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ROBERTO KANT DE LIMA

LUCÍA EILBAUM
FLAVIA MEDEIROS
(ORGS.)

Casos de repercussao
Perspectivas antropológicas sobre
ratinas burocráticas e moralidades

CONSEQUENCIA
© 2017 dos autores SUMÁRIO
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no todo ou em parte, constituí viola<;ao do copyright (Leí no 9.610/98).
Roberto Kant de Lima, Lucía Eilbaum e Flav ia Medeiros
Conselho editorial
Alvaro Ferreira
CAPÍTULO 1. Entre rotinas, temporalidades e moralidades:
Carlos Walter Porto-Gon<;alves
a constru<;:ao de processos de repercussao em dois casos etnogr áficos ............... 15
)oao Rua
Marcelo Badaró Mattos Lucía Eilbaum e Flavia Medeiros
Marcos Saquet
CAPÍTULO 2. Processo Penal Inquisitorial e Sujei<;:ao Criminal:
Ruy Moreira
Virgínia Fontes igualdade jur ídica abrasileira ................................................................................... 43
Roberto Kant de Lima e Glaucia Mouzinho
Coordena;:ao editorial
Consequencia Editora CAPÍTULO 3. Sobre crimes, casos e causas:
Revisao desapareci mento for<;:ado,moralid ades e justi<;:a .................................................... 77
Priscilla Morandi Liliana Sanjurjo
Capa, projeto gráfico e diagramarao
Letra e Imagem CAPÍTULO 4. A repercussao pela visibilidade em "juicios de la dictadura"
na Justicia Federal em Rosario, Argentina ........................................................... 113
Foto da capa
Instala<;áo "Laberinto de la impunidad'; Exposi<;ao "Feminicidio en México. ¡Ya basta!';
Marta Fernandez y Patallo
Museu Memoria y Tolerancia - Cidade do México, Mexico, 2017.
CAPÍTULO s. O "Caso dos meninos emasculados"como um "caso de
Fotografia de Flavia Medeiros
repercussao" e a lg u ns de seus efeitos: notas sobre mobilizac;:ao socia l,
administra<;:ao pública e mídia ................................................................................ 139
DADOS INTERNAC IONAIS DE CATALOGAyAO-NA-PUBLICAyAO (CJP) Paula Lacerda e Hyldalice de Andrade
C341 Casos de repercussáo : perspectivas antropológicas sobre roti- CAPITULO 6. O "Outro caso": moralidades e formas de produ<;:ao de verdade em
nas burocráticas e moralidades/ Organizadores: Roberto Kant de
Lima, Lucía Eilbaum e Flavia Medeiros. - l. Ed. - Rio de Janeiro : um caso de repercussao na Justi<;:a Militar ............................ ·-······························ 159
Consequencia Editora, 2017. Sabrina Souza da Silva
272p. ; 16x23cm. - (Cole~áo Políticas Públicas,Administra~áo
de Contlitos e Cidadania ; n. 5)
CAPITULO 7. "Se fosse a Madonna, nao seria tudo isso!":
ISBN 978-85-69437-22-2 (broch.) um julgamento-evento no Tribunal do Júri do Rio de Janeiro .......................... 183
IzabelSaengerNuñez
1. Antropología. 2. Ciencias sociais. l. Lima, Roberto Kant de.
II. Eilbaum, Lucía. III. Medeiros, Flavia
CDD 301
CAPÍTULO 8. Por entre cómodos e frestas pelas quais ninguém ve: APRESENTACAO
sobre maridos, pais de família e formas de narrar da Polícia ............................. 215
Larissa Nadai

CAPÍTULO 9. Dos 20 centavos acriminalizac;:iio dos movimentos sociais:


desdobramentos das Jornadas de Junho a partir do caso carioca ..................... 245
Carolina Christoph Grillo e Arthur Coelho Bezerra

Nao é necessário um olhar muito aguc;:ado para perceber como ciclica-


mente os jornais focalizam sua atenc;:ao em determinadas notícias: "exe-
cuc;:oes", "guerra de facc;:oes", "acertos", "vandalismo", "estupros coletivos",
"corrupc;:ao", "abuso de autoridade". Essas e outras categorías sao acionadas
no discurso midiático para classificar aquilo que pode ser percebido pelos
atores envolvidos como diferentes formas de violencia. Sao essas histórias
merecedoras da insistencia e dedicac;:ao por parte de jornalistas nas capas e
matérias dos jornais de grande circulac;:ao e nas reportagens de programas
televisivos. Também ocupam as autoridades políticas e os funcionários
públicos das esferas institucionais em questao com depoimentos, explica-
c;:oes, justificativas e/ou lanc;:amento de medidas, políticas, projetos de lei
que apresentem, publicamente, respostas aos problemas levantados pela
mídia e pelo próprio discurso político. Por sua vez, as histórias contadas e
publicizadas na imprensa tornam-se objeto de conversas, comentários, po-
lemicas e fofocas entre a populac;:ao, seja nos espac;:os de trabalho, nos bares,
nas bancas de jornal, nas redes sociais ou em outros espac;:os cotidianos
da vida social e familiar. A coletanea aqui apresentada, como pontuamos
mais adiante, busca colocar em relac;:ao e discussao esses níveis distintos
da "repercussao" de certas histórias que, através de processos, recursos e
1valores morais diferenciados, sao transformadas em um "caso".
Esse livro é resultado do projeto "Crimes de repercussiío" x "crimes co-
muns": a administrai;iío judicial de conflitos no estado do Rio de Janeiro,
aprovado no ambito da Chamada Universal (MCTI/CNPQ N° 14/ 2012),
coordenado por Roberto Kant de Lima e do subprojeto Os "crimes de re-
percussiío": racionalidades e moralidades na administrai;iío judicial de con-
flitos no estado do Río de Janeiro, coordenado por Lucía Eilbaum no am-
bito do Instituto Nacional de Ciencia e Tecnología - Instituto de Estudos
Comparados em Administrac;:ao Institucional de Conflitos (INCT-InEAC).
Ambos os projetos tiveram como objetivo mais amplo dar continuidade a
urna linha de pesquisa na área da Antropología do Direito, explorando, atra-

7
8 CASOS OE REPERCUSSAO
Apresentacao 9

vés da prodw;:ao de etnografias em agencias dos sistemas de Seguranc;:a Públi- UFF, interessados nessas discuss6es 1• Desse grupo, todos pesquisadores do
ca e de Justic;:a, a articulac;:ao entre as formas de administrac;:ao de "justic;:a" e INCT-lnEAC, nessa coletanea, além de nós, contamos coma contribuic;:ao
as moralidades envolvidas nas ratinas de tais instituic;:oes (KANT DE LIMA, de Glaucia Mouzinho, professora do Departamento de Ciencias Sociais
2010; EILBAUM, 2012; MEDEIROS, 2016). Buscou-se, assim, aprofundar 1 Polo Campos dos Goytacazes/UFF; Sabrina Souza da Silva, pós-doutoran-
teórica e metodologicamente o conhecimento e compreensao sobre a relac;:ao da do PPGA/UFF; Marta Fernández y Patallo, doutora em Antropología
entre "moral" e "direito", objeto clássico de reflex6es na área da Antropología do PPGA/UFF; e Izabel Nuñez, doutoranda do PPGA/UFF.
do Direito (MALINOWSKI, 1926; ROSEN, 1989; DUPRET, 2006). Por outro lado, o grupo foi também abrindo interlocw;:oes com pesqui-
Particularmente, os projetos mencionados propuseram pesquisar e sadores de outras instituic;:oes a partir da identificac;:ao de preocupac;:oes co-
discutir o processo através do qua] um certo crime pode ser classificado muns. Como um dos efeitos dessa abertura, integram essa coletanea artigos
e construído como um ecuo de rep_ercussáo. Em tal sentido, propusemos de Paula Lacerda, professora de Antropología da Universidade do Estado
identificar quais recursos e moralidades sao mobilizados pelas agencias do Rio de Janeiro, e Hyldalice de Andrade, graduanda de Ciencias Sociais
e agentes de seguranc;:a pública e de justic;:a criminal para administrar, in- da UERJ; Larissa Nadai, doutoranda do Programa de Pós-Graduac;:ao em
vestigar e, eventualmente, julgar esses crimes. Nosso preJsu.e_o~~era que a Ciencias Sociais/UNICAMP; Liliana Sanjurjo, pós-doutoranda pelo PPCIS/
repercussao midiática, política e social desses casos incidía de forma dife- UERJ e pesquisadora associada do Centro de Estudos de Migrac;:oes Interna-
renciada e desigual na forma com que eles eram institucionalmente admi- cionais do IFCH/UNICAMP; Carolina Christoph Grillo, pós-doutoranda
nistrados pelas agencias públicas responsáveis pelos mesmos, em relac;:ao a do Departamento de Sociología da Universidade de Sao Paulo, e Artur Coe-
outros casos identificados por nossos interlocutores como "casos comuns". lho Bezerra, pesquisador do Instituto Brasileiro de Informac;:ao em Ciencia
Daí que, a partir das etnografias prévias sobre esses campos, buscamos en- e Tecnología (IBICT/MCTI) e professor do Programa de Pós-Graduac;:ao em
tender contrastivamente o tratamento desses casos por parte das agencias Ciencia da Informac;:ao/UFRJ, ambos pesquisadores do Núcleo de Estudos
dos sistemas de Segurarn;:a Pública e de Justic;:a. da Cidadania Conflito e Violencia Urbana (NECVU/IFCS/UFRJ).
Nesse contexto, algumas perguntas orientaram as pesquisas: quais Nesse sentido, acreditamos que o projeto foi bem-sucedido do ponto de
dimens6es transformam urna história em um "caso de repercussao"? A vista da articulac;:ao, do intercambio de perspectivas e da potencialidade de
personalidade pública dos envolvidos? O status social e moral das víti- parcerias futuras. Esse livro vem, assim, consolidar e divulgar esse esforc;:o
mas? O grau de violencia na dinamica dos fatos? A importancia dos cargos na expectativa de incorporar nele um público mais amplo. Isso porque a
políticos dos envolvidos? O local dos fatos e/ou sua representac;:ao social construc;:ao de redes e de trabalhos coletivos é um dos efeitos desejáveis por
e simbólica? Quais atores se mobilizam, e como, para que certos "casos" nós na produc;:ao de conhecimento e no engajamento de pesquisadores e
ganhem repercussao? Qual é o sucesso ou o fracasso de tal mobilizac;:ao? estudantes nessa empreitada academica.
Quais recursos sao acionados? Quais sao as consequencias judiciais dessa
distinc;:ao de tratamento?
Nessas discuss6es, mantidas ao longo do desenvolvimento dos projetos Os artigas e suas questües
através de encontros, reunioes de pesquisa, seminários e participac;:ao em
Os trabalhos aquí reunidos tratam sobre processos e situac;:oes sociais cuja
outros eventos, foram também inauguradas e consolidadas outras parce-
administrac;:ao por parte do Estado, através de suas diversas agencias, mo-
rías e diálogos. Por um lado, consolidando um grupo de pesquisa no ambi-
to do INCT-InEAC que progressivamente foi incorporando estudantes de
graduac;:ao dos cursos de Antropología, Sociología, Ciencias Sociais e Se- • Na época do projeto integravam o grupo de pesquisa Lucía Eilbaum (coordena~ora), Glau-
guranc;:a Pública da Universidade Federal Fluminense e estudantes de pós- cia Maria Pontes Mouzinho, Sabrina Souza da Silva, Flavia Medeiros, Izabel Nunez, Marta
Fernández y Pata llo, Andreza Azevedo Cunha, Carlos Eduardo Pereira Vian~, Isaac Palma
graduac;:ao do Programa de Pós-graduac;:ao em Antropología também da Brandiio, Marlon Gobi Leite, Rodrigo Andrade do Nascimento e Raiane Pere,ra Rodngues.
10 CASOS DE REPERCUSSAO Apresenta~o 11

bilizou recursos diferenciados e, portanto, teve efeitos jurídicos, sociais e os casos aqui construídos como extraordinários evidenciam e explicitam
morais distintos. Essas histórias referem a processos de acusa<;:ao em casos as formas de agir, pensar e sentir das burocracias públicas e seus burocra-
classificados como: "corrup<;:ao" (Kant de Lima e Mouzinho), "crimes de tas. Trata-se de casos que entram nas cenas burocráticas administrativas
estado" ou "lesa humanidade" (Sanjurjo e Fernández y Patallo), "crimes e judiciais como "eventos" que condensam significados dentro do mesmo
da polícia" (Souza da Silva), "execu<;:ao" e "autos de resistencia" (Eilbaum e sistema simbólico dos acontecimentos cotidianos (SAHLINS, 1987). Por
Medeiros), "crimes contra meninos" (Lacerda e Andrade), "atos de vanda- isso, nao operam aqui as dicotomias de norma x exce<;:iío, geral x singular.
lismo" (Grillo e Bezerra), "guerra do tráfico" (Nuñez), "crimes arroz com Diferentemente, os artigas do livro mergulham no entendimento sobre
feijao" (Nadai). Em todos eles a acusa<;:ao jurídica se mistura, articula, con- como opera esse jogo classificatório entre os acontecimentos e os eventos;
fronta e/ou alia com acusa<;:6es morais, que, como nas acusa<;:6es por bru- entre o ordinário e o extraordinário. Os trabalhos trazem, nesse sentido,
xaria, revelam os sentidos que tais atores e seus efeitos tem para os grupos diversas quest6es para o debate. Entre elas pontuamos, pelo menos, duas.
envolvidos (EVANS-PRITCHARD, 1976; DOUGLAS, 1970). Na maioria Urna primeira questao diz respeito as formas e efeitos da constru<;:iío
dos casos, a morte, os mortos, as formas de morrer e de viver e como elas de urna história como um caso. Como sugere Wilhem Schapp, todos nós,
sao transformadas, ou nao, em crimes revelam, através desses casos, senti- cíclica e alternadamente, nos vemos, direta ou indiretamente, envolvidos
dos distintos e decis6es institucionais desiguais, dependendo das classifi- em "histórias" (SCHAPP, 1953)2 • Algumas dessas histórias, por motivos
ca<;:6es sociais e morais envolvidas. diversos, se destacam de outras e podem tomar a forma de "casos" e, como
Os artigos, por sua vez, trazem e articulam discuss6es que tem na cate- analisamos nessa coleta.nea, de "casos jurídicos" na forma de processos
goria de repercusséio e outras derivadas dela um eixo importante de análise. administrativos e/ou judiciais. Nesse processo de transforma<;:iío, certos
Neles, a repercusséio é analisada de forma diferenciada, colocando todos os aspectos das histórias contadas sao reduzidos, acrescentados e/ou enfati-
trabalhos em um diálogo potencial sobre as possibilidades de uso teórico e zados, conforme as lógicas e modos de atua<;:iío das agencias responsáveis
metodológico dessa categoria. Seja como categoria analítica ou nativa; seja pela administra<;:iío dos mesmos3•
como efeito ou causa dos processos de administra<;:ao de conflitos. Seja nas Ao mesmo tempo, em fun<;:ao dos efeitos sociais de tais "casos", essas
suas dimens6es midiáticas, institucionais, políticas ou corporativas; seja histórias também podem ser transformadas em urna "causa" (LACERDA,
no ambito das rotinas e no dia a dia das institui<;:6es. Seja nos corredores, 2016; SANJURJO, 2016; FERREIRA, 2015b), através da qual certos atores
salas de audiencia do Júri ou da Auditoria Militar, ou do Supremo Tribu- reivindicam direitos e demandam formas de reconhecimento (CARDO-
nal Federal, ou nos arquivos, inquéritos e cómodos de crimes sexuais, nas
redes sociais e mídias alternativas, nas ruas de Rosário e Buenos Aires, na
Argentina, ou do Rio de Janeiro, nos becos da Baixada Fluminense ou no 2
Segundo o filósofo do direito Wilhem Schapp (2007 [1953)), só conseguimos apreender
o mundo através das histórias nas quais os outros e a própria pessoa encontram-se envol-
mato de Altamira, Pará.
vidos. Essas histórias só podem ser conhecidas ao serem narradas e escutadas, enredando,
O foco comum nao é apenas pensar a repercussao que a grande mídia assim, narrador e ouvinte em urna (outra) história comum. Isso porque, como assinala
pauta, mas poder entender como certas histórias mobilizam recursos di- Schapp, narrayao e escuta nao constituem apenas urna transmissao de urna informayao,
ferenciados, constroem vítimas e culpados, políticas e decis6es, enquanto mas sao elas mesmas parte de urna história (2007, p. 104). Destaca também o fato das his-
tórias nao surgirem no vazio, mas estarem arraigadas no mundo e no seu entorno. Por sua
outras ficam opacas em outros jogos de classifica<;:ao (FERREIRA, 2015a), vez, Schapp define um "caso" como aquelas histórias coro um cerne jurídico e destaca que
identificadas em certos contextos como "casos comuns" ou "casos do dia advogados, juízes e outros profissionais do direito só penetram nas pessoas através dos
a dia", como sao classificados outros casos que comp6em o ordinário e as casos, isto é, das h istórias a eles contadas (2007, p. 120).
3
Destaca-se aqui o fato da li nguagem jurídica operar sobre os acontecimentos e as narrati-
rotinas das burocracias estatais aqui em análise. Contudo, cabe destacar vas das pessoas envolvidas nos conflitos, transformando os primeiros em "fatos" e "reduzin-
que a proposta aquí lan<;:ada nao sup6e pensar como casos extraordinários do a termo" as segundas. Este aspecto da linguagem jurídica tem sido trabalhado por Kant
sao exce<;:6es de um sistema judicial. Ao contrário, busca demonstrar como de Lima (2009), Cardoso de Oliveira (2009), Eilbaum (2008 e 2010), Pita (2010), entre outros.
12 CASOS DE REPERCUSSÁO Apresenta~ao 13

SO DE OLIVEIRA, 2002). Na proposta aqui apresentada sugerimos anali- Referencias


sar esses processos de transformac;:ao a partir da categoria de repercussiio.
Pensando como, através do que chamamos processos de repercussiio, com CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. Direito legal e Insulto Moral.
ritmos, temporalidades e espacialidades distintos, esses casos e/ou causas Dilemas da Cidadania no Brasil, no Quebec e nos EUA. Rio de Janeiro:
f-.. sao administrados pelas agencias do estado e construídos pelos movimen- Relumé Dumará, 2002.
tos sociais, pelos familiares e outras pessoas envolvidas naquelas histórias. _ _ __,. Derechos, insulto y ciudadanía (¿Existe violencia sin agresión
Trata-se, portanto, de pensar como essas formas de administrac;:ao e cons- moral?). In: STANLEY, Ruth (Org.). Estado, violencia y ciudadanía en
truc;:ao dos casos geram e provocam efeitos particulares na gestao dos con- América Latina. Madri: Libros de la Catarata / Entilhema, 2009.
flitos e nas formas de acionar recursos diferenciados e desiguais por parte j DOUGLAS, Mary. Introduction. In: Witchcraft, confessions and accusa-
do Estado. tions. Londres: Tavistock Publications Limited, 1970. pp. xiii-xxxviii.
Urna segunda questao deriva dessa primeira. Se recursos diferencia- , DUPRET, Baudouin. Le jugement en action. Ethnométhodologie du droit,
dos e desiguais sao mobilizados para administrar as histórias em questao, de la morale et de la justice en Egypte. Genebra; Paris: Librairie DROZ,
quais sao as racionalidades e moralidades envolvidas nesses processos? Os 2006.
artigos demonstram que a classificac;:ao moral dos atores envolvidos nos EILBAUM, Lucía. "O bairro Jala": conflitos, moralidades e justic;:a no co-
casos analisados cumpre um papel determinante para a tomada de deci- nurbano bonaerense. Sao Paulo: Hucitec Editora - ANPOCS, 2012.
sóes, para sua justificac;:ao e/ou legitimac;:ao. Assim, entender quando e por _ _ __,. Los casos de policía en la Justicia Federal en Buenos Aires. El pez
que certos recursos sao acionados e urna atenc;:ao e dedicac;:ao específicas por la boca muere. Buenos Aires: Antropofagia, 2008.
sao outorgadas a certos casos, e nao a outros, supóe dar atenc;:ao nao só "'-- EVANS-PRITCHARD, E. E. Evans. Bruxaria, oráculos e magia entre os
a natureza do conflito, mas também ao status social e moral das pessoas A zande. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
--¡. FERREIRA, Letícia Carvalho Mesquita. Pessoas Desaparecidas: urna et-
1 envolvidas, as moralidades dos agentes, as racionalidades e éticas operan-
tes no acionamento desses recursos públicos. Procedimentos burocráticos, nografia para Muitas Ausencias. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2015a.
moralidades e direitos se revelam como dimensóes centrais na compreen- _ _ __,. Pesquisar e participar da formulac;:ao de urna causa pública: notas
sao nao só dos processos de repercussiio, mas também do caminho mais ou etnográficas sobre o desaparecimento de pessoas no Brasil. Campos -
menos bem-sucedido, mais ou menos tortuoso que os casos e seus perso- Revista de Antropología Social, UFPR, v. 14, p. 195-216, 2015b.
nagens seguem nas tramas que fazem o estado. KANT DE LIMA, Roberto. Sensibilidades jurídicas, saber e poder: bases
Outras questóes poderiam ser aqui colocadas na tentativa de estabele- culturais de alguns aspectos do direito brasileiro em urna perspectiva
cer um diálogo entre os artigos, mas preferimos deixar aos leitores o trac;:ar comparada. Anuário Antropológico (UnB), v. 2, p. 25-51, 2010.
de seus próprios caminhos na expectativa da construc;:ao de futuros outros ____. Ensaios de Antropología e de Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
diálogos. Boa leitura! 2009.
LACERDA, Paula. A nossa "!uta por justic;:a": violencia, trajetórias de mo-
Roberto Kant de Lima bilizac;:ao e a pesquisa antropológica contemporánea. In: FONSECA,
Lucía Eilbaum Claudia; SCHRITZMEYER, Ana Lucia Pastore; O'DWYER, Eliane
Flavia Medeiros Cantarino; SCHUCH, Patrice; SCOTT, Russell Parry; CARRARA, Ser-
gio (Org.). Antropologia e Direitos Humanos 6. l. ed. Rio de Janeiro:
ABA/Mórula, 2016. p. 15-46.
MALINOWSKI, Bronislaw. Crime e costume n a sociedade selvagem. Bra-
sília/Sao Paulo: Ed. UnB/Imprensa Oficial do Estado, 2003 [1926].
14 CASOS DE REPERCUSSAO

MEDEIROS, Flavia. "Linhas de investigarao": urna etnografia das técnicas CAPÍTULO 1


e moralidades sobre "homicídios" na Polícia Civil da regiao metropoli-
tana do Rio de Janeiro. Tese de doutorado. Programa de Pós-graduac,:ao Entre ratinas, temporalidades e moralidades
em Antropologia, Instituto de Ciencias Humanas e Filosofia, Universi-
dade Federal Fluminense, Niterói, 2016. A construgao de processos de repercussao
PITA, Maria Victoria. Formas de vivir y formas de morir. El activismo con-
tra la violencia policial. Buenos Aires: Ed. Del Puerto; CELS, 2010.
em dois casos etnográficos
"'- ROSEN, Lawrence. 1he anthropology ofjustice. Law as culture in Islamic
society. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. Lucía Eilbaum e Flavia Medeiros'
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
SANJURJO, Liliana. Los juzga un tribunal, los condenamos todos: me-
mórias e verdades em disputa nos tribunais argentinos. In: FONSECA, lntrodu~ao
Claudia; SCHRITZMEYER, Ana Lucia Pastore; ODWYER, Eliane
Cantarino; SCHUCH, Patrice; SCOTT, Russell Parry; CARRARA, Ser- Neste capítulo iremos apresentar e discutir alguns resultados da pesqui-
gio (Org.). Antropologia e Direitos Humanos 6. l. ed. Rio de Janeiro: sa desenvolvida no ambito do projeto "Crimes de repercussiio" x "crimes
Mórula, 2016. p. 47-107. comuns": a administrarao judicial de conflitos no estado do Rio de Janeiro.
SCHAPP, Wilhelm. Envolvido em histórias. Sobre o ser do homem e da Como mencionado na Apresentac,:ao desta coleta.nea, o projeto teve como
coisa. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2007 [1953]. objetivo principal pesquisar e entender o processo através do qual um cer-
to crime pode ser classificado como um caso de repercussiia2. Em tal senti-
do, propusemos identificar quais recursos e moralidades sao mobilizados
pelas agencias de seguranc,:a pública e de justic,:a criminal para administrar,
investigar e, eventualmente, julgar esses crimes. .
A partir dessa proposta, no ambito do projeto, trabalhamos de urna
perspectiva etnográfica sobre dois casos que, na época, tinham alcanc,:ado
certa "repercussao" midiática. Nesse capítulo refletiremos sobre o processo
de repercusséío construído em torno de cada um dos casos. Esses se referem
a morte da juíza Patrícia Acioli e a morte de Juan de Moraes, ambas acon-
tecidas no estado do Rio de Janeiro no ano de 20ll 3•

'Lucía Eilbaum é Professora Adjunta do Departamento de Antropología e do PPGA/UFF.


Flavia Medeiros é bolsista PNPD/CAPES, PPGA/ UFF. Ambas sao pesquisadoras do INC-
T-InEAC.
2
Ressaltamos categorías analíticas propostas nesse artigo com itálico e as categorías na-
tivas entre aspas.
3
No período concomitante a esses, repercutía também nas mídias o caso que envolveu o
goleiro Bruno, preso e acusado (hoje, julgado e condenado) pelo desaparecimento da mae
de um dos seus filhos, em Minas Gerais. Também ainda ecoavam na imprensa efeitos do
"caso Isabela Nardoni", pelo qua! foram julgados e condenados o pai e a madrasta de urna

15
16 CASOS DE REPERCUSSAO Entre rotinas, temporalidades e moralidades 17

O artigo está organizado em tres partes: inicialmente, apresentamos liciais militares do mesmo GAT, acusados de participar de um grupo de
etnograficamente cada um dos casos. Em segundo lugar, tecemos algumas extermínio que teria executado pelo menos 11 pessoas no município flu-
relac;:oes entre os dois para dar contadas dimensóes de análise que, a nosso minense de Sao Gonc;:alo.
ver, sao significativas para entender o processo de repercussiio, objeto da Tal atuac;:ao, resultado de um trabalho de investigac;:ao e perseguic;:ao
análise. Por último, a partir do apresentado, discutimos a noc;:ao de reper- penal mais amplo realizado pela juíza e pelo promotor da comarca, teria
cussiio como urna categoria analítica útil para pensar as formas diferencia- lhe valido diversas ameac;:as de morte e a reputac;:ao de ser urna juíza "co-
das de administrac;:ao institucional de conflitos. nhecida por urna atuac;:ao rigorosa contra a ac;:ao de grupos de extermínio
formados por policiais militares, naquela regia.o do estado" (Jornal O Glo-
bo, 12/08/ 11). Os jornais também colocavam em destaque o fato da juíza
Patricia ter estado, na época, sem protec;:ao policial, em func;:ao de urna decisao do
Tribunal de Justic;:a5•
No dia 12 de agosto de 2011, os jornais noticiaram um acontecimento Logo após os fatos, o inquérito policial foi alocado na Divisa.o de Homi-
ocorrido na madrugada anterior: "Juíza é executada em emboscada em cidios da Capital, por ordem da Chefia de Polícia. Tratou-se de urna decisao
Niterói" (Jornal O Globo, 12/08/11); "Juíza Patrícia Acioli é morta a tiros excepcional, pois a competencia formal seria da Delegacia de Homicídios
em Niterói" (Jornal Extra, 12/11/08). Patrícia Acioli era a juíza titular da de Niterói e Sao Gonc;:alo6• Nos estritos 30 dias estabelecidos pelo Código
quarta vara criminal do município de Sao Gonc;:alo, no estado do Rio de de Processo Penal, o delegado elevou o relatório do Inquérito Policial para
Janeiro. Naquela madrugada de sexta-feira, a juíza tinha sido morta por o promotor da vara criminal de Niterói. Onze policiais daquele BPM, in-
21 tiros de arma de fogo, quando ingressava em sua casa, no bairro de cluindo o entao coronel, foram sucessivamente julgados e condenados pelo
Piratininga, na regiao oceanica de Niterói (RJ), tendo sido registrado que Tribunal do Júri de Niterói.7
"dois homens numa moto teriam efetuado os disparos antes mesmo que ela
saísse do carro" (Jornal O Globo, 12/08/11).
Já nas primeiras matérias sobre o caso, falava-se que policiais militares
do Batalhao de Polícia Militar (BPM) de Sao Gorn;:alo estariam envolvidos
no "atentado". Naquele mesmo dia, horas antes dos fatos, a juíza decretara
5
a prisa.o preventiva de policiais que integravam o GAT - Grupo de Apoio DESEMBARGADOR d izque juíza assassinada pediu proteyao policial em 2009 temendo
a meayas, e TJ nega. O Globo, Rio de )aneiro, 12 ago. 2011. Disponível em: <http://oglobo.
Tático do 7° BPM pelo homicídio de um jovem. Essa morte, inicialmente, globo.com/rio/desembargador-diz-que-juiza-assassinada-pediu-protecao-policial-em-
tinha sido apresentada pela Polícia Militar e classificada pela Polícia Ci- 2009-temendo-ameacas-tj-nega-2690761>. Acesso em: 21 fev. 2013.
6
vil como um "auto de resistencia"4. Anteriormente, em setembro de 2010, Posteriormente, em 2014, esta teve suas instalay6es, recursos e equipe ampliada e alcan-
you o status de Divisa.o de Homicídios, respon sável pela área dos municípios de Niterói,
aquela juíza também tinha expedido mandados de prisao de quatro po-
ltaboraí e Sao Gonyalo (MEDEIROS, 2016b).
7
O caso foi desmembrado porque oito dos acusados recorreram a sentenya de pronúncia.
O réu confesso fo¡ julgado, no dia 04 de dezem bro de 2012, por ter colaborado coma jus-
menina de 5 anos, acusados de a terem jogado pela janela da casa, em Sao Paulo. Na época, tiya na elucidayao do caso e teve a pena reduzida devido a delayao premiada. Os outros
esses dois casos, assim como os de Juan e Patrícia, nos chamavam já a atenyao para o con - )úris se desenvolveram sucessivamente nos dias 29 de janei ro de 2013, 16 de abril de 2013,
traste entre casos que repercutem a partir de elementos como a condiyii.o social e moral 06 de dezembro de 2013, 21 de maryo de 2014 e 04 de abril de 2014. Todos os réus foram
dos envolvidos (um goleiro famoso; urna juíza; urna crianya) e casos cuja repercussao condenados. As penas foram definidas em torno de 20 anos de prisa.o, com exceyao de um
nasce a partir de um trabalho de mobilizayao social e/ou política. dos policiais, condenado a quatro anos e seis meses em regime semiaberto por violayao de
1
Mais adiante explicaremos melhor as implicay6es dessa categoria classificatória, mas sigilo funcional qualificado, e do tenente-coronel, que foi conden ado a 36 anos. A exceyao
basta dizer aqui que os autos de resistencia sao mortes classificadas e administradas sepa- do policial mencionado, todos os réus foram acusados e conden ados pelos crimes de ho-
radamente por se tratarem de mortes com exclusa.o de ilicitude. micídio triplamente qualificado e formayao de quadrilha.
18 CASOS OE REPERCUSSAO Entre rotinas, temporalidades e moralidades 19

Juan Estrada de Madureira, junto com moradores do bairro Danon. Era a pri-
meira notícia do caso no Jornal Extra intitulada "País de menino de 11
Juan de Moraes tinha 11 anos e morava na favela de Danon, em Nova Igua- anos acusam PMs de terem sumido com o corpo do garoto" (Jornal Extra,
<¡:u, na Baixada Fluminense (RJ). No día 20 de junho de 2011, enquanto 22/06/11). O foco era denunciar a interven<¡:ao dos policiais militares do
voltava para sua casa junto com seu irmao, foi atingido por tiros de arma BPM de Mesquita e demandar a apari<¡:ao do corpo de Juan.
de fogo que o levaram a morte. A foto da matéria apresentava os país junto com alguns vizinhos por-
Na primeira notícia sobre o caso, a assessoria de imprensa da Polícia Mili- tando cartazes, improvisados em papeloes e papéis escritos amao: "Quere-
tar informava que, durante urna opera<¡:ao realizada por policiais do 20° BPM mos o corpo" (coma foto de Juan), "Estamos de luto pelo desaparecimento
(Mesquita), houve um "breve confronto", pelo qual um homem acusado de do corpo do menor - Juan de 11 anos, desde 20/06/11" e "O menor de 11
pertencer ao tráfico de drogas e um "menor de 14 anos" teriam ficado feridos, anos foi morto. Queremos Justi<¡:a. Desde o día 20/06. Nos ajude". Os de-
estando ambos no hospital. A notícia nada falava da presen<¡:a de Juan. poimentos dos país de Juan também tiveram lugar na mídia, através dos
A presen<¡:a <leste "menor" na matéria chamou a aten<¡:ao dos assessores quais expressavam seu sofrimento e a necessidade de "ou vivo, ou morto,
da Comissao de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do ver meu filho" (O Globo - Gl, 23/06/11).
Río de Janeiro (ALERJ). Nesse mesmo dia, um dos assessores do gabinete Nessas demandas, Juan de Moraes era representado como um corpo
do deputado dirigiu-se ao hospital para conversar como "menor". Ao che- "sumido", como um "menor de 11 anos", e, ao mesmo tempo, simplesmente
gar ao hospital, percebeu que aquele identificado como "traficante" estava como "Juan", cujo rosto come<¡:ava a circular, nao só como urna forma de
algemado ao leito e custodiado por policiais. O jovem teria contado que, encontrar o corpo, mas também como um símbolo da busca de justi<¡:a e
quando os policiais come<¡:aram a atirar, estavam junto com ele o "menor", como emblema do caso.
de nome Wesley, e seu irmao Juan, também menor de idade. Contou que A essa mobiliza<¡:ao local dos pais e dos vizinhos se somaram outras, e
ele conseguiu se esconder atrás de um sofá jogado na rua e que foi através a repercussao do caso ganhou outros espa<¡:os, se nao inéditos, pelo menos
de um buraco que viu como os policiais sumiam como carpo de Juan8• Na raros: as redes sociais e o espa<¡:o dos chamados internautas se mobilizaram
a<¡:ao policial, conforme inclusive registro dos policiais, tinha sido morto pelo caso. Por meio da hashtag #Ondeestajuan, através da rede social Twit-
também outro jovem, de nome Igor, identificado pelos policiais - e, poste- ter, criada pelo jornalista José Antonio Barros, autor do blog "Repórter de
riormente, por moradores do bairro - como envolvido no tráfico de drogas. Crime", do jornal O Globo, foi impulsionada a busca e urna demanda de
O jovem e Wesley, irmao de Juan, se transformaram nas principais tes- resposta sobre o sumi<¡:o de Juan e a responsabilidade dos agentes públicos
temunhas do caso, sendo incluídas, após urna semana, junto com suas fa- envolvidos. O alcance dessa vía ampliou a repercussao para além dos limi-
mílias em dois programas de prote<¡:ao a testemunha9• Colocada a questao tes do "bairro", chegando a ter posts escritos em ingles e espanhol. Tam-
"Onde está Juan?", come<¡:ou, por parte da Comissao de Direitos Humanos da bém permitiu a compara<¡:ao com outros casos geralmente considerados de
ALERJ, um forte trabalho de "advocacy" convocando diversas institui<¡:6es. natureza distinta: "Será que vamos permitir que a família do menino Juan
Urna das primeiras matérias sobre o caso, dois días depois do fato, no- sofra o que a família da engenheira Patrícia Amieiro tem sofrido?", disse o
ticiava a demanda dos país de Juan, encabe<¡:ando urna mobiliza<¡:ao na internauta Antonio Carlos Costa (O Día, 28/06/11)10 •

8
Durante o Júri, a versa.o de que o jovem teria observado os fatos por trás daquele sofá seria 'ºNa madrugada do dia 14 de junho de 2008, Patrícia Amieiro Franco, engenheira de 24
contestada por outras testemunhas, mas essa controvérsia nao alteraría os fatos principais. anos, saiu de um show ocorrido no Morro da Urca e se dirigía a sua casa na Zona Oeste
9
Wesley e família no Programa de Protec;:ao a Crianc;:as e Adolescentes Ameac;:ados de quando desapareceu. Seu carro foi encontrado nas pedras, junto a Lagoa de Marapendi.
Morte - PPCAAM, destinado aos menores de idade ameac;:ados de morte; e o outro jovem Policiais militares, que foram os primeiros a chegar ao carro, afirmaram nao ter visto nin-
(maior de idade) e sua família no Programa de Protec;:ao a Vítima - Próvida. guém dentro do veículo. O corpo de Patrícia nunca foi encontrado. Quatro policiais mi-
20 CASOS DE REPERCUSSAO Entre ratinas, temporalidades e moralidades 21

Essa associai;:ao, possibilitada pela comunicai;:ao virtual, também trans- sido inicialmente classificado pela polícia como tal; o outro, por ter sido
passou para o espa<;:o público da cidade. Banners com a inscrii;:ao "Onde apresentado como urna "retaliai;:ao" contra urna atitude excepcional do Ju-
está Juan?", com a foto do menino, foram colocados nas ruas de bairros diciário contra esse tipo de caso.
da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, como Copacabana e Flamengo. Os dois casos ganharam, com diferente temporalidade e ritmo, reper-
Urna repercussao em principio atípica, considerando o perfil do caso: um cussao midiática e política. Midiática, porque tanto os jornais televisivos e
menino "desaparecido"11 em urna favela da Baixada, em meio a um tiroteio escritos quanto a mídia impressa e virtual se mobilizaram e noticiaram os
entre policiais e traficantes. Os efeitos da repercussao, para além da área casos. Política, porque os fatos mobilizaram agentes políticos, seja para de-
do crime, indicavam muito mais do que urna demanda e ai;:ao para encon- nunciar abusos e exigir reai;:oes em torno deles, seja para produzir mudan-
trar o corpo, mas um pedido de mobilizai;:ao, solidariedade ou indignai;:ao, i;:as legislativas, seja como urna forma de se manifestar sobre os mesmos e
como sentimentos públicos. demandar "justii;:a".
Entender a repercussao inicial desse caso nos incentivou a considerá-lo No entanto, há particularidades em cada um dos casos que diferenciam
como foco da análise. Assim, comei;:amos a pensar no "caso Juan" como a forma como a repercussao em torno de cada um deles foi ativada, mo-
um fato a partir do qual foi se construindo e mobilizando, por diferen- bilizada e continuada. Particularmente, como mencionado, nesse artigo
tes atores sociais, um processo de repercussiio, que acabou tornando-o um a análise dos casos busca entender como foi construído e desenvolvido o
evento significativo na cena pública. A partir desse caso, o contraste com o processo de repercussiio, que efeitos provocou e que moralidades ativavam,
"caso da juíza" nos parecía mais claro, no sentido desse último já conter, no retardavam ou apagavam esse processo. Construímos essa análise a partir
próprio fato, os elementos que o fariam "repercutir". Sobre a constru<;:iío e de pelo menos tres dimensoes.
a cria<;:iío desses processos, que chamamos aquí de processos de repercussiio,
trata esse artigo.
O ordinário e o excepcional: sobre rutinas e práticas
Os dois casos: tecendo rela~oes Juan: da ratina aexcegao

Como descrito, tanto o "caso Juan" quanto o "caso da juíza" foram classi- Como mencionado na introdui;:ao, um dos objetivos do projeto de pesqui-
ficados jurídicamente como crime de "homicidio" e ambos envolveram a sa do qual resultam este artigo, de maneira especifica 12 , e esta coletanea,
participa<;:iío de policiais militares na sua execui;:ao. Os dois casos também como um todo, foi entender como a repercussao de um caso influenciava,
estavam relacionados com a categoría de "auto de resistencia". Um por ter ou nao, as rotinas das agencias de Segurani;:a Pública e Justi<;:a Criminal.
Nesse sentido, urna das questoes levantadas a partir da análise dos casos
litares foram acusados de matar e ocultar o cadáver da vítima, que teve morte presumível
escolhidos foi pensar como e em que medida os casos analisados se inte-
decretada pela justi<;a em junho de 2011. Ver: <http://www.cadepatricia.com.br/principal. gravam no cotidiano dessas agencias13 • Nessa linha, o contraste entre os
htm>. Acesso em: 24 fev. 2017. dois casos nos levou a pensar na relai;:ao entre o ordinário e o excepcional
11
A etnografia de Letícia Carvalho de Mesquita Ferreira (201 I) sobre o Setor de Desapare-
cidos da Policía Civil do Rio de Janeiro mostra a rotin a policial com casos de "desapare-
cidos civis", casos que nao tem visibilidade na mídia e que sao classificados pelos policiais
como "problemas de família". Por sua vez, o trabalho de Fábio Araújo (2014) analisa sobre 12
Além do presente artigo, apresentamos reflexoes oriundas <leste projeto em Eilbaum e
"desaparecimentos for<¡:ados de pessoas" como um "dispositivo de governo-gestao" que Medeiros (2015) e Eilbaum e Medeiros (2016).
envolve a interrela<¡:ao de diversos atores (polícia/milícia/traficantes) e um universo de 13
Cabe mencionar que nao estamos preocupadas aqui coma representatividade dos casos,
vítimas possíveis que tem em comum sua vulnerabilidade a esse dispositivo, pela combi- mas em entender como se constroem certas particularidades que influenciam nas formas
na<¡:ao de variáveis como território, condi<¡:iio social, atividade e/ou suspei<¡:ao. de tratamento.
22 CASOS DE REPERCUSSAO Entre ratinas, temporalidades e moralidades 23

na rotina das agencias. Nesse aspecto, os dois casos apresentavam um con- classifica<;:i'io jurídica de "auto de resistencia" para "homicidio" que tirasse
traste significativo. o caso do anonimato das estatísticas e das pastas de "arquivo"15 • Nesse
No "caso Juan", podemos afirmar que as circunstancias em torno dos sentido, propomos aqui que essa mudan<;:a que transforma um fato em cri-
fatos fazem parte da rotina das institui<;:6es de seguran<;:a pública no Rio de me nao é apenas urna mudan<;:a com efeitos jurídicos, mas também sociais,
Janeiro. Segundo o relatório da organiza<;:ao Anistia Internacional, entre pois ela habilita o questionamento dessa morte e sua eventual desnaturali-
2005 e 2014, foram registrados, no estado do Rio, 8.466 "homicidios decor- za<;:ao como prática de rotina.
rentes de interven<;:ao policial" (ANISTIA INTERNACIONAL, 2015, p. 5). Ora, também é central para nosso argumento que, para que essa trans-
Isso equivale a urna média de 847 pessoas mortas por ano em virtude da forma<;:i'io ocorresse, urna reclassifica<;:ao anterior foi necessária. Urna
interven<;:ao policial14. Ainda, mais "das 1.275 vítimas de homicidio decor- transforma<;:ao nao mais jurídica, mas moral. Como exploraremos mais
rente de interven<;:ao policial entre 2010 e 2013 na cidade do Rio de Janeiro, adiante, o "menor" cuja morte era noticiada como mais um resultado da
99,5% eram homens, 79% eram negros e 75% tinham entre 15 e 29 anos de interven<;:ao policial na favela teve que assumir um rosto; teve que ser iden-
idade" (ANISTIA INTERNACIONAL, 2015, p. 5). tificado, reconhecido e reclassificado como o "menino Juan". Aliás, suge-
Esse tipo de mor te é classificado pela Polícia Civil como "auto de resis- rimos que foi essa diferen<;:a moral na forma de classificar a vítima que
tencia", urna categoría administrativa criada pela própria polícia para se re- permitiu a transforma<;:ao jurídica (de "auto de resisten cia" a "homicidio")
ferir a mortes supostamente produzidas em "legítima defesa" pelos agentes e habilitou um caminho jurídico e social diferenciado. Foi essa transfor-
policiais e que, portanto, nao sao consideradas "crime". O ponto é que essas ma<;:ao que tirou o caso das estatísticas e tornou um caso ordinário em
mortes nao sao investigadas pela Polícia Civil nem pelo Ministério Público. um "caso de repercussao", fazendo do caso "Juan" urna exce<;:ao dentre os
Assim, sem poder esclarecer suas circunstancias, podemos afirmar que os muitos casos de mortes em favelas produzidas pela polícia16 •
"autos de resistencia" funcionam como um modo diferencial de classificar
e administrar burocraticamente a a<;:ao policial, inclusive legitimando e le- Patrícia: da excegao ao ordinário
galizando certas a<;:óes ilegais. Desse ponto de vista, a classifica<;:ao inicial
dos fatos do "caso Juan" como "auto de resistencia" nao fugia do padrao Diferentemente, o caso da juíza parecía ter sua origem numa exce<;:ao. Ao
de atua<;:ao policial e, ainda mais, nao se tornava, por si mesma, um crime. contrário do que ocorre com jovens negros nas favelas, mortes de juízes
Sendo assim, como entender a repercussao do caso Juan se, afina! de nao sao parte das rotinas policiais. O fato em si encerrava na sua dinamica
contas, mortes de jovens negros em favelas do Rio por parte de agentes os elementos que o fariam repercutir: urna juíza criminal assassinada por
policiais nao sao excepcionais e até podemos dizer que estao integradas na
rotina policial, que sao legitimadas por políticos e até valorizadas por par-
te da sociedade? Como esse fato tinha mobilizado a imprensa, organiza- 15
A pesquisa desenvolvida pelo NECVU/UFRJ identificou 510 ocorrencias classificadas
<;:óes políticas e nao governamentais e recursos extraordinários da Polícia como "autos de resistencia" para o ano de 2005. Dessas, foram in staurados 355 inquéritos.
Desses, apenas foi possível localizar 19 no Tribunal de Justiya até tres anos depois dos
Civil? Como esse acontecimento ordinário saía da rotina e se tornava, se
eventos. Desses, 16 vieram do Ministério Público com pedido de a rquivamento (MISSE et
nao excepcional, pelo menos exemplar? ali, 2013, p. 45). Por sua vez, a pesquisa de Orlando Zaccone (2015) analisa 308 processos,
Nosso argumento é que para poder entender essa repercussao inicial entre 2003 e 2009, classificados como "autos de resistencia" com d ecisao de arquivamento
e demonstra que 99% dessas decisóes n ao se justificam jurídicamente.
do caso foi necessária urna opera<;:i'io classificatória. Por um lado, urna re- 16
Nao possuímos dados oficiais específicos sobre mortes classificadas como "autos de re-
sistencia" em territórios classificados como "favela". A pesquisa desenvolvida pelo NEC-
VU/UFRJ aponta, no entanto, conforme dados do ISP/RJ, que entre 2001 e 2011 mais de
14
dez mil pessoas foram mortas pela Polícia no estado do Río de Janeiro. O pico de mortes
Em 2011, a no no qua! ocorreram os dois casos analisados nesse artigo, houve 526 mortes fo¡ no a no de 2007, momento imediatamente prévio a implementa<¡:ao da chamada "políti-
em maos da Polícia no estado do Rio de Janeiro (MISSE et ali, 2013, p. 17). ca de pacifica<¡:ao" (MISSE et ali, 2013, p. 17).
24
Entre ratinas, temporalidades e moralidades 25
CASOS DE REPERCUSSAO

como já mencionado. Desse modo, "mexer" no ordinário dessas mortes


21 tiros na porta de sua casa, um condomínio de classe média no bairro
constituiu-se em urna raridade tal que, paradoxalmente, através da morte
de Piratininga, Niterói. A posic;:ao social e institucional da vítima e, pos-
excepcional da juíza, colocou em evidencia essas outras mortes ordinárias.
teriormente, dos primeiros suspeitos, todos agentes públicos, tornavam os
Assim, a partir desses contrastes entre os casos na sua relac;:ao com as
acontecimentos um evento significativo. Os jornais noticiavam que, além
rotinas burocráticas, buscamos entender como a repercussao de um caso
do caso da juíza, só dois juízes tinham sido executados em condic;:6es se-
se revela como um processo construído pela agencia de diversos atores, e
melhantes, oito anos antes, um em Sao Paulo (SP) e outro em Vitória (ES)
nao com urna característica dada pelo fato em si. Acompanhando os casos,
(Jornal O Globo, 12/08/11)17•
percebemos também como essa repercussao tem diferentes ritmos e tem-
Para que essa morte se tornasse um caso, o "caso Patricia", nenhuma
poralidades que dependem das operac;:6es classificatórias acionadas pelos
transformac;:ao jurídica ou moral foi necessária. Desde o inicio, o mesmo
atores, gerando efeitos e regimes de visibilidade diferenciados.
foi classificado nao só como crime ("homicídio"), mas como urna "execu-
c;:ao", enfatizando a forma "cruel" e "brutal" da morte. Ele aparecia por si
só como urna excec;:ao, um caso fora do comum. A condic;:ao social e pro-
fissional da vítima e as circunstancias de sua morte, assim, faziam daquela
As temporalidades da repercussao
morte um "caso de repercussao". Nessa interpretac;:ao, embora tenha havi-
A interpretac;:ao dos casos a partir da categoria de repercussíio ressaltou
do mobilizac;:oes institucionais e familiares em torno do caso, acreditamos
a dimensao do tempo como um aspecto significativo para a análise18 • O
que a repercussao do mesmo nao foi um efeito delas, mas do fato do assas-
acompanhamento dos casos mostrou um certo ritmo no qual os mesmos
sinato (de urna juíza) em si mesmo ser extraordinário. Assim, a excepcio-
repercutem, tendo altos e baixos nao só na sua presenc;:a na mídia, mas
nalidade do caso teve como efeito dar o pontapé inicial de um processo de
também na relevancia na rotina das agencias, que era o principal foco de
repercussíio que, conforme apresentaremos e exploraremos mais adiante,
nossa análise.
colocou em jogo valores morais corporativos, mas que também teve efeitos
Inicialmente, esse ritmo se mostrou atrelado a certos acontecimen-
secundários significativos.
tos que, por diferentes motivos, se tornariam eventos importantes para o
Aquí nos interessa ressaltar, entao, como, nesse processo de repercussíio,
prosseguimento do caso. Em geral, trata-se de acontecimentos associados
a relac;:ao entre o excepcional e o ordinário ganhou também outra dimen-
a momentos do processo: prisa.o de suspeitos, início e finalizac;:ao do in-
sao de análise significativa para entender como esse processo, além de se
quérito policial, oferecimento da denúncia por parte do Ministério Públi-
constituir como um efeito do caso, gerou seus próprios efeitos. Para isso, é
co, realizac;:ao das audiencias de instruc;:ao, realizac;:ao do julgamento pelo
necessário atender ao contexto no qual se desenvolveram os fatos anuncia-
Tribunal do Júri.
dos pela imprensa como urna "execuc;:ao".
Contudo, essa associac;:ao nao era linear - havia procedimentos do pro-
Isso porque, se o assassinato da juíza se revela como urna excec;:ao evi-
cesso que nao repercutiam - porque a repercussao nao pode ser associada
dente nas práticas policiais, também é certo que sua morte foi explicada
aos procedimentos policiais ou jurídicos, mas, como argumentamos mais
pelos atores envolvidos na investigac;:ao como resultado de seu trabalho
adiante, a como esses passos do processo jurídico ativam moralidades e
contra a produc;:ao de "autos de resistencia" no município de Sao Gonc;:alo.
sensos de justic;:a que tornam esses eventos significativos para os atores
A investigac;:ao por parte da juíza e do promotor dessa prática policial ilegal,
considerada por eles como sistemática, era urna excec;:ao no ambito judicial,
18
Tomamos aqui a dimensao do tempo reconhecendo, nos trabalhos de Durkheim e de
17
Mauss (1984 (1903]), a origem social dessa categoría e, ao mesmo tempo, as formas concre-
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/morte-de-juiza_-em-ni~eroi-acont~ce-
tas e particulares de percepc¡:ao e classificac¡:ao do tempo de certos grupos sociais (EVANS-
-oito-anos-apos-execucao-de-magistrados-que-tambem-combatiam-cnme-organ1za-
-PRITCHARD, 1978; FABIAN, 2013).
do-2869725>.
26 CASOS DE REPERCUSSAO Entre ratinas, temporalidades e moralidades 27

envolvidos. Em furn;:ao dessa percepc;:ao, sugerimos a existencia de pelo pela sociedade brasileira (em geral) e pelo sistema de justic;:a criminal (em
menos tres tempos distintos, que ora coincidem, ora se desencontram: o especial) nos quase 70 anos desde a sua publicac;:ao" (RIBEIRO e DUARTE,
tempo do processo, o tempo da ratina e o tempo de repercussiío 19• 2009, p. 15).
As justificativas jurídicas sem dúvida explicam boa parte das demoras
Tempo do processo e morosidades do "sistema". No entanto, nosso argumento aquí é que o
tempo do processo estaría nao só influenciado por variáveis formais, mas
Em primeiro lugar, podemos dizer que o processo jurídico que dá lugar também por outras sociais e morais que nao dependem do tipo de crime,
a ou se insere em um caso20 se inicia com a primeira intervenc;:ao de urna dos ritos processuais específicos, da quantidade de crimes e/ou dos recur-
agencia pública dando notícia de um crime; aquilo que Michel Misse cha- sos públicos rnateriais e humanos disponíveis, mas da percepc;:ao e classi-
ma de processo de criminarao no sentido do necessário "encaixamento ficac;:ao por parte dos agentes sobre a natureza dos conflitos e das pessoas
dos fatos na lei" (2008, p. 28), em específico nas categorías jurídicas do envolvidas. Essas variáveis sociais e morais estao diretamente relacionadas
Código Penal. Essa classificac;:ao <leve ser feita através de procedimentos as outras temporalidades que, como propomos, fazem parte do processo
burocráticos e formais com competencia de agencias e agentes específicos de criminac;:ao e de incriminac;:ao (MISSE, 2008): o tempo da ratina e o
que, em teoría, comporiam o chamado sistema de Seguranc;:a Pública e tempo da repercussiío.
Justic;:a Criminal21 •
A partir do momento em que um certo fato é classificado como crime, Tempo da ratina
transcorrem urna série de procedimentos sujeitos a prazos e regras espe-
cíficas, a maioria delas atreladas ao Código de Processo Penal. É um tem- Nessa linha, entendernos que o tempo do processo está também sujeito a
po próprio da formalidade burocrática e administrativa e condic;:ao para urna temporalidade própria das rotinas das diferentes agencias responsá-
a validade legal do processo. Em termos de ternporalidade, alguns pes- veis pela administrac;:ao dos crimes. É o que chamamos aqui de tempo da
quisadores tem chamado a atenc;:ao para o caráter "irreal" desses prazos, ratina, que, como dernonstram diversas etnografias (KANT DE LIMA,
nao apenas constatando que praticamente nunca sao respeitados, como 1995; KANT DE LIMA, EILBAUM PIRES [Orgs.], 2010; MOUZINHO,
também chamando a atenc;:ao para o fato do Código de Processo Penal, que 2007; MEDEIROS, 2012; SILVA, 2013; FERREIRA, 2016; entre outros),
data de 1941, apresentar "urna medida irreal para balizar o tempo de pro- está sujeito a regras e valores próprios de cada agencia, que nao necessaria-
cessamento de um crime na atualidade, dadas as mudanc;:as vivenciadas mente coincidem com as formalidades da lei e que, inclusive, muitas vezes,
a contradizem. Trata-se daquilo que Roberto Kant de Lima tem chamado
de ética policial, para o caso da Polícia Civil22, mas que poderíamos es-
19
Entre outros, poderíamos pensar na tempora!idade dos atores diretamente envolvi- tender com a categoría de éticas corporativas para outras agencias <lestes
dos nos conflitos tratados, ou seja, a percep<;:ao do tempo dos familiares das vítimas, por
"sistemas".
exemplo, mas essa dimensao ainda nao tem feito parte da análise.
2
° Chamamos aten<;:ao aqui para a diferencia<;:ao entre caso jurídico e caso etnográfico. Propomos que sao essas éticas, diferenciadas justamente por nao se
Assumimos que um caso jurídico e, ainda mais, um processo jurídico, é apenas um ponto tratar de um sistema integrado, que ditam o ritmo, as prioridades e as
em urna sequencia de acontecimentos e eventos que em seu conjunto confirmam um caso
a ser analisado do ponto de vista etnográfico. As conexoes entre esses pontos sucessivos,
formas de atuac;:ao dos agentes nos casos concretos. Nesse sentido, as
ou nao, sao feítas pelo etnógrafo. Para essa discussao ver Gluckman (1975); Van Velsen
(1975) e Schapp (2007 [1976)).
21 Em Kant de Lima, Eilbaum e Pires (2010), questionamos o pressuposto das agencias 22
Kant de Lima define a ética policial como "um conjunto especial de regras e práticas
competentes pela Seguran<;:a Pública e pela Justi,;:a Criminal no Brasil de comporem um que serve como fundamento para o exercício de urna interpreta,;:áo autónoma da lei e que,
sistema integrado. Diferentemente, as etnografias demonstram que elas atuam ora como como tal, imprime a aplica,;:áo da lei urna característica particular, própria das práticas
corpora,;:oes que náo dialogam, ora vinculadas por la,;:os pessoais, mas náo institucionais. policiais" (1995, p. 65).
28 CASOS DE REPERCUSSAO Entre ratinas, temporalidades e moralidades 29

particularidades dos casos adquirem especial relevancia para entender Tempo de repercussao
as formas de administra<;:ao dos mesmos, bem como o tempo dedicado,
ou nao, a eles. O terceiro domínio de temporalidade que propomos é o tempo de repercus-
Assim, queremos chamar a aten<;:ao de que o tempo da ratina das agen- sao. Em princípio, referimo-nos com essa no<;:ao ao tempo e ao ritmo no
cias também molda o ritmo de andamento dos processos e que essa mol- qual certo caso é exposto na mídia, ou seja, de urna repercussao pública e/
dura está sujeita a outras regras que nao as formalidades do processo, mas ou midiática. Em rela<;:ao a ela, em fun<;:ao dos casos analisados, sugerimos
as subjetividades e moralidades próprias das instituic;:oes e de seus agentes. que existe um ritmo de repercussao diferenciado e irregular que distingue
Mais do que considerar o crime em si, essas subjetividades e moralidades e hierarquiza casos distintos.
consideram a n atureza do caso, a qualidade e status social e moral dos Em primeiro lugar, nem todos os casos se tornam casos de repercus-
atores envolvidos e, em certa medida, a repercussao dele. lsso faz com que sao a partir de sua ocorrencia24. O tiroteio que deu origem ao "caso Juan"
as práticas das agencias tenham suas próprias temporalidades que podem foi apenas noticiado. Foi a partir da mobilizac;:ao dos país e vizinhos, mas,
tanto acelerar quanto retardar o tempo do processo, que, quando nao "ir- sobretudo, do "trabalho de advocacy", como dito por um assessor da Co-
real", pode ser extremamente variável. missao da ALERJ, de políticos e jornalistas que os fatos ganharam espa<;:o
Específicamente, no caso da juíza já mencionamos a celeridade da in- na mídia. Ora, após essa mobilizac;:ao inicial, o caso foi perdendo visibili-
vestiga<;:ao policial respeitando, sem prorrogac;:oes, um prazo de investiga- dade. Acompanhando o "tempo do processo", alguns jornais noticiaram,
<;:ao que comumente denomina-se "pingue-pongue", pelas inúmeras idas e um ano e tres meses depois, a realiza<;:ao do Júri dos policiais acusados. O
vindas da investiga<;:ao entre a Polícia Civil e o Ministério Público. Além Júri também foi acompanhado por alguns jornalistas, porém a repercussao
disso, qualitativamente, também é comum em várias sess6es do Júri ou- do mesmo nao manteve o ritmo inicial em termos sociais e políticos (EIL-
vir fortes críticas por parte do Ministério Público a investiga<;:ao policial, BAUM e MEDEIROS, 2016).
por "falta de provas" que permitam exercer a acusa<;:ao. Foi exatamente a Como contraponto, o "caso da juíza" foi noticiado apenas horas depois
posic;:ao contrária exposta pelo promotor durante todas as sess6es de todos de acontecidos os fatos. Após essa primeira matéria, nos días sucessivos e
os Júris do caso. A qualidade de "excelencia" e de "excepcionalidade" da semanas continuaram sendo publicadas nao apenas notícias, mas capas de
investiga<;:ao policial foi recorrentemente exaltada por ele, reforc;:ando o ar- jornais e grandes manchetes sobre o caso. Um ano depois, como aniver-
gumento da necessária condenac;:ao dos réus. sário da morte, o caso reapareceu na mídia com várias repor tagens, inclu-
No caso Juan, poderíamos dizer que o tempo da ratina teve urna curta sive transmitindo informa<;:6es e os atos de memória25 • Da mesma forma,
dura<;:ao, enquanto a versao policial se afian<;:ava definindo os fatos como acompanhando o tempo do processo, a mídia cobriu todos os sete Júris
um "auto de resistencia". Nessa lógica, a Polícia Militar e a Polícia Civil realizados, mais outros passos do processo, como a "dela<;:ao premiada", a
deram prosseguimento aos passos formais e rotineiros, evidenciando urna
ética corporativa pela qual a formalidade do processo dá validade e conso-
lida a versao da autoridade pública23 . Quando a classificac;:ao como "auto 24
Poderíamos também d izer que nem todas as notícias se tornam casos, tanto no sentido
de resistencia" mudou para "homicídio", através da transforma<;:ao já men- de processos jurídicos, como no sentido social do termo, dando continuidade a sua expo-
cionada, urna outra temporalidade ganhou a vez do tempo da ratina e do si<;:ao pública. E, o que ainda é muito mais evidente, que nem todos os acontecimentos se
tornam notícias...
processo: o tempo da repercussao. 25
Foram realizados, pelo menos tres atos públicos, todos organizados pelo movimento
Rio de Paz. Um na praia de Copacabana, quando foi afixado um cartaz na areia em frente
a 21 fotos de balas de revólver, com a frase: "21 tiros na Justiya: um ano do assassin ato
23Na tradiyao jurídica e burocrática ocidental e continental, as informay6es produzidas da juíza Patrícia Acioli". O outro ato foi realizado na praia de Icaraí, Niterói, quando foi
pelas autoridades públicas possuem "fé pública" e, portanto, contam com presunyao de colocada urna placa na "Arvore da Patr ícia". Dias depois também foi realizada urna missa,
verdade (Kant de Lima, 2010; Miranda, 2000; Eilbaum, 2008). a pedido do Tribunal de Justiya, na Catedral Metropolitana.
30 CASOS DE REPERCUSSAO Entre ratinas, temporalidades emoralidades 31

mudanc,:a de presídio dos acusados, os recursos interpostos por advogados que um dos assessores da Comissao de Direitos Humanos da ALERJ, que
e os pedidos de habeas corpus. Ao mesmo tempo, a repercussao midiá- impulsionou o caso, definiu o mesmo como "um caso emblemático". Nesse
tica extrapolou também o tempo de processo divulgando outras notícias caso, também o tempo do processo foi alterado quando ganhou repercus-
e iniciativas vinculadas ao caso, como as sucessivas edi<;:oes do "Premio sao o questionamento a atuac,:ao de um perito, do Posto Regional de Policia
Patricia Acioli Direitos Humanos"26 , bem como noticias que envolvemos Técnico Científica de Nova Iguac,:u, que identificou como sendo de urna me-
policiais acusados para além desse processo27• nina a ossada posteriormente reconhecida como de Juan29• Esse erro inicial,
Nos dois casos, verifica-se certa oscilac,:ao na repercussao midiática su- junto com a repercussao do caso, provocou um problema interno na Polícia
jeita a diversos fatores, entre eles critérios jornalísticos de priorizac,:ao de Civil, pelo qual os responsáveis iniciais pela investigac,:ao foram afastados e
notícias (SILVA, 2010). É evidente que atualmente a mídia (ou melhor, as sindicancias foram instauradas. Nesse sentido, a repercussao institucional
mídias nos seus diferentes veiculos, velocidades e formatos) é urna pec,:a que o caso provocou teve também efeitos na repercussao pública através
fundamental na constrw;:ao de pressoes que afetem as rotinas das agencias. de manifestac,:oes e respostas das autoridades sobre o caso, tirando-o nova-
Contudo, queremos enfatizar aqui nao ser a única, pois existem também mente do anonimato da rotina, conforme viemos argumentando3º.
outros atores políticos e sociais que impulsionam certas formas de traba- No caso da juíza, paralelo a repercussao midiática, o tempo do processo
lho e de exposic,:ao dos casos. As pressoes das relac,:oes de hierarquia das e da ratina foram acelerados pela repercussao corporativa que a morte
institui<;:oes; por sua vez, em algumas situac,:oes pressionadas por atores de urna juíza ganhou entre os atores judiciais. Como analisaremos em
políticos influentes; contextos particulares atrelados a imagem pública de detalhe no próximo ponto, os valores esgrimidos em torno da "necessi-
urna instituic,:ao, cidade e/ou país; e também valores morais corporativos dade" de fazer justic,:a nesse caso colocavam de relevo o Judiciário como
da.o forma aos casos e mobilizam recursos diferenciados, que, por sua vez,
geram múltiplas repercuss6es.
No caso Juan, a mobilizac,:ao política da Chefia da Policia Civil mudou respectivamente, por "lesiio corporal decorrente de interven1yao policial" e "mor te decor-
a normativa que regula a atuac,:ao da Polícia Civil em casos de suspeita de rente de interven1yao policial". Disponível em: <http://www.ebc.com.br/2012/ll/cddph-re-
"autos de resistencia"28 • Foi a partir dessa decisao político-administrativa comenda-fim-dos-termos-autos-de-resistencia-e-resistencia-seguida-de-morte-nos>.
29
Essa ossada foi encontrada dez días após o desaparecimento do Juan por peritos da Polí-
cia Civil em um córrego próximo ao local onde a crianc;:a fo¡ vista pela última vez. Na oca-
siao, a Chefe de Polícia Civil do Rio de Janeiro, Mar tha Rocha, determinou que fosse rea-
26
Mais adiante analisaremos essas iniciativas como efeitos gerados pela própria repercus- lizada urna série de exames, como: DNA; papiloscopia; arcada dentária; e antropológico
sao do caso. para que fosse possível a identifica1yao da menina morta encontrada pelos policiais. Além
27
No dia 11 de agosto de 2015, o Jornal Extra noticiou o fato do coronel condenado pela disso, buscou-se realizar investigac¡:6es de meninas desaparecidas que se encaixassem na-
morte da juíza ter sido n omeado para presidir urna sindicancia. A matéria, que no final quele perfil na regiiio metropolitana do estado. Em 06 de julho, tais exames indicaram que
explica que se tratou de um erro administrativo da institui1yao, na sua maior parte retoma aqueles ossos, que ainda continham vestígios de pele e urna das maos conservadas, nao
a narrativa do caso, relembrando as circunstancias da morte da juíza, os julgamentos e eram de urna menina, mas de um menino. E que aquela ossada era mesmo a do menino
incluindo fotos do coronel e da juíza. Disponível em: <http://extra.globo.com/casos-de- Juan. A partir disso, a investiga1yao médico-legal do caso passou ao Instituto Médico Legal
-policia/oficial-condenado-por-morte-de-juiza-no-rio-nomeado-pela-pm-para-presidir- do Rio de Janeiro. Nesse instituto, foi comprovada a identidade de Juan e que sua morte
sindicancia-17154603.htmi>. fora provocada por um tiro no pescoc;:o disparado pelos policiais militares. O cadáver do
28
A chefia definiu que os delegados, antes de lavrarem o auto de resistencia, deveriam menino Juan fo¡ enterrado no dia s07 de julho no cem itério municipal de Nova Iguac;:u
fazer perícias e tomar depoimentos para ter certeza de que nao se trata de urna execu1yao. (MEDEIROS, 2016a).
Os policiais envolvidos diretamente no confronto, logo que apresentassem a ocorrencia a
30
Martha Rocha declarou: "O episódio do Juan nao pode ser mais um caso em que a Polí-
delegada, também deveriam levar suas armas apreendidas para exames de balística. Em cia Civil atuou. Ternos clareza que erramos, tanto que a perita está respondendo por isso
21 de dezembro de 2012, foi publicada a resolu1yao nº 08 do conselho de defesa dos d ireitos e o delegado foi afastado. Fizemos um estudo de caso no qua! descobrimos onde ficamos
humanos da presidencia, que recomenda que martes e!ou les6es decorrentes de operac;:oes vulneráveis. Achoque é este o momento de aprendermos com nossos erros. A Polícia Civil
policiais ou de confrontos com a polícia que antes constavam nos boletins de ocorrencia tem um compromisso com a verdade". O secretário de Seguranc;:a também se manifestou
sob os termos "autos de resistencia" e "resistencia seguida de morte" devem ser trocados, enfatizando o caráter "triste e vergonhoso" do caso (O Globo, 10/07/11).
32 CASOS DE REPERCUSSAO Entre rotinas, temporalidades e moralidades 33

um todo, mostrando também, como em relac;:ao a Polícia Civil no caso rendados em certos casos. A partir dessa perspectiva, buscamos identificar
Juan, as disputas internas na corporac;:ao. Por um lado, porque o caso co- quais sao as moralidades que sao lanc;:adas sobre os protagonistas dos casos
locava em evidencia conflitos em torno da decisao e da responsabilidade por parte dos agentes, seja através das construc;:6es da mídia, seja através
da custódia de magistrados. Por outro lado, porque a atuac;:ao excepcional das rotinas do processo (num local de crime, ao redor de urna mesa de ne-
da juíza e sua performance também ocasionavam certa polemica entre os crópsia, em urna delegada, em urna sessao do júri). Sugerimos que é sobre
magistrados. essas construc;:6es morais que se produzem sensos de justic;:a que podem vir,
Em resumo, nosso argumento aqui busca enfatizar que nem sempre o ou nao, a ativar recursos diferenciados dentro das rotinas institucionais.
ritmo oscilante da repercussao midiática se reproduz na temporalidade E um papel fundamental nesse processo parece estar nas press6es e inte-
das agencias. Nessa linha, o tempo de repercussao nao é apenas midiático, resses institucionais e/ou corporativos que se desencad eiam sobre e entre
mas é também um tempo corporativo, que articula o tempo do processo os agentes, quando certos casos ganham repercussao pública, articulando,
e o tempo da ratina, dando visibilidade e velocidade diferenciadas a ad- assim, as dimens6es já trabalhadas. Ambos os casos sao exemplares nisso,
ministrac;:ao dos casos. Em func;:ao dessa orientac;:ao, guiada pelas éticas porém por motivos, ou caminhos, diferentes.
corporativas, é possível entender como a repercussáo de um caso influencia
nas rotinas das agencias. Nelas, os processos se estancam ou mobilizam, Juan: a construgao da vítima
de acordo a ritmos diferenciados, sujeitos a urna articulac;:ao conjunta das
tres temporalidades e, portanto, como iremos argumentar, as moralidades Dizíamos acima que, na nossa interpretac;:ao, para sair da rotina, o caso
definidas situacionalmente (EILBAUM, 2012). Juan precisou de duas transformac;:6es: urna jurídica (de "auto de resisten-
cia" a "homicidio") e urna moral (de "menor desaparecido" a "menino as-
sassinado"). Aqui nos interessa focalizar nessa segunda conversao moral.
As moralidades envolvidas Inicialmente noticiado como um confronto entre policiais e traficantes, es-
pecificamente envolvendo um "menor", a figura do Juan ficou sumida nas
Como terceira dimensao, interessa discutir como essa repercussao e estatísticas e nos casos ordinários das "operac;:6es policiais".
as temporalidades mencionadas sao ativadas a partir de certas mora- Foi a necessária transformac;:áo dessa figura em urna outra classifica-
lidades. Como viemos argumentando, percebemos que os processos de c;:ao - nao já jurídica, mas moral - o que a tirou do anonimato, converten-
repercussao gerados em cada um dos casos estavam fortemente asso- do Juan em urna "vítima" e construindo os fatos ordinários em um "caso
ciados as moralidades acionadas pelos agentes e pelas agencias nas suas de repercussao"32 • Em primeiro lugar, o acompanhamento do caso mostra
formas de administrac;:áo31 • Nesse sentido, entendemos que a noc;:ao de como, com a mobilizac;:ao dos familiares e vizinhos, o "menor" ganhou
moralidades mobiliza tanto certos valores morais como interesses que, um nome e um rosto através das fotos exibidas e dos cartazes demandan-
em situac;:6es particulares, orientam as ac;:6es dos agentes públicos (EIL- do a aparic;:áo do corpo sumido. Como mencionamos, essas imagens se
BAUM, 2012). expandiram pelas ruas do Rio de Janeiro e culminaram com sua exibi<;:ao
Neste artigo, interessa-nos enfatizar como essa orientac;:ao pode mobili- na alegac;:ao final do promotor no Júri pedindo a condenac;:ao dos réus por
zar recursos - procedimentos, tempos, recursos humanos, normas - dife- essa morte "injusta"?

31 32
Nao buscamos com isso (ou nao apenas) entender a caracteriza<;ao pública (principal- Em outro artigo (2016), analisamos específicamente o Júri do "caso Juan", focaliza ndo nas
mente, da imprensa) dos personagens de um caso (a caracteriza<;ao moral positiva da ví- diversas formas de expressao pública de sentimentos por parte dos diversos agentes e em
tima e negativa do suspeito) (PAIVA, 2012), mas priorizar os valores morais ativados nas como por meio dessas formas de expressao, e nao como papéis estabelecidos formal e pre-
formas de administrac¡:ao institucional dos casos e seus efeitos. viamente pelo processo judicial, sao construídas as figuras as figuras de "vítima" e "culpado".
34 CASOS OE REPERCUSSAO Entre ratinas, temporalidades e moralidades 35

Em segundo lugar, durante o Júri, a figura do Juan já tinha se constituí- (presidente da Anistia Internacional)35, "um atentado a sociedade brasi-
do como a vítima legítima do caso. Justamente o contraste coma outra ví- leira" (presidente da ONG Rio da Paz)36 , "urna barbaridade contra um
tima fatal dos (mesmos) fatos, Igor, evidencia ainda mais o quanto o papel ser humano e, sobretudo, contra a Justiya brasileira e o Estado de Direito"
de vítimas nao é apenas jurídico ou processual, mas também moral. Como (presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil) 37, "urna agressao
analisamos em outro lugar, o resultado do Júri é revelador nessa classifica- ao estado de direito" (Editorial do Jornal O Globo)38, "21 tiros na Justiya"
<;:ao moral diferencial, pois os jurados condenaram os policiais pela marte (Movimento Rio de Paz) 39•
do Juan e os absolveram pela marte do Igor (EILBAUM e MEDEIROS, Sugerimos que essas e outras classificayóes e representayóes sobre o
2014 e 2016). evento produziram urna nova vítima sobreposta a figura da Patrícia. Essa
Nesse processo, a imagem, a idade, o carpo e o rosto do Juan foram nova figura, em certa medida, apagava a individualidade da vítima - essa
construídos como o símbolo principal do caso e, sobretudo, como o valor juíza, centrando o foco na vitimiza<;:ao de valores ideais e abstratos: estado
moral a ser defendido: a marte e o desaparecimento de urna "crianya ino- de direito, justiya, democracia, direitos humanos, !uta contra a impuni-
cente", e nao de um "menor" (VIANNA, 1999; VILLALTA, 2010)33 nem de dade, direito a vida, a liberdade, ao respeito, a igualdade e a seguranya4 0 •
um "traficante" (ZALUAR, 1985; GRILO, 2013)34 • Assim, o crime - sempre individualizante na lógica jurídica (EILBAUM,
2011) - ganhava dimensóes maiores e sua vítima se expandia de um in-
Patrícia: urna outra "vítima" construída divíduo ao "povo brasileiro". O evento adquiria, dessa forma, nao só limi-
tes maiores, mas, sobretudo, permitia a constru<;:ao de urna demanda de
O "caso da juíza" parece mostrar um caminho diferente. A hierarquizayao justiya cuja moralidade estivesse ancorada em valores apresentados como
do status social e profissional da vítima já colocava sua figura fora do ano- "supremos".
nimato e, como já argumentamos, sua marte fora da ratina. No entanto, Ao mesmo tempo, o caso alcanyava efeitos nao já institucionais ou
propomos aqui que outras produyóes se fizeram necessárias. ideais, mas corporativos. A reayao das institui<;:óes responsáveis pelo caso -
Em primeiro lugar, identificamos que, em diversas manifestayóes pú- Polícia Civil e Judiciário - parece ter se mobilizado pelo sentimento de ver
blicas, a marte da ju íza e a a<;:ao dos policiais acusados foi definida como
"um duro golpe sobre o Estado de Direito e o sistema judicial no Brasil"

35
Disponível em: <http://www.humanosdireitos.org/noticias/noticias-relacionadas/246-
Anistia-Internacional---Assassinato-de-juiza-brasileira-expoe-corrupcao-da-policia-.htm>.
33 Tanto Carla Villalta (2010) como Adriana Vianna (1999), entre outros autores, tém ana- 36
Na celebrac;:iio de um ano da morte, o presidente da ONG acrescentou: "Se queremos
lisado a configurac;:iio particular e local da categoría "menor" como representando um que os valores democráticos e as virtudes que diio coesiio e beleza a vida em sociedade
sistema classificatório que recorta um setor específico da infancia. Villalta enfatiza, para fac;:am parte da alma do povo brasileiro, a data da morte de Patrícia Acioli nao pode ser
o caso da Argentina, a rede de instituic;:6es de administrac;:iio e gestiio desse setor social, esquecida".
privilegiando aquelas destinadas a chamada "protec;:iio" daquelas crianc;:as definidas por 37
Disponível em: <http://www.oabes.org.br/noticias/oab-execucao-de-juiza-foi-atentado-
diversas "carencias". Adriana Vianna, para o caso do Rio de Janeiro, analisa a construc;:iio -a-justica-e-estado-democratico-de-direito-553880.htmb.
38
da categoría "menor" como um processo desenvolvido no início do século XX pelo qua! os Disponível em: <http://memoria.oglobo.globo.com/jornalismo/reportagens/2I -
"menores" se constituem principalmente como urna "questiio de polícia", sendo os policía is tiros-na-j usticcedila-8832583>.
39
os agentes estatais que principalmente marcavam, por meio de sua atuac;:iio nas ruase da Disponível em: <http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/74790/Vinte-e-um-tiros-na-
produc;:iio de seus registros burocráticos, os limites da categoría "menor". Justic;:a.htm>.
34 Na década de 1980, Alba Zaluar trac;:a urna oposic;:iio entre duas categorías nativas oriun- 40
Esses últimos definidos como valores a serem promovidos e defendidos através da cria-
das de seu trabalho de campo em urna favela carioca: "bandido" e "trabalhador", como c;:iio do Premio "Juíza Patrícia Acioli de Direitos Humanos", da AMERJ. Conforme seu
portadoras de éticas distintas. Recentemente, em 2013, Carolina Grillo atualiza esse deba- edita!: "A premiac;:iio em homenagem a magistrada é aberta ao público de todo o país e
te mostrando valores próprios do "mundo do crime" e suas relac;:oes com o u tras categorías visa promover um mergulho no amplo un iverso da Cidadania, na defesa do direito a vida,
classificatórias. a liberdade, ao respeito, a igualdade e a seguranc;:a".
36 CASOS DE REPERCUSSAO Entre ratinas, temporalidades emoralidades 37

atingida sua atividade e os valores a ela atrelados41 • Patrícia Acioli, assim, nas dos (falsos) "autos de resistencia". No "caso da juíza", o processo de
podía representar nao só a Justi<;:a por sua condic;:ao de juíza, mas urna for- repercussiio construiu urna vítima que extrapolava a individualidade da
ma de desempenhar o trabalho "comprometida", "rigorosa", "séria" e "cora- Patrícia (incluindo, os aspectos polemicos) na sua conversao como "pes-
josa". A investigac;:ao policial "deveria" ser feíta, e assim o foi, com presteza soa'' (DA MATTA, 1997) e, sobretudo, a partir da evocac;:ao e mobilizac;:ao
e empenho; o julgamento também foi realizado mobilizando esses valores continuada de valores morais abstratos e pretensamente globalizantes do
corporativos, em especial nas argumentac;:oes do promotor, quem recor- ponto de vista dos agentes.
rentemente lembrava a "coragem", a "firmeza" e a "seriedade" da juíza.
Paralelamente, foi possível identificar urna disputa em torno da figura
individual da juíza. A reputac;:ao de urna juíza (mulher) "martelo de ferro" Sobre a categoria de "repercussao"
ou "martelo pesado", como foi caracterizada, também era colocada como
parte de urna personalidade controvertida, polemica, envolvida em confli- Ao longo do artigo, fomos descrevendo e tecendo diversas relac;:oes entre os
tos pessoais e institucionais diversos 42 • Nessa disputa, ergueu-se também a dois casos aquí analisados. Específicamente, em tres dimen soes de análi-
caracterizac;:ao, na mídia, mas, sobretudo, durante os Júris, da Patrícia nao ses que nos permitiram trac;:ar diferenc;:as significativas entre os processos
já como juíza, mas como mae e filha. Incansavelmente, os familiares da juí- de repercussiio de ambos e os possíveis efeitos que geraram: a rotina, o
za ocuparam boa parte das cadeiras destinadas ao público na sala do Tribu - tempo e as moralidades envolvidas.
nal, em especial sua mae e suas duas irmas. As duas filhas e o filho também Para concluir, gostaríamos de apresentar algumas reflexoes sobre nossa
tiveram urna presenc;:a significativa e evocada em todos os Júris. A foto de proposta de análise a partir da categoría repercussao. Em primeiro lugar,
urna Patrícia jovem, na época de sua formatura no Direito, foi recorrente- ternos optado por um uso analítico da mesma. Nesse sentido, propuse-
mente exposta nas sessoes de julgamento, evidenciando a semelhanc;:a dela mos trabalhar com essa categoría trac;:ando urna distinc;:iio com outras pre-
com urna ganhava, assim, um apoio moral em torno nao já de sua profissao, sentes no campo. Urna delas é a de "caso emblemático". Majoritariamente
mas de de suas duas filhas presentes nas sessoes. A vítima outros valores acionada na imprensa para se referir a casos que, por diversos motivos,
moralmente dominantes na sociedade brasileira, como a família. "mobilizam", "abalam", "chocam" "a opiniiio pública" ou "a socied ade bra-
Assim, marcamos aqui outra diferenc;:a como "caso Juan", no qual hou- sileira". A categoría de "caso emblemático" tem sido trabalhada por Luiz
ve sua conversao em "vítima" a partir de sua individualizac;:ao como "o Fábio Paiva:
menino Juan". Esse processo isolou Juan nao só das outras vítimas dos
mesmos fatos (em especial, Igor), mas também das tantas vítimas cotidia- A escolha dos casos percorreu um caminho repleto de inquieta<¡:6es sobre
como determinadas martes apareceram nos meios de comunica<¡:iio asso-
1
ciadas a ideia de que elas representa~am crimes que abalaram a sociedade
• Na ocasiiio de um ano da marte da juíza, um entao ministro do Supremo Tribunal Fe-
deral (STF) classificou o episódio como "extremamente grave", pois, segundo ele, foi um brasileira e, por isso, mereciam aten<¡:iio das institui<¡:6es de controle e nor-
ataque direto "aqueles que tentam conter a criminalidade no país". A Associayiio dos Ju- maliza<¡:iio das condutas sociais. Posto isto, os acontecimentos escolhidos
ízes Federais do Brasil também promoveu manifestayóes "em defesa de mais seguranya foram resultado de urna investiga<¡:iio sobre como sua cobertura, realizada
para os magistrados". Disponível em: <http://memoria.ebc.eom.br/agenciabrasil/noti-
cia/2 O12-08-11 /arvore-plantada-em -homenagem-patricia-acioli-recebera-placa-em -me- por instancias de produ<¡:iio de notícias, buscou retratar esses crimes como
moria-luta-da-j uiza>. experiencias que refletiam urna necessidade comum: a do Estado demo-
42
Em especial, a mídia expós, de forma minoritária, as relayóes amorosas que a juíza teria crático de direito brasileiro precisar, a partir de suas institui<¡:6es, criar
tido com membros da PM e um conflito familiar em torno de um processo judicial por
agressao corporal, invasao de domicílio e ameaya de morte contra um ex-marido dela, condi<¡:6es objetivas para que mortes do tipo das sofridas por Daniella [Pé-
cabo da PM. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/juiza-executada-prendia-pms- rez], Tim [Lopes], Joao [Hélio] e Isabella [Nardoni] nao possam se repetir e
tin ha-relacoes-perigosas-com-policiais-1-2690820>. muito menos permane<¡:am sem urna 'solu<¡:iio adequada. (2012, p.16).
38 CASOS DE REPERCUSSAO Entre ratinas. temporalidades e moralidades 39

Dessa perspectiva, os casos sao vistos como símbolos, emblemas de va- diferentes ambitos de intervenc;:ao. Dessa forma, apontamos para o caráter
lores dominantes que seriam abalados ou colocados em risco pelo crime nao único nem unívoco dos casos, mostrando que nos diferentes níveis ou
em questao. A análise apontaria, assim, para aquilo que os casos eviden- ambitos de repercussao o caso pode ecoar com diferentes ritmos, intensi-
ciam da ordem social, e o crime seria visto como a ruptura dessa ordem. dades e sintonías.
Essa análise se desenvolve sobre a visa.o que a imprensa constrói sobre os É nesse sentido também que buscamos analisar a repercussao como um
casos, como urna mao de v ia única do caso ao impacto. pracesso. Esse processo que pode se iniciar a partir de determinados acon-
Urna outra categoria nativa que buscamos distinguir cunhando a noc;:ao tecimentos (o sumic;:o do corpo, a morte de alguém) vai sofrendo trans-
de repercussao é a de "caso de relevancia". Essa tem se revelado nas nossas formac;:óes (jurídicas, sociais e morais) que constroem um "caso"43 cuja
etnografias (KANT DE LIMA, EILBAUM e PIRES, 2008; 2009) como urna trajetória ou circuito nos diferentes ambitos de comunicac;:ao (mídia em
categoria nativa no campo das instituic;:óes de segurarn;:a pública, em espe- diferentes veículos) e de administrac;:ao de conflitos (polícias, ministério
cial da Polícia Civil, para se referir aos casos que sao privilegiados e conside- público, judiciário) vai orientando e construindo o processo ao qual nos
rados mais importantes do que outros na ratina do trabalho policial: referimos.
Nessa praposta, nossa pesquisa atendeu especialmente para identificar
Nao é necessário passar muito tempo em urna delegada para perceber como a repercussao influencia e, ao m esmo tempo, é criada no ambito das
urna distirn;:ao dos casos em dois grandes tipos: "casos relevantes" e casos ratinas institucionais das agencias públicas responsáveis pela administra-
menores, conhecidos no meio policial como "feijoadas". Enquanto os pri- c;:ao de conflitos. Mostramos como essas ratinas podem vir a ser alteradas
meiros sao considerados parte do verdadeiro trabalho policial, as feijoadas e, ao mesmo tempo, como elas influenciam também nesse processo de re-
parecem fazer parte de um mal necessário [...]. Esses casos, talvez os mais percussiio. Buscamos, assim, a partir de casos distintos, explorar as espe-
abundantes em termos quantitativos, disputam a disponibilidade de tem- cificidades de diferentes processos de repercussiio para entender como cada
po e de recursos que poderiam ser destinados para a resolw;:ao dos "casos um pode, ou nao, tornar-se um evento que influencie o andamento de um
relevantes". Sao esses os casos que serao derivados ao ambito judiciário. processo e, em certa medida, coloque em evidencia e em contraste práticas
[...]. Dessa forma, entre os crimes "de verdade" ou "de repercussao", estao ratineiras das instituic;:óes.
aqueles que tem maior relevancia ainda, dependendo do quem comete o Dessa perspectiva, ambos os casos colocaram em evidencia formas ha-
crime ou contra quem foi cometido. Sao os casos que tem forte impacto bituais de agir da polícia que permaneciam naturalizadas, nao apenas na
na sociedade, sobretudo, através dos meios de comunicac;:ao, que, por sua ratina das instituic;:óes, mas também na sociedade de forma geral. A reper-
vez, pressionam o governo estadual, de quem depende a Polícia Civil. Re- cussao dos casos, dessa forma, gerau efeitos políticos nos modos d e enten-
querem, portanto, esmero na elaborac;:ao de inquéritos que permitam a de- der as práticas p oliciais. No caso Juan, específicamente, um dos efeitos da
núncia do Ministério Público e o posterior julgamento do poder judiciário. repercussao foi a portaria que modificou, formalmente, o procedimento de
(Kant de Lima, Eilbaum e Pires, 2009, p. 43). investigac;:ao em casos classificados pela polícia como "autos de resistencia".
No caso d a juíza, durante o julgamento dos policiais e em algumas maté-
Nossa opc;:ao por mobilizar a noc;:ao de repercussiio como urna categoría rias de jornais, também se clava relevo a ac;:ao violenta desses policiais em
analítica diferenciada está baseada, por um lado, no entendimento da re- out ras mortes (que nao da juíza). "Se foram capazes d e fazer isso com urna
percussao de um caso nao dizer apenas sobre um ambito de classificac;:ao
e intervenc;:ao, mas da mesma articular diferentes espac;:os, atores e tem-
43
O "caso" nessa acep<¡:ao extrapola os fatos que dao origem a um processo jurídico. Ele
poralidades, como midiático, político, social, institucional e corporativo.
abrange diversas instancias, situa<¡:6es e rela<¡:6es sociais que tornam determinados aconte-
Assim, a noc;:ao analítica de caso de repercussiio busca chamar a atenc;:ao cimentos eventos significativos e associados entre si. Por isso, nao todos os casos do ponto
para os efeitos e impactos diversos que um caso pode vir a p rovocar nesses de vista jurídico se tornam casos do ponto de vista analítico.
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40 CASOS DE REPERCUSSAO
Entre rotinas, temporalidades e moralidades 41

juíza, os jurados imaginem o que nao faziam com moradores do morro", GLUCKMAN, Max. O material etnográfico na antropología social inglesa.
concluiu em todas as sessóes plenárias o promotor atuante no Tribunal do In: ZALUAR, Alba (Org.). Desvendando máscaras sociais. Rio de Janei-
Júri correspondente. ro: Livraria Francisco Alves Editora. S.A., 1975.
Contudo, também percebemos que esses efeitos tem alcance limitado GRILLO, Carolina Christoph. Coisas da Vida no Crime: Tráfico e roubo
(EILBAUM e MEDEIROS, 2016). Por um lado, porque o "tempo de reper- em favelas cariocas. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS,
cussao" é oscilante e conjuntural, mas também efemero. Passados os fatos 2013.
"relevantes", passadas as pressóes políticas e sociais, cumpridos (ou prescri- LIMA, Roberto Kant de. A polícia da cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas
tos!) os prazos formais, passadas as "notícias", o processo de repercussao e paradoxos. Rio de Janeiro: Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro,
vai chegando ao seu fim. Por outro lado, porque o tempo institucional que 1995. 164p.
processa as mudanc;:as legislativas e os questionamentos as práticas corpo- _ _ __. Sensibilidades jurídicas, saber e poder: bases culturais de al-
rativas também tern um ritmo próprio, pelo qual, como assinala Ana Paula guns aspectos do direito brasileiro em urna perspectiva comparada. In:
Mendes de Miranda, "tudo muda para ficar igual" (2010, p. 281). Anuário Antropológico/2009 - 2, 2010, p. 25-51.
Por último, os efeitos desses processos também sao restritos porque as LIMA, Roberto Kant de.; PIRES, Lenin; EILBAUM, Lucía. Construcción de
moralidades atreladas aos casos sao situacionais a eles e suas conjunturas. verdad y administración de los conflictos en Río de Janeiro: una mirada
Com isso, nao desestimamos o fato de que certos casos nao mobilizem sobre las reformas de las instituciones judiciales y policiales. In: Avá, Re-
valores dominantes e mais abrangentes (PAIVA, 2012). Mas, queremos vista de Antropología, Posadas, Misiones. Argentina, n. 16, dic. 2009.
chamar a atenc;:ao, como evidenciamos nos casos Juan e Patrícia, das mo- LIMA, Roberto Kant de.; EILBAUM, Lucía; PIRES, Lenin. "Ici c'est dif-
ralidades acionadas durante o processo de repercussao darem relevancia a férent": espace, conflits et techniques d'accueil policiere dans les com-
urna construc;:ao moral das vítimas que nao é apenas urna política da vida, missariats de Rio de Janeiro. Revista Outre Yerre, París, Franc;:a, n. 18,
mas também urna política sobre a morte. p. 325-338, 2008.
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mar. 2009. da República, Luiz Inácio Lula da Silva. A medida judicial teria o propósito
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Niterói: EdUFF, 2010. Como as notícias iniciais apontaram, a opera<;:ao tem início no estado
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1
ficado da pobreza. Sao Paulo: Brasiliense, 1985. Urna versáo dessa artigo fo¡ publicado na Revista DILEMAS: Revista de Estudos de Con-
flito e Controle Social, vol. 9, n . 3, p. 505-529, set./dez. 2016.
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Roberto Kant de Lima é coordenador do Instituto de Estudos Comparados em Adminis-
trac;áo Institucional de Conflitos - INCT-InEAC (www.ineac.uff.br); professor do Progra-
ma de Pós-Graduac;áo em Antropología da UFF; professor do Programa de Pós-Gradua-
<;áo em Direito da UVA; Pesquisador de Produtividade 1-A do CNPq; cientista do Nosso
Estado/FAPERJ.
Glaucia Maria Pontes Mouzinho é professora do Departamento de Ciencias Sociais e do
Programa de Pós-Graduac;áo em Desenvolvimento Regional, Ambiente e Políticas Públi-
cas da UFF/Campos dos Goytacazes; coordenadora do Curso de Especializac;ao em Orga-
nizac;áo e Gesta.o das Instituic;6es de Justic;a Criminal e Seguranc;a Pública UFF/SENASP;
pesquisadora do Instituto de Estudos Comparados em Administrac;ao Institucional de
Conflitos - INCT-InEAC (www.ineac.uff.br).

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