado sob intensos
disparos de fuzil ponto 50 e adentram mata salvadora limítrofe à
estrada. Ninguém se atreve a encarar barra tão pesada. A vida é o
maior patrimônio que se pode ter. Os bandidos aproveitam-se muito
bem dessa máxima e tocam o terror, levando quantia não divulgada
oficialmente sem grandes entraves. “Quem liga?”, devem pensar.
A resposta somos nós. Investigações adiantadas da força-tarefa
apontam que assaltantes da quadrilha estão baseados, de fato, nos
arredores do DF. Informante cooptado por especialista em fontes
humanas resolve ajudar a polícia revelando que as armas usadas em
Unaí estão perto de Brasília, em uma chácara, e que haverá um en-
contro em conhecido shopping de descontos localizado em Alexâ-
nia/GO, a 90 km da capital federal, no dia 24. Equipes do serviço
velado da PM e do BOPE deslocam-se até lá e monitoram os três
suspeitos, que são abordados assim que se preparam para deixar o
local em caminhonetes possantes.
Maços de notas ainda com lacre da transportadora assaltada dois
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 137

dias antes, encontrados dentro dos veículos usados por eles, elimi-
nam qualquer resquício de dúvida sobre a participação do trio, ape-
sar das tentativas de negação.
– Onde está o resto do dinheiro? Onde estão as armas? – pergun-
ta objetivamente o oficial durante a entrevista.
– Não sabemos de nada não, senhor. Só ajudamos na logística.
Esse foi nosso pagamento. Não conhecemos ninguém – defende-se
um dos meliantes, com cara de coitadinho.
– Senhor, veja as coordenadas que encontramos no GPS desse
veículo – mostra o soldado, feliz por contribuir na resolução de caso
enroscado. O policial mais experiente coloca as coordenadas no
Google Maps de seu celular e o trajeto se desenha até a divisa com o
Distrito Federal.
Chácara em Formosa – outra cidade goiana do entorno, diame-
tralmente oposta a Alexânia – esconde R$ 426 mil enterrados em
chão de alqueires improdutivos. Árvores não dão dinheiro nessa ter-
ra, mas seu solo é bem rico. Em se plantando, pode-se dar de tudo
ali. Na mesma localidade indicada pelo informante, os suspeitos (já
pensando em redução de pena) mostram lugar exato onde brotam
sete fuzis, pistolas, carregadores e munições variadas.
Testes balísticos posteriores confirmariam o que já sabíamos:
chegamos à quadrilha central do Senhor das Armas. Fizeram, na or-
dem, os municípios baianos de Jacobina, Bom Jesus da Lapa, Irecê; e
os mineiros Cabeceira Grande e Unaí. Isso o que pudemos compro-
var do ano de 2016 a maio de 2017. Mas e a ponto 50 usada em Unaí?
Onde está?
Na manhã do outro dia, persistentes que são, equipes da Com-
panhia de Patrulhamento Tático, juntamente com policiais de Unaí/
MG, localizam ainda apetrechos de vestuário, coletes, mais dezenas
de carregadores e milhares de munições, além das temidas emulsões
e espoletas, nomes técnicos de explosivos capazes de garantir um le-
138 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

vante civil. Porém, sabemos que a guerra particular deles é por di-
nheiro.
Bem recompensado após entregar parte do grupo criminoso, o
informante quadrilheiro chama atenção para outro fato muito im-
portante:
– Sim, ainda têm alguns por aí, mas vocês devem ficar de olhos
abertos é em um dos irmãos mais novos do Senhor das Armas, tam-
bém truká. É ele que tá reativando e liderando a quadrilha.
Uma chácara nos leva a outra, também em Formosa. Manhã de
domingo do dia 28 de maio desvenda a famigerada ponto 50. Não há
adversários quando ela está no jogo. E essa trapaça só acontece em
favor do lado de lá, já que o de cá se vira como pode na “guerra assimé-
trica” de todos os dias. Sugestão: faça um exercício de empatia e tente
entender o quanto vale apreensão de uma única arma deste naipe, em
termos de segurança, para policiais na rua, apesar de todo o derrame
sabido nas fronteiras.
Mais um desdobramento da missão persecutória dos remanes-
centes quadrilheiros ligados ao Senhor das Armas (morto e enterra-
do), a Operação Nostradamus conta com um trabalho investigativo
preciso para localizar o enigmático ladrão Vidente, baiano franzino
de ficha corrida invejável para asseclas de sua laia. A força-tarefa da
vez é composta por PM de Goiás, da Bahia e PF.
Também residente no Distrito Federal, na icônica Taguatinga
(cidade-satélite imortalizada por Renato Russo), é encontrado por
um pequeno vacilo. Sempre cultivou a fama de prever aproximações
indesejadas e escapar pela tangente. Tanto que é um dos últimos do
bando. Mas uma hora o tropeço acontece.
Estamos em 7 de junho de 2017 e ele se esconde, com documento
falso, em hotelzinho fuleiro de Águas Lindas de Goiás, no entorno da
capital do país. Seu erro é levar a namorada, completamente qualifi-
cada por nós, da cabeça aos pés. Quando em apuros, você não pode
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 139

envolver os seus. Regra tão simples é constantemente ignorada por


bandidos novos ou experientes.
Ao chegar ao endereço com chamativo veículo roubado (outra
falha em localidade reconhecidamente pobre), reage a cerco logo de
quem? Do BOPE goiano. A perseguição veloz e furiosa, elevada à
máxima potência, ocasiona o capotamento de uma das viaturas. O
policial na direção machuca o peito no volante e rasga a testa no vi-
dro dianteiro. O sangue jorra e ele só pensa em uma coisa:
– Pegou no cabelo? Veja aí se pegou no cabelo! – o ex-calvo pre-
ocupa-se com sua vasta cabeleira recém-implantada. Ser caveira não
significa necessariamente ignorar a estética. Na brutalidade do dia a
dia do BOPE também há espaço para a boa aparência.
– Ahahaha, não! Fica tranquilo, mas acho que vai precisar de uns
pontos – o colega ao lado, ileso, tenta segurar a gargalhada. Afinal, o
momento é tenso.
– Ainda bem, só mais uma cicatriz pra minha coleção – dá de
ombros enquanto se esmera em conferir sua imagem no retrovisor
retorcido.
Outras viaturas seguem no encalço do alvo, mas dosando a sede
ao pote. Sem saída, o fugitivo abandona o carro em rua vicinal de
área rural e corre a pé atirando a esmo como em um faroeste caboclo
descoordenado. Ainda recebe socorro do Corpo de Bombeiros, mas
morre no hospital.
O que passa pela cabeça desses malucos?

Gafanhotos vorazes
Porém, ainda falta uma última ponta solta. Última se considerar-
mos este caso específico de uma das maiores e mais violentas qua-
drilhas de roubos a bancos, carros-fortes e bases de guarda e trans-
porte de valores em atividade, com grande parte de seus integrantes
oriunda de Cabrobó e localidades vizinhas, no sertão pernambuca-
140 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

no, berço do novo cangaço, como já visto. Outras surgirão; certeza


matemática. E continuaremos a solucionar intrincadas equações no
quadro negro da criminalidade brasileira. O alvo derradeiro da vez,
contudo, permanece foragido e, pior, reconectando sua rede do mal,
com ligações também fora do Nordeste, como Goiás, Tocantins, São
Paulo, Mato Grosso e Minas Gerais.
O Novo Truká, um dos irmãos do falecido Senhor das Armas, de
fato assume a liderança do grupo, como sinalizou nosso informante. E
apresenta traços de personalidade ainda mais impulsivos. Sua primei-
ra detenção ocorre em 2003, após emboscar e executar dois índios de
sua etnia, contrários ao tráfico de drogas na Ilha de Assunção. A partir
deste ponto, a porteira se escancarou para uma série de outros crimes e
prisões, passando pela terrível ação em Bom Jesus da Lapa, em janeiro
de 2017, quando participou da tortura e assassinato dos dois policiais
militares baianos. Heróis.
Ele, inclusive, estava nas imediações de Aragarças, junto com
outros integrantes não detectados da quadrilha, aguardando o mo-
mento de roubar mais um carro-forte, crime impedido com a mor-
te de seu irmão no confronto em que dois tiros arrancaram metade
da sua cabeça. Segundo comparsas presos posteriormente, teria
jurado vingança, perpetuando o velho e maldito círculo vicioso
da criminalidade violenta. Assumiu o bando já no prejuízo com o
encarceramento de companheiros importantes e a perda de arma-
mento precioso em Formosa/GO, depois do roubo do carro-forte
em Unaí/MG. Sem deixar a peteca cair, o Novo Truká vai atrás das
armas que o irmão havia alugado para um tal de Maquinado, que
realizou produtivo assalto a uma base de valores em Uberaba/MG,
no início de novembro de 2017. E recebe também o pagamento, é
claro.
Ou seja, nós, policiais, não temos alternativa senão ir para cima,
sem concessões, dó ou piedade. E, quando digo nós, refiro-me a um
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 141

louvável trabalho de compartilhamento de informações estratégicas


entre diversas forças de segurança pública do país, envolvendo polí-
cias Militar, Civil e Federal de Goiás, Bahia, Sergipe, Minas Gerais,
Distrito Federal e Paraná, uma lindeza de se ver. Se eles se associam
em consórcios criminosos autônomos e ágeis, nós devemos ser igual-
mente capazes de nos articular e equilibrar o jogo.
***
Êxodo 10:14-15
14 E vieram os gafanhotos sobre toda a terra do Egito, e assenta-
ram-se sobre todos os termos do Egito; tão numerosos foram que, antes
destes nunca houve tantos, nem depois deles haverá.
15 Porque cobriram a face de toda a terra, de modo que a terra se
escureceu; e comeram toda a erva da terra, e todo o fruto das árvores,
que deixara a saraiva; e não ficou verde algum nas árvores, nem na
erva do campo, em toda a terra do Egito.

Preceitos bíblicos narram a invasão dos gafanhotos como a oita-


va das dez pragas que Deus impingiu ao Egito para libertar o povo
hebreu escravizado por um faraó. Daí surgiu a ideia de batizar como
Operação Gafanhoto os esforços coletivos e integrados das polícias
contra a peste dessa quadrilha. Chegam em nuvens e exaurem os
recursos de determinada região, devastam as frágeis economias de
pequenas cidades, como Aragarças, em Goiás, e Grão Mongol e
Unaí, ambas em extremos de terras mineiras. Depois simplesmente
partem para outras, em um ciclo sem fim de caos e desesperança. No
entanto, como é de praxe, fechamos o cerco sobre as últimas peças
desse quebra-cabeça.
Meados de dezembro de 2017. O Novo Truká é liso e possui um
dom incrível para desaparecer. Fala quase nada, sempre usa identi-
dades falsas e está prestes a realizar mais um grande assalto. Dados
apurados e cruzados de inteligências policiais descobrem o nome de
142 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

sua esposa e filha. Vizinho do posto de saúde onde a mulher traba-


lha, um de nossos colaboradores em Minas Gerais indicou que a mãe
levara a adolescente há pouco tempo ao local para vacinar-se contra
o HPV. Então surge um endereço: duplex padrão classe média, dis-
creto, localizado em Uberlândia/MG.
Mais cruzamentos de inteligência nos levam a outro domicílio,
este de comparsas ligados ao Novo Truká, desta vez em Montes Cla-
ros, também em terras mineiras. Com autorização da justiça – que
reconhece haver fortes indícios da existência de armamento pesado
e explosivos neste último imóvel –, montamos campana para identi-
ficar o restante do bando, juntar provas materiais e prendê-los com a
boca na botija, antes que executem mais um crime violento. Em Uber-
lândia, enfim chegamos ao quartel-general do crime, onde residem
mulher e filha do Novo Truká. Mantemos vigilância constante nos
dois locais, dia e noite, sem dar trégua.
No apartamento de condomínio fechado em Montes Claros,
confirmamos a presença de outro comparsa, sua esposa e uma bebê
recém-nascida. O homem esperava a visita de outros quadrilheiros,
a começar pelo seu irmão mais velho, que chegaria no início da noite
e ficaria hospedado à espera dos demais.
– E aí? Podemos invadir? – pergunta um P2 pilhado, doido para
entrar em ação.
– Claro que não, segura a onda! Vai chegar mais gente, inclusive
o alvo principal.
– Sim, sim, claro.
– E não esqueça que tem criança na residência, pelo amor de
Deus.
Enquanto isso, em uma das mensagens instantâneas intercepta-
das do aplicativo Signal, uma conversa codificada desperta a curiosi-
dade de um agente encarregado do monitoramento virtual:
– Mas que diabo é isso? O que significa “ru.c.cbrc.rema”?
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 143

Estava aberta a oportunidade de acessarmos o circuito fechado


da quadrilha. Experiente em quebrar criptografias sofisticadas, nos-
so especialista da Polícia Federal não consegue decifrar e compreen-
der, contudo, a lógica de comunicação rústica empregada.
Como trabalhamos em cooperação, e não existe melhor fórmula
(desde que haja confiança irrestrita no grupo), resolvemos partilhar
o desafio com os gênios da inteligência policial no Paraná, que, após
analisar as posições das letras em tabela incompleta, chegam à pala-
vra “Pernambuco”. Nem sempre é fácil enxergar o óbvio. Ou seja, dez
letras que pareciam aleatórias formam, na verdade, a sequência dos
dez números indo-arábicos (0 a 9). No caso, a enigmática mensa-
gem referia-se a um número de celular com o qual um integrante do
grupo criminoso deveria entrar em contato com a esposa do Novo
Truká. Bingo! Estamos dentro de toda a conversa entre eles.
E logo identificamos esse novo integrante, velho conhecido:
Russo, que vem de Sergipe, passando por de Feira de Santana/BA.
Cunhado do Novo Truká, Russo é um destemido assaltante. Já se
envolveu, até, em troca de tiros com o COT-PF, em 2005. Sortudo, le-
vou disparo de raspão no pescoço, sendo capturado, tratado, preso e
solto. Ignorou as audiências da justiça, sumiu do mapa e encontrava-
-se foragido desde então.
– Quem diria? Olha o Russo aí de volta – comenta um colega
policial, que integrou o COT na época e participou desse confronto
de 2005.
– Pois é, tá ficando cada hora mais interessante.
– Presta atenção, não podemos deixar esse assalto se consumar.
Eles são muito violentos, falo por experiência própria.
– Isso, vamos só esperar eles se juntarem e pegarem as armas.
– Tem que ser planejado nos mínimos detalhes.
– Estamos com eles nas mãos, não se preocupe. A opção de serem
presos é deles. Do contrário...
144 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

Movimentação é detectada na saída da garagem do condomínio


em Montes Claros.
– Quem está no veículo?
– A mulher e a bebê.
– Só? Tem certeza?
– Sim, nenhuma outra fonte de calor biológico detectada.
– Ok, deixe-as ir. Melhor assim. Depois vamos atrás, se for o caso.
– Positivo, veículo já rastreado.
– Ótimo.
Neste momento Russo desembarca na rodoviária de Montes Cla-
ros e logo adentra em um carro que o aguardava. Atrás do volante, o
Novo Truká é identificado.
– Acompanhando a dupla, copiado?
– Positivo, cuidado para não serem percebidos.
– Parece que estão se deslocando praí.
Não dá outra. Chegam ao condomínio classe média, e o portão
começa a se abrir.
– Senhor, estamos com os quatro sozinhos lá dentro. Oportuni-
dade de ouro.
– Algo me diz que as armas não estão nesse imóvel. Podemos
botar tudo a perder. Mantenham as posições.
Algumas horas depois, o líder indígena e seu cunhado saem de
carro. Imediatamente a equipe de campo aciona um drone e, ao mes-
mo tempo, marca o veículo dos suspeitos com laser para obter sua
geolocalização via satélite. À distância, em segurança, viatura desca-
racterizada vai atrás rastreando todo o percurso em tempo real. A
tecnologia ainda possui vasto espaço ocioso de atuação na área da
segurança pública brasileira. Mas, aos poucos, chegaremos lá.
O rumo trilhado pela dupla investigada leva a equipe reservada
da P2 a uma região de chácaras, na zona rural de Salinas, distante
cerca de 200 km de Montes Claros. Possivelmente será ali que vão se
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 145

armar, e retornarão para reagrupar a quadrilha e executar o assalto.


Pegaremos ambos na volta, em um ponto ideal para a abordagem.
Hora de agir!
Com os ladrões sob monitoramento divididos e, por isso mesmo,
mais vulneráveis, a invasão do apartamento em Montes Claros é au-
torizada. Pegos de surpresa, os dois suspeitos que ocupam a residên-
cia, e que também são irmãos, não oferecem resistência. Documen-
tos falsos, dezenas de aparelhos celulares, diversos comprovantes de
depósitos bancários e dinheiro vivo, sem comprovação de origem,
dão a medida do envolvimento de ambos, que, por razões óbvias,
ainda tentam ludibriar os experientes policiais. Sem saída, o bandido
mais velho toma a palavra:
– Tudo bem, fazemos parte sim do grupo, mas não da ação em
si. Eu sou o encarregado da preparação, do apoio logístico. E meu
irmão aqui só fica de olho e passa informações.
– Fale por você. Vamos conversar com seu irmão depois.
– Tá certo. Eles foram buscar as armas.
– Onde?
– Não sei exatamente. Eles não me falaram.
– Porra, você é o cara da logística e não sabe onde é o ponto de
apoio? Tá achando que sou idiota?
– Não, senhor. De jeito nenhum. Eles dizem que é para a segu-
rança da operação. Só sei que é lá para o lado de Vale das Cancelas,
perto de Salinas.
Atentos à entrevista preliminar via comunicadores, nós da inteli-
gência confirmamos a informação:
– Ele diz a verdade. O rastreador aponta a localização do veículo
exatamente nessa região. Já estamos enviando unidades para lá.
– Tá bom – retoma o policial. – Digamos que você esteja falando
a verdade. Mas e os explosivos? Estão lá também?
– Errh...
146 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

O celular do cara da logística toca e o oficial encarregado da abor-


dagem não perde a oportunidade:
– Olha pra mim. Se você quer mesmo melhorar a sua situação e a
do seu irmão, a hora é agora. Bota no viva-voz.
E assim mais um integrante da quadrilha é identificado. Motoris-
ta de caminhão que vem do Oeste da Bahia carregando 20 kg de ex-
plosivos e uma placa de aço para blindar, pelo tamanho, a parte tra-
seira de uma caminhonete. Nesse tipo de escudo foram feitos, ainda,
recortes para encaixar fuzis e, certamente, a devastadora metralha-
dora ponto 50. Agora faltam o cabeça do bando e seu fiel cunhado.
***
O norte de Minas Gerais e, em especial, o distrito de Vale das Can-
celas, em Grão Mogol, é palco de longa tensão fundiária entre comu-
nidades tradicionais de geraizeiros – como são conhecidas as secula-
res famílias locais, adeptas da criação de gado livre, roçado e também
coleta de alimentos e plantas medicinais do cerrado – e poderosas
empresas mineradoras e exploradoras da monocultura de eucaliptos.
Os geraizeiros não fedem nem cheiram para seguidos governantes. E
muito menos para o Novo Truká, que só pensa no dinheiro gordo que
circula para lá e para cá em carros-nem-tão-fortes-assim, pertencentes
à empresa de guarda e transporte de valores responsável pelo abasteci-
mento de numerário da região.
Em estrada de terra marginal, junto a majestosos e simétricos
eucaliptos australianos perfumados, a dupla criminosa transita des-
preocupadamente enquanto repassa os últimos detalhes do plano de
assalto. Até que, em sentido oposto, avistam uma única viatura po-
licial. Sinais luminosos e sonoros são ativados, e o carro dos agentes
da lei freia. Som amplificado ordena:
– Polícia! Saiam devagar com as mãos para cima! Agora!
Os bandidos igualmente param e deixam menos de 50 metros de
vento, poeira e suspense entre os dois veículos.
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 147

– Mas que porra é essa? Viatura da PM aqui? Aquele imbecil do


olheiro não disse que essa rota era segura?
– Calma, chefe. Vamos sentar o dedo nesses vermes. Não vão dar
nem pro gasto.
– Isso aí, que se foda!
Novo Truká já sai atirando de fuzil e é alvejado com um único
disparo no meio do peito. Sem entender o que acabara de acontecer,
Russo saca a pistola e procura abrigo entre os eucaliptos de caule
fino. Tomba para trás com o impacto de um projetil na cabeça. Só
então os policiais do BOPE, trajando fardas da PM convencional,
deixam a viatura, ilesos. Camuflados junto a folhas secas e galhos
no chão, dois snipers revelam suas posições. Confiança é tudo no
trabalho policial. Fim da linha para os bandidos. Com eles no carro
estavam quatro fuzis, uma metralhadora ponto 50, duas pistolas e
centenas de munições.
Para não deixar pedra sobre pedra, avisamos o fato aos colegas
de Uberlândia para buscarem a recém-viúva do Novo-Velho Truká.
Sem resistência, ela é presa já entrando no caminhão de mudanças,
com todos seus móveis. Mesmo sem haver mais ninguém para assal-
tar, quebramos ali a estrutura financeira da quadrilha, pois a esposa
era a responsável por lavar o dinheiro ilegal que entrava aos milhões.
Vai que ela resolve se associar a outro grupo?
O Senhor das Armas e o Novo Truká estavam muito mais do que
credenciados para se tornarem lideranças incontestáveis de uma
futura federação interestadual de grupos criminosos para grandes
assaltos. A ideia não é recente e, vez e outra, ganha impulso entre a
bandidagem. Imagine o que um colegiado suprafacções, em formato
mafioso, não faria em um país como o nosso? É de dar frio na espi-
nha. Pois a escalada do novo cangaço e o surgimento do domínio de
cidades representam apenas uma pequena fração do que pode nos
acontecer em breve.
148 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

Enquanto o futuro não chega, um grupo de policiais militares das


Rondas Ostensivas Táticas Metropolitanas de Goiás (ROTAM), em
formação no pátio, canta e exalta a bravura dos que se foram em
Bom Jesus, no estrito cumprimento do dever de proteger os cidadãos
e garantir a ordem pública:

“O fim foi em Goiás, o fim foi em Goiás


Agora eu vou contar a história dos trukás
Saíram de Assunção pra aterrorizar
E eles iriam um banco estourar
Numa segunda-feira ao anoitecer
Em Bom Jesus da Lapa resolveram aparecer
Pensaram que era fácil, mas se enganaram
Trombaram com a PM e seus três heróis fardados
O novo cangaço tinha chegado ali
Quinze contra três, não pensaram em desistir
Troca de tiros, desespero total
E dois dos heróis tombaram contra o mal
Mexeu com um de nós, mexeu com todo mundo
Fulano e Sicrano7 já sabiam o seu futuro
Pra cumprir essa missão a volante apareceu
Sem dó nem piedade a ordem que recebeu
Só de ouvir falar o ladrão estremeceu
E na cidade de Aragarças o demônio conheceu
Dois tiros na cara foi o resultado
E embarcou pra morte com o caixão fechado
E a volante respirou aliviada
Mas faltava Sicrano, continue a caçada

7. Para manter a orientação de não revelar nomes reais que inspiraram as histórias do
livro, os autores colocaram pseudônimos para se referirem aos irmãos trukás na música.
RENATO JÚNIOR E LAUREJAN FERRAÇO 149

Foi em Goiás, foi em Goiás


Essa é a história dos irmãos trukás
A volante o Sicrano encontrou
E em terras mineiras forte trovejou
Sicrano vagabundo ali mesmo tombou
E com o seu irmão no inferno se encontrou
Você ladrão de banco agora entendeu
A volante sempre vai vingar os seus
E nossa missão é caçar vocês
Aqui em Goiás ladrão não tem vez
Chora volante, mas chora de emoção
Por Bom Jesus da Lapa cumprimos a missão”
***
Não sou bom em despedidas. Por isso serei breve. Peço que releve
barbarismos e possíveis pieguices de determinadas passagens. Acre-
dite que você leu e viveu sentimentos da mais alta conta, calcados em
algumas inspirações ficcionais, tanto da frente de combate quanto de
bastidores reveladores da livre fruição de histórias policiais.
Esta é uma obra fácil de ler, mas difícil de compreender. Foi escri-
ta para ser estudada e questionada por curiosos amantes da literatura
de ação e pesquisadores da criminalidade violenta; estes últimos com
o desafio de tentar montar o quebra-cabeça que leva às verdadeiras
personagens e suas ligações com os demais crimes que assolam o
país desde o início do século.
Peço ainda desculpas porque este livro não tem final feliz. Muito
menos luz em túnel sem fim. Enquanto isso, nosso “Runaway Train”
inclemente segue firme em trilhos errantes. E a todo vapor, confian-
do de olhos vendados em instintos nos quais acredita até a morte.
Para equilibrar lida heavy metal diária, coloco um soft rock no
celular e deixo-me levar pelo lema de “pão, vinho e flor”.
Veremos a luz de novo?
150 GUERRA FEDERAL – RETRATOS DO COMBATE A CRIMES VIOLENTOS NO BRASIL

Você também pode gostar