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1ª Edição
Belo Horizonte
Poisson
2018
Editor Chefe: Dr. Darly Fernando Andrade
Conselho Editorial
Dr. Antônio Artur de Souza – Universidade Federal de Minas Gerais
Dra. Cacilda Nacur Lorentz – Universidade do Estado de Minas Gerais
Dr. José Eduardo Ferreira Lopes – Universidade Federal de Uberlândia
Dr. Otaviano Francisco Neves – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Dr. Luiz Cláudio de Lima – Universidade FUMEC
Dr. Nelson Ferreira Filho – Faculdades Kennedy
Ms. Valdiney Alves de Oliveira – Universidade Federal de Uberlândia
Formato: PDF
ISBN: 978-85-7042-019-0
DOI: 10.5935/978-85-7042-019-0.2018B001
CDD-658
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APRESENTAÇÃO
A presente obra consiste numa coleção de textos, que trazem debates em torno
da questão territorial no Brasil, produzidos por estudiosos de diferentes áreas
do conhecimento como a Geografia, Planejamento Urbano e Regional,
Arquitetura e Urbanismo, Direito, Política, Economia, Cultura, Ciências Sociais,
Educação. Trata-se de um desafio epistemológico voltado para a reflexão sobre
a produção do espaço urbano e rural, em suas diversas facetas, todas elas
impactadas pela pós-modernidade e pelos fenômenos a ela associados tais
como a supremacia da urbanização, a globalização, o advento das novas
tecnologias de informação e comunicação e as mudanças nas relações entre
territorialidades na sociedade contemporânea.
Aproveite a leitura!
Capítulo 15: Campo dos Alemães em São José dos Campos / SP como
campo de disputa simbólica: o que dizem os muros ................................................................
187
Frederico Papali, Valéria Zanetti, Paula Vilhena Carnevale Vianna
Autores ................................................................................................................................
291
Capítulo 1
Sudoeste do Paraná, e que certamente tem natureza. O natural ganha viés de artificial,
aspectos semelhantes a milhares de outras recebe elementos e simbolismos do novo
cidades de médio porte do Brasil, onde a contexto que está prestes a ser formado.
população permanece próxima da praça Processo que, conforme Milton Santos (2009,
central, seja no passeio despretensioso no p.233), é “[...] sucessivamente
entardecer, ou na união popular para instrumentalizado por essa mesma
reivindicar alguma mudança. Contudo, sociedade”. A relação entre o “natural” e o
mesmo que viva a cidade e a praça, a “artificial” é alterada de acordo com cada
comunidade nem sempre reflete sobre elas, novo contexto, em cada novo momento
ou reconhece a representatividade de histórico (SANTOS, 2009, p.233). O
movimentos sociais desencadeados em processo de urbanização da Praça Presidente
determinados momentos. É por isso que Vargas, a partir da prática dos atores/agentes
escrevemos este artigo. sociais, evidencia tal percepção.
Não há registros que comprovem com
exatidão o ano em que a Praça Brasil – antigo
2. O ESPAÇO PÚBLICO URBANO E A
nome da Praça Presidente Vargas – começou
ATUAÇÃO DOS AGENTES SOCIAIS
a se formar enquanto espaço urbano,
Em uma cidade relativamente jovem como previamente delimitado. Há, por outro lado, a
Pato Branco, com pouco mais de 60 anos de conotação simbólica do reconhecimento da
emancipação política, a vida pulsa no anel população a partir da intervenção religiosa
central. Prática cotidiana que começou nas franciscana, ocorrida com a transferência da
primeiras décadas de colonização, pois o capela para esse local em 1935 (BODANESE,
comércio, o lazer e os principais atrativos da 1982, p.09).
vida urbana estão condicionados na mesma
Embora o primeiro traçado viário de Pato
extensão física desde a década de 1930. De
Branco já tivesse sido elaborado pelo
lá para cá, o perfil cultural, econômico e social
Engenheiro Duílio Beltrão, na década de
da comunidade foi transformado – contudo,
1930, o conjunto de elementos típicos de uma
ainda preservam traços de sua colonização,
colonização de descendentes europeus – que
estes que não estão tão no passado assim.
segue certa lógica em que a igreja, junto com
A constituição histórica de espaços públicos é os demais serviços, vai definindo o anel
definida por interações sociais, que refletem o central, pois é em torno dele que vão se
desenvolvimento social, econômico e cultural instalando as moradias e demais
de determinada localidade. Foi assim com a edificações/funções – conduziu a definição do
Praça Presidente Vargas. Nela, experiências anel central. Na época, já havia algumas
desencadeadas por atores sociais casas e comércio no entorno do espaço, mas
enalteceram a ligação entre os sujeitos e o foi a transferência da capela para a área
“lugar” – que não é apenas transitório, ou um correspondente à praça que de fato
mero ambiente de passagem; mais do que consolidou a constituição simbólica e social
isso, integra o dia a dia da sociedade e, do espaço público (VOLTOLINI, 2005).
sobretudo, apresenta reflexos da vida
Sabe-se, portanto, que foi a partir da
moderna, como expressada pelas lógicas de
transferência da igreja que a praça passou a
uso e de infraestrutura que a praça fora tendo
ser reconhecida pela população. “E como,
ao longo das últimas décadas.
num povoado interiorano nos moldes de Villa
O que configura um “espaço público” é, Nova, tudo girasse em torno da igreja, mudou-
justamente, o conjunto de relações se também o ponto polarizador da vila,
interpessoais atribuídas a ele. Portanto, é mantendo-se através dos anos e
importante considerar a diferença entre transformando-se no centro da cidade de
“lugar” e “espaço”, pois o segundo é uma Pato Branco”, (VOLTOLINI, 2005, p.291).
variável praticável do primeiro. Ou seja, o Neste período, muito antes da emancipação
espaço existe a partir da apropriação política da localidade, a mesma era
individual e coletiva do mesmo, em que conhecida como “Villa Nova”.
constitui-se enquanto “um lugar praticado”,
Desde a constituição da Praça Presidente
formado por um sistema de signos
Vargas, fica evidente o papel dos atores
(CERTEAU, 1994, p.202).
sociais na consolidação física e simbólica
Quando um lugar passa a ser habitado, deste espaço construído socialmente, através
altera-se a relação entre sociedade e da intervenção da comunidade. Tal evidência
junto à casa do educador, ganhava nova sede Ainda no ramo hoteleiro, entre as décadas de
a cada mudança da família, por isso também 1940 e 1950, o pioneiro Pedro Ramires de
se instalou no entorno da praça (VOLTOLINI, Mello transformou o armazém da família no
2005). Hotel Brasil, situado na avenida Tupi, onde
hoje é a Caixa Econômica Federal. O
Entre as décadas de 1930 e 1940, além da
estabelecimento, que levava o nome da
capela e da escola, a praça sediava outra
praça, foi vendido para Clemente Pastro, em
importante construção: o primeiro hotel de
1950. Contudo, “Pedro Xico” continuou no
Pato Branco, de propriedade do alemão Paulo
ramo e construiu, na esquina da rua Silvio
Schmidt, que ocupava a área onde hoje é o
Vidal e da avenida Tupi, o Hotel Rodoviária
edifício Severino Cavazzola, no início da rua
(hotel em cima e rodoviária embaixo), uma
Pedro Ramires de Mello. A estrutura era um
vez que Pato Branco já recebia linhas
casarão, em que o pátio era usado pela
regulares de ônibus – algo de
escola do professor Juvenal Cardoso como
representatividade regional para a época
área de recreio e atividades (VOLTOLINI,
(VOLTOLINI, 2005). A localização dos dois
2005).
hotéis está ilustrada no mapa a seguir:
Mapa 1: Praça Presidente Vargas, Hotel Brasil, Hotel Rodoviária, Matriz São Pedro Apóstolo e ruas
do entorno.
Fonte/descrição: Mapa criado pela autora, baseado no desenho atual da praça, ilustrando os dois
hotéis em questão, conforme disposição da época.
encontro, é preciso considerar que os para dar existência, não puderam se furtar.
campos da vida e da atividade humana (BOURDIEU, 2001, p.31)
acompanham tradições expressas e
Os fatos desencadeados em 1957 resultaram
verbalizadas. Essas manifestações são
em outro episódio emblemático sediado pela
condicionadas pelos “senhores do
Praça Presidente Vargas. Em 17 de março de
pensamento”, que detêm ideias
1962, o então presidente da República, João
determinantes, que são concebidas como
Goulart, esteve no local para legalizar a
fundamentais para a sociedade onde estão
situação dos colonos e entregar escrituras
inseridas (BAKHTIN, 2011, p.294). De acordo
das terras ocupadas por pequenos
com Bourdieu (1996), a percepção do espaço
agricultores. Na oportunidade, foi
social refere-se a um ponto de vista, uma
recepcionado por lideranças políticas e
perspectiva, onde “[...] a realidade primeira e
comunitárias. Em ato público realizado na
última já que comanda até as representações
praça, Goulart “fez justiça”, conforme a
que os agentes sociais podem ter dele”
grande faixa sustentada pela população que
(BOURDIEU, 1996, p.27).
presenciou o ato (VOLTOLINI, 2005)2.
O ponto crítico do conflito ocorreu em 09 de
Mobilizações sociais em busca de direitos
outubro de 1957, quando três crianças foram
como a Revolta dos Posseiros, bem como a
espancadas por jagunços em Pato Branco.
relação que assumem com o espaço urbano,
Esta e outras atrocidades direcionadas a
estão ligadas ao processo de
famílias do Sudoeste fizeram com que os
desenvolvimento local, este que não refere-se
agricultores se mobilizassem para a luta, no
apenas a variáveis ligadas à renda ou à
conhecido “levante”. Foram quatro dias de
acumulação de riqueza. Partindo do
tensão, pois o levante dos Posseiros, entre 9 e
pressuposto defendido por Amartya Sen
12 de outubro de 1957, fez com que a Junta
(2000), o desenvolvimento precisa ser
Governativa de Pato Branco montasse guarda
reconhecido não somente por questões
especial em locais de possíveis ataques.
econômicas, mas também pelas condições
Nesse período, mulheres e crianças não
de qualidade de vida, do exercício das
saíram de casa e o comércio parou de
liberdades básicas e dos direitos civis. Ao
funcionar. Além disso, corriam boatos que, a
usufruirmos dessa liberdade, além de interagir
qualquer momento, a cidade seria invadida
com o mundo, é possível influenciá-lo (SEN,
por jagunços fortemente armados
2000).
(VOLTOLINI, 1997)1.
Observa-se que a interação social contribui
Esses agricultores podem ser reconhecidos
para constituir a significação de um espaço
como “novos agentes sociais”, surgidos em
urbano, bem como dos agentes sociais. As
meio a um período de conflito, tensão e
experiências obtidas a partir desta
resistência popular. Esse episódio pode ser
perspectiva também são discursivas e
compreendido quando Bourdieu (2001) afirma
refletem, sobretudo, a maneira como os
que:
sujeitos se posicionam perante a sociedade.
De fato, todos esses novos agentes sociais - a Ou seja, conforme Bakhtin (2011), a forma
respeito deles talvez seja apropriado dizer como compartilhamos impressões sobre
que, cada qual em seu nicho, contribuirão determinados aspectos cotidianos, além de
para a invenção do universal do qual se possuir elementos que ocorreram
tornarão os porta-vozes por meio dos anteriormente, também origina de enunciados
"filósofos das Luzes" - acabaram cumprindo emitidos por diferentes sujeitos que compõem
essa função histórica por estarem envolvidos o tecido social em que estamos inseridos.
em campos relativamente autônomos e cuja
A composição desse tecido social é
necessidade, que eles mesmos contribuíram
apresentada por Ricardo Abramovay (2000,
1
Em 09 de outubro de 1957, foi definida a criação
da Junta Governativa Provisória, para assumir o 2
Em 19 de março de 1957, dois dias após a visita
comando de Pato Branco durante os dias do a Pato Branco, João Goulart criou o Grupo
levante da Revolta dos Posseiros. Formada por Executivo de Terras Para o Sudoeste do Paraná
“intelectuais”, suas deliberações por vezes não (Getsop), através do decreto 51.431, que durante
foram reconhecidas como legítimas por lideranças 12 anos trabalho pela paz e bem-estar na região,
que lutavam no conflito. Além disso, o grupo legalizando as situações dos colonos (VOLTOLINI,
formado por pouco mais de 20 pessoas, foi 1997, p.190).
reconhecido como “ditatorial” pelo jornal o Estado
do Paraná (PEGORARO, 2007).
agências ligadas ao estado, é tão incomum que há um processo dialético entre as regras
nos dias de hoje? Além da confiança na e o grupo de agentes que as pratica. Na
paróquia e nos frades franciscanos, a medida em que a sociedade as vivencia,
comunidade acreditava nos valores dos também concebe eventuais regras e práticas
agentes humanos envolvidos na cooperação, cotidianas, que definem a significação do
onde a suposição de credibilidade estava tempo e a valorização de ocasiões
diretamente relacionada à honra dessas desencadeadas pela prática social
pessoas (GIDDENS, 1991, p.35). (DAMATTA, 1987, p.49).
Nos dias de hoje, será que a comunidade se A edificação da matriz foi concluída em 1965
envolveria da mesma forma se fosse e deu lugar à capela que, em 1935,
convocada a edificar um novo santuário para contribuiu para o reconhecimento da área da
a cidade? Ou, ainda, será que as pessoas Praça Presidente Vargas. Vale destacar que,
que transitam diariamente pela Praça assim como a anterior, a nova igreja
Presidente Vargas, que frequentam o local permaneceu dentro dos limites da praça,
com a família ou que participam das integrando a dinâmica relacional
mobilizações sociais que ocorrem no espaço, desencadeada no espaço público. Todavia,
se questionam sobre a atuação dos pioneiros vale frisar que a relação histórica entre
na concretização da matriz que, muito mais religião e a Praça Presidente Vargas também
do que um cartão postal ou símbolo do refere-se a propriedade legal da área onde foi
município, representa uma característica delimitado o logradouro.
social presente em determinado espaço-
Embora já estivesse legalmente reconhecida
tempo?
enquanto espaço público, a área da praça
Primeiramente, para que possamos continuava sendo propriedade da paróquia
compreender as consequências da até 1958, quando frei Honorato Brüggemann
modernidade, precisamos definir o que é negociou a área com a Prefeitura Municipal
modernidade. Segundo Giddens (1991), para atender ao projeto de urbanização
modernidade é “[...] o estilo, costume de vida realizado na administração do terceiro prefeito
ou organização social que emergiram na de Pato Branco, Dr. Harry Valdir Graeff
Europa, a partir do século XVII e que se (VOLTOLINI, 2005, p.221). Na lei nº 30/58,
tornaram mais ou menos mundiais em sua sancionada em 20 de dezembro de 1958,
influência”, (GIDDENS, p. 11, 1991). Na consta que o poder executivo investiu Cr$
medida em que as sociedades passaram de 500.000,00 na aquisição da área da Praça
“tradicionais” para “modernas”, o que também Presidente Vargas, valor repassado à Igreja
refletiu nas práticas relacionais, alterou-se a Matriz de Pato Branco.
consciência entre o espaço (o lugar) e o
Atualmente, conforme a sociedade recebe os
tempo.
traços da modernidade, a presença física dos
Basta nos debruçarmos diante da história e atores se torna dispensável, pois tal relação é
reconhecermos como a criação do relógio mediada por fichas simbólicas (dinheiro) e
mecânico, no final do século XVIII, mudou a sistemas peritos (meios tecnológicos e
forma com que nos relacionamos em especialidades profissionais). Como
sociedade, para então percebermos que a consequência, essa independência da
organização do tempo concebeu novas intervenção direta do “outro” infere a atividade
significações à forma com que enxergamos o social, onde “[...] instituições desencaixadas
mundo. E, desde então, estamos cada vez dilatam amplamente o escopo do
mais distantes da natureza (Giddens, 1991, distanciamento tempo-espaço e, para ter este
p.27-28). Assim, Giddens (1991) nos leva a efeito, dependem da coordenação através do
repensar a relação do homem com a tempo e do espaço”, (GIDDENS, 1991, p.24).
natureza, a partir da noção de “espaço e
Assim, a relação estabelecida com o outro
tempo”, nos colocando diante das
pode ocorrer, facilmente, à distância.
transformações sociais desencadeadas a
Aparentemente, a facilidade tecnológica não
partir da era moderna.
implica na finalidade das relações, pelo
Outra possível abordagem para a prática contrário, possibilita tal relacionamento.
espacial e temporal dos agentes, pode ser Contudo, permanece o sentimento de que, ao
observada a partir da concepção de mesmo tempo em que permite uma
“tradições culturais autênticas” apresentada proximidade que seria impossível num
por Roberto DaMatta (1987). O autor elucida passado relativamente próximo, distancia os
agentes, que estabelecem relações por vezes porque contêm e perpetuam a experiência de
superficiais – o que também implica no gerações”, (GIDDENS, 1991, p.38). Em
reconhecimento no espaço público urbano, sociedades onde a tradição ainda é
que por vezes é identificado como meramente perpetuada, símbolos que possuem valor
transitório, sem ter a sua representatividade social inferem na organização tempo-espacial
cultural e social reconhecida. da comunidade, onde presente, passado e
futuro são estruturados por práticas sociais
Ocorre então uma contínua geração de
recorrentes.
valores e autoconhecimento relacionada à
reflexividade da modernidade. Para Giddens Assim, quando imbuída de significado, a
(1991), “[...] as práticas sociais são tradição relaciona-se ao ritual e “[...] mantém
constantemente examinadas e reformadas à a confiança na continuidade do passado,
luz de informação renovada sobre estas presente e futuro, e vincula esta confiança a
próprias práticas, alterando assim práticas sociais rotinizadas” (GIDDENS, 1991,
constitutivamente seu caráter”, (GIDDENS, p.95). Nesse processo, aspectos da tradição
1991, p. 45). Ou seja, o tempo todo são também são reinventados a cada nova
recriadas significações sociais de acordo com geração, onde o vínculo com o passado é
diferentes interesses e percepções. Há uma mantido. Assim, a identidade social, continua
inconstância na sociedade atual, o que vem se reconhecendo, na medida em que é
de encontro com a ideia de que a “grande transformada.
narrativa” é reconhecida como falha, cuja
Não se sanciona uma prática por ela ser
história da humanidade não pode ter um
tradicional; a tradição pode ser justificada,
começo, um meio e um fim preconcebidos.
mas apenas à luz do conhecimento, o qual,
É a partir dessa inconstância que os atores por sua vez, não é autenticado pela tradição.
têm o “poder” de alterar os acontecimentos. Combinado com a inércia do hábito, isto
Ou seja, mesmo aqueles que assumem significa que, mesmo na mais modernizada
posição de subordinação têm capacidade de das sociedades, a tradição continua a
gerar a mudança (GIDDENS, 1989, p. 10). desempenhar um papel. Mas este papel é
Assim, a agência humana é uma geralmente muito menos significativo do que
característica da reflexividade, esta que faz o supõem os autores que enfocam a atenção na
agente refletir sobre suas ações e regras e integração da tradição com a modernidade no
que o conduz a transformar as práticas mundo contemporâneo. Pois a tradição
sociais (GIDDENS, 1991). justificada é tradição falsificada e recebe sua
identidade apenas da reflexividade do
Nesse processo de contínua transformação, o
moderno. (GIDDENS, 1991, p.39)
valor simbólico da Praça Presidente Vargas
permanece latente. Desde que começou a ser Ainda conforme Giddens (2012), processos
reconhecido enquanto logradouro público, na de mudanças intencionais, que visam o
década de 1930, o local é palco dos abandono da tradição, estão diretamente
principais eventos da cidade, inclusive de relacionados à agenda da ciência social. O
atrações turísticas. Então, por que a autor define esta como uma característica da
sociedade mantém essa relação de “sociedade pós-tradicional”, uma vez que a
proximidade com este espaço público? Por modernidade reconstruiu a tradição na
que é uma relação tão peculiar se comparada medida em que absorvia seus reflexos. Essa
com outros logradouros da cidade? recriação contínua da tradição, nas
sociedades ocidentais, contribuiu para a
Conforme pontua Giddens (1991), essa
legitimação do poder a partir da imposição do
evidência não possui conexão direta com o
Estado diante de sujeitos passivos (GIDDENS;
passado, tampouco refere-se apenas à
BECK; SCOTT, 2012, p.90-91). Afinal,
prática da tradição local. Isso porque hábitos
rotineiros estão internalizados na organização [...] nem "o passado" nem "o futuro" são um
social – não denotam, necessariamente, fenômeno discreto, separado do "presente
aspectos tradicionais. Ocorre que o contínuo", como no caso da perspectiva
posicionamento desencadeado outrora pode moderna. O tempo passado é incorporado às
coincidir com as significações renovadas pela práticas presentes, de forma que o horizonte
sociedade. do futuro se curva para trás para cruzar com o
que se passou antes. (GIDDENS, 1991, p.95)
Diferente de eventos da reflexividade
moderna, “[...] nas culturas tradicionais, o É possível observar um exemplo deste
passado é honrado e os símbolos valorizados “embate” entre modernidade e tradição, que
Fotografia 1: Praça Presidente Vargas, entre as Fotografia 2: Praça Presidente Vargas, em 1972,
décadas de 1960 e 1970. após as intervenções estruturais executadas na
gestão do prefeito Alberto Cattani.
Capítulo 2
Por sua vez, na região nordestina os recursos maior volume observado nos últimos anos.
estiveram concentrados nos estados da Embora, se tenha mantido um investimento
Bahia, Ceará e Pernambuco, com destaque contínuo em torno dos R$ 4 milhões no estado
para o grande volume aplicado em até 2015 após quase uma década (1995-
Pernambuco também em 2009, em que do 2004) em que o volume de desembolso médio
total de R$ 22,3 bilhões direcionados a região, era de aproximadamente R$ 300 milhões
R$ 13 bilhões foram absorvidos pelo estado, o (Figura 2).
Neste ponto, vê-se uma confluência entre confluência entre setor financeiro e mercado
capital financeiro e setor imobiliário, em que imobiliário, haja vista que houve uma intensa
este último passa por uma reconfiguração a produção nessa década, gerando novas
fim de se adequar a lógica financeira5, a qual centralidades e mudanças significativas nas
oferece retorno dos investimentos ainda mais hierarquias urbano regionais.
rápido em face da mobilidade do capital,
possibilidade de lucros maiores em virtude
dos juros e ampliação das ofertas tanto 2. AS MUDANÇAS NAS HIERARQUIAS
construídas quanto de ativos financeiros URBANO REGIONAIS DA RMR A PARTIR DO
lastreados em imóveis. O que superaria RECENTE BOOM DE INVESTIMENTOS
algumas das principais dificuldades
Atualmente a RMR é composta por 14
encontradas no setor imobiliário, que se
municípios6, sendo responsável por
tratava da imobilidade do capital em face da
aproximadamente 64% do PIB (Produto
fixidez do imóvel. Dessa aproximação, tem-se
Interno Bruto a preços correntes) de
o que chamamos aqui de capital imobiliário.
Pernambuco (R$ 89.726.645 bilhões do total
Essa confluência torna-se ainda mais evidente de R$ 140.727.616 bilhões do estado,
no cenário brasileiro com a abertura do conforme dados do Instituto Brasileiro de
capital de na bolsa de valores por Geografia e Estatística (IBGE, 2013)), além de
incorporadoras, baseada na teoria de que os ter apresentado índices econômicos
preços imobiliários investidos continuariam crescentes nos últimos anos que ultrapassam
em alta, atraindo inclusive construtoras o desempenho nacional. Em 2013, por
voltadas para baixa renda conforme citado. exemplo, cresceu 3,5%, enquanto a média
Ressalta-se, além disso, para esse período nacional foi de 2,3%, conforme apontamentos
entre 2004 e 2013, o aumento de renda de da agência Condepe/Fidem (2014). Desde a
uma camada da população e/ou de acesso sua criação ao contexto recente passou por
ao crédito, o que viria a expandir o mercado transformações significativas.
consumidor e garantir a solvabilidade da
A Região Metropolitana do Recife foi
demanda.
institucionalizada ainda em 1973 juntamente
Diante do exposto, este artigo tem por com as regiões metropolitanas de São Paulo,
objetivo discutir a expansão dos circuitos Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador,
imobiliários por meio de GPUs, da Região Curitiba, Belém e Fortaleza, através da Lei
Metropolitana do Recife (RMR) para Complementar nº14 de 1973, na forma do art.
municípios vizinhos, com destaque para o 164 da Emenda Constitucional nº1, 1969. O
caso de Goiana, em um contexto de caráter de metropolização que Recife
economia financeirizada e decisão de estabelecia, sobretudo, com Olinda e
interiorização dos investimentos por parte do Jaboatão dos Guararapes, com grande
governo do estado. O município entrou nesse circulação para trabalho, estudo e lazer entre
circuito global financeiro com a instalação da os municípios, intensificado pelo
indústria automotiva FIAT, que estimulou a direcionamento dos investimentos pelo
chegada de outras indústrias importantes e governo do estado naquela época, justificam
complementares. O que aqueceu o mercado a decisão.
imobiliário para atender a possível demanda
A partir de então foram elaborados planos de
decorrente das novas possibilidades de
desenvolvimento para a região crescer e se
emprego.
desenvolver de maneira integrada,
Ainda que se vivencie uma mudança no estabelecendo a setorização por nucleações
cenário econômico brasileiro, observada a para direcionar os investimentos, dos quais
partir de 2014, que culminou em 2015, ressalta-se o Plano de Desenvolvimento
entende-se a relevância desse estudo de Integrado (PDI), de 1976 que serviu de
inspirações para os planos seguintes. As
nucleações inicialmente foram realizadas em
Podem envolver desde um conjunto residencial até
a renovação urbana de um centro histórico, zonas
6
industriais, portuárias, ferroviárias, etc, construção Os municípios são: Abreu e Lima, Araçoiaba,
de novas zonas turísticas ou recreativas, ou a Cabo de Santo Agostinho, Camaragibe, Igarassu,
construção de uma infraestrutura de transporte. Ou Ipojuca, Ilha de Itamaracá, Itapissuma, Jaboatão
seja, possibilitam as condições ideais para a dos Guararapes, Moreno, Olinda, Paulista, Recife e
aplicação do capital financeiro. São Lourenço da Mata (Lei Complementar
5
nº10/94).
Figura 3 – Tabela com a taxa média anual de crescimento do PIB setorial e por atividade econômica
de Pernambuco – 1970-1999.
Tabela 1 – Investimentos anunciados entre 2004 e dez/2012 para o estado de Pernambuco com
ênfase nos municípios da RMR, Goiana e Vitória de Santo Antão para implementação entre 2007-
2016.
Unidade territorial Número de projetos Volume de investimentos
aprovados R$ milhões Distribuição %
Abreu e Lima 14 63,8 0,06
Araçoiaba -- -- --
Cabo de Santo Agostinho 51 11.646,0 11,16
Camaragibe 6 232,1 0,22
Igarassu 14 166,5 0,16
Ipojuca 50 58.260,0 55,85
Itamaracá -- -- --
Itapissuma 11 1.080,6 1,04
Jaboatão dos Guararapes 70 955,1 0,92
Moreno 5 46,7 0,04
Olinda 11 40,6 0,04
Paulista 38 852,2 0,82
Recife 153 4.039,8 3,87
São Lourenço da Mata 7 774,3 0,74
Vários municípios* 2 394,0 0,38
RMR (total) 432 78.551,7 75,3
Goiana 29 11.576,3 11,1
Vitória de Santo Antão 34 1.144,2 1,1
Outros municípios de PE 234 13.047,4 12,5
Pernambuco (total) 729 104.319,6 100
Fonte: Federação das Indústrias do Estado de Pernambuco. In ROSA, OLIVEIRA, 2015.
Nota: Foram contabilizados apenas os investimentos cujo valor declarado superou R$ 100 mil.
(*) Corresponde aos investimentos que perpassam mais de um município da RMR.
de centralidade do estado. Para tanto, o tais como Ipojuca, Cabo de Santo Agostinho,
estado assume a formulação de políticas Jaboatão dos Guararapes, Paulista, Goiana,
públicas em prol da diversificação das São Lourenço da Mata, Camaragibe e Vitória
atividades e interiorização da economia, de de Santo Antão.
maneira tal que no momento em que o cenário
Até o ano de 2008, observava-se que o
econômico tornou-se favorável já havia um
mercado imobiliário na RMR se concentrava
claro direcionamento para aplicação do
nos municípios de Olinda, Jaboatão dos
volume de capital aportado, que foi
Guararapes, além da capital Recife, em
aproveitando outras oportunidades que foram
virtude da densa ocupação, sobretudo na
surgindo.
porção orla, e da forte integração e
Nesse contexto, é importante salientar que conurbação entre esses municípios. A partir
com todas essas novas possibilidades, de 2009, no entanto, em resposta a
amplia-se a expectativa de demandas por intensificação da interiorização dos
moradias, especialmente, nos municípios que investimentos, verifica-se gradativamente a
mais receberam investimentos em projetos ampliação da participação de demais
com capacidade de dinamizar a economia, municípios (Figura 4).
Figura 4 – Gráficos ilustrando a evolução da participação dos municípios da RMR sobre o total de
lançamentos imobiliários.
Destaca-se que nos anos de 2012 e 2013 a realização de intensos investimentos. Como
construção civil em Recife teve menos da os municípios de Goiana e Vitória de Santo
metade dos lançamentos que nos demais Antão. Com isso, vê-se confirmar o
municípios da RMR, chegando nos anos de surgimento pretendido das novas
2013 e 2014 com a participação de 8 centralidades e as nucleações vão se
municípios na produção imobiliária. Em 2016, consolidando não apenas como polos
incita-se atenção para uma participação de industriais, mas como polos de
23% da cidade do Recife, com um aumento desenvolvimento com dinamismo de
significativo da construção civil no município atividades e possibilidades diversas de uso.
de Paulista, o qual tem atraído o mercado
Para além do aumento significativo da
imobiliário, em virtude das dinamizações na
participação de outros municípios nos
nucleação Norte da RMR.
lançamentos imobiliários, ressalta-se também
Convém salientar ainda que não constam o tamanho e as características dos novos
nesses gráficos os municípios fora da RMR, empreendimentos. Ora pautados pelo modelo
mas que provocam e sofrem grande influência de bairro/ cidade planejada, com multiuso,
da mesma e que também têm atraído novos ora em condomínios verticais envoltos de
empreendimentos residenciais após a vários itens de lazer, recreação e amenidades
naturais, ora aproveitando-se dos recursos do com vistas a se consolidar como uma nova
MCMV para a construção de inúmeras centralidade.
unidades.
Dessa maneira, entende-se que há um grande
3. TRANSFORMAÇÕES URBANAS EM
impacto na reprodução do espaço social e
GOIANA
urbano nas cidades que passam a receber
esses projetos urbanos de grande porte, de O município de Goiana localiza-se ao Norte
modo que se justifica o estudo aprofundado, do estado de Pernambuco, na microrregião
sobretudo para o município de Goiana, que da Zona da Mata Norte, limitando-se ao Norte
ainda que não faça parte da região com o estado da Paraíba, ao Sul com os
metropolitana, tem recebido grandes municípios de Itaquitinga, Igarassu,
investimentos em infraestrutura urbana, aporte Itapissuma e Itamaracá (e toda RMR), ao
de capital de grandes empresas e, por Leste com o Oceano Atlântico e ao Oeste
conseguinte, atraído fortemente o mercado com os municípios de Condado e Itambé
imobiliário, de modo a passar por uma intensa (Figura 5).
transformação na hierarquia urbano regional
Goiana conta com uma população de 78.618 Aproximadamente, a 13 metros acima do nível
habitantes, segundo estimativa do IBGE do mar, é formada por relevo de tabuleiros
(2015), em uma área territorial de 501,881 costeiros na maior parte da sua extensão e
km², sendo sua densidade demográfica, uma área menor de baixadas costeiras, com
portanto, de 156,92 hab/km², o que é predominância de restingas, mangues e
considerada baixa, se comparada a Recife, dunas (IBGE, 2015) (Figura 6).
por exemplo, que é de 7.039,64 hab/km².
brasileira, em que há uma clara retração de a sua hierarquia urbana regional, com a
investimentos. possibilidade de se firmar como uma nova
centralidade para o estado, recuperando sua
Salienta-se que para atrair a instalação de
autonomia de outrora. De modo que atentos a
novas fábricas, empresas e o próprio
esta oportunidade, viu-se uma expansão dos
mercado imobiliário, o governo do estado e o
circuitos imobiliários para a localidade, com a
município de Goiana, desde o ano de 2011,
implantação de grandes projetos urbanos e
têm entrado com recursos próprios,
um bom índice de vendas. No entanto, a
promoveram inovações nos arranjos
expectativa de novos moradores ainda não se
institucionais, traçaram Parcerias Público-
confirmou.
Privadas (PPPs), estabeleceram incentivos
fiscais e alteraram inclusive, parâmetros e Assim, destaca-se que para se consolidar
diretrizes do plano diretor9. Ou seja, trata-se como centralidade, não é suficiente em
de um processo que proporcionou grandes Goiana apenas ampliar a oferta de moradia, é
alterações na política e economia do preciso melhorar e modernizar a infraestrutura
município e do estado, apostando nas novas do município, aumentando também a oferta
possibilidades oferecidas pelo capital de serviços essenciais, como saúde e
financeiro e imobiliário, e está ainda em educação, as também chamadas
andamento, podendo colher outros frutos a infraestruturas sociais, e que têm peso
longo prazo. fundamental na decisão de escolha de lugar
para morar dos executivos e dos funcionários
Como se pode observar nessa discussão,
com renda que permite fazer opções.
Goiana passa por uma reestruturação quanto
Ademais, a demanda por moradias a preços
9 baixos persiste, revelando a urgência de
Foram estabelecidos novos arranjos
atendimento a esse público e desperta
institucionais, com destaque para a criação da
autarquia Agência de Desenvolvimento de Goiana atenção para as reais necessidades sociais
(AD Goiana), atrelada ao Gabinete do Prefeito, oriundas dos investimentos no município, que
tendo por missão a promoção do desenvolvimento vai muito além dos interesses do capital
econômico sustentável do município, com ênfase imobiliário que permanece visando apenas o
na ampliação das oportunidades de trabalho, retorno rentável, pouco aproveitando das mais
emprego e renda para a população economicante valias-urbanas oriundas do bom momento
ativa, tanto do setor forma quando do setor informal econômico vivenciado.
da economia (AD GOIANA, 2016). Quanto às PPPs,
aponta-se a inclusão de Goiana no programa
cidade saneada, uma parceria entre a Companhia
Pernambucana de Saneamento (COMPESA) e um REFERÊNCIAS
consórcio formado pelas empresas Foz do Brasil, [1] Aalbers, Manuel B. Corporate
do Grupo Odebrecht e Lidermac Construções que financialization. In: Castree, N. et al. (eds) The
objetiva universalizar o sistema de esgotamento da International Encyclopedia of Geography: People,
RMR e já incluiu o muncípio de Goiana, haja vista, the Earth, Environment, and Technology. Oxford:
os novos interesses. Por fim, no que se refere às Wiley, forthcoming in 2015.
mudanças no plano diretor, salienta-se a criação
da Lei nº 2.196/2012 que altera dispositivos da Lei [2] AD Goiana. Sítio da Agência de
nº 1.987/2006 e dá outras providências, incidiu Desenvolvimento de Goiana. Disponível em
especialmente no zoneamento do município, http://adgoiana.pe.gov.br/. Acesso fev./mar. 2016
redefinindo zonas de uso agrícola e turismo para [3] Andrade, Manuel Correia de. Espaço e
zonas de expansão urbana, e diminuindo, em tempo na agroindústria canavieira de Pernambuco.
alguns casos, zonas de recuperação ambiental, Estudos Avançados, vol.15 no.43 São Paulo
ampliando áreas para a urbanização. Em agosto Sept./Dec. 2001
de 2012, dois meses depois dessa, já havia uma
nova Lei de nº 2.204/2012, a qual cria uma nova [4] Bndes/Banco Nacional de
Macrozona, a Macrozona Especial de Dinamização Desenvolvimento Econômico e Social. Disponível
Econômica (MZEDE) – Goiana. A MZEDE se insere em:
no setor de Tejucopapo e passa a se configurar http://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/trans
com área urbana, sendo anteriormente rural. Tem a parencia/estatisticas-operacionais/. Acesso 18 out.
função de permitir a implantação de atividades 2016.
logísticas, industriais e tecnológicas, necessárias
[5] Cardoso, Adauto Lúcio; Aragão, Thêmis A.
ao atendimento de demandas decorrentes da
Do fim do BNH ao programa Minha Casa Minha
instalação de grandes empreendimentos
Vida: 25 anos da política habitacional no Brasil. In:
industriais, viabilizando a estratégia de
CARDOSO, Adauto Lúcio (Org.). O programa
desenvolvimento do município
Minha Casa Minha Vida e seus efeitos territoriais. Planejamento para um Novo Brasil. 1ed. Rio de
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[14] IBGE. Síntese de indicadores. Rio de
Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e [22] Rosa, Jurema Regueira Arayban M.;
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reestruturação territorial na Região Metropolitana
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Limonad, E.; Castro, E. R. (Org.). Um Novo de Janeiro: Letra Capital, 2015.
[23]
Capítulo 3
como postos médicos e escolas, a construção especial de intervenção urbana que objetiva a
de centros habitacionais para a população de transformação sobre a gestão do poder
baixa renda e o estímulo à oferta de bens e público, onde há o redesenho deste setor,
serviços de consumo. Por fim, na valorização podendo seu espaço ser público ou privado,
ambiental considera-se a preservação do receber investimentos públicos e privados a
meio ambiente e dos recursos naturais, a fim de realizar a execução, alteração, manejo
implantação de praças e parques, bem como, e transação dos direitos de uso e
a valorização arquitetônica do patrimônio edificabilidade do solo e as obrigações de
histórico. (Brasil, 2001). urbanização.
Esse instrumento urbanístico partiu de quatro Outro professor e jurista José dos Santos
diretrizes, sendo elas: a falta de recursos Carvalho Filho (2009) define a Operação
públicos para realizar investimentos de Urbana Consorciada como sendo um
transformação urbanística de determinadas instrumento de política urbana, que
áreas; a convicção de que investimentos representa um instituto criado e desenvolvido
públicos geram valorização imobiliária, que com base no regime de parceria, cujo modelo
pode ser captada pelo poder público; a auxilia inúmeras formas de atuação do poder
convicção de que o controle do potencial público no processo de gestão das cidades.
construtivo era a grande ‘moeda’ que o poder É imperioso ressaltar que o regime de
público poderia contar para entrar na parceria exige a cooperação mútua entre o
operação; e a crítica às estratégias correntes poder público municipal e o setor privado.
de controle de uso e ocupação do solo no Para o autor, o intuito cooperativo é a base da
sentido de sua incapacidade de captar Operação Urbana Consorciada.
singularidades e promover o redesenho ou,
Os requisitos para a realização de uma
em outras palavras, o urbanismo. (Brasil,
Operação Urbana Consorciada estão
2001: 82).
delimitados no artigo 32 do Estatuto da
Os Professores e Urbanistas Ermínia Maricato Cidade. Esse dispositivo legal define
e João Sette Whitaker Ferreira (2002) exigências ao poder público municipal na
consideram que a Operação Urbana implantação da legislação regulamentadora
Consorciada, mesmo sendo regulamentada do instrumento das OUC, tais como, a
nacionalmente em 2001 no Estatuto da delimitação da área de aplicação do
Cidade, já era conhecida e vinha sendo instrumento, que esteja explícito qual será a
aplicada em diversos planos diretores das sua finalidade, as transformações estruturais
cidades brasileiras, e até mesmo entendida que fomentarão e a projeção de melhorias
por outras configurações e nomenclaturas. sociais e ambientais que serão atingidas na
área demarcada. Já o artigo 33 do Estatuto da
De acordo com a Professora e Urbanista
Cidade, complementando o anterior,
Mariana Fix (2001), a Operação Urbana
prescreve que cabe ao poder público definir
Consorciada começou a ser utilizada pelas
quais são os objetivos específicos a serem
administrações municipais, a partir da década
concretizados com a aplicação do
de 1990, servindo, em cidades como São
instrumento, respeitando, como afirma a
Paulo, como solução para renovação ou
jurista Betânia de Moraes Alfonsi (2005), o
modernização de trechos da cidade, que
princípio da publicidade, observância
supostamente seria custeada pela
indispensável ao poder público municipal.
arrecadação entre seus beneficiários.
Assim, trata-se a Operação Urbana
Na área jurídica, cada vez mais, tem-se
Consorciada de um instrumento de produção
estudado esse instrumento. Para o advogado
do espaço urbano, que conta com a parceria
João Carlos Castellar (2010), a Operação
entre o setor público e investidores privados,
Urbana é uma forma de parceria público
permitindo a participação de diversos
privada, que funciona como um sistema de
agentes, visando à realização de
troca no qual o setor privado investe em
transformações urbanísticas estruturais,
melhorias urbanas em uma área delimitada
melhorias sociais e a valorização ambiental de
por uma lei municipal específica e, em
uma determinada cidade.
contrapartida, garante flexibilidade nas leis
edilícias em seus empreendimentos. Ainda sobre o tema, o geógrafo Roberto
Lobato Corrêa (2011) classifica e elenca o
Estudioso da gestão pública, o professor e
papel que cabe aos agentes que produzem o
jurista Toshio Mukai (2007) conceitua a
espaço urbano. O autor os identifica como
Operação Urbana Consorciada como um tipo
caberá ao poder público municipal, atuar questões mais políticas do que técnicas,
sobre serviços públicos em que o interesse é sendo ações coletivas com bases teóricas e
local, isto é, aos interesses mais afetos e com um ponto de vista autonomista, ou seja,
predominantes àquele município do que ao saberes políticos por excelência e conduzidos
Estado e à União. de forma democrática, e não inspirada por
intelectuais tecnocráticos e impostas pelo
O papel do poder público municipal, no que
poder público. Ainda assim, o autor defende
se refere à matéria urbanística, encontra
que a participação dos técnicos no
previsão constitucional no artigo 30, incisos I,
planejamento e gestão das cidades é
II e VIII, bem como, no artigo 182 (Brasil,
relevante, mesmo entendendo que o
1988). O poder público possui atuação direta
conhecimento técnico é obtido por uma
e perceptível em assuntos de interesse local,
minoria e que isso é insuficiente para a
promovendo adequadamente a ordenação do
construção de um bem geral, como seria
território, através do planejamento e controle
possibilitado democraticamente.
do uso, do parcelamento e da ocupação do
solo urbano. Tal atuação é feita Silva (2000: 86) ainda disserta que “(...) o
fundamentalmente através de um instrumento processo de planejamento passou a ser um
básico de política de desenvolvimento e de mecanismo jurídico por meio do qual o
expansão urbana, denominado de plano administrador deverá executar sua atividade
diretor. governamental na busca da realização das
mudanças necessárias à consecução do
O jurista Edésio Fernandes (1998) discorre
desenvolvimento econômico-social”. Dessa
sobre o papel do poder público e do plano
forma, promover o planejamento do uso do
diretor da seguinte forma:
solo urbano deixou de uma mera faculdade
Ora, é fácil perceber que a ordenação da do Município, posto que, constituiu uma
cidade através de normas urbanísticas é previsão constitucional e uma provisão legal,
assunto predominantemente local, e tal ideia por meio da qual deve o poder público
se reforça-se ainda mais diante da municipal estabelecer os objetivos e as
explicitação da natureza do Plano Diretor, estratégias definidoras do processo de
verdadeiro instrumento de planejamento utilização do solo urbano. O autor prossegue
estratégico do próprios Município, que, assim dissertando:
aplicado por sua legislação correlata – Lei do
Compenetrando-se da realidade a ser
Uso, Ocupação e Parcelamento do Solo,
transformada e das operações de
Código de Obras e Código de Posturas –
transformação que consubstanciam o
deve conter diretrizes das mais diversas,
processo de planejamento, sob pena de ser
desde as relacionadas às condições de
mera abstração sem sentido, o plano
acesso dos cidadãos aos seus direitos sociais
urbanístico adquire, ele próprio, por
e fundamentais, como emprego, habitação e
contaminação necessariamente dialética, as
serviços, passando pela proteção ao meio
características de um procedimento jurídico
ambiente e patrimônio natural e cultural, até
dinâmico, ao mesmo tempo normativo e ativo,
aquelas que digam respeito ao perfil
no sentido de que os anteprojetos elaborados
econômico do Município, entre outras (1998:
por técnicos e especialistas adquirem a
21).
categoria de diretrizes para a política do solo
A função de planejamento urbanístico local e sua edificação, ao mesmo tempo em que,
está prevista no artigo 30, VIII, da Constituição em seus desdobramentos, se manifesta como
Federal (Brasil, 1988), que dispõe que conjunto de atos e fundamentos para a
compete ao poder público municipal planejar produção de atos de atuação urbanística
e gerir a cidade através de uma política concreta. (Silva, 2000: 91-92)
urbana, buscando atender à função social da
Lado outro, contudo, e não menos importante,
propriedade e ao bem-estar de seus
está o dever de implementação da legislação
habitantes. Tal planejamento, que incluirá os
urbanística pelo Município, isto é, deve o
critérios de utilização do solo, será
poder público buscar efetivar que os
estabelecido no Plano Diretor de cada cidade,
instrumentos legais alcancem os objetivos
que deverá ser aprovado pela Câmara
previstos na legislação. Para tanto, é
Municipal, conforme previsto pelo artigo 182,
imprescindível que o poder público municipal,
da Constituição Federal.
ao atuar como gestor dos interesses da
Para o professor e geógrafo Marcelo Lopes população, garanta a participação efetiva
de Souza (2002), planejamento e gestão são deste agente na elaboração da legislação
n.10.257, de 10/07/2001, que estabelece diretrizes [16] Mukai, Toshio. Operações Urbanas
gerais da política urbana. Brasília: Câmara dos Consorciadas. Revista Magister de Direito
Deputados, Coordenação de Publicações, 2001. Ambiental e Urbanístico, 2007
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urbana: novas perspectivas para as cidades
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brasileiras. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris,
às gestões urbanas; Ed. Bertrand Brasil, São Paulo,
2002.
2014.
[15] Meirelles, Hely Lopes. Direito
Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros
Editores, 2006.
Capítulo 4
Walcler de Lima Mendes Junior
Juliana Michaello Macêdo Dias
reflexões oriundas das aulas, resultou em (SCHAFER, 2011, P. 363) – são valorados
várias publicações que foram compiladas em enquanto experiências auditivas “superiores”.
1977, no livro “A afinação do Mundo”. O autor irá inclusive classificar as paisagens
sonoras em hi-fi e low-fi, considerando
Por paisagem sonora, o autor compreende os
necessária a experiência de ambientes
eventos acústicos componentes de um lugar.
sonoros considerados de alta qualidade como
“O termo pode referir-se a ambientes reais ou
modo de “limpar” os ouvidos para uma escuta
a construções abstratas, como composições
mais atenta.
musicais e montagens de fitas, em particular
quando consideradas como um ambiente” O ambiente silencioso da paisagem sonora hi-
(SCHAFER, 2011, p. 366). Desta forma, o fi permite o ouvinte escutar mais longe, a
ambiente sonoro como um todo comporá a distância, a exemplo dos exercícios de visão
paisagem sonora, incluindo sons desejáveis a longa distância no campo. A cidade abrevia
ou não, contínuos ou esporádicos. essa habilidade para a audição (e visão) a
distância, marcando uma das mais
Nos termos discutidos no projeto, o conceito
importantes mudanças na história da
de paisagem sonora foi operativo num
percepção”. (Schafer, p.71)
primeiro momento, ao nos colocar diante da
necessidade de escuta de diferentes lugares, Parte da necessidade de ampliar este escopo
compondo contextos de sons, já que não nos teórico nasceu do incômodo que essa
interessava uma espécie de identificação de valorização do silêncio nos impôs ao escutar
sons isolados. A paisagem sonora, enquanto o sertão alagoano. Não se trata
recorte de pesquisa nos permitiu atentar para definitivamente de um território de silêncio e
as interpelações entre diferentes sons, e o clauriaudiência e percebemos que do ponto
quanto certos conjuntos aparecem de vista antropológico e sociológico essa
recorrentemente nos territórios sertanejos, questão sequer parecia plausível como ponto
como por exemplo os sinos amarrados nos de partida analítico, uma vez que produz um
pescoços dos animais de criação, que ao juízo de valor prévio, balizado por uma visão
serem soltos na mata para se alimentar muitas civilizacional etnocêntrica. Optamos assim, ao
vezes compõem a paisagem sonora junto longo do projeto, por utilizar o conceito de
com aves e pequenos animais, mas sem sons paisagem sonora como referência preliminar,
humanos diretos. Discutiremos mais a fundo mas imbuídos de evitar a classificação das
essas questões, uma vez que é claro que o sonoridades em desejáveis ou não, mas sim
agrupamento de animais em rebanhos e o atentos às composições que rasuram certas
próprio chocalho são marcas humanas na marcas territoriais visuais e nos permitem ler
paisagem genericamente chamada de arranjos socioculturais a partir das texturas
natural. sonoras.
Se a atenção à sonoridade surge para Além da perspectiva positivista implicada na
Schafer em meio à percepção de uma perda ideia de um ambiente sonoro saudável e de
da qualidade das experiências sonoras, as ouvidos educados, o conceito de paisagem
críticas a ele surgem especialmente pelo olhar sonora pode também ser deslocado a partir
positivista que o autor emprega ao da crítica deleuziana, substituindo o conceito
caracterizar “boas” e “más” paisagens de paisagem (que implica um recorte
sonoras, baseado na ideia da separação geralmente constituído pelo
entre som e ruído. O autor entenderá que observador/ouvinte) pelo de territorialização
(em que o ouvinte atua em diálogo com o
A mais satisfatória definição de ruído para uso
meio, territorializando-o ao mesmo tempo em
geral é ainda a de ‘som não desejado’. Isso
que é territorializado por ele). É nessa
torna ruído um termo subjetivo. (...) Mas
perspectiva que Obici agenciará o conceito
mantém aberta a possibilidade de haver, em
de território sonoro.
determinada sociedade, mais concordâncias
do que discordâncias a respeito de que sons Um TS [Território Sonoro] não existe de
se constituem em interrupções não desejadas antemão, ele se constrói e é fabricado,
(SCHAFER, 2011, p.367). levantando muros sônicos, que podem
proteger, mas também aprisionar. A dinâmica
Ainda que abra o conceito de ruído para uma
do ritornelo, de territorializar e desterritorializar
classificação subjetiva, por trás dos estudos
o som, está imbricada na produção dos TSs.
de Schafer há um desejo de instituir uma
(...)Um TS está sempre prestes a se
“pedagogia auditiva”, onde o silêncio e a
desterritorializar (OBICI, p. 100).
clauriaudiência – “literalmente, audição clara”
não sem drama, sem conflito, mas, é preciso presença humana de baixo impacto sonoro) e
pensar o quanto o ouvido não é também “urbanos” (transformados pela ação,
personagem atuante desse mesmo drama, ocupação e presença humana de alto
produzindo e destruindo territórios, por ato impacto sonoro). Tal caracterização foi em
auditivo ativo e afirmativo. Assim, propõe-se o certa medida importante para a ordenação
jogo entre música (como expresso pelo das coletas e evidenciou certas tessituras
ritornelo deleuziano) e escuta estabelecendo preliminares no mapeamento.
uma dupla possibilidade de rasura, atuando
A região de realização da pesquisa foi o
no deslizamento do que se quer dizer música,
sertão alagoano (Ver Fig1), compreendendo
do que se quer dizer ruído e do que se quer
os municípios de Delmiro Gouveia, Piranhas,
dizer silêncio.
Pão de Açúcar, Belo Monte, Água Branca,
Canapi, Inhapi, Mata Grande, Pariconha,
Carneiros, Dois Riachos, São José da Tapera,
3. CARTOGRAFIA SONORA DO SERTÃO
Santana do Ipanema, Senador Rui Palmeira,
3.1 TERRITORIALIZAÇÕES PRELIMINARES E Ouro Branco, Poço das Trincheiras e
BORRAMENTO DE FRONTEIRAS Maravilha (total de 17 municípios). A captação
dos ambientes sonoros se deu tanto nos
Como base preliminar de pesquisa, o projeto
municípios sede, localidades e povoados
partiu de uma caracterização geral dos
quanto nas áreas rurais, fazendas, sítios,
territórios sertanejos em “naturais” (ou pouco
assim como nas paisagens naturais, serras,
influenciados pela ação humana), “rurais”
lajedos, resquícios de mata nativa, resquícios
(transformados pela ação, ocupação e
de caatinga, etc.
Em termos epistêmicos a pesquisa fundou-se preás estarão restritos aos territórios naturais
sobre uma base pós-estruturalista, enquanto motos estarão restritas aos
considerando o mapeamento da região, no ambientes urbanos e os carros de boi, por
caso o sertão alagoano, a partir de uma leitura extensão, aos ambientes rurais, mas, uma
deleuziana, em que os limites, fronteiras e forma de catalogação sensível e atenta a
separações entre território natural, rural e essas contaminações entre territórios que
urbano não se apresentam de forma alienada certa forma de produzir ciência classifica
entre si, com bordas e beiras nitidamente como nitidamente separados.
descriminadas, mas, ao contrário, se
As transformações e rearranjos dos territórios
comunicando e produzindo estratégias de
sertanejos produzem deslocamentos e novos
adaptação, linhas de fuga, zonas de
agenciamentos sonoros, e desta forma
interseção, corredores e veredas por onde
partimos da compreensão de que não se
elementos típicos de cada território se
produz um mapa taxonômico dos territórios
manifestam e são localizados em outro. Logo
sonoros, mas uma cartografia aberta que se
não se trata de um mapeamento que parte do
constitui enquanto constitui territórios em
princípio que carcarás, bugios, gambás e
devir. “Há linhas de articulação ou
Tabela 1: Notação preliminar utilizada nos diários de escuta dos pesquisadores. Essa metodologia
de representação foi abandonada pelo grupo ao longo do processo, tendo sido dada preferência
aos registros audiovisuais explicitados no mapa de sonoridades e nos documentários sonoros.
Canto de aves
Territórios “naturais”
Revoadas
Caatinga Zumbidos de insetos
Amanhecer
Lajedos Vento
Alvorada
Serras Riacho correndo
Meio-dia
Resquícios de mata Cachoeira
Dia chuvoso
nativa Gotas de chuva na pedra
Farfalhar de folhas
Galhos contorcidos pelo vento
Territórios “rurais”
Carros de boi
Jornadas diurnas Sinos amarrados em pescoço de animais
Fazendas
Fim de tarde Passos
Sítios
Amanhecer Músicas tradicionais cantadas
Pequenos povoados
Dia de festas religiosas Músicas amplificadas pelos rádios
Estradas de terra
Dia de feira Carroças puxadas a tração animal
Motos
Fim de tarde
Sede dos municípios Conversas
Amanhecer
Estradas secundárias Anúncios de comércio em autofalante
Dia de festas religiosas
Sinos eletrônicos
Dia de feira
Missa
Território de
“exceção”
Jorro de água
Manhã
Turbina
Barrragem de Xingó Fim de tarde
Conversas em alto volume de voz
Período de seca
Sirene
Fonte: Site do projeto (não divulgado para evitar a identificação dos autores)
horários do dia, com uma vasta gama parcial do programa de cisternas em alguns
cromática de revoadas, cantos, zumbidos, municípios que se estabeleceu em 2017, o
chiados. barulho de um caminhão pipa chegando na
rua barrenta, os gritos das crianças e
Veredas em estradas de terra e a invasão das
mulheres se amontoando ao seu redor e a
motos.- Uma das territorialidades mais
água sendo despejada em algum reservatório
presentes ao longo da pesquisa foram as
plástico improvisado configuram sonoridades
estradas de terra que ligam as sedes dos
que pensamos que estariam em vias de
municípios aos povoados, sítios e elementos
extinção, mas se fizeram presentes,
naturais. De condição precária em sua
denunciando desmontes de políticas públicas
maioria, a maior parte dos sons são das
que pareciam estar consolidadas.
carroças puxadas por burros e carros de boi
que transportam as famílias moradoras das A barragem e o ensurdecimento.- Como
zonas rurais para a feira, os aboios de marca do desenvolvimentismo, o som da
vaqueiros tangendo pequenos rebanhos. barragem de Xingó se impõe e remodela o
Esses sons se caracterizam pela sua som do Rio São Francisco correndo em seu
continuidade, deslocamento e permanência já curso regular. Imergindo no som da turbina, a
que falamos aí de ritmo lento. Reconfigurando água corre de modo violento e paralisa os
essa paisagem sonora, assimilada como sons naturais de pássaros e da água batendo
bucólica e tradicional, percebemos de modo nas rochas. Tudo é turbina, som mecânico,
cortante o som de numerosas motos, as vezes contínuo, grave. Nada mais se escuta.
invisíveis ao entorno imediato, mas que pela Vivenciamos a sonoridade da barragem, no
sua caracterização sonora tende a dominar a entanto, com menos força do que o comum, já
paisagem por alguns segundos, de tempos que apenas uma comporta se encontra aberta
em tempos. Devido à sua velocidade atualmente – reflexo da seca e do
contrastante com os ruídos das carroças, assoreamento do rio.
poderíamos compreender o som das motos
como uma rasura da velocidade modernizante
do ciclo econômico da década de 2000 3.4 DOCUMENTÁRIOS SONOROS
chegando até os trabalhadores das zonas
A partir das análises exemplificadas no item
rurais. O quase ausente som de automóveis
anterior, e numa dicção que se constitui como
dá a ler a difícil condição das estradas e a
mediadora de experiências fenomenológicas
condição econômica dos moradores das
e estéticas e chaves de leitura de certa
áreas mais distantes.
textura sonora sertaneja, constituímos o que
Sinos eletrônicos e missas amplificadas no chamamos de Documentários Sonoros. É
autofalante.- Nas sedes dos municípios ainda certo que o termo documentário, derivado da
são presentes de modo marcante as noção de documento, carrega em sua rede
sonoridades relativas às práticas religiosas, semântica uma ideia de “verdade”. Entretanto,
especialmente as católicas. Em horário de assim como Paul Ricoeur (2007) evidencia em
missa ouve-se o som de sinos eletrônicos, “A memória, a história, o esquecimento”, a
gravados a partir da internet e amplificados noção de documento é problemática em si, já
em autofalantes onipresentes nas portas das que pressupõe que o documento não existe
igrejas matrizes. Como se não bastassem os em si, mas através do interesse que se
badalos eletrônicos, um membro da investe sobre ele. A título de exemplo, no
congregação ou por vezes o próprio padre Brasil o termo “documentário sonoro” é mais
recorre aos amplificadores para reforçar o conhecido para tratar de conjuntos de
chamado para a celebração, que em alguns registros documentais sonoros, usualmente
lugares é toda ela jogada de dentro do captados a partir de uma perspectiva
espaço da igreja para a praça imediatamente folclórica. Esses acervos documentais tendem
à sua frente. Durante uma missa de finados, a a ser lidos como registros, mas demonstram
equipe surpreendeu-se com o período de olhares próprios às primeiras décadas do
cerca de meia hora de chamado de nomes de século XX, em suas buscas pelos “saberes
pessoas falecidas, cuja intenção para oração populares”.
foi inscrita por seus familiares na celebração,
Ainda que a questão sonora esteja presente
enquanto o bar lotado na praça abaixava o
como aspecto fundamental da linguagem
som em sinal de respeito.
ficcional e documental desde os primórdios
A chegada do carro-pipa e as cisternas. - Nos do cinema (mesmo na fase do cinema mudo a
pequenos povoados, após a descontinuidade preocupação com o som estava presente e era
Capítulo 5
Por outro lado, as medidas econômicas e afirma que a agricultura é atingida por uma
políticas assumidas nessa modernização, "tesoura preços" como salienta Graziano da
além de preservar, aprofundaram as Silva (1991, p.11), a partir do trabalho de
heterogeneidades econômicas e sociais Alberto Passos Guimarães (1976), "para trás a
regionais na agricultura brasileira quanto à agricultura se relaciona com uma indústria
inserção tecnológica e às relações de fortemente oligopolizada que consegue impor
trabalho, inclusive privilegiando antigas preços aos insumos adquiridos pelos
oligarquias rurais ligadas ao latifúndio. Assim, agricultores; e para frente com a agroindústria
o processo de industrialização da agricultura processadora, também oligopolizada."
levou a transformações no meio rural que
Os CAIs se concretizaram nos anos 1970, se
afetaria de forma irreversível as relações
beneficiando da internalização do D1para a
socioeconômicas no campo. Até meados dos
agricultura em 1965 e da estruturação da
anos 1960, havia segundo Kageyama et al.
agroindústria processadora. Guilherme
(op. cit.), lugar para a pequena produção
Delgado (1985, apud Kageyama, 1990, p.123)
independente e artesanal, ainda que utilizasse
diz que esse padrão é integrador de capitais
insumos modernos.
de diferentes ordens "[...] industriais,
A partir da industrialização, há uma divisão bancários, agrários etc., que por sua vez
social do trabalho, em que o trabalhador fundir-se-iam em sociedades anônimas,
passa a ser um assalariado "que trabalha condomínios, cooperativas rurais e, ainda,
coletivamente ou cooperativamente dentro de empresas de responsabilidade limitada
uma atividade". Outro aspecto da integradas verticalmente (agroindustriais ou
industrialização é o salto qualitativo que agrocomerciais)". Reforça essa afirmação os
ocorre quando se usa fertilizantes e dados apresentados pela autora a atuação de
defensivos químicos e se mecaniza todo o diferentes ramos, empresas industriais,
processo produtivo, do plantio à colheita, e financeiras e comerciais, ou seja do grande
não se usa somente, como antes, o trator, que capital, investindo na atividade agrícola e no
embora fosse um substituto da tração animal mercado de terras. Neste cenário, o Estado
força física, ainda prescindia a habilidade do também desempenhou papel importante
trabalhador. Nesse período o Brasil já havia regulando de forma a "financiar, patrocinar e
endogenizado o D1, ou seja, já era capaz de administrar as expectativas e a captura das
produzir bens de capital, por meio da margens de lucro na agricultura, no sentido
implantação de indústrias de base, de beneficiar os capitais integrados e garantir
viabilizando para a agricultura, insumos sua valorização." (Kageyama et al., op. cit., p.
modernos (fertilizantes, defensivos, corretivos 124).O novo padrão agrícola passa a ter,
do solo, sementes melhoradas etc.) e então, sua base nos CAIs e pela fusão dos
máquinas e equipamentos industriais diferentes capitais citados acima por meio
(tratores, colhedeiras, implementos, capital financeiro, cujo elo foi o já citado
equipamentos de irrigação etc.). As SNCR.
desigualdades no campo foram também
Findo o regime militar e com a chegada da
salientadas por Palmeira e Leite (1998 apud
Nova República brasileira, retoma-se a
Leite , 2007, p.6), que destacaram os "efeitos
discussão da reforma agrária. Os
perversos" da modernização agrícola:
protagonistas foram tanto os diferentes
[...] a propriedade tornou-se mais movimentos e instituições sociais, propiciado
concentrada, as disparidades de renda por um ambiente de abertura política, quanto
aumentaram, o êxodo rural acentuou-se, o Estado, refletida no Primeiro Plano Nacional
aumentou a taxa de exploração da força de de Reforma Agrária (PNRA), concebida em
trabalho nas atividades agrícolas, cresceu a 1985, no governo Sarney; e na Constituição
taxa de auto exploração nas propriedades cidadã de 1988. Essa constituição, dentre
menores, piorou a qualidade de vida da outros avanços sociais, legitimou a função
população trabalhadora do campo, social da terra e consagrou a participação da
agravaram as condições ambientais. sociedade civil. Foram importantes os
movimentos sociais para o alcance dessas
O fato é que a agricultura passou a ser
conquistas. Contudo, o PNRA gerou
apenas um elo na cadeia produtiva
controvérsias entre os atores favoráveis à
comandada pela indústria. Através da ação
reforma agrária e a forte oposição dos
de setores industriais distintos, a montante e a
representantes das elites agrárias, que
jusante da agricultura, conformaram-se os
chegou a criar a União Democrática Ruralista
complexos agroindustriais (CAIs).Por isso se
(UDR), tendo como alguns dos objetivos, opinião de Guilherme Delgado (op. cit., p.51),
evitar a aprovação do Plano e impedir a "[...] obsta o papel que o Estado precisaria
reforma agrária. A UDR teve êxito, pois o exercer para cumprir os direitos sociais
PNRA foi abandonado. agrários inscritos na Constituição, que
prescreve a função social da propriedade
No âmbito internacional, a partir da moratória
fundiária." Mais do que nunca, a economia
do México em 1982, houve no Brasil uma
internacional estaria influenciado a questão
crise da dívida externa, levando o país a um
agrária no Brasil, atendendo aos interesses
"processo de ajustamento constrangido à
históricos das elites agrárias em defesa da
ordem econômica globalizada." (Guilherme
vocação agroexportadora do país.
Delgado, op. cit., p.62). Tal situação, segundo
Nelson Delgado (op. cit., p.50) obrigou "o país A existência de um abundante capital
a um ajustamento econômico unilateral, que estrangeiro disponível ao Brasil como
desestruturou a economia e fragilizou resultado da conjuntura internacional,
inteiramente a capacidade do Estado formular associada a estabilização monetária com a
políticas públicas ativas", dado o alto implementação do Plano Real em 1994, levou
endividamento público, dependência externa, a um abandono à política de geração de
a aceleração inflacionária, o fracasso dos saldos comerciais promovidas no período
planos de estabilização. Como agravante, o anterior e a à adoção de medidas liberais, no
autor salienta ainda que o fracasso dos primeiro governo de Fernando Henrique
sucessivos planos de estabilização gerou Cardoso (FHC). Com a economia ancorada no
grande instabilidade entre os agentes tripé "câmbio sobrevalorizado, tarifas ultra
econômicos, gerando "comportamentos mitigadas e desregulamentação no campo
altamente especulativos quanto aos estoques das políticas de fomento agrícola e
e ativos agropecuários, intensificando o industrial"(Guilherme Delgado, op. cit., p.64),
caráter especulativo da formação dos preços logo se observa déficit em conta corrente,
das commodities agrícolas, o que redundou resultando num grande passivo externo entre
[...] numa crise agrícola no início dos anos 1994 e 1999, que será servido por um novo
1990." endividamento externo.O resultado de tais
medidas foi sentido com a queda na renda
A estagnação interna ocorrida a partir da
agrícola e, como consequência, no preço da
necessidade desse ajustamento facilitou,
terra.
segundo Nelson Delgado (op. cit., p.51), a
inserção das propostas neoliberais, já O curioso, como aponta Guilherme Delgado
ensaiadasno governo Collor e aprofundadas (op. cit., p.65), é que esse efeito sobre o
nos os dois governos Fernando Henrique preço da terra pode ser encarado tanto como
Cardoso, onde se destaca pelo menos uma: um facilitador, como também pode dificultar
"do papel estratégico das exportações as políticas de reforma agrária. Com a terra
agrícolas para enfrentar o estrangulamento mais barata seria possível incorporá-la ao
recorrente da balança de pagamentos – processo distributivo de terras. Por outro, se o
especialmente em uma economia que se preço da terra caiu em função da queda dos
estava tornando mais aberta e desregulada – preços agrícolas, os efeitos são extremamente
e para alavancar a retomada do crescimento negativos sobre da renda da produção
da economia." quando não se pode contar com políticas de
preços mínimos. "No âmbito da agricultura
As exportações agrícolas passaram a ser
familiar, verifica-se abandono de atividades,
consideradas essenciais para cobrir os
desmobilização de estabelecimentos ou sua
déficits em conta corrente do balanço de
conversão à atividades de subsistência".
pagamentos. Segundo Guilherme Delgado
Como salienta Nelson Delgado (op. cit., p.46),
(op. cit., p.51), "a forma como a política
o comportamento e as condições de
econômica externa incorporará o setor
produção da agricultura, em especial a
agrícola na "solução" do endividamento
familiar, foi influenciado pelas medidas da
externo reforça a estratégia de concentração
década de 1990: redução dos recursos
e especulação fundiária no mercado de
destinados às políticas agrícolas e de
terras."Isto faz com que se acirrem pressões e
estoques públicos de alimento, redução das
conflitos no meio rural.
tarifas de importação, aumentos dos custos
Assim, a reforma agrária é novamente financeiros em função do aumento nas taxas
sufocada, agora sob a ordem econômica de juros e escassez de crédito, aumento das
mundial neoliberal e globalizada em que, na importações agrícolas em função do câmbio
potencialidades percebidas nos territórios reconhecem que não existe uma única
como obstáculo ou como contribuição para situação, especialmente em termos de sua
seu desenvolvimento [...]. (Leite et al., 2008, sustentação/viabilidade econômica.
p.110)
A identidade de agricultor familiar, que se
Por outro lado, a associação entre o grande tornou então o foco para políticas alternativas
capital financeiro e a grande propriedade de desenvolvimento no campo, ganhou força
fundiária atua na contramão de um na década de 1990, substituindo, segundo
desenvolvimento que se quer mais autônomo. Nelson Delgado (op. cit., p.55), a categoria de
Os movimentos sociais supracitados, pequeno produtor dos anos 1980. Como
especialmente àqueles mais ligados à principais motivos para o fortalecimento dessa
esquerda política, sentiram-se traídos, de categoria o autor destaca:
certa forma desmobilizando e até mesmo
A perda de relevância política dos
desvirtuando a luta em favor da reforma
assalariados rurais; (2) a maior complexidade
agrária. Os líderes que ora estavam em
social e política dos pequenos agricultores,
comum acordo com seus ideais, de repente
tanto em termos de suas demandas e
pareciam comprometidos em administrar
mobilizações, como de suas lideranças, que
políticas macroeconômicas frente aos
passam a ganhar maior peso no sindicalismo
constrangimentos econômicos externos.
em todo o país, através principalmente das
chamadas “oposições sindicais”; (3) a
progressiva decepção com a modernização
5. OUTROS CAMINHOS PARA O
da agricultura e sua incapacidade de atender
DESENVOLVIMENTO RURAL
às demandas desses agricultores, bem como
Diante do caráter concentrador de o surgimento de várias “questões” correlatas,
propriedade e de renda e ainda, predador e como a das tecnologias alternativas, da
poluente do agronegócio, fica evidente a organização produtiva, da comercialização,
necessidade de se pensar em novos modelos da agroindustrialização, do meio ambiente
de desenvolvimento rural. Guilherme Delgado etc., o que acelerou a percepção em torno da
(op. cit., p.81) indica que seria necessário o necessidade de um novo modelo de
desmonte das seguintes condições desenvolvimento; e (4) a intensificação da
estratégicas em que opera o agronegócio: "i) reflexão intelectual e do debate sobre a
frouxidão da política fundiária; ii) restrição à permanência, o significado e a importância
expansão da demanda interna do conjunto da econômica e social da agricultura familiar
economia; e iii) restrição à incorporação da para um desenvolvimento rural mais
massa de trabalhadores do setor de democrático e inclusivo, tomando
subsistência ao projeto de desenvolvimento principalmente como referência o
rural." conhecimento da experiência européia, que
muitas assessorias e lideranças sindicais
Como observa Ramos (op. cit., p.45), um novo
passaram a ter acesso através de
referencial teórico e analítico tem sido
intercâmbios promovidos pelas Igrejas
utilizado estudar o heterogêneo rural
Católica e Luterana e por ONGs.
brasileiro. Ele analisa a opinião de estudiosos
no assunto: Em continuidade e avanço às políticas para a
população pobre do campo, o Programa
[...] o Brasil possui tanto uma “agricultura
Territórios da Cidadania (PTC), instituído em
patronal” como uma “agricultura familiar”.
2008, reforça a abordagem territorial e a
Como se percebe, a primeira teve sua
identidade de agricultura familiar. Segundo
existência preservada e mesmo ampliada
Wanderley (2014, p.340) este é um método de
com a implementação da modernização
ação que "favorece a articulação das políticas
conservadora na sociedade brasileira, vale
públicas [...] e o reconhecimento da
dizer, com a adoção da via denominada por
capacidade dos atores locais de formular e
Lenin de “prussiana”. O segundo tipo, que
expressar, com legitimidade, suas
tem merecido maior atenção nos últimos anos,
demandas.", o que a aproximaria da ideia de
diz respeito a uma agricultura de pequeno e
processo em que os atores locais são
de médio porte, fundamentalmente praticada
mobilizados em prol do desenvolvimento rural.
por agricultores proprietários e seus
familiares. Neste segundo caso, cabe alertar Com a ascensão do governo do ex-presidente
para o fato de que os estudiosos afirmam Lula, há setores dos movimentos sociais
haver “tipos” de agricultura familiar, ou seja, assim como ONGs, sindicatos e acadêmicos
referencial teórico da gestão social, explicar produtivos e aos bens e serviços necessários
os fenômenos e as transformações à manutenção de uma boa qualidade de vida
econômicas e sociais por que têm passado o e conformação de um patrimônio, a começar
território da Baía da Ilha Grande (BIG), bem pela propriedade da terra.
como levar à população rural, projetos de
De acordo com a lógica econômica, destinar
extensão16 como capacitações e construção
recursos públicos a atividades com pouca
do Plano Territorial de Desenvolvimento Rural
produtividade significa destruir poupança. O
Sustentável (PTDRS). Daí a importância, por
dinamismo da vocação produtiva brasileira
exemplo, da continuidade dos NEDETs.
ficaria a cargo da agricultura moderna,
Ao tratar de formas de agricultura de base tecnificada e mercantilizada e capitalizada,
familiar, é necessário, como vinha sendo restando aos pobres rurais, as políticas
abordado nos programas territoriais, sociais. Por outro lado, como afirma Maluf
promover a inclusão produtiva, estimulando, (2004, p.301), os caminhos escolhidos para
para além da categoria sociopolítica agricultor desenvolver o país, sob os aspectos
familiar, "aos agricultores pobres, os socioeconômicos, culturais, espaciais e
assentados de reforma agrária, as ambientais, podem ser percebidos pela forma
comunidades tradicionais e os trabalhadores como se organiza a produção agroalimentar
assalariados." (Wanderley, Ibid, p.351), a fim "[...] bem como determina as condições em
de consolidar o desenvolvimento do campo. que os alimentos são ofertados à população
Como afirma a autora, a inclusão produtiva é em termos de disponibilidade, qualidade e
capaz de gerar dois efeitos positivos: de um preço e, portanto, não devem estar limitados à
lado permite gerar a "acumulação primitiva" lógica da eficiência econômica. Maluf (op. cit.,
necessária ao capital social das famílias p.300), tratando da agricultura de base
rurais, por outro, promove a valorização das familiar, considera que "os empreendimentos
potencialidades locais. Este tipo de política de pequeno e médio portes constituem
tem o potencial de prevenir o esvaziamento componente central para uma estratégia de
do campo e a pobreza rural. Além disso, se desenvolvimento assentada em atividades
contrapõe ao contínuo e crescente processo econômicas promotoras de equidade e de
de concentração fundiária, em função da inclusão social, em bases sustentáveis."
expansão do agronegócio, que promove
A inclusão produtiva da população rural, por
efeitos perversos sobre o pequeno produtor,
seu turno, pode se dar por diferentes
inclusive a pressão quanto à permanência em
caminhos: pela inclusão dos pobres rurais via
suas terras ou nas que trabalha. A atividade
mercado de trabalho fora da agricultura, por
agrícola será sempre, como afirma Wanderley
meio de novas políticas de modernização
(op. cit., p. 342), "o esteio da vida rural,
agrícola e pela formas familiares de
mesmo que, cada vez mais, não seja a única
agricultura, capazes de articular estratégias
atividade nele exercida". As atividades não
mais autônomas e a capacidade de inovar.
agrícolas, que se inserem no meio rural,
segundo a autora, não o desqualificam como Ao incorporarem estratégias inovadoras de
tal, "antes, alimentam-no, na medida em que produção, distribuição e consumo dos
enriquecem a vida das comunidades, por produtos, a formas familiares de agricultura
meio da multiplicação dos serviços de surgem como uma alternativa viável, porque
proximidade, e favorecem a interdependência agregariam valor simbólico ao produto ao
entre os habitantes do campo e da cidade." refletirem o enraizamento territorial das
populações rurais, como, por exemplo, os
Poertanto, para Wanderley (op. cit., p.345),
produtos: caipiras, coloniais, indígenas , de
essa inclusão produtiva não deveria interferir
identificação geográfica, etc..
no modo de funcionamento da agricultura
familiar, sob a proposta de modernização. O Quanto ao aspecto modernizante com
apoio monetário, proveniente da concessão especialização produtiva, Maluf (2004,
de crédito subsidiado, deveria, ao invés, passim) entende que "a agricultura familiar
proporcionar acesso ao conjunto dos recursos torna-se a vítima da receita comumente
formulada para a sua redenção", devido a
16
Em agosto de 2014 e em setembro de 2015 -, no "armadilha da modernização", termo cunhado
âmbito do processo da ação cível colocada pela pelo autor. A especialização do agricultor
Defensoria contra a prefeitura municipal, para familiar em um ou dois produtos, alterando,
suspender a demolição das casas desocupadas portanto, seu perfil diversificado de produção,
na Indiana cujos moradores haviam acordado pelo pode acarretar maior "[...] vulnerabilidade
reassentamento.
econômica frente aos insucessos da safra, às forte relação identitária como o campo, os
oscilações de mercado e às rupturas dos autores salientaram que há "conflitos
compromissos de aquisição do produto", além generalizados entre o objetivo de preservação
dos impactos ambientais que esse tipo de dos recursos naturais e a prática da
cultura provoca. A não disponibilidade de agricultura familiar." Já a possibilidade de
recursos financeiros e expansão da oferta de preservação da paisagem rural, seria um
alguns produtos levaram ao desaparecimento, tema pouco tratado no Brasil.
segundo o autor, de um grande número de
Contudo, adotar o enfoque da
pequenos estabelecimentos rurais. Como
Multifincionalidade da Agricultura Faliliar
estratégia, o autor propõe "[...] uma
(MFA), juntamente com o de território torna
combinação de atividades desenvolvidas nas
necessária a elaboração de programas que
unidades familiares rurais, base para a
equacionem as atividades agrícolas com suas
implementação de iniciativas autônomas
demais funções, ao mesmo tempo em que
pelos agricultores de agregação de valor ao
possibilita um avanço nas políticas de
produto primário, em forma individual ou
desenvolvimento territorial ao promover a
associativa" proporcionando a essas famílias
agricultura familiar. Para Wanderley (op. cit.,
"maior parcela do valor do produto final de
p. 342)
consumo."
Apoiar a agricultura de base familiar implica
Os novos circuitos de mercados onde
construir um mundo rural, povoado, baseado
circulam os alimentos e produtos da
em comunidades de proprietários, cujos
agricultura familiar funcionariam como
membros vivam no campo por livre escolha e
espaços de inclusão produtiva, ao mesmo
não por falta de alternativas, e em simbiose
tempo em que guardam relação com
com as pequenas cidades, com as quais
aspectos da segurança alimentar, redução de
formam um tecido social municipal. Isto é,
desperdícios e da degradação ambiental.
sem dúvida, o oposto de uma perspectiva
Tais circuitos se diferenciam de acordo com a
setorial, dominante no Brasil, que supõe a
forma da agricultura. Já os pequenos
concentração fundiária, esvazia o campo de
produtores de alimentos orgânicos têm
seus habitantes e gera pobreza rural.
encontrado espaço nas feiras livres, lojas
especializadas, vendas pela internet, criação Como salientaram Leite et al. (op. cit., p.74) as
de grupos de consumidores, como rede políticas territoriais buscaram "soluções
alternativa a sua inclusão. Os mercados inovadoras, com respeito às políticas
institucionais estariam impulsionando, setoriais, frente aos novos ou antigos desafios
segundo Maluf (Ibid.), não apenas a produção da sociedade e da economia nacional, tais
agroecológica diversificada, mas também a como a pobreza, a desigualdade regional ou,
criação de novos circuitos de mercado. ainda, a emergência do desenvolvimento
sustentável [...]. Mas ainda precisam
O estudo realizado pela equipe da pesquisa
extrapolar o entendimento de que a pobreza e
do qual resulta o trabalho de Cazella et al.
a desigualdades rurais se solucionam
(op. cit., p. 49-50), permitiu analisar como as
mediante pequenas transferências de renda
quatro funções da agricultura multifuncional
ou concessão de crédito segunda as regras
se manifestavam no contexto brasileiro nas
clássicas e a lógica econômica do sistema
regiões estudadas. A produção agrícola
financeiro. O apoio monetário, segundo
própria cumpre papel importante na função
Wanderley (op. cit., p.345) deve considerar o
de reprodução socioeconômica das famílias
indivíduo como agricultor, "[...] que se
rurais, mas a renda monetária teria
apoiado convenientemente, tem
contribuição secundária para seu bem-estar.
potencialidade para assegurar, em melhores
Essa produção seria capaz de promover a
condições, a sobrevivência de sua família e
segurança alimentar das famílias rurais,
participar da produção da riqueza de sua
especialmente no que concerne à
comunidade local". Para isso são necessários,
disponibilidade, ao acesso e à qualidade dos
segue a autora, acesso à recursos produtivos
alimentos, mas não da sociedade. Para além
e bens e serviços adequados. Cazella (2007
da segurança alimentar, essa atividade possui
apud Leite et al., op. cit., p.158) aponta ainda
o potencial de manter o tecido social e
a necessidade da criação de um sistema
cultural das famílias rurais, pois "a agricultura
financeiro capaz de atender adequadamente
continua sendo o principal fator definidor da
as propostas alternativas de desenvolvimento,
identidade e condição de inserção das
além do contínuo investimento em pesquisas
famílias rurais brasileiras." Não obstante esta
na área de gestão do território.
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2016.
Capítulo 6
habitante tivesse um automóvel, por exemplo. (rádio, televisão, celular, internet, computador)
Uma ressalva a se fazer é que avanços (Floriani, Rios e Floriani, 2013).
tecnológicos podem possibilitar o aumento do
Atualmente ainda existem muitas maneiras de
nível de produção e consumo sem
entender o termo desenvolvimento rural, que
necessariamente aumentar o nível de
podem levar em conta diversos aspectos do
degradação ambiental, todavia necessitam de
ambiente, tais como um maior nível de bem
grandes montantes de investimento, muitas
estar social, produto e renda; diversidade de
vezes restritos.
atividades econômicas; maior tecnificação;
Essa concepção se aproxima das ideias preservação do ecossistema e da
básicas trazidas nas teorias de agrobiodiversidade; permanência da
desenvolvimento sustentável, termo população no campo; distribuição e uso de
controverso que passou e ainda passa por terras; educação rural, etc. O
embates políticos e ideológicos. Em geral o desenvolvimento rural também pode estar
desenvolvimento sustentável traz consigo a relacionado às atitudes e práxis direcionadas
ideia de desenvolvimento econômico com à redução da pobreza nesses territórios,
proteção ambiental e equidade social. É buscando, na perspectiva da gestão social,
necessário ter em mente que a estimular a participação dos habitantes para
sustentabilidade é um processo sem regras que eles decidam as prioridades para a
fixas, ou seja, diferente em cada situação, mudança (Ellis, 2001).
relacionado ao planejamento do espaço, da
Kageyama (2004) realizou uma revisão
economia e da demografia. Ser sustentável é
bibliográfica sobre o tema do
reduzir vulnerabilidades, resíduos (o que se
desenvolvimento rural e concluiu que dentre
faz além do necessário) e avaliar riscos e
as diversas definições apresentadas para o
impactos, sem necessariamente mercantilizar
termo, uma ideia comum a todas era a de que
a natureza.
o desenvolvimento rural deve levar em
Acselrad (1999) aponta algumas questões consideração o aspecto econômico -
diretamente ligadas à noção de estabilidade e elevação da renda familiar - e
sustentabilidade: eficiência, escala, equidade, social - obtenção de um nível de vida
autossuficiência e ética. A questão da socialmente aceitável - buscando a
eficiência está ligada ao não desperdício da diversificação das atividades geradoras de
base material do desenvolvimento (espaço renda em uma dada base territorial, local ou
não-mercantil planetário, ou meio ambiente), regional.
ao passo que a escala seria um determinante
O desenvolvimento do meio rural também
de limites quantitativos para o crescimento
passa pelas questões agrícolas (produção
econômico dadas as pressões ambientais. A
agropecuária), agrárias (regulação e
equidade diz respeito à justiça e igualdade no
distribuição de terras), territoriais
processo de desenvolvimento, já a
(participação popular, cultura e identidade,
autossuficiência é apontada como estratégia
arranjos produtivos locais), ambientais
adequada para a regulação comunitária das
(conservação e preservação), e sociais
condições para o desenvolvimento, e por fim
(previdência, benefícios, habitação,
a ética estaria ligada à existência de recursos
povoamento, saneamento). Alguns elementos
para a continuidade da vida planetária.
podem ser considerados chave na atual
A perspectiva do desenvolvimento sustentável discussão do desenvolvimento rural como os
deve levar em conta espaços urbanos e mercados abertos, intensificadores da
rurais, uma vez que cada um desses espaços competitividade, as cadeias agroalimentares,
possuem suas particularidades e por isso mas também uma diversidade de iniciativas
devem ser tratados de maneira diferente. Na alternativas ao padrão técnico dominante. A
atualidade é difícil mensurar os limites do complementaridade setorial, a mudança no
urbano e do rural, uma vez que eles se papel do poder público e das instituições que
mostram complementares e indissociáveis, atuam no mundo rural e a ênfase nas
devido aos meios de transporte, comunicação dimensões ambientais e sustentáveis também
e à integração produtiva e social de uma são aspectos relevantes para o debate do
maneira geral. Hoje o urbano já conta com desenvolvimento rural (Schneider, 2004).
atividades agrícolas, o rural com atividades
Fica claro que os termos desenvolvimento
industriais, e a urbanização chega a todos os
sustentável e rural apresentam entre si muitas
lugares, mesmo que seja de maneira virtual
semelhanças, com destaque para os
Figura 1- Mapa do Estado do Rio de Janeiro, divisão Secretaria de Turismo, Região do Vale do Café.
4. O MEIO RURAL DO VALE DO CAFÉ positiva da população rural entre 2000 e 2010,
possivelmente, é reflexo das melhorias na
4.1 CARACTERÍSTICAS DEMOGRÁFICAS,
qualidade de vida dos espaços rurais desses
ECONÔMICAS, SOCIAIS E AMBIENTAIS
municípios, que atraíram população
O meio rural dos municípios do Vale do Café principalmente com infraestrutura (estradas,
pode parecer insignificante num primeiro meios de comunicação, saneamento)
olhar, mas é incontestável a necessidade de educação, e melhores rendimentos (IBGE,
analisa-lo de modo aprofundado para 2000; IBGE, 2010).
favorecer a construção de medidas
No que diz respeito à densidade demográfica
promotoras de desenvolvimento, uma vez que
Rio das Flores apresenta o menor valor (18
o meio rural é habitado, produz, está
hab./km²), ao passo que o município de Volta
diretamente relacionado a questões
Redonda (1413 hab./km²) concentra uma
ambientais e suas populações demandam
grande população urbana em uma pequena
educação e saúde de qualidade, como será
área, população esta que possivelmente se
demonstrado adiante.
espraiou para Barra Mansa (325 hab./km²),
Observando a população total dos treze provocando pressões de escala e deixando
municípios é possível observar que a maior poucas alternativas ao desenvolvimento rural,
concentração populacional ocorre nas zonas fato que pode ser explicado por fatores
urbanas dos três municípios, que apresentam históricos como a implantação da CSN em
como visto os maiores PIB’s: Volta Redonda, 1941 (IBGE, 2010).
Barra Mansa e Barra do Piraí. Entretanto,
Outros municípios que apresentam,
muitos municípios da região preservam meios
relativamente, baixa densidade demográfica
rurais vivos e ativos. Segundo dados do
são Piraí (52 hab./km²), Valença (55 hab./km²),
Censo Demográfico do IBGE (2010), a
Vassouras (64 hab./km²), Paty do Alferes (83
população rural tem uma participação
hab./km²), Miguel Pereira (85 hab./km²) e
significativa na população total nos municípios
Engenheiro Paulo de Frontin (100 hab./km²),
de Vassouras (33%), Paty do Alferes (30%),
todos eles municípios com características
Rio das Flores (30%), Engenheiro Paulo de
bastante rurais. Nota-se que a baixa
Frontin (28%), e Piraí (20%).
densidade demográfica atribuída aos
Apesar do município de Valença possuir municípios de Piraí e Valença, principalmente,
somente 14% de seus habitantes na zona tem relação com a grande extensão territorial
rural, ele possui a segunda maior população destes. (IBGE, 2010).
rural da região estudada (9619 habitantes),
Esses dados demográficos estão
ficando atrás somente de Vassouras (11211
relacionados ao desenvolvimento rural
habitantes). Paty do Alferes possui a terceira
sustentável, uma vez que podem revelar
maior população rural dentre os municípios do
ineficiências na distribuição da população,
Vale do Café. As menores populações rurais
problemas de escala relacionados às
estão em Volta Redonda, Barra Mansa, Barra
pressões ambientais advindas das
do Piraí e Mendes, todos eles com menos de
aglomerações urbanas não planejadas,
5% da população total (IBGE, 2010) .
subordinação do espaço rural ao urbano e
Entre os anos de 2000 e 2010 Paracambi foi o não preocupação com as questões
município do Vale do Café que atraiu, ambientais e de qualidade de vida para
proporcionalmente, o maior número de gerações futuras.
pessoas para a zona rural, seguido por Piraí.
Quanto aos dados econômicos, a
Os municípios são vizinhos, ambos cortados
agropecuária apesar de representar pouco
pela BR 116 e com rendimentos rurais
para o produto da região como um todo
relativamente altos, como será mostrado
(revelando ineficiências na alocação dos
adiante. Outros municípios que tiveram
meios de produção regionais e dependência
aumentos na sua população rural entre esses
a outros mercados), tem os maiores valores
anos foram Pinheiral, Rio das Flores,
monetários nos municípios de Barra Mansa
Engenheiro Paulo de Frontin, Mendes, Volta
(principalmente devido à pecuária leiteira),
Redonda e Valença (IBGE, 2000; IBGE, 2010).
Valença, Paty do Alferes (principalmente
Todos os demais municípios apresentaram devido à cultura do tomate, que é
redução de suas populações rurais, majoritariamente escoada para a região
destacando-se Vassouras, Paty do Alferes e metropolitana do Rio de Janeiro) e Vassouras.
Miguel Pereira. Uma variação percentual A atividade agropecuária representa cerca de
10% do produto de Paty de Alferes e 7% do A respeito da educação nas áreas rurais dos
PIB de Rio das Flores, 4% do PIB de municípios do Vale do Café, dentre os
Vassouras e 3% do PIB de Valença (CEPERJ, municípios que possuem significativas
2013). populações rurais, Engenheiro Paulo de
Frontin possui quase 90% de sua população
De acordo com Mattos e Sant’ana (2010)
rural alfabetizada e Piraí próximo de 85%.
60% das fazendas históricas da região têm
Vassouras e Rio das Flores têm 80% de sua
produção própria de alimentos e
população rural alfabetizada, ao passo que
comercializam esses produtos (doces,
Paty do Alferes tem apenas 75%. Valença,
queijos, conservas e café) nos mercados
que apesar de não ter grande percentual de
locais e regional. Apesar disso, grande parte
sua população na zona rural possui o
das populações rurais do Vale do Café ainda
segundo maior numero de habitantes rurais
aproveita pouco esse potencial, devido à
da região, assim como Vassouras tem cerca
dificuldade de comunicação/transporte e
de 80% de sua população alfabetizada. Um
comercialização dos produtos, bem como
estudo mais aprofundado deve levar em conta
pela dificuldade de se adequar às
o grau de escolaridade dessas populações
normatizações sanitárias, entre outras
rurais, no entanto os dados anteriormente
restrições.
explicitados fornecem uma imagem preliminar
Passando à análise da diferença entre os sobre as condições educacionais nas zonas
rendimentos medianos mensais rurais e rurais dos municípios abordados (IBGE,
urbanos (rendimentos do trabalho e outras 2010).
fontes que uma pessoa de dez anos ou mais
recebeu no período de um mês),
disponibilizados no Censo Demográfico do Quanto às instalações sanitárias dos
IBGE (2010), os municípios que apresentaram domicílios rurais desses municípios,
os maiores rendimentos rurais foram Engenheiro Paulo de Frontin conta com quase
Engenheiro Paulo de Frontin, Piraí, Rio das 99% dos domicílios com instalações sanitárias
Flores e Pinheiral com R$ 1020,00/pessoa e adequadas ou semi-adequadas. Pinheiral e
Vassouras, Valença, Barra do Piraí e Vassouras também tem elevada parcela dos
Paracambi com R$ 1000,00/pessoa. Em todos domicílios rurais com instalações sanitárias
os 13 municípios o rendimento mediano adequadas ou semi-adequadas (cerca de
mensal urbano supera o rural, exceto no 95%) e Miguel Pereira e Mendes têm quase
município de Engenheiro Paulo de Frontin em 90% dos domicílios rurais também nessas
que são iguais. condições sanitárias. Os números mais
preocupantes são os de Valença e de Paty do
O curioso é que Paty do Alferes apesar de
Alferes, que apresentam apenas 70% de seus
possuir um produto agropecuário significativo
domicílios rurais com instalações sanitárias
e 30% de sua população rural (uma das
em condições adequadas ou semi-
maiores da região analisada), possui um
adequadas (IBGE, 2010).
rendimento mediano mensal rural
proporcionalmente baixo (R$ 800,00/pessoa), Para tornar mais clara a discussão,
o que indica condições ruins de distribuição instalações sanitárias são consideradas
de renda. Os rendimentos rurais mais baixos adequadas quando os domicílios contam
são encontrados em Mendes com dutos ligados à rede-geral ou fossa
(R$ 650,00/pessoa) e Volta Redonda séptica, abastecidos com água proveniente
(R$ 734,00/pessoa), cidades que também de rede geral e com destino do lixo coletado
possuem baixas populações rurais. Quando diretamente ou indiretamente pelos serviços
se trata dos rendimentos, a sustentabilidade de limpeza; Nas instalações semi-adequadas
pode ser analisada pelo aspecto da os domicílios possuem, pelo menos, um dos
equidade, tanto observando as diferenças serviços de abastecimento de água, esgoto
entre rendimentos rurais e urbanos em cada ou lixo classificados como adequado; Já nas
município, quanto observando a diferença dos instalações sanitárias inadequadas os
rendimentos rurais entre os diversos domicílios possuem escoadouro ligados à
municípios que compõe a região. Maiores fossa rudimentar, vala, rio, lago ou mar e outro
disparidades entre os rendimentos, e/ou escoadouro; servidos de água proveniente de
menores rendimentos são características que poço ou nascente ou outra forma com destino
apontam para um desenvolvimento desigual e de lixo queimado ou enterrado, ou jogado em
desequilibrado. terreno baldio. A falta de instalações
sanitárias adequadas é diretamente
elevado contingente populacional, possui o desejar. Mesmo assim, sua população rural
segundo maior percentual de população rural. aumentou razoavelmente no primeiro decênio
Esse município que possui a menor do século XXI.
densidade demográfica da região, tem
Observando os meios rurais da região como
rendimentos rurais mais elevados do que os
um todo, torna-se clara a necessidade de
de Vassouras, e apresentou também uma
melhorias na mobilidade (recuperação das
elevação na sua população rural entre os
estradas e transporte coletivo), na
anos de 2000 e 2010.
comunicação (redes de telefonia e internet),
Paty do Alferes é também um município com no saneamento (adequação das instalações
características interessantes. Possui a terceira sanitárias domiciliares, tratamento do esgoto),
maior população rural em termos absolutos e na educação (alfabetização e metodologias
o terceiro maior percentual de participação adaptadas ao campo), na distribuição de
rural frente à população total. Seu produto renda (entre as populações rurais e urbanas e
agropecuário é o terceiro maior da região, entre os municípios) e incentivos à atividade
(menor que Barra Mansa e Valença) advindo agropecuária.
principalmente da produção de tomate.
Estas melhorias serão conquistadas por meio
Apesar das primeiras informações serem
de ações de organização dos agricultores e
positivas, os dados referentes à educação,
trabalhadores habitantes do meio rural e
saneamento e rendimentos não parecem ser
urbano, em conjunto com as empresas e
muito favoráveis, o que pode indicar má
instituições locais, mas, sobretudo, com
distribuição de renda. Um reflexo desses
Estado em suas múltiplas escalas. A atuação
dados negativos é a diminuiu da população
de forma mais integrada e regional no sentido
rural entre os anos 2000 e 2010.
de planejar ações, políticas públicas, e
Por fim, o município de Valença também será buscar formas de investimentos para os
destacado, este que possui a segunda maior municípios pertencentes, rompendo com o
população rural (atrás da vizinha Vassouras), neo-localismo competitivo, seria um
tem também a segunda maior produção alternativa interessante à permanência de um
agropecuária dentre os municípios da região, meio rural habitado de forma equilibrada e
no ano analisado. O nível de alfabetização e equitativa, para a promoção do
os rendimentos rurais são razoáveis, no desenvolvimento em suas múltiplas formas.
entanto o saneamento parece deixar a
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Capítulo 7
riqueza de seus saberes próprios, gerados e Entretanto, para preservar o patrimônio serão
produzidos desde o meio rural. necessárias ações sólidas e eficazes entre
escola e vida real da comunidade escolar, de
Promover o desenvolvimento local faz menção
forma que é primordial que cada indivíduo
à capacidade de integração da comunidade
tenha consciência da importância do
com a escola. Através da fomentação das
patrimônio cultural herdado e, ao mesmo
relações de complementaridade a
tempo, se comprometa em qualificá-lo.
comunidade e a escola podem melhor
atender as necessidades sociais, Para a garantia dessas ações é fundamental a
econômicas, culturais, políticas e ambientais ampliação de trabalhos de pesquisa
para o seu próprio desenvolvimento. O envolvendo a realidade educacional do
desenvolvimento da comunidade deve ser campo patrimonial, desde onde a
pensado a partir da riqueza que a localidade comunidade poderá ter acesso ao
possui no que diz respeito à cultura herdada, conhecimento do seu passado, para que a
às atividades que prevalecem na região, as partir de então, aprenda a valorizar e respeitar
possibilidades existentes, e, nesse sentido, as suas raízes.
através da escola buscar os recursos
Preocupar-se com os bens patrimoniais e
necessários para qualificar as relações e os
culturais é uma questão essencial para a
recursos disponíveis (DIAS e MACHADO,
qualificação da sociedade como um todo.
2009).
Apesar de a legislação brasileira ser bastante
O patrimônio é usado não apenas para ampla e de boa qualidade, ainda não se
simbolizar, representar ou comunicar. efetiva na prática da forma como se faz
Patrimônio cultural não existe apenas para necessário, e, até que isso ocorra, ainda será
representar ideias e valores abstratos e para comum a perda de elementos culturais
ser contemplado. O patrimônio de certo praticados em função dessa ineficiência
modo, constrói e forma as pessoas ao mesmo legislativa.
tempo em que é moldado por elas. A
Entender o patrimônio como um bem, não só
compreensão profunda da realidade por parte
de interesse público, mas no intuito de
do indivíduo faz com que ele passe a dar
mobilizar a comunidade para a necessidade
valor a sua história e em consequência, à sua
de preservá-lo e qualificá-lo através da
memória. Despertando sua consciência sobre
educação e da prática cidadã é fundamental
si, nessa perspectiva, o patrimônio cultural
para a qualificação da comunidade humana.
local se encobre de grande notoriedade.
Pois, o desenvolvimento local não está
relacionado unicamente com crescimento
econômico, mas também com a melhoria da
4. CONSIDERAÇÔES FINAIS
qualidade de vida das pessoas e com a
Nestas reflexões considera-se a importância conservação do meio ambiente cultural e
de preservar, os aspectos que engrandecem natural ao qual elas permanecem.
a presença da escola no campo enquanto
O patrimônio imaterial é fundamental à
fomentadora do patrimônio cultural do campo.
comunidade que o produziu e o reproduz. Se
Tendo em vista a Educação do Campo como
a comunidade souber reconhecer, valorizar e
potencializadora da articulação e (re)
preservar o patrimônio cultural no seu entorno,
construção da cultura rural, considerando os
terá dado um gigantesco passo para garantir
aspectos de vida, os significados e saberes
o bem-estar social. Para isso é imprescindível
das pessoas que vivem nesta localidade,
que, desde a escola, se promovam ações e
buscando valorizar suas relações culturais e
atividades que qualifiquem o
econômicas, evidencia-se a sua importância
desenvolvimento, em especifico da região e
na construção de valores que sejam
da localidade, objetivando a melhoria da
significativos à humanidade, tais como:
qualidade de vida da comunidade e a
solidariedade, democracia, justiça e
garantia do exercício da memória e da
transformação social da sua realidade.
identidade regional e local.
Procurando aprofundar o debate em questão,
Pensar a educação vinculada à cultura
o estudo apresentou algumas questões
significa construir uma visão de educação em
educacionais que consideram propostas de
uma perspectiva de longa duração - isto tem
educação do campo condizentes com a
a ver, especialmente, com a educação de
preservação de patrimônio cultural que
valores culturais - a educação do campo,
enaltecem o desenvolvimento da localidade.
além de se preocupar com o cultivo da
[5] . Diretrizes Operacionais para a Educação [12] Horta, Maria de Lourdes Parreira. et al.
Básica do Campo. Brasília/DF, 2002. Disponível Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília:
em: Iphan/ Museu Imperial, 1999.
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_co
[13] Ibge. Instituto Brasileiro de Geografia e
ntent&id=12992 Acesso em: 22 out. 2017.
Estatística. Disponível em:
[6] Boisier, Sergio. Em Busca do Esquivo <http://www.ibge.gov.br/home/>. Acesso em:
Desenvolvimento Regional: entre a caixa-preta e o 19/10/2017.
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[14] Iphan. Patrimônio natural do Brasil:
n. 13, jun. 1996.
Brasília, 2009. Disponível em: <
[7] Caldart, Roseli Salete. Pedagogia do http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/234 >
Movimento Sem Terra: escola é mais do que Acesso em: 16 out. 2016.
escola. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
[15] Maia, Felícia Assmar. DIREITO À Memória: [18] Souza, Maria. Antônia. Educação do
O Patrimônio Histórico, Artístico e cultural e o Poder campo: propostas e práticas pedagógicas do MST.
Econômico. Movendo Ideias, Belém, v8, n.13, p.39- Petrópolis: Vozes, 2006.
42, jun. 2003.
[19] Tomaz, Paulo Cesar. A Preservação do
[16] Maltêz, Camila Rodrigues. Et al. Educação Patrimônio Cultural e sua Trajetória No Brasil. Fênix
e Patrimônio: O papel da Escola na preservação e – Revista de História e Estudos Culturais. v. 7, nº 2,
valorização do Patrimônio Cultural. Pedagogia em Maio/ Junho/ Julho/ Agosto de 2010. Disponível
ação, v.2, n.2, p. 1-117, nov. 2010. em: www.revistafenix.pro.br. Acesso em: 12 out.
2017.
[17] Peralta, Elsa e Anico, Marta. (orgs).
Patrimónios e Identidades: ficções [20] Varine, Hugues de. As Raízes do Futuro: O
contemporâneas. Oeiras, Celta 2006. Patrimônio a Serviço do Desenvolvimento Local.
Porto Alegre: Medianiz, 2013.
Capítulo 8
Paulista. Contudo, o porto do Rio de Janeiro Não devemos esquecer também das
ainda era central na navegação de inúmeras instituições culturais e científicas
cabotagem e por meio desta articulava-se a sediadas na cidade do Rio de Janeiro. A
praças comerciais no Nordeste e no Norte. primeira delas, ainda no final do século XIX,
foi a Academia Brasileira de Letras. Com as
Da mesma forma, a cidade era um centro
reformas de Pereira Passos, foram
político e financeiro que abrigava o poder
construídos ainda uma nova sede para a
executivo, seus ministérios, embaixadas, a
Biblioteca Nacional, outra para a Escola
sede do Banco do Brasil, da Bolsa de Valores
Nacional de Belas Artes e o Teatro Municipal.
e de uma série de instituições estrangeiras e
Ademais, na Avenida Central e nas ruas
nacionais. Aqui aportavam navios com
adjacentes situavam-se prédios de periódicos
mercadorias originárias dos quatro cantos do
como o Jornal do Commercio, o Paiz, Correio
mundo, notadamente da França.
da Manhã e a Gazeta de Notícias. Sem
A cidade ainda recebeu um montante esquecermos o Instituto Manguinhos, hoje
significativo dos capitais exportados pela Grã- Fundação Oswaldo Cruz. Inaugurado em
Bretanha. Esses foram investidos na infra- 1900, pelo médico e sanitarista Oswaldo Cruz,
estrutura urbana e principalmente naquilo que o Instituto foi fundamental no sentido do
facilitasse a exploração de produtos como o combate as epidemias da febre amarela e da
café, o cacau, açúcar e a borracha. Assim, o peste bubônica.
Brasil ainda era nitidamente uma economia
Os elementos elencados acima justificam
agroexportadora cujo papel dentro da divisão
porque o Rio de Janeiro era caracterizado
internacional do trabalho era o de fornecer
como a caixa de ressonância do Brasil,
alimentos e matérias-primas. Nessa
espécie de cidade-modelo que atraia todos
perspectiva, a sociedade e a economia
os olhares. Se Lima Barreto e João do Rio
brasileiras eram constituídas de arquipélagos
eram nascidos na Capital Federal, aqui
modernizados se comparados às regiões
também vieram aportar intelectuais de outros
rurais. Além do Rio de Janeiro, São Paulo,
estados e mesmo do estado do Rio de
Recife e Belém eram pólos de modernização
Janeiro, que na época era uma entidade
interessantes. São Paulo crescia impulsionada
política distinta com capital na cidade de
pelo café do Oeste Paulista, Recife tinha
Niterói. Para a cidade do Rio de Janeiro,
importância cultural devido a sua Faculdade
vieram o sergipano Gilberto Amado, o
de Direito e Belém apareceu ao mundo a
maranhense Arthur Azevedo e o cantagalense
partir do ciclo da borracha e do Museu Emilio
Euclides da Cunha. Esta fusão entre o espaço
Goeldi. Nada que contrariasse o fato de que a
urbano carioca e as questões nacionais, aliás,
população brasileira ainda era
acarretaram problemas para a formação de
predominantemente rural ou mesmo o peso
um campo político autônomo, como
das oligarquias regionais.
demonstram os historiadores Américo Freire21
No plano demográfico, as tabelas veiculadas e Marly Motta22.
no livro do urbanista Marcelo Abreu20 indicam
que em 1906 o Rio de Janeiro era uma cidade
de 800.000 habitantes e em 1920 este total 3. ENTRE A CIDADE IDEAL E A CIDADE
ultrapassou a marca do um milhão. Estes REAL: O RIO DAS CRÔNICAS.
números faziam da então Capital Federal a
De acordo com o que foi dito anteriormente,
maior cidade do país, posto que perdeu para
nosso interlocutor será o critico literário
a cidade de São Paulo a partir dos anos 1960.
uruguaio Angel Rama23. Dissertando sobre as
Para efeito de comparação, cite-se que
cidades latino-americanas, Rama pontua que
atualmente somos a segunda maior metrópole
desde o inicio da colonização as cidades
do Brasil com seis milhões de habitantes, mas
instaladas pelos espanhóis se caracterizaram
que chegam a 12 milhões se contamos com a
por apresentar a ordenação do espaço
região metropolitana. Enquanto isso, São
urbano como se fosse um tabuleiro de damas
Paulo perfaz um total de 12 milhões de
habitantes que se transformam em 20 milhões
21
tomando em perspectiva a área FREIRE, Américo. Sinais trocados: o Rio de
metropolitana. Janeiro e a República. Rio de Janeiro: 7Letras,
2012.
22
MOTTA, Marly da Silva. Rio de Janeiro: de
cidade-capital a Estado da Guanabara. Rio de
20
ABREU, Maurício de Almeida. A evolução urbana Janeiro: Editora FGV, 2001.
23
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPP, 2013. p. 80 RAMA, Angel. Op.cit, 1982.
24
SICILIANO, Tatiana Oliveira. O Rio de Janeiro de
25
Artur Azevedo: cenas de um teatro urbano. Rio de O’ DONNELL, Julia. De olho na rua: a cidade de
Janeiro: Mauad X: Faperj, 2014. João do Rio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008.
tendências de moda do mundo europeu, que vimos, aquela vivenciada por seus habitantes
à época era sinônimo de mundo civilizado. no dia-a-dia, nem sempre correspondendo ao
planejamento dos seus idealizadores. E que
Esse era o ambiente pretendido pelos
ficava, aliás, bem próxima a cidade inserida
planejadores de uma cidade ideal, oposta
no plano de Pereira Passos. A bem dizer, os
àquela cidade real, formada pelos hábitos
limites entre a cidade real e a ideal não são
populares. A ordem, portanto, não estava
dos mais fáceis a serem definidos, sendo a
apenas nas avenidas retilíneas, mas dependia
literatura a grande responsável pela constante
da aquisição de novos comportamentos,
ultrapassagem das fronteiras, pois nem está
vendidos como se fossem os mais elegantes,
apenas imaginando um espaço urbano ideal
ou para usar o linguajar da época, “smart”.
nem se restringe a descrição daquilo que o
Era uma nova disposição do corpo descrita
cronista vê ao flanar, isto é, caminhar sem
em termos poéticos por João do Rio, ou
objetivo definido.
melhor, o treinamento do corpo para se
adaptar a outra configuração do espaço Como estamos ressaltando constantemente
urbano. ao longo do texto, as crônicas de João do Rio
e Olavo Bilac eternizariam o momento fugaz
Neste caso, João do Rio serviria de exemplo
das reformas promovidas por Pereira Passos
às discussões travadas por Angel Rama no
e todas as conseqüências daí advindas.
sentido do papel desempenhado pela cidade
Como disse Angel Rama: os intelectuais da
das letras diante da cidade física, constituída
cidade das letras dão sentido aos
pelas transformações sinalizadas pela
significantes produzidos pelas transformações
abertura de novas avenidas. Lembremos que
urbanas e é a partir deles que lemos os
para Rama os intelectuais seriam um dos
múltiplos vieses do mesmo processo.
encaminhadores da cidade ideal, servindo de
suporte simbólico para o planejamento e Em outro, “As Mariposas de Luxo”, João do
ordenamento do espaço urbano. Rio incide seu olhar sobre algumas jovens
que namoram uma vitrine da Rua do Ouvidor,
Porém, João do Rio não se limitou a ser um
uma das artérias mais importantes do Rio
“pedagogo” da cidade ideal. Seu livro, “a
“civilizado”. Vejamos dois trechos:
Alma encantadora das Ruas”, traz retratos de
uma série de outras cidades possíveis, como São duas raparigas, ambas morenas. A mais
aquela dos “comedores de ópio”: alta alisa instintivamente os bandos, sem
chapéu, apenas com pentes de ouro falso. A
As lâmpadas tremem, esticam-se na ânsia de
montra reflete-lhe o perfil entre as plumas, as
queimar o narcótico mortal. Ao fundo um
rendas de dentro; e enquanto a outra afunda
velho idiota, com as pernas cruzadas em
o olhar nos veludos que realçam toda a
torno de um balde, atira com dous pauzinhos
espetacularização do luxo, enquanto a outra
arroz à boca. O ambiente tem um cheiro
sofre aquela tortura de Tântalo, ela mira-se,
inenarrável, os corpos movem-se como as
afina com as duas mãos a cintura, parece
larvas de um pesadelo, e estas 15 caras
pensar coisas graves. Chegam, porém, mais
estúpidas, arrancadas ao balsamo que lhes
duas. A pobreza feminina não gosta dos
cicatriza a alma, olham-nos com o susto
flagrantes de curiosidade invejosa (...)
covarde de coolies espantados. E todos
murmuram medrosamente, com os pés sujos, (...) Quanta coisa! Quanta coisa rica! Elas vão
as mãos sujas (...) (RIO, João do; 1908) para casa acanhada jantar, aturar a rabugice
dos velhos, despir a blusa de chita – a mesma
Temos, pois, um contraste entre a cidade que
que hão de vestir amanha ... E estão tristes.
circula que pela avenida de automóvel e
São os pássaros sombrios no caminho das
aquela que se esconde para fazer uso do
tentações. Morde-lhes a alma a grande
ópio. Contraste este que se faz notar pelas
vontade de possuir, de ter o esplendor que se
palavras utilizadas pelo cronista para se
lhes nega na polidez espelhante dos vidros.
referir aos chineses como “caras estúpidas”,
(Rio, João do; 1908)
“susto covarde”, “velho idiota”. Sumiram a
avenida cintilante e o mar em formato de Anteriormente, havíamos dito que a abertura
tecido. Agora prevalece a sujeira, o cheiro de novas avenidas teve, entre outras
putrefato, uma serie de características motivações, o ensejo de facilitar a circulação
ambientais descritas em tom negativo, de mercadorias. É também consenso afirmar
que a iluminação destes novos espaços
Nesta crônica, se evidencia a distância entre
facilitou o habito de passear pela cidade à
a cidade ideal e a cidade real. Essa é, como
noite. Tais emblemas da nova cidade estão
sintetizados na crônica cujos trechos foram promovidas por Pereira Passos nenhum traço
transcritos acima, na medida em que João do de profundidade. Para ele, apesar de terem
Rio poderá os significados de um passeio por afetado vertiginosamente o cotidiano dos
uma das ruas mais elegantes do Rio de cariocas, seriam mudanças de fachada na
Janeiro de então. medida em que não lograram resolver o
problema das enchentes, entre outros.
A crônica chama atenção para os efeitos da
Portanto, não é que Lima Barreto rejeitasse a
formação da sociedade de consumo sobre a
civilização ou o progresso, mas sim que estes
psique dos indivíduos. Fala da tristeza com
valores adquiriam em sua perspectiva outra
que as moças encaram a impossibilidade de
feição.
consumir um objeto desejado ou que foram
levadas a desejar. É, pois, o choque entre a Da mesma forma, se o autor também pensava
cidade ideal dos hábitos elegantes de em termos de uma cidade ideal esta não seria
consumo e a cidade real dos “pássaros aquela planejada por homens como Pereira
sombrios no caminho das tentações”, o que Passos, Rodrigues Alves e Carlos Sampaio. A
remete mais uma vez a metáfora da cidade partir das indicações biográficas de
moderna como Babilônia. Francisco Assis Barbosa26, infere-se que uma
suposta cidade ideal para Lima Barreto seria
Vamos ao nosso último cronista, Afonso
aquela que atenderia aos anseios das classes
Henrique de Lima Barreto. Dos três, Lima
populares, às quais sempre esteve ligado por
Barreto foi o mais crítico ao processo de
origem social. O autor de Vida e Morte de
modernização que atingiu o Rio de Janeiro no
Gonzaga Sá matinha em perspectiva crítica
inicio do século XX, seja aquele promovido
os desdobramentos das práticas ordenadoras
por Pereira Passos seja aquele desenvolvido
ensejadas pela cidade das letras, formada
por Carlos Sampaio já na década de 1920,
não só pelos administradores como também
simbolizado pela derrubada do Morro do
pelos intelectuais.
Castelo.
Também não seria correto dizer que Lima
Ainda nos valendo do diapasão fornecido por
Barreto seja um mero passadista. Leiamos,
Angel Rama, Lima Barreto seria o intelectual
por exemplo, o que o autor escreveu a
mais próximo da cidade real. Seus textos
respeito da demolição do Convento da Ajuda
conferem uma perspectiva negativa às
para dar lugar ao novo prédio da Cruz
transformações do espaço urbano, tocando
Vermelha:
no que seriam os limites daquela ordem
visada pelos planejadores. Vejamos como ele Não sei bem que vantagens trará tal coisa.
trabalha, por exemplo, o problema das Se, ao menos, fossemos levantar ali um
enchentes: Louvre, um Palácio dos Doges, alguma coisa
de belo e grandioso arquitetonicamente, era
O Rio de Janeiro, da Avenida, dos squares,
de justificar todo esse contentamento que vai
dos freios elétricos, não pode estar à mercê
pela alma dos estetas; mas para substituí-lo
de chuvaradas, mais ou menos violentas, para
por um hediondo edifício americano, enorme,
viver a sua vida integral.
pretensioso e pífio, o embelezamento da
O Prefeito Passos, que tanto se interessou cidade não será grande e a satisfação dos
pelo embelezamento da cidade, descurou nossos olhos não há de ser de natureza
completamente de solucionar esse defeito do artística. Uma coisa vale a outra.
nosso Rio.
Não é que eu tenha grande admiração pelo
Cidade cercada de montanhas e entre velho casarão, mas é que também não tenho
montanhas, que recebe violentamente admiração nem pelo estilo nem pela gente,
grandes precipitações atmosféricas, o seu nem pelos preceitos americanos dos Estados
principal defeito a vencer era esse acidente Unidos. (BARRETO; 1911)
das inundações.
Fica claro pela leitura dos trechos acima que
Infelizmente, porém, nos preocupamos com o problema da demolição do Convento da
os aspectos externos, com as fachadas, e não Ajuda é simultaneamente estético e de
com o que há de essencial nos problemas de ideológico. Estético porque, para Lima
nossa vida urbana, econômica, financeira e Barreto, edifícios americanos não teriam a
social. (BARRETO; 1915) beleza de um Louvre, museu parisiense. E
Diferentemente de João do Rio, Lima Barreto
26
não enxerga nas reformas urbanas BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima
Barreto. Rio de Janeiro: Jose Olimpio, 1975.
27 28
GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a FREITAG, Barbara. Capitais migrantes, poderes
cidade: literatura e experiência urbana. Rio de peregrinos: o caso do Rio de Janeiro. Campinas,
Janeiro: Rocco, 1994. SP: Papirus, 2009.
Capítulo 9
Germana Konrath
Paulo Edison Belo Reyes
textos escritos por Alÿs acerca de seus Alÿs intervém no espaço público de forma
trabalhos. efêmera e suas obras podem ser vistas e lidas
de modo autônomo e pontual, porém o motivo
No estudo já realizado, as informações
de fundo que as une é contínuo, quase
coletadas foram avaliadas dentro de uma
circular, conectando forma e conteúdo,
abordagem qualitativa. A intenção foi fazer
essência e aparência. Como previu Lefebvre
uma varredura de sua obra, procurando
“deixando a representação, o ornamento, a
identificar padrões recorrentes, tendências,
decoração, a arte pode se tornar práxis e
repetições e variações, que tornassem a
poiesis em escala social: a arte de viver na
análise consistente. Apesar do enfoque não
cidade como obra de arte” (Lefebvre, 2001).
ser numérico, a revisão de todos os projetos
Na mesma página, o autor segue ainda
de Alÿs a que se têm acesso, através das
afirmando que “o futuro da arte não é artístico,
fontes buscadas, permitiu um
mas urbano”. Essa é a premissa na qual se
aprofundamento na discussão proposta.
baseia o artigo que aqui se propõe, trazendo
A escolha por este artista, especificamente, projetos artísticos como produtores de
deve-se ao profundo diálogo estabelecido pensamentos, pensabilidades, ações e
entre as práticas de Alÿs com o contexto transformações sobre o espaço público
urbano. O espaço público para ele representa urbano.
a possibilidade de criar, no local de encontros
Acreditamos que Alÿs entabule uma conversa
sociais da cidade, situações escultóricas,
direta com Lefebvre em sua defesa à
entendidas aqui como as esculturas sociais
(re)apropriação das cidades pós-industriais
às quais o artista Joseph Beuys se referia31.
por seus habitantes; avance em consonância
Alÿs cria narrativas ou fábulas, como ele as
com o entendimento de Rancière que vincula
chama, a partir dos elementos presentes no
a base da política com estética; desenvolva
espaço público, evidenciando situações
ações diretamente relacionadas às acepções
políticas e sociais, muitas vezes
de agenciamento, alisamento e estriamento
características de países “em crise” ou em
de Deleuze e Guattari e ainda tensione o
eterna busca pelo desenvolvimento, como
binômio encapsulação/transgressão de
aqueles da América Latina, onde muitos de
Canclini, com sua produção poética de difícil
seus projetos se desenvolvem.
classificação e apreensão pelo mercado da
Sua postura crítica frente ao sistema político e arte.
socioeconômico é elaborada através de uma
Este universo constrói a seguinte matriz
produção poética não banal ou literal, pelo
teórica: 1. Derivando do direito à cidade de
contrário, o artista se vale de alegorias, mitos
Lefebvre, pretende-se verificar como Alÿs cria
e símbolos que permitem diversas
situações que retomam um sentido de
interpretações, jogos e aberturas, dando à
pertencimento à coisa urbana; 2. Partindo de
sua produção um caráter permeável e
Rancière, busca-se identificar a vinculação
processual. Supomos que estas
entre ações poéticas e ações políticas
características estabeleçam um profundo
propostas pelo artista, baseados no
diálogo com as teorias caras à pesquisa, que
entendimento do regime de pensamento das
buscam abrir outras possibilidades de
artes: os modos de fazer, as formas de
pensamento, ocupando-se daquilo que ainda
visibilidade dessas maneiras de fazer e os
não tem forma pronta, que existe apenas
modos de pensabilidade de suas relações; 3.
como iminência. É uma atitude contrária à da
Desdobrando os conceitos de alisamento e
maior parte dos projetos em arquitetura e
estriamento de Deleuze e Guattari, propomos
urbanismo, marcados por processos
uma leitura da trajetória poética analisada
teleológicos que geram resultados previsíveis.
frente ao efeito de inversão que esse binômio
propõe e de sua essência disruptiva; 4. A
31
partir de Canclini, visamos problematizar não
A Escultura social pode ser definida em como apenas a apreensão pelo mercado de
nós moldamos e damos forma ao mundo em que
projetos de Alÿs, mas sua capacidade de
vivemos. É a escultura vista como um processo
evolucionário onde todo ser humano é um artista”
transpor limites e romper fronteiras no campo
(Durini, 1997). Beuys entendia a escultura de forma da arte através do binômio
ampliada, a partir da percepção de que estamos encapsulação/transgressão.
constantemente criando formas para nos
Para fomentar essa discussão, foram
relacionarmos, visto que todo conteúdo, toda
linguagem, tem sua forma de expressão, e que
selecionados quatro trabalhos do artista, de
podemos moldá-la como a uma escultura. diferentes momentos de sua carreira: Turista
motor por trás de muitos de meus projetos é emblemático espaço público da capital
uma profunda incapacidade de compreender” mexicana – antiga sede do império Asteca –
(Alÿs in Thornton, 2015). Francis Alÿs se posiciona, em meio a
trabalhadores informais que oferecem seus
serviços a céu aberto, todos sinalizados por
3.1 AÇÕES POÉTICAS placas diminutas e domésticas, quase como
se portassem crachás. Entre encanadores,
3.1.1 TURISTA, 1994
eletricistas, gesseiros e pintores, o artista joga
Em um dia qualquer, no ano de 1994, mais com seu status de estrangeiro. Sublinha as
um desses dias chamados “úteis”, um gringo diferenças presentes na situação que são,
instala-se na maior e mais antiga praça da para ele, parte de uma vivência pessoal,
Cidade do México, chamada Zócalo. Escora- iniciada por sua mudança de habitat e de
se no gradil em frente à Catedral, disputando ocupação, mas também parte de um
espaço entre os demais presentes, com uma processo coletivo e cotidiano de identificação
placa indicativa à sua frente onde se lê: na urbe
turista. Durante todo aquele dia, neste
“México (D.F.) é uma cidade que te obriga por esses mesmos motivos, focos de
constantemente a responder à sua realidade, interesse e produto de consumo para turistas
(...) a te reposicionar frente a essa entidade e estrangeiros. O autor atesta que tais centros
urbana desmesurada. Toda essa gente que “sobrevivem graças a este duplo papel: lugar
não deixa de se reinventar: gente que um dia de consumo e consumo do lugar” (Lefebvre,
sente a necessidade de construir uma 2001).
personalidade, uma identidade para afirmar
Sob o ponto de vista do direito à cidade, a
seu sítio neste caos urbano” (Alÿs, 2006). O
credencial de turista portada por Alÿs opõe-se
artista discorre, assim, sobre os processos de
a dos trabalhadores ordinários ali presentes.
identificação e pertencimento, de
Ironicamente, apesar de estarem ocupando a
agenciamento e territorialização a partir de
praça pública, aos trabalhadores o direito à
sua vivência no centro da capital mexicana,
cidade é cada vez mais restrito e
onde escolheu instalar seu estúdio. Segundo
condicionado. Espaços como o da histórica
Lefebvre, a manutenção destes antigos
praça el Zócalo são, cada vez mais,
núcleos urbanos deve-se a qualidades
destinados aos turistas, a quem o sistema
estéticas como a presença de monumentos e
capitalista concede o direito de permanência,
de sedes institucionais de poder, mas
desde que participem das redes de consumo.
também por configuraram-se como espaços
Processos de negação do direito à cidade,
destinado originalmente a festas, desfiles,
iniciados com as cidades pós-industriais e
celebrações e passeios. Hoje tornando-se,
seus cinturões e subúrbios, são hoje
Barrenderos, 2004. Francis Alÿs em colaboração com Julien Devaux. Still de vídeo.
Bridge/Puente, 2006. Francis Alÿs em colaboração com Tayana Pimentel e Cuauhtémoc Medina.
Documentação fotográfica de um evento.
com sujeitos plurais, não apenas em seus ato absurdo provocar uma transgressão que
objetivos, mas em suas visões, identidades e faça você abandonar os pressupostos padrão
papéis no projeto proposto. Rancière discorre sobre uma situação, como as fontes de
que o conceito de vanguarda artística só faz conflito? Podem estes tipos de atos artísticos
sentido quando temos a “invenção de formas trazer possibilidades de mudança? Como a
sensíveis e dos limites materiais de uma vida arte pode permanecer politicamente
por vir” (Rancière, 2009). Criar pontes é o que significativa sem assumir um ponto de vista
fazem nossos pensamentos, gerando novas doutrinário ou que aspira a tornar-se ativismo
associações e significados possíveis para social? No momento, eu estou explorando o
conceitos existentes. O mesmo procedimento seguinte axioma: Às vezes fazer algo poético
é incentivado por Alÿs, buscando novas pode se tornar político e às vezes fazer algo
formas de pensabilidade sobre uma situação político pode se tornar poético” (Alÿs, 2007).
já não mais questionada em seus
fundamentos.
4 MOVIMENTOS CIRCULARES
Ao propor ações processuais em que o
percurso torna-se mais importante do que o Seria difícil e incoerente buscar, em um
ponto de partida ou o de chegada, Alÿs nos símbolo único, uma síntese do pensamento de
remete à diferença entre liso e estriado Alÿs ou das ações apresentadas neste artigo;
proposta por Deleuze e Guattari, quando não é este nosso intuito. Mesmo assim,
afirmam que um e outro se diferenciam, antes arriscamos trazer aqui a figura de movimentos
de mais nada, pela relação inversa do ponto e circulares ou de ondas, amparados num
da linha: no espaço estriado parte-se de dois depoimento do próprio artista ao sugerir que
pontos entre os quais desenha-se uma linha, “se mover em círculos pode ser uma forma de
enquanto no liso o que importa são os pontos avançar” (Alÿs, 2006). Se boa parte dos
que resultam do cruzamento das linhas, o projetos aqui discutidos remetem ao conceito
entre. Alÿs propõe a criação de duas linhas, físico de trabalho, tendo guiado, inclusive, a
mas o que interessa é a possibilidade de uma separação do artigo em seus capítulos, este
intersecção entre elas, um cruzamento, uma conceito não ajuda a traduzir os pensamentos
ponte, um entre. formulados a partir das ações poéticas
analisadas. Estamos mais próximos, assim, da
Canclini diria ainda que “a tarefa da arte não é
sentença trazida pelo artista, quando
dar um relato à sociedade para organizar sua
argumenta que “não se pode traçar uma reta
diversidade, mas valorizar o iminente onde o
em um espaço curvo” (Alÿs, 2007).
dissenso é possível” (Canclini, 2012). O autor
postula ainda que trabalhos poéticos não Partimos então do entendimento de que este
apenas suspendem a realidade, mas é como artigo não avança em linha reta, não tem uma
se estivessem posicionados num momento progressão ou uma meta. Mas constrói um
anterior, onde e quando o real ainda é caminho, uma trajetória que de alguma forma,
possível, onde tudo está a ponto de ser. O avança. Talvez a imagem de propagação em
antropólogo encontra eco na ação de Alÿs, ondas, através de círculos concêntricos, seja
mas também em suas palavras, quando válida para entendermos como uma obra
afirma que “não se mudou nada, mas se artística pode gerar contribuições em outros
introduziu por algumas horas a possibilidade campos. Assim, ao criar fábulas que se
de mudança” (Alÿs, 2007). É um pensamento dissipam através da multiplicação das fontes
transgressor e recorrente na trajetória de Alÿs, de narração, ao tentar repetir ações poéticas
que defende que essas experiências têm que partem de uma ideia comum, Alÿs
muito mais valor por suas múltiplas tentativas intensifica seu efeito e dilata seu raio de
do que por sua conclusão. A respeito de sua alcance. Cria ruídos que afetam o ambiente à
produção, Alÿs segue ainda, lançando as sua volta, como ondas sonoras, de forma mais
seguintes perguntas: ou menos intensa. Busca explorar os efeitos
de proximidade ou afastamento, inclusão ou
“É possível uma intervenção artística
exclusão dos centros, em seus aspectos
verdadeiramente trazer uma maneira
físicos e simbólicos.
imprevista de pensar ou é mais uma questão
de criar uma sensação de ‘falta de sentido’ O entendimento de espaço de intervenção e o
que mostra o absurdo da situação? Pode uma raio de atuação de suas ações parecem se
intervenção artística traduzir tensões sociais ampliar, ao longo de sua trajetória.
em narrativas que, por sua vez, intervêm na Inicialmente percebemos um artista muito
paisagem imaginária de um lugar? Pode um próximo à sua formação de arquiteto e
[2] Alÿs, Francis. (Contemporary Artists). [8] Ferguson, Russel; Fisher, Jean; Medina,
Londres: Phaidon, 2007. Cuauhtémoc. Francis Alÿs. Londres: Phaidon,
2007.
[3] Alÿs, Francis; Medina, Cuauhtémoc. Diez
cuadras alrededor del estudio / Walking Distance [9] Freire, Cristina. Arte Conceitual. Rio de
From the Studio. Cidade do México: Antiguo Janeiro: Zahar, 2006.
Colegio de San Ildefonso, 2006.
[10] Harvey, David. Espaços de Esperança.
[4] Canclini, Néstor García. A Sociedade sem São Paulo: Loyola, 2004.
Relato: Antropologia e Estética da Iminência. São
[11] Laurentiis, Clara Barzaghi de. Francis
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012.
Alÿs Percursos e desvios. Trabalho Final de
[5] Certeau, Michel de. A invenção do Graduação. São Paulo: FAU-USP, 2014.
cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994.
[12] Lefebvre, Henri. O direito à cidade. São
Paulo: Centauro, 2001.
[13] LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A [15] Thornton, Sarah. O que é um artista. Rio
estetização do mundo: viver na era do capitalismo de Janeiro: Zahar, 2015.
artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
[16] Site oficial do artista:
[14] Rancière, Jaques. A partilha do sensível: http://www.francisalys.com
estética e política. São Paulo: Editora 34, 2009.
Capítulo 10
vivido. Esse tempo vivido e explorado como cidade e do território por ele analisado além
registro histórico só se constituiu na um início virtuoso de um processo de
contemporaneidade do literato, pois ele melhoria. (Secchi, 2006).
percebe, por meio dos sentidos, o espaço e a
Na narrativa, as Figuras38 sempre estão
passagem do tempo, portanto esta
presentes como parte da estrutura discursiva.
experiência sensível é passível de uma
Frequentemente, as figuras não possuem
análise histórica.
apenas um sentido descritivo, mas também
Da mesma forma, a cidade é a síntese de “um papel construtivo, de organização do
tempos, tanto do passado, com seus traços nosso pensamento”(Secchi, 2006). É uma
sócio culturais, representados por patrimônios concepção metafísica que unifica e orienta o
– como expectativa37 do futuro - apresentado pensamento, relacionando aspectos
por possíveis planos urbanísticos, visando à diferentes da percepção do real. As figuras,
constituição urbana futura. Esses traços são enquanto parte das narrativas urbanas
elementos visíveis em qualquer sociedade, e referem-se ao modo de observar, interpretar e
se apresentam na própria cidade através dos construir a cidade, não apenas no discurso
espaços urbanos e da arquitetura. Os traços sobre a cidade, mas também na sua
sociais e culturais da cidade podem ser constituição física, isto é, na configuração do
compreendidos como vestígios e ou espaço urbano.
fragmentos. Nesse sentido literatura e cidade
Enquanto narrativa, a cidade coloca-se como
são acúmulos de conhecimento, depositários
uma recomposição intencional de fatos,
do saber cultural e possuem o caráter de
espaços e tempos que merecem ser
transmissão de experiências vividas se
explorados para transmitir experiências
partirmos do princípio de que ambos são
construídas no decorrer da História. Olhar a
artefatos humanos construídos e interpretados
narrativa literária e sobrepor a uma narrativa
em tempos e espaços distintos.
urbana tem o sentido de explorar duas
Por sua vez, a cidade é o resultado do possibilidades de transmissão concomitantes
trabalho coletivo em diferentes instancias, os de experiência. Nesse contexto, a memória
quais serão vivenciados pela sociedade como coletiva que estabelece relações afetivas com
um todo. Produzir cidades é também o ofício um determinado fato, um tempo e um espaço,
do urbanista, na medida em que ele cria representadas ora na literatura, ora na própria
espaços urbano. O trabalho coletivo da cidade, tornam-se ambas, narrativas.
sociedade, bem como do urbanista têm como
resultado final a constituição da paisagem.
Além de ser fisicamente produzida, a cidade 3. LITERATURA: VIÉS DA MEMÓRIA
é um conjunto de manifestações sócio COLETIVA DE SÃO PAULO
culturais constituídas na duração do tempo,
É possível uma aproximação entre as idéias
se apresenta em imagens de tempos
de Halbawchs (2006) sobre memória coletiva
distintos, simultaneamente construída por
e individual com as premissas sobre as
meio da sobreposição de significados.
narrativas de Benjamin (1987). Se para
Entretanto, há uma transformação contínua do
Halbawchs o homem se apoia em memórias
território, dada pela reconstrução e
individuais para promover a memória coletiva
modificação de signos que ocorrem devido à
de um grupo social; por sua vez, Benjamim
pluralidade dos sujeitos que vivenciam o
afirma que as melhores narrativas escritas são
espaço e nesse sentido a cidade também é
as que menos se distinguem da narrativa oral
narrativa. Discorrendo sobre isso, Bernardo
contada por narradores anônimos. É
Secchi elabora uma reflexão sobre a
exatamente no anonimato dos personagens
importância da narrativa na ciência moderna,
que Alcântara Machado tece suas narrativas.
como uma estrutura discursiva para constituir
Em sua obra, são as memórias individuais de
um conjunto de enunciados relacionados a
cada personagem que reconstroem a
fatos. Essencialmente, é a idéia de progresso
que supera o obscuro e a ignorância. Nesse
contexto, por muito tempo a ação do 38
As figuras descritas por Secchi indicam, em um
urbanista é apresentada como a finitude do nível abstrato, formas de pensamento, formas de
processo de agravamento das condições da cidades, suas partes ou até mesmo a arquitetura.
Como dissemos, é uma percepção do real.
Portanto, é uma imagem que se constitui a partir do
37
No sentido etimológico de “spectare”, olhar ou real. O autor reserva um capítulo inteiro para
espera o futuro esmiuçar essa questão. Vide capítulo “Figuras”
memória coletiva desse grupo de imigrantes, literárias, na sua experiência narrativa que
em seus primeiros anos na cidade de São reúne narrador e temporalidade, possam
Paulo. Não é possível afirmar categoricamente recompor modos de vida e paisagem urbana
a existência literal de cada personagem do de tempos passados, tornando-se nesse
texto de Alcântara Machado, mas isso não sentido fontes de pesquisa histórica.
tem severa importância na narrativa.
Ao registrar a vida cotidiana desse grupo de
Entretanto, se o livro surge a partir de escritos
imigrantes italianos na cidade de São Paulo,
como notícias extraídas de jornais, a priori
Alcântara Machado simula uma experiência
podemos supor que os fatos possivelmente
da memória coletiva, por meio de
ocorreram. O mais significativo para nosso
personagens individuais, que a priori, não
contexto é que as vivências desses habitantes
possuem características próprias de
constituíram valores culturais que mereceram
protagonistas ou coadjuvantes. Todos os
ser narrados e sua importância está no fato de
personagens fazem parte de uma narrativa
manifestarem certa identidade urbana criada
social. Como figura de linguagem, os
entre o grupo social e o espaço da cidade.
personagens são metonímias, ou seja, partes
A cidade é construída em tempos e espaços de um todo, inseridos em uma História
distintos. Muitas vezes, vemos nas cidades as Urbana. Mas também representam a
sobreposições de tempos e espaços. O concentração dos imigrantes italianos em uma
espaço urbano construído no passado ainda porção do território paulista: Brás, Bexiga e
é vivenciado na contemporaneidade. É a Barra Funda. É interessante pensar na relação
própria cidade que narra sua história com que essa narrativa social, composta pelas
marcas indeléveis no espaço urbano. As figuras da metonímia na narrativa literária, tem
memórias do passado estão presas, imóveis com a narrativa urbana e os registros de
em um tempo que não existe mais, entretanto signos indeléveis no território descritos por
ao rememorá-las elas reconstroem um espaço Secchi. Há entre estas duas experiências de
vivenciado. narrativa uma diferença na produção: o
literato é único autor, enquanto a cidade é
O que articula o tempo narrativo literário e a
obra da ação de vários agentes. Este aspecto
cidade é justamente a memória coletiva.
torna a obra ainda mais relevante para o
Halbwachs deixa claro em sua obra que o
nosso estudo. Na medida em que o literato vai
homem vivencia a memória coletiva e a
buscar em jornais seu material de trabalho,
memória individual, concomitantemente.
sua intenção é expor contar com a
Entretanto, muitas vezes a memória individual
interferência de vários autores, diminuindo a
se apoia na memória coletiva para apresentar
relevância da visão centrada no autor, tal
um fato com maior clareza. O autor esclarece
como a diversidade de atores sociais que
que a reconstrução das imagens de um
constroem a cidade.
acontecimento é a aproximação dos
fragmentos de memórias individuais, só A obra de Antônio de Alcântara Machado
possível na instância coletiva e enquanto apresenta a vida cotidiana, a experiência da
aqueles membros do mesmo grupo social rua, o homem tradicional que migra de seu
continuarem a fazer parte daquela país para uma nova cidade e se fixa em
coletividade. A memória individual depende bairros como Brás, Bexiga e Barra Funda. É
do lugar que o indivíduo ocupa no grupo uma obra totalmente distinta daquela que
social e as suas relações com o ambiente. constituem as narrativas da história urbana,
(Halbwachs, 2006). Ela é passível de história social, ou história econômica. A obra
mudança, pois é um ponto de vista sobre a literária em questão é mais do que uma
memória coletiva. A percepção dos fatos e narrativa, é um simulacro em escala reduzida
dos espaços são atos individuais. Cada vez da experiência vivida na cidade.
que essas percepções individuais do espaço
Defendemos que, no caso de estudar bairros
e tempo emergem como imagens através de
tão tradicionais como Brás, Bexiga, Barra
narrativas, elas passam a fazer parte da
Funda, é possível detectar a memória coletiva
memória coletiva. Quanto mais se ouve ou lê
através de relatos como da obra de Alcântara
sobre determinados fatos, melhor a
Machado. Mas na medida em que esse autor
percepção sobre os fatos e essa memória
narra um tempo literário, ele também recria
individual se torna mais a memória dos outros
paisagens urbanas que emergem da memória
membros do grupo, ou uma “memória tomada
coletiva de cada uma das comunidades
de empréstimo, que não é minha”(Halbwachs,
desses bairros. Halbwachs tem uma
2006). Portanto, é possível que obras
explicação para isso. Segundo ele, a
consciência individual cria imagens e enquanto Patrimônio, até porque muitos dos
pensamentos que resultam de diversos espaços descritos na obra do literato já não
ambientes vivenciados, que se sucedem existem mais. Temos, portanto, a cidade
sobre uma ordem, e por assim dizer uma como parte da memória daqueles que ali
história individual de cada um que vivenciou viveram, mas também daqueles que
esses tempos e espaços (Halbwachs, 2006). puderam, através da narrativa, vivenciar a
imagem de uma cidade que já não existe.
Sendo assim, a memória coletiva sobrevive
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
por meio das imagens criadas das narrativas,
A memória coletiva contém memórias tanto de Alcântara Machado, como das
individuais onde ambas são limitadas no famílias que transformaram o espaço urbano
espaço e no tempo (Halbwachs, 2006). Nesse em lugar, ou seja, estabeleceram uma relação
artigo demonstramos que essas memórias se simbólica com o espaço urbano
apresentam como parte da constituição da reconhecendo-se como parte de um grupo
identidade urbana. O tempo e o espaço social. Vale lembrar que essas relações
vividos, seja na rua ou nos comércios desses simbólicas com o espaço urbano ainda
bairros em formação, também fazem parte persistem em bairros mais tradicionais da
dessa memória coletiva. Como a cidade faz cidade de São Paulo contemporânea. A
parte da narrativa, ela é por vezes, a síntese memória reconstrói na imaginação os
do espaço onde as memórias são espaços que foram fundamentais na nossa
constituídas. Não se trata aqui da cidade experiência urbana, durante toda nossa vida.
Capítulo 11
membros; por outro lado, a lógica da encontra suas raízes também na produção
semelhança gerada por sistemas de epistêmica.
representação compartilhada, como crenças
Fato é que, não há conhecimento fora do
e símbolos, aumenta a possibilidade de
processo de aprendizagem, que ocorre se
cooperação entre eles. (Torre e Rallet, 2005).
não no interior das relações sociais por meio
Portanto, a essência da proximidade de práticas relacionais, mediado por variadas
organizacional não é geográfica e pode instituições. Mas se todo conhecimento é
atravessar fronteiras. As ações dos agentes contexto, todo contexto é uma produção
coletivos vão muito além e fortes laços social dinâmica (Souza Santos, 2011); ou seja,
afetivos e de lealdade, assim como de diferentes tipos de relações sociais darão
posições éticas potenciais, podem ser lugar a diferentes epistemes, produzindo
desenvolvidos desde as dimensões locais à múltiplas proximidades institucionais e
transnacionais, seja no âmbito das relações organizacionais, muitas vezes em conflito
econômicas como dos movimentos sociais umas com as outras na produção de
(Torre e Rallet, 2005; Castells, 1999). Esta territorialidade. Conforme Boaventura de
proximidade organizacional define o espaço Souza Santos (2009) nos apresenta, a
de possibilidade das ações e estratégias dos construção de hierarquias de conhecimento, e
agentes. No entanto, fará a partir de um consequentemente das ações, se sustenta
conjunto de regras estabelecidas pelas por um pensamento abismal, que traduz a
instituições, principais responsáveis por gerar dominação econômica, política e cultural de
a lógica de pertencimento a um determinado alguns grupos sobre outros. O pensamento
espaço (Gilly e Lung, 2005). Assim, para abismal opera mediante a definição unilateral,
ativar a proximidade organizacional, é pela epistemologia dominante, de linhas que
necessário uma certa proximidade dividem as experiências e as ações de
institucional. Neste sentido, estes dois tipos agentes sociais entre os que são uteis e
de proximidades são diferentes, mas em inteligíveis, e os que são inúteis, até mesmo
níveis analíticos estão inter-relacionadas: o perigosos, sujeitos silenciados e
nível institucional consiste em regras subalternizados por práticas institucionais
necessárias para qualquer ação acontecer; o hegemônicas.
nível organizacional consiste nas formas de
Reiteradamente, são favorecidas as praticas
coordenação em que as interações e ações
que predominam o conhecimento científico,
ocorrem.
associadas a uma pretensa neutralidade. Esta
De acordo com Geoffrey Hogson “as exclusividade do conhecimento valido se
instituições são os tipos de estruturas que traduz em um vasto aparato institucional, no
mais importam na vida social: elas fazem as qual a produção acadêmica e teórica do
coisas da vida social” (2006, pg 02.). Estas planejamento urbano e regional atual se
são sistemas de regras, de ética e de moral encontra, seja nas universidades, nos centros
prevalecentes e normatizadores, socialmente de investigação e na prática de ordenamento
construídas por processos de aprendizagem territorial. A epistemologia dominante que se
interativa, ao longo do tempo. Este sistema de firmou na ciência moderna, a partir de uma
regras assume formas múltiplas, como da pretensão de universalidade, é o resultado de
linguagem, do dinheiro, da lei, da religião, de uma intervenção epistemológica possível
entidades públicas e dos diferentes tipos de graças a força com que a dominação
organizações sociais. A legitimidade das multifacética do capitalismo moderno se
instituições encontraria raízes na sua impôs sobre a multiplicidade cultural,
capacidade de criar expectativas estáveis silenciando determinadas práticas sociais e
dos comportamentos individuais e coletivos, ações coletivas, também, de territorialização
reduzindo a incerteza nas interações sociais, (Souza Santos, 2011). Esta intervenção tem
possibilitando que os grupos possam sido tão profunda que desacredita e, sempre
trabalhar de forma coerente e agir que necessário, suprime todas as formas de
coletivamente. Esta característica da experiências subversivas aos seus interesses,
proximidade institucional é contextual, ocultando que, tanto o conhecimento como as
precisada pela característica relacional do instituições, são parte de uma concepção
conhecimento, que oferece o quadro para a intersubjetiva da realidade, socialmente
condução das ações por meio de um pano de produzida, compartilhada por agentes em
fundo fenomenológico compartilhado; proximidade institucional e organizacional.
comumente chamado de cultura, que
A importância de assimilar a injustiça
considerada como um processo fundamental existem (Laclau e Mouffe, 1987); o que nos
para a construção dos espaços da ação posiciona criticamente quanto à discussão
política. Não obstante, de acordo com sobre a governabilidade do sistema de
Fabienne Leloup et al. (2005), governança governança, sem o questionamento da
territorial não é apenas um processo de produção conflitiva da escala de atuação pela
coordenação de agentes em um dado ação pública e da implementação do sistema
território, mas também um processo de em si.
construção contínua de territorialidade pela
Antes de uma coerência territorial
multiplicidade de agentes sociais, ao longo do
preconcebida, há praticas sociais e relações
tempo.
de poder social, espacializadas – e que são,
A mobilização e concretização das ações de inclusive, (re)produtoras de variadas formas
territorialização, a partir de um sistema de de dominação (Laclau e Mouffe, 1987). A
governança não é apenas um ato de problemática da governança trata-se mais de
cooperação, mas de negociação e, seguindo uma tomada de posição politica que se dirija
Damien Talbot (2006), só pode ser diretamente as questões das geometrias de
concretizada por meio da regulação dos poder, do que da aplicação de uma fórmula
conflitos. Em qualquer dado território, os fronteirada preconcebida sobre o espaço.
interesses e entendimentos de bem comum Aproveitando das colocações de Rosalyn
dos agentes divergem e tal processo de Deutsche sobre a arte pública (1996, apud
negociação pode resultar no fortalecimento Massey, 2009), o que estaria em jogo não é
da ação de alguns e exclusão de outros. propriamente o que é legítimo ou ilegítimo nos
Consideradas as situações de disputa de fundamentos da vida social e em suas
poder, habituais, às instâncias públicas de materializações espaciais, mas a própria
maior abrangência, até então, é destinado um legitimidade do debate nessa arena. Um outro
papel crucial no âmbito da governança, debate poderia partir do reconhecimento do
responsáveis por exercer uma função conflito, em que não há possibilidades de
reguladora das ações coletivas, a fim de definição de regras trasladáveis de um lugar
mediar as tensões e favorecer, em teoria, os ao outro (conformado pela lógica unilateral do
interesses da coletividade (Benko, 1996). Estado), mas que as negociações serão
Dado este papel regulador, as instâncias sempre improvisações singulares (Massey,
públicas – que seria o caso da governança 2009), exigindo aprendizagem contínua na
interfederativa – são comumente ação política.
sinonimizadas enquanto governança
E o desafio da negociação é significativo,
territorial. Talvez por isso, grande parte do
dado que a injustiça cognitiva é usada
debate nessa arena, tem focado mais nos
ativamente na produção da desigualdade,
aspectos de governabilidade do sistema e
com práticas de exclusão, repetidas
capacidade de governo na construção
exaustivamente até se estabelecerem
técnico política de governança, do que
institucionalmente. Portanto, é também o
propriamente na negociação dos conflitos das
confronto das forças diferenciais
ações coletivas produtoras de territorialidade.
(epistemológicas e de recursos) no processo
A questão proposta, neste ponto, não é uma de negociação que devem ser trazidos ao
negação ao estabelecimento de um optimum debate da política, fazendo-os visíveis para
territorial adequado à governabilidade que também sejam contestados (Laclau e
interfederativa, ou da importância da Mouffe, 1987); em vez de apagar os traços de
discussão quanto ao grau de isomorfia entre a saber-poder desiguais que permeiam, até
capacidade de governo e a aglomeração então, a governança governamental (ou
urbano-regional a qual suporia responder. corporativa pública), silenciados até mesmo
Não se trata de um simples fetichismo por formas de planejamento participativo,
espacial: de fechamento, a partir do Estado, e dissimulados. A questão sociopolítica, talvez,
de abertura, a partir dos agentes sociais em diga menos respeito ao grau de
redes de proximidade relativa. O Estado, e as abertura/fechamento do sistema espacial da
estruturas institucionais que o conformam, governança (ou ao seu grau de isomorfia) do
podem também ser um meio importante para que aos termos em que tais aberturas e
efetuar o avanço social e político. Contudo, a fechamentos são produzidos por meio das
questão é que regras, no sentido de uma relações sociais: as sempre móveis
política territorial totalizante de unidades geometrias de poder (Massey, 2009), em
abstratas em categorias topográficas, não redes de proximidade geográfica e múltiplas
(Santiago. Impresa), v. 38, p. 5-31, 2012. [25] Sassen, Saskia. As cidades na economia
mundial. São Paulo: Studio Nobel, 1998.
[21] Randolph, Rainer. A origem estrutural da
subversão em sociedades capitalistas [26] Schiavo, Ester; Vera, Paula; Gelfuso,
contemporâneas, suas práticas baseadas na Alejandro. El derecho a la ciudad desde una
vivência cotidiana e um novo paradigma de um perspectiva latinoamericana. Em: I Congreso
contraplanejamento. Em: Teorias e práticas Latinoamericano de Teoría Social Lugar: Buenos
urbanas: condições para a sociedade urbana, p. Aires, 2015.
103-128/ COSTA, G.M; MOURA COSTA, H.S.;
[27] Souza Santos, Boaventura de.
MONTE-MOR, R.L.M (org). Belo Horizonte: C/Arte,
Epistemologias del Sur. Em: Utopía y Praxis
2015.
Latinoamericana, Año 16, Nº 54, p. 17-39, 2011.
[22] Rolnik, Raquel.; Klink, Jeroen.
[28] Sousa Santos, Boaventura de. Mas allá del
Crescimento econômico e desenvolvimento
pensamiento abismal: de las líneas globales a una
urbano. Por que nossas cidades continuam tão
ecología de saberes. Em: Pluralismo
precárias? Novos estudos CEBRAP, v. 89, p. 89-
Epistemológico. La Paz: MueladelDiablo, 2009.
110, 2011.
[29] Smith, Neil. Contornos de uma política
[23] Rooney, David.; Hearn, Gregory.;
espacializada. Veículos dos sem-teto e produção
Mandeville, Thomas.; Joseph, Richard. Public
de escala geográfica. Em: O espaco da diferença/
Policy in Knowledge-Based Economies:
Arantes, A. (org). Campinas: Papirus. 2000.
Foundations and Frameworks. Cheltenham UK:
Edward Elgar, 2003. [30] Talbot, Damien. La gouvernance locale,
une forme de développement local et durable? Une
[24] Rooney, David e Schneider, Ursula. The
illustration par les pays. Développement durable et
material, mental, historical and social character of
territoires, Dossier 7: Proximité et environnement,
knowledge. Em: Handbook on the Knowledge
2006.
Economy p. 19-36/ Rooney, D.; Hearn, G.; Ninan,
A. (org). UK: Edward Elgar Publishing Limited, [31] Torre, André. e Rallet, Alain. Proximity and
2005. Localization. Regional Studies, Vol. 39 (1) p. 47 –
59, 2005.exto das Referências
Capítulo 12
Resumo: Este artigo trata do estudo do Parque José Affonso Junqueira em Poços
de Caldas MG, no que se refere as suas apropriações atuais sob o olhar da
memória, da psicologia e da fenomenologia. Num primeiro momento, sustentando a
poética de um jardim e o papel que ele oferece à população poçoscaldense,
procurou-se teorizar sobre o conceito de humanização da cidade relacionada ao
aspecto da subjetivação dos seus habitantes. Depois parte-se para uma análise
dos aspectos de referência que constituem as memórias e o sentido de lugar que
revelam seus vestígios de significação. Finalmente conclui-se com uma
consideração sobre as manifestações e recentes eventos realizados neste local
dentro de uma perspectiva da diferença, da participação e da potencialização do
espaço urbano, buscando- se desenhar as experiências e as novas aspirações da
sociedade contemporânea.
Figura 1: Análise dos lugares. A primeira planta do local de Poços é datada de 5 de março de 1826.
In Ottoni, Homero Benedito. Poços de Caldas, 1960.
Figura 3: Proposta do arquiteto Piffer, pela Cia Melhoramentos para Poços de Caldas, em 1912. A
estação ficaria quase no centro do mapa, um pouco abaixo, em frente a um jardim que existe do
outro lado do Hotel das Termas. A linha viria do oeste e faria uma curva para o norte na entrada da
estação.
pala visita do Presidente Antônio Carlos a confluência dos ribeirões a leste estava a
Ribeiro de Andrada neste ano. Avenida Francisco Sales, margeando o
Ribeirão da Serra, a sudoeste o Ribeirão das
O Plano Geral de Melhoramentos
Caldas e a oeste seguindo o troco das águas
compreendia as seguintes obras: reforma dos
a Avenida João Pinheiro.
serviços de energia elétrica e iluminação
pública, reforma geral da rede de esgotos e O desenho urbano da nova paisagem deveria
captação de mananciais, calçamento da acompanhar os Ribeirões e a topografia,
cidade, construção de parques e jardins, cabendo ao “urbanista” a adoção dos
receptação das fontes hidrominerais e traçados a serem adotados.
construção de um novo hotel, de um cassino
Nesse sentido, o conceito de aformoseamento
e um novo balneário. A expectativa sobre a
não se limitava a obras de embelezamento,
remodelação da estância possibilitou a
mas também a uma estética que estabelecia
construção da mais importante estação de
diretrizes técnicas para a expansão urbana.
cura da América do Sul (LEME, 1999).
Para a construção dessa cidade bela e
Carlos Pinheiro Chagas realizou uma viagem salubre, criando uma imagem urbana
à Europa tendo como objetivo conhecer moderna, Saturnino de Brito teve vários
algumas estâncias termais em Portugal, na problemas a enfrentar, desde a existência de
Alemanha, Tchecoslováquia, França e Itália. quintais junto às águas nos quais se lavavam
Nessa viagem foram contratados os serviços as roupas tantos dos sãos quanto dos
do médico hidrologista Paul Schoeber de doentes, até a execução de obras contra
Widband e do engenheiro Engen Maurer de enchentes e melhoramentos nos balneários.
Baden-Baden. Para o saneamento da
Saturnino de Brito indicava para a
estância foram contratados o Engenheiro
preservação dos mananciais da cidade, a
Sanitarista Francisco Saturnino de Brito e o
desapropriação das bacias hidrográficas.
paisagismo e arborização dos parques,
Localizou os principais mananciais e sua
praças, ruas e avenidas à empresa
captação, analisou os sistemas de esgoto e
Dierberger e Cia. Para projetos de edificações
propôs a correção das irregularidades. Na
foi escolhido o arquiteto Eduardo Vasconcelos
análise das enchentes, foi considerada a
Pederneiras.
grande inundação de 1926, que deixou a área
central sob um metro de água. Com a
conclusão dos estudos e dos projetos, uma
3. SANITARISMO MODIFICANDO A
série de obras de saneamento de grandes
PAISAGEM: SATURNINO DE BRITO
proporções foi realizada, e compreendiam
Em 1927, Saturnino de Brito e seu filho também a construção das redes de água e
Saturnino de Brito Filho, estudaram a cidade esgotos, regularização dos cursos d´água e a
de Poços de Caldas, resultando num projeto e canalização dos ribeirões, saneamento e
obras de saneamento, abastecimento de redesenho da cidade contribuindo para a
água e sistema de drenagem das águas construção de uma nova paisagem urbana
pluviais. (Pozzer, 2001).
Ele criticava a adoção da malha reticulada
para as vias públicas urbanas, recomendando
4. A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM
esta tipologia às áreas planas e não a
ARQUITETÔNICA: EDUARDO
encostas. Propunha uma adequação à
VASCONCELOS PEDERNEIRAS
topografia, de modo a facilitar as obras de
saneamento. Também defendia “tirar partido Coube a Eduardo Vasconcelos Pederneiras a
do pitoresco natural, aformoseando a cidade realização da reforma do Palace Hotel, os
tornando-a mais atraente aos milhares de edifícios do Cassino e a reforma da Praça
visitantes que vêem anualmente procurar a Pedro Sanches. Em 1927 são iniciadas as
cura dos seus males pelas águas medicinais obras de demolição do Hotel da Empresa, do
e pelo clima, deixando em troca valiosas cassino e do antigo balneário. Ele dizia do
quantias e para as rendas do Município e do conjunto de obras a serem realizadas:
Estado” (BRITO, 1944).
O Palace Hotel será transformado em sua
Os ribeirões que cortam a cidade foram fachada e no seu interior. Do styloactual,
considerados eixos estruturadores da futura próprio para um quartel, passará a ter o
expansão urbana e onde está o núcleo agradável aspecto dos hotéis da Suissa, com
urbano, numa pequena planície onde ocorria bonitas sacadas em balanço, jardineiras
floridas, largos alpendres sustentados por contexto urbano local. O arquiteto eclético
arcadas graciosas, enfim terá o stylo estabelecia referências novas naquela
apropriado a um hotel de uma cidade de paisagem em edificações como o hotel, o
águas situada na montanha. cassino e a thermas, caracterizada por
telhados, pérgolas e sacadas que
Sobre o projeto do novo parque Pederneiras
apresentavam certa familiaridade morfológica
comentava no jornal Vida Social de 07 de
que contrastava com a implantação em
julho de 1927:
ângulo e o rigor da linguagem clássica
...ocupara grande área de terreno empregada na composição da casa de
actualmente abandonada, em frente do hotel banhos.
de forma triangular, tendo dois dos seus lados
limitados por um rio, sendo o terceiro lado
paralelo à fachada do hotel. É uma área de 5. O DESENHO DOS JARDINS: DIERBERGER
cerca de quatrocentos metros quadrados, E CIA
admiravelmente situada, e cuja situação será
Um elemento fundamental de importância
tirado o maior partido architectonico,
para emoldurar dos projetos do Palace
Tratando-se de um parque, em uma cidade
Hotel, do Cassino e da Thermas foi a
de águas, em que o aquático precisa passear
proposição eclética dos jardins elaborados
ou descansar à sombra das árvores, escolhi
por João e Reynaldo Dierberger. Tinham
como typo, o dos parques ingleses, com
como características básicas:
muito bosque e portanto, bastante sombra.
...o tratamento do espaço livre dentro de uma
O projeto de reforma do Palace Hotel foi
visão romântica e idílica, que procura recriar
pensado conjuntamente com a proposta do
nos espaços a imagem de paraísos perdidos,
novo parque urbano, com grande eixo leste-
de campos bucólicos ou de jardins de
oeste construído como eixo estruturador que
palácios reais, incorporando no seu ideário
se prolonga da Rua São Paulo, demarcando o
uma concepção pitoresca de mundo típica da
centro da praça Pedro Sanches, atravessa o
sociedade europeia do século XIX (MACEDO,
hall de entrada do Palace Hotel, prolonga-se
1999).
pelo parque, por uma fonte luminosa
chegando ao pavilhão do chá. Em Poços de Caldas, Dieberger segue as
sugestões de projeto de Eduardo
Os projetos do Cassino e o das Thermas vão
Paderneiras, com jardins que estabeleciam
estabelecer uma relação tipológica com as
um contraste entre as linguagens clássicas e
formas propostas para a reforma do Palace
românticas dos edifícios existentes. Os jardins
Hotel, formando um conjunto cênico
que envolviam as novas Thermas
emoldurado pela cidade e pelas montanhas
apresentavam uma organização mais livre
(a Serra de São Domingos).
caracterizada pela irregularidade das formas
Criava-se, assim, uma paisagem eclética que propostas (Pozzer, 2001).
se destacava pela sua singularidade, no
Figura 5: Parque José Affonso Junqueira, Praça Pedro Sanches e praça Getúlio Vargas.
Fonte: http://www.memoriadepocos.com.br/2014/02/os-jardins-de-dierberger.html
A cidade de Poços de Caldas teve, por sua importante para a estruturação subjetiva da
vez, sua economia abalada, passando um memória dos habitantes de Poços de Caldas.
grande período de recessão. O município vai O simbolismo decorrente deste espaço
dedicar-se a partir da década de 50, às vinculado à utilização das águas termais
atividades extrativas de minérios e ao atraía no passado uma grande quantidade de
incremento do processo de industrialização visitantes cujo tratamento com banhos vinha
com a chegada de multinacionais ao acompanhado também pelo cuidado do
município. Inicia-se a construção de bairros ambiente: o repouso, o passeio no jardim
de interesse social e conjuntos habitacionais sombreado, o controle das emoções
na periferia da cidade. Ainda na década de (Marrichi, 2015) favoreciam, do ponto de vista
60 o perfil do turismo acaba se consagrando social, uma nova postura e convivência
com a cidade desenvolvendo o circuito de afastada do cotidiano doméstico. Neste
“lua de mel” tendo o Parque José Affonso tempo em suspenso, representa uma janela
Junqueira com seu jardim como cenário muito na percepção do ser, de onde possível se ver
propício. Novas alternativas para o turismo a busca ontológica que o jardim evocava.
são implementadas culminando na década de
Proshansky (1978), na década de 60,
70 com o seu perfil voltado à classe popular.
inaugurou nos Estados Unidos, uma escola de
Com vistas à preservação do patrimônio Psicologia Ambiental na linha dos movimentos
histórico da cidade, foi decretado o ambientalistas e além de preocupação com o
tombamento do complexo Hidrotermal de meio ambiente natural, dedica-se também ao
Poços de Caldas em 1985 pelo DPHTAM estudo do meio ambiente urbano. Para ele o
Diretoria do Patrimônio Histórico, Turístico e processo de apropriação se relaciona com a
Artístico Municipal. Em 1992, com a identidade de lugar (placeidentity). Assim o
realização do Plano Diretor da cidade, para lugar tem uma significação para o sujeito que
área de turismo foram recomendadas o incorpora à própria identidade, ou seja, a
diretrizes de revitalização da área central, identidade do “eu”.
com critérios a serem adotados no sentido de
Para cada ‘rol’ de identidade, existem
restabelecer-se a identidade do conjunto. Em
dimensões e características do entorno físico.
1993 a prefeitura municipal lança o Concurso
Nesse sentido, a identidade de lugar (seu
Nacional para Revitalização da área Central
significado) é um componente específico do
“Poços Centro Vivo” que tinha como objetivos
próprio ‘eu’ do sujeito, forjado por meio de um
a reestruturação da paisagem urbana, a
complexo processo de ideias conscientes e
ordenação do tráfego de veículos, a
inconscientes, sentimentos, valores, objetivos,
ordenação das atividades urbanas, a
preferências, habilidades e tendências
dinamização dos usos e atividades urbanas e
(Gonçalves, 2007, p. 27)
a proposição de formas de gestão urbana.
Também, procurou-se reestabelecer o O processo de apropriação atua em dois
desenho originário para o jardim, que durante sentidos: um em direção à conquista do
todos estes anos foi se tropicalizando pelo espaço, e outro para si. Isto implica o sujeito
adensamento de espécies vegetais. A adaptar um espaço as suas próprias
proposta de projeto procurou: o necessidades, dar-lhe características
remanejamento das espécies vegetais; a próprias. A relação pessoa/ sociedade/ meio
recuperação do piso, a implantação de novo ambiente tem sempre uma dimensão da
sistema de iluminação que possibilitasse vivência e simbolismo. Essa dimensão tem
maior segurança e conforto aos usuários e aparecido muito nas conceituações de
criação de efeitos cênicos para valorizar o qualidade de vida, bem estar social e
patrimônio arquitetônico e paisagístico e a comunidade, e também naquilo que se refere
instalação de novo sistema de mobiliário à percepção e valorização da paisagem. Para
urbano. a Psicologia, paisagem refere-se ao mundo
intrapsíquico enquanto que para a arquitetura
consiste na organização de imagens no
6. A PAISAGEM INTERIOR: ALGUNS mundo externo. Paisagem está diretamente
ELEMENTOS DE PSICOLOGIA AMBIENTAL ligado ao conceito de habitat e de espaço,
levando em conta que o gerador dessa
O interesse em relacionar a história de um
paisagem são as comunidades inseridas
jardim e os processos de apropriação e
nesses habitats e que ocupam aquele
identificação do lugar, parece configurar um
determinado espaço (MACEDO, 1999).
campo de estudo interdisciplinar muito
Figura 8 e 9: O coreto na Praça Pedro Sanches e fonte luminosa no Parque José Affonso Junqueira,
2008.
Figura 10 e 11: Palace Hotel e Parque José Affonso Junqueira no espetáculo Sinfonia das Águas,
2016
Fonte:https://www.google.com.br/search?q=sinfonia+das+%C3%A1guas&biw=1366&bih=673&source=lnms&t
bm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiIqciHndfPAhWIEpAKHd_2CgEQ_AUIBygC#imgrc=wQAXCnImQ0vmZM%3A .
Acessado em 10/11/2016.
Não há como negar a incorporação de novos Gonçalves, 2007) contribui para os processos
paradigmas à análise das condições de vida simultâneos do conhecimento do mundo e a
e do desenvolvimento no momento atual. A auto-subjetivação humana pela razão
intersubjetividade como o mais novo comunicativa.
paradigma da Ciência, (Habermas apud
Figura 12: A Chalana dos Artistas, Carnaval de 2016. Acervo: Esther Cervini. Figura 13:
Manifestações em 2015.
Fonte:https://www.facebook.com/tramaacaourbana/photos/pb.307514239415313.-
2207520000.1476344338./673699652796768/?type=3&theater. Acessado em 10/11/2016.
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2001.
maturação.Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
Capítulo 13
estrutura fixa de organização, ainda que essa comportamentos e significados atípicos para
forma ininterrupta de relação aberta, de desenvolver uma espacialidade distinta
singularidades em movimento – que daquelas previstas pela lei e pelas práticas
conformam a multidão (Negri, 2005), tradicionais (LYNDON & GARCIA, 2015). Os
componham estratégias para minar propostas marcos regulatórios que dispõem sobre o uso
autoritárias, através da ação comum diante da e a ocupação do solo – e do espaço público,
crise. Para Negri (2014), esse estreitamento muitas vezes acabam por atravancar o
entre o ser social e o poder político ocorre por surgimento de iniciativas inovadoras para a
conta das condições dadas pela própria produção e apropriação do espaço
natureza da crise contemporânea, na construído. Isso porque entendem o espaço a
passagem à pós-modernidade política, sem partir da perspectiva única do mundo
que a destruição dessa separação resulte em moderno, entrincheirado em fortes
uma unidade. Diferem, portanto, das ações convicções, e não contemplam a dialética
dos anos 60 e 70, quando os grupos se provocada por ações que percebem o
organizavam em cooperativas de produção espaço a partir das multiplicidades de
ou sindicatos, guiados estreitamente por camadas possíveis. Muitas vezes, as práticas
motes encerrados e bem delineados. de governo fixadas em processos
burocráticos atávicos favorecem o ciclo de
“A multidão se organiza em torno dos eventos
abandono e cerceamento de atividades dos
do momento, nos quais uma linguagem
espaços livres públicos, colaborando para a
comum se expressa. Uma linguagem comum
manutenção do medo e da violência urbana.
que nasce da indignação e do protesto, do
Segundo Jacques (2011), essas ações no
cansaço de sempre se encontrar em
espaço público funcionam como
situações que não têm saída. É exatamente
microrresistências aos projetos urbanos
como antes era com a classe operária. A
homogeneizadores, realizados no mundo todo
multidão se organiza à base de paixões que
contemporaneamente; “tem o objetivo de
caminham junto com a resistência e com
ocupar, apropriar-se do espaço público para
tentativas de construções de uma perspectiva
construir e propor outras experiências
de uma nova via de solução dos problemas.
sensíveis e, assim, perturbar essa imagem
Não há muita diferença do ponto de vista
tranquilizadora e pacifica do espaço público
entre a multidão e todos os outros movimentos
que o espetáculo do consenso tenta forjar”
que nascem da base de necessidades ou
(JACQUES, 2011, p. 172).
anseios fundamentais de se viver e produzir.
Mas há um outro elemento que é a Justamente por conta desse viés do desafio
singularidade. Quando a multidão se move, ao modelo cultural e espacial vigente, os
nunca é simplesmente uma massa, é uma coletivos se apropriam da cultura hacker, ou
riqueza plural de elementos de do hacking, entendido como a criação de um
questionamentos de vida. É claro que aqui atalho inteligente que resulta em um novo
nasce um problema de organização. Há um recurso para uma ferramenta. O termo, que se
grande problema de unidade, de articulação solidificou na década de 60 para definir
dos movimentos, em meio a muitas especialistas de computadores envolvidos
singularidades. Mas esta é também a riqueza, num tipo de subcultura de programação, vem
a beleza do processo que vivemos.” (NEGRI, ao encontro das intervenções ativistas
2014) contemporâneas no espaço público de
caráter inventivo, rápido e alternativo que
As intervenções espontâneas ou arquiteturas
visam estimular o convívio cívico. Assim, o
efêmeras, isto é, as microintervenções
modo de resistência dos hackers age sobre
urbanas propositivas promovidas por esses
os mecanismos de gerenciamento
grupos representam demandas e urgências,
protocolares e reforça a necessidade da
tendo como mote o cidadão como agente
construção de novos saberes por indivíduos
essencial no processo de produção e de
autônomos e colaborativos (SILVEIRA, 2010).
apropriação da cidade (ROSA, 2011). É o
chamado urbanismo tático, de guerrilha ou Os coletivos atuam dentro dessa perspectiva,
insurgente, que sugere outras perspectivas criando a partir da recombinação e da
para a cidade e seus problemas cotidianos reconfiguração dos códigos vigentes para
contemporâneos. O entendimento da cidade produzir movimento, escapando às
como plataforma aberta a ser constantemente territorialidades. Nesse sentido, podem ser
resignificada a partir da perspectiva do associados à ideia de resíduo desenvolvida
interesse público, guia essa mistura de ações, por Lefebvre, como aquele elemento que
escapa aos sistemas e que contém o poder que a rua representa o espaço de todos, em
criador inesgotável (LEFEBVRE, 1967). Em geral essas ações não pedem autorização ou
muitos aspectos, suas táticas são respostas permissão à prefeitura. Essas reivindicações,
para o lento processo de construção da redesign ou reprogramação do espaço se
cidade convencional, pois trabalham a partir dão em pequena escala e buscam respostas
da urgência do real. Atuam por meio de uma flexíveis e reversíveis ou ajustáveis a
adaptação pontual de forma invasiva ou não condições inevitáveis de mudança, tendo em
do espaço público e, partindo do princípio de vista que os lugares não são estáticos.
Figura 1 – Parque de Diversões Minhocão, por Basurama. Em 2013, o coletivo construiu um parquet
no meio da área central para ser usado livremente, e ser replicado em qualquer lugar. l
Figura 2 – Festival Baixo Centro. A foto mostra a ocupação das ruas durante o festival, que
promoveu uma série de atividades no Minhocão usando intervenções artísticas como pintar as ruas
e cobri-las com grama artificial.
Figura 3 – Zonas leste e norte de São Paulo. Esta pesquisa enfoca as áreas fora do eixo
governamental de investimento em cultura. Este mapa fornece um panorama dos grupos
encontrados na área. Elaboração do grupo de pesquisa, 2016.
Os coletivos atuantes na periferia são pouco Prefeitura do Municipal de São Paulo, como
conhecidos, sobretudo porque esse tipo e bibliotecas, centros culturais, museus,
ação é mais difundida em bairros como Vila cinemas e teatros. Observa-se que esses
Madalena, Pinheiros, ou até mesmo no Centro equipamentos estão concentrados no centro e
da cidade. Essas ações possuem o caráter de no vetor sudoeste, criando uma grande
denúncia urbana, como tentativa de defasagem nos extremos da cidade. Embora
apropriação e melhoria desses espaços. Por a relação existente entre tecnologia e território
outro lado, a lógica urbana, econômica e amplie e ressignifique o entendimento sobre a
social nas franjas da cidade é diferente e cidade, diluindo os limites e divisas
singular, tendo inclusive movimentos artísticos consolidados nas últimas décadas (LEVY,
pertencentes ao território. Uma das 2000), a diminuta presença do Estado e de
características dos coletivos atuantes nessa equipamentos públicos culturais nas franjas
áreas é a de prover para a comunidade urbanas ainda mostra-se substancial e
espaços que ofertem e divulguem atividades evidente na tentativa emergente dos coletivos
culturais, de educação, esportes e lazer. O em mitigar o déficit cultural dessas áreas,
mapa a seguir evidencia esta constatação, tema recorrente nas pautas das ações e
mostrando os equipamentos culturais debates desses grupos que agem fora do
existentes em 2016, divulgados pela eixo mais valorizado da cidade.
Figura 5 – Levantamento inicial de Coletivos das Zonas Norte e Leste de São Paulo.
Capítulo 14
A partir de então, uma nova agenda se fez para reclamar futuramente a regularização
presente dinamizando a relação entre os urbanística e fundiária da Comunidade.
representantes da comunidade, discentes, Destaca-se que o teor do parecer não se
docentes e parceiros dos projetos. Além do limita a considerações arquitetônicas e
escopo inicial, incorporam-se neste novo construtivas, como o adensamento, a aeração
cenário atividades de compreensão do e iluminação, a reciprocidade estrutural;
território e de apreensão dos processos e aborda também com a mesma intensidade,
linguagem utilizados no trabalho. A intenção problemas urbanos e ambientais, como o
principal foi a de, durante todo o processo, déficit habitacional, a função social da cidade,
horizontalizar conhecimentos – tanto os instrumentos urbanísticos, infraestrutura,
técnicos da assessoria como os equipamento e serviços urbanos.
conhecimentos pregressos dos não técnicos –
no intuito tornar o mais equânime possível à
capacidade de participação de cada um, 2.2 EM BUSCA DA REGULARIZAÇÃO
dentro de suas competências. Foi também FUNDIÁRIA
indispensável um trabalho de formação e de
O entendimento da importância dos
capacitação interdisciplinar da equipe
processos de titulação nos assentamentos
técnica. Leituras coletivas por discentes e
precários pelo seu efeito de formalização da
docentes, participação em oficinas e
segurança de permanência em um contexto
seminários internos e externos, com a
vulnerável levou os parceiros governamentais
participação de outros parceiros dos projetos
dos projetos de extensão, notadamente a
e incorporando as questões relativas ao
Defensoria Pública do Estado do Rio de
direito à cidade e à moradia aos problemas
Janeiro, a buscar uma regularização fundiária
técnicos arquitetônicos e urbanísticos, foram
para Indiana. Como bem observa Edésio
atividades indispensáveis para responder de
Fernandes (2002) ao tratar da legislação
forma coerente às demandas de assessoria
fundiária:
técnica nos trâmites jurídicos. O apoio
oferecido pela Universidade foi por duas “Títulos são importantes, sobretudo, quando
vezes – em audiências públicas distintas há conflitos, sejam eles de propriedade,
ocorridas durante a vigência dos projetos de domésticos, familiares, de direito de
extensão – considerado de grande valia. vizinhança. E também para reconhecer
direitos sociopolíticos e para garantir que os
Na primeira audiência, um aspecto
ocupantes possam permanecer nas áreas
inesperado da atuação do meio acadêmico foi
sem risco de expulsão pelo mercado
o fortalecimento oferecido à parte mais
imobiliário, por mudanças políticas que
fragilizada, ou seja, à própria defensora e aos
quebrem o pacto sociopolítico gerador da
moradores, pela simples aliança institucional.
percepção de segurança da posse, ou pela
A Universidade foi convidada pela Defensoria
pressão do crime organizado, como tem
a ter assento na sala da sessão durante o
acontecido em diversas favelas e loteamentos
julgamento. O posterior desinteresse na
irregulares brasileiros.” (FERNANDES, 2002 p.
desocupação da Indiana provocado na
23)
prefeitura, revelado até mesmo no
descumprimento do prazo e desleixo do A tentativa poderia também ao longo do
material apresentado como plano de tempo buscar reverter o padrão excludente
demolição das residências, exigência da juíza de crescimento urbano que se dá hoje na
nessa audiência, pode de certa forma ser Tijuca, com a presença de inúmeras favelas
atribuído à força obtida. nas encostas que fazem fronteira em ambos
os lados da parte plana do bairro,
Na segunda audiência, o reforço da
promovendo tanto quanto possível uma
Universidade se voltou para elaboração de
integração socioespacial de Indiana no tecido
um parecer técnico que se tornou para a
urbano contíguo.
Defensoria a peça principal de argumentação
em prol do planejamento e projeto urbanístico Apesar do reconhecimento das dificuldades
antecedendo a demolição de casas na implicadas no processo - até hoje são muito
Indiana pelo executivo municipal. Também poucos os resultados exitosos de
passou a ser utilizado como um material regularização fundiária no Estado do Rio de
informativo básico do processo jurídico na Janeiro (COMPANS, 2003) - logo no início da
esfera interna da Defensoria. Atualmente, é atuação conjunta da Universidade com os
ainda considerado um insumo de relevância parceiros dos projetos - Defensoria Pública do
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Tradução Rubens Eduardo Frias. São Pauo: Federal Fluminense/ EDUFF; São Paulo: Projeto
Centauro, 2001. Editores, 1988.
[10] Santos, Carlos Nelson F. dos. A cidade
Capítulo 15
Frederico Papali
Valéria Zanetti
Paula Vilhena Carnevale Vianna
o graffiti - pintar ou desenhar (com spray ou ruas do bairro do Campo dos Alemães, até
tinta) muros, painéis, túneis etc., com então, único bairro em que a prática se
logotipos ou desenhos relacionados com o concentrava.
movimento hip hop (p. 19).
A reflexão para o entendimento dessas
As manifestações artísticas urbanas como o manifestações baseia-se na análise de
graffiti continuam, como eram nos seus Pallamin (2000, p. 57) que considera as
primórdios, ligadas a formas de contestação práticas artísticas como apresentação e
impressa nos muros das cidades. Estes representação dos imaginários sociais. Elas
desenhos servem à veiculação de ideologias, evocam e produzem memória e podem,
ao estabelecimento de identidades sociais e à potencialmente, ser um caminho contrário ao
inversão de relações de poder. Apesar de aniquilamento de referências individuais e
suas origens comuns, o graffiti se difere da coletivas, que tira o sentido, levando ao
pichação, esta última entendida como esquecimento produzido por um presente
intervenções na forma de assinaturas, escritas produtivista. Dando sentido e qualificando os
monocromáticas em tinta spray, enquanto o espaços públicos, a arte urbana pode ser
graffiti está diretamente relacionado às artes também um instrumento de memória política.
plásticas, à pintura e à gravura. A primeira
Campos (2007) afirma que a condição social
intervenção privilegia a palavra e a letra; a
dos atores do graffiti urbano é relevante para
segunda, relaciona-se com o desenho, com a
a problematização dos processos de
representação plástica da imagem.
construção de identidade, de sua
A pintura urbana, independente de seus fragmentação e de sua criatividade na
rótulos, pode ser entendida como forma de confecção desses modelos de cultura à
reflexões sobre o mundo ou, simplesmente, margem dos padrões hegemônicos. Medeiros
ato de exprimir, por meio da arte, o prazer e (2008, p. 109) diz que é o uso do território que
satisfação de executar traços e preenchê-los faz dele objeto de análise social e que “[...]
com cores e personalidade. Entende-se que seu entendimento é, pois, fundamental para
estas manifestações são expressões culturais, afastar o risco de alienação, o risco da perda
pois são moldadas pelo sujeito como agente do sentido da existência individual e coletiva,
que se impõe exteriorizando-se no espaço. A o risco de renúncia ao futuro” (SANTOS, 1998,
questão é de que forma essa expressão se p.15).
transforma em linguagem de poder.
Neste bairro periférico que concentra 55.152
Essas intervenções no espaço, sejam elas habitantes (pelo censo de 2010, conforme o
agradáveis ou não aos olhos de quem as vê, Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil –
são produtos da cultura contemporânea, 2013), cuja renda e escolaridade médias são
resultado de um processo histórico que inferiores à média municipal e que se
promoveu desencantos em suas expectativas apresenta no imaginário da cidade como um
de efetivação das políticas promotoras de campo de pobreza e violência, seria o graffiti
justiça social. Imersos nesse contexto, uma possibilidade de construção e afirmação
permeado de exclusão, muitos jovens viram, de identidades, apropriação e ressignificação
na cultura hip hop a resposta para alguns de do território? Que significado e sentido têm
seus sonhos, manifestados como forma de essa expressão para os artistas e que relação
arte e de atitude (BORGES, 2016). ela estabelece com a comunidade?
Na periferia da cidade metropolitana de São O método utilizado neste trabalho foi a análise
José dos Campos, SP, três eventos, de narrativas, tanto oral, constituída por
promovidos por jovens grafiteiros, nos anos depoimento de Vespa, um dos grafiteiros do
de 2007, 2010 e 2013, coloriram os muros do bairro e o organizador dos Mutirões, como
bairro estigmatizado pela exclusão e também imagética, tendo como fonte o
violência. O que os teria motivado, quais suas recurso do Google Maps, que registra os
pretensões e produtos? Tentando responder a trabalhos produzidos nos três Mutirões de
essa pergunta, o estudo teve como fonte os Graffiti, realizados neste bairro da cidade de
produtos dos mutirões de graffiti. Os dois São José dos Campos /SP em 2007, 2010 e
primeiros eventos foram realizados quando a 2013.
prática era proibida, perseguida e reprimida.
Mesmo criminalizado, o mutirão aconteceu
durante três dias, regado a música, dança,
encontros e desenhos nos muros das casas e
2. O CAMPO DOS ALEMÃES - PRIMEIRA garantido, que não tem polícia por perto. É
APROXIMAÇÃO E MÉTODO DE PESQUISA por isso que o drive thru está garantido. Que
não tem polícia por perto. É por isso que o
O bairro do Campo dos Alemães, situado na
drive thru da droga está movimentado. Veja o
zona sul da cidade de São José dos Campos,
que vai acontecer... O traficante grita como se
recentemente foi tema de notícias de uma
estivesse numa feira. Ele pega o dinheiro, tira
reportagem televisiva, que apresentou a
os pacotes da sacola: 1, 2,3,4,5 compradores
movimentação de carros em uma das ruas do
levam a droga em 40 segundos. Isso já virou
bairro, espaço utilizado pelo tráfico de drogas
rotina. Os traficantes agem ao lado dos
(NOTICIAS.R7 PLAY, 2016).
moradores do bairro que observam tudo,
O âncora do jornal apresenta a cidade como calados. A droga é vendida até na frente de
uma das mais ricas do Estado de São Paulo e crianças (...). Existe até um pequeno
como os “bandidos”, muitos deles menores congestionamento (...). É impressionante o
de idade, dominam o bairro com a venda de que acontece aqui no campo dos Alemães
drogas; comércio que acontece em plena luz em São José dos Campos. A situação é tão
do dia, no meio da rua. Indignado, o âncora evidente que até mesmo aplicativos que
do jornal ressalta: “tem até fila de desenvolveram mapas e rotas de ruas no
compradores no chamado drive thru do tráfico mundo todo, flagraram o que parece um
(...)” (Idem). O repórter, sobrevoando o bairro, rapaz vendendo droga aqui. Foi em 2011.
dá notícias da movimentação de carros aos Mas a situação é a mesma de hoje.
telespectadores:
Mas, de repente, uma viatura da polícia militar
Num bairro dominado pelos bandidos, muitos passa pelo bairro. Do alto, resolvemos
deles menor de idade, a venda de drogas acompanhar. Será que esses policiais vão
acontece durante o dia, no meio da rua. O fazer algum tipo de revista? Será que esses
cruzamento está parado. É sempre assim. Na policiais vão encontrar alguma atividade
esquina, o carro não avança enquanto esse suspeita?
grupo (dos traficantes) não liberar a
O carro passa reto bem em frente ao ponto de
passagem (...). Mas esses jovens não
vendas de drogas. Por pouco tempo, o local
entregam balas e doces. O que esses
fica vazio (...) Os traficantes aqui parecem ter
adolescentes tiram das sacolas é droga. As
uma certeza: Esse bairro de São José dos
cenas foram registradas em São José dos
Campo pertence a eles (Idem; grifo dos
Campos a 90 Km de São Paulo. É do bairro
autores).
Campo dos Alemães que funciona um ponto
do tráfico de drogas. É um bairro Este artigo investiga as questões de pesquisa
aparentemente tranquilo, com ruas e avenidas por meio de uma pesquisa exploratória tendo
largas, mas o que se vê daqui (do como fundamentação metodológica a análise
helicóptero), é assustador. É o lugar onde a lei de narrativas sobre três mutirões de graffiti
não existe. Existe apenas a lei do tráfico. realizados no Bairro Campo dos Alemães nos
anos de 2007, 2010 e 2013. As fontes
No sobrevoo, fragrante da impunidade. Os
utilizadas foram: material impresso (panfletos
jovens, a serviço do crime organizado, estão
de divulgação dos eventos e matérias de
espalhados pela avenida principal. Logo, um
jornal); fontes orais, constituída por entrevista
congestionamento se forma. Aparentemente
com dois de seus idealizadores e imagens
não tem droga ainda. Repare nessa moto, ela
dos graffiti nos muros, mediada pela internet.
sinaliza para o garoto de azul que corre. Em
As informações veiculadas nos jornais e
segundos, ele volta com uma sacola cheia. É
panfletos de divulgação apoiaram a descrição
o suficiente para que a fila ande (...). Isso em
e caracterização do evento. As entrevistas,
plena luz do dia, 13h20min da tarde.
semi estruturadas, foram exploradas pela
Eles (os envolvidos no tráfico de droga) técnica de análise de discurso, situando os
dividem as funções. Alguns acenam com a sujeitos no contexto sociohistórico de vida e
mão para que os motoristas encontrem o compreendo os enunciados como expressão
ponto, enquanto outros, com telefone celular, de certa interpretação do mundo. Buscou-se,
cuidam da segurança. São os olheiros. Eles também, por meio de entrevista, compreender
avisam sobre qualquer forma de ameaça. É o as motivações do organizador para o
que esse faz agora: “Tá normal, tá normal” encontro, as relações e contatos
(grita o olheiro). Ele está certo, está tudo estabelecidos para sua realização, as
normal por aqui (ironicamente, confirma o expectativas, as satisfações, frustrações e a
repórter). Isso quer dizer que o tráfico está interpretação que os artistas deram para os
Disponível em:
https://www.facebook.com/MutiraoSjCampos/photos/a.448132538589083.99251.442433702492300/459700354
098968/?type=3&theater - Acesso: 11 Mai 2016
É da perspectiva da arte urbana como prática É um olhar, portanto, apropriado para uma
social, como definida por Pallamin (2000), que aproximação do espaço do graffiti como uma
a arte nos muros do bairro será avaliada. Para prática inicialmente contraventora, que ocupa,
Pallamin (2000), a arte urbana pode ser com singular expressividade, os muros deste
tratada como prática social por permitirem bairro de adversas condições sociais,
“[...] a apreensão de relações e modos permeado pela problemática da violência.
diferenciais de apropriação do espaço Note-se ainda que se constitui quase que no
urbano, envolvendo em seus propósitos único espaço urbano onde essa arte
estéticos o trato com significados sociais que acontece com tal expressão na cidade
as rodeiam, seus modos de tematização metropolitana de São José dos Campos.
cultural e política” e ainda (p. 24), que “o
Como pensar a cidade, garantindo a
relevo dos significados das obras de arte
realidade urbana como experiência humana,
urbana e sua concretização no domínio
individual e coletiva? Sobretudo, como pensar
público dão-se em meio a espaços
essas experiências em São José dos
permeados de interdições, contradições e
Campos, com tendências de um
conflitos”.
desenvolvimento baseado no sistema de
Mas o graffiti é uma das bases do Hip hop e outros jovens, construindo redes. Vespa
então pode-se perguntar se seus outros caracteriza o bairro que o projetou pela arte
componentes, como o rap, que é visto como a do grafitti:
voz do povo e o break, que é forma de
Era aonde a gente morava. E..., e por ser um
protesto através do corpo, também não
bairro afastado..., até hoje ainda rola essa
transgridem a cultura vigente?
visão de..., comunidade, favela, de bairro
Como evento organizado, é possível perigoso, até hoje ainda tem essa..., visão
conhecer, pelo material de divulgação do 3º sobre esses bairros. (...) eu cresci ali, eu vivi
Mutirão, o total de artistas participantes. ali, e faz três anos que eu saí de lá. Então a
Chama a atenção não somente o número gente procurava pintar sempre por ali. Graffiti
(contam-se 285 participantes), como também é isso, é demarcar território, né? E a gente
sua procedência, sendo a maioria paulistas pintava onde a gente mora, onde a gente vive
(74), muitos de Belo Horizonte (11), de São compartilhar um pouco disso com a
José dos Campos (21), constatando-se a comunidade. Até mesmo a galera que morava
manutenção da rede mencionada por Vespa em outros bairros, de classe um pouco melhor
nos primeiros eventos e a presença de que a nossa, vinham pro nosso bairro pintar
estrangeiros em número expressivo, por lá porque era mais tranquilo de pintar, né?
Venezuela (4), Mexico, Canadá e EUA (1 Devido a ter pouco policiamento, assim. Então
cada). a galera pintava mais por ali.
Percebe-se na fala de Vespa o envolvimento
com o lugar, a existência de laços emocionais
4. AS RUAS DO GRAFFITI E A FALA DE
que conectam pessoa e lugar, o lugar
VESPA
refletido na pessoa.
Um muro grafitado adquire características
A programação do 3º Mutirão se ampliou para
próprias e confere, ao entorno em que se
um evento de cultura de rua que incluiu a
situa, uma experiência espacial particular.
apresentação de grupos de rap e break, além
Para Tuan (1983, p. 1), espaço e lugar são
da pintura do graffiti, reforçando a relação
termos familiares que indicam experiências
com o Hip Hop, caracterizando a cultura de
comuns; estamos ligados ao lugar, que é
rua como forma de arte e, também, de atitude.
segurança, e desejamos o espaço, que é
Sabe-se da ligação do Hip Hop como estilo
liberdade. O espaço indiferenciado
de vida, com a afirmação do sujeito social,
transforma-se em lugar à medida que o
com a demarcação de território, a valorização
conhecemos melhor e o dotamos de valor; à
da identidade cultural e a ocupação de
medida que adquire definição e significação
espaços públicos.
(p. 17). Este valor pode ser evidenciado na
prática do graffiti do Campo dos Alemães, Vespa (2016), que desenhava desde criança,
valor para os artistas que os produzem, e começou a grafitar aos 16 anos, e a
para a comunidade que convive com eles aproximação da arte se deu pela dança e
diariamente. viagens por ela proporcionada: “[…] Eu
comecei a pintar com 16 anos ..., através da
Carlos (1996, p. 17) afirma que é no lugar que
dança. Eu comecei a dançar break em 92 pra
a vida se reproduz, e sua análise, revelada no
93 e nesse decorrer das viagens que eu tinha
“plano da vida e do indivíduo”, o plano local,
pra dançar, eu conheci o graffiti, e já
pode ser observada a partir da “tríade
desenhava desde os meus 9 anos de idade”.
habitante - identidade - lugar”: As relações
A orientação de Vespa para o graffiti
que os indivíduos mantêm com os espaços
dependeu do estado do sistema das
habitados se exprimem todos os dias nos
possibilidades que o definiu em relação ao
modos do uso, nas condições mais banais, no
grupo ao qual pertence. Por meio do
secundário, no acidental. É o espaço passível
desenho, Vespa se descobriu grafiteiro e,
de ser sentido, pensado, apropriado e vivido
antes disso, parte integrante de um
através do corpo.
movimento social cujo campo de atuação é a
Vespa hoje reside distante do bairro, em seu arte. Sobre sua relação com o desenho,
depoimento, deixa claro que o porta consigo, Vespa explicou:
é seu território, demarcado com graffiti, uma
[...] é, o desenhar já sempre existiu. Que eu
fronteira fluida de spray que se espraiava no
me recordo, sempre existiu. E..., só foi
entorno, possibilitando à comunidade outras
agregando, né? Aprendendo outras culturas e
percepções e vivências espaciais, atraindo
tudo apaixonado por desenho. Tudo que é
relacionado com desenho eu gosto. E até que buscam nas superfícies conhecidas as
em 97 teve um evento de Hip Hop aqui na melhores telas e materiais para nos dizerem
cidade e tinha um grafiteiro pintando, de São algo sobre si e sobre o mundo que os rodeia.
Paulo. Hoje um deles mora aqui na cidade,
Ainda como definição de território, Haesbaert
também. E aí quando eu vi aquilo eu disse, é
(2004, p. 01) ressalta: ‘[…] para aqueles que
isso que eu quero fazer agora, né? Já via em
têm o privilégio de usufrui-lo, o território
São Paulo, muitos graffiti espalhado, mas não
inspira a identificação (positiva) e a efetiva
tinha visto alguém fazendo, da forma que eu
“apropriação”’. Entende-se que o graffiti no
vi naquele dia, né? Então aquilo me despertou
Campo dos Alemães, para Vespa, permitiu
uma vontade maior de aprender, e comecei a
esse usufruto físico e simbólico de um espaço
pintar em 98. Em 98 que saiu meu primeiro
antes estigmatizado: pela arte, mais do que
graffiti.
identificado, o território foi apropriado.
Hall (2005, p.11), tentando entender as
Identificado, apropriado, significado, o
identidades que definem o sujeito moderno,
território se transforma em lugar. Cardoso
com base na concepção sociológica clássica
(2007, p. 15), tratando da noção
que concebe a formação da identidade na
antropológica de lugar, aponta que este inclui
interação entre o eu e a sociedade, considera
os discursos que por ele circulam, “a
que o sujeito e sua essência interior seria
linguagem que o caracteriza, bem como os
formado e modificado continuamente num
movimentos nele realizados” criando “[...] o
diálogo com os mundos culturais e as
que é organicamente social”. Ora, o graffiti é
identidades que esses mundos oferecem.
linguagem, dialoga com os transeuntes, é
O sujeito envolvido com o graffiti, ocupa um denúncia, é provocação. Nas palavras de
espaço determinado, no caso o bairro em Vespa, o alcance social da arte aparece
questão, território físico e subjetivo, carregado explicitado: “[...] esse é um dos poderes que
de condições culturais e valores, num o Hip Hop tem, de conseguir ..., seria o lado
processo recíproco de formação de social da cultura, né? Do Hip Hop”. Mas o
identidade e de construção de lugar, na tríade graffiti é também possibilidade, libertação,
proposta por Carlos (1996). Vespa (2016) usa ampliação de fronteiras, como Vespa comenta
com frequência, espontaneamente, os termos sobre os efeitos do graffiti na pessoa e no
território, demarcação atitude, expressão, espaço:
liberdade: “[…] o acrílico é mais essa atitude
[...] oficina de graffiti, que é onde ensina,
de você pintar na rua (...), ele surgiu dessa
conta a história, ensina a criançada a
forma ilegal, né? De demarcar território, de
manusear a tinta spray, o porquê que..., como
poder pintar na rua, se expressar livremente,
que surgiu essa nossa cultura do graffiti, e...,
sem interferência, sem ter de pedir
encaminha né? Pro lado bom da situação,
autorização”.
resgata as pessoas das favelas, das
Sobre essa questão, Campos (2007, p. 12) diz comunidades precárias assim, e mostra um
que: caminho diferente, que é possível seguir pelo
lado certo, né? Através do graffiti, a
O graffiti é, basicamente, uma expressão das
transformação que o graffiti nos traz. Até
culturas juvenis urbanas. Daí que tenhamos
mesmo comigo, foi uma das coisas que me
de pensar, igualmente, as nossas cidades, o
resgatou assim, que me fez pensar de uma
espaço urbano enquanto território edificado
outra forma, me levou para outros lugares,
habitado por pessoas com lugares e destinos
nunca imaginei sair fora da cidade, naquela
distintos. São essas pessoas que
época.
estabelecem vínculos sociais, afetivos,
simbólicos, usando diversos recursos para
exprimir algo sobre a sua condição. O
5. DESCOBRINDO O GRAFFITI NO CAMPO
território e tudo aquilo que este comporta é,
DOS ALEMÃES
desde tempos imemoriais, empregue para
comunicar, sendo apropriado por indivíduos e Uma das questões dessa pesquisa era
grupos que lhe emprestam um determinado investigar o graffiti como dispositivo de
significado. Daí que uma cidade seja afirmação de identidades. Para tal, realizou-se
constituída por signos variados, possua uma uma narrativa dos muros grafitados no bairro
memória que não é apenas física mas Campo dos Alemães, com recurso do Google
igualmente simbólica. Os jovens que fazem Maps, o que permitiu, junto ao depoimento do
graffiti são exploradores da sua cidade, coordenador dos três mutirões, inferir as
Figura 4 – Graffiti do 1º Mutirão de Graffiti de 2007, na Rua Fernando Antônio Rachid de Paula –
O que pensam os artistas sobre o ato de eu falar o que é certo e o que é errado, né?
grafitar, o que os graffiti expressam? Pra mim o que mais conta é isso.
Vespa se pronuncia: Pode-se verificar no depoimento do grafiteiro
a sua motivação para a prática do graffiti, da
[...] pra mim, o fato de eu poder ter essa
sua arte, o sentimento de liberdade e o prazer
liberdade de fazer o que eu quero, de pintar o
que ela lhe proporciona.
que eu gosto, independente do que as
pessoas vão achar, se vão gostar ou não, isso Na Figura 5 abaixo, que mescla imagens e
pra mim é graffiti, de eu ter essa liberdade de letras, percebe-se a presença de mensagens,
me expressar, sem ter que provar algo pra o que se observou ser comum neste tipo de
alguém. Eu me sentindo livre, feliz com o que graffiti do bairro e que nem sempre tem algum
estou fazendo ali, sendo legal, ou não, pra sentido ou caráter contestatório, social ou
mim isso é graffiti. É..., mas cada um tem político.
uma vivência sobre, né? É..., não tem como
Figura 5 – Graffiti do 1º Mutirão na esquina das ruas Luiz Gonzaga (Rei do Baião) e Maria Ferreira
dos Santos.
Quando indagado se o graffiti é a forma [...] hoje em dia tem muito disso. Tem artistas
utilizada para se expressar a respeito das grafiteiros que querem passar alguma
questões sociais, Vespa disse: mensagem do lado social, do lado político,
simplesmente do lado artístico de pintar sem
ter um contexto ali em cima, né? Tem que ter Nota-se aqui que Vespa tem conhecimento
um tema, né? vamos dizer assim. Mas (isso) das questões sociais, mas mostra também
tem até dividido por partes, hoje. Tem uns que que esta não é a única motivação na sua
prefere (sic) seguir por esse lado social, que é prática.
o (de) ensinar, ou passar mensagens
Observa-se na Figura 6 abaixo que o graffiti
positivas. Outros já usam a pintura mais pra
no bairro Campo dos Alemães, permitido por
atacar o sistema, pra falar de política, pra falar
seus proprietários, dão colorido a imóveis
de algum tema que está acontecendo no
muito simples, o que é também uma
momento no país. E todos são graffiti,
constante do bairro, e se encontram com as
entende?
pichações na forma de tags.
- Disponível em:
https://www.facebook.com/fccrsjc/photos/a.461768823896251.1073741842.146170118789458/4617714138959
92/?type=3&theater - Acesso: 11 Mai 2016
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2016.
[3] SP no ar – R7 TV. Disponível em
<http://noticias.r7.com/sp-no-ar/videos/drive-thru-
Capítulo 16
capitalista” (MARTINS, 1993, p. 23). Surgem, Volochko (2013, p. 19) afirma que os planos e
nesse processo, diversos programas de programas oficiais implantados durante o
colonização e ocupação da região visando a regime militar – somados à ampliação de
atender a reprodução do capital. Devido a infraestruturas – “revelam como o Estado
esses objetivos que impulsionaram a patrocinou o acesso à terra para os grandes
ocupação do centro-oeste a partir deste grupos econômicos e empresas
período, concordamos com a definição do transnacionais”, que utilizavam a terra tanto
autor de que o conceito de fronteira faça para produção agropecuária quanto para “a
referência a um “espaço submetido a uma colonização privada fundamentada no
contínua redefinição”, no qual se sobrepõem loteamento/especulação42”.
relações aparentemente fragmentadas que
Esse processo de dominação e ocupação das
seriam alteradas pela ação do Estado em
terras no centro-oeste – e particularmente no
função dos interesses em jogo – neste caso, a
sudeste de Mato Grosso – realizado por
continuidade da acumulação capitalista. A
grupos empresariais do sudeste brasileiro por
fronteira envolveria territórios que, por meio de
meio de incentivos à colonização privada terá,
estratégias políticas, passam a ser
como veremos, profundas implicações na
demandados para o desenvolvimento das
produção do espaço urbano de Primavera do
forças produtivas (MARTINS, 1993, p. 23).
Leste.
Nesse processo de readequação dos usos do
espaço para atender às novas exigências da Idealizada neste contexto de expansão da
acumulação, Mato Grosso constitui-se como fronteira do capital, por grandes grupos
fronteira principalmente a partir da década de econômicos financiados pelo Estado,
1970. Primavera do Leste não deve ser vista
somente como uma cidade cuja produção do
O papel do Estado na produção e
espaço é ritmada por um agrário hegemônico.
consolidação da fronteira também é
Conforme destaca Arruda (2007), não é no
destacado por diversos autores, dentre eles
campo onde está a base produtiva dessas
Arruda (2007), Silva (2010), Martins (1993) e
corporações agroempresariais globalizadas,
Oliveira (2001). Segundo Arruda (2007, p. 78),
mas na cidade por meio das condições de
o Estado foi o “principal agente viabilizador da
circulação dos fluxos materiais e imateriais do
inserção do espaço mato-grossense à nova
“agronegócio”. Na cidade, estão
lógica de (re) produção capitalista, ou seja,
concentradas atividades voltadas a atender
para a expansão da fronteira agrícola”. Essa
as demandas do campo, tais como: serviços
inserção ocorreu sobretudo após o golpe
financeiros e jurídicos, fornecimento de
militar de 1964, quando o cerrado passa a ser
insumos e de máquinas agrícolas, armazéns e
inserido de modo mais contundente à
indústrias que beneficiam a produção do
reprodução do capital através de programas
campo, estabelecimentos comerciais e
e projetos nos quais as terras eram
bancários, assistência técnica especializada.
distribuídas ao capital nacional e internacional
via projetos de exploração agropecuária. Esse A cidade, longe de ser um local passivo onde
avanço da fronteira foi possibilitado por meio se concentram as atividades vinculadas ao
da construção de rodovias, da implantação campo, foi a condição para que um campo
de infraestruturas (como rede elétrica), de cada vez tecnificado e financeirizado pudesse
planos de incentivos governamentais e se realizar. Além disso, como salienta
promoção de políticas de colonização pública Volochko (2013, p. 20), devido a essa
ou privadas (ARRUDA, 2007; GIRARDI, 2015). primazia do urbano para a realização deste
O movimento de expansão da fronteira em
Mato Grosso foi, nesse contexto, intensificado 42
A colonização privada tinha como objetivo “atrair
com a ampliação da malha viária, uma clientela mais capitalizada, os colonos do sul
principalmente com a abertura das rodovias do país. As terras eram oferecidas muitas vezes a
BR - 364 (Cuiabá – Rio Branco) e BR - 163 preços irrisórios, sobretudo se comparados às
(Cuiabá – Santarém). Especificamente, no áreas de fronteira agrícola já consolidadas, o que
sudeste mato-grossense, merece destaque facilitava a aquisição de propriedades de grandes
também a BR - 070 (Brasília – Cáceres). extensões”. Já a colonização pública ou oficial foi
uma das formas utilizadas para direcionar os
Destacando uma das dimensões desse papel movimentos populacionais para regiões de
do Estado como grande fomentador da fronteira. Mato Grosso passa a servir como uma
expansão geográfica da acumulação de alternativa para amenizar os conflitos no campo
capital em direção às terras mato-grossenses, sem a realização de uma reforma estrutural no
campo brasileiro (BERNARDES, 2007, n.p).
43
Como marcos importantes antes da década de
44
1970, podemos citar a demarcação de uma linha Martins se refere em sua dissertação à
telegráfica em 1912 ligando Cuiabá à Barra do Chapadão do Sul, Mato Grosso do Sul, mas é
Garças, passando por Primavera do Leste. Em possível traçar semelhanças em muitos dos
1940, houve o desenvolvimento do programa processos constitutivos da produção do espaço
“Marcha para o Oeste”, implantado pelo presidente desta cidade com Primavera do Leste.
45
Getúlio Vargas e que abrangia sobretudo a porção Destacamos que a própria ideia de pioneirismo
sul de Mato Grosso por meio da colonização oficial. deve ser relativizada e é carregada de um viés
O ocupação da Amazônia Legal (na qual se insere ideológico que coloca as pessoas que chegaram
o estado de MT) seria intensificada posteriormente naquele momento como as primeiras a se
a partir da Constituição de 1946 – que previa um instalarem no local. Considera, desta forma, a
plano econômico para viabilizar a ocupação e região como um “vazio demográfico” e ignora,
desenvolvimento econômico da região – e com a dentre outras, as populações indígenas. Por isso,
implantação de Brasília no governo de Juscelino empregamos neste artigo o termo (e suas
Kubistchek (SILVA, 2010; CMPL, 2016). derivações) entre aspas.
53
Segundo Ferreira (2008, p. 174), Primavera do
51
Segundo relatos de dois corretores imobiliários Leste em 1979 “apresentava duas obras de
de Primavera do Leste, os investimentos de alvenaria”, sendo uma delas “o escritório de venda
capitais no urbano são ainda maiores quando da companhia colonizadora”. Em 1978, “iniciou-se
empresários do agrário (no geral, da sojicultura) já a venda dos primeiros lotes, inclusive antes da
calculam, inclusive pela própria quantidade de abertura das ruas, da colocação de postes e da
chuva prevista para a safra, que as perspectivas instalação da rede elétrica em 1979”. O fato de
de lucro com a soja ficarão abaixo do esperado umas das primeiras casas ser um escritório de
para o ano. venda da colonizadora nos leva a refletir sobre um
52
Retomamos aqui a tríade hierarquização- espaço cuja concepção foi desde o início
homogeneização-fragmentação exposta por “direcionada para uma ordem especulativa,
Lefebvre (2000), a qual tem um papel fundamental caracterizada por uma ordem territorial empresarial
na compreensão dos processos constitutivos da paulista” (PIRAS, 2007), na qual o objetivo era
produção do espaço. manipular renda da terra e acumular capital.
fundiária, via elevação dos preços, da parcela Nova Mutum, Mato Grosso: um “controle e
da mais-valia social investida pelo poder uma homogeneidade maiores em relação ao
público, sendo um dos mecanismos modo como o espaço foi sendo ocupado e
privilegiados de concretização da produzido, o que se coloca como fundamento
arquiconhecida lógica da especulação da produção espacial que repercute na lógica
imobiliária. do planejamento urbano (...)”. O domínio da
venda dos lotes em uma só pessoa ou
Da mesma forma, a venda de terrenos a
empresa – inicialmente, dos Cosentino e, em
preços baixos no início da ocupação foi outra
seguida, com o parcelamento de lotes um
estratégia encontrada para tentar garantir o
pouco mais distantes do núcleo urbano, de
sucesso do empreendimento Primavera do
outras famílias “pioneiras” – ocorre por meio
Leste. Na década de 1990 e 2000, muitos
da própria definição de tamanho (que alcança
lotes foram negociados a preços baixos
até 600 metros quadrados nos bairros
visando a incentivar a ocupação e valorizar os
centrais) e suas formas de aquisição
demais. São vários os relatos de moradores
(pagamento à vista ou parcelado, com ou sem
da cidade de que bastava “dar uma ‘Biz’
financiamento). A imposição de padrões a
velha para comprar um terreno” (Biz é uma
moto popular da Honda, cujos preços variavam em
loteamentos inteiros tende a determinar quem
2016 de 4 mil (usada) a nove mil reais. Esse tipo de poderá acessá-los, atraindo, no geral,
transação aparecia como alternativa quando os moradores com o mesmo padrão de renda.
compradores não tinham disponibilidade imediata Em Primavera III, bairro a dez quilômetros do
de dinheiro.) nos loteamentos mais afastados, centro da cidade e loteado pela Imobiliária
como Primavera III e Buritis. Aqui é importante Cosentino, moradores conseguiam obter lotes
destacarmos que, apesar da negociação a menores e mais baratos, inclusive com
preços relativamente baratos, as terras eram pagamento parcelado e financiado. Já no Jd.
vendidas em grande quantidade e foram Riva, um dos mais caros da cidade, os
obtidas a preços baixos ou doadas no terrenos são maiores e geralmente vendidos
processo de colonização privada. Tal pela família Riva – também “pioneira” no
processo também contribuiu para processo de ocupação primaverense –
proporcionar uma grande concentração de através de uma entrada e mais três parcelas.
capital nas mãos dos “antigos pioneiros” da Essa diferença no tamanho dos lotes e na
cidade. maneira de aquisição e compra é resultado
Por meio desses mecanismos, era possível de estratégias distintas dos loteadores com o
manipular a renda capitalista da terra, mesmo objetivo: a obtenção de renda e a
garantindo a continuidade do projeto de valorização fundiária do que ainda será
colonização, e atrair novas pessoas – tanto parcelado e vendido. Ajuda-nos também a
para empreender e investir quanto para se explicar, no início da expansão do núcleo
constituir em mão de obra barata para a urbano, uma maior concentração de pessoas
cidade que crescia. de maior renda ao norte da BR e a oeste da
rodovia MT (foto 1) e de moradores de menor
O fato do loteamento Cidade Primavera ter renda a sul da BR ou leste da MT (foto 2).
surgido a partir de uma fazenda de um único
proprietário contribui para, segundo Volochko
(2015) a respeito de processo semelhante em
Os muros de vidro seguem modelos adotados moradores vejam o lado de fora e tenham, sua
em outras casas da cidade: ao mesmo tempo casa ao mesmo tempo observada “pelos de
em que delimitam a propriedade, mantêm um fora”. Foto da autora. 05 maio 2016.
padrão arquitetônico que permite que os
Gasparotto e Freitas detêm grande parte das imobiliárias controladas por essas famílias. A
terras ocupadas e para loteamento no núcleo maior parte delas foi implantada logo no início
urbano já consolidado ou com previsão para da ocupação do núcleo urbano (tabela 1).
expansão. Assim, como estamos procurando Além disso, com o objetivo de valorizar as
investigar e expor, a expansão dos terras e manipular a renda fundiária, os
loteamentos e o próprio planejamento urbano loteamentos são lançados por etapas. A
são ditados por poucas famílias desde o início Cosentino lançou o Primavera I ainda entre as
da ocupação da cidade. décadas de 1980 e 1990, ao passo que o
loteamento Primavera IV foi lançando apenas
Buscando reiterar que os “antigos pioneiros”
em 2015. O loteamento Castelândia foi um
permanecem ainda hoje como grandes
dos primeiros cujos lotes foram vendidos na
agentes imobiliários em Primavera do Leste,
cidade, no entanto, ainda continua sendo
pesquisamos os anos de fundação das
parcelado e já está em sua quarta etapa.
Em 2014, eram aproximadamente 6.732 lotes mapa. Ainda estão comercializando, portanto,
na cidade aprovados pela Prefeitura e terrenos relativamente próximos ao centro,
aguardando comercialização, com previsão agora mais valorizados. Além desses
para abrigarem mais de 22 mil pessoas “pioneiros” que, como vimos, continuam
(mapa 2). Alguns dos loteamentos abrindo loteamentos e no comando da
representados neste mapa são de dinâmica do mercado fundiário e imobiliário
propriedade dos “antigos pioneiros”, os quais desde o início da ocupação de Primavera,
não por acaso são aqueles mais próximos do também foi possível constatar a participação
núcleo urbano – como se observa pelas de novos agentes imobiliários.
delimitações indicadas pela cor mais clara no
2
3
1
As delimitações dos loteamentos não apresentam absoluta precisão, uma vez que foram traçadas a partir de
informações encontradas no Diário Oficial da Prefeitura Municipal e de imagem de satélite (2016). A
metologia para investigar os proprietários destes loteamentos foi a mesma da utilizada na elaboração do
mapa 1. Mapa elaborado pela autora no software Google Earth Pro.
Os loteamentos abertos por esses novos Nova Mutum em 2008 e que atualmente
agentes imobiliários estão indicados pelos existem também nas cidades mato-
números 1 a 4 no mapa. Aqueles grossenses de Campo Verde e Sinop (além
representados pelos números 1 e 2 no mapa, de Primavera do Leste). Ao todo, de acordo
às margens da MT-130 sentido Paranatinga, com Sampaio (2015), são mais de 70
são, respectivamente, Chácara Fontana e empreendimentos no ramo imobiliário ligados
Parque Imperial, aparentemente de à empresa “Buritis Empreendimentos” de
investidores que moram em Primavera do Kunzler. Em Primavera, serão 4 mil terrenos
Leste. Já o loteamento Três Américas (número nas 4 fases de expansão do loteamento, com
3 no mapa) é de propriedade de um previsão para abrigarem 15 mil pessoas.
empreendedor que é dono de uma imobiliária Kunzler mora em Campo Mourão, Paraná, e
e incorporadora também atuante na cidade segundo entrevista, decidiu investir na região
(responsável pelo lançamento em 2014 de um por meio de indicação de pessoas de
edifício de alto padrão no centro, com Primavera do Leste (SAMPAIO, 2015).
apartamentos de 151 a 173 m² e preços a
Na foto 3, observamos as diferentes fases do
partir de 850 mil reais). Este novo loteamento,
loteamento Buritis em Primavera. É importante
próximo aos bairros periféricos de Primavera
destacarmos que segundo determinações da
III e Buritis, será destinado à população de
Lei de Parcelamento de Solo Urbano do
menor renda, com lotes de até 200 metros
Município de Primavera do Leste, cabe ao
quadrados, possibilidade de financiamento e
loteador ser responsável pela rede de
pagamento em várias parcelas.
distribuição de energia elétrica, rede de
Merece destaque, por fim, os dois esgoto, de escoamento de águas superficiais
loteamentos indicados pelo número 4 – Buritis e de abastecimento de água. Também fica a
II expansão e Buritis III. O proprietário, Marco seu encargo a terraplanagem, a
A. Kunzler, é administrador de outras cinco pavimentação e implantação de meio fios das
empresas no estado de Paraná e cinco em vias. Se essas medidas por um lado
Mato Grosso. A partir de entrevista de Kunzler aumentam os custos ao loteador, por outro,
a Sampaio (2015), sabe-se que Buritis é a também se configuram em um mecanismo
denominação utilizada para se referir a para valorizar os lotes que serão
conjuntos de loteamentos implantados em comercializados.
Nota-se uma ocupação mais consolidada à direita e outra ainda esparsa em primeiro plano (duas
primeiras fases do Buritis). Ao fundo, em destaque, loteamento Buritis expansão e Buritis III,
previstos para implantação em 2016 e 2017. Disponível em
http://www.skyscrapercity.com/showthread. Php?p=111002342>.
56
Conforme informações obtidas no site da
empresa e através de corretores imobiliários, o
“Rivière”, com previsão de entrega para julho de
2017, contará com apartamentos de 95 m² a 228
m² de área privativa, e o “Privilège”, com 18
apartamentos (2 por andar) e metragem de área
privativa de 221,42 m². Os preços por metro
quadrado desses dois empreendimentos variam de
R$ 5.273 a R$ 6.959.
57
Índice FipeZap, publicado em janeiro de 2015:
58
Metro quadrado avançou 6,7%, pouco acima da Disponível em <
inflação esperada para o ano, segundo o índice http://www.agenteimovel.com.br/mercado-
FipeZap. Disponível em imobiliario/a-venda/sao-paulo,sp/>. Acesso em 24
<http://economia.estadao.com.br/noticias/seu- nov. 2016.
59
imovel,alta-do-preco-do-imovel-em-2014-quase- Dados de 2013, disponíveis em <
empata-com-inflacao,1615809>. Acesso em 24 http://www.terra.com.br/economia/infograficos/prec
nov. 2016. o-metro-quadrado-sp/>. Acesso em 24 nov. 2016.
Trecho da favela ao sul da rodovia BR-070, em local próximo a “NutriLara – indústria e comércio
de cereais”. Observam-se casas de lona e papelão, sem infraestrutura de fornecimento de
energia elétrica ou saneamento básico. Foto da autora. 09 de out. 2015.
Foto 5. Fundos das casas da Rua Amendoeira, Conj. Padre Onesto Costa – Primavera III.
Casas no extremo noroeste da cidade – rua sem asfalto e fundos das casas cujos muros vão
sendo erguidos pelos moradores de acordo com a disponibilidade de tempo e dinheiro. Foto da
autora. 09 out. 2015.
[4] Elias, Denise; Pequeno, Renato. [13] Oliveira, Ariovaldo Umbelino. A longa
Desigualdades socioespaciais nas cidades do marcha do campesinato brasileiro: movimentos
agronegócio. Revista Brasileira de Estudos sociais, conflitos e reforma agrária. Revista de
Urbanos e Regionais. Recife, 2007. v. 9, v. 1, pp. Estudos Avançados. São Paulo: IEA USP. V. 15, n.
25-39. 43, p. 185 – 206. Set/Dez 2001.
cerrado mato-grossense. São Paulo, 2010. Tese Revista Mato-Grossense de Geografia. Cuiabá,
em Geografia Humana - Faculdade de Filosofia 2013. n.16. pp. 18-38.
Letras e Ciências Humanas – Universidade de São
[19] __________________. “Terra, poder e
Paulo.
capital em Nova Mutum – MT: elementos para o
[18] Volochko, Danilo. “Da extensão do campo debate da produção do espaço nas ‘cidades do
à centralização do urbano: elementos para o agronegócio’”. Rio de Janeiro, 2015. GEOgraphia.
debato da produção do espaço em Mato Grosso”. Ano 17, n. 35. pp. 40- 67.
Capítulo 17
2017, em razão das mudanças no contexto mil habitantes que até então eram
econômico e político do país, o Programa negligenciados, definiu uma melhoria do
passou por novas alterações: a faixa 1 passou padrão construtivo das moradias, de acordo
a englobar famílias com renda mensal de até com Cardoso e Aragão (2013), além de
R$ 1,8 mil; a recém criada faixa 1,5 passou a viabilizar o uso comercial nos
atender famílias com rendimento de até empreendimentos e estimular a utilização de
R$ 2,6 mil; a faixa 2 com rendimento de até fontes de energia sustentáveis.
R$ 4 mil e a faixa 3 passou a atender famílias
Sobre as limitações do Programa, Cardoso e
com renda mensal de até R$ 9 mil (BRASIL,
Lago (2013) afirmam, por exemplo, que a
2017).
regulamentação do Programa definiu que os
Para cada faixa de renda existem fontes de recursos seriam distribuídos para estados e
recursos e subsídios diferenciados que municípios, de acordo com a participação de
podem chegar até 90% do valor da unidade cada um no cômputo do déficit habitacional.
habitacional, no caso da Faixa 1. Cardoso e Dessa forma, “criaram-se cotas, baseadas em
Aragão (2013) sintetizam os princípios que um princípio universalista, e evitando a
regem a Faixa 1 do Programa, influência de dimensões políticas e relações
de clientela na alocação dos recursos”.
A produção é “por oferta”, o que significa que
Contudo, como o Programa é ancorado na
a construtora define o terreno e o projeto,
iniciativa privada, que define quanto, como e
aprova-o junto aos órgãos competentes e
aonde construir, acabou por gerar “distorções
vende integralmente o que produzir para a
na distribuição dos recursos entre as
CAIXA, sem gastos de incorporação
unidades da federação” (CARDOSO & LAGO,
imobiliária e comercialização, e sem risco de
2013, p. 13).
inadimplência dos compradores ou vacância
das unidades. A CAIXA define o acesso às Além disso, conforme Cardoso, Aragão e
unidades a partir de listas de demanda, Jaenisch (2017), o Programa MCMV prioriza a
elaboradas pelas prefeituras. Os municípios quantidade, não a qualidade das moradias,
têm como incumbência cadastrar as famílias tendo em vista que o principal propósito da
com rendimento de 0 a 3 salários mínimos, sua criação foi o de conter os efeitos
além da participação por meio da doação de negativos da crise internacional de 2008, que
terrenos, isenção tributária e provocou uma desaceleração no mercado
desburocratização nos processos de imobiliário e no setor da construção civil, que
aprovação e licenciamento e também na estava em plena ascensão até este momento.
flexibilização das normas urbanísticas para Como consequência, o Programa, ao
permitir aumentar os índices de utilização do promover a construção de moradias em larga
solo nos empreendimentos do MCMV escala, propiciou a criação de empregos e o
(CARDOSO & ARAGÃO, 2013, p. 37). reaquecimento do setor da construção civil.
Os autores afirmam ainda que o PMCMV foi
inspirado nas experiências desenvolvidas no
Nas Faixas 2 e 3 o Programa funciona da
Chile e no México e que eram consideradas
seguinte forma:
pelo empresariado da construção civil como
As construtoras/ incorporadoras apresentam os modelos mais eficientes para dinamizar a
projetos de empreendimentos à CAIXA, que produção habitacional. Todavia, ressaltam
realiza pré-avaliação e autoriza o lançamento que o modelo adotado pelo Programa entrou
e comercialização. Após a conclusão da em choque com os princípios do Sistema
análise e comprovação da comercialização Nacional de Habitação de Interesse Social
mínima exigida, é assinado o Contrato de (SNHIS), pautados no papel estratégico do
Financiamento à Produção. A comercialização setor público, além de ignorar as premissas e
é feita pelas construtoras ou através dos debates envolvidos na criação do Plano
“feirões” da Caixa, havendo a possibilidade Nacional de Habitação de Interesse Social
de que os pretendentes à aquisição consigam (PlanHab).
uma carta de crédito na Caixa para ir ao
Um dos impactos mais imediatos sobre os
mercado buscar uma moradia para aquisição
programas desenvolvidos no âmbito do
(CARDOSO & ARAGÃO, 2013, p. 39).
FNHIS diz respeito à eliminação dos repasses
de recursos para as ações de provisão
habitacional. Dessa forma, desde o
A segunda fase do Programa, além de
lançamento do PMCMV, o FNHIS passou a
incorporar os municípios com menos de 50
unidades entregues não eram imóveis sul, em bairros como a Cidade Industrial de
construídos, mas apenas lotes urbanizados, Curitiba (CIC) e o Sítio Cercado. Estes bairros
produzidos, muitas vezes produzidos por ao sul se enquadram na tipologia
empresas privadas. Dessa forma, os custos socioespacial popular operário, condição
da produção ficavam a cargo do morador que semelhante a dos municípios periféricos da
recorreu na maioria das vezes à RMC, além disso, estas áreas e incluindo os
autoconstrução. bairros localizados a leste, como o Cajuru,
são as que mais abrigam assentamentos
Além disso, grande parte da produção da
precários em Curitiba. A Figura 2 a seguir
COHAB desenvolvida ao longo de sua
demonstra a localização em Curitiba da
trajetória ficou restrita a algumas porções da
produção habitacional da COHAB ao longo
capital, sobretudo nas áreas a sudoeste e ao
das últimas décadas.
62
Os Setores Especiais de Habitação de Interesses
Social (SEHIS) equivalem em Curitiba as Zonas
Especiais de Interesse Social (ZEIS), instrumento
previsto no Estatuto das Cidades e que foram
definidos no Zoneamento da capital do ano 2000
(STROHER, 2014).
A partir das informações contidas no Quadro passando de 61.394 em 2016 para 83.047 em
1, pode-se constatar primeiramente, que o 2018, enquanto que a Faixa 3, subiu de
município de Curitiba detém o maior número 17.448 para 20.762 contratações nesse
de contratações de unidades habitacionais período, confirmando as observações de
voltadas para Faixa 1, com 59% do total da Cardoso, Aragão e Jaenischi (2017), sobre o
RMC. É possível identificar também que do aumento da prioridade dada as camadas de
total de unidades habitacionais contratadas maior renda nos últimos anos, em detrimento
para todas as faixas de renda (113.977 uni. daquelas que mais necessitam (BRASIL,
hab. na RMC) apenas 9% é destinada a Faixa 2016, 2018).
1, lembrando que a meta estipulada pelo
Verifica-se também que depois de Curitiba, o
Programa no ano de 2009, definia que 40%
município de São José dos Pinhais é o que
das unidades habitacionais produzidas
mais produziu unidades habitacionais para a
deveriam ser destinadas a essa faixa de
Faixa 1 – os dois municípios juntos,
renda, na qual está concentrado o déficit
correspondem a 73% das unidades
habitacional do Brasil.
habitacionais contratadas para essa faixa de
Comparando ainda as contratações por faixa renda, no entanto, os dois municípios não
de renda do Programa entre os anos de 2016 apresentaram nenhuma nova contratação
e 2018, verifica-se que o número de após o ano de 2016, quando correspondiam
contratações voltadas a Faixa 1 está então a 77% do número de contratações total.
praticamente estagnada, eram 9.673 em 2016
Na Faixa 2, Curitiba também aparece na
e em 2018 esse número é de 10.168 para
dianteira, mas com um percentual menor,
toda a RMC. Já a Faixa 2 foi a que teve maior
22% das unidades produzidas nessa faixa na
número de contratações nesse período,
RMC. Logo em seguida aparece o município
de Fazenda Rio Grande (20%) e São José dos estes são alguns dos municípios da RMC que
Pinhais com 16% das contratações para essa possuem maior déficit habitacional relativo.
faixa de renda no ano de 2018. Por outro lado, o município de Araucária,
possui um número considerável de
Contudo, há algumas diferenças na
contratações para as Faixas 2 e 3. Assim
implementação do Programa nestes
como Colombo, que apesar de apresentar um
municípios, enquanto Fazenda Rio Grande
déficit habitacional elevado e uma população
concentra a maioria absoluta das contrações
predominantemente de baixa renda,
na Faixa 2 de renda, em São José dos Pinhais
concentra a produção do PMCMV também
há um número maior de contratações para a
nestas faixas de renda.
Faixa 1 e para aquelas destinadas a Faixa 3
do Programa. Este último município e No que diz respeito à conclusão e entrega
Araucária são aqueles que mais concentram das unidades habitacionais do Programa na
contratações para a faixa de renda mais RMC, ambas as faixas de renda possuem
elevada do Programa depois de Curitiba, já índices semelhantes: na Faixa 1, 80% do total
que os mesmos apresentam também maior foram concluídas e entregues a população, na
renda da população e maior número de Faixa 2 (82%) e na Faixa 3, 75% do total
empregos na RMC, depois da capital. contratado havia sido entregue em 2018
(BRASIL, 2018).
Ademais, constata-se que os municípios de
Pinhais, Araucária e Almirante Tamandaré não O Mapa 2 traz a distribuição espacial dos
possuem nenhuma unidade habitacional empreendimentos do Programa Minha Casa
contratada a Faixa 1, que engloba a Minha Vida destinados a Faixa 1 na RMC no
população de mais baixa renda. Ressaltando ano de 2016.
que, de acordo com Pereira e Silva (2014),
Fonte: Ministério das Cidades (2016); ITCG (2015) - Elaboração: Fabiana Monteiro; Otacílio Paz (2016)
Fonte: BRASIL (, 2016; 2018 – Posição 30/04/2018) - Elaboração: Fabiana Monteiro (2018)
* Sem informações
63
Os dados referentes aos empreendimentos Faixa 2 por bairro se referem ao ano de 2016, já que para o ano
de 2018 o Ministério das Cidades não informou os valores especificados por bairro. O valor em 2018 do número
de unidades habitacionais contratadas para essa faixa de renda em Curitiba é de 18.808 e o total de unidades
concluídas e entregues é de 15.479, conforme o Quadro 2 (BRASIL, 2018).
64
Esse valor engloba empreendimentos e moradias individuais, financiadas tanto pela Caixa Econômica
Federal como pelo Banco do Brasil (BRASIL, 2018).
contratadas para as duas faixas de renda, são produção habitacional nestes bairros reforça
um total de 2.063 novas moradias construídas a sua tendência à monofuncionalidade.
via PMCMV.
Constata-se que a produção habitacional do
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Programa MCMV destinada a Faixa 2 de
renda, está relativamente melhor distribuída A partir do exposto, pode-se constatar que o
pelos bairros da capital conforme se pode poder público local em muito contribuiu para
verificar no Mapa 3. Contudo, os a segregação espacial na metrópole,
empreendimentos localizados nos bairros especialmente a partir da implementação do
melhor inseridos na malha urbana e que Planejamento Urbano em Curitiba. Nesse
apresentam melhores condições de contexto, os interesses do mercado e das
infraestrutura e ofertas de serviços e classes de maior renda foram privilegiados na
equipamentos públicos são menores e apropriação do espaço urbano.
esparsos no território. Enquanto que, os
Na atuação do poder público local na
bairros mais periféricos como Cachoeira e
habitação popular, persistiu a segregação, na
Santa Cândida ao norte, CIC a sudoeste e
medida em que a população pobre foi
Campo de Santana ao sul, abrigam os
destinada aos bairros periféricos e que
empreendimentos com maior número de
tradicionalmente abrigam a população de
unidades habitacionais.
menor renda. A implementação do Programa
O bairro Cachoeira é o que abriga o maior Minha Casa Minha Vida em Curitiba pouco
número de unidades habitacionais para a alterou esse cenário, logo que os
Faixa 2 de renda e o bairro Campo de empreendimentos voltados às famílias de
Santana aparece em segundo lugar no menor renda continuam sendo construídos
número de contratações. Este último está predominantemente nos bairros que
localizado no extremo sul da capital, no limite tradicionalmente já abrigavam a produção
com o município de Fazenda Rio Grande, a 24 habitacional da COHAB. Verifica-se que
km de distância do centro da cidade – bairros tradicionalmente com população
distância maior do que alguns municípios da pequena, como Ganchinho e Cachoeira estão
RMC, como Pinhais e São José dos Pinhais. sendo os principais destinos dos
Até a década de 2000 apresentava empreendimentos do PMCMV, o que pode vir
características rurais, porém, de acordo com a sobrecarregar a infraestrutura existente e a
o IPPUC (2015), a partir desse período prejudicar a qualidade de vida dos antigos e
passou a sofrer os impactos do adensamento novos moradores.
populacional na sua porção oeste.
Destaca-se, que no cenário da Região
Finalmente, ao se comparar a produção Metropolitana de Curitiba, é a capital que
habitacional atual da COHAB, através do detém o maior número de contratações do
Programa Minha Casa Minha Vida com a de Programa para as três faixas de renda e
períodos anteriores, fica evidente que as assim como em outras metrópoles brasileiras,
regiões sul e sudoeste continuam sendo o o Programa tem imposto aqui a padronização
principal destino, contudo, a partir da das moradias e o padrão de condomínio
implementação do Programa em Curitiba a fechado, uma forma das construtoras
porção norte também passa abrigar aumentarem sua lucratividade, conforme a
empreendimentos destinados à habitação literatura especializada aponta. Além disso,
social. problemas relacionados à dificuldade dos
moradores se adaptarem e arcarem com as
Nos bairros ao sul da capital, onde se localiza
despesas dos condomínios, especialmente
a maioria dos empreendimentos do Programa
aqueles provenientes de assentamentos, e a
MCMV, especialmente aqueles mais distantes
violência dentro dos mesmos, como no caso
da região central, ainda é deficiente a oferta
do Residencial Serra do Mar, em São José
de infraestruturas e equipamentos públicos e
dos Pinhais, são noticiados frequentemente
de lazer, reafirmando a colocação de Rufino
na mídia.
(2015), de que as periferias ainda são
carentes de empregos e a concentração da
[4] Brasil. Ministério das Cidades. Secretaria [16] Gottdiener, Mark. A produção social do
Nacional de Habitação. 2018. espaço urbano. 2 ed. São Paulo: EDUSP, 1997.
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oficial. Disponível em: Estatistica (IBGE). Censo 2010: Disponível em:
<http://www.cidades.gov.brwww/index.php/minha- <http://www.ibge.gov.br>. Acesso em 29/05/2018.
casa-minha-vida>. Acesso em: 17/09/17. [18] Instituto de Pesquisa e Planejamento
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de favelas. Cadernos Metrópoles, São Paulo, p. 15/05/2018.
219-240, 2007. [19] Instituto de Pesquisa e Planejamento
[7] Cardoso, Adauto Lúcio; Aragão, Themis Urbano de Curitiba (IPPUC). Nosso Bairro:
Amorim. Do fim do BNH ao Programa Minha Casa Cachoeira. 2015.
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Brasil. In: CARDOSO, A. L. (Org.) O Programa Urbano de Curitiba (IPPUC). Nosso Bairro: Campo
Minha Casa Minha Vida e seus efeitos Territoriais. de Santana. 2015.
Rio de Janeiro: Letra Capital, 2013.
[21] Maricato, Ermínia. Urbanismo na periferia
[8] Cardoso, Adauto Lúcio; Lago, Luciana do mundo globalizado: metrópoles brasileiras. São
Corrêa. O Programa Minha Casa Minha Vida e seus Paulo em Perspectiva, v. 14 (4). São Paulo, 2000.
Efeitos Territoriais. In: Cardoso, A. L. (Org.) O
Programa Minha Casa Minha Vida e seus efeitos [22] Moura, Rosa; Rodrigues, Ana Lucia. (Org.)
Territoriais. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2013. Como andam Curitiba e Maringá. Rio de Janeiro:
Letra Capital, Observatório das Metrópoles, 2009.
[9] Cardoso, A. L.; Aragão, T. A.; Jaenisch, S.
T. Vinte e dois anos de política habitacional no [23] Pereira, Gislene; Silva, Jussara Maria. A
Brasil: da euforia à crise. Rio de Janeiro: Letra rede que se espalha: Programa Minha Casa Minha
Capital: Observatório das Metrópoles, 2017. Vida e acessibilidade urbana. In: Firkowiski, O. L.
C.; Moura, R. (Org.) Curitiba: transformações na
[10] Carvalho, André de Souza. Vivendo às ordem urbana. 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra
margens: Habitação de Interesse Social e o Capital : Observatório das Metrópoles, 2014.
processo de segregação socioespacial em
Curitiba. Dissertação (Mestrado em Urbanismo, [24] Polucha, Ricardo Serraglio. Ecoville: A
História e Arquitetura da Cidade). 314 p. segregação urbana planejada. In: XII Encontro
Universidade Federal de Santa Catarina. Nacional da ANPUR, Florianópolis, 2009.
Florianópolis, 2014.
[25] Rufino, Maria Beatriz Cruz. Incorporação
[11] Companhia DE Habitação Popular de da Metrópole: centralização do capital no
Curitiba (Cohab-CT). Site Oficial. Disponível em: imobiliário e a nova produção do espaço em
<www.cohabct.com.br/>. Acesso em: 20/05/2018. Fortaleza. 334 p. Tese (Doutorado em de
Arquitetura e Urbanismo) Faculdade de Arquitetura
[12] Companhia de Habitação do Paraná e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 334 p.
(Cohapar). Plano Estadual de Habitação de São Paulo, 2012.
Interesse Social do Paraná – PEHIS-PR, Curitiba,
2012. Disponível em: [26] Rufino, Maria Beatriz Cruz. Um olhar sobre
www.cohapar.pr.gov.br/.../Banner%20Pehis/Pehis... a produção do PMCMV a partir de eixos analíticos.
/Pehis_Parte1>. Acesso em 13/08/2017. In: AMORE, C. S.; SHIMBO, L. Z.; RUFINO, M. B. C.
(Org.) Minha casa... e a cidade? Avaliação do
[13] Correa, Roberto Lobato. O espaço urbano. programa minha casa minha vida em seis estados
São Paulo: Ática, 1989. brasileiros. 1. ed. - Rio de Janeiro : Letra Capital,
[14] Firkowski, Olga Lucia C. de Freitas. A nova 2015.
territorialidade da indústria e o Aglomerado
[27] Santos, Milton. A urbanização brasileira. 3 da Terra, Universidade Federal do Paraná, Curitiba,
ed. São Paulo: HUCITEC, 1996. 2012.
[28] Silva, Madianita Nunes da. A dinâmica de [29] Stroher, Laisa Eleonora M., Um balanço
produção dos espaços informais de moradia e o crítico da experiência de Planejamento Urbano na
processo de metropolização em Curitiba. 259 p. grande Curitiba na última década (2004-2014). XVI
Tese (Doutorado em Geografia) - Setor de Ciências ENANPUR, Belo Horizonte, 2015.
Capítulo 18
Sassen (s./d.) diz que a dispersão espacial de outros” (estados do Sul, Minas Gerais,
das atividades econômicas associadas à Espírito Santo, Pará e Amazonas).
globalização contribuem para uma procura de
novas formas de centralização territorial da
gestão de operações e controle de alto nível, 2. A CIDADE DE VARGINHA/MG
resultando em novas categorias de lugar e
O município de Varginha, fundado em 1882,
processo de produção.
conta com localização privilegiada e
Com a reestruturação produtiva, as cidades estratégica, equidistante das três principais
médias têm desempenhado um papel capitais do Brasil: São Paulo, Rio de Janeiro e
importante tanto em relação à integração Belo Horizonte, em razão de situar-se na
quanto ao desenvolvimento regional. Sposito região sul do estado de Minas Gerais.
(2007) afirma que as cidades médias
Varginha é a terceira cidade mais populosa
desempenham funções de acordo com as
do Sul de minas com mais de 123 mil
relações hierárquicas envolvendo as cidades
habitantes, sendo a maior parte da população
pequenas que necessitam dos bens e
urbana e seu IDH é 0,778 (IBGE, 2010).
serviços oferecidos pelas cidades médias, e
com as cidades grandes que desempenham Segundo o IBGE, o setor terciário ocupa
papéis de integração nacional ou 53,2% do total da população
internacional. O autor relata que as cidades economicamente ativa varginhense, o setor
médias têm sido escolhidas como “pontos de secundário ocupa 34,3% e o setor primário
apoio de diferentes tipos de empresas, sejam apenas 12,5%. Além disso, o município de
de ramos industriais ou de ramos comerciais, Varginha possui o quarto maior PIB da Região
em suas políticas de desconcentração das do Sul de Minas e um dos maiores do estado
atividades produtivas e de expansão das de Minas Gerais.
redes de comercialização de bens e
O município possui o Porto Seco Sul de
serviços”.
Minas, que consiste em uma estação
No panorama brasileiro, onde a aduaneira do interior (EADI). Na cidade,
industrialização concentrava-se ao redor da existem diversas empresas que atuam na
cidade de São Paulo, Caiado (2004) afirma área de comércio exterior, e que trabalham
que houve ampliação da área de localização diretamente com serviços de importação e
industrial ocasionada pela expansão da exportação, fator que influenciou grandes
produção em setores tradicionais e em menor empresas multinacionais a montarem
proporção pela “extrapolação das fronteiras unidades na cidade e região, como Philips-
estaduais e localização em estados vizinhos a Walita, Philips Lighting, CooperStander,
São Paulo” (especialmente no sul de Minas, Coletek, Plascar, dentre outras, resultando em
norte do RJ e no Paraná), “incorporação de um total de 5.271 empresas atuantes em
novos espaços produtivos” (Centro-Oeste e Varginha.
alguns Estados nordestinos) e “consolidação
Fonte: figura elaborada pelas autoras, a partir de dados do Google Earth Pro – versão 7.3(2016).
A partir da observação direta, percebe-se que Um dos distritos industriais varginhenses que
a maioria dos distritos industriais de Varginha mais vem se destacando devido,
localizam-se próximos a rotas de fácil acesso principalmente, à sua localização é o Distrito
para o aeroporto de Varginha e/ou para a BR- Industrial Cláudio Galvão Nogueira. Este
381, principal ligação entre as regiões distrito originou-se em 1998 para a
metropolitanas de Belo Horizonte e São Paulo. implantação de uma filial da indústria Philips
A rodovia faz parte de um dos mais do Brasil Ltda, que ocorreu em de 1999. A
importantes eixos de transporte de cargas partir de 2005, por meio da lei municipal
(principalmente carne bovina, produtos nº4379/2005, o local foi ampliado. Outras
industrializados, móveis, veículos, grãos, aço desapropriações visando a ampliação do
e madeira) e de passageiros de todo o Brasil, distrito ocorreram no decorrer do tempo.
passando por municípios de médio porte
Na figura 3 é possível observar que além da
como Lavras, Varginha, Três Corações, Santa
indústria Philips do Brasil Ltda, existiam outras
Rita do Sapucaí, Pouso Alegre e Extrema, no
três empresas menores, sendo uma
Sul de Minas.
concessionária de caminhões e duas
empresas, no ano de 2003.
Figura 3 – Ocupação e uso do solo no Distrito Industrial Cláudio Galvão Nogueira em 2003.
Fonte: figura elaborada pelas autoras, a partir de dados do Google Earth Pro – versão 7.3(2016).
Figura 4 - Ocupação e uso do solo no Distrito Industrial Cláudio Galvão Nogueira e Condomínio
Industrial
Fonte: figura elaborada pelas autoras, a partir de dados do Google Earth Pro – versão 7.3 (2016).
foi ocupado inicialmente por três armazéns de 925 m de altitude, em posição estratégica,
café. As empresas produtoras já possuíam operando no cruzamento das rotas Rio -
instalações em regiões centrais da cidade, no Brasília e Belo Horizonte - São Paulo. Sua
entanto, o objetivo da transferência foi reduzir pista possui 2.100 metros de extensão por 30
o tráfego de caminhões no interior do espaço metros de largura, e nela é possível a
urbano varginhense, melhorando tanto o operação de aviões do porte Fokker-100, com
trânsito urbano quanto a circulação da capacidade para 122 passageiros. Devido à
produção cafeeira por meio do modal sua localização estratégica, o aeroporto de
rodoviário. Varginha vem se destacando na região como
local de logística adequada para centros de
O espaço delimitado pelos dois ambientes
distribuição, empresas de grande porte e
industriais conta com empresas como: Philips
comércio exterior.
do Brasil Ltda-Divisão Walita, Philips Lighting,
CRW, Wellus Brasil, FBM Transportes Ltda, Através da recente instalação do Condomínio
Nova Página, Trans-Lume, Dexcom, Enermax Industrial Tecnológico (CIT) próximo ao sítio
Sistema de Energia, Armazéns Gerais Leste aeroportuário, da construção da cidade
de Minas, entre outras. universitária do UNIS e da locação de
grandes empresas relacionadas com o setor
Devido à localização estratégica de Varginha
agrícola, principalmente cafeeiro, nota-se que
em relação ao eixo São Paulo - Belo Horizonte
há a intenção de ocupar as áreas próximas ao
- Rio de Janeiro, região de grande
aeroporto com atividades voltadas para o
importância para o território nacional, aliada à
setor de logística das indústrias e do setor
localização do distrito industrial em estudo,
agrícola da região. Além disso, existe a
percebe-se que houve a atração significativa
conexão com um polo de ensino,
de indústrias para o local.
configurando assim, o aeroporto como indutor
Ao analisar as edificações industriais entre os do desenvolvimento da região e criando base
anos de 2003 e 2015, nota-se o crescente para a implantação do conceito de aeroporto-
investimento em infraestrutura da área, além cidade.
do aumento e ampliação das ocupações. O
Segundo Vasconcelos (2007), o termo
ambiente industrial se expande às margens
aeroporto-cidade resume o novo perfil
da BR-491, buscando principalmente
aeroportuário do século XXI. O aeroporto é
acessibilidade e conectividade com a BR-381,
administrado como um negócio com o intuito
como forma de otimizar a circulação de
de desenvolver socioeconomicamente a
matéria prima e produtos finais destas
região na qual está inserido. Ao redor do
empresas.
aeroporto em si são construídos hotéis,
O local compreende cada vez mais aspectos shopping centers, parques industriais e
relacionados às funções de articulação e a tecnológicos, centros de convenções, entre
posição geográfica que desempenha na rede outras edificações, unindo, as atribuições de
urbana regional, nacional e internacional, um terminal aeroportuário com as
resultando em um receptor de investimentos características de shopping center, com
públicos e privados instigante para o setor comércio diversificado, restaurantes, áreas de
industrial e para a gestão urbana no que lazer, além de serviços de logística de carga
tange à urbanização do espaço. aérea.
No âmbito da infraestrutura de acesso a estes
locais, os investimentos em transporte e a
6. SURGIMENTO DE UM NOVA
diversificação dos modais são válidos, uma
CENTRALIDADE
vez que a melhoria do transporte poderá
Com intuito de implantar um ponto estratégico gerar um crescimento da região e o
à prestação de informações aéreas do desenvolvimento dos municípios ao seu
território brasileiro, o aeroporto de Varginha, entorno.
nomeado Major Brigadeiro Trompowsky, foi
Em 2003 já existiam edificações ao redor do
construído em 1948.
sítio aeroportuário (Figura 5). No entanto, tais
Situado a 5 km do centro da cidade na edificações consistiam em residências,
direção sudoeste, o sítio aeroportuário tem fazendas e apenas alguns armazéns de
como acesso principal a Rodovia BR-491 que grande escala.
liga Varginha à Elói Mendes e localiza-se a
Fonte: figura elaborada pelas autoras, a partir de dados do Google Earth Pro – versão 7.3 (2016).
Fonte: figura elaborada pelas autoras, a partir de dados do Google Earth Pro – versão 7.3
Ao comparar as imagens aéreas obtidas nos atração de alguns setores para o local. Após
anos de 2003 e 2015, observa-se que houve a a nova configuração espacial dinamizada
pelo aeroporto e porto seco, diversas da região. Além disso, a Rodovia Fernão Dias
empresas logísticas vêm ocupando áreas que localiza-se próxima ao acesso de
próximas, e as já existentes ampliaram suas Varginha, consiste em um importante eixo de
edificações. Além disso, atualmente a cidade distribuição de produtos e equipamentos no
universitária do Centro Universitário do Sul de eixo São Paulo - Belo Horizonte.
Minas (UNIS) encontra-se implantada à
A alta concentração de indústrias no Sul e
margem oposta da BR-491 em relação ao sítio
Sudoeste de Minas Gerais, demanda
aeroportuário. Observa-se também, através
estratégias de planejamento que visem a
da figura 6, que diversos lotes vagos vêm
otimização da logística de transporte na
sofrendo intervenções no solo com intuito de
região. No caso estudado, as indústrias
construir novas edificações, resultando assim
possuem como única alternativa para o
na expansão da urbanização da área.
escoamento da sua produção o transporte
Os equipamentos situados no local vêm rodoviário através da Rodovia Fernão Dias,
desempenhando o papel de articuladores do que se encontra com sua capacidade
espaço, incentivando a ocupação e uso do saturada.
solo principalmente pelo setor logístico e
As atuais instalações do Porto Seco Sul de
industrial. Deste modo, atuam como
Minas, importante centro de importação e
ferramentas logísticas para as empresas da
exportação de produtos (matérias primas e
região além de atrair investimentos para este
produtos) para as indústrias da região,
mesmo local. Este novo panorama espacial
incentivam o armazenamento no local uma
transforma-o em um elemento precursor do
vez que sua utilização torna-se mais barata
desenvolvimento regional, impulsionando a
quando comparada ao valor gasto em portos
geração de empregos e rendas e atraindo
marítimos (JORNAL DA EPTV, 2015). Aliado
outros tipos de investimentos decorrentes de
ao sítio aeroportuário e considerando o
prestações de serviços necessárias ao
transporte aéreo de cargas como alternativa
funcionamento de tais equipamentos.
logística, o espaço é capaz de promover o
desenvolvimento regional resultando em um
local de atratividade tanto para indústrias
7. NOVA CONFIGURAÇÃO DO ESPAÇO
quanto para empresas de serviços
URBANO VARGINHENSE
relacionados o aeroporto e demais empresas
As alterações que vêm ocorrendo no espaço para suprir as necessidades destas últimas,
urbano varginhense são impactadas pois Varginha é equidistante via aérea das
especialmente pela localização geográfica de três capitais do Sudeste: São Paulo, Belo
Varginha. A equidistância entre Varginha e as Horizonte e Rio de Janeiro. Portanto, o
seguintes capitais: São Paulo (316 Km), Belo planejamento e adequação do espaço urbano
Horizonte (313 Km) e Rio de Janeiro (390 Km) de Varginha alavancaria o desenvolvimento
favorece a logística industrial, potencializando econômico e social do município.
a atração de investimentos para a economia
como pode ser observado no Art. 127 e 128, e Diretor (1996), resulta em empecilhos ao
à integração regional, Art. 138. desenvolvimento urbano varginhense. Isto
gera como consequência obstáculos a
Art. 127. As infraestruturas
aplicação da legislação de forma efetiva, pois
aeroportuárias deverão ter seu entorno
as leis complementares encontram-se em total
preparado para a instalação de atividades
defasagem temporal e espacial em relação à
econômicas que possam beneficiar-se dessa
cidade que existia em 2006 e
localização, evitando-se a presença de
consequentemente ao cenário atual.
residências, escolas e hospitais;
Para que a eficácia do plano seja retomada, é
Art. 128. Os serviços aduaneiros de
necessário que a próxima revisão institua
interior devem ter áreas no seu entorno
formas de planejamento e controle do
reservadas para estocagem e manuseio de
território municipal. Aliadas à segunda
cargas;
revisão, a gestão urbana, a gestão municipal
Art. 138. Os sistemas de e os munícipes podem utilizar os potenciais e
armazenamento e beneficiamento de limitações do espaço da cidade. As
matérias-primas, bem como as atividades potencialidades existentes pelas redes de
aduaneiras de interior são suportes para o transporte e logística no território varginhense
papel de polo regional exercido por Varginha podem alavancar outro vetor de crescimento
e que poderá ser ampliado com extensão e desenvolvimento para a cidade. Devem ser
dessas atividades. incorporados nas discussões da segunda
revisão, em processo de elaboração, os
No entanto, como a legislação complementar
diversos agentes sociais, econômicos e
à primeira revisão do Plano diretor de
políticos que compõem a estrutura urbana,
Varginha - o Perímetro Urbano do Município
buscando compromissos e definindo ações
(2.613/1995; 3.128/1999), a Lei de Uso e
prioritárias.
Ocupação do Solo (3.181/1999), a Lei de
Parcelamento (4.990/2008; 2.867/1997; Além disso, nas proximidades de Varginha,
2.558/1995), o Código de Obras (3.006/1998 – localizam-se as cidades de Três Corações,
obras habitacionais; 3.068/1998 – obras não Três Pontas e Elói Mendes que possuem uma
habitacionais), o Código de Posturas integração urbana com o município
(2.962/1997) e o Plano Municipal de varginhense causada pela localização do
Circulação e Transporte (2.869/1997) - não foi aeroporto, do Porto Seco Sul de Minas, dos
revista em 2006, ou seja permanece a mesma distritos industriais e pelos serviços oferecidos
desde a sua elaboração junto com o Plano em Varginha.
Esse fato gera como consequência o aumento grandes cidades e metrópoles para cidades
de infraestrutura e ampliação da cidade de menores, uma vez que o avanço das
Varginha em direção às três demais cidades telecomunicações permite o distanciamento
citadas de acordo com o tipo de uso do solo entre o centro de decisão – a direção
próximo a cada uma delas. Três Corações administrativa – e a indústria em si,
localiza-se próximo à Rodovia Fernão Dias e diminuindo assim os custos de implantação.
observa-se o crescimento industrial e logístico
Em virtude da localização estratégica
de Varginha para tal direção. Elói Mendes
associada à rodovia Fernão Dias (BR-381) e
está situada próxima ao aeroporto de
proximidade de grandes centros como São
Varginha e ao condomínio industrial
Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte,
tecnológico, sendo o crescimento da cidade
empresas de grande porte e de vários setores
de Varginha no sentido de Elói Mendes
instalaram unidades na região do Sul de
baseado em armazéns logísticos e algumas
Minas Gerais.
indústrias, além do crescimento educacional
associado à construção de um centro A rodovia Fernão Dias tem uma importância
universitário no local. Enfim, observa-se que o fundamental na região, pois faz parte do mais
crescimento de Varginha rumo a Três Pontas, relevante eixo rodoviário nacional, aliado à
por situar-se mais afastada dos locais BR-116, interligando os três principais
caracterizados pelo setor industrial e logístico, estados do Brasil e da região Sudeste,
é basicamente residencial e ainda bastante transformando-se em um corredor de
rural por concentrar a região produtora de transporte tanto para o mercado interno como
café. para a exportação.
Diante disso, é necessário a adequação e O município de Varginha foi um dos mais
atualização da legislação urbanística de influenciados pela rede de fluxos
Varginha em relação à configuração espacial estabelecidos pela BR-381, e passou a
em expansão da cidade a fim de evitar futuros polarizar uma série de serviços e indústrias,
contratempos ao desenvolvimento urbano e aumentando o seu peso não só na
regional e também incentivar o progresso microrregião da qual é centro, mas também
industrial e logístico local. na mesorregião do Sul de Minas.
Este trabalho visa compreender a
configuração espacial do setor industrial
8.CONSIDERAÇÕES FINAIS
varginhense, pois devido à reestruturação
Devido à globalização, o mundo vive uma produtiva, observa-se a existência de uma
nova realidade produtiva e tecnológica que nova conformação do espaço urbano de
inclui novos fatores de concorrência e Varginha no intuito de obter cada vez mais
determina novas condições de localização acessibilidade e conectividade com a região
das atividades de produção. As cidades e o restante do país.
passam a influir nas opções estratégicas das
Através da pesquisa, buscou-se entender o
indústrias a partir de posicionamentos
fluxo industrial de Varginha e região e os
urbanos, fiscais, econômicos e sociais.
impactos da reestruturação produtiva no local
Além disso, a preocupação com os fluxos, a a fim de criar meios de otimização do
acessibilidade de pessoas e mercadorias, a planejamento e da gestão urbana do
mobilidade interna, entre outros, estão município.
resultando na migração de empresas das
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Capítulo 19
Samara Braun
Juarês José Aumond
retroalimentação positiva, que repercute nos global em temperaturas não superiores a 2°C
elementos componentes do sistema e nos acima das temperaturas pré-industriais. Já o
demais sistemas do universo interativo Cenário RCP 8.5 tem por base que nenhum
(GELBSPAN, 1999; LABOURIAU, 1998; esforço adicional seria realizado para reduzir
TAVARES, 2004). as emissões de GEE, além daquelas em vigor
atualmente, e considerando o crescimento
De acordo cm o 5º Relatório do Painel
das emissões globais, impulsionado pelo
Intergovernamental sobre Mudanças
crescimento da população mundial e
Climáticas (do inglês, Intergovernmental Panel
atividades econômicas. O quadro a seguir
on Climate Change - IPCC) de 2014, a
(Quadro 1) apresenta uma síntese dos
influência humana sobre o sistema climático é
principais impactos conforme os cenários do
cada vez mais evidente, sendo muitas
IPCC.
mudanças observadas ao longo das últimas
décadas, como o aumento da temperatura- Se tratando diretamente da elevação do nível
da atmosfera e dos oceanos - diminuição do do mar, pelas medições maregráficas,
volume global de neve e gelo, e o aumento durante o período de 1901 a 2010, constatou-
médio global do nível do mar. Entretanto, além se o aumento médio global de 0,19m. As
das transformações já observadas, e das projeções do IPCC (2014) para o século XXI
transformações em curso, a emissão contínua mostram que o fenômeno será ainda mais
de GEE causará ainda mais aquecimento e acelerado, com previsões de até 0,82m até
mudanças em todos os componentes do 2100, continuando a subir mesmo que as
sistema climático, ampliando emissões de GEE sejam reduzidas. Apesar
consideravelmente a probabilidade de graves das variações ao longo dos períodos
e novos impactos difusos e irreversíveis. geológicos, nunca a variação foi tão rápida
Diante deste cenário, fica evidente a como aquela a que se prevê. Este aumento se
vulnerabilidade66 e exposição de alguns espacializa de maneira diferenciada no
ecossistemas e sistemas humanos à entorno do globo e cerca de 70% das zonas
variabilidade climática. Especificamente em costeiras do globo serão impactadas
áreas urbanas, as mudanças climáticas incluindo o litoral brasileiro. A elevação do
interferirão sobre a qualidade de vida por nível do mar acarretará impactos de formas
meio dos riscos de estresse ocasionado pelo diferenciadas ao longo das costas, desde
calor, tempestades e precipitação extrema, simples inundação ao recuo das linhas de
inundações costeiras, deslizamentos de terra, orla; o recuo de biota; invasão dos aquíferos
poluição do ar, a escassez de água e de água doce por água salgada (gerando
elevação do nível do mar, tornando ainda águas mixolinas); interferência na
mais vulneráveis as localidades desprovidas macrodrenagem de águas interiores,
de infraestrutura básica e serviços, ou em ocasionando alagamentos e fenômenos de
áreas de exposição direta aos impactos. enchentes; e ainda, poderá interferir nas
redes de abastecimento de água e
No intuito de elucidar os impactos
saneamento básico; impacto sobre
decorrentes das mudanças climáticas para as
populações costeiras e ecossistemas, entre
próximas décadas e até o final do século, o 5º
outras diversas consequências (GESCH,
Relatório do IPCC (2014) apresenta quatro
2009; IPCC, 2014; KOPP, et al., 2014;
possíveis cenários (denominados RCP), que
LABOURIAU, 1998).
variam desde o cumprimento rigoroso de
medidas de mitigação, até o cenário possível
caso os modelos vigentes de
desenvolvimento e crescimento econômico e
populacional se mantenham (IPCC, 2014;
MOSS, et al., 2010). Neste sentido, cabe
diferenciar os cenários RCP 2.6 e RCP 8.5. O
Cenário RCP 2.6 tem por premissa que sejam
cumpridas as metas para rigorosa mitigação,
com o objetivo de manter o aquecimento
66
“A vulnerabilidade indica o quanto existe de
inabilidade para lidar com os efeitos adversos das
mudanças climáticas e depende da sensibilidade e
da capacidade de adaptação dos sistemas”
(TAVARES, 2004, p. 70).
Aumento da temperatura média De 0,3 °C a 1,7 °C De 1,1°C a 2,6°C De 1,4°C a 3,1°C De 2,6°C a 4,8ºC
global
Ph da superfície dos oceanos – 0,06-0,07 0,14-0,15 (38 a 0,14-0,15 (38 a 0,30-0,32 (100 a
acidificação dos oceanos (aumento de 15 a 41% de aumento 41% de aumento 109% de aumento
17% da acidez), da acidez). da acidez) da acidez)
Kopp et al. (2014) em sua pesquisa levantam neste século, as projeções realizadas
diferentes projeções de aumento médio global apresentam resultados próximos, embora,
do nível do mar, tanto para este século como mais elevados que os cenários apresentados
para os próximos. A síntese desta pesquisa é pelo relatório do IPCC de 2014.
esboçada na figura 2, demonstrando que
68
TailRisk: os limites de variação que excedem
para mais ou para menos as projeções realizadas,
a probabilidade de um evento.
Este impacto da elevação do nível do mar se processos e estrutura (GILMAN, et al., 2008).) e
expressa no avanço da lâmina d’água e persistência (refere-se a constância ao longo do
poderá também ser observado por meio de tempo, independentemente da perturbação
alterações nas dinâmicas de remanso, ambiental (ALONGI, 2007)) destes ecossistemas,
alteração nos fenômenos de maré alta, na e logo, os serviços ambientais prestados por
intrusão salina sobre lençóis freáticos, estes (ALONGI, 2007; KIRWAN, et al., 2010;
interferência em sistema de drenagem urbana IPCC, 2014; BRASIL, 2016).
e de saneamento básico, modificação
pedológica - tornando os solos mais O estresse sobre os mangues da baía poderá
alagadiços e menos aptos à algumas causar a supressão deste ecossistema,
atividades agropecuárias - e suscetível a expondo diretamente as áreas urbanas à
danificar infraestruturas – como estradas e processos erosivos, aumento das áreas
infraestruturas subterrâneas. inundadas e interferência na qualidade de
vida, das águas costeiras e biodiversidade da
Neste detalhe da região central da cidade, baía, afetando habitats e causando a redução
observa-se a existência de sítios da biodiversidade, impactando inclusive as
arqueológicos, alguns fora da área de avanço comunidades humanas que dependem dos
da lâmina d’água. Tratam-se de sítios de serviços ambientais prestados pelos
Sambaquis, construções artificiais feitas por manguezais. A supressão destas áreas de
populações pré-históricas de pescadores- mangues implicará também em liberação de
coletores-caçadores que ocuparam a costa grandes quantidades de carbono
brasileira entre 7.000 e 1.000 anos. A armazenado por este ecossistema. Porém, o
existência destes sítios é um dos indicadores oposto é de suma relevância. A conservação
das antigas posições dos níveis marinhos, dos mangues trará benefícios que se
pois parte-se da premissa de que as bases estendem às cidades através de alguns dos
dos sítios, no início de sua construção, serviços ambientais prestados, como a
estavam em zonas acima da linha de maré capacidade de sequestro de carbono,
alta e em sua maioria sobre substrato seco, conservação da biodiversidade, meio de
mas próximos à linha de costa da época subsistência de comunidades tradicionais e
(SCHEEL-YBERT, et al., 2009; BRASIL, 1988). proteção da costa contra erosão e impacto
Cabe destacar também que os ecossistemas das ondas e diminuição da vulnerabilidade.
de mangues serão impactados pelas
mudanças climáticas. Os ecossistemas
apresentam certa flexibilidade de adaptação 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
à distúrbios ou interferências, levando o Aprojeção de cenários por meio de
sistema natural de volta ao equilíbrio. cartografia pode ser um meio significativo de
Entretanto, as flutuações ecológicas ocorrem representação de situações passíveis de
entre limites de tolerância (CAPRA, 1996). acontecer, diminuindo a ‘imprevisibilidade’ de
Neste caso, devido à falta de espaço para certas situações. Assim também os cenários
migração dos mangues devido a ocupação de prognósticos das mudanças climáticas
urbana, a elevação do nível do mar afetará a possibilitam uma análise de possíveis
capacidade de resiliência (capacidade de um situações futuras, configurando uma
mangue migrar naturalmente e de absorver e ferramenta relevante para o planejamento das
reorganize-se de forma a manter as suas funções, comunidades e das cidades. A relevância
[10] CHOAY, Françoise. A regra e o modelo: [22] MOSS, Richard. H. et al. The next
sobre a teoria da arquitetura e do urbanismo. São generation of scenarios for climate change
Paulo: Perspectiva, 1985. research and assessment. Nature, v. 463, p. 747-
756, fev. 2010.
[11] CMMAD, Comissão Mundial para o Meio
Ambiente e Desenvolvimento. Nosso Futuro [23] MOURA, Ana Clara M. Geoprocessamento
Comum. Geneva, Switzerland: [s.n.], 1987. na gestão e planejamento urbano. 2ª. ed. Belo
Disponível em: <http://www.un-documents.net/ocf- Horizonte: Editora da autora, 2005.
02.htm#I>. Acesso em: 27 out. 2016. [24] MULLER, Cristiane R.; OLIVEIRA,
[12] GELBSPAN, Ross. O calor vem aí: a Francisco H. de.; SCHARDOSIM, Patrícia R. A
batalha contra a ameaça do clima. Tradução de ocupação em Joinville/SC e o papel da gestão
Maria Alice Costa. Lisboa: Editorial Bizâncio, 1999. municipal para mitigação de danos causados por
inundações. RBPD - Revista Brasileira de
[13] GESCH, Dean B. Analysis of Lidar Planejamento e Desenvolvimento, 1, jul/ dez. 2012.
elevation data for improved identification and 23-39. n.1.
delineation of lands vulnerable to sea-level rise.
Journal of Coastal Research, p. 49-58, 2009. [25] OLIVIER, Julia; PROBST, Kirsten;
Special Issue No. 53. RENNER, Isabel; RIHA, Klemens. Adaptação
baseada nos Ecossistemas (AbE): Uma nova
[14] GILMAN, Eric. L.; ELLISON, Joanna; abordagem para antecipar soluções naturais
DUKE, Norman C.; FIELD, Colin. Threats to conducentes a uma nova adaptação às mudanças
Capítulo 20
1. INTRODUÇÃO
Atualmente o mundo observa dois fenômenos conceito se aplica tanto aos indivíduos quanto
demográficos sem precedentes: a aos grupos da população.
urbanização e o envelhecimento populacional
Ao envelhecer o indivíduo começa a
(RIBEIRO & PAÚL, 2011; ONU, 2003; OMS,
apresentar limitações que podem influenciar a
2009; MUENZ, 2007; KALACHE et al., 1987).
sua interação com o ambiente no qual está
O aumento da expectativa de vida é resultado
inserido. Cada modificação fisiológica pode
de ganhos fundamentais na saúde pública e
acarretar restrições diferentes frente ao uso
nos padrões de vida, no entanto à medida
do espaço e dos equipamentos, porém este
que as cidades crescem, aumentam os
processo não impede que os idosos
desafios dos gestores públicos, em atender
conheçam novos lugares e desenvolvam
satisfatoriamente o novo perfil demográfico
atividades de lazer, desde que estes espaços
que se apresenta, nas áreas sociais,
sejam seguros, acessíveis e confortáveis
econômicas e de saúde, bem como repensar
(DORNELES, ELY & PEDROSO, 2006).
a infraestrutura das cidades para que sejam
seguras, acessíveis e que propiciam O homem busca interagir com seus pares em
qualidade de vida para todos (RIBEIRO & diversos ambientes, entre eles pode-se
PAÚL, 2011; OMS, 2009). destacar o espaço público urbano, que por
sua natureza social e coletiva, pode ser
Segundo dados da Organização das Nações
utilizado por pessoas de culturas, idades e
Unidas (ONU), no ano de 2010, o número de
grupos sociais diversos, o que lhe atribui um
pessoas com mais de 60 anos correspondia a
caráter universal e torna-o um espaço
11% da população mundial, com projeção de
multifuncional. Todavia para que estes
chegar a 21,8% em 2050. Os dados também
espaços sejam seguros e acessíveis, faz-se
mostram que em 2050, 68% da população
necessário que os elementos que o compõem
mundial viverá nas cidades (OMS, 2009).
estejam normatizados e apropriados a todos
Em relação às políticas públicas dirigidas à as idades (FRANCISCO, 2005).
população idosa foi aprovada no ano de
Envelhecer ativamente é um processo no qual
2002, durante a segunda Assembleia Mundial
todas as pessoas estão inseridas e é uma
sobre o Envelhecimento, realizada em Madrid,
tarefa ao longo da vida. Cabe à sociedade a
uma nova declaração política e um novo
responsabilidade de produzir espaços e
plano de ação que tem orientado a adoção de
equipamentos sociais, seguros, variados e
medidas normativas sobre o envelhecimento
acessíveis aos mais velhos, garantir e
neste século (CAMARANO &PASINATO,
fomentar a sua participação cívica, em todos
2004). Este plano está baseado em três
os níveis de decisão (PAÚL, 2005).
princípios:
A evolução histórica do espaço público, de
Participação ativa dos idosos na acordo com Alves (2003), nos proporciona
sociedade, no desenvolvimento e na luta uma considerável variedade de espaços
contra a pobreza;
diferenciados, de fronteiras bem definidas,
Fomento da saúde e bem-estar na inseridos ou desviados dos modelos de
velhice: promoção do envelhecimento localização estratégica, a nível internacional.
saudável ao longo da vida; As praças, como vazios na malha urbana,
Criação de um ambiente propício e marcam a estrutura das cidades e que,
favorável ao envelhecimento seguro que associadas a conjuntos arquitetônicos,
promova a solidariedade entre gerações. funcionam como lugares de descompressão
ao proporcionarem uma quebra na paisagem
Nesta assembleia foi reforçado o conceito de urbana. Toda cidade tem uma praça que se
envelhecimento ativo que é "o processo de destaca como um símbolo urbano, espaço
otimização das oportunidades de saúde, agregador, palco de eventos históricos ou
participação e segurança, com o objetivo de local de confluência social (CALDEIRA, 2007).
melhorar a qualidade de vida à medida que
as pessoas ficam mais velhas" (OMS, 2005). Considerando que:
Ser um idoso ativo consiste em participar na Os idosos corresponderão a 21,8% da
vida social, cultural, religiosa, econômica e população mundial em 2050.
cívica, no ambiente onde está inserido, e não
apenas a capacidade de ser fisicamente ativo Um dos princípios propostos pela
ou de participar no mercado de trabalho. Este ONU em 2002 é a criação de ambientes
Fonte: https://maps.google.com.br/maps?hl=pt-BR&q=mapa+de+santa+catarina+e+floripa&ie=UTF-
8&ei=5Wo4UYmXKeHm7AbK1ICwCg&ved=0CAgQ_AUoAg
Legenda: Escolaridade 1 refere-se a sem estudo; Escolaridade 2 refere-se a escola primária; Escolaridade 3
refere-se ao ginasial; Escolaridade 4 refere-se ao profissionalizante; Escolaridade 5 refere-se ao ensino
superior.
Fonte: Construção dos autores
Observa-se ainda que 70% dos entrevistados 5.2.1 PERCEPÇÃO DOS IDOSOS AO NÍVEL
são reformados ou pensionistas, com renda DO PILAR SAÚDE
bruta acima de três salários mínimos (45,5%),
O pilar saúde da política de envelhecimento
sendo que 25,5% recebem um salário e 25%
ativo da OMS baseia-se em manter os fatores
recebem dois salários. Quanto ao tempo de
de riscos comportamentais e ambientais, de
residência junto ao espaço público estudado
doenças crônicas e de declínio funcional, em
verifica-se que 78% moram distantes das
níveis baixos, elevando-se os fatores de
praças objeto de estudo.
proteção, de modo a promover uma melhor
qualidade de vida para os idosos, com saúde
e capazes de cuidar de si à medida que
5.2. ANÁLISE DA PERCEPÇÃO DOS
envelhecem e os que necessitam de cuidados
IDOSOS SOBRE O ESPAÇO PÚBLICO
devem ter acesso a uma gama de serviços
"PRAÇA"
sociais e de saúde que atendam às suas
Para a análise da percepção dos idosos necessidades e direitos (OMS, 2005).
sobre o espaço público de interação social
Os entrevistados responderam sobre sua
"Praça", aplicou-se o questionário
percepção em relação a sua própria saúde e
desenvolvido pela pesquisadora tomando
autonomia, como a seguir:
como base os pilares da política de
envelhecimento ativo da OMS, quais sejam, a A maioria dos idosos entrevistados na cidade
otimização das oportunidades de segurança, de Florianópolis (70%) estão satisfeitos e 19%
saúde e participação dos idosos. mais ou menos satisfeitos com sua condição
de saúde física. Este dado reflete uma
independência destes indivíduos para as
atividades da vida diária (Figura 7).
Quando questionados sobre sua satisfação ao tarefas que um indivíduo precisa realizar para
nível de saúde mental, verifica-se que 86,5% cuidar de si, tais como: tomar banho, vestir-
estão satisfeitos e 8,5% encontram-se mais ou se, andar, comer, ir ao banheiro, passar da
menos satisfeitos com sua saúde mental, cama para a cadeira, mover-se na cama e ter
refletindo possivelmente alguma perda da continências urinária e fecal, e as atividades
autonomia para tomar as decisões sobre a instrumentais de vida diária (AIVD), que são
condução de sua vida. as habilidades do indivíduo em administrar o
ambiente em que vive, tais como: preparar
Foi perguntado aos entrevistados se eles
refeições, fazer tarefas domésticas, usar o
ainda teriam capacidade para trabalhar de
telefone, tomar medicações, lavar roupas,
forma voluntária ou não. Ainda na Figura 7,
manusear dinheiro, fazer compras e utilizar os
pode-se observar que 71% estão satisfeitos
meios de transporte (OKUMA, 1998).
com sua capacidade para o trabalho, no
entanto percebe-se que 28% Verifica-se na Figura 8 que os idosos
desconsideraram esta capacidade, quer residentes em Florianópolis estão satisfeitos
sejam porque estão já aposentados e/ou com a realização das AVD (95,5%), o mesmo
porque não se envolvem com as atividades se repete quando perguntados sobre sua
voluntárias na comunidade em que residem. satisfação com a rotina fora de casa,
principalmente atividades de lazer, com 95%.
Atividades do dia-a-dia são consideradas as
atividades de vida diária (AVD), que são as
Quanto ao grau de satisfação financeira dos 5.2.3 PERCEPÇÃO DOS IDOSOS AO NÍVEL
entrevistados tem-se na Figura 12 que 56,5% DO PILAR PARTICIPAÇÃO
dos entrevistados estão satisfeitos, 28% estão
O pilar participação social refere-se ao apoio
insatisfeitos e 14,5% estão mais ou menos
dado pelo mercado de trabalho, o emprego, a
satisfeitos.
educação, as políticas de saúde e sociais e
os programas que permitem uma participação
integral do idoso em atividades
socioeconômicas, culturais e espirituais,
garantindo seus direitos humanos
Foi perguntado aos entrevistados se eles 14 mostra que 55,5% dos idosos não se
estavam satisfeitos em participar nas interessam, segundo eles, em participar
atividades culturais, religiosas, de lazer da nestas atividades.
comunidade onde estão inseridos. A Figura
Infelizmente ainda não se tem grandes cidade para a realização de atividades físicas,
experiências da participação voluntária de culturais e de lazer. Na Figura 15 verifica-se
idosos na comunidade, mas tem crescido as que 10% não opinaram, 53% estão satisfeitos,
oportunidades com a adoção de centros de 25,5% estão insatisfeitos e 11,5% estão mais
convívio de idosos. ou menos satisfeitos.
Perguntou-se aos entrevistados se estavam
satisfeitos com os locais disponíveis na
Quando perguntados se faziam algum 31,5% consideraram que esta questão não se
exercício físico sós ou acompanhados, os aplica a eles, seja por incapacidade para a
entrevistados responderam, de acordo com a atividade física ou porque não se interessam
Figura 16 que, 53% estão satisfeitos, mas por este tipo de atividade.
[6] DORNELES, V.G., BINS ELY, V.H.M. & [16] ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE.
PEDROSO, E.S.R. A inserção do idoso no espaço Envelhecimento ativo: uma política de saúde. World
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2005. 60p.: il.
[7] FERRAZ, S. Compreender o espaço
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[8] FRANCISCO, M. D. Espaço Público
es2009.pdf Acesso em 12/04/2011.
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Participada. Actas x Colóquio Ibérico de [18] PAÚL, C. Envelhecimento activo e redes
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[19] PAÚL, C. Envelhecimento e ambiente. In
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[24] SERDOURA, F. (2007). As dimensões do
[13] MUENZ, RAINER. Aging and Demographic
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1/FAUTL_13_D_FSerdoura.pdf Acesso em 16/11/11
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703. Social Protection, World Bank, 2007.
[25] WORLD HEALTH ORGANIZATION. Global
[14] OKUMA, S. S. O idoso e a atividade física:
age-friendly cities: a guide. Ageing and Life
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Course, Family and Community Health. French,
1998.
2007. ISBN 9789241547307.
[15] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS.
Plano de ação internacional para o
envelhecimento, 2002/ONU. Tradução de Arlene
Santos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos
Humanos. 2003, 49p.
Capítulo 21
Tiago Balem
Por outro lado, no eixo econômico (figura 4 e temporariamente em vazios urbanos, espaços
5), proliferam ações comerciais temporárias deteriorados, edifícios abandonados ou
em busca de novos formatos para produção mesmo em espaços públicos convencionais,
de renda, oportunidades de espaços de valendo-se da condição atmosférica do lugar
criação, visibilidade ao trabalho e e de sua vacância como elemento de seu
experiências de consumo. Os grupos que projeto.
praticam estas ações investem
Figura 5. Larkin Square, em Buffalo, Nova Iorque, hospeda eventos de food truck e concertos,
transformando uma área industrial abandonada em um espaço vibrante.
a necessidade de lidar com a fluidez espacial, Insurgent Public Space, Tatical Urbanism,
que leva ao cabo as atividades diárias a Occupy, Temporary City, Post-it-City,
qualquer lugar e a qualquer hora, há a Handmade Urbanism e Microplanejamento
necessidade de se pensar um urbanismo Urbano.
também em estado fluído. As formas fluidas e
Placemaking é uma palavra da língua inglesa
cambiantes no urbanismo ocorrem no espaço
e poderia ser traduzida como "fazer lugares".
que dá suporte às práticas sociais por meio
O termo foi cunhado pelo Project for Public
da co-habitação de múltiplas funções
Space – PPS75, uma organização sem fins
continuamente flexibilizadas e resiginificadas.
lucrativos criada em 1975 e com base em
É essa efemeridade transitória que confere ao
Nova Iorque, mas com atuação mundial.
espaço urbano contemporâneo seu caráter
Através do Placemaking Leadership Council
fluido.
(Conselho de Lideranças em Placemaking), a
PPS está trabalhando na criação de uma rede
que conta com cerca de três mil comunidades
3. MICROURBANISMO EFÊMERO – UMA
em quarenta e sete países. Em outubro de
PRÁTICA
2014, o movimento se instituiu no Brasil com a
Conforme visto anteriormente, há uma série criação do Conselho Brasileiro de Lideranças
de manifestações de usos temporários em Placemaking.
acontecendo nas cidades atualmente.
O processo de Placemaking da PPS partiu do
Acredita-se que o aumento desse tipo de
trabalho de William H. Whyte, The Social Life
proposta, tenha uma correlação com um
of Small Urban Spaces (1980), cuja proposta
urbanismo em estado fluido. A característica
foi desenvolvida em pesquisa realizada
mais comum a todas é que são ações com
durante a década de 1970 e consiste em
tempo delimitado; por isso, o primeiro
olhar, ouvir e fazer perguntas para as pessoas
parâmetro que esta pesquisa tomou é a
que vivem, trabalham e frequentam um
definição proposta por Urban Catalyst (2013),
espaço em particular, com o objetivo de
que determina que um uso é definido como
descobrir suas necessidades e aspirações e,
temporário se aqueles que o iniciam e os
junto delas, construir um lugar coletivamente.
outros envolvidos esperam que seja de
Segundo o livro Guia do Espaço Público –
duração limitada.
Lugares para Transformar76, de Jeniffer
Apesar de delimitar uma das características Heemann e Paola Caiuby Santiago (2015),
mais recorrentes desse tipo de projeto, outras uma adaptação do conteúdo elaborado pela
especificidades se fazem necessárias para PPS, os lugares produzidos são “espaços
ressaltar e compreender o fenômeno de forma públicos que estimulam interações entre as
mais abrangente, reconhecer suas facetas e, pessoas entre si e entre as pessoas e a
com isso, alcançar um conceito mais cidade, promovendo comunidades mais
apropriado e operacional para futuras saudáveis e felizes” (HEEMANN e SANTIAGO,
categorias de análises. Para isso, é 2015, p.10).
necessário percorrer outros termos
A essa definição, acrescenta-se outra
frequentemente utilizados. Em geral, essas
característica importante aos usos
outras terminologias estão coladas a nomes
temporários: o trabalho coletivo e
de publicações e grupos, cada uma
autoproduzido. Com suas raízes na
defendendo o conceito/termo que criou.
participação comunitária sugerida por Whyte
Apesar de serem muito parecidos uns com os
(1980), o Placemaking abrange o
outros e definirem praticamente os mesmos
planejamento, o desenho, a gestão e a
tipos de projeto, algumas diferenças
programação de espaços públicos. Segundo
complementam o conceito paralelamente
o site de PPS, o Placemaking não quer
tomado. Dada a frequência com que são
apenas criar melhorias no desenho urbano,
citados nas pesquisas que estão sendo
mas facilitar a criação de atividades e
realizadas dentro desse escopo de trabalho, a
conexões (culturais, econômicas, sociais,
seguir, são apresentados os termos mais
ambientais) que dariam suporte para a
disseminados, também aqueles mais
evolução desse espaço.
popularizados pelos produtores dessas
práticas, salientando-se, contudo, que isso se
75
dá apenas de forma panorâmica neste https://www.pps.org – Acesso em: abr. 2018.
76
momento da pesquisa. Dentre eles, Ver: http://www.placemaking.org.br/home/wp-
conceitua-se Placemaking, Playstreet, content/uploads/2015/03/Guia-do-Espaço-
Público1.pdf – Acesso em: abr. 2018.
81
77
“Flash Mobs são aglomerações instantâneas de
Ver: https://www.londonplay.org.uk – Acesso em: pessoas em certo lugar para realizar determinada
mai. 2018. ação inusitada previamente combinada, estas se
78
Ver: https://massacriticapoa.wordpress.com – dispersando tão rapidamente quanto se reuniram.
Acesso em: mai. 2018. A expressão geralmente se aplica a reuniões
79
Ver: http://vadebike.org/2013/08/zona-verde- organizadas através de e-mails ou meios de
parklet-vaga-viva/ – Acesso em: mai. 2018. comunicação social, notadamente pelas redes
80
Ver: sociais digitais.” Fonte:
https://en.wikipedia.org/wiki/Rebar_art_and_design https://pt.wikipedia.org/wiki/Flash_mob - Acesso
_studio – Acesso em: mai. 2018. em: mai. 2018.
2011, p. 16). Essa hipótese é ampliada pelo temporários servindo para a sociedade do
autor em sua tese de doutorado, defendida consumo.
em 2016 sob o título: From Modern
Explicadas essas definições e utilizações de
Infrastructures to Operational Networks - The
múltiplos termos, esta pesquisa assume a
Qualification of Local Space at Existing Large
necessidade de tratar os casos utilizando dois
Scale Utility Infrastructure: A Method for
eixos: o econômico e o social. Percebe-se
Reading Community-Driven Initiatives. The
que ambos os eixos criam espaços
Case of São Paulo84, em que Rosa (2016)
insurgentes, pois desafiam visões
apresenta essa possibilidade de conexão
convencionais de como as zonas urbanas são
estabelecida por esse tipo de projeto com as
definidas, configuradas e usadas, e como
infraestruturas urbanas e técnicas,
esses espaços podem transformar o ambiente
especificamente na cidade de São Paulo.
da cidade. Não mais confinados às áreas
Rosa (2011) define essas ações como
públicas tradicionais, como parques e praças
“microarquiteturas sobrepostas às estruturas
públicas, lojas e escritórios convencionais,
modernas monofuncionais, anexando
ambos os modos (o social e o econômico)
complexidades capazes de induzir espaços
utilizam-se de táticas urbanas85 para
urbanos de qualidade” (ROSA, 2011, p. 22).
expressar relações sociais e espaciais
Quando essas ações são bem-sucedidas, alternativas nas cidades.
fazem espaços abandonados voltarem a
Na perspectiva do eixo social, aparece esse
integrar a cidade e os lugares funcionam
sentimento de urgência em relação à cidade
como atrativos urbanos. Ou seja, espaços até
que parte de dentro da sociedade civil, como
então desvalorizados e ocultos ganham
um agente gerador e construtor da sua
visibilidade e vitalidade. Em algumas
cidade. A auto-organização verificada nos
situações, essas “práticas urbanas criativas”,
projetos que caracterizam esses usos
como o autor as refere, aparecem como
temporários é impulsionada pela falta de
soluções informais para organizar lugares
espaços de coexistência com qualidade e
para o encontro – pontos de contato que
representa um potencial para reestruturação
resistem à desertificação de espaços
urbana comprometida com a comunidade a
coletivos de qualidade, com projetos que
partir de seus próprios preceitos.
tencionam limites interdisciplinares à
construção de novas pontes para a produção Na perspectiva do eixo econômico, as
de arquitetura e cidade. Percebe-se que propostas comerciais temporárias
muitos casos revertem a negatividade do representam um fenômeno em ascensão que
lugar, doando valor e visibilidade àquilo que parece tensionar modelos tradicionais ao
estava oculto. buscar fomentar o “alternativo”, valendo-se de
lugares alternativos como simulacros cênicos,
Coube aos títulos Temporary City e Post-it-City
transformados, então, em lugares de trocas
ampliar e colocar os usos temporários
mercantis. A explosão de lojas, feiras e
também nas tipologias comerciais. Apesar
comércios pop-up86 em todo o mundo87,
dos livros também tratarem de casos de
vendendo todo tipo de produto, ocupa
ativismo cívico, usos comunitários, arte
lugares incomuns para tais práticas, pois
pública, contracultura e instalações de
insere o comércio em locais com outras
arquitetura, já vistos anteriormente, o que eles
funções que não as habituais para esse fim,
expandiram significativamente está no escopo
como, por exemplo, fábricas abandonadas,
e na abrangência dos tipos de propostas de
boates, jardins privados, condomínios,
usos temporários ao inserir a questão da
residências, estacionamentos ou mesmo
ordem econômica com um vasto número de
espaços públicos. Mais recentemente pode-
casos. Tais obras apresentam mais uma
se contabilizar, junto a esses casos, a
faceta não só dos usos temporários, mas de
proliferação das praças de alimentação
um modelo apetitoso e da comercialização da
vida moderna em que se vive: os usos
84
Tradução: Das Infraestruturas Modernas às
85
Redes Operacionais - A Qualificação do Espaço No sentido formulado por Michel de Certeau em
Local na Infra-estrutura Utilitária Existente de A invenção do Cotidiano (2014).
86
Grande Escala: Um Método para Ler Iniciativas Loja de duração limitada.
87
Orientadas pela Comunidade. O caso de São Peter Bishop e Lesley Williams (2012). The
Paulo. temporary City.
montadas com food trucks88 em todo tipo de matéria para intervenções com vistas à
espaço público e evento urbano. promoção da qualificação urbana?
Essas descrições ilustrativas de um micro-
meio criativo de usuários temporários são
4. O USO TEMPORÁRIO PARA O
formadas por pequenas e novas empresas da
URBANISMO – UMA POSSIBILIDADE
área chamada economia criativa. Elas
operam, em grande medida, à margem do Lefebvre (1991), em 1969, escreveu O Direito
modelo tradicional do setor econômico, pois, à Cidade, um livro-manifesto reivindicando
independentemente dos ganhos monetizados, uma condição às pessoas que não fosse
cooperam entre si com iniciativas voluntárias somente o direito de ir e vir, mas um direito
e geram considerável contribuição para o que abrangesse à possibilidade de vivenciar
equilíbrio social de bairros, onde provocam a a cidade para além da sua dimensão
promoção e a atratividade de espaços produtiva, mas como uma construção
urbanos subutilizados. coletiva. O direito à cidade seria, então, o
direito a transformar e projetar uma nova
Talvez a perpétua busca por novas
cidade, na qual predominassem o valor de
experiências de consumo seja o fator que tem
uso, ou seja, focada nas necessidades das
elevado significativamente o aumento desse
pessoas, pautadas na autogestão em todos
setor, associado à exclusividade do “por
os âmbitos da vida.
tempo limitado”. Talvez isso também reflita
novas tendências no mercado que Em busca da constituição de novas
incorporam os usos temporários como táticas experiências e territorialidades e influenciados
de aproximação de seus públicos para a por essas teorias, durante a década de 1960,
viabilização de seus negócios. Também pode membros da Internacional Situacionista
ser interessante olhar para este fenômeno desenvolveram um discurso e práticas em
como uma reconfiguração das cidades com que propunham o resgate às múltiplas formas
novos modelos de desenvolvimento. de vivenciar as cidades – uma alternativa
contra a cultura do espetáculo, a alienação da
O uso temporário, muitas vezes, é visto como
sociedade e como forma de crítica ao
sinônimo de informalidade, mas os inúmeros
pensamento de cidade do Movimento
casos apresentam situações nas quais o
Moderno. O pensamento situacionista urbano
efêmero se manifesta de maneira sistemática.
não pretendia a formalização de um projeto
Portanto, continuar simplificando este tipo de
de cidade; ele estava baseado na construção
experiência, afirmando tratar-se apenas de
de situações. Entendia que situações eram
situações informais, correspondentes a
experiências que deveriam ser alcançadas
determinadas situações esporádicas, é uma
coletivamente. Uma situação construída seria,
definição que fica restrita a somente alguns
então, um “momento da vida, concreta e
aspectos do problema. Situações de uso
deliberadamente construído pela organização
temporário têm uma série de engrenagens
coletiva de uma ambiência unitária de um
sistêmicas que as fazem funcionar e com as
jogo de acontecimentos” (JACQUES, 2003, p.
quais se pode aprender, inclusive por se
22).
tratarem de ações no espaço público ou de
problemas urbanos, mas que têm sido Para os situacionistas, os habitantes deveriam
deixados de lado como campo de pesquisa. transformar-se de meros espectadores em
vivenciadores de seus próprios espaços – é
Essas situações mencionadas são
um manifesto pela participação efetiva da
manifestações da cidade e apontam para a
vida urbana. Todo esse discurso está
necessidade de pensar como planejamento
moldado pela utilização do ambiente urbano
urbano pode abranger tais processos. Se os
para induzir à participação e à revolução da
usos temporários são um fator importante
vida cotidiana, e, assim, instigar a
para o desenvolvimento urbano, como eles
transformação da própria vida do espectador.
podem ser incorporados no planejamento e
Para tentar chegar a essa construção total de
em seu desenvolvimento? Pode-se considerar
um ambiente, os situacionistas propuseram a
a dimensão do tempo como elemento e
experiência da deriva. A técnica da deriva
seria uma apropriação do espaço urbano pelo
88 pedestre por meio da ação do andar sem
Carros equipados com cozinha e ponto de venda
rumo. A definição dessa técnica era descrita
de produtos alimentícios e bebidas, os quais
estacionam em todo tipo de espaço urbano por Guy Debord como “modo de
público, ou não, agrupados, ou não. comportamento experimental ligado às
nessa questão é borrar o pensamento binário, desenvolvimento, muitas vezes com uma
que só permite ver a distância entre o formal e gama de estágios temporários ao longo de
o informal, o precário e o estabelecido, o um caminho que, com mais flexibilidade,
efêmero e o permanente. move-se em direção a uma visão final
vagamente definida, em vez de em direção a
O Urban Catalyst (2013) defende a
um estado final absolutamente pronto.
incorporação inteligente de usos temporários
como uma nova forma de planejamento Para esses autores, um dos aprendizados
urbano baseado na formalização do informal e para o planejamento estaria em trabalhar na
na informalidade do formal. Para os autores, o forma de pacotes escalonados, com
planejamento urbano sempre se moveu no pequenas iniciativas que podem ser mais
campo da tensão entre o planejado e o adequadas para desbloquear o potencial de
desenvolvimento não planejado, em que a locais. Essa abordagem muitas vezes inclui
informalidade predomina sobre os processos. “estratégias deliberadas em torno de usos
Para eles, os usos informais e os usos temporários que podem mudar a imagem e
temporários são tradicionalmente vistos como permitir estágios intercalados para sentir
ameaça aos interesses dos proprietários e melhor a demanda da área” (BISHOP e
desenvolvedores, mas, diferentemente disso, WILLIANS, 2012, p. 102). Utilizações
têm se mostrado em diversas cidades do temporárias podem criar uma dinâmica
mundo como catalizadores de novos urbana e a valorização de um lugar, tanto em
desenvolvimentos, com potencial de aspectos de sociabilidade como de mercado,
influenciar a qualidade urbana. Os autores e podem até mesmo acelerar o seu eventual
demonstram que, em terrenos baldios desenvolvimento “permanente”, dando maior
urbanos e outros espaços residuais nos quais segurança para futuros investidores durante
o planejamento falha em devolver esses um processo mais complexo, como o de um
lugares a uma ocupação efetiva, as propostas masterplan urbano.
efêmeras têm se apresentado como uma
Nessa perspectiva, o planejamento urbano
alternativa que desafia a noção de
pode ser muito mais eficaz se permitir que o
permanência como condição básica para o
desenvolvimento ocorra em camadas ao
planejamento das cidades. Uma proposta
longo do tempo. Para os autores, essa
efêmera, com ações táticas, não invalida o
abordagem reconhece que, para implementar
trabalho da arquitetura que visa o mais
uma fase, deve-se deixar espaço para o
perene nem o planejamento que projeta a
impacto do projeto sobre a área circundante
longo prazo. Uma proposta pode
em fases subsequentes de um plano. Por
complementar a outra.
isso, ter como método “táticas adaptativas”,
Segundo Mehrota (2014, p. 70), quando se comuns aos projetos temporários, pode abrir
dissolvem essas fronteiras entre novas oportunidades para se pensar em curto
informal/formal e temporário/permanente, prazo, especialmente quando elas servem
abrem-se oportunidades para novos campos para criar um “ambiente de excitação, um
de imaginação e para a fertilização do destino e uma nova imagem para a
processo de projeto de urbanismo. Segundo localidade” (Bishop e Willians, 2012, p. 67).
Bishop e Williams (2012), essa dissolução Segundo os autores, deve-se aproveitar essa
provoca visões mais frouxas dos processos energia e motivação para mudanças e
que, em vez de estados finais idealizados, observar o fenômeno como um “open-source
como é o caso do plano para o urbanismo, de lugares” (BISHOP e WILLIANS, 2012, p.
deixa espaço para as imprevisibilidades. Para 104).
os autores, esses tipos de proposições
criativas na cidade utilizam-se de fases de
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ENEIDA DE ALMEIDA
Professora da Universidade São Judas Tadeu em Regime de Tempo Integral, atua na
Graduação e no Mestrado Stricto Sensu em Arquitetura e Urbanismo. Possui
doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade de São Paulo, FAUUSP (2010), Mestrado em Studio e Restauro dei
Monumenti - Università degli Studi di Roma La Sapienza (1987) e Graduação em
Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo, FAU-USP (1981). É
coeditora da revista eletrônica arq.urb, do PGAUR/USJT.
FREDERICO PAPALI
É graduado em Artes Visuais pela Universidade do Vale do Paraíba – Univap e tem
Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação – Planejamento Urbano e Regional do
Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento – IP&D - Univap.
GABRIEL MAGALHÃES RODRIGUES
Graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Viçosa (2016),
Mestre em Desenvolvimento Territorial e Políticas Públicas pela Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (2018). Tem experiência na área de Economia, atuando
principalmente nos seguintes temas: políticas públicas; economia regional/rural;
desenvolvimento econômico e territorial; associativismo; economia solidária e
cooperativismo.
GERMANA KONRATH
Arquiteta e urbanista, graduou-se na UFRGS com indicação ao prêmio nacional
Opera Prima, em 2008. É doutoranda do PROPUR - UFRGS, onde pesquisa o tempo
na prática de projeto urbano. Mestra pelo mesmo programa, teve sua dissertação
indicada para publicação, com investigação acerca das contribuições da arte
contemporânea para o espaço público urbano. Sua atuação acadêmica e profissional
ocorre na intersecção entre arte e cidade. Foi gestora cultural da Fundação Iberê
Camargo, de 2014 a 2017. Trabalhou em 6 edições consecutivas da Bienal do
Mercosul, destacando-se a coordenação da equipe de museografia da 7ª Bienal e a
coordenação de produção executiva da 8ª e da 9ª bienais, ao lado de André Severo.
Em paralelo, realizou projetos expográficos, de produção executiva e de arquitetura
AUTORES
SAMARA BRAUN
Arquiteta Urbanista; MBA em Gestão Pública; Mestre em Desenvolvimento Regional
pela FURB - Fundação Universidade Regional de Blumenau
Atualmente é Arquiteta Urbanista da Secretaria de Planejamento Urbano e
Desenvolvimento Sustentável da Prefeitura de Joinville
AUTORES
TIAGO BALEM
Graduado em Arquitetura e Urbanismo pelo Uniritter (2004). Mestre em Design pela
Unisinos (2010), quando teve sua dissertação premiada e publicada pelo
Fumproarte. Doutorando em Planejamento Urbano pelo PROPUR/UFRGS (2016). Foi
aluno e ministrante de extensão universitária do International Summer School ?
CREED COOPERATION, na Alemanha. É professor de Projeto Arquitetônico na
Universidade Feevale. Atua em seu escritório em projetos de arquitetura, expografia e
memória.
VALÉRIA ZANETTI
É historiadora, graduada pela UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto), mestre
em História Social pela PUC/RS, doutora em História Social pela PUC/SP, autora do
livro Cidade e Identidade: “São José dos Campos, do peito e dos ares”. São Paulo:
Annablume, 2010; professora do curso de História da Universidade do Vale do
Paraíba, membro do Laboratório de Pesquisa e Documentação Histórica do IP&D; é
vinculada ao Grupo de Documentação Histórica (Gedoch) da Univap, docente do
Programa de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional da Univap.