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A PAH:

MANUAL DE USO
APRENDIZAGEM PARA A AÇÃO
COLETIVA A PARTIR DA LUTA PELO
DIREITO À MORADIA

JOÃO FRANÇA
A PAH:
MANUAL DE USO
APRENDIZAGEM PARA A AÇÃO
COLETIVA A PARTIR DA LUTA PELO
DIREITO À MORADIA

JOÃO FRANÇA
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 7
˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA 9

PREFÁCIO À EDIÇÃO ESPANHOLA


˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘ 15

INTRODUÇÃO: FAZER ALGO


˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘ 19
˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘
  1. COMO SE ORGANIZAR DE MANEIRA ACOLHEDORA 25

  2. C
 OMO RESOLVER PROBLEMAS
˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘
POR MEIO DO ASSESSORAMENTO COLETIVO 33

  3. COMO ORGANIZAR UM MOVIMENTO ASSEMBLEÁRIO


˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘ 43

  4. C
 OMO FAZER CRESCER
˘˘˘˘˘˘˘
UM MOVIMENTO DESCENTRALIZADO 53
˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘
  5. COMO GARANTIR DIREITOS POR MEIO DA DESOBEDIÊNCIA 63

  6. C
 OMO MUDAR NARRATIVAS
˘˘
COM OUTRA FORMA DE FAZER POLÍTICA 73

  7. C
 OMO FAZER OS PODEROSOS
˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘
SENTAREM PARA NEGOCIAR 81
˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘
  8. COMO TRANSFORMAR AS POLÍTICAS A PARTIR DAS RUAS 87

  9. COMO ADMINISTRAR OS CONFLITOS


˘˘˘ 99
˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘
10. COMO E POR QUE TECER REDES COM OUTROS COLETIVOS 105

SIM, SE PODE
˘˘˘ 111
˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘
POSFÁCIO: ESPERANÇA E RESISTÊNCIA 115
˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘˘
Como dar boas-vindas nas assembleias? Como se organiza um movimento assem-
Vera Bartolomé Díaz1 VOLTAR AO
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
bleário e descentralizado? Como se fazem ações diretas não violentas? Como negociar
com o outro? Como transformar narrativas e percepções? Como aproveitar o poder das
ruas? São perguntas que muitos movimentos respondem com o fazer; a proposta da
Plataforma de Afetadas pela Hipoteca (PAH) que reunimos nesta obra contribui com
esse debate a partir dessa experiência. A proposta aqui é sistematizar práticas que, não Andreas Behn1 e Jorge Pereira Filho2
sem obstáculos, vêm tendo um impacto na sociedade espanhola tanto em perspectiva
Se compartilhar a aprendizagem coletiva das lutas pelo direito à moradia de maneira
material, como ideológica de longo alcance.
horizontal e generosa é um princípio fundamental da Plataforma de Afetadas pela
Se há um movimento do Estado espanhol que teve um impacto internacional nos últi- Hipoteca (PAH), esta obra não foge a esse espírito ao longo de suas páginas. A partir
mos dez anos, foi o movimento de moradia. Concretamente a PAH protagonizou não dos testemunhos das pessoas que constroem cotidianamente o principal movimento
apenas uma mudança de paradigma sobre a maneira que entendemos a moradia como de luta por moradia (e direitos) na Espanha, João França revela com fluidez e de forma
um direito humano inalienável, bem como demonstrou a potência da ação coletiva para envolvente as práticas, a filosofia e as transformações do “método PAH” de constituir-
conquistar mais justiça social. Colocou evidente que há formas de transformar o pes- -se como uma organização, caracterizada pela ação direta e pelas formas democráticas
soal em político e de passar das lutas que poderiam ser dramas pessoais para grandes e criativas de atuação. E o autor faz esse percurso sem cair na tentação de absolutizar
movimentos organizados que interpelam às administrações e à própria sociedade. as ferramentas da PAH, tomando o cuidado de contextualizar sua existência no tempo
Neste volume queremos expor o que é a PAH, honrar sua história e sua luta por moradia e no espaço, além de revelar as mudanças pelas quais a plataforma passou, bem como
para um público internacional que vê suas conquistas com esperança. as contradições e os desafios que enfrentou.
As seguintes páginas apresentam como se organiza um movimento de moradia vivo e Para o público brasileiro, esta obra tem valor indiscutível, uma vez que o movimento de
horizontal que transforma as vidas das pessoas que o integram. Mais concretamente, moradia ao longo de nossa história tem se notabilizado em ser um dos protagonistas da
passo a passo e pela mão dos integrantes da PAH de toda a Espanha os métodos de luta por direitos coletivos. De certa maneira, reflexo da dimensão do problema da falta
organização se aprofundam. O objetivo é, não somente parar despejos, mas abrir porta de habitação digna no país, resultado de uma combinação entre questões históricas,
a uma reflexão coletiva sobre a moradia entendida como um bem comum. relacionadas à concentração fundiária e ao escravagismo, e de dilemas contemporâ-
Temos diante de nós o grande capital e suas dinâmicas monstruosas que jogam um neos, com a dificuldade de se estabelecer políticas públicas efetivas que façam valer o
papel duríssimo nas (contra) nossas vidas. No entanto, a luta por moradia mostra um direito constitucional à moradia digna.
caminho emancipador, cheio de grandes e pequenos êxitos. Estamos orgulhosas de Mais do que apresentar uma fórmula pronta a ser aplicada em qualquer realidade,
ter contribuído humildemente para cristalizar nesta publicação A PAH: manual de uso. este livro revela reflexões e lições de quem se propõe a enfrentar, com ousadia, uma
realidade local, específica, mas que nem por isso deixa de responder às consequências
Madri, 8 de fevereiro de 2021. que compartilhamos (e enfrentamos) conjuntamente do capitalismo internacional.

1 Diretor do escritório de São Paulo da Fundação Rosa Luxemburgo.

1 Coordenadora de projetos, escritório de Madri da Fundação Rosa Luxemburgo. 2 Coordenador de projetos do escritório de São Paulo da Fundação Rosa Luxemburgo.

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A PAH: MANUAL DE USO

A mercantilização da moradia, o avanço da financeirização sobre os bens essenciais


para a reprodução social, a precarização das relações trabalhistas, enfim, são várias
as facetas globais de um modo de produção que neste início de século XXI revela sua
incapacidade de responder às necessidades do nosso futuro.
É nesse sentido que a Fundação Rosa Luxemburgo, uma organização alemã vinculada
ao partido Die Linke, tem se comprometido não só a estar em parceria com organiza- VOLTAR AO PREFÁCIO
À EDIÇÃO BRASILEIRA
SUMÁRIO
ções como a PAH, que se insurgem contra as injustiças sociais, bem como a incentivar
intercâmbios entre experiências similares. Com escritórios em 24 países, a Fundação
atua a partir de um entendimento de que será apenas por meio da solidariedade interna-
cional, da cumplicidade entre todas, todos e todes que partilham ideias de justiça social,
em uma perspectiva democrática antirrascista, feminista, ecológica e anticapitalista,
que conseguiremos transformar não só nossa realidade local, mas também global.
Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos
A publicação desta obra, A PAH: manual de uso, se insere em uma gama de iniciativas
Nada mais oportuno do que evocar Rosa Luxemburgo para nos apoiar na empreitada
que estimula parcerias entre movimentos sociais e formação política. Agradecemos,
em que consiste esta publicação colocada como um exercício de solidariedade inter-
assim, às companheiras da PAH que não só embarcaram nessa jornada conosco, como
nacional no compartilhamento de saberes apreendidos desde as práticas de lutas pelo
dispuseram de seus corpos e seu tempo para vir ao Brasil participar das atividades
direito à moradia e à cidade, desde a vivência da Plataforma de Afetadas pela Hipoteca,
propostas pelo escritório de São Paulo da Fundação Rosa Luxemburgo. Também agra-
a PAH.
decemos ao Movimento dos Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD) que,
além de organizar um intercâmbio com a PAH, abraçou solidariamente todo o conjunto Rosa Luxemburgo ensinou que os mecanismos de expropriação1, ao lado dos meca-
de atividades propostas a partir desta publicação. Nosso reconhecimento a Marcia nismos de exploração da força de trabalho, sempre operaram de forma organicamente
Falcão, que revisou cuidadosamente este livro e participou com generosidade e cumpli- vinculadas e contínuas na história do capitalismo. A expulsão dos camponeses das ter-
cidade de toda a concepção deste projeto. Por fim, agradecemos a Vera Bartolomé Díaz ras e dos meios de produção para vender sua força de trabalho no mercado, da forma
por todo o empenho, abertura e compromisso com a PAH e este projeto, bem como a mais precária que o sistema pode impor a cada tempo, e o trabalho na esfera da repro-
Anna Schröder, diretora de escritório de Bruxelas. dução social da vida não valorado foram e seguem sendo condições para a viabilização
do capitalismo. Práticas que deram as condições para o surgimento e dominação do
Desejamos, assim, que esta obra seja mais um passo em direção a um processo que
capitalismo como sistema global, descritas por Marx como a acumulação primitiva,
não deve jamais ser interrompido, uma vez que nossos desafios são imensos, mas
seguem presentes como prática cotidiana, das mais variadas formas e em diferentes
como já escreveu Rosa Luxemburgo: “Não estamos perdidos. Ao contrário, vencere-
escalas, ora com mais intensidade e violência, ora com menos, mas sempre como um
mos, se não tivermos desaprendido a aprender”.
mecanismo sem o qual os níveis de acumulação para a manutenção do capitalismo não
São Paulo, 25 de março de 2023. se viabilizariam.
A história da produção das cidades pelo capitalismo é uma história crivada por tais prá-
ticas de expropriação. David Harvey cunhou o termo depossessão, para designar o
mesmo sentido de que tratou Rosa Luxemburgo com o termo expropriação. Trata-se
de mecanismos de expulsão forçada de famílias e comunidades, legal ou ilegalmente,
para usos mais rentáveis do solo urbano e da moradia por parte de agentes de mercado.
Sempre que possível, os agentes de mercado contam com o instituto da propriedade
privada para expropriar pela força do Estado: porém, se necessário, práticas informais

1 Ver mais em HARVEY, D. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2013, p.20 e em FRASER, Nancy;
JEAGGI, Rahel. Capitalismo em debate – uma conversa na teoria crítica. São Paulo: Boitempo, 2020, p.60/61.

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A PAH: MANUAL DE USO Prefácio à edição brasileira

que vão da pressão até atos criminosos e violentos de expulsão são acionadas. Exem- importante forma de redistribuição de renda não monetária. Então, cabe expandir nossa
plos disso são os casos dos narcopisos em Barcelona2 e dos incêndios em terrenos de concepção e pauta para afirmar que reivindicamos o direito à cidade como uma grande
interesse do mercado em São Paulo3, ambos como forma de expulsão dos moradores morada comum, como um bem comum produzido pelo trabalho das gerações que nos
para “liberar” o solo ou as moradias para usos mais rentáveis para o mercado. Trata- antecederam e como direito de nossa geração e das gerações que virão.
-se da clássica estratégia de gentrificação operada em áreas urbanas para as quais se Como nunca, este ciclo de acumulação capitalista vem avançando sobre as cidades,
projeta o interesse imobiliário. Primeiro, o imóvel ou a área é abandonada para degra- concentrando o solo urbano e a moradia nas mãos de grandes grupos da aliança imo-
dar física e socialmente, criando um ambiente em que moradores vão desistindo e biliário-financeiro e privatizando os serviços básicos de saúde, educação, saneamento,
vendendo a preços baixos os seus imóveis. Depois, são feitas reformas e a famosa transporte; até mesmos os parques e prédios históricos não escapam. E, uma vez que
revitalização que cria ambientes para novos padrões de consumidores. a maior parte da população do planeta vive nas médias e grandes cidades, é aí que se
Nessa esteira, as mais fundamentais necessidades humanas são alvo da disputa dos encontra o maior potencial de extração de todas as formas de riquezas do passado,
agentes de mercado, não só como patrimônio privado, mas patrimônio cada vez mais presente e futuro para a acumulação capitalista. A monopolização do solo urbano e da
concentrado na lógica do monopólio, da especulação e financeirização. A moradia tem moradia é uma preciosa mina de extração dos valores gerados da produção do passado,
sido um exemplo paradigmático disso. A moradia é uma das demandas mais básicas presente e futuro, num mercado de trabalho cada vez mais precarizado. Isso se dá via
para a manutenção da vida de indivíduos e suas famílias. A nossa espécie humana a especulação (retenção para valorização futura da área), o rentismo (do aluguel para
precisa e sempre precisou de um lar, un hogar no idioma espanhol, em alusão ao fogo moradia ou turismo via plataformas que não tributam na cidade e incidem na elevação
onde, a sua volta, reuniam-se as famílias e comunidades para proteger-se do frio, dos dos preços do aluguel no mercado) e, talvez aqui o mais importante, via os juros (de
perigos da noite, para preparar alimentos e cultivar relações e memórias. Seguimos financiamento imobiliário que drena os rendimentos de toda uma vida laboral, de 20,
lutando pela mesma necessidade básica: a segurança do acesso a um lar. Porém, 30 ou 40 anos pagando não somente por um imóvel, mas por juros sempre ao gosto
numa sociedade urbana com elevados avanços técnicos, fruto da capacidade e trabalho do mercado).4 Esses são alguns exemplos de mecanismos contínuos de expropriação,
socialmente produzidos, não cabe pensar a moradia como um abrigo de quatro paredes, para assegurar a acumulação capitalista, hoje sob a dominância do sistema financeiro
um teto e um assoalho. Morar é dispor de um abrigo provido de um conjunto de infraes- e com importante presença do setor imobiliário. Esses são exemplos de como ocorre
truturas e serviços urbanos que nos garantam o acesso as demandas fundamentais a despossessão dentro da legalidade e respaldo do Estado neoliberal. Nem por isso
para a reprodução da vida. Esse abrigo precisa dispor de água potável de forma contí- deixam de ser mecanismos de expropriação.
nua, energia elétrica e internet, saneamento, ruas iluminadas e transitáveis servidas por É nesse contexto que se situam os processos de despejos em massa da crise hipote-
transporte para ir e vir, equipamentos públicos de saúde, educação e cultura, praças e cária da Espanha,5 em que ao longo de pouco mais de uma década – 2008-2020 – mais
parques arborizados e bem equipados para brincar e praticar esportes, empregos dig- de 1 milhão de famílias foram despejadas, segundo dados do Conselho Geral do Poder
nos, memória material e imaterial preservadas, entre outros atributos que compõem o Judiciário.6 Num primeiro ciclo, por dívidas hipotecárias e, sobretudo pós 2014, por
direito a morar na cidade. Recursos, equipamentos e serviços urbanos operam como impossibilidade de arcar com os preços dos aluguéis.7 Com a participação ativa do

2 Os narcopisos são apartamentos de banco ou fundo de investimento – quase sempre expropriados por
dívidas – que são deixados “abandonados”, facilitando – e, por meios não lícitos, estimulando – que traficantes
4 Outro papel importante da retenção do solo urbano e da moradia por bancos e fundos de investimentos é sua
os ocupem para a venda de drogas. Isso acontece em áreas de circulação de turistas. No caso de Barcelona,
função de lastro para um sistema sob dominância financeira no qual o que circula é a promessa de créditos a
no chamado casco histórico da cidade. Com isso, o ambiente físico e social vai se degenerando – venda de
receber ao longo do tempo; um capital fictício que não pode realizar-se por não haver correspondência com
drogas, insegurança –, de modo que os moradores vão, pouco a pouco, vendendo seus imóveis a preços
riquezas realmente produzidas. Ver mais em “As metrópoles e o capitalismo financeirizado”, publicado pelo
desvalorizados. Após um tempo, o proprietário – banco ou fundo de investimento – faz reformas amplas
Observatório de Metrópoles (2020). Disponível em: <https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-
destinadas a perfil de moradores mais abastados, mudando o padrão de preços não só dos imóveis como
content/uploads/2020/08/As-metropoles-e-o-capitalismo-financeirizado.pdf>.
de todo o entorno. Para saber mais, acessar <https://prouespeculacio.org/2021/07/01/blackstone-el-casero-
buitre-global-de-los-alquileres-protegidos-demadrid-a-los-narcopisos-de-barcelona/>. 5 Ver mais em COLAU, A.; ALEMANY, À. Vidas Hipotecadas, 2012.
3 Trata-se de um padrão similar de incêndios na cidade de São Paulo. Eles ocorrem em ocupações 6 Alguns dos dados publicados em 05 de outubro de 2022, pelo CGPJ, estão apresentados em gráficos em
urbanas em regiões onde o solo urbano tem importante valor imobiliário. Com o incêndio, as moradias <https://www.epdata.es/datos/desahucios-estadisticas-datos-hoy-graficos-cgpj/230/espana/106>.
precárias são queimadas com pertences, documentos, fotografias e, não raras vezes, com perdas
humanas. Depois disso, é recorrente que apareçam estacionamentos no terreno e, algum tempo 7 Sobre a elevação dos preços de alugueis, ver em: <https://www.elperiodico.com/es/economia/20200901/
depois, ali se instala um grande empreendimento. Para saber mais sobre incêndios criminosos em São el-precio-de-la-vivienda-en-alquiler-se-disparo-el-52-en-los-ultimos-cinco-anos-8095063> e <https://elpais.
Paulo, ver o documentário Limpa com fogo (<https://www.youtube.com/watch?v=WAVqcCdFoos&ab_ com/economia/2020-09-01/el-precio-de-la-vivienda-en-alquiler-se-dispara-un-52-en-los-ultimos-cinco-anos-
channel=Andr%C3%A9HenriqueFigueiredo>). segun-fotocasa.html>.

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A PAH: MANUAL DE USO Prefácio à edição brasileira

Estado, bancos credores e fundos de investimentos acumularam milhares de mora- moradia, dos serviços básicos, das heranças arquitetônicas e culturas locais, da própria
dias para especulação e rentismo, fruto de despejos de famílias, majoritariamente de cidade para a gestão privada do mercado, ancorado nos marcos legais da propriedade
imigrantes e de mulheres chefes de famílias que perderam suas moradias após terem privada. De outro, a resistência e luta para que o solo urbano, a moradia, os serviços
pago suas hipotecas por 10 ou mais anos. Tamanha contradição exposta continha o básicos e as memórias materiais e imateriais sejam considerados bens comuns e direito
germe de seu enfrentamento e, dialeticamente, do bojo da grave crise das hipotecas, da população, ancorados nos marcos da função social do uso do solo e dos direitos fun-
forjou-se a Plataforma de Afetadas pela Hipoteca, no ano de 2009, na cidade de Barce- damentais assegurados na Constituição9 e tratados internacionais. É a força da dialética
lona, uma das cidades mais atingidas pela crise hipotecária. Movimento social que, ao movendo a história.
longo de mais de uma década, vem sustentando a luta pelo direito à moradia e à cidade, É por isso que as cidades e as lutas urbanas devem ser entendidas como uma impor-
experiência da qual colheremos aprendizados e inspirações nas páginas desde livro. tante frente da luta de classe contemporânea, uma vez que a cidade não só é palco e
No Brasil, somos herdeiras e herdeiros de um processo de urbanização acelerado e cenário, mas é também o objeto de conflitos entre os projetos antagônicos, de um lado
desordenado, sobretudo a partir dos anos 1950. De um lado, nossa urbanização é da reprodução de capitais e, de outro, da cidade como morada e bem comum.10 E se,
forçada pela expulsão do campesinato da terra, dada pela política de mecanização do de um lado, o neoliberalismo corrói as condições materiais para uma vida digna das
campo e, de outro lado, pela esperança na promessa de inclusão no mundo dos direitos populações urbanas – e todas as populações – de outro, movimentos sociais resistem,
pela industrialização financiada pelo Estado. Pela ausência de uma política urbanística atualizam-se e conectam-se em redes globais de solidariedade.
e de moradia por parte do Estado, nossas grandes cidades foram sendo autoconstruí- É nesse espírito que nós do Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos –
das pelos pobres, via ocupações de áreas marginais e de risco e a autoconstrução de MTD –, em articulação com outros importantes movimentos da luta urbana brasileira,
moradias precárias. Como sentenciou Milton Santos, nossas cidades foram fadadas a recebemos esta publicação como instrumento que nos ajuda a compreender com maior
ser o palco de conflitos permanentes.8 Em toda sua história, o Brasil contou com duas profundidade as tensões que envolvem nossas lutas urbanas no Brasil e na Espanha.
políticas de Estado e de escala nacional de produção de moradias: nos anos 1970/80 as Mais que isso, as páginas desse importante livro de partilha de experiências e saberes
Cohabs, financiadas com recursos do FGTS, via BNH e, nos anos 2009, quando iniciou o colhidos da prática concreta de mais de dez anos da PAH nos oferecem importantes pis-
Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), programa esse desmontado pelas políticas tas de caminhos metodológicos e de possibilidades de ação neste contexto complexo
neoliberais depois do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e encerrado em 2020. que é a luta urbana. Desejamos que este livro possa materializar pontes de solidarie-
Ambos importantes programas, porém, são marcados pelas contradições do interesse dade permanentes e o fortalecimento de nossas lutas, porque as lutas pelo direito à
privado. O que se deu pela execução majoritariamente feita por grandes empresas da cidade são também o exercício concreto do uso do poder popular de moldar a nós
construção civil, estendendo as cidades e gerando novas áreas para a especulação mesmos, enquanto lutamos para moldar a cidade que queremos.
imobiliária, uma vez que construídos, em sua grande parte, às margens das cidades, em
Agradecemos a João França, pela autoria deste diálogo de partilha de experiências
áreas mal servidas de infraestrutura urbana. Nessa trajetória continuada de urbanização
tão bonito e prático, em que dez perguntas sobre dimensões muito concretas da
precária, seguimos com déficit gigante de condições básicas. Água potável, rede de
construção do movimento são refletidas a partir da experiência de quem o constrói
esgotamento, coleta regular de lixo, moradia, ruas transitáveis, transportes, serviços de
cotidianamente. Ao final de cada uma das perguntas, o autor oferece uma síntese em
saúde e educação, equipamentos de lazer e cultura, entre outros, ainda não são direitos
tópicos das principais lições extraídas da pratica de luta da PAH. Começando por res-
assegurados à parcela significativa da população brasileira.
ponder como organizar-se de forma acolhedora, as perguntas passam pela experiência
Tudo isso trata das mesmas contradições dadas pelo capitalismo, atualmente aprofun- organizativa descentralizada por assembleias e comissões, a metodologia do assesso-
dando sua fase neoliberal – ou ultraneoliberal –, conectando Sul e Norte global, Brasil e
Espanha, pelas marcas históricas e atuais de estratégias de desenvolvimento desigual
  9 Artigo 6º, no caso do Brasil e artigo 47, no caso espanhol.
e combinado, hegemonizado pelo poder dos agentes do capital, porém não sem resis-
10 Segundo David Harvey, em Cidades rebeldes (2012, p.74), “A questão de que tipo de cidade queremos não
tência, não sem lutas. De um lado, um projeto que atua pela captura do solo urbano, da pode ser divorciada do tipo de laços sociais, relação com a natureza, estilos de vida, tecnologias e valores
estéticos que desejamos. O direito à cidade está muito longe da liberdade individual de acesso a recursos
urbanos: é o direito de mudar a nós mesmos pela mudança da cidade. Além disso, é um direito comum antes
8 Afirmação de Milton Santos no livro A urbanização brasileira (São Paulo: Edusp, 2013), quando literalmente diz de individual já que esta transformação depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo de moldar
“A cidade, onde tantas necessidades não podem ter respostas, está, desse modo fadada a ser tanto o palco o processo de urbanização. A liberdade de construir e reconstruir a cidade e a nós mesmos é, como procuro
de conflitos crescentes como o lugar geográfico e político da possibilidade de soluções” (p.11). argumentar, um dos mais preciosos e negligenciados direitos humanos”.

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A PAH: MANUAL DE USO

ramento coletivo, as ações diretas de desobediência civil e a negociação de leis como


formas de fazer política a partir das ruas. Por fim, as perguntas refletidas nos dizem
sobre formas de gerir conflitos e criar redes de solidariedade com coletivos e lutas
pela garantia do direto à morada e à cidade. Seguramente são lições compartilhadas
importantes para o exercício de construção de nossos movimentos urbanos no Brasil.
E mais importante ainda é a possibilidade de compartilharmos informações enquanto VOLTAR AO PREFÁCIO DA EDIÇÃO
ESPANHOLA
SUMÁRIO
movimentos urbanos do Norte e Sul global, criando pontes de solidariedade a partir da
publicação deste livro em português.
Por fim, agradecemos de forma especial à Fundação Rosa Luxemburgo do Brasil por
possibilitar este encontro de saberes e criação de redes de solidariedade e articula-
ção entre a PAH e os movimentos urbanos do Brasil, em especial do MTD. Que esta
publicação e a articulação dela decorrente nos inspire e fortaleça nessa luta que é, ao
Leilani Fahra1
mesmo tempo, global e local!
Mais de 1,8 bilhão de pessoas em todo o mundo não têm uma moradia adequada e
Brasil, dezembro de 2022.
o número de pessoas que vivem em ocupações irregulares e impróprias já supera a
marca de 1 bilhão. Calcula-se que 15 milhões de pessoas são despejadas de seus lares
com o uso da força a cada ano e que 150 milhões de pessoas não têm um teto. Os
investidores privados exercem um controle sem precedentes sobre o setor da mora-
dia: a destituem de sua função social e a reduzem à condição de mera mercadoria
para especulação. Por isso, os terrenos onde se localizam ocupações improvisados ou
moradias de baixo custo se converteram em alvo de interesse para empresas de capital
privado e para os fundos de pensão em busca de ativos subvalorizados, de modo que
possam aplicar, multiplicar e alavancar seu capital, o que torna cada vez mais inacessí-
veis tanto as moradias quanto os terrenos. A atual crise mundial de moradia difere de
qualquer crise anterior no setor. Ela não se deve a uma diminuição de recursos ou a uma
desaceleração econômica, mas sim ao crescimento e à expansão da economia e à cres-
cente desigualdade. A moradia se tornou um vetor chave da crescente desigualdade
socioeconômica, já que multiplica a riqueza dos proprietários e empurra os que não têm
imóvel a mais endividamento e pobreza.
Na Espanha isso também tem ocorrido, principalmente desde a crise financeira mundial
de 2008. Depois da crise, o preço da moradia caiu drasticamente entre 2008 e 2014,
cerca de 35%. Isso criou um ambiente propício para que empresas de capital privado,
fundos de investimento e proprietários com grande patrimônio pessoal entrassem no
mercado espanhol, o que foi acompanhado pela adoção de uma série de medidas admi-
nistrativas, como a redução da duração legal mínima dos contratos de aluguel de cinco
para três anos, a eliminação das medidas de controle do preço do aluguel, a aceleração
do procedimento judicial para despejos, a instauração de desocupações expressas, a
introdução do regime do “visto de ouro”, que concede visto de residência permanente

1 Diretora mundial de The Shift, ex-relatora especial da ONU para o direito à moradia adequada.

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A PAH: MANUAL DE USO Prefácio da edição espanhola

a estrangeiras e estrangeiros que comprarem moradias por um valor superior a 500 nas obrigações em matéria de direitos humanos que possuem os governos e atores
mil euros, assim como a criação de um novo marco jurídico e de um regime fiscal que privados, tal e como estabelece o direito internacional. A PAH abriu caminho e demons-
beneficiam os fundos de investimento imobiliário (Socimis, Sociedades Cotizadas de trou na prática as necessidades existentes em matéria do direito à moradia, segundo o
Inversión Inmobiliaria) que atuam na Espanha. marco estabelecido na legislação internacional de direitos humanos.
Nesse mesmo período uma empresa transnacional de capital privado, a Blackstone, Este manual sobre a PAH reúne, como diz o subtítulo, certas “aprendizagens para a
se converteu na maior proprietária particular de moradias públicas destinadas a alu- ação coletiva a partir da luta pelo direito à mordia”. Nas páginas seguintes, as pessoas
guel social do país, com a venda de 1.860 unidades habitacionais por um preço baixo da plataforma compartilham suas experiências e seus conhecimentos, que são um
pelo governo de Madri, permitindo ao fundo um ganho de 227% em um curto período. autêntico tesouro para as pessoas de todo o mundo que querem começar ou aprimorar
Blackstone também comprou um grupo hipotecário espanhol, além de 100 mil hipote- sua ação coletiva. Espero que o modelo da PAH possa inspirar pessoas e coletivos,
cas da CatalunyaCaixa. porque precisamos de fato de uma ação coletiva para lutar não só pelo direito à moradia,
Todas essas medidas tomadas em conjunto favoreceram a especulação do mercado mas pelos direitos humanos no geral. A experiência dessa plataforma pode ser de utili-
imobiliário, tornando a moradia um direito inacessível para muitas famílias na Espanha. dade independentemente do problema em questão, uma vez que, no fundo, trata-se de
Calcula-se que entre 2013 e 2018 o valor dos alugueis aumentou 18,4% em todo o país, reunir pessoas com a finalidade de organizar-se para uma luta por direitos.
sendo 47,5% em Barcelona e 38% em Madri. E se estima que o aluguel das habitações O direito internacional de direitos humanos constitui um importante instrumento para
sociais adquiridas por Blackstone em Madri em 2013 subiu 49%. Uma pesquisa preli- lutar contra a mercantilização da moradia. No entanto, para conseguir uma habitação
minar realizada em 110 apartamentos da Blackstone em Barcelona apontou que o preço adequada, segura e acessível para todos e todas são necessárias pessoas que se mobi-
médio desses alugueis está 38% acima, em relação ao que é cobrado na média do lizam e se organizam para reclamar seus direitos humanos.
VOLTAR AO
bairro em que estão localizados. E essa cifra tende a aumentar com os novos contratos Aprenda com a PAH e se coloque em movimento. SUMÁRIO

que Blackstone oferece a seus inquilinos em todo o país.


Não é de estranhar que a taxa de despejos na Espanha seja excepcionalmente elevada,
com uma média de 75 mil desocupações por ano desde 2007. Nesse contexto surgiu
a Plataforma de Afetadas pela Hipoteca (PAH). Desde 2009, se converteu em uma
referência para a luta por direitos humanos e especificamente pelo direito à moradia. A
PAH é uma organização de base que empodera quem precisa lutar contra os bancos, as
empresas de capital privado ou os fundos abutres, pessoas que adquirem capacidade
de luta contra os grandes proprietários, estes que quase sempre estão “sem rostos”. A
PAH faz tudo isso e de maneira assembleária, apartidária e gratuita.
A PAH é um exemplo de como se organizar e lutar de maneira conjunta, de como deixar
de ver as pessoas como vítimas ou culpadas dos problemas que enfrentam, para come-
çar a lutar contra o cerne da questão: a mercantilização da moradia. A PAH entende que
a atual situação coloca desafios únicos para fazer efetivo esse direito à moradia. Ten-
tar consertar um modelo não sustentável de desenvolvimento econômico é algo que
não funcionará. A organização tem claro que o direito à moradia deve ser aplicado de
maneira que transforme a forma em que a moradia é concebida, valorizada, produzida
e regulada atualmente.
A PAH é um dos movimentos de base mais eficazes no tema da habitação. Seu êxito
pode ser atribuído, ao menos em parte, pelo fato de se basear, de um lado, nas necessi-
dades e realidades das pessoas e das famílias em matéria de moradia e, por outro lado,

16 17
VOLTAR AO
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
FAZER ALGO

“É preciso fazer algo.”


Esta é uma frase que pode passar pela cabeça de qualquer um diante de um mundo
repleto de injustiças e desigualdades. Mas o que fazer? Como? Às vezes, é fácil ver o
que nos deixa indignadas e indignados, mas não é tão simples encontrar esse algo que
fazer.
Na cidade de Barcelona, um grupo de pessoas tinha claro que era preciso fazer algo
em 2009, quando cada vez mais famílias se viam obrigadas a deixar de pagar suas
hipotecas por conta da crise. O que fizeram foi distribuir e colar cartazes convocando
as pessoas que enfrentavam essa realidade para uma assembleia da Plataforma de
Afetadas pela Hipoteca (PAH). Muitas pessoas atenderam ao chamado, mas a partir daí
tiveram de ir descobrindo o que precisava ser feito.
Doze anos depois, a plataforma se multiplicou em mais de 200 núcleos que funcionam
de modo autogerido por todo a Espanha, barrou milhares de despejos, negociou com
bancos, conseguiu mudar leis, ocupou 50 edifícios e, sobretudo, resgatou milhares de
pessoas que estavam à beira do abismo. Tudo isso sem ter atrás de si nenhum partido,
sindicato ou grande ONG, sem profissionalização ou financiamento.
São muitos os êxitos na sua trajetória, mas a PAH segue tendo claro que é preciso
fazer algo. Para algumas questões, ainda tentam encontrar esse algo que fazer, mas
para muitos obstáculos que enfrentaram construíram aprendizagens que valem a pena
serem colocadas em comum. Esse texto pretende compartilhar esse percurso a partir
do testemunho de cerca de cinquenta ativistas da PAH e explicar como funciona a pla-
taforma, para oferecer ferramentas a quem segue buscando esse algo. Porque, sem
dúvida, é preciso fazer algo.

19
A PAH: MANUAL DE USO INTRODUÇÃO

A PLATAFORMA DE AFETADAS PELA O próprio nome é pensado com o objetivo de chegar às pessoas diretamente afeta-
HIPOTECA das pelo problema, sem bagagem ativista. Algo claro, descritivo e direto: Plataforma
de Afetadas pela Hipoteca. Embora as pessoas que iniciaram o coletivo esperassem
Mas o que é a PAH? É uma organização horizontal, gratuita, apartidária, que luta por encontrar cidadãs e cidadãos indignados por sofrer um golpe coletivo, prevalecia em
direito à moradia por meio do apoio mútuo. Sua base de funcionamento é o asses- quem chegava o sentimento de culpa e vergonha por ter fracassado. O primeiro desafio
soramento coletivo, o que significa que não está construída sobre um conhecimento foi responder a isso e deixar claro que não era um problema individual.
de especialistas, mas sim a partir das próprias pessoas que se apoiam, que prestam
Com os primeiros casos um grande problema começou a aparecer. No Estado espanhol
assessoria a si mesmas, procurando soluções coletivas para seu problema individual.
a entrega da moradia não basta para quitar uma dívida hipotecária. O banco ficava pela
As pessoas que não podem pagar a hipoteca – ou que têm qualquer outro problema casa por um valor abaixo de seu valor original e seguia exigindo que a família pagasse
relacionado com sua moradia – são protagonistas de sua própria luta na PAH. Longe a diferença, uma dívida que dificilmente seria paga em vida. Isso arrastava outras pes-
do assistencialismo, precisam encarregar-se de seu próprio caso, porém, o fazem com soas que haviam dado aval para a hipoteca – no geral, pais e mães –, que, de sua parte,
apoio da assembleia. Na plataforma se dá um processo de empoderamento que enco- acabavam também perdendo a casa. O segundo desafio, então, foi reivindicar uma
raja a afetada  – porque são as mulheres a maioria de quem se organiza na PAH  – a mudança na lei para que a entrega da moradia servisse como pagamento da dívida.2
lutar pelo seu problema. Nesse processo também se geram fortes vínculos, e muitas
Sem conseguir quitar a dívida com a entrega do imóvel  – algo que segue sem estar
seguem ajudando outras pessoas nas assembleias anos depois de resolver seu próprio
previsto na lei –, os despejos começaram a chegar. Esgotado o processo jurídico por
caso.
inadimplência, as afetadas começaram a ser notificadas da data que seriam expulsas
Cada assembleia da PAH funciona de maneira autônoma, mas se coordena entre si em de suas casas. Famílias que não conseguiam pagar por sua moradia dificilmente encon-
nível regional ou nacional para articular o movimento. É útil para desenvolver ações e trariam uma alternativa, e muito menos carregando o peso da dívida. Esse novo desafio
campanhas conjuntas, multiplicar forças, bem como para gerar incidência política para era urgente e, um ano e meio depois da criação da plataforma, começaram a bloquear
transformar tanto a narrativa pública como as políticas de moradia. A autonomia confere os despejos. Em uma ação de desobediência civil não violenta, colocavam-se diante
ao movimento grande diversidade. Além de compartilhar critérios básicos de funcio- das portas para impedir que as famílias fossem colocadas na rua. O Stop Desahucios se
namento, cada plataforma possui suas particularidades. De fato, embora nem todas tornou o grande símbolo do movimento, servindo também como exemplo. Começaram
se chamem Plataforma de Afetadas pela Hipoteca  – algumas se denominam PAHC, a surgir plataformas em outros municípios.
PAVPS (ver p.54) ou Stop Desahucios [Despejos] –, todas fazem parte de um mesmo
Em 15 de maio de 2011, um grupo de pessoas organizadas de maneira descentrali-
movimento.
zada pela internet convocou uma manifestação em várias cidades espanholas com o
lema “Não somos mercadoria nas mãos de políticos e banqueiros”. A PAH, provocada
BREVE HISTÓRIA DA PAH pela causa, esteve presente. As manifestações formaram acampamentos nas praças
Não há uma fórmula mágica para a organização coletiva e, no caso da PAH, suas estra- de várias cidades, o que ficou conhecido como Movimento 15M3 ou indignados, uma
tégias são fruto de anos de experiência, tentativa e erro, e também aprendizagem de mobilização horizontal, assembleária e diversificada contra a austeridade e a corrupção,
movimentos sociais que a precederam. As pessoas que lançaram a plataforma já pos- em defesa dos direitos cidadãos.
suíam uma década de ativismo pelo direito à moradia. Vinham do movimento okupa,
do altermundismo, de campanhas pelo direito à cidade, de propostas de sindicalismo
social e de movimentos de grande impacto midiático pelo direito à moradia.1 Nesses 2 Sobre a crise da moradia na Espanha e os primeiros passos da PAH, dois de seus fundadores escreveram:
COLAU, A.; ALEMANY, A. Vidas hipotecadas. De la burbuja inmobiliaria al derecho a la vivienda.
movimentos houve vitórias e fracassos. Estes últimos serviram especialmente de Barcelona: Cuadrilátero de libros, 2012. Disponível em: <https://afectadosporlahipoteca.com/wp-content/
aprendizagem para pensar de que outra maneira fazer as coisas para colocar a PAH em uploads/2013/01/vidas-hipotecadas.pdf>. Tradução para o inglês: COLAU, A.; ALEMANY, A. Mortgaged lives.
From the Housing Bubble to the Right to Housing, Los Angeles/Leipzig/Londres, Journal of Aesthetics &
movimento. Protest Press, 2014. Disponível em: <http://joaap.org/press/pah/mortgagedlives.pdf> (12.02.2023).

3 O 15M, também conhecido como movimento dos indignados, surgiu quando diversos coletivos convocaram
1 Para saber mais sobre a história dos antecedentes do movimento pelo direito à moradia em Barcelona, ver: uma manifestação em 15 de maio de 2011 contra o domínio dos bancos e das corporações, bem como em
FRANÇA, J. Habitar la trinchera. Historias del movimiento por el derecho a la vivienda en Barcelona. Barcelona: defesa de uma democracia real. A ação teve ampla adesão, acampamentos se espalharam pelas praças
Octaedro, 2021. públicas da Espanha onde realizavam assembleias, e deu origem a diversas outras lutas. (N. E.)

20 21
A PAH: MANUAL DE USO INTRODUÇÃO

A combinação entre o 15M e a PAH multiplicou o movimento por moradia. Por um lado, Este não é tampouco um documento que sintetiza de forma definitiva o funcionamento
parar os despejos era uma boa forma de canalizar a efervescência das praças; era uma da PAH. Embora a palavra manual possa levar a um engano – e que a plataforma tem
ação coletiva que permitia uma vitória imediata e tangível. Por outro lado, a PAH come- seus próprios critérios básicos, protocolos e documentos úteis –, é preciso enfatizar que
çou uma coleta de assinaturas para promover um projeto de lei de iniciativa popular e se trata de um “manual de uso”, que parte da experiência das pessoas que dão vida ao
grande parte do ativismo do 15M se prontificou a ajudar. Quando se esvaziaram as pra- coletivo em distintos pontos da Espanha. Essa realidade é diversa e, de fato, é comum
ças, algumas das pessoas que estiveram organizadas ali se vincularam a outras lutas, e que distintas assembleias não respondam exatamente igual a uma mesma questão.
em muitos casos isso significou criar uma Plataforma de Afetadas pela Hipoteca. Aqui se busca também mostrar essa diversidade e oferecer exemplos do que umas e
A partir da experiência do projeto de iniciativa popular se começou a articular com mais outras fazem.
força o movimento das PAH, com assembleias nacionais e comissões de trabalho. A As páginas que seguem são fruto do conhecimento e das experiências que 49 ativistas,
plataforma se converteu em um ator político de primeiro nível e uma referência em ques- de 18 plataformas distintas, generosamente compartilharam. Os debates e as entre-
tões de direito à moradia. Naquela época, a inadimplência da hipoteca deixou de ser o vistas foram realizados a distância, em plena pandemia da Covid-19. Nesses encontros
principal problema habitacional e, nas assembleias da PAH, passaram a chegar muitos as pessoas participantes expressaram sua preocupação por uma nova crise social que
casos de pessoas que não conseguiam mais pagar o aluguel ou viviam em ocupações, seguirá à pandemia e temem que esse novo cenário possa ser pior do que aquele
sob constante ameaça de despejo. A plataforma não deixou de se reinventar para res- quando surgiu a PAH. Agora ao menos já estão organizadas. Como o objetivo era com-
ponder a essas realidades. Anos depois de sua criação, a PAH segue combinando partilhar aprendizagens mais consolidadas, aqui não estão reunidas as preocupações
propostas e incidência política com ativismo com pé no barro, que é o que sustenta o com a nova crise e as dificuldades relacionadas aos confinamentos e ao distanciamento
movimento: a cada dia, dar resposta a famílias pelas quais é preciso fazer algo.4 físico. Para tudo isso, a PAH vai inventando soluções em movimento.
VOLTAR AO
SUMÁRIO
De toda forma, está claro que é preciso fazer algo.
UM MANUAL DE USO
Quando chega alguém a uma assembleia, geralmente recebe a explicação logo de
entrada do que não é a PAH: nem um espaço assistencialista, nem uma assessoria
jurídica, nem um serviço para parar despejos. Seria conveniente começar também esse
livro explicando do que essa publicação não se trata.
Nas páginas seguintes não há receitas mágicas universais, nem definitivas para a
organização coletiva. Existem uma infinidade de realidades distintas que devem ser res-
pondidas por meio do apoio mútuo, dificilmente há uma solução que possa ser aplicada
de forma idêntica. Este manual parte de uma experiência concreta: a luta da PAH pelo
direito à moradia no Estado espanhol. Isso implica uma problemática, um marco jurídico
e um contexto político concretos.
O que se tenta aqui é compartilhar aprendizagens que possam ser inspirações para
outros coletivos que queiram abordar outras realidades em contextos distintos. A ques-
tão da moradia é o que articula a luta da PAH, mas suas estratégias de assessoramento
coletivo, organização, desobediência ou incidência podem ser úteis para enfrentar
outras situações de violação de direitos.

4 Para um exemplo dos distintos níveis de ação da PAH: FAUS, P. Sí se puede. Siete días en PAH. 2014.
Disponível em castelhano: <https://vimeo.com/323426092>. Versão em inglês disponível em: <https://vimeo.
com/323297000> (12.02.2023).

22 23
1. COMO SE
VOLTAR AO ORGANIZAR
DE MANEIRA
SUMÁRIO

ACOLHEDORA
Curro e Asun sempre pagaram religiosamente seus impostos, suas dívidas e espe-
cialmente as parcelas de sua hipoteca. Quando Curro ficou sem trabalho pela crise
econômica, abriu seu próprio negócio, mas as coisas não eram fáceis. Precisou tomar
empréstimos e ofereceu sua casa para como garantia para ter acesso a mais crédito.
“Em plena crise, meu negócio faliu e tinha a hipoteca e mais dois empréstimos para
pagar”, lembra. Os dois não tinham como pagar. O banco os cobrava a casa e seguia
cobrando-os mesmo depois que a entregaram.
“Toda a vida pagando e de repente tudo era como um castelo de cartas, em que quando
se tira uma caem todas”, diz Asun. “Você bate numa porta, em outra, em outra… e
nada. Não pode acreditar que a solução é juntar suas coisas e ir para a rua”. Eles lem-
bram que nessa época não conseguiam nem dormir. E não era apenas isso. Curro faz
uma lista do que passou a sentir: “Não conseguia nem respirar direito, meu cabelo caía,
não conseguia digerir direito, sentia azia…”. Sua esposa arrumou alguns trabalhos de
limpeza, que não resolviam o problema. Mas foi em um desses serviços, em um pré-
dio recém construído, que algo aconteceu. Ao ver Asun chorar enquanto limpava, uma
companheira lhe perguntou o que estava acontecendo. Depois de ouvir a história do
casal comentou da Plataforma de Afetadas pela Hipoteca.
“Você se sente em um buraco tão fundo, em que ninguém a ajuda ou escuta, e de
repente chega a um lugar onde oferecem um ouvido e lhe dão esperança”, recorda
Asun. Depois de três semanas indo às assembleias da PAH de Málaga, ela e seu marido
conseguiram voltar a dormir. “Não é que prometam algo, porque sabem que há casos
muito difíceis, mas nos escutam, o que já é algo, e fomos nos dando conta de que
muitíssimas famílias mantiveram suas casas graças à PAH, e então vi que portas bem
pequenas estavam sendo abertas”.

25
A PAH: MANUAL DE USO 1. Como se organizar de maneira acolhedora

A IMPORTÂNCIA DE ESCUTAR composta principalmente por pessoas de origem marroquina. “Se as pessoas chegam
com um perfil mais de classe média que talvez tenham problemas com seu aluguel,
Uma das coisas que as pessoas mais se lembram de seus primeiros passos na PAH – percebem a condição de classe e de raça da maior parte da assembleia e talvez não
não só em Málaga, mas também em todas as partes – é justamente que foram ouvidas. retornem, isso nos preocupa”, afirma Berni.
Pela primeira vez, depois de encontrar muitas portas fechadas, seja no banco ou poder
“Existe um medo de ser pobre ou que possa ser considerado como tal”, aponta Maria,
público, alguém mostrou um interesse genuíno pelos seus problemas e permitiu que
da PAH de Segovia. Ou também pode haver quem creia que, por cair de uma posição
se aliviassem. “É fazer a pessoa sentir que a situação dela nos importa; a proximidade,
mais privilegiada, tenha um problema maior, e se gaba de tudo o que teve. Quando isso
dizer ‘o que posso ajudar?’, são coisas muito simples, mas que tocam profundamente
acontece, é preciso lembrar à pessoa que na PAH não importa de onde se vem, mas
quando alguém precisa realmente ser ouvido”, destaca Delia quase uma década depois
sim que todos e todas estão no mesmo barco.
da primeira vez que lhe prestaram atenção na PAH de Barcelona.
“A PAH mudou minha forma de ser. Eu tinha um pequeno negócio e era daquelas pes-
Ser escutado é um primeiro passo, mas como aconteceu com Asun também é impor-
soas que pensavam que ninguém iria resolver seus problemas, desde que não fosse
tante o que acaba sendo descoberto em seguida: há luz no fim do túnel.
diretamente afetado. Quando perdi o negócio, perdi a casa, e vi que, sim, há gente que
Quem chega com um problema de moradia a uma assembleia da PAH encontra pes- vai lhe ajudar sem pedir nada em troca”, assegura Francisco, da PAH Barcelona. E jus-
soas em uma situação similar, e esse primeiro contato apresenta duas lições que são tamente a diversidade é uma das primeiras coisas que ele destaca de sua experiência
também lemas da plataforma: que “não está sozinha” e que “sim, se pode”. Não está na PAH: “Conheci pessoas de vários cantos do mundo e gosto muito de conversar com
sozinha porque há mais pessoas na mesma situação, e de fato conhecê-las ajuda a elas; sem viajar, aprendi muitas coisas de outras partes do planeta”. As assembleias da
compreender que seu problema de acesso à moradia não é individual, mas sim que PAH permitem o encontro de pessoas que, por distintos motivos, dificilmente se encon-
se trata de um problema estrutural, coletivo, resultado de determinadas políticas. É trariam de outra maneira e constroem vínculos tão inesperados quanto fortes entre si.
muito importante que esse contato ocorra por meio do assessoramento coletivo; não
há alguém específico responsável por receber uma nova pessoa ou por fazer o relato
RECEBER COM CUIDADO
de que há mais gente na mesma situação. Quem está chegando em uma assembleia
da PAH escuta os diálogos em que são compartilhados os problemas mas também as A vergonha, apesar de tudo, nem sempre é uma barreira intransponível. No geral, é ape-
soluções que foram encontradas. Assim se descobre que, sim, se pode. nas uma dificuldade a superar com cuidado. Cada PAH trata desse tema de sua maneira
Esses dois lemas, “não está sozinha” e “sim, se pode”, ajudam na contraposição de e dentro de suas possibilidades – porque algumas possuem poucas pessoas envolvidas
sentimentos bastante presentes quando se chega pela primeira vez na PAH: a culpa, o e outras recebem muita gente nova a cada semana –, mas todas desenvolvem estraté-
medo e a vergonha. gias para amenizar o impacto de quem chega.
Na PAHC do Bages, por exemplo, as pessoas que chegam pela primeira vez possuem
SUPERAR BARREIRAS uma recepção à parte da assembleia. “Como nas assembleias há entre 50 e 80 pessoas
geralmente, é normal que muita gente que participe pela primeira vez tenha vergonha
Nem sempre é fácil. Um obstáculo desse processo, como destacam na PAH de Sego- de falar diante de tanto público; assim, criamos um espaço de mais intimidade com
via, pode ser a vergonha. “As pessoas tentam esconder ao máximo o que se passa quem está começando, no qual se fala igualmente de forma coletiva e não individual,
em casa; o que menos querem é que o vizinho saiba que estão sendo ameaçados pelo o que é importante”, conta Bernat. Ishaan assim relembra: “O dia que cheguei não
banco. De fato, muita gente prefere entregar a chave no banco ou aos tribunais antes podia falar, estava muito assustada e não sabia o que iria acontecer. Falei em árabe e
de que outros saibam”, lamenta Amanda. as meninas que estavam ali traduziram, porque tinha muita vergonha e não sabia como
Por mais que se tente criar um espaço acolhedor, para muitas pessoas o primeiro con- começar, mas as meninas foram me explicando e eu fui ficando mais tranquila”.
tato com uma assembleia da PAH pode ser impactante. “Onde é que fui me meter?”, se Depois de quebrar o gelo, o passo seguinte é contar sua história na semana posterior –
perguntou Nicole, da PAH de Castelló, no primeiro dia. Mas depois de um tempo decidiu ou no mesmo dia, se o caso for urgente – durante a assembleia de assessoramento
voltar e seguir. Muitas vezes, a barreira pode ser os preconceitos das próprias pessoas coletivo. No Bages, a cada semana alguém da assembleia assume o papel de fazer a
novatas. Isso foi notado, por exemplo, na PAHC da região do Bages, cuja assembleia é tradução para facilitar o diálogo.

26 27
A PAH: MANUAL DE USO 1. Como se organizar de maneira acolhedora

Já em Barcelona destaca-se um gesto que é considerado tão simples quanto funda- ESPAÇOS PARA SE ENVOLVER
mental. Lili assumiu o papel de estar na porta, atenta às pessoas que chegam. Ela
pergunta sempre se é a primeira vez e indica onde podem se sentar ou conta um pouco Muitas das chaves têm a ver com o modelo de organização horizontal e assembleário;
sobre como funciona a assembleia. “Esse primeiro gesto de carinho, essa primeira por exemplo, o fato de que todo mundo possa encontrar algo para fazer dentro de sua
descoberta que está em um espaço onde será cuidado e cuidada, é muito importante”, PAH. Há uma infinidade de tarefas, das mais visíveis, como dinamizar uma assem-
lembra Santi. E Edu acrescenta que “estamos acostumados ao assistencialismo, de bleia, participar em negociações ou formar parte da equipe de comunicação. Há outras
chegar a lugares procurando alguém com quem temos que apresentar nosso problema menos visíveis, mas também fundamentais: acompanhar alguém que está passando
e mesmo que indiquemos que tem de sentar para aguardar a assembleia costumam mal, levar o alto-falante para um protesto ou a uma celebração, revisar a ortografia dos
insistir: ‘Não, é que meu caso é diferente’. Por isso é preciso ter alguém com afeto e comunicados que serão publicados, explicar como funciona a plataforma para outros
paciência para assumir essa função todas as semanas, porque uma palavra mal colo- coletivos que assim solicitam, manter o espaço do encontro organizado, preparar uma
cada ou um simples ‘não posso’ pode fazer com que alguém não retorne”. celebração…

Apesar disso, a acolhida é “carinhosa, mas também bastante dura”, como destaca Sempre é possível fazer algo pelo coletivo e, de fato, a plataforma convida as pessoas
Berni, da PAHC do Bages. “Falamos para as pessoas que não podemos lhes dar as a se perguntar, para além do que a PAH possa fazer por elas, o que cada um ou cada
chaves de um apartamento, que não é um espaço assistencialista, que, se querem uma pode fazer pela PAH. “O primeiro dia que cheguei à assembleia estava um pouco
algo, vão ter que se esforçar para isso… As portas estão abertas, mas também já são perdido, mas na segunda vez me pediram para fazer a ata do encontro e como perce-
estabelecidos alguns limites desde o início, limites que são fortes, porque estamos beram que fazia isso mais ou menos bem fiquei encarregado desta tarefa. Estava lá,
acostumados com a caridade e o assistencialismo”. com o meu laptop, anotava tudo e ia aprendendo sobre cada caso e as soluções; assim
é como fui aprendendo todos os mecanismos para barrar os despejos”, recorda Juan
De fato, geralmente no primeiro contato, quem chega já recebe deveres. “Quando tenho
Luis, da PAH de Torrevieja.
de fazer o acolhimento, tento passar tarefas para que as realizem durante a semana; por
exemplo, ir aos tribunais e entregar um formulário. As tarefas às vezes não são tão Bernat, da PAHC do Bages, destaca: “Dentro da plataforma, qualquer tarefa realizada
úteis, mas as pessoas já saem com algo a fazer para contar na assembleia da semana é reconhecida. Isso é chave. Se alguém fica responsável de limpar os banheiros, esse
seguinte, e isso gera um vínculo por envolver-se”, afirma Berni. Lídia passou por isso e trabalho é reconhecido; se uma pessoa vai colar cartazes e manda uma foto, todo o
agradece pela oportunidade de ter tido essa experiência: “É algo bom, porque você se grupo aplaude… há um reconhecimento social dentro do coletivo. Talvez se dê muita
sente bloqueada se ficar sentada ali sem saber o que fazer”. importância às assembleias. E há pessoas que têm mais dificuldade de se expressar
ou que não se sentem confortáveis nestes espaços, mas mesmo assim acompanham
Tania, da PAH de Barcelona, acrescenta que as tarefas são, sim, úteis e que demandar
as companheiras todas as semanas, isso é imprescindível e é preciso ser devidamente
algo não deve ser incompatível com acolher: “Estive em outra organização e fui apenas
valorizado”. E, para além dessa valorização, como lembra Lucía N., da PAH de Bar-
uma vez, porque exigiam no mínimo estar indo às reuniões por dois meses, e eu me
celona, todos e todas devem ter espaço na tomada de decisões: “Há coletivos com
sentia excluída. Ao contrário, na PAH você já sai com seus deveres para tentar resolver
cérebros muito potentes, mas em que as formiguinhas não temos voz, nem voto; na
a ameaça de despejo que enfrenta naquele momento e, em muitos casos, com duas
PAH todos e todas, até a menor formiguinha, têm ideias e podem contribuir”.
ou três recomendações que recebe pode paralisar o processo para seguir lutando, e aí
começa a acreditar”. Em Barcelona, editaram o Livro verde da PAH, que é atualizado
constantemente e distribuído às pessoas que chegam pela primeira vez à assembleia
OFERECER CALOR HUMANO
para que conheçam em detalhes todas as fases do processo que está vivenciando.1 Por fim, também se pode ser acolhedor gerando direitos a partir dos cuidados, como
Tudo isso se relaciona com a primeira vez que alguém chega a uma PAH, mas para criar defende Berni, da PAHC do Bages: “As instituições entendem os direitos a partir de um
uma organização de fato acolhedora é preciso ir além do primeiro dia. lugar determinado e não consideram que uma pessoa que está destroçada tenha direito
a estar amparada. A PAH entende que uma companheira tem direito de estar acompa-
1 PAH Barcelona. Libro verde de la PAH (Hipoteca). 2020. Disponível em castelhano em: <https://pahbarcelona.
nhada no tribunal, no banco, nos serviços sociais; temos que garantir o direito a esse
org/wp-content/uploads/2020/07/Libro-Verde-HIPOTECA-PAH-2020-CAST.pdf>. Primeira edição (2014) calor humano. É algo muito potente e geralmente as pessoas chegam à assembleia
disponível em inglês em: <https://afectadosporlahipoteca.com/wp-content/uploads/2016/06/GreenBook-PAH-
21juny.pdf> (12.02.2023). pedindo isso: que sejam acompanhadas”.

28 29
A PAH: MANUAL DE USO

Muita gente conta que esse calor humano faz com que sigam na PAH. “Depois que
escutam e acompanham você em um momento tão difícil, em que está tão mal, como
vamos retribuir? Estamos tentando ajudar as pessoas que se encontram na mesma
situação em que estivemos”, diz Asun, que lamenta não poder ir às assembleias porque COMO SE ORGANIZAR
trabalha às noites, mas seu marido segue participando. DE MANEIRA ACOLHEDORA
Também há muita gente que não fica. A maioria. “Talvez uma pessoa que conseguiu
parar um despejo não volte jamais, e isso no começo afeta você bastante, faz pensar
em também abandonar. O que temos feito é aprender para que isso não nos frustre Escutar e mostrar um interesse genuíno
tanto, porque sempre há quem fica e com quem seguir lutando”, admite Berni. pela situação que está vivendo a pessoa que chega

A frustração e toda essa realidade dura também presente na PAH podem ser supera-
das quando há espaços de distração. “Quando voltamos de uma ação, Asun, Curro e Compartilhar vivências para mostrar que não se está só
outros começam a contar histórias e a brincar, isso faz você ver a vida de outra maneira e que há soluções para os problemas que enfrenta
e sorrir”, conta Chary, da PAH de Málaga. “Ou ir beber algo e fazer piadas ao sair de
uma assembleia é uma válvula de escape, porque sem isso é muito difícil”, conclui sua VOLTAR AO
SUMÁRIO Deixar claro o que a organização oferece, quais são suas responsabilidades
companheira Pilar.
para enfrentar o problema e que sempre se pode fazer algo pelo coletivo

Gerar dinâmicas que permitam o cuidado e a atenção a quem chega


pela primeira vez, mesmo que não exista um tratamento individualizado

Estabelecer tarefas concretas desde o primeiro momento


para que a pessoa possa se encarregar de seu próprio problema

Valorizar todas as tarefas que são realizadas e gerar espaços de participação real
para que todos e todas possam contribuir com seu grão de areia

Promover e compartilhar espaços de socialização que permitam gerar


vínculos pessoais e afetivos para além das ações e das assembleias

Nem todo mundo vai permanecer e criar um vínculo, e por isso é importante
questionar o que pode estar falhando, mas também saber administrar a frustração

VOLTAR AO
SUMÁRIO

30
2. COMO RESOLVER
PROBLEMAS
VOLTAR AO
SUMÁRIO
POR MEIO DO
ASSESSORAMENTO
COLETIVO
“Somos muitos e muitas que não têm nada, que recebemos quando trabalhamos, mas
quando não trabalhamos estamos abandonados”, sentencia Aziza. É o que aconteceu
com ela. Por décadas trabalhou na Catalunha, onde chegou vindo do Marrocos, mas
quando não teve trabalho e não pôde pagar o aluguel acabou na rua. Ela se viu dormindo
por três dias em frente à porta do hospital onde fazia tratamento contra um câncer e se
lembra que sequer sabia que poderia recorrer aos serviços sociais. Até que alguém lhe
comentou da PAH.
Hoje Aziza vive em um edifício ocupado pela PAHC do Bages e reivindica do poder
público a concessão de um aluguel social correspondente aos parcos ingressos que
obtém. “Tinha muita vergonha quando cheguei a primeira vez na PAHC, chorava e as
palavras não saíam, não sabia nada, tinha todas as portas fechadas, mas fui aprendendo
as coisas pouco a pouco: como falar com a assistente social, com a prefeitura, com o
tribunal…”
O fato é que Aziza não apenas aprendeu como também jamais parou. A cada semana
acompanha companheiras a esses lugares que não sabia ir e, sem saber ler nem escre-
ver, ela ri quando conta tudo que aprendeu: “Um dia acompanhei ao tribunal um senhor
mais velho que estava perdido, com uma criança pequena, passando frio, e quando
chegamos em frente ao juiz comecei a dizer coisas que não havia conseguido dizer em
minha vida; fiquei muito surpresa pela forma como essas palavras saíram de minha
boca!”. Em seguida, um advogado lhe perguntou o que havia estudado para se colocar
tão bem diante daquela situação. “Mas eu nunca havia estudado na minha vida! Na
realidade, a PAHC me ensinou muitas coisas.”
Um dos elementos básicos do funcionamento das Plataformas de Afetadas pela Hipo-
teca é o assessoramento coletivo. Não se atende individualmente cada pessoa afetada,
mas os casos são tratados de forma coletiva em uma assembleia em que todo mundo
pode contribuir com respostas. Esse modelo permite o empoderamento das pessoas
que chegam como afetadas, que descobrem como resolver os problemas por conta

33
A PAH: MANUAL DE USO 2. Como resolver problemas por meio do assessoramento coletivo

própria e podem compartilhar esse conhecimento. É uma abordagem que rompe com a o fato de se encarregar de seu próprio caso. Como diz Ricardo, da PAH de Barcelona:
diferenciação habitual entre ativistas e afetadas. Por um lado, porque a PAH considera “se chega uma pessoa aqui quebrada e alguém resolve seu caso com uma prática
que todas as pessoas implicadas estão afetadas de uma maneira e de outra pela mer- assistencialista, ficaria uma sensação de dívida, de que não se pode fazer as coisas por
cantilização da moradia, mas sobretudo porque qualquer pessoa que se envolva com a si só e de que alguém a está salvando, mas quando é a própria pessoa que se salva,
plataforma pode inspirar e ensinar outras que virão depois. isso muda tudo”.
Isso permitiu à PAH crescer e se sustentar no tempo  – de forma gratuita  –, já que Apesar disso, não se trata apenas de tomar as rédeas da situação que se vive. Isso
o movimento não depende de um grupo de profissionais, mas sim de pessoas que seria cair em um individualismo que a PAH procura romper. Há uma responsabilidade
oferecem apoio mútuo. Ao mesmo tempo, dessa maneira atuam para estimular trans- individual, sim, mas é a articulação coletiva que torna possível enfrentar o problema.
formações profundas, incidindo no discurso hegemônico e nas políticas de moradia, já
que de outra maneira não poderiam fazer nada além de atender casos individuais a todo CHAVES PARA O ASSESSORAMENTO COLETIVO
o tempo.
ANTES Organizar previamente as assembleias
Preparar materiais informativos e de referência
ENCARREGAR-SE DE SEU PRÓPRIO CASO Repensar constantemente o funcionamento

As assembleias da PAH começam, no geral, explicando o que não é a plataforma: nem


NA ENTRADA Acolher as pessoas novas e mostrar que é um espaço de confiança
uma administradora de casos, nem um escritório de advocacia, nem um serviço para
Escutar de forma ativa
interromper um despejo. Mesmo que muitas pessoas cheguem com a esperança de
Esclarecer que é um espaço de apoio mútuo
falar com uma advogada ou um advogado para que se encarregue de seu caso, logo
recebem o esclarecimento de que a PAH não é isso e que na maioria dos casos, de fato,
DURANTE Fazer assembleias dinâmicas tendo em conta as prioridades, os tempos e a ordem das falas
a lei favorece o banco ou a propriedade da moradia, sendo que se elas dependerem
Distribuir papeis e desenvolver uma dinâmica que as dúvidas sejam resolvidas coletivamente
apenas da ajuda legal dificilmente encontrarão uma solução. A resposta que apresenta
Valorizar os diversos conhecimentos das pessoas que participam na assembleia
a plataforma é a organização coletiva, e quem chega pela primeira vez já logo descobre Perguntar ao grupo para que responda quem passou por situações semelhantes
que não está só, mas também que ninguém vai se encarregar de seu caso. “O mais Compartilhar os recursos que permitam que cada pessoa avance em seu próprio caso
importante é que você se informe sobre seu problema e como pode lutar para enfren-
tá-lo; e a partir daí, sim, todos apoiamos, o trabalho é coletivo”, resume Rosa, da PAH DEPOIS Estabelecer tarefas que a pessoa possa fazer por sua própria conta
de Altea. Definir objetivos para a assembleia seguinte
“Você sempre sai da assembleia com deveres, com algo para fazer, mesmo que seja Acompanhar quando necessário

enviar um email ou qualquer outro tipo de ação que a pessoa afetada precisa fazer
dentro de suas possibilidades, porque não resolvemos nada fazendo o trabalho dos
ENTRE IGUAIS
demais”, assinala Virginia, da PAH de Berriozar. Ela experimentou na própria pele:
“Quando cheguei estava muito mal, acabada, e me exigiam bastante, não pegam leve”, O assessoramento coletivo consiste na reunião em assembleias para que cada pessoa
lembra-se, rindo. afetada possa explicar publicamente seu caso a fim de que se possa pensar coletiva-
mente possíveis respostas com outras companheiras e outros companheiros envolvidos
Ela sorri porque, com os conselhos da assembleia, tomou as rédeas de seu caso e con-
em questões de alguma maneira similares. Embora o funcionamento da assembleia de
seguiu resolvê-lo. “Isso faz você crescer pessoalmente e, agora, mesmo quando me
assessoramento coletivo possa variar segundo as necessidades ou possibilidades de
deparo com questões burocráticas que não têm a ver com a PAH estou bastante hábil.
cada PAH, há alguns elementos básicos.
Minha situação não melhorou substancialmente desde que eu cheguei, mas eu, sim,
melhorei nestes cinco anos”, conclui. Um grupo de pessoas se encarrega de tornar a assembleia dinâmica, distribuindo dis-
tintas funções como apresentar ou moderar o encontro, anotar a ordem das falas ou
Nas trajetórias das pessoas que passam pela plataforma ocorrem vitórias de diversos
fazer a ata do encontro. Segundo a plataforma, podem existir funções mais específi-
níveis, mas com certeza a primeira é esse empoderamento, que está relacionado com

34 35
A PAH: MANUAL DE USO 2. Como resolver problemas por meio do assessoramento coletivo

cas, como a de tradutor, registrar no início quem tem data de despejo já definida ou escolhem a PAH e o assessoramento coletivo em vez de outras alternativas porque
cuidar das crianças para que as responsáveis possam participar com tranquilidade na entendem que vai funcionar, que fulano conseguiu renovar seu aluguel social; então,
assembleia. Quem chega pela primeira vez, além de ser informado do funcionamento essas pequenas vitórias são fundamentais também para que o assessoramento fun-
da assembleia e do que não consiste a PAH, recebe indicações gerais que podem ser cione”, assinala Diego, da PAH de Vallekas. É evidente que não se pode contar com isso
úteis em todos os casos, como por exemplo deixar claro quais são as etapas de um desde o primeiro momento, mas a aposta deve ser conseguir vitórias, por menores que
processo de execução hipotecária. A partir daí se costuma iniciar o assessoramento. sejam, que possam ser compartilhadas.
Cada PAH define dia, horário e formato que convocará sua assembleia de assesso-
ramento. Em alguns casos, trata-se de um encontro diferente da assembleia de COMPARTILHAR CONHECIMENTO
coordenação da mesma plataforma, embora ambas estejam abertas a qualquer pes- É importante estar consciente que o assessoramento se dá entre iguais, porque às
soa. No Bages, é realizada apenas uma assembleia e o assessoramento coletivo é feito vezes podem ocorrer comportamentos estimulados por inércias que vão em outra dire-
depois que se abordam as questões gerais, com o objetivo de favorecer o envolvimento ção. “Já percebemos que, quando um companheiro em uma assembleia que, seja o
das pessoas com o funcionamento da plataforma. Além disso, cada participante que gos- que for, faz uma fala com linguagem de advogados, logo quando termina a assembleia
taria de falar sobre seu caso no assessoramento registra seu nome em um papel inserido as pessoas vão atrás dele para tratar de seu caso”, lamenta Diego.
numa urna. Com exceção dos casos que demandam respostas urgentes como aqueles
Assim, quem é advogada precisa estar consciente de seu papel, além de saber falar
com datas definidas de despejo, um sorteio define a ordem das falas na assembleia.
com uma linguagem acessível. “No começo, talvez se esperasse que eu fosse resolver
Há algumas PAH em que a acolhida a quem vem pela primeira vez se dá antes, em um as dúvidas, mas conseguimos romper com isso; nas assembleias, as dúvidas se resol-
grupo reduzido; em outras, a acolhida faz parte da assembleia. Há diferentes formas de vem de maneira coletiva e eu normalmente costumo estar em segundo plano. Se faço
organizar a assembleia. Durante anos, quando havia muitos casos com pessoas que uma intervenção é para que algo talvez seja mais eficaz, da forma que posso contribuir
não conseguiam pagar pela hipoteca, grupos de assessoramento específicos foram com meu conhecimento. Da mesma forma faz o encanador que contribui com seu
criados para as pessoas endividadas com diferentes bancos. Com o tempo, essa forma conhecimento na recuperação de um edifício”, explica Alejandra, advogada, integrante
de organização foi deixada de lado porque se considerou que não privilegiava o asses- da PAVPS de Madri.
soramento coletivo. Anos mais tarde, com a diversidade de problemas que chegavam,
O apoio de advogados e advogadas pode ser útil para a PAH, mas não durante o asses-
a PAH de Barcelona começou a dividir parte de sua assembleia de assessoramento
soramento. “Produzimos documentos e materiais úteis e os oferecemos ao movimento
conforme a natureza dos casos: hipoteca, aluguel e ocupação. Eles tinham claro que,
em geral; fazemos materiais genéricos que podem distribuir ou divulgar pela internet”,
por experiência prévia, a divisão não deveria gerar assembleias paralelas; por isso, o
conta Alejandra. O que, de fato, se faz durante o assessoramento é apresentar esses
início e o fim do encontro é feito de maneira conjunta.
documentos às pessoas para que os adaptem para seus casos e possam apresentá-los
No que se refere ao assessoramento coletivo, cada pessoa expõe o estágio em que se nos tribunais, no banco ou na prefeitura.1
encontra naquela semana. Quem faz a moderação não responde diretamente à questão
As pessoas que procuram a PAH geralmente têm direito à justiça gratuita e podem
colocada, mas sim pergunta ao grupo como agiriam diante daquela situação e estimula
ser representadas por um defensor público. Mesmo assim, isso não impede que as
a manifestação principalmente de quem vive ou já passou por situação similar.
respostas acabem vindo da assembleia. “Você vai ao advogado e diz o que deve ser
Nesse processo as respostas são dadas por iguais. “Sempre dizemos que não se deve feito, o advogado segue a orientação e dá resultado; isso dá esperança”, aponta Félix,
ter vergonha de falar porque na assembleia há uns poucos voluntários, mas a maioria da PAH de Málaga, que assinala que às vezes a pessoa afetada acaba sabendo mais
somos afetados igualmente”, aponta Yaqoubi, da PAHC do Bages. “Assim se tenta do que quem a representa, que não é necessariamente um especialista na questão da
passar alguma segurança, para que não se sintam sozinhos, e durante a assembleia há
falas de quem acaba de chegar com um problema imenso mas também outras de quem
já está perto de concretizar uma solução”, acrescenta Viriginia, da PAH de Berriozar. 1 O site da PAH tem uma seção específica que reúne uma multiplicidade de documentos úteis: <https://
afectadosporlahipoteca.com/asesoria-y-recursos>. Diante do grande número de documentos, a PAH em
Ver pessoas na mesma situação e que vão encontrando respostas é fundamental para Barcelona criou um guia com um PDF interativo que permite às pessoas afetadas acessar diretamente a
documentação que necessitam para seu caso particular: PAH BARCELONA, ¿Conoces los Documentos Útiles
o método “sim, se pode”, que é um dos principais lemas da plataforma. “As pessoas de la PAH? (2020). Disponível em: <https://pahbarcelona.org/wp-content/uploads/2020/09/Documentos-
Utiles-PAHBCN.pdf>. Acesso em 12.02.2023.

36 37
A PAH: MANUAL DE USO 2. Como resolver problemas por meio do assessoramento coletivo

são realidades que mudam muito e é preciso contar com quem tem experiência direta
com a questão”, comenta Diego. Ele acrescenta que não é apenas compartilhar esse
conhecimento: “É que além disso a pessoa aprende a se comunicar melhor, e essa
igualdade de posições é o que vai te ajudar a entender o que é a PAH na prática e o que
é uma assembleia em abstrato. O apoio mútuo não é uma questão de discurso; ou você
o vê, o toca, ou não funciona”.

ACOMPANHAR
Esse apoio mútuo entre iguais não termina na assembleia. Embora as afetadas se
encarreguem de seu próprio caso, podem pedir a outras pessoas que as acompa-
nhem porque não têm que fazer sozinhas. Os acompanhamentos são uma maneira
de enfrentar inseguranças ou barreiras linguísticas, de contar com alguém que possui
mais experiência nesse campo ou simplesmente de se sentir com uma companhia. E
mesmo que sejam pessoas individualmente que as acompanham, isso se planeja na
assembleia porque é parte de um processo coletivo.
Angelines, da PAVPS de Madri, lembra bem que a primeira vez que acompanhou uma
companheira que sequer conhecia foi em uma ida ao banco para demandar um aluguel
social. “Cheguei ao lugar onde havíamos combinado e vi uma mulher só, conversamos
um pouco e a acompanhei caladinha, porque eu não sabia nada. No começo vai fazer
número apenas, mas com o tempo vai aprendendo e se empoderando, e então já não
moradia. “Com o que aprendi das leis, muitas vezes digo brincando para Alejandra que faz apenas número, sendo capaz de começar a intervir.”
falta pouco para que me deem o título de advogada”, acrescenta Angelines, também
Os acompanhamentos são um espaço onde se formam vínculos e cumplicidades para
da PAVPS de Madri.
além do espaço da assembleia, e são também uma forma de se sentir útil no contexto
Além dos conhecimentos compartilhados em assembleia, também são organizadas em que as pessoas chegam com muita insegurança e baixa autoestima. “Afora a solu-
oficinas e cursos para que qualquer pessoa afetada possa ter mais formação sobre ção do meu caso, para mim a PAH foi um medicamento que curou os piores males que
questões jurídicas ou negociações com os bancos, fortalecendo a sua confiança. eu tinha, sobretudo de insegurança, e me ensinou a entender a vida de forma diferente”,
Por outro lado, os conhecimentos não apenas são colocados em comum, como tam- afirma Delia, da PAH de Barcelona. “Eu creio que há muitas pessoas com disposição de
bém são aprimorados. “Quem já passou pelo que você está passando aprendeu e viu ajudar a próxima ou o próximo”, diz Francisco, da PAH de Barcelona, acrescentando que
os erros que pode ter cometido, assim que cada vez mais se aperfeiçoa a estratégia e “muitas vezes deixa de lado seus problemas e vai ajudar os demais, até o ponto de que
aprendemos do processo”, aponta Paco, da PAH de Murcia. se esquece que o seu próprio não está solucionado”.
Diego destaca que, no processo do assessoramento entre iguais, a importância de Rosa, da PAH de Altea, garante que “não se pode deixar jamais que a pessoa viva
valorizar os saberes não especializados, sobretudo nos territórios que recebem muita o problema sozinha, sempre é preciso acompanhá-la porque, ainda que esteja muito
intervenção da assistência social, como o distrito de Puente de Vallecas em Madri, onde empoderada, seu próprio caso sempre dói”. E para que ninguém se esqueça de seu
atua a sua PAH. “Todo mundo que chega passou antes por serviços sociais ou uma caso, a cada seis meses é feita uma assembleia para repassar a situação de todas as
paróquia ou uma ONG, e é importante valorizar que há coisas que necessitamos que pessoas afetadas. Na PAH próxima de Elx-Crevillent vão além e tentam ter sempre
nenhuma dessas trabalhadoras sociais sabem, mas nós sabemos, coisas tão simples alguém que se encarrega de um caso além do seu próprio para que possam, por exem-
como ‘nesse telefone eles já não atendem, mas sim neste outro’. Esses saberes pre- plo, intercambiar mutualmente. “Não é que você seja uma pessoa especialmente boa,
cisam estar presentes na assembleia; é muito difícil colocá-los em um manual porque mas acaba vendo o problema tão grande que deixa o seu em segundo plano”, diz Marga.

38 39
A PAH: MANUAL DE USO

CARGA EMOCIONAL
Mesmo que seja um espaço de apoio mútuo e de empoderamento, o assessoramento
coletivo também tem seu peso. As assembleias podem ser duras. “Quando há mui- COMO RESOLVER PROBLEMAS
tos casos enroscados, a gente chega mal em casa, não se sente bem, e às vezes POR MEIO DO ASSESSORAMENTO
vai remoendo a questão para ver se consegue solucioná-los”, afirma Chary, da PAH COLETIVO
Málaga. “Temos nossos próprios problemas também; então às vezes é um caos, com
seus problemas e com os dos demais, mas também é preciso aprender a separar e
desconectar”, acrescenta sua companheira Pilar.
Não cair no assistencialismo e deixar claro para as pessoas
Na PAHC do Bages, como em muitas outras, compartilham uma reflexão. “Há casos que devem encarregar-se do seu próprio caso, porque não haverá
que me fariam chorar, e de fato eu já cheguei em casa e assim o fiz, mas é preciso uma pessoa dedicada profissionalmente a isso
se blindar e se fortalecer”, assegura Lídia. “E isso também tem um risco, aconteceu
comigo, de normalizar tanto algumas situações que tal armadura acaba reduzindo sua
empatia, e algum dia cheguei em casa preocupado por estar normalizando algumas Oferecer ferramentas para que as pessoas possam avançar
coisas. Como construir essa proteção e, ao mesmo tempo, nos manter sendo humanos de forma autônoma na solução de seu problema
e ternos, que é como nos esperam as pessoas que chegam?”, se pergunta seu compa-
nheiro Berni depois de oito anos de assembleias. Àlex conclui apontando o desafio: “Na Gerar um espaço horizontal para que possa existir um assessoramento
realidade nunca paramos de falar como isso nos afeta emocionalmente, cada um foi entre iguais, valorizando as soluções que já funcionaram para outras
construindo essas armaduras em sua casa como foi possível, e se trata de um problema VOLTAR AO pessoas em situação semelhante, que são a quem se pergunta na assembleia
SUMÁRIO
que precisaríamos pensar como abordar coletivamente”.

Vigiar os comportamentos que por inércia possam romper com a lógica


da horizontalidade e procurar estratégias para minimizar os discursos
ou as atividades que possam ocupar um papel de especialista

Promover o acompanhamento como uma estratégia


de empoderamento e aprendizagem tanto para a pessoa
acompanhada como também para a acompanhante

Gerar mecanismos para que a ajuda aos demais


não signifique esquecer o próprio problema

Considerar o impacto emocional de fazer parte de uma assembleia


em que com frequência as pessoas expõem situações dramáticas e difíceis

VOLTAR AO
SUMÁRIO

40
3. COMO ORGANIZAR
VOLTAR AO
SUMÁRIO
UM MOVIMENTO
ASSEMBLEÁRIO
O dia a dia de Angelines era parecido com o de muitas donas de casa: cuidar de seus
filhos, levar a mais velha à escola, fazer compras, cozinhar, arrumar a casa enquanto
cuida do menor… A primeira vez que viu um despejo ser barrado foi pela televisão,
embora estivesse no mesmo bairro em que vive, Usera, em Madri. “Foi muito falado
porque a polícia desceu o pau em muitos que hoje são meus companheiros, mas eu
então via aquilo e me perguntava como é que poderiam expulsar as pessoas de sua
própria casa daquela maneira”, lembra.
Angelines não demorou para se envolver com movimentos de moradia. Quando sua
avó morreu, ficou na sua habitação, uma moradia pública da Comunidade de Madri, e
com o tempo conseguiu ser regularizada inquilina. A diferença é que sua avó pagava 90
euros por mês e ela, 500. Com a crise, não conseguiu mais pagar o aluguel e passou a
acumular dívidas até que a Prefeitura a ameaçou com despejo. Foi então que uma mãe
da escola da sua filha comentou da assembleia de moradia de Usera, e assim Angelines
chegou à PAVPS de Madri. Hoje segue na sua casa e paga 140 euros por mês entre o
aluguel e a dívida que está quitando de acordo com suas possibilidades.
Sua vida hoje tem pouco a ver com a de antes. “Mudou muitíssimo, já não é aquela
rotina de deixar a filha na escola e limpar a casa, agora eu a deixo na escola e vou dis-
cutir com o poder público, vou parar um despejo, reunir-me com o responsável pela
política de moradia ou o diretor não sei do quê”, conta. Seu filho pequeno tinha dois
anos quando ela começou sua militância pelo direito à moradia. Quando ia ao colégio,
um dia perguntaram a ele o que seus pais faziam e respondeu que o pai era pedreiro e
sua mãe trabalhava parando despejos. “Meu filho o entendia como um trabalho, porque
realmente todos os dias depois de deixá-los na escola tinha algo para fazer.”
A PAH não é apenas assessoramento coletivo semanal ou quinzenal. A maioria das
plataformas possuem uma atividade frenética durante toda a semana, e isso requer
muita organização. Cada núcleo local da PAH tem autonomia e define sua organização
e o funcionamento mais adequados dentro de seu contexto e suas possibilidades, mas

43
A PAH: MANUAL DE USO 3. Como organizar um movimento assembleário

existem alguns critérios básicos. O principal é que a organização deve ser horizontal Para um bom funcionamento é importante que todo mundo saiba em que momento
para promover a tomada de decisões coletivas, a socialização da informação e a divisão se está na assembleia – e, para isso, é interessante por exemplo registrar a pauta da
de tarefas e responsabilidades. As decisões em uma PAH são tomadas em uma assem- reunião em uma lousa – e qual a duração prevista. “Em determinado momento, chegá-
bleia semanal ou quinzenal aberta a todas as participantes. Em paralelo, é normal haver vamos a encerrar a assembleia às onze da noite do domingo, precisando estar de pé no
comissões ou grupos de trabalho, também abertos, que permitem tratar de algumas dia seguinte às sete. E isso não era bom. Quando colocamos um limite para o término
questões com mais regularidades ou profundidade. Tais espaços nascem da assem- da reunião, às nove da noite, a assembleia seguiu funcionando”, lembra Alex, da PAHC
bleia e apenas podem tomar decisões no escopo definido pela própria. do Bages. Os horários também ajudam a separar distintas partes da assembleia. “Com-
Em uma PAH grande como a de Barcelona pode haver quase 20 comissões, embora binamos parar às oito em ponto para tratar das ações e dos despejos, e então há coisas
a organização mude constantemente. Tratam de questões tão diversas como a organi- que precisamos deixar para a semana seguinte”, disse Edu, da PAH de Barcelona.
zação de ações reivindicativas, formas de arrecadação de recursos, a participação em “Eu destacaria a complexidade organizacional da PAH como algo positivo; tudo está
debates para os quais a PAH foi convidada, a dinamização das assembleias, a comuni- bastante estruturado, embora no primeiro dia possa parecer difícil entender por com-
cação nas redes sociais ou com a imprensa, o desenvolvimento de novas estratégias pleto, as comissões e os protocolos, mas ter claramente uma estrutura e repeti-la em
ou a organização de festas. Nem sempre há musculatura organizativa para dar conta de toda assembleia permite que cada um a interiorize, e em todos estes anos a gente tam-
tanta diversidade. Na PAH de Berriozar, por exemplo, Jesús conta que, embora antes bém vai explicando o que já escutou, adaptou e transmitiu”, acrescenta Edu. Também é
houvesse várias comissões, quando há menos pessoas envolvidas no dia a dia, a maio- fundamental que se registre em ata o que foi discutido na assembleia, bem como deixar
ria das questões são tratadas diretamente nas assembleias. este documento acessível para consulta.
O papel de quem dinamiza não é simples. Por um lado, há uma pauta a ser cumprida;
DINAMIZAR A HORIZONTALIDADE por outro, é preciso garantir que todas as opiniões sejam expressadas. Edu agradece,
É fundamental que as assembleias sejam dinâmicas para que a lógica horizontal por exemplo, o fato de ter uma linguagem de sinais compartilhada por toda a assem-
funcione. Isso requer que questões muito diversas sejam consideradas, que vão desde bleia. “No papel de dinamizador, é difícil cortar as pessoas, mas a linguagem me ajuda,
o compartilhamento prévio da pauta da reunião até gerar um ambiente propício para porque, se alguém faz sinais porque uma pessoa está se perdendo em sua fala ou
escutar todas as opiniões.1 “Há uma equipe de coordenação na própria PAH que se desviando-se do assunto, posso dizer que estão pedindo que voltemos para o foco. Às
encarrega de organizar um pouco a estrutura das assembleias para construir os temas vezes, quando o tema gera muito debate ou dá origem a outras discussões sugerimos
do encontro”, conta Rosa, da PAH de Altea. Saskia, da PAH de Torrevieja, conta que, que o assunto seja colocado na pauta da próxima assembleia.”
no seu caso, a pauta da assembleia é construída por meio do WhatsApp: “Cada um Os sinais também contribuem para que se vá medindo a temperatura da assembleia, já
expõe um pouco os temas que gostaria de tratar e no momento da assembleia vamos que se procura evitar decisões por votação, privilegiando caminhos que apontem para
tratando deles”. um consenso generalizado. “A PAH me ensinou a respeitar as diferentes opiniões, é
Há algumas PAH, como a do Bages ou a de Sabadell, que apostam por não ter uma muito difícil que em uma reunião de 60 pessoas todas estejam de acordo; seguimos
comissão de coordenação para descentralizar o trabalho; outras, como a de Barcelona, aquilo que é decidido em uma assembleia, mesmo que eu não esteja de acordo”, des-
possuem não só esta comissão, como também um grupo mais específico para dinami- taca Delia, da PAH de Barcelona. “Eu muitas vezes digo coisas que são contrárias ao
zar as assembleias. Por meio do correio eletrônico, recebem as sugestões de questões que todo mundo pensa. Eu me posiciono, mas fui aprendendo que, se as pessoas não
que devem ser tratadas no encontro e, um dia antes, encaminham a pauta da reunião. estão de acordo, não é por isso que devo ficar com raiva”, acrescenta seu companheiro
Fazem isso guardando certa flexibilidade para que a assembleia possa ser adaptada Francisco.
conforme as necessidades colocadas pelas participantes, inclusive incorporando novos
assuntos. INTELIGÊNCIA COLETIVA
E a questão não é apenas respeitar a diversidade, mas valorizá-la. “O que a PAH mais
1 As PAHs catalãs elaboraram, em 2014, um manual de facilitação com colaborações externas a partir de
oficinas de formação da plataforma: PARERA, M. Manual de facilitación para la Plataforma de Afectados/das
me ensinou no âmbito pessoal foi perceber a capacidade de trabalho da inteligência
por la Hipoteca. 2014. Disponível em: <https://pahbarcelona.files.wordpress.com/2017/05/1manualpah-cast. coletiva”, destaca Santi, também da PAH de Barcelona. “É impressionante como as coi-
pdf)> (12.02.2023.

44 45
A PAH: MANUAL DE USO 3. Como organizar um movimento assembleário

sas se transformam quando não são só quatro pessoas pensando, se permite que todo TAREFAS DAS COMISSÕES
mundo se expresse e os debates vão sendo gerados e já não sabe quem contribuiu com Decisões operativas e temáticas
o quê. Às vezes, olha um item na pauta da assembleia e já tem muito claro como deve
fazê-lo, mas logo as pessoas começam a falar e você se dá conta de que o que sai dali
é muito mais forte do que se imaginou inicialmente.”
Por outro lado, “o fato de que não há uma direção ou um coordenador facilita que as
COMISSÃO COMISSÃO
pessoas possam se envolver e assumir um papel, especialmente as mulheres, que
A B
na maioria das vezes são as que dinamizam as comissões; na plataforma temos uma
maneira de somar e construir que empodera as mulheres”, aponta Marcia, da mesma
PAH de Barcelona. “Quando você tem um problema de moradia, você se sente mal,
tem baixa estima, pensa que não vale nada, não sabe nada, e a assembleia nos faz
sentir importantes, nossa opinião pode ser levada em conta, isso é muito bonito”, acres-
ASSEMBLEIA
centa sua companheira Lucía N.
Um desafio constante, no entanto, é evitar as hierarquias. Em qualquer organização
podem surgir lideranças, o que não é necessariamente negativo, mas é preciso tomar
cuidado para que a horizontalidade não seja prejudicada. “As pessoas mais empode-
radas que dedicam mais tempo à PAH costumavam formar um grupo e sentar-se no
mesmo lugar, próximas da lousa, assim que nos propomos a não estar sempre os mes- COMISSÃO COMISSÃO
mos ali”, exemplifica Edu. De pouco ajuda se colocar em círculo em vez de ficar em C D
fileira diante de um palco se todo o conhecimento parece vir de um mesmo ponto. Da
mesma maneira, Edu também assinala que é desejável que a pessoa encarregada de
dinamizar a assembleia não seja alguém comprometido com muitas outras responsabi-
lidades, como porta-voz ou estando presente em muitas outras comissões.
TAREFAS DA ASSEMBLEIA GERAL
“A assembleia tem muito potencial e funciona muito bem, mas há o risco do sofista • Decisões estratégicas
ou do manipulador, de alguém que quer aproveitar a força coletiva para seu interesse
• Decisões organizativas gerais
pessoal”, alerta Àlex, da PAHC do Bages. “Quem põe limite é a própria assembleia,
• Coordenação das comissões
que reage quando alguém faz coisas estranhas; mas esse risco sempre está colocado
• Decisões operativas sobre temas transversais
e às vezes o que existe são os autolimites.” Seu companheiro Bernat explica que “que-
rendo ou não, há gente com certa liderança nos processos e às vezes a própria PAHC
pede por mais pessoas assim, mas são elas próprias que acabam destacando o caráter ADAPTAR-SE CONSTANTEMENTE
assembleário da plataforma”. Manter a horizontalidade é, assim, um desafio perma-
nente sobre o qual é preciso estar alerta. A PAH está sempre atenta para quando é necessário realizar mudanças, sejam elas
questões simples ou de fundo. “Evidentemente, surgem papeis na assembleia, mas
não temos um grupo de responsáveis; as decisões se tomam de forma coletiva e isso
as torna mais fáceis de serem revisadas, porque não se trata de questionar a decisão
de um grupo de pessoas concretas, uma vez que foi tomada por todas”, aponta Santi,
da PAH de Barcelona. “Se precisamos mudar a assembleia de boas-vindas, voltamos a
mudá-la; se começam a chegar muitos casos de ocupação, vemos como melhor aten-

46 47
A PAH: MANUAL DE USO 3. Como organizar um movimento assembleário

der. Temos sabido nos adaptar bastante às diversas realidades e diria que isso explica dedicação que passa a fazer parte de seu trabalho acadêmico. Em qualquer caso, essas
por que duramos tantos anos”, destaca. realidades são minoritárias no movimento e não estão isentas de debates internos.
“Às vezes essas questões surgem tomando algo no bar logo depois da assembleia, e Uma coisa está clara: mesmo que uma pessoa receba, direta ou indiretamente, para
o que fazemos é comentar na semana seguinte, propor uma mudança e, caso se acu- dedicar mais horas a sua plataforma, não tem mais poder de decisão, nem um papel de
mulem muitas mudanças, convocamos uma assembleia plenária e passamos todo um coordenação: as decisões na PAH se tomam sempre em assembleia.
sábado pensando como podemos modificar algumas questões”, explica Berni no caso
da PAHC do Bages. Embora o espaço para a tomada de decisões seja a assembleia, os GERAR COMPROMISSO
espaços de encontros informais são fundamentais tanto para gerar vínculos como para
Para seguir crescendo, atuando por meio da desobediência, reinventando a forma de
que emerjam inquietações.
organizar-se e evitando que as pessoas envolvidas se prejudiquem, um dos principais
Mas há questões que necessitam de mudanças que não surgem na própria assembleia, desafios da PAH é conseguir que as pessoas que chegam como afetadas envolvam-se
mas a partir de problemas externos. Por exemplo, quando os imóveis das pessoas para além de seu caso. “O que estimula as pessoas a ficarem é seguir lutando por
endividadas não são apenas dos bancos, que possuem sedes locais onde se costuma ir outras famílias que estão em situação parecida à sua, porque lembra do quanto chora
para protestar, mas são de fundos de investimento internacionais. Por isso muitas PAH quando chega a carta de que será despejada e isso incentiva você a seguir nessa luta
possuem também comissões específicas para propor estratégias de longo prazo para a para mudar as coisas porque começa a se conscientizar de todas as injustiças”, asse-
assembleia. Também comissões de formação, que possibilitam que as pessoas organi- gura Angelines, da PAVPS de Madri.
zem oficinas para se formar de acordo com as necessidades que surgem na assembleia.
O vínculo se alimenta principalmente nos espaços informais. Em Barcelona, por exem-
plo, há um grupo de Telegram chamado “PAH Família”. “Depois de uma ou duas
ORGANIZAR-SE SEM RECURSOS assembleias a pessoa é colocada no grupo; é uma maneira de que todas fiquem
A capacidade de adaptação é especialmente relevante quando se organiza praticamente informadas de muitas coisas, como despejos, ações, mas também do aniversário de
sem recursos. São muito poucas as PAH que possuem um local próprio, a maioria alguém”, explica Francisco. Não é um espaço de decisão, nem um canal oficial de infor-
praticamente não tem gastos estruturais. “Funcionamos com muito pouco, costuma- mação, porque tudo isso já existe, mas um mecanismo mais informal que reúne cerca
mos estar em locais cedidos, ou instalações públicas, ou espaços de outros coletivos de 200 pessoas. “Para mim, cumpre uma boa função, apesar de tudo, porque às vezes
sociais”, explica Paco, da PAH de Murcia. Se há gastos, como a impressão de cartazes, há debates que se prolongam tanto que a uma da manhã você ainda está recebendo
fazer uma faixa ou comprar um megafone, os valores são arrecadados com a “venda de notificações”, conta resignado.
produtos da PAH ou de doações; por exemplo, na nossa assembleia temos uma caixi- Maria Antònia, da PAH de Cardedeu, um município de 18 mil habitantes, considera que
nha sobre a mesa onde cada um vai deixando contribuições financeiras de acordo com é mais fácil gerar relações em PAHs pequenas. “A gestão dos casos é mais reduzida
suas possibilidades, e com isso vamos funcionando, porque aqui não há liberados nem que em uma grande e as relações são mais pessoais; pode saber mais como as pes-
nenhum gasto deste tipo, o que existe é muita vontade de pessoas dispostas a ceder soas se sentem, como estão seus filhos, se há outros problemas além da questão da
seu tempo”, conclui Paco. moradia…” Embora valorize esse fato de que as pessoas se sentem menos sozinhas,
O assessoramento coletivo e o assembleísmo permitem que a PAH possa funcionar ela também ressalta que “as pequenas têm também um senão, porque é mais difícil
sem pessoas dedicadas profissionalmente a isso. Este feito tem sido chave para sua que surja gente que se responsabilize pelas coisas”.
sobrevivência sem necessidade de muitos recursos econômicos. “No começo foi muito bem pensada a linguagem, as imagens, as mensagens claras e
Apesar disso, contar com profissionais não é incompatível com o modelo da PAH. A isso permitiu acrescentar pessoas que nunca haviam estado organizadas, que pratica-
de Vallekas, por exemplo, teve uma pessoa liberada durante um tempo graças à con- mente não tinha relações sociais, porque vivemos atomizados em núcleos familiares e
tribuição voluntária de alguns de seus integrantes. Outras PAH também contam com a duras penas cumprimentamos o vizinho”, aponta Emma, da PAHC de Sabadell. “Para
o apoio de entidades em defesa de direitos humanos, que liberam parte da jornada de muitas, a PAH foi a primeira experiência de entrar em um coletivo organizado, de apoio
trabalho de sua equipe para que apoiem a PAH. Também há quem se aproxime da PAH mútuo, onde conhece muita gente e as ajuda, e isso faz que se crie uma ‘identidade
para fazer uma pesquisa acadêmica e nesse processo acaba se envolvendo com uma PAH’, vai se sentindo parte de uma família enorme que estará ali quando precisar.” É

48 49
A PAH: MANUAL DE USO

sobretudo esse sentimento que explica por que as pessoas sigam ali, anos depois de
ter entrado pela porta.
Há pessoas que também conservam esse sentimento mesmo sem participar. “Há
pessoas que estão há quatro anos sem poder vir pelo motivo que seja, mas seguem
COMO ORGANIZAR
se sentindo PAH; quando necessário, nos perguntam se podem ajudar e creio que há
UM MOVIMENTO ASSEMBLEÁRIO
gente que não deixará nunca de se sentir PAH porque está muito agradecida, não só
porque teve resolvido um problema material, mas porque um novo campo em sua vida
foi aberto”, assegura Jesús, da PAH de Berriozar. No entanto, ele alerta: “Também há Tomar decisões em assembleias abertas e organizar o trabalho em comissões
quem veja a PAH como se fosse um fundo de investimento, que já não participa, mas ou grupos de trabalho que respondam às próprias assembleias
se necessita de algo pede socorro a ela”.
Nas distintas PAH, apenas uma pequena parte das pessoas que chegam à PAH acaba Organizar a assembleia compartilhando previamente a pauta,
se vinculando. Por outro lado, foi tanta gente que passou pelo assessoramento cole- expondo a informação a todo momento e administrando os tempos
tivo que, se todas tivessem ficado, seria difícil realizar assembleias com milhares de
pessoas. O novo desafio da plataforma tem a ver com as mudanças nas questões de
Dinamizar os debates para abarcar toda a diversidade de posturas
que trata. Quando a maioria das pessoas chegava com um problema de hipoteca, o
e ao mesmo tempo avançar nos itens da pauta, tendo claro quando um debate
processo judicial era lento e se passava mais de um ano indo às assembleias, de forma
precisa continuar em outro encontro ou quando uma questão é urgente
que a vinculação se gerava de uma maneira mais fácil. Depois dos anos mais duros da
crise das hipotecas, no entanto, a maioria das pessoas afetadas têm problemas com
aluguel ou porque vivem ocupando um espaço de forma precária. Costumam ser pro- VOLTAR AO Respeitar as posturas discordantes e valorizar a inteligência coletiva
SUMÁRIO
cessos mais rápidos e nesse caso a PAH encontra um desafio para ir se reinventando. como forma de chegar a conclusões mais elaboradas que aquelas
que poderiam ser propostas individualmente

Promover a tomada de decisão por meio de consensos


em vez de sempre votar para eleger a proposta com mais apoios

Evitar dinâmicas hierárquicas que poderiam romper com a horizontalidade


na tomada de decisões e se contrapor quando surjam

Questionar a organização e as estratégias sempre que seja necessário


para corrigir problemas ou novos desafios que possam aparecer

Gerar espaços de encontro e relação que favoreçam a vinculação no longo prazo

VOLTAR AO
SUMÁRIO

50
4. COMO FAZER
VOLTAR AO CRESCER UM
MOVIMENTO
SUMÁRIO

DESCENTRALIZADO
“Estávamos na assembleia do 15M aqui em Segovia e muitas de nós éramos ativistas
em outras lutas, no meu caso pacifistas e feministas, mas com o tempo o 15M come-
çou a perder força e como surgiu a iniciativa legislativa popular da PAH (ILP) passamos
a recolher assinaturas”, recorda Sole. Ela não tinha problema de moradia, mas algu-
mas de suas companheiras, sim. Além disso, havia visto como haviam tirado a casa da
namorada de seu filho. “Logo depois que nos somamos no processo da ILP, dissemos:
‘vamos criar uma PAH porque nos faz falta’”.
Elas procuraram a plataforma mais próxima, a de Valladolid, e lá explicaram como fun-
cionava o movimento e as colocaram em contato com a rede estatal de plataformas.
“Fizemos panfletos e fomos distribuir nas ruas todas as semanas e começaram a chegar
pessoas afetadas. No começo, havia muitos casos e tivemos que aprender na prática,
e para isso a PAH de Barcelona, a de Murcia e a de Valência nos ajudaram muitíssimo,
por meio das trocas de e-mails, com os documentos que estão na internet, com cada
problema que chegava formos aprendendo”, conta.
A PAH nasceu em Barcelona em 2009 e desde então passou a receber casos que vinham
de diversas partes da Catalunha. Pouco a pouco outras plataformas foram sendo fundadas,
até que veio a convulsão social do 15M e dezenas de PAH foram criadas em todo o país.
A PAH de Murcia fui uma das pioneiras, antes que existisse qualquer tipo de coordenação
nacional. “Éramos um grupo de pessoas que sempre estava envolvido em lutas sociais
aqui em Murcia e, desde o final de 2009, começamos a ver amigos e amigas dizendo que
iriam ser despejados pelo banco, e buscando respostas encontramos a PAH de Barcelona,
ligamos para o telefone que estava na internet e já ficamos em contato”, rememora Paco.
“No começo, para montar uma PAH, você apenas escolhia um local, reservava dia, hora e
periodicidade das reuniões e as pessoas começavam a chegar, mas com o tempo fomos
gerando um processo de tutoria”, explica o veterano. Com os anos, o crescimento e alguns
conflitos, o movimento desenvolveu critérios básicos de funcionamento, o que passou a
ser chamado de “linhas vermelhas”. Definiu-se que para criar uma nova PAH é necessário

53
A PAH: MANUAL DE USO 4. Como fazer CRESCER um movimento descentralizado

o acompanhamento de uma PAH próxima e consolidada que se encarrega de introduzi-la “Em um movimento tão grande há maneiras distintas de ver as coisas, mas creio que
na dinâmica cotidiana, acompanhar as primeiras assembleias e resolver dúvidas.1 na história da PAH aprendemos a ser bastante generosas, a ceder em certas coisas ou
seguir nosso próprio caminho dentro dos limites que o movimento define, porque ao
UM MOVIMENTO DIVERSO final o objetivo político é compartilhado; se é para somar, chegar a muita gente, que se
deem conta de como funciona o sistema e lutem para mudá-lo, pois bem-vindas são as
Mesmo que o espaço de atuação da PAH costume ser municipal, há distintas realida-
diferenças”, conclui Emma.
des. No Bages, por exemplo, há uma plataforma que tem como marco de referência
toda uma comarca. Em Madri, por sua vez, há plataformas que atuam em distritos ESPAÇOS DE ORGANIZAÇÃO
específicos da cidade a há plataformas especializadas em questões específicas, como E DE TOMADAS DE DECISÕES
a Plataforma de Afetadas pela Moradia Pública e Social (PAVPS, sigla em espanhol).
O fato de estabelecer claramente critérios de funcionamento permite incorporar coleti-
vos ao movimento, não importa se tenham a denominação de PAH ou não. “As linhas
vermelhas estabelecem requisitos mínimos muito importantes, como a horizontalidade,
o apartidarismo e a gratuidade, que todas temos que cumprir, mas independentemente Comissão Comissão
de como se identifica, se atende a esses itens, pode formar parte da rede nacional das
PAH”, explica Toñi, da Stop Desahucios Móstoles. É o caso de muitas plataformas da ASSEMBLEIA LOCAL

Comunidade de Madri, surgidas no marco do 15M e que já cumpriam com critérios de Comissão Territorial Comissão Territorial
funcionamento próprios de uma PAH embora não se chamassem assim.
Para além desses critérios e de compartilhar uma estrutura de movimento, “cada plata- ASSEMBLEIA TERRITORIAL

forma é um mundo, em função do núcleo das pessoas que a criaram, o tipo de município,
Comissão nacional Comissão nacional
se é uma grande cidade ou um pequeno povoado, do espaço em que se reúne, da
PAH que exerceu a tutoria”, assegura Emma, da PAHC de Sabadell. “Por exemplo, ASSEMBLEIA NACIONAL
aqui começaram a chegar casos do Bages e fomos buscar pessoas que conhecíamos REDES INTERNACIONAIS
para dizer que precisávamos de uma PAH lá, assim que a PAHC do Bages foi criada
à imagem e semelhança da de Sabadell, porque já tínhamos um caminho percorrido,
com nossos erros e acertos, e isso se vai transmitindo.” Este fato se reflete nas siglas, LOCAL TERRITORIAL NACIONAL INTERNACIONAL

embora em Sabadell PAHC significa Plataforma de Afetadas pela Hipoteca e pela Crise
Assembleias Espaço de coordenação Espaço de coordenação Espaço de participação
e no Bages se denominaram Plataforma de Afetadas pela Hipoteca e pelo Capitalismo. autônomas em sua para as questões de todas as e interlocução da
forma de organização e que afetam a todas plataformas. plataforma em escala
O fato é que cada PAH dá ênfase ao discurso e à ação de acordo com seu perfil. Discurso
suas ações. as plataformas de internacional.
de classe ou de direitos humanos, anticapitalismo, propostas legislativas, sindicalismo um território, como Define as linhas gerais
social, lobby cidadão… Tudo isso cabe na PAH, e cada assembleia lhe dá o devido A única limitação são campanhas conjuntas ou do movimento que Depende das decisões
peso. Sem essa autonomia e diversidade, dificilmente o movimento conseguiria ter se as linhas gerais do processos de incidência devem seguir todas as tomadas na assembleia
movimento definidas política. assembleias. nacional e se organiza
multiplicado como o fez. Ao mesmo tempo, todas têm em comum a horizontalidade, o
pela assembleia por meio de uma
apartidarismo, a gratuidade e, principalmente, que semana após semana apresentam nacional. Encarrega-se de Organiza e coordena comissão.
respostas a famílias que correm o risco de acabar na rua, por meio do assessoramento mediar conflitos entre campanhas ou
coletivo e da desobediência civil. A participação em assembleias ou que não processos de incidência
outros níveis de possam se resolver em política em escala
organização parte da uma assembleia local. nacional.
1 O documento conhecido no movimento como “linhas vermelhas” foi aprovado, depois de meses de debate,
na assembleia estatal de julho de 2015. PAH. Criterios básicos de funcionamiento de una PAH. 2015. participação em uma
Disponível em: <https://afectadosporlahipoteca.com/wp-content/uploads/2022/07/CRITERIOS-BASICOS- assembleia local.
FUNCIONAMIENTO-PAH-LI%CC%81NEAS-ROJAS-V2-2022.docx-1.pdf> (13.02.2023).

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A PAH: MANUAL DE USO 4. Como fazer CRESCER um movimento descentralizado

CÓDIGO ABERTO alguma coisa muito particular, do tipo “nós estamos lidando com uma hipoteca tipo
bullet, o que sabem sobre isso?”, expõe Jesús.3
Da mesma forma que os documentos úteis para pessoas com problemas de mora-
E tal qual há comissões internas em uma PAH local existem instâncias semelhantes de
dia, o DNA da PAH é compartilhado publicamente e de maneira aberta. Os critérios
nível regional ou nacional. Para além dos objetivos concretos, são espaços em que se
de funcionamento, os logotipos da plataforma ou de suas campanhas, os protocolos
compartilham conhecimentos de maneira direta, que costumam se comunicar cons-
de comunicação, um manual de facilitação das assembleias ou adaptações de can-
tantemente por meio do Telegram. “Estou na Comissão de Comunicação Nacional e,
ções famosas para serem cantadas em ações das diferentes PAH que inventam letras
quando tenho uma dúvida, eu envio uma mensagem e logo alguém de outra PAH me
novas… Tudo isso se pode encontrar na página na internet da PAH.2 Deixar esse con-
responde explicando como fazer”, conta María, da PAH de Segovia. “Até mesmo uma
teúdo aberto favorece a descentralização, já que qualquer pessoa pode acessá-lo sem
assembleia pequena como a nossa, que recebe poucos casos, lida com muitas ques-
mediação de uma equipe técnica ou de uma coordenação que responde aos pedidos
tões distintas. Por isso é fundamental coordenar-nos com outras PAH e seguir nos
individualmente. Além disso, são úteis não apenas para as PAH, mas para outras pes-
formando a partir do que produzem”, acrescenta Sole.
soas ou coletivos que queiram recorrer a eles.
A descentralização permite também que cada assembleia gere ferramentas por conta
ORGANIZAÇÃO EM VÁRIOS NÍVEIS
própria e as compartilhe quando funcionam. De fato, assim se desenvolveram as pri-
meiras PAH depois da de Barcelona. “Havia muito de tentativa e erro; Barcelona dizia Desde quando o movimento começou a crescer encontrou a necessidade da coorde-
como se organizavam lá, mas não precisava necessariamente seguir do mesmo jeito”, nação. “Muitos coletivos se concentram exclusivamente em sua realidade local, mas
rememora Jesús, da PAH de Berriozar. nós desde o começo entendemos que é preciso ir do local ao global”, assegura Santi,
da PAH de Barcelona. “Tínhamos claro que queríamos mudar leis e, para isso, é pre-
“Queremos que as pessoas se auto-organizem, mas aproveitando ferramentas que já
ciso ser um movimento nacional; com essa finalidade, cuidamos desses espaços e da
estão feitas”, explica Diego, da PAH de Vallekas. “Hoje já partimos do princípio que
coordenação regional que nos permite chegar à nacional.” Além disso, há também a
Stop Desahucios (despejos) é uma organização não violenta, mas isso porque as pes-
Comissão Internacional, da qual Santi faz parte, para levar a luta da PAH para além das
soas de Barcelona o idealizaram assim. Se foi replicado, é porque funciona; ao mesmo
fronteiras nacionais.
tempo, se o movimento houvesse iniciado com uma grande diversidade de grupos
debatendo sobre o uso da violência, nunca chegaríamos a um acordo. Isso funcionou O primeiro nível de organização da PAH é o regional. Há coordenações territoriais que se
por experiência, e ter uma estrutura comum facilita que o legado seja comunicado e se reúnem mensal ou bimestralmente em uma assembleia. Possuem suas próprias comis-
torne mais orgânico”, assegura. sões, que podem servir para preparar campanhas e estratégias conjuntas e também
para cumprir um papel de interlocução com o governo, já que muitas dessas políticas
Para além do público, também há canais internos para compartilhar esses conhecimen-
de moradia vão além das áreas de atuação dos municípios.
tos e entrar em questões mais concretas. Logo após o período da tutoria, uma nova
PAH é incorporada a uma lista de e-mails nacional, onde estão outras PAH. Ali não A coordenação territorial nem sempre é fácil e, de fato, nem todas as regiões do país
estão e-mails pessoais, mas apenas os endereços das distintas plataformas e se espera contam com uma. A realidade é muito diferente entre os territórios pequenos e com
que as mensagens ali estejam em nome da assembleia. “O correio é uma maneira muitas plataformas, como Catalunha ou a Comunidade de Madri, em comparação com
de compartilhar conhecimento porque sempre há alguém que diz ter contato com um territórios mais extensos e com mais assembleias. “Andaluzia é uma região tremen-
determinado banco, alguém que procura contatar com outro ou inclusive compartilhar damente grande, e então é complicado ir de um lado para outro, sobretudo porque os
meios de transporte aqui estão péssimos e caríssimos”, exemplifica Chary, da PAH
de Málaga. E a isso se soma a situação das pessoas da plataforma, como aponta sua
2 Os materiais são muito diversos. O cancioneiro da PAH inclui links para canções originais e letras adaptadas
para as reivindicações da plataforma, e às vezes também a interpretação por membros da PAH, quase sempre
dentro de uma sucursal bancária: PAH. El cancionero de la PAH. 16 de abril de 2014. Disponível em: <https://
afectadosporlahipoteca.com/2014/04/16/cancionero-pah> (12.02.2023). Em relação aos recursos gráficos
há, por exemplo, um manual para criar os símbolos Stop Desahucios usados nas ações: PAH. Instrucciones 3 A partir da experiência das jornadas organizadas em julho de 2012 pelos coletivos em defesa da cultura e
Plantilla: Stop Desahucios. 2012. Disponível em: <https://afectadosporlahipoteca.com/wp-content/ dos softwares livres Xnet e Communia foi feito um manual do uso das listas de correio eletrônico da PAH: @
uploads/2012/01/Stop-Desahucios_Desnonaments_Evictions_plantillas_70x70cm+instrucciones.pdf> teknosocial. Manual para buen uso listas correo PAH. 2013. Disponível em: <https://afectadosporlahipoteca.
(12.02.2023). com/manual_pah> (13.02.2023).

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A PAH: MANUAL DE USO 4. Como fazer CRESCER um movimento descentralizado

companheira Asun: “Se me dissessem ‘vamos para Sevilha’, eu gostaria de ir sem cada assembleia nacional há uma prestação de contas”, explica Maka, que participa da
pensar, mas é que eu não tenho como pagar essa viagem, estamos todos praticamente Comissão Internacional pela PAH de Barcelona. Ela complementa: “Há certas decisões
no limite”. que extrapolam o escopo da comissão e, nesse caso, é necessário um sistema de
Em escala nacional, a PAH celebra uma assembleia presencial a cada quatro meses aprovação por parte da PAH, que idealmente seria feito em assembleias, como quando
e é o principal espaço de decisão do movimento em relação a questões organizativas por exemplo decidimos participar em uma iniciativa legislativa em nível europeu; isso
ou estratégicas ou com campanhas nacionais. Nessa instância, cada assembleia local precisava ser decidido em uma assembleia nacional”.
pode enviar várias pessoas como representantes, mas apenas uma tem direito a voto – E como saber quando uma questão excede a autonomia da própria comissão? Isso
embora a prioridade seja chegar a um acordo por consenso; além disso, para quem não depende mais da inteligência coletiva que de mecanismos formais. “Creio que contar
pode se deslocar, os debates são transmitidos virtualmente. Em um primeiro momento com 16 pessoas dentro de uma comissão permite que se tenha um pensamento cole-
era possível participar a distância, mas essa possibilidade foi descartada porque gerava tivo; nunca é a decisão de uma pessoa, mas esse encontro entre pessoas com mais de
conflitos e debates paralelos em relação a quem estava presente fisicamente. uma década de PAH e o olhar fresco de quem chegou mais recentemente, e pessoas
Uma comissão de coordenação define a pauta do dia com suficiente antecedência para que estão em distintas assembleis, em outras comissões, nas quais estão em contato
que as assembleias locais possam debatê-lo, considerando que se reúnem uma vez com 20 pessoas mais”, assinala Maka.
por semana ou a cada quinze dias. “O objetivo não é que vá alguém de cada lugar Santi, também da PAH de Barcelona e da Comissão Internacional, destaca a impor-
para debater entre si, mas sim que cada um possa expor o consenso obtido em sua tância de ferramentas digitais para manter essa coordenação. Muitas delas, como as
assembleia, para alcançar um outro consenso entre todas”, explica Ricardo, da PAH de conferências por Mumble5 que permitem reunir comissões nacionais com regularidade,
Barcelona. são heranças da articulação nacional do 15M. “O grupo de Telegram onde estamos em
A assembleia decide a criação de comissões nacionais que trabalham para o conjunto contato é o exemplo mais evidente, mas também são importantes os documentos com-
do movimento. Algumas são mais estruturais, como as dedicadas à comunicação, às partilhados em que todo mundo sente que pode contribuir; não é que alguém escreva
questões jurídicas, às relações internacionais ou ao desenvolvimento de estratégias. o documento, mas que essas ferramentas permitem socializar o trabalho e que seja
Outras se relacionam com campanhas ou temas específicos, como por exemplo a Obra compartilhado desde o início”, destaca.
Social la PAH, relacionada à ocupação de edifícios vazios, ou problemas de aluguel ou a
pressão aos fundos abutres.4 FORÇA DE MOVIMENTO
A Comissão de Coordenação Nacional se reúne virtualmente a cada quinze dias. Inte- Para além do que estimular em escala nacional, como as mudanças em legislações, o
grada por representantes das distintas coordenações territoriais e de cada uma de suas fato de dispor de estrutura como momivento é especialmente útil para reforçar cada
comissões internas, tem como função encarregar-se de questões urgentes que afetam PAH local. A começar pelo pessoal. Para Gabriele, da PAH de Barcelona, um dos
o movimento e que não podem esperar a realização da próxima assembleia nacional, momentos mais emocionantes que recorda foi a primeira assembleia nacional em que
assim como coordenar e dinamizar as comissões e os territórios, bem como preparar participou, justo a que celebrava o décimo aniversário da plataforma. “Fui muito intenso
encontros nacionais. Uma mesma pessoa não pode compor esse espaço por mais de ver que para além de Barcelona há um movimento em todo o país, bastante capilari-
dois anos consecutivos, mas é feita uma rotação nas saídas para que sempre perma- zado, e encontrar toda essa gente.”
neça alguém com experiência. De fato, para Marga, da PAH de Elx-Crevillent, são fundamentais os vínculos com suas
As demais comissões estão abertas à participação de qualquer pessoa indicada por sua companheiras da coordenação de Comunidade Valenciana: “Para além do contato vir-
assembleia local, porém a própria comissão em questão revisa e aprova a indicação. tual, é muito importante o contato presencial que temos, pele com pele, porque mais
“Uma comissão é um espaço de trabalho autônomo, nos dedicamos a uma série de que companheiros, somos amigos, nos preocupamos sobre como estamos e há bas-
temas que são do dia a dia, a alguns é preciso responder de imediato, sendo que em tante união entre as diferentes PAH”. Há momentos de encontro que são marcantes.
Quando em 2013, cerca de 800 pessoas das PAH da Catalunha e também de alguns

4 Terminologia usada para designar fundos de investimento que compram bens, participação em companhias ou
ativos de dívidas por um valor irrisório com o objetivo de obter altos retornos no futuro. (N. E.) 5 Software livre que permite a realização de conferências on line. (N. E.)

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A PAH: MANUAL DE USO

outros pontos do país passaram uma noite juntas para evitar o despejo de um conjunto
em Salt que abrigava 36 pessoas, sendo 17 menores, que não tinham para onde ir.6
COMO FAZER CRESCER UM
MOVIMENTO DESCENTRALIZADO
O espaço da coordenação também permite a ampliação de reinvindicações locais.
Quando em Segovia denunciaram que a prefeitura não queria regularizar a situação de
duas famílias que viviam em ocupações precárias, “o prefeito recebeu mensagens de
Facilitar a criação de novos núcleos que podem funcionar de forma autônoma
Mallorca, Málaga, Barcelona… Essa dimensão é uma das forças mais importantes da
e acompanhá-los de forma descentralizada, com um núcleo próximo
PAH”, assegura Sole. Sua companheira Maria explica o mecanismo: “Preparamos um
que se encarregue dessa responsabilidade
documento que explica o que pedimos, o objetivo e quando queremos fazer a campa-
nha, e todas as PAH acompanham, todo mundo colabora, como uma companheira de
La Rioja que nos fez memes para publicar com a campanha; um dia estamos com tua Estabelecer critérios claros e em consenso, mas também simples e flexíveis,
PAH; outro dia será com outra”. do que pode e do que não pode formar parte do movimento
O mesmo serve para as negociações, compartilhando contatos, por exemplo, que já
possuem com diferentes bancos se não conseguem respostas nas sedes locais. E tam- Compartilhar de maneira pública a informação
bém nas ações de pressão. “Teve uma vez que fomos ao banco aqui em Málaga para e os recursos necessários para o funcionamento de um núcleo
apoiar companheiros de Granada; ou quando fomos protestar em frente ao Palácio da
Justiça aqui em Málaga contra um julgamento que estava correndo em Sevilha contra
companheiras que paralisaram um despejo”, aponta Chary. Transmitir as ferramentas que cada núcleo gerou
e validou por meio da sua própria experiência
Por outro lado, para além do que precisa cada PAH e da solidariedade mútua, as campa-
nhas que se definem em escala nacional ou regional contam com um importante nível
de penetração territorial. “Essas campanhas nacionais às vezes começam com um ato Gerar espaços virtuais para o intercâmbio cotidiano de dúvidas
central, mas vão se desenvolvendo em cada território, e não apenas nas capitais dos e experiências que permitam que os núcleos se assessorem entre si
estados, mas em cada povo, e quando fazemos campanhas para apresentar moções
nas prefeituras, as PAH de povoados menores também podem exigir que o poder
público local atue dentro de suas competências”, destaca Paco, da PAH de Murcia. Coordenar-se em distintos níveis administrativos
para responder a diferentes necessidades
A organização do movimento nem sempre é fácil e pode ocorrer muitas diferenças, mas
apesar de tudo as plataformas consideram que vale a pena. “Claro que pelas diferenças
poderíamos ter escolhido deixar de nos identificar como PAH e ser o Movimento pela Contar com uma assembleia periódica para compartilhar os debates
Moradia de Sabadell, mas isso também tem um custo. Levar adiante o nome da PAH dos núcleos locais e das comissões de trabalho que dependem dela
é um orgulho pela história que temos e também ajuda a chegar a mais gente, porque para que possam funcionar de forma autônoma
já a viram na televisão e em determinado momento todo mundo conhecia a PAH. Isso
dá legitimidade diante das pessoas, das instituições, dos bancos…”, assegura Emma.
Aproveitar as ferramentas digitais para permitir o trabalho coletivo
para que todo mundo possa participar em vários territórios ao mesmo tempo

Ampliar e apoiar as ações e as reivindicações dos núcleos locais


para demonstrar a força do movimento
6 A PAH viabilizou o prédio ao lado do ocupado, que também estava vazio, para receber ativistas e organizou um
jantar e uma noite de apresentações musicais. Pela manhã, uma resolução do Tribunal Europeu dos Direitos
VOLTAR AO
Humanos paralisou o despejo. A plataforma publicou um vídeo do resumo da jornada: PAH. PAH vs SAREB:
Crónica de una victoria. 2013. Disponível em: <https://youtu.be/LzDLk1R22Sc> (13.02.2022).
SUMÁRIO Abordar as diferenças por meio da generosidade e priorizando os objetivos comuns

VOLTAR AO
60 SUMÁRIO
5. COMO GARANTIR
VOLTAR AO
SUMÁRIO
DIREITOS POR MEIO
DA DESOBEDIÊNCIA
A PAH não nasceu fazendo aquilo pelo qual é mais conhecida, a paralisação de despejos.
Esse passo foi tomado por necessidade. Os processos de execução de hipotecas possuem
um ritmo lento e havia muitas questões a serem enfrentadas até que um despejo fosse
iminente. Em 2010 Lluís chegou à PAH de Barcelona, um vizinho de La Bisbal del Pene-
dès que já tinha uma data marcada para que fosse expulso de casa. Estava desesperado
e estava convicto de que iria encher sua casa de botijões de gás e explodir tudo antes
de entregá-la ao banco. A plataforma tinha claro que precisava buscar outra resposta.
As pessoas que começaram a plataforma entendiam que em algum momento era pre-
ciso começar a evitar despejos por meio da ação direta, mas não se viam capazes de
fazê-lo. Até que enfrentaram a necessidade. Para interromper o despejo de Lluís se
armaram tanto discursivamente, reunindo argumentos legais e éticos contra a desa-
propriação, quanto comunicativamente, com cartazes e faixas, avisando aos meios de
comunicação e filmando toda a ação.
Também tinham claro que era preciso atuar por meio da não violência, mas quando che-
gou a comitiva judicial avisaram que não iriam sair da porta. Pouco podiam fazer os dois
policiais ali presentes diante da concentração, e o despejo foi adiado. Dois dias depois
publicaram o vídeo da ação, que serviu como prova do que depois seria um lema da
PAH: “Sim, se pode”.1

APROVEITAR A LEGITIMIDADE
Esse acabou sendo o pão de cada dia da PAH. “Está tão normalizado que o que temos
que fazer é parar os despejos que, quando comentamos em uma assembleia, não o colo-

1 PAH. La PAH impide un desalojo. Stop Desahucios! 14 de novembro de 2010. Disponível em: <https://youtu.
be/FwrPYc1Uzwg> (12.02.2023). Meses depois, a plataforma passou a parar despejos com frequência e com a
presença dos elementos que a identifica, ou seja, as camisetas verdes e o símbolo de Stop Desahucios, como se
pode ver no vídeo de uma ação posterior: PAH. Stop Desahucios! VII- 3 desahucios bloqueados. Paremos el del
jueves 1 de septiembre!! 19 de junho de 2011. Disponível em: <https://youtu.be/keECLmhimwE> (12.02.2023).

63
A PAH: MANUAL DE USO 5. Como garantir direitos por meio da desobediência

camos em termos de ‘vamos fazer uma ação de desobediência civil’, embora seja o que forma comunicar a ação, sua razão de ser e sua legitimidade, preparando também a
fazemos, e talvez deveríamos dar essa importância”, reflete Berni, da PAHC do Bages. pessoa afetada para lidar com a imprensa quando necessário.
“A PAH surge em um contexto em que há milhares de despejos por falta de pagamento
de hipoteca, um problema que afetava muita gente, inclusive quem acreditava ser classe AÇÕES EMPODERADORAS
média, e no discurso público todo mundo via que isso era um drama e era injusta. Foi nesse
O repertório de ações da PAH vai além de parar despejos. De fato, impedir uma deso-
contexto que um grupo de pessoas apontando essa injustiça e adotando mecanismos de
cupação não costuma ser a solução definitiva, mas uma forma de ganhar tempo para
desobediência civil não violenta, mas ativa, obteve sucesso e aceitação social com essas
que se busque respostas ao problema. Isso pode exigir ações em relação às entidades
formas de atuar da PAH”, conclui Emma, da PAHC de Sabadel.
financeiras, prefeituras, companhias de água, luz, gás… Além disso, também se plane-
Preservar essa legitimidade é chave para o êxito das ações de desobediência da pla- jam ações para chamar a atenção do papel das entidades responsáveis pelos problemas
taforma. Isso implica ser capazes de justificar cada ação como legítima. Mesmo que de muitas famílias.
em alguma ocasião possa reagir a alguma ação de emergência, a PAH apenas atua em
“Eu me lembro da primeira ocupação que fizemos em um banco, em 2010 ou 2011,
despejos de pessoas envolvidas com a plataforma. Em suas assembleias deixam claro
que ocupamos Caixa Catalunya e chegou a Tropa de Choque para nos expulsar dali; foi
que não são um serviço de paralisação de despejos, mas sim que trabalham a partir do
um êxtase total, muita adrenalina, e adeus medo. O fato de 50 pessoas estarem pro-
apoio mútuo e que apenas agem para impedir despejos quando se trata da moradia de
testando dentro de um banco faz que se sinta plena, você perde o medo e é como se
pessoas que não possuem alternativa habitacional.
você se empoderasse naquele instante”, conta Delia da PAH de Barcelona. Muita gente
Para além da receita geral – resistir pacificamente na porta para impedir o cumprimento destaca a força que as ações proporcionam; às vezes o simples fato de ir colar carta-
da ordem judicial –, é necessário planejar a ação e dividir tarefas para ter um desempenho zes de protesto em uma agência bancária é muito significativo. “Colar cartazes é um
melhor. Se a família possui menores de idade, é preciso procurar alternativas para que êxtase, uma descarga de raiva; pode despejar todo o ódio que tem acumulado dentro
não estejam em casa na hora marcada para o despejo. É fundamental o acompanha- de si colando-o uma entidade”, assegura Juan Luis, da PAH de Torrevieja.3
mento dessa família, que pode estar na rua com suas companheiras ou pode preferir
O tom festivo e a criatividade das ações da PAH têm a ver com isso. Mesmo que se
estar resistindo dentro de sua casa, mas como a ação é de seu interesse, deve estar
proteste por situações vitais que podem ser muito duras, alegria não pode faltar.4 Se
sempre informada sobre o que está acontecendo a fim de que possa tomar decisões
uma agência bancária é ocupada, os folhetos distribuídos na rua podem virar confete,
se necessário.
pode-se levar música, bandeiras… “Eu perdi o medo que tinha do banco quando vi
Do lado de fora, é preciso manter a disposição, às vezes por toda a amanhã, enquanto que todos os trabalhadores poderiam ir embora e deixar a agência sozinha, ocupadas
se espera a chegada do oficial de justiça, e por isso é importante que pessoas fiquem apenas pelos ativistas”, assegura Juan Luis. A PAH consegue paralisar a atividade de
encarregadas de dinamizar a concentração da maneira mais criativa possível e também uma agência sem enfrentar ninguém, nem mesmo atrapalhar diretamente seu trabalho.
dar orientações, se for o caso. Embora o grupo possa se movimentar de um lugar para Simplesmente faz notar sua presença em tal medida que a entidade não está disposta
outro, é fundamental que alguém se encarregue de garantir que a porta de entrada sem- a seguir a atividade naquelas condições.5
pre esteja protegida. Por outro lado, também é importante definir previamente quem
ficará responsável pela interlocução com as autoridades e com os meios de comunica-
ção, e não deixar isso a cargo do improviso.2
A relação com os meios de comunicação, assim como a presença nas redes sociais, 3 A PAH produziu adesivos com o lema “Este banco engana, trapaceia e expulsa as pessoas de sua casa”,
que cada plataforma podia produzir e colar nos bancos da sua cidade, como fizeram, por exemplo, em:
possui um papel importante para a PAH, já que são ferramentas para ampliar suas PAH Lanzarote. Acción Bancaja/Bankia Playa Blanca. 5 de julho de 2013. Disponível em: <https://youtu.
be/6MqM1EVGc3M> (12.02.2023). O vídeo mostra uma ação em que se envelopou uma agência, colando
denúncias e reforçar essa legitimidade. Por isso, é fundamental planejar antes de que cartazes nos vidros da entrada.

4 O ambiente festivo de uma ocupação pode ser tal que se pode aproveitar para gravar um videoclipe, como
2 O 15M provocou um grande crescimento nas ações para interromper despejos e pouco tempo depois a PAH esta versão da canção de O maluco no pedaço: Plataforma de Afectadas por la Hipoteca (28 de julho de 2016).
publicou um documento para explicar como tinha sucesso em suas ações. Embora a estratégia tenha se Rap de la PAH. Disponível em: <https://youtu.be/w1PKRhk2Y6c> (12.02.2023).
modificado desde então, pode servir de referência: COLAU, A. Cómo se para un desahucio. La experiencia de la
Plataforma de Afectadas por la Hipoteca. 2011. Disponível em: <https://afectadosporlahipoteca.files.wordpress. 5 Por exemplo, essa ocupação em uma agência de Bankia em 2013 para exigir que se negociasse uma quitação
com/2011/07/como-parar-desahucio_a-colau1.pdf> (12.02.2023). Versão em inglês disponível em: <https:// da dívida da hipoteca com a entrega do bem: PAH. PAHbcn presenta: Acció a Bankia. 7 de abril de 2013.
traduccionesindignadas.files.wordpress.com/2015/01/how-to-stop-an-eviction-final.pdf> (12.02.2023). Disponível em: <https://youtu.be/vtjMSTlOkqY> (12.03.2023).

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A PAH: MANUAL DE USO 5. Como garantir direitos por meio da desobediência

Há que considerar que cada qual experimenta as ações à sua maneira, e por isso em que esses imóveis já foram financiados por meio de recursos públicos e também que ali
Madri, por exemplo, organizam o que chamam de “oficinas de medo”. “São oficinas moravam famílias que financiaram aquela moradia, mas perderam suas casas. “A ideia
para que as pessoas aprendam como atuar em uma ação, como não se deixar tomar é destacar o relato de algo legítimo: os bancos são responsáveis de expulsar as famílias
pelos nervos, como se apoiar em companheiros e companheiras ou como não cair nas com hipotecas abusivas e práticas nefastas, e não é certo que esses imóveis fiquem
provocações da polícia; em suma, como apesar do medo, conseguir apoiar a ação por- vazios enquanto há famílias sem teto. O que se reivindicava era acesso a um aluguel
que, ao final, em 90% dos casos nada vai acontecer contra alguém”, explica Alejandra, social para essas famílias”, acrescenta.7
da PAVPS de Madri. “A campanha Obra Social foi construída a partir da diversidade política do movimento;
Também é preciso saber como cuidar das pessoas nessas ações. Isso pode ocorrer, enquanto no Bages e em Sabadell defendíamos que se chamasse okupação, em Barce-
por exemplo, para avisar quando se sabe que a polícia vai intervir e se recomenda para lona diziam que de maneira nenhuma teria esse nome, e isso deu origem a uma série
as pessoas que estejam em situação administrativa irregular que fiquem fora para evitar de debates em que soubemos encontrar pontos de equilíbrio, com um caráter muito
riscos desnecessários. “Ou, mais que isso, se ensina como agir ou como segurar outra transversal. Para mim, isso é o que explica que pudemos fazer coisas muito radicais,
pessoa para que não lhe machuquem quando estão tentando retirá-lo à força”, acres- como ocupar mais de 50 prédios, com uma linguagem muito cotidiana, bastante tran-
centa Francisco, da PAH de Barcelona. quila”, lembra Berni
Por exemplo, um programa de televisão transmitido no horário nobre gravou pessoas
GARANTIR DIREITOS encapuçadas entrando em um dos sete prédios ocupados no Bages, e isso teve grande
A PAH tem conseguido paralisar a maioria dos despejos quando se propõe a fazê-lo, aceitação social.8 “Há um aspecto negativo, que é criar diferenças entre as ocupações
mas há ocasiões em que não se consegue tal resultado. Nesses casos, a pessoa afe- da PAH e as ocupações que pessoas dizem que são feitas por delinquentes, mas no
tada não pode ficar ao léu. Nesses casos a desobediência não serve apenas para evitar momento conseguimos que, ao menos quando somos nós que questionamos a pro-
que seus direitos sejam violados, mas para garanti-los diretamente. O caso mais evi- priedade privada, as pessoas nos entendam; nenhum partido político representado na
dente é a Obra Social la PAH – uma campanha cujo nome faz referência a ações sociais prefeitura de Manresa (capital do Bages) sairá publicamente para se posicionar contra a
promovidas pelas mesmas entidades que despejam famílias vulneráveis – e consiste ocupação de um bloco pela PAHC”, conclui.
em realocar famílias despejadas ou que não têm para onde ir em edifícios vazios pro- A legitimidade passa também por demonstrar a falta de alternativas. “Demos muito
priedades de entidades financeiras. destaque para o objetivo de conseguir um aluguel social para não alimentar a ideia de
Quando a campanha foi lançada, o foco foi abrir os apartamentos dos quais as famílias que ‘essa gente quer viver sem pagar nada’”. A Obra Social da PAH é uma solução
haviam sido despejadas, mas nem sempre isso foi possível. “Apostamos em recupe- real material para conseguir abrigo a uma família que não tem onde viver e também é
rar prédios vazios por completo e realocar ali as famílias das nossas assembleias que uma forma de pressionar para conseguir uma resposta mais estável”, assegura Emma.
estão sem alternativa, também porque é mais fácil defender coletivamente um conjunto Por outro lado, Berni acrescenta a importância de poder demonstrar que as pessoas
inteiro que um apartamento disperso”, conta Emma, da PAHC de Sabadell. que vivem nos blocos da PAH percorreram todos os caminhos indicados pelo poder
público: “Explicamos que é uma necessidade, que toda a estrutura do Estado fracassou
Ocupar prédios vazios é uma prática com muita história entre os movimentos sociais,
para garantir um teto e que, se essa pessoa tem uma moradia, é porque o movimento
mas outra vez entra em jogo a legitimidade da PAH para fazê-lo. “Há pessoas que reivin-
coletivo está lhe garantindo, e creio que isso é o xeque-mate”. Para além dos casos
dicamos chamar de okupação, com k,6 porque consideramos que há que romper com
concretos, o discurso incide em questões gerais que justificam a ocupação, como o
o estigma e que também viemos desse movimento okupa, mas é verdade que para
fato de que se socorreu os bancos com dinheiro público e mesmo assim uma grande
a opinião pública isso se relacionava com um perfil concreto de ocupações, de gente
jovem, com um aspecto determinado… Assim que se optou por falar de ‘recuperação’
de apartamentos ou de blocos”, explica Emma. O termo recuperação procura assinalar
7 A PAH preparou uma animação que explica com linguagem bastante simples tudo aquilo que legitimava a
ação da Obra Social: PAH. La PAH presenta: de la burbuja a la Obra Social. 9 de julho de 2013. Disponível em
espanhol com legendas em inglês: <https://youtu.be/ TkrM-zBGjBQ> (13.03.2023).
6 O termo okupação, escrito com k, não se refere apenas ao fato de ocupar um imóvel vazio, mas se vincula a
uma tradição política, a do movimento okupa, autônoma e anticapitalista, e também estigmatizada no discurso 8 La Sexta. Así ha okupado la PAH un edificio vacío en Manresa – Salvados. 26 de abril del 2015. Disponível em:
público e midiático. <https://youtu.be/P5UhTGIxCY4> (12.02.2023).

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A PAH: MANUAL DE USO 5. Como garantir direitos por meio da desobediência

quantidade de moradias permaneciam vazias, além de não haver um conjunto público de impacto de imagem, para a polícia é mais difícil agir com violência contra senhoras
de construções para atender às necessidades das famílias. de 70 anos, crianças e adolescentes do que a um grupo de homens”, assegura Àlex, da
O problema habitacional excede a capacidade de resposta da PAH e, como em outros PAHC do Bages. Mesmo assim, isso pode ocorrer, sobretudo em despejos que foram
casos, a plataforma coloca suas ferramentas e aprendizagens à disposição de quem bloqueados mais de uma vez. Também há a repressão financeira por meio de multas
precisa. Por isso desenvolveram um manual da Obra Social la PAH para o conjunto das “e isso tem consequências claras, tendo desmobilizado companheiras”, comenta Àlex.
plataformas e para que as pessoas possam realizar por sua conta esse tipo de ações O poder também se adapta às formas da PAH e houve mudanças na legislação, como
de desobediência.9 a Lei de Proteção da Segurança Cidadã, de 2015, conhecida como Lei Mordaça, que
“Agora chega gente que diz ‘preciso de um lugar para morar’ e deixamos claro que não passou a punir ações não violentas características da plataforma e de outros coleti-
temos apartamentos, mas podemos transmitir esse conhecimento e dar ferramentas vos vinculados ao 15M.10 “Desde que se aprovou a Lei Morçada tenho 9 mil euros de
também, para que as pessoas que ocupam imóveis por sua conta o façam da maneira multas11 nas minhas costas devido por ter protestado em espaços do poder público”,
que acreditamos ser a mais efetiva e para evitar, por exemplo, que acabem pagando a assegura Angelines, da PAVPS de Madri.
uma máfia pelas chaves de um apartamento”, destaca Emma. A plataforma procura evitar essa situação sempre que possível. “Às vezes, quando
vemos que a polícia está a caminho, saímos por conta própria quando a coisa ainda
RESPONDER COLETIVAMENTE À está tranquila, conversamos e analisamos, e talvez já tenhamos cumprido nosso obje-
REPRESSÃO
Apesar de todo esse trabalho de legitimação, às vezes a PAH também sofre a repressão. 10 A Lei para a Proteção da Segurança Cidadã de 2015 foi aprovada pelo Partido Popular, então no governo e com
maioria absoluta no Congresso na época. Outros grupos parlamentares fizeram oposição à medida. Várias
Não é comum que a polícia realize prisões ou use a força em suas ações. “A legitimi- organizações sociais – algumas delas internacionalmente – criticaram o projeto por limitar o direito à liberdade
de expressão e de protesto. A PAH foi especialmente afetada por artigos que criminalizavam a ocupação
dade acumulada permitiu flexibilizar um pouco a aplicação da norma e, do ponto de vista pacífica de agências bancárias. Um dia antes de a lei entrar em vigor, a PAH ocupou um banco em Barcelona
para desafiar a polícia, que realizou o despejo antes da meia-noite e, portanto, antes da entrada em vigor da
lei, como pode ser visto em: PAH. #BienvenidaLeyMordaza. 1 de julho de 2015. Disponível em: <https://youtu.
9 OBRA Social la PAH. Manual Obra Social la PAH. 2013. Disponível: <https://afectadosporlahipoteca.com/wp- be/pbDeg3GgSmc> (12.02.2023).
content/uploads/2013/07/MANUAL-OBRA-SOCIAL-WEB-ALTA.pdf>. Versão em inglês disponível em: www.
joaap.org/press/pah/Pah-Obra-Social-Manual.pdf (12.03.2023). 11 Cerca de 50 mil reais, em março de 2023. (N. E.)

68 69
A PAH: MANUAL DE USO

tivo com a ação”, explica Angelines, mas às vezes isso não evita uma multa. A PAH
garante que penalidades impostas a quem participou de uma ação coletiva devem ser
assumidas também coletivamente, mesmo que às vezes isso implique coletar somas COMO GARANTIR DIREITOS
elevadas. As multas também são questionadas judicialmente. É o caso da ativista da POR MEIO DA DESOBEDIÊNCIA
PAVPS, que tem recorrido judicialmente das sanções que lhe foram aplicadas.
Sua companheira Alejandra destaca que o principal é assumir coletivamente essas
responsabilidades e as despesas. “É preciso ter cuidado para não colocar a questão Conferir legitimidade às ações, destacando as injustiças que as tornam
antirrepressiva no centro de nossa luta, primeiro, porque gera medo em nossa gente necessárias e que as vias oficiais não ofereceram soluções concretas
e, segundo, porque é um enfoque que exclui muita gente, sobretudo as mulheres e as VOLTAR AO
SUMÁRIO
pessoas mais idosas.” Assegurar que cada caso em particular se ajusta
àquilo que se defende como legítimo

Organizar as ações e distribuir papeis para não deixar a atuação


ao sabor do improviso quando há momentos de tensão, como pode ser
a interlocução com as autoridades, e também para dinamizar
o encontro das pessoas que se concentram solidariamente

Atuar por meio da não violência, evitando confrontos diretos e apostando


em estratégias que provocam uma disrupção de forma pacífica e criativa

Comunicar as ações e suas causas para ampliar a denúncia e somar apoios

Dar atenção aos medos e às inseguranças, oferecer informação e ferramentas


para poder participar nas ações apesar de tudo. Evitar riscos desnecessários,
considerando sobretudo a situação particular de cada pessoa

Construir discursos atrativos e de sentido comum que permitam


justificar a ação direta diante de um público amplo

Responder coletivamente à repressão, garantindo assistência jurídica ou fundos


para cobrir multas que penalizem quem participa de uma ação coletiva

Evitar colocar os discursos antirrepressivos no centro da luta,


mas sempre cuidando das pessoas que sofrem repressão

VOLTAR AO
SUMÁRIO

70
6. COMO MUDAR
VOLTAR AO NARRATIVAS COM
OUTRA FORMA DE
SUMÁRIO

FAZER POLÍTICA
As pessoas que começaram a Plataforma de Afetadas pela Hipoteca tiveram origem
em outros movimentos de luta por moradia e por meio deles levaram suas demandas
para a agenda política. Às vezes tiveram mais sucesso, outras vezes menos, mas nunca
alcançaram o êxito que encontraram com a PAH, que conseguiu estabelecer a ideia de
que a moradia é um direito, algo que passou a fazer parte do senso comum.
Em 2013, reuniram 1,4 milhão de apoio – quase três vezes mais que o necessário – para
levar ao Congresso um projeto de lei de iniciativa popular. O objetivo foi definir medidas
de urgências para apoiar as famílias que não poderiam seguir pagando suas hipotecas e
acabavam sem moradia e endividadas.1 As medidas propostas pela PAH foram descar-
tadas no debate parlamentar. Apesar disso, uma pesquisa realizada pelo jornal El País
no início da tramitação mostrava que 87% da população era favorável ao que defendia
a plataforma.
“A PAH conseguiu reverter a narrativa sobre a crise da moradia. Com muito trabalho,
mudou a ideia difundida pela mídia e pela classe política de que as pessoas eram res-
ponsáveis por não conseguir pagar a hipoteca, de que tinham se endividado porque
queriam viver acima de suas possibilidades; a PAH contribuiu para transformar a percep-
ção da sociedade sobre essa crise, que agora se percebe muito mais como uma crise
estrutural ou uma fraude”, destaca Gabriele, da PAH de Barcelona.
Esse discurso é feito no assessoramento coletivo, para se contrapor aos sentimentos
de culpa ou fracasso, mas também direcionados para fora. As pessoas que não podiam
mais pagar suas hipotecas haviam seguido um caminho traçado para elas, avalizado
pelas políticas públicas e pelos bancos que lhes concederam créditos. Os casos indivi-
duais, tomados em conjunto, são uma mostra de flagrante injustiça e por isso a PAH os
evidencia como uma questão coletiva.

1 O projeto de lei proposto pela PAH previa que a família poderia quitar sua dívida com a entidade financeira com
a entrega da propriedade do imóvel, mas seguiria vivendo no mesmo local por cinco anos pagando um aluguel
social equivalente a 30% de seus rendimentos. (N. E.)

73
A PAH: MANUAL DE USO 6. Como mudar narrativas com outra forma de fazer política

“Por meio de situações concretas na luta por moradia, a PAH enfatiza um conflito e uma entidade bancária que vendeu as moradias das famílias despejadas a um fundo
contradições que são estruturais. Aproveita a brecha que gera esse desajuste vital entre de investimento, a opção pode ser manifestar-se em sua sede com algumas pessoas
a propriedade e a vida das pessoas trabalhadoras para destacar a contradição através de fantasiadas de abutres, chamando a atenção para a denúncia, com humor, dos fundos
situações concretas, de pessoas concretas que vivem esta violência na própria pele”, abutres. Se uma mudança na lei penaliza as ocupações das entidades financeiras, a
expõe Àlex, da PAHC do Bages. Ou seja, a PAH denuncia casos particulares, que é o melhor alternativa pode ser convocar a fazer grandes filas de “clientes” para serem
que costuma chamar a atenção pública, mas sempre apontando para as causas estru- atendidos, bloqueando o funcionamento da entidade com lentas demandas absurdas.
turais e as possíveis soluções. O repertório e a criatividade da PAH parecem não ter fim.2

COMUNICAR PERMANENTEMENTE A CONFIANÇA DOS MEIOS


A comunicação é chave para qualquer ação da PAH. Comunicar constantemente o que Para ter acesso aos meios de comunicação, para além da criatividade, é importante
se faz é útil para chegar a novas pessoas com problemas de moradia e para incidir no cuidar das relações, especialmente por parte das pessoas que exercem a tarefa de
discurso público para construir legitimidade. Em outras palavras, a polícia tem muito porta-vozes ou ficam a cargo da comunicação. “A relação precisa ser muito trabalhada,
mais dificuldade para utilizar a violência contra uma ação de desobediência que está deve ser fluida e que saibam que quando você envia algo é porque tem relevância”,
sendo seguida por meio de redes sociais, que é acompanhada por câmeras de televisão explica Alejandra, da PAVPS de Madri.
e que defende direitos de uma pessoa que vive uma situação de injustiça como fora Oferecer informações e histórias bem fundamentadas e justificadas, antes de bus-
publicamente denunciado. car gerar manchetes de grande impacto a qualquer custo, fortalece a relação com a
Costuma-se preparar um documento explicando a situação denunciada e o motivo da imprensa e rende mais frutos no longo prazo.
ação realizada; a mensagem é difundida anteriormente ou então preparada previamente O fato de que a PAH se estabeleça como um ator confiável e que entende a linguagem
se for uma ação surpresa. Outras PAH e coletivos são avisados para que participem, dos meios promove um respeito mútuo e faz que jornalistas recorram ao movimento
ajudem na difusão ou para que estejam atentos para atuar quando chegar o momento. para além das informações que se queira divulgar na imprensa. “Eu, como porta-voz,
Uma vez detonada a ação, as redes sociais são regularmente abastecidas de informa- falo constantemente com jornalistas, também respondendo quando escrevem a você
ção, bem como retomam o motivo de estarem ali e os responsáveis pela situação. procurando um caso com uma situação concreta, mas é uma relação recíproca e noutra
Ao mesmo tempo, a PAH mantém uma relação com os meios de comunicação, que oportunidade podemos dizer que uma convocação que fazemos é muito importante”,
muitas vezes não são apenas uma maneira de chegar à opinião pública, mas cujo explica Alejandra.
impacto também se torna uma ferramenta de pressão para o poder público e as enti- A história de uma pessoa da plataforma pode servir para ilustrar uma reportagem que
dades financeiras. está sendo elaborada por um meio de comunicação, por exemplo, a partir de dados
A presença nos meios requer um esforço de criatividade e inovação permanente, já que que uma outra organização proporciona. Em qualquer caso, é fundamental cuidar e
a novidade é um fator que alimenta a cobertura informativa. Os grupos bloqueando um acompanhar as pessoas sem experiência no trato com a imprensa, oferecer ferramen-
despejo tiveram um impacto nos meios e na opinião pública enquanto eram uma ação tas prévias para lidar com essa situação e protegê-las de abordagens sensacionalistas.
nova. Com o tempo, mesmo que a ação continue sendo necessária, apenas aparecem em “É preciso tomar cuidado para não cair no sensacionalismo e o sentimentalismo mais
notícias pontuais, em casos muito flagrantes ou por determinado contexto informativo. asqueroso, porque muitas vezes os meios também têm esse enfoque, mas creio que
Mesmo parando despejos a cada semana, a PAH precisa gerar novas imagens potentes normalmente conseguimos passar a carga política de nosso discurso; somos Davi con-
para conseguir impacto midiático. E isso pode ser poucas pessoas acampando diante tra Golias, mas creio que é melhor ocupar esses espaços midiáticos e levar pequenas
de um pequeno posto bancário ou um grupo grande ocupando o interior de uma sucur-
sal de um banco, podendo passar a noite lá dentro se não for removido pela polícia. 2 Além de suas ações, a plataforma aproveita toda ocasião para expor suas demandas. Por exemplo, quando o
No caso de despejo, a própria intervenção policial pode chamar a atenção dos meios cantautor Nacho Vegas, bastante vinculado à PAH, apresentou-se em um importante festival patrocinado por
um banco, em Barcelona, aproveitaram a ocasião para denunciar fazendo uma paródia, em um vídeo, sobre os
de comunicação, embora a plataforma procure evitar situações de violência e às vezes abusos desta entidade bancária e convidar a PAH ao palco, com suas pautas, enquanto cantava sua “Canción
para la PAH”: PAH. Nacho Vegas: “Canción para la PAH”. Palau de la Música Catalana, 21 de enero de 2016.
sai por vontade própria diante do olhar da Tropa de Choque. Quando se quer denunciar
Disponível em: <https://youtu.be/pAvmIw6gMXc> (15.02.2023).

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A PAH: MANUAL DE USO 6. Como mudar narrativas com outra forma de fazer política

mensagens a quem quiser escutá-las, porque se não aparece, aí sim está fora do jogo”, com comes e bebes por ano, porque há coisas que não surgem na assembleia e, além
conclui a porta-voz da PAVPS de Madri. de tudo, somos todos um grupo social e nos conhecer, nos distrair, dançar, é isso que
faz nos unir muito mais, aumentar os vínculos”, assegura Jesùs, da PAH de Berriozar.
GANHAR SEMPRE Delia, da PAH de Barcelona, é uma ferrenha defensora da importância de “celebrar e
“Em outras experiências em que participei, fizemos coisas que talvez eram muito poten- imortalizar momentos bonitos, porque isso faz você sentir a proximidade das pessoas”,
tes, mas éramos horríveis comunicando o que fazíamos. Uma virtude da PAH é que há e isso vale tanto para as vitórias conseguidas, como para o simples fato de compartilhar
muita preocupação neste sentido, com uma comissão específica de comunicação que celebrações. Em uma ocasião na assembleia de Barcelona, houve um debate e todo
se coloca o desafio de pensar como comunicar cada coisa e comunicar sempre como mundo registrou em um papel as três coisas mais importantes para que a PAH funcio-
se estivesse triunfando, de uma maneira que convida as pessoas para fazer coisas. O nasse. Alguém escreveu: “A festa de Natal”. “Eu pensei no início: ‘Tampouco é algo que
fato de paralisar um despejo é uma vitória parcial, mas chama a atenção para o conflito, seja básico’. Mas a verdade que é um momento muito bonito na PAH e às vezes nos
permite ver que há vitórias no curto prazo e também faz que as pessoas se animem, esquecemos que é básico poder celebrar o Natal ou o que seja, a vida”, confessa Edu.4
se engajem mais, em vez de ficar esperando uma grande mudança que nunca chega”, E cuidar desses vínculos também é importante nos momentos difíceis. Por exemplo,
assinala Bernat, da PAHC do Bages. Berni, da PAHC do Bages, recorda o falecimento de duas companheiras: “Há pouco,
Mas há dias, por exemplo, em que uma família acaba sendo colocada na rua, e não quando Carmen nos deixou, fizemos uma homenagem muito bonita e semeamos uma
há mais o que fazer a não ser denunciar a injustiça, mas a maioria das ações da PAH oliva em sua memória no Ateneu para que seja cuidada; ou quando se foi Marcela,
acabam com alguma vitória a celebrar. Não é que sempre conseguem alcançar seus nos colocamos a disposição da família porque não poderiam pagar o enterro e essas
objetivos, mas sempre procuram conquistar algo. Se ocupam uma agência bancária coisas… Essas gestões comunitárias também são superimportantes, geram esse sen-
para buscar uma solução para uma família, às vezes não vão obter nada naquele dia, timento de pertencimento a um movimento”.
mas tentam resistir no local ao menos até que tenham uma data para se reunir com
alguém que tenha poder de decisão. Em uma situação em que outros poderiam ver uma OUTRA FORMA DE MILITÂNCIA
derrota, a PAH sempre se apega a algo que permita concluir suas ações com um “sim, As formas da PAH não são as mais habituais no ativismo político. “Eu vinha de espa-
se pode” e somar forças para a próxima. ços de militância mais ortodoxos e me aproximei da PAHC por meio das ações; eu,
“Há muito de narrativa nisso, mas ao final é preciso conseguir vitórias; é importante que vinha de formas muito sérias, de ‘é preciso ter cara de mau’, de repente chega
que a gente ganhe uma estabilidade, porque senão acaba sendo verborragia. Na PAH a um banco e encontra uma companheira com alto-falante que tira você para dançar,
se valorizam as pequenas vitórias, mas no final é preciso ganhar o caso. Outra coisa é e as crianças correndo por aí… E você está fazendo uma ação dentro de um banco!
definir o que é ganhar o caso, porque pode ser que tenha sido despejada, mas não ficou Tudo isso deixa você desconcertado. Além disso, está acostumado a lutar com pessoas
sozinha e outra porta foi aberta, ou conseguiu um aluguel social, e são vitórias também”, mais jovens, e na PAHC encontra gente de muitas idades diferentes, muitas realidades
destaca Diego da PAH de Vallekas. diferentes e se dá conta do potencial”, recorda Bernat, da PAHC do Bages. Seu compa-
nheiro Berni acrescenta que, “para os que viemos de militâncias ortodoxas, este é um
CELEBRAR JUNTAS espaço em que sentimos que estamos onde deveríamos estar”.

Para além da mudança na narrativa, no nível interno de cada PAH, o fato de celebrar cada Um dos objetivos que a plataforma tinha no começo, e que foi um de seus maiores
pequena vitória é o que alimenta o crescimento coletivo. “Celebramos cada conquista êxitos, é a capacidade de fazer políticas com pessoas que, a princípio, são movidas pelo
e quem conseguiu uma solução para seu caso, se está sem dinheiro, leva um bolo fato de estarem diretamente afetadas pela problemática. Isso significa que a vinculação
caseiro que fez; ou, se está num momento melhor, biscoitos ou uma tortilha de batata.3
Não é uma questão de quanto se gasta, mas sim de celebrar que tivemos uma vitória 4 As festas de Natal celebradas por muitas plataformas são um momento para confraternizar, como mostra
e compartilhamos entre todos. Você precisa de pelo menos duas, ou três celebrações esse vídeo: PAHC de Sabadell. Sopar de Nadal + Espectacle de la PAHC de Sabadell (17 de janeiro de 2014).
Disponível em: <https://youtu.be/AP_TRWwE_Ag>. Poder celebrar coletivamente é muito significativo para
crianças cujas famílias carecem de recursos e há assembleias que organizam distribuição de brinquedos,
3 Prato típico, também conhecido como tortilha espanhola, que se assemelha a uma espécie de torta feita de como se pode ver neste vídeo: PAHC de Sabadell. Els Reis Mags visiten la PAHC de Sabadell!! (6 de janeiro
omelete e batata, fritos em azeite de oliva. (N. E.) de 2014). Disponível em: <https://youtu.be/0Z1UJ_JjI4Q> (12.03.2023)

76 77
A PAH: MANUAL DE USO

à PAH não parte de um compromisso ideológico, mas da vontade de enfrentar uma


injustiça concreta. “Uma pessoa que supostamente deveria ser seu inimigo ideológico
pode chegar e acabar se tornando um supermilitante”, destaca Bernat. Na PAH podem
lutar lado a lado pessoas que talvez em outros espaços ou diante da urna nunca esta- COMO MUDAR NARRATIVAS COM
riam de acordo. OUTRA FORMA DE FAZER POLÍTICA
Pode ser difícil entender essa questão em ativismos mais tradicionais. Na PAHC do
Bages citam um exemplo particular: um dia, chegou à assembleia uma pessoa que
havia concorrido nas eleições por um partido abertamente xenófobo. “Pessoas de Aproveitar os conflitos concretos e individuais para assinalar
outros coletivos vieram nos avisar que um neonazi havia se aproximado de nós e que problemas estruturais e propostas de soluções
tínhamos de expulsá-lo, mas discutimos na assembleia onde sempre há muitas pessoas
imigrantes e a mensagem foi clara: se tinha um problema com moradia, que ficasse. Preparar previamente a comunicação das ações, explicando no que consistem
Expulsá-lo é fácil, mas seguramente é mais contundente tentar que se envolva em um e sua razão de ser, comunicando a todo tempo seu desenvolvimento
projeto político e entenda algumas coisas”, conta Berni. Isso, sim, um limite fundamen-
tal é o respeito às demais pessoas na assembleia e a aceitação das linhas vermelhas VOLTAR AO

que caracterizam a plataforma. SUMÁRIO Pensar ações criativas e inovadoras para gerar
imagens que possam ter impacto midiático

Oferecer informações e histórias bem fundamentadas


e justificadas que permitam construir relações de respeito mútuo
e cumplicidade com os meios de comunicação

Aproveitar as demandas dos meios de comunicação para denunciar


os casos particulares e também colocar em evidência o discurso político

Buscar e valorizar pequenas vitórias que permitam alimentar


o movimento e o relato de que estão avançando com conquistas

Organizar celebrações e espaços compartilhados que permitam


fortalecer os vínculos pessoais dentro do movimento

Acolher pessoas que se envolvam, independentemente


de sua bagagem ideológica, desde que sempre respeitem
as demais e os critérios básicos que caracterizam o movimento

VOLTAR AO
SUMÁRIO

78
7. COMO FAZER
VOLTAR AO OS PODEROSOS
SENTAREM PARA
SUMÁRIO

NEGOCIAR
Na PAH de Málaga sorriem quando se lembram de histórias sobre o poder de suas
camisetas verdes. “Uma vez fomos ao banco para falar do caso de um companheiro.
Ficamos ali com as camisetas e em seguida um senhor muito sério, bem vestido, disse:
‘venham ao escritório, venham’ e nos atenderam rapidamente”, conta Félix. “O segredo
está em se postar em um ponto estratégico do banco, para que todo o mundo veja
você”, explica Curro. “Ele sabe os lugares mais visíveis da agência. Quando o veem em
Unicaja, já o atendem rapidamente; ‘venha você, não ponha a camiseta, mas venha’”,
brinca Pilar.
Recordam de sua vida antes da PAH, da ameaça de ficar sem um teto. Félix comenta
do “medo de que podem bater na sua porta e não saiba quem pode ser”. “É medo de
chegar em tua casa e não saber o que te espera, medo da caixa dos correios, por mais
absurdo que possa parecer”, acrescenta Pilar. E aí interrompe Curro: “Tinha medo até
de passar em frente da agência do banco, mas agora passo quando tenho vontade”.
Eles riem. “Vou entrando ali como se fosse minha casa, nem perguntava, ia diretamente
em busca do gerente, sem problemas, mas antes não tinha como ser recebido. Quando
hoje veem que somos da PAH, somos rapidamente atendidos”, completa Curro.
De pouco serviria toda a organização da PAH se não conseguissem soluções para os
problemas das pessoas afetadas, e isso precisa passar muitas vezes pelas mãos dos
banqueiros ou do poder público. Em uma batalha que costumam caracterizar como a de
Davi contra Golias, o primeiro desafio é conseguir que se sentem para negociar.

SER UMA PEDRA NO SAPATO


Muitas pessoas afetadas contam que, enquanto podiam pagar, o gerente da agência
que lhes vendeu a hipoteca era alguém amável, parecia um amigo. Depois que não
podiam mais pagar, ele lhes deu as costas e era difícil buscar alternativas.

81
A PAH: MANUAL DE USO 7. Como fazer os poderosos sentarem para negociar

Na PAH de Barcelona, não se cansam de repetir que é preciso incomodar e conver- A insistência se relaciona com incidir sobre a imagem pública do banco, do governo ou
ter-se, como Curro, no pior pesadelo dos bancos, colocando-se ali todos os dias se da entidade que se tem como objetivo pressionar. “Os bancos investem milhões em
preciso, porque antes de conseguir um “sim” costumam vir muitos “nãos”. “Somos marketing, mas sabem que provocamos prejuízos para sua imagem se formos protestar
bastante conscientes disso e não enganamos ninguém dizendo que, uma vez que na sua porta, isso que analisam, fazem um cálculo de custo benefício e dizem: ‘isso
chega aqui, seu problema está resolvido. Transmitir essa necessidade de que será uma nos custa dinheiro, melhor nos reunir com eles e que não causem confusão’”, assinala
pedra no sapato faz as pessoas entenderem que precisarão assumir um papel pessoal Jesús, da PAH de Berriozar.
muito ativo”, diz Santi.
As pessoas afetadas da PAH costumam ter uma vantagem importante quando que- SENTAR-SE NA MESA
rem provocar incômodo: talvez não tenham trabalho, nem rendimentos, mas possuem O primeiro passo é fazer as instituições abrir as portas para as famílias afetadas que
tempo. “Eu me lembro uma vez que o ministro da Economia Luis de Guindos veio para antes eram ignoradas. Já é uma vitória e vale a pena celebrá-la, mas em seguida vem a
um café da manhã no hotel aqui e fomos entregar uma carta. Havia um policial que nos negociação. E é necessário obter soluções no longo prazo.
olhava com um semblante nada amistoso e eu disse a ele: ‘Toda a culpa de você estar
No início, apenas se costuma conseguir que a família permaneça em casa enquanto se
aqui é de que não temos trabalho. Se eu tivesse, você acha que eu estaria aqui para dar
negocia, o que é uma vitória. “Tentamos ampliar todos os processos para ganhar tempo
um papelzinho ao ministro? Eu estaria indo trabalhar para ganhar dinheiro, que me faz
e negociar uma solução melhor para nosso caso. Vamos colocando pedrinhas no cami-
mais falta que tudo’”, conta Chary, da PAH de Málaga.
nho para que não possam seguir avançando. E, mesmo que sejamos uma plataforma
Além de dedicar esse tempo para persistir, é importante fazê-lo por meio da ação cole- pequena, nesse tempo vamos incomodando com a força de todas as PAH”, aponta
tiva. Ganha-se força quando se vai ao banco acompanhada de alguém, mas se mesmo Chary, da PAH de Málaga. “Há casos que não nos interessa resolver no momento por-
assim não é recebida o melhor que há é voltar não com apenas uma só pessoa, mas que a solução não é boa, então é mais prudente esperar”, acrescenta Rosa, da PAH de
com um grupo para protestar, fazer ruídos e colar cartazes. Não costuma ser necessário Altea.
desenvolver ações com o objetivo de interromper a atividade de um banco, por exem-
Em qualquer caso é fundamental chegar à mesa de negociação com tudo bem pre-
plo, mas simplesmente que seja impossível ignorar a presença da plataforma. Se é de
parado, considerando todo o histórico do caso e apresentando soluções concretas.
forma festiva, melhor para quem protesta.
“Analisamos bem o que é viável para pressionar a entidade, para que existam várias
Por outro lado, quando um movimento como a PAH passa a ser conhecido publica- alternativas na mesa e que seja a pessoa afetada que decida o que mais lhe interessa”,
mente, a pressão coletiva pode ser exercida apenas deixando evidente que você faz diz Nicola da PAH de Castelló. “Tentamos levar uma proposta, encontrar o que está blo-
parte da plataforma, seja levando a camisa verde ou entregando documentos úteis dis- queando o caso e às vezes encontramos fórmulas na plataforma em que o negociador
poníveis na internet com o logo da PAH. São símbolos que indicam que, mesmo a do banco nem havia cogitado, ele as analisa e diz que, sim, é possível”, conta Juan Luis,
pessoa parecendo não estar acompanhada naquele momento, na realidade não está da PAH de Torrevieja.
sozinha e sabe de seus direitos.
É fundamental que a pessoa afetada seja protagonista e tome as decisões na negociação
Lídia, que se viu obrigada a ocupar um apartamento vazio no Bages por falta de alterna- de seu caso, mas também que esteja acompanhada e protegida. “Na maioria das vezes
tivas, conta que mencionar a plataforma permitiu regularizar sua situação na prefeitura tentam incomodar as pessoas e queremos evitar que sejam mal tratadas”, diz Nicola.
de sua cidade: “Fazia nove meses que aguardava ser cadastrada, como acontece com “O acompanhamento serve para evitar que a pessoa seja prejudicada porque aprovei-
muita gente, mas quando contei que estava na PAHC, e eles sabem que isso acarreta tam para criar um ambiente em que eles podem administrar e conduzir a situação para
ações ou denúncias na imprensa, só passaram mais dois dias até ter o cadastro.” “Nós que se tomem decisões prejudiciais para a pessoa afetada”, acrescenta Juan Luis.
já mostramos às entidades financeiras e ao poder público que, se não nos atendem,
“Quando se acompanha uma afetada a uma negociação, alguém precisa fazer o papel
nós nos plantamos na porta, montamos um espetáculo, chamamos a imprensa e aí sim
de mau, e se for preciso indignar-se ou falar uma barbaridade, isso cabe a quem acom-
acabamos sendo recebidos. Hoje em dia, muitas vezes não precisamos nem fazer isso
panha porque se essa for a postura da pessoa diretamente envolvida, a negociação vai
tudo. Chamamos o responsável e dizemos: ‘Veja, precisamos conversar’”, assegura
por um caminho difícil. Mas se esse mal-estar fica direcionado para mim, na próxima
Rosa, da PAH de Altea.
reunião outro pode acompanhar a afetada, e isso acaba sendo superado”, aponta Jesús,

82 83
A PAH: MANUAL DE USO

da PAH de Berriozar. Juan Luis conta que na PAH de Torrevieja, além da afetada, procu-
ram ir nas negociações uma pessoa com experiência em situações deste tipo e outra COMO FAZER OS PODEROSOS
que não tenha, “para irmos empoderando outros e outras nas negociações bancárias”. SENTAREM PARA NEGOCIAR
O caso de Francisco, da PAH de Barcelona: “No começo, quando ia a um banco e
estava diante do gerente, eu o recebia até um pouco intimidado, como se ele fosse
superior. Mas quando passa a acompanhar pessoas afetadas vai aprendendo que quem Persistir na busca de respostas e assumir que é comum
está do outro lado faz um trabalho que pode ser tão importante quanto o seu. E, sem receber muitos “nãos” antes de conquistar uma solução
perder o respeito, você o trata de igual para igual. Isso vale para o gerente bancário ou
para um segurança, aprende que pode tratá-los igualmente e isso dá força para lutar
por suas coisas”. Deixar claro que os problemas individuais fazem parte de uma luta coletiva,
seja por meio do acompanhamento de uma pessoa, de um grupo
REINVENTAR A PRESSÃO ou demonstrando que faz parte de um coletivo

Como em toda ação da PAH, a capacidade de se reinventar é importante para conseguir


negociações. Por exemplo, se os meios de comunicação deixam de cobrir um tipo de Pressionar com ações que, mesmo que não tenham
ação determinada, talvez seja preciso pensar uma nova estratégia para voltar a gerar a a finalidade de paralisar as atividades de uma entidade,
pressão midiática. Também pode ser que seja necessário alterar a maneira de pressio- provoquem impacto e sejam impossíveis de serem ignoradas
nar: o que funciona para um banco pode não servir para outro tipo de instituição.
As pessoas que integram a PAVPS de Madri, de fato, não têm problemas com os ban- Desenvolver ações dirigidas para provocar impactos
cos, mas com o poder público. Ainda assim, Alejandra considera que as estratégias da na imagem pública da entidade e assinalar sua responsabilidade
PAVPS são muito parecidas com as usadas contra os bancos: “Contatamos os respon-
sáveis para negociar e quando não nos respondem vamos protestar na sede do governo
Ampliar os tempos das negociações quando isso for útil
ou colamos cartazes… São as mesmas ferramentas, com o acréscimo de que às vezes,
para buscar a melhor solução e organizar a pressão coletiva
quando se trata do poder público, pode criticar ainda mais a conduta deles, porque o
problema tem a ver com falta de vontade política”.
Mais problemático é quando as moradias das famílias hipotecadas acabam nas mãos Estudar o caso em detalhe e levar propostas
dos fundos abutres. “Nestes casos é muito diferente porque quase sempre não há uma de soluções concretas para adiantar-se a possíveis travas
sede física onde você pode ir protestar, isso exige outras formas de lutar”, assinala
Paula, da PAH de Elx-Crevillent. Se a entidade responsável não possui um escritório
Proteger a pessoa afetada nas negociações para evitar
aberto ao público e não é acessível, uma alternativa é percorrer caminhos paralelos,
que receba ataques ou pressões, bem como assumir papeis
pressionar quem vendeu a hipoteca. Às vezes a resposta pode estar em procurar outro
no processo que poderiam prejudicá-la se ela própria os desempenhasse
ator que faça a entidade cumprir tal responsabilidade: “É preciso pressionar o poder VOLTAR AO
SUMÁRIO
público para que crie dificuldades para esses fundos”, assegura Alejandra.
Incorporar pessoas com menos experiência nas negociações para que possam
adotar ferramentas e assumir esse papel no futuro

Pressionar outros atores para que assumam a responsabilidade quando não é


possível pressionar diretamente a quem deveria responder em primeiro lugar

VOLTAR AO
SUMÁRIO
84
8. COMO
VOLTAR AO TRANSFORMAR AS
POLÍTICAS A PARTIR
SUMÁRIO

DAS RUAS
Quando se aposentou como professora, Maria Antònia tinha claro que queria dedicar
seu tempo a uma ação social e optou pela PAH que estava em sua cidade, Cardedeu.
Ela pretendia no início apenas dedicar parte de seu tempo, mas acabou se envolvendo
até o último fio de cabelo, primeiro acompanhando casos e depois, quando lançaram a
iniciativa legislativa popular (ILP)1 na Catalunha, integrou a comissão que coordenava o
processo.
A lei proposta pela PAH e outras entidades aliadas foi aprovada em 2015. “Foi uma
experiência muito forte para mim, ver a força que temos as pessoas quando nos uni-
mos, ver como podemos não apenas falar com os políticos, mas escrever uma lei e
fazer que seja aprovada”, relata Maria Antònia. A experiência não parou aí e ela seguiu
participando na negociação de mais processos legislativos.
Um dia, quando saía com a camisa da PAH de uma reunião com integrantes do
Parlamento da Catalunha, o presidente da da Casa parou para cumprimentá-la. Era jus-
tamente um dos deputados com quem havia negociado a aprovação da lei em 2015.
Seus companheiros fizeram piadas sobre a influência que possuía, mas ela não riu tanto
quando no dia seguinte lhe pediram que entrasse em contato com o presidente para
perguntar a ele como estava a tramitação de um outro processo. “Eu tenho 70 anos e,
queiram ou não, um deputado é uma figura que me provoca certo respeito. Como vou
ligar para o presidente do Parlamento?”, respondeu aos companheiros. Mas ela acabou
sendo convencida. “Não o localizei porque era sexta-feira pela tarde e, quando pensava
que havia sido poupada da situação, insistiram que eu mandasse uma mensagem a ele.

1 No Estado espanhol, a iniciativa legislativa, ou seja, a proposta de uma nova lei, cabe ao governo federal,
ao Congresso e ao Senado e, na escala das regiões autônomas (correspondentes aos Estados brasileiros),
aos governos e respectivos parlamentos. A iniciativa legislativa popular é o único mecanismo que permite a
participação direta dos cidadãos e das cidadãs no processo legislativo. A proposta de lei precisa ser aceita
pela mesa da Câmara (nacional ou regional) e também deve conter um certo número de assinaturas, 500 mil
no caso das leis federais e 50 mil no caso da Catalunha.

87
A PAH: MANUAL DE USO 8. Como transformar as políticas a partir das ruas

No dia seguinte, sábado, o presidente respondeu pedindo desculpas por não ter lido convidaram os integrantes do Congresso para suas assembleias a fim de que conheces-
meu recado no dia anterior e dizendo que iria verificar a questão em seguida.” sem a realidade sobre a qual teriam de legislar e, diante da falta do comparecimento,
Às vezes ela acha difícil de acreditar, mas sempre que compartilha com a assembleia anunciaram que iriam contar pessoalmente suas histórias aos que pretendiam votar
todos os avanços no âmbito legislativo, Maria Antònia insiste: “Todo este poder, ir ao contra a lei.4
Parlamento e ser recebida imediatamente, tudo isso não é obra daquelas que vão lá, Os escrachos consistiam em procurar os deputados nos seus locais de residência, em
esta é a força da luta coletiva, de estar na rua”. momentos de ócio ou trabalho, e uma vez ali expor a eles, pacificamente, a situação
Desde o princípio, a PAH estabelece a necessidade de mudanças na legislação. “Fomos em que as pessoas afetadas estavam vivendo e por que era necessário mudar a lei.5
obrigados a aprender que é preciso mudar as leis, porque podemos senão apenas resol- Além disso, a PAH compartilhava com a vizinhança e o comércio local que ali vivia uma
ver os casos concretos das pessoas que vêm à assembleia, precisamos de mudanças pessoa que tinha em suas mãos o poder de aprovar essa lei e pedia que se a vissem na
estruturais”, assegura Paco, da PAH de Murcia. rua perguntassem como iria votar.6
A campanha da plataforma se sustentou na legitimidade social conquistada, na ação
PROPOR UMA LEI não violenta e no fato de que, com a proposta de lei, praticamente se estavam todas
as vias que a institucionalidade oferecia para conseguir mudanças legislativas. Mesmo
Três anos depois de sua criação, a plataforma apresentou sua primeira proposta legis-
assim, com a posição contrária do PP, o Congresso descartou as medidas defendidas
lativa; uma ILP para reformar a lei hipotecária e garantir a paralisação de despejos, a
pela plataforma. À primeira vista, foi uma derrota, mas houve também avanços. “A pro-
entrega da moradia para quitar a dívida e a criação de um conjunto habitacional para
posta de lei de iniciativa popular era uma campanha em si própria, com os escrachos e
aluguel social. Para a proposta, fizeram alianças com sindicatos e organizações sociais
tudo mais; não era apenas fazer lobby, mas articulava outras coisas”, lembra Diego, da
que, em princípio, teriam mais capacidade do que a PAH para reunir as 500 mil assina-
PAH de Vallekas. O fato é que foi uma campanha que permitiu levar ao conhecimento da
turas necessárias. Mas alguns meses depois veio o 15M e daí a criação de dezenas de
maioria da população quais eram as demandas da PAH e o próprio processo de obten-
plataformas, de modo que a PAH teve uma força inesperada que lhe permitiu recolher
ção de assinaturas foi o primeiro passo para estabelecer mecanismos de coordenação
quase um milhão e meio de assinaturas para levar a proposta ao Congresso em 2013.
estáveis para um movimento de alcance nacional.
O passo seguinte era obter a aprovação da Câmara e, com uma maioria conservadora,
não era fácil. A primeira ação da PAH foi enviar uma carta a todos os grupos parlamenta-
ROMPER POR BAIXO
res exigindo que se posicionassem. 2 Deram um prazo para que respondessem até que
tornassem públicas suas opiniões. Dessa forma deixariam claro para a opinião pública “Diante de frustrações quando não se obtêm as coisas que deseja, a PAH sempre
quem estava a favor da lei e quem impedia sua aprovação, estando contrário aos direi- se repensa. Não cai em desânimo, mas sim são geradas energias para buscar outras
tos que procuravam garantir. fórmulas. Então se diz: ‘Já que não conseguimos romper por cima, vamos romper por

Não conseguiram que se posicionasse o partido de sustentação do governo, o Partido


Popular (PP), que tinha maioria absoluta e era fundamental para a aprovação. Assim 4 Foi anunciado com um vídeo: PAH. De afectado a diputado (12 de março de 2013). Disponível em castelhano
começou uma campanha de escrachos, ou seja, de constrangimentos públicos aos em: <https://youtu.be/d4sequ8gw4s>. Versão legendada em inglês: <https://youtu.be/Pqw3ifINh9c>
(12.03.2023).
deputados para que se responsabilizassem sobre como iriam votar.3 As plataformas
5 Um exemplo de escracho: PAH. Escrache a Antonio Gallego, diputado del PP. 18 de março de 2013. Disponível
em: <https://youtu.be/E0nxTmsk7RA>. A resposta à campanha de escrachos foi acusar a plataforma de ser
2 PAH. Carta abierta a los diputados. 26 de fevereiro de 2013. Disponível em: <https://escrache. violenta, por isso elaboraram um protocolo para deixar claro qual ser seu modelo de ação: PAH. Protocolo de
afectadosporlahipoteca.com/2013/02/26/carta-abierta-a-losdiputados> (12.03.2023). escrache y acciones contra los bancos. 2013. Disponível em: <https://escrache.afectadosporlahipoteca.com/
wp-content/uploads/sites/2/2013/03/Protocolos-de-acciones-y-escrache.pdf> (12.02.2023).
3 A PAH adota a estratégia dos escrachos do coletivo argentino HIJOS (sigla em espanhol para Filhos e
Filhas pela Identidade e pela Justiça contra o Esquecimento e o Silêncio). O escracho surge na Argentina 6 A campanha de escrachos contava com uma identidade visual simples e de impacto desenvolvida pelo
com o desejo de fazer justiça diante da impunidade dos responsáveis pelos assassinatos, torturas e coletivo artístico Enmedio. Eles se inspiraram nos botões que os deputados usam para votar, o verde com
desaparecimentos forçados durante a ditadura militar. Mesmo que essas pessoas não tivessem que responder o lema “sim, se pode” e o vermelho com a mensagem “mas não querem”, e os reproduziram para todas as
aos tribunais, eram constrangidos publicamente para romper com a impunidade social. A aposta da PAH é ações em um tamanho de um metro de diâmetro. Na sua página na internet contam como foi o processo:
constranger deputados e deputadas para que se saiba que pretendem votar contra uma lei que tenta garantir Enmedio (24 de abril de 2013). Sí se puede pero no quieren. Disponível em: <https://enmedio.info/si-se-
direitos básicos. Mais sobre o escracho no contexto argentino em: MIR, J. Escraches: justicia popular puede-pero-no-quieren-asi-se-hizo-la-campana-grafica-de-los-escraches> (12.02.2023). Versão em inglês
y construcción de la ciudadanía en Argentina, Viento Sur, 101, 64-72, 2008. Disponível em: <http://cdn. disponível em: <https://enmedio.info/en/yes-we-can-but-they-dont-want-to-the-making-of-the-escraches-
vientosur.info/ VScompletos/vs_0101.pdf> (12.02.2023). graphic-campaign-2> (12.02.2023).

88 89
A PAH: MANUAL DE USO 8. Como transformar as políticas a partir das ruas

baixo’”, aponta Santi, da PAH de Barcelona. Depois de chegar ao máximo nível legisla- calcular quando uma medida é mais positiva para o movimento ou para quem governa,
tivo, a PAH voltou a direcionar suas demandas para o poder local e regional. mesmo que possa ser para ambos.
Nesses níveis administrativos – e depois novamente na escala nacional, quando a maio-
ria absoluta do PP no Congresso se fragilizou –, a recepção do Executivo e dos partidos NEGOCIAÇÃO POLÍTICA
foi melhor. “Creio que eles não tinham outra alternativa, a PAH demonstrou solidez, Para além da pressão em escala local, a grande aposta depois do fracasso da proposta
tinha reconhecimento em nível nacional e internacional, além disso, somos um movi- de lei nacional de iniciativa popular foi adaptar suas demandas para as competências
mento propositivo. Sabem que nossas propostas vêm do conhecimento da realidade, dos governos estaduais. As PAH catalãs fizeram esse ajuste e apresentaram um novo
de uma luta cotidiana”, assegura Paco, da PAH de Murcia. Sobre a importância de projeto de lei em escala regional. O parlamento da Catalunha aprovou a nova legislação
combinar a luta na rua e a incidência política, Santi acrescenta que “parar despejos ou dois anos após o fracasso no Congresso federal.7 Essa vitória estimulou outras leis
recuperar moradias é, evidentemente, uma maneira de responder à emergência, mas em outros estados, que não partiram do projeto rejeitado pelo Congresso, mas sim do
também nos ajuda para avançar em direção a mudanças na legislação”. exemplo da Catalunha que fortalecia a pressão sobre parlamentos e governos regionais.
Nesse “romper por baixo”, uma das iniciativas foi gerar documentos para que cada PAH Com a lei nacional, ficou evidente que não bastava recolher assinaturas, pois a aprova-
exigisse de seu poder local que aprovasse uma moção que assumisse o compromisso ção depende da tramitação parlamentar, um ponto chave para a incidência da PAH. No
de aplicar as competências que já possui em matéria de política habitacional. “Mesmo caso catalão, uma comissão se encarregou de negociar com partidos políticos. Para
que as prefeituras aqui tenham menos capacidade legislativa e de atuação que outros o processo funcionar é importante que a comissão seja transparente e comunique os
países, ainda podem fazer muito mais, e é preciso envolvê-las para que pressionem avanços ao conjunto das assembleias, mas também que tenha confiança do coletivo
também o governo regional e também o federal”, aponta Jesús, da PAH de Berriozar. para tomar decisões, observando as linhas vermelhas que definem o movimento. O
Uma estratégia útil é colocar em contradição os partidos em nível local, normalmente importante é que o grupo negociador funcione como um espaço de confiança, em
mais inclinados a responder às demandas de cidadãos e cidadãs, com sua posição que pessoas fiquem encarregadas para dialogar com os distintos partidos, mas que a
nacional. interlocução e as demandas possam ser preparadas coletivamente dentro do grupo.
O nível local é um bom ponto de partida para a pressão porque, como explica Emma, de Também é preciso contar com diferentes perfis, para poder trocar a pessoa interlo-
Sabadell, “a PAH ganhou o respeito das instituições porque passamos anos facilitando cutora quando a negociação se paralisa com determinado partido, e refletir quando é
a vida das prefeituras e do serviço social. Estão repletos de demandas, mas se a PAH necessária uma postura mais amável ou mais dura. E ao contrário do que é habitual na
não existisse estariam ainda piores”. De fato, muitas pessoas chegam à plataforma PAH, nesse espaço é importante ter alguém com perfil de jurista.
por indicação do próprio serviço social, que não tem capacidade para responder ao seu No contexto da negociação, além da legitimidade e do apoio de grande parte da socie-
problema habitacional. dade, a aprovação da lei se relaciona com aproveitar a oportunidade política. “Quando
“Conquistamos políticas públicas em nível local e, por exemplo, Manresa tem um plano a apresentamos era um momento em que as eleições estavam próximas, o que nos
local de habitação, que é totalmente insuficiente, mas só o criaram porque a PAHC permitiu pressionar, mas também participamos de certa forma do jogo entre Catalunha
esteve presente e apontou as contradições da própria prefeitura, que foi obrigada a
responder”, assegura Àlex, da PAHC do Bages. “Além das 250 pessoas que alojamos 7 A “lei de medidas urgentes para enfrentar a emergência no âmbito da moradia e da pobreza energética”,
em nossos blocos, poderíamos dizer que a PAHC conseguiu também reacomodar 400 aprovada pelo parlamento catalão em julho de 2015, como resultado da ILP encampada pela PAH, pelo
Observatori DESC e pela Aliança contra a Pobreza Energética (APE), foi pioneira em algumas medidas,
famílias a mais de Manresa, que não passaram por nossa assembleia, mas se beneficia- como reconhecer o direito ao realojamento das pessoas despejadas que não têm onde morar. Também é
uma novidade que, no caso em que a moradia seja propriedade de uma entidade financeira ou de um grande
ram de uma mudança na política pública que responde à nossa pressão.”
proprietário, é a propriedade e não o poder público que tem a obrigação de oferecer um aluguel social,
estipulado entre 10% e 18% dos rendimentos da família. Aprimoramentos posteriores incorporaram na lei o
Seu companheiro Berni alerta, no entanto, que as instituições também sabem se apro-
reconhecimento dos mesmos direitos para pessoas cujos contratos de aluguel terminavam e também para
veitar da plataforma. “Manresa aprovou uma moção dizendo que é uma cidade livre de as que estavam ocupando um apartamento de uma entidade financeira por não ter para onde ir. Para o texto
original da lei: Ley 24/2015, de 29 de julio, de medidas urgentes para afrontar la emergencia en el ámbito de la
despejos, virou manchete nos jornais; serve para sair bem na foto, mas sabem que isso vivienda y la pobreza energética, em: Boletín Oficial del Estado, 9 de setembro de 2015. Disponível em: www.
não acontecerá.” Um desafio sempre presente na relação com a institucionalidade é boe.es/eli/es-ct/l/2015/07/29/24 (12.02.2023). Um resumo da lei em inglês se pode encontrar em: ALONSO,
J. I.; ALBÓS SÁNCHEZ, J., BENITO, A. Housing Leases in Catalunya. 30 de maio de 2019. Disponível em:
<https://web.archive.org/web/20201215191752/https://www.dentons.com/en/insights/alerts/2019/may/30/
housing-leases-in-catalunya> (12.02.2023).

90 91
A PAH: MANUAL DE USO 8. Como transformar as políticas a partir das ruas

e Espanha, já que aos daqui interessava dizer que os maus estavam lá”, assegura Maria
Antònia. A plataforma soube explorar o conflito em seu favor, pressionando os partidos
catalães para se posicionarem positivamente sobre os direitos a fim de demarcar a
diferença, mesmo que em alguns casos a lei fosse contrária a seus interesses. A PAH
sempre procura aproveitar os tempos e, por exemplo, sabe que tem mais capacidade
de incidir quando as eleições estão perto. Além de apresentar suas próprias propostas,
como faz em algumas ocasiões, sempre procura incidir nas campanhas eleitorais para
destacar na agenda a pauta do direito à moradia.
Mesmo que sempre existam partidos mais ou menos favoráveis à plataforma, é chave
manter sempre a necessária distância. Aos governos e partidos pode ser interessante
ter uma foto com as pessoas da PAH, mas a plataforma deve saber cobrar o preço
dessa imagem e quais são os compromissos correspondentes. Na PAH de Barcelona,
depois de passar por situações em que os políticos saíram mais fortalecidos que a plata-
forma, são muito cuidadosos com a questão da imagem. “Você pode deixar os partidos
atrás quando está falando, isso confere legitimidade e reforça sua mensagem, mas não
se deve nunca ficar atrás quando falam os partidos, porque não controla o que será dito,
e o que fica na imagem é que estava atrás”, explica Santi.
“O apartidarismo é uma de nossas senhas de identidade; não estamos com nenhum
partido e somos muito cuidadosos com o apartidarismo; mesmo que tenhamos uma
reunião bastante satisfatória, nos limitamos a contar os compromissos a que chegamos
e os prazos para executá-los, e estamos novamente com a faca nos dentes quando se
termina o prazo e precisamos denunciar o não comprimento”, assinala Paco, da PAH de
Murcia. E fazem isso sem prejuízo de poder identificar quais partidos são os que tornam
tudo mais difícil.

DISPUTA ELEITORAL
A resposta da PAH à derrota do projeto de lei de 2013 foi romper por baixo e procu-
rar respostas em outros níveis administrativos, uma estratégia que deu frutos como a
lei aprovada na Catalunha. No entanto, em paralelo, algumas pessoas no movimento
também consideraram que era preciso ocupar espaços de decisão que bloqueavam as
propostas que vinham das ruas com grande apoio popular.
O apartidarismo da PAH define que nenhuma pessoa vinculada a um partido ou candi-
datura pode ser a face pública da plataforma e algumas deixaram de ocupar esse papel
justamente porque decidiram apostar em fazer política nas instituições. O caso mais
conhecido é o de Ada Colau, uma das fundadoras e principal porta-voz da PAH durante
anos, eleita prefeita de Barcelona. Não foi a única. Especialmente a partir de 2014, pes-
soas de várias plataformas entraram nas listas de partidos e de candidaturas existentes
em nível local, regional ou nacional.

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A PAH: MANUAL DE USO 8. Como transformar as políticas a partir das ruas

Embora possa ser bom contar com interlocutores no poder público e nos partidos afi- LITÍGIO ESTRATÉGICO
nados com as bandeiras defendidas pela plataforma, há também alguns riscos para o
movimento. De primeira, foi preciso responder a quem aproveitou essa situação para Quem chega pela primeira vez à PAH é logo avisado de que é difícil encontrar respostas
questionar o apartidarismo da PAH. E, por outro lado, houve um impacto nas próprias apenas pela via legal, uma vez que a lei costuma defender os direitos de propriedade.
assembleias. Mesmo assim, há ocasiões em que é possível recorrer a pactos e acordos internacio-
nais que defendem o direito à moradia de maneira mais garantista do que expressam
“Gerou desconfiança interna em muitas assembleias e em muitas pessoas, porque
as leis ou as políticas nacionais. Nesse sentido, a plataforma exerce litígio estratégico,
agora, se alguém se destaca ou fala muito, há aqueles que pensam que querem ‘passar
ou seja, leva casos concretos particularmente flagrantes para instâncias supranacionais
para o outro lado do balcão’, diz Berni, da PAHC do Bages. “Às vezes, também se con-
com o fim de denunciar violações de direitos humanos, bem como os direitos econô-
funde uma posição não partidária com uma posição apolítica, quando sabemos que na
micos, sociais e culturais (Desc). O objetivo não é apenas dar resposta a esse caso
PAH fazemos política o tempo todo. Mas se em uma assembleia você usa certa lingua-
específico, mas principalmente gerar mudanças nas políticas do Estado.
gem, há pessoas que voltam para casa pensando ‘Berni quer disputar as eleições em
Manresa’, também com esta ideia implícita de que o institucional é mais importante”, “Em determinados momentos acreditamos que abrir uma brecha com uma questão
lamenta. muito simbólica ou paradigmática pode ser muito produtivo para conseguir derrubar
certos muros jurídicos ou institucionais que aparentemente eram intransponíveis”,
Em Barcelona, onde figuras com muita visibilidade fizeram esta transição, Santi nos
explica Alejandra, da PAVPS de Madri, que também faz parte da Comissão Jurídica da
assegura que “o movimento poderia ter desaparecido quando algumas de suas refe-
PAH. “É preciso ter cuidado para explicar bem às pessoas porque vamos a um litígio
rências com mais visibilidade passaram para a política institucional. Houve já muitas
estratégico, que vamos usar um caso específico e que não vamos levar às Nações Uni-
ocasiões em que movimentos desaparecem ou são desativados porque pensam que
das os casos de todas as pessoas que chegam à PAH.”
chegaram ao poder, mas a PAH viu com muita clareza que, mesmo que essas pes-
soas estivessem na prefeitura, nós tínhamos que continuar a pressionar igual sempre Quando obtêm uma decisão favorável, compartilham a ferramenta para que sirva ao
fizemos, porque as mudanças só chegam com pressão das ruas”. E, como a realidade movimento e a quem interesse. Por exemplo, uma decisão do Comitê Desc das Nações
que enfrentam está em constante mudança, Diego, da PAH em Vallekas, adverte que a Unidas (CESCR, sigla em inglês) contrária a despejos sem alternativa habitacional esti-
pressão é sempre necessária, pois as mudanças legislativas também não são soluções mulou a criação de modelos de recursos para solicitar a paralisação de desocupações.
definitivas: “Talvez mudemos a lei e mudem o problema”. Também se criou um guia com indicações para quem quiser repetir o processo.8 “Mas
é preciso advertir que o litígio estratégico é uma ferramenta que funciona quando se usa
Os partidos ou governos mais próximos também devem ser submetidos a um julga-
a conta-gotas porque, se todos os dias houvesse uma condenação das Nações Unidas
mento rigoroso. Diego dá o exemplo de “As cinco da PAH”, uma campanha que exigia
à Espanha, esse recurso perderia força”, alerta Alejandra.
o compromisso dos partidos com cinco propostas mínimas apresentadas pela plata-
forma. “Nós apresentamos um pacote mínimo para que aqueles que disseram ‘sim, se
pode’ nas eleições soubessem exatamente o que estavam defendendo, porque dizer
FAZER CUMPRIR
que você vai parar os despejos não é suficiente, por isso apresentamos as medidas A PAH conseguiu o reconhecimento de muitos direitos, mas também comprovou que
concretas que consideramos urgentes”, diz ele. reconhecer um direito não é o mesmo que garanti-lo. “As leis são aprovadas e coloca-
A PAH tenta arrancar compromissos dos partidos, mesmo que não tenham responsabi- das em uma gaveta”, assegura Maria Antònia, da PAH de Cardedeu. Sobre a lei catalã,
lidades de governo para poder reivindicar futuramente do poder público. Isso foi chave, ela afirma que a “diferença é que esta lei nos tem na retaguarda, estamos todo dia
por exemplo, na implementação da lei que surgiu do projeto aprovado na Catalunha. exigindo, porque senão o poder público não a aplica”. “Com o processo de coleta de
Como previam, o governo federal recorreu ao Tribunal Constitucional e a suspendeu assinaturas, que envolveu todo o movimento, sentimos essa lei como nossa, deixamos
de forma cautelar. “Tivemos a brilhante ideia de ir até o Congresso e recolher assina-
turas de todos os partidos que, se chegassem ao governo, retirariam essa suspensão,
e essas assinaturas nos serviram para pressionar os socialistas quando chegaram ao 8 COORDINADORA de Vivienda de Madrid. Defendiendo el hogar: Guía para la solicitud de medidas cautelares
ante el Comité Desc de Naciones Unidas por casos de desalojo sin alternativa habitacional. 2018. Disponível
governo”, assinala Maria Antònia. em: <https://afectadosporlahipoteca.com/wp-content/uploads/2018/12/ DEFENDIENDO_EL_HOGAR.pdf>
(12.02.2023).

94 95
A PAH: MANUAL DE USO

claro que precisam contar conosco para qualquer coisa que tenha relação com a lei”, COMO TRANSFORMAR AS POLÍTICAS
destaca. A PARTIR DAS RUAS
Depois da aprovação da lei, foram feitas oficinas de formação para o movimento e docu-
mentos úteis para que pudessem utilizá-la e exigir seu cumprimento. Dessa maneira
a defenderam em cada município da Catalunha. “Depois de cinco anos da aprovação Fazer que os partidos políticos se posicionem diante de propostas concretas e
ainda nos encontramos com prefeituras que dizem que não possuem apartamentos, e divulgar quem se posiciona a favor da garantia de direitos e quem é contrário
estamos ali para dizer a eles que utilizem os recursos existentes para recuperar aparta-
mentos vazios”, conclui Maria Antònia.
Uma vez esgotadas outras vias para conseguir respostas, expor pacificamente, mas
Em todos esses processos é preciso ter atenção também para não se deixar levar pela
de forma pública, as pessoas responsáveis por impedir que se aprovem medidas
lógica institucional. “Nesse sentido, por exemplo, as pessoas que encontram mais difi-
que garantem direitos
culdade para conseguir uma solução institucional, como pode ser para todas que não
têm permissão de residência na Espanha, são as que terão mais direito no momento de
acessar a uma moradia com a Obra Social la PAH. Mudamos muito as lógicas da insti- Explorar as possibilidades de defender as demandas em todos os níveis legislativos
tuição e criamos nossa própria institucionalidade”, assegura Bernat, da PAHC do Bages. e adaptar as propostas às competências de cada instância
Isso pode ser visto com exemplos tão simples como significativos para o cuidado do
movimento. Em um processo de proposta de lei de iniciativa popular apenas são váli-
Analisar até que ponto as medidas beneficiam mais o movimento ou mais as
dos os apoios de pessoas com nacionalidade espanhola, mas, apesar disso, em sua
instituições que se posicionam em seu favor
primeira ILP, a PAH teve claro que não poderia desprestigiar as pessoas migrantes, que
eram parte significativa das assembleias. Organizou, assim, uma coleta de assinaturas
em paralelo à iniciativa oficial, que seguia estritamente a norma, para expressar esses Criar um grupo negociador que possa tomar decisões de maneira autônoma
apoios de forma que, apesar da exclusão do poder público, ninguém se sentiu fora VOLTAR AO
sempre que sigam as linhas gerais estabelecidas pelo movimento e garantam a
SUMÁRIO
desse processo. transparência

Aproveitar os contextos políticos que permitam exercer mais pressão sobre os


partidos, como os processos eleitorais ou disputas em que seja conveniente
demarcar um perfil favorável aos direitos sociais

Preservar o apartidarismo, por mais que alguns partidos sejam mais próximos ou
que tenham membros que estiveram vinculados ao movimento, e atuar em função
de sua posição, favorável ou contrária, a medidas concretas

Exigir compromissos aos partidos independentemente de estarem ou não no


governo e reivindicar o cumprimento desses acordos caso venham a exercer a
administração pública

Levar casos concretos para instâncias supranacionais a fim de denunciar violações


de direitos e conseguir resoluções que abram caminho para outros casos

VOLTAR AO
96
SUMÁRIO
9. COMO
VOLTAR AO
SUMÁRIO
ADMINISTRAR OS
CONFLITOS
Evidentemente em uma organização grande e diversa como a PAH surgem conflitos de
toda a natureza: interpessoal, de convivência, política e com pessoas que se aprovei-
tam do movimento. A plataforma não tem soluções para todos os conflitos, bem longe
disso, mas vai incorporando ferramentas e estratégias para abordá-los conforme vão
surgindo.
Uma das características da PAH é a vontade de colocar os conflitos na mesa e adminis-
trá-los coletivamente. “Os conflitos afloram, e isso é normal; conflitos cotidianos, que
em outros lugares vão sendo calados, na PAH acabam se revelando de um jeito ou de
outro, seja um incômodo durante um despejo, ou o que for”, assegura Berni, da PAHC
do Bages.
Como vimos, a plataforma favorece a criação de conexões muito fortes. “Esse vínculo,
que é como de família, gera conflitos que são distintos aos que haveria em movimentos
sociais mais clássicos, e é uma relação tão intensa que quando eclode algo também é
da mesma intensidade”, acrescenta Berni, da PAHC do Bages. Trabalham para adminis-
trar esses conflitos na assembleia, “mas já aprendemos que, quando temos um inimigo
externo fácil de identificar, as pessoas estão direcionando sua raiva contra um banco
ou paralisando despejos, essa raiva e essa angústia vital se canaliza para outro lado”,
assegura ele.

CONVIVÊNCIA E CONFLITO
Os espaços onde costuma haver mais conflitos interpessoais são aqueles em que há
uma convivência mais estreita, nos prédios da Obra Social la PAH. Cada unidade tem
sua própria assembleia, mas às vezes não consegue resolver ali seus conflitos, como
ocorre em tantas comunidades de vizinhos.
Em Sabadell há uma comissão de Obra Social formada apenas por pessoas que não
vivem nos prédios, para evitar possíveis conflitos de interesses. São eles quem selecio-

99
A PAH: MANUAL DE USO 9. Como administrar os conflitos

nam, segundo critérios aprovados na assembleia, as famílias que ocuparão as moradias telefonava, dizendo estar em nome da PAH e, por meio de um advogado, cobrando mil
recuperadas e às vezes também se encarregam de fazer mediação. “Uma pessoa desta euros para resolver o problema”, conta Nicole, da PAH de Castelló. Histórias similares
comissão participa das assembleias dos prédios e há todo o tipo de conflitos. Se são ocorreram em muitas assembleias. “Há gente que monta associações e cobra uma
questões de convivência, como em todas comunidades de vizinhos, é feita uma gestão contribuição regular, defendem interesses que não são os da PAH e muitas estão vin-
de mediação, mas podem haver outros problemas, como violência de gênero, e casos culadas a máfias de ocupações”, acrescenta Rosa, da PAH de Altea. Por isso desde o
como esses levamos para coletivos feministas ou organizações especializadas que nos primeiro dia reforçam as características da PAH, que é gratuita e baseada no assesso-
ajudam e acompanham tais processos”, Emma. ramento coletivo.
As assembleias da PAH não estão isentas desse tipo de violência, como qualquer outro Casos tão flagrantes, logo que descobertos, têm uma solução clara: “Conforme defi-
espaço de relação social. Há assembleias em que uma má gestão serviu para revelar nem as linhas vermelhas da PAH, essas pessoas são expulsas de forma direta, mesmo
algo e ressaltar a importância de estar atentas e atuar. Muitas contam com o apoio de assim não é agradável, é doloroso”, comenta Nicole. Em outros casos não foi uma
outros coletivos para tratar disso. pessoa, mas toda uma PAH que acabou sendo expulsa do movimento por não cumprir
O movimento estabelece entre seus critérios básicos que “nas PAH não se toleram ati- com os requisitos básicos.
tudes xenófobas, violentas, sexistas, nem discriminação por crenças religiosas, opinião
ou qualquer outra condição ou circunstância pessoal ou social”. Mesmo assim, algumas RESOLVER DIFERENÇAS
vezes é necessário tomar uma atitude mais pró ativa e algumas já organizaram oficinas A organização política está pensada para colocar as diferenças políticas em cima da
de formação para tratar dessas realidades. mesa. Uma dinamização que conduza o processo com o cuidado e o respeito no centro
São tantas pessoas distintas que se aproximam do movimento que há situações difíceis evita que essas diferenças sejam algo problemático. “Mesmo que briguemos de vez
de evitar no início e é preciso tratar dos casos conforme vão ocorrendo. “Há gente que em quando, temos uma boa comunicação: há um grupinho que vem desde 2013 e
tem atitudes de merda que não gostamos, homofóbicas, racistas, machistas… mas essa comunicação não se quebrou em nenhum momento”, exemplifica Sole, da PAH
tentamos lidar com elas e fazer um trabalho de pedagogia para que não aconteçam em de Segovia. Sua companheira María atenua: “Não são brigas, são diferentes opiniões,
nossos espaços. Mas é complexo, há situações diversas, não só de violência machista, rusguinhas, mas ao final tudo sai bem e seguimos unidas”.
de violência contra os filhos, tratamentos inadequados entre nós nas assembleias…, Em outros lugares nem sempre são “rusguinhas” e às vezes é preciso trabalhar mais a
graus de violência derivados também das situações que foram impostas às pessoas e fundo para resolvê-los. Na PAH de Valência, por exemplo, Psicólogas e Psicólogos sem
como se socializaram, assim que não podemos ter o nível de exigência que possuem Fronteiras desenvolveram um protocolo de atuação para conflitos internos. “Houve um
alguns coletivos mais ortodoxos”, conclui Bernat, da PAHC do Bages. conflito entre dois companheiros na assembleia federal, quando ninguém mais estava
presente da nossa assembleia, e não havia forma de resolvê-lo. Convidamos essa orga-
PROTEGER O MOVIMENTO nização que fez um diagnóstico e sugeriu medidas. Mesmo que uma das partes não
Por outro lado, o fato de ser um movimento aberto a qualquer que chega pode colocar quis escutar o que se propunha, isso nos serviu muito para resolver conflito”, conta
em risco, às vezes, seu espírito. Em muitas PAH há casos de quem quis apenas apro- José Luis.
veitar-se da plataforma para seu benefício pessoal. O modelo que a PAH aplica é o da mediação, com pessoas que sejam neutras e não
“Há pessoas que chegam à PAH e rapidamente, com o que aprendeu, vai embora e tenham capacidade de tomar decisões, que procuram escutar e compartilhar as pers-
monta outra história”, às vezes vinculada a partidos políticos, critica Pilar, da PAH de pectivas das partes afetadas. O objetivo é facilitar que as próprias partes cheguem a
Málaga. A plataforma se preocupa com quem se aproveita de seu nome ou do Stop um acordo, mas se isso não é possível quem se encarrega da mediação propõe uma
Desahucios para montar coletivos que não funcionam como uma PAH, causando cons- estratégia de resolução.
trangimentos, e por isso a comunicação pública costuma destacar na internet que é Ao detectar um conflito, a primeira medida é deixar que as pessoas envolvidas falem
preciso consultar a lista das plataformas que cumprem os critérios. entre si e ver se conseguem resolvê-lo. Se não houver sucesso, o conflito é abordado
As atitudes mal-intencionadas geram mais preocupação. “Aqui, por exemplo, houve na instância em que surgiu, em uma comissão, por exemplo. Se mesmo assim não
um caso de alguém que recolhia dados das pessoas novas que chegavam e depois houve solução, a questão é levada para a assembleia. Nesses casos é importante avisar

100 101
A PAH: MANUAL DE USO

a pessoa responsável por dinamizar a assembleia do tema que será tratado, para que
se prepare. E ainda que não se deva deixar de lado a problemática também é muito
importante que a resolução de conflitos não ocupe todo o tempo do funcionamento da
assembleia e da atividade habitual, porque isso poderia acabar desmotivando o restante COMO ADMINISTRAR CONFLITOS
das pessoas.
Quando um conflito não pode ser resolvido no espaço da assembleia local ou se refere
a algo entre plataformas, o tema vai para a assembleia territorial. Há quem critique Dar espaço para os conflitos ficarem evidentes e abordá-los coletivamente
por não haver uma instância ainda superior de mediação, mas reconhece que é algo
difícil. “Aqui não pagamos contribuições, nem recebemos ajuda financeira; então, se Desenvolver ferramentas para dar respostas a situações de violência
eu tivesse que ir mediar um conflito entre as PAH galegas, teria que abandonar meu e fazer alianças para contar com apoio externo se necessário
trabalho e passar uns dias nisso. Quem pagaria? Sempre defendemos a resolução no
âmbito em que se produz o conflito, procurar uma solução de consenso que não vai
deixar nenhuma das partes 100% satisfeitas, mas que seja capaz de contemplá-las de VOLTAR AO
Ter presente que muitas violências detectadas nas assembleias
forma que sigam trabalhando juntas”, afirma Paco, da PAH de Murcia. SUMÁRIO podem resultar das situações vitais impostas aos participantes

Responder com firmeza diante de pessoas que aproveitam a horizontalidade


do movimento em benefício próprio e em prejuízo de outras afetadas

Abordar os conflitos por meio da mediação, facilitando que as partes afetadas


cheguem a um acordo de consenso que permita seguirem trabalhando juntas

VOLTAR AO
SUMÁRIO

102
10. COMO E POR QUE
VOLTAR AO
SUMÁRIO
TECER REDES COM
OUTROS COLETIVOS
Uma das primeiras interações da PAH com fundos abutres foi quando o fundo estadu-
nidense Blackstone comprou a carteira de habitações do banco catalão CatalunyaCaixa.
Nesse momento, poderiam seguir protestando nas sedes do banco, mas viram que a
pressão precisava chegar mais acima. Para surpresa de muitos, um dia as concentra-
ções diante das agências do banco foram acompanhadas por outras diante das sedes
do fundo abutre em Nova York, Londres, Tóquio ou Atlanta. A PAH demonstrava capaci-
dade de tecer alianças não apenas na luta diária, mas também onde era preciso.1
Na mesma época se criou a Comissão Internacional da PAH. No começo sua razão de
ser era responder às demandas que vinham de fora do país. “Chegavam muitas per-
guntas ao email geral da PAH ou a distintas assembleias sobre o nosso funcionamento,
pediam entrevistas ou nos convidavam a participar de eventos. Respondia quem podia,
até que se criou uma comissão que pudesse responder de forma mais organizada. À
medida que essa nova instância foi crescendo e amadurecendo abriram-se espaços
para fazer outras coisas, como participar ativamente na criação de espaços de solidarie-
dade e de luta internacional”, conta Maka, da PAH de Barcelona.2

AMPLIAR A LUTA
Com o tempo perceberam que a internacionalização da luta da plataforma também
tinha repercussões dentro da própria Espanha. “Ser uma peça importante em espaços
internacionais converte a PAH em ator importante em nível local porque, por mais que
estejam incomodados, não podem deixar de ouvir um movimento social que está convi-
dado para falar na Conferência Habitat das Nações Unidas, que se celebram a cada dez

1 Nessa ocasião publicaram um vídeo destinado a Blackstone dizendo para eles se prepararem para enfrentar
a PAH: Plataforma de Afectadas por la Hipoteca (11 de fevereiro de 2015). #BlackstoneEvicts. Disponível em:
<https://youtu.be/gPGGJpOiseI> (12.02.2023).

2 A Comissão Internacional informa regularmente suas atividades em castelhano e inglês na página da internet
da PAH: <https://afectadosporlahipoteca.com/category/propuestas-pah/internacional> (12.02.2023).

105
A PAH: MANUAL DE USO 10. Como e por que tecer redes com outros coletivos

anos, ou na Comissão Europeia. Como em todas as outras comissões, nosso trabalho é


pensar como gerar mecanismos para que a luta da PAH se fortaleça”, assegura Maka.
Por outro lado, também trabalham na construção de alianças, como na Coalizão Euro-
peia por Direito à Moradia e à Cidade, iniciativa da qual a PAH foi um dos coletivos
impulsionadores e que serve para compartilhar recursos, estratégias ou campanhas,
apesar das diferenças entre países e organizações. 3 “O simples fato de encontrar com
ativistas de outros países, de saber que estão lutando por questões similares, já cria
uma potência muito forte”, conclui.

LUTAS CONJUNTAS
A importância de saber que há lutas compartilhadas tem peso também no âmbito local.
De fato, a eclosão do 15M em vários pontos do país foi a semente para muitas PAH,
que nasceram justamente como uma maneira de concretizar lutas amplas por direitos
sociais. Desde então, e em muitos casos também de relações prévias, surgem alianças
com distintos movimentos cuja luta vai além da moradia. É comum ver a PAH também
em lutas feministas, de migrantes, por emprego digno, contra a corrupção, pelo direito
à cidade… Ao fim e ao cabo, todas essas questões atravessam também as pessoas da
plataforma.
Nos municípios pequenos, onde há menos gente mobilizada em distintos movimentos
sociais, a PAH pode ser um ator especialmente relevante, como destaca Maria Antònia,
importante apoiar outras lutas. Por exemplo, em Manresa, quando se quis organizar
da PAH de Cardedeu: “Creio que, para nós, é mais fácil estarmos inseridas no tecido
manifestações antirrascistas, “contribuímos com megafones, explicamos como fazer
social, nos consideram mais facilmente e também nos colocamos à disposição como
faixas e cartazes, resolvemos dúvidas… enfim, acompanhamos as pessoas que que-
movimento para que relacionem outras lutas com o tema da moradia”. “Aqui, por exem-
rem fazer coisas, sem nenhuma necessidade de aparecer como PAH, apenas porque
plo, houve um ano no 8 de março que o próprio movimento feminista nos procurou para
nos parece importante isso que está acontecendo na cidade”, conta Berni, da PAHC do
colocar ênfase no tema do direito à moradia na manifestação realizada em Cardedeu.
Bages.
Muitas famílias puderam contar sua realidade, e isso foi forte e bonito”, relembra. E
uma das consequências de participar em espaços de outras lutas é que, quando falta
um apoio extra para interromper um despejo, comparecem muito mais pessoas do que GERAR ESPAÇOS
aquelas diretamente vinculadas à PAH. Às vezes é difícil responder a todas as problemáticas que emergem em uma assembleia
Em muitos casos as alianças são as que permitem às plataformas dispor de um espaço na própria plataforma. Outros coletivos podem compartilhar seus conhecimentos, por
semanal de encontro sem recursos econômicos, ou com muito pouco, seja em uma exemplo, em oficinas como as que são organizadas pela PAH de Elx-Crevillent: “Entra-
associação de bairro, um espaço coletivo ou em um centro social ocupado. Algumas mos em contato com uma companheira da Marea Blanca em defesa da assistência de
PAH, no entanto, conseguem gerar mais infraestrutura e nesses casos também é saúde e duas trabalhadores sociais de lá vieram e nos deram uma super lição sobre
como solicitar subisídios; gostamos muito e seguimos em contato com elas para resol-
ver dúvidas”, explica Marga.
3 Em 2016 a coalizão editou uma publicação que compartilhava as experiências de luta na região: Coalición
Europea por el Derecho a la Vivienda y la Ciudad (2016). La resistencia a los desahucios en Europa. Disponível No entanto, há ocasiões em que não é suficiente aprender e é preciso gerar respostas
em castelhano em: <https://www.rosalux.eu/es/article/1065.laresistencia-a-los-desahucios-en-europa.html>.
Disponível em inglês em: <https://housingnotprofit.org/wp-content/uploads/2019/08/Resisting-Evictions- para além das atividades habituais da PAH. Em Barcelona se aliaram com outros coleti-
Across-Europe.pdf> (14.03.2023). Toda a informação sobre a coalizão pode ser encontrada em sua página: vos para criar a Aliança contra a Pobreza Energética (APE). Muitas das pessoas que não
<https://housingnotprofit.org> (14.02.2023).

106 107
A PAH: MANUAL DE USO

podiam pagar suas hipotecas tampouco conseguiam pagar as contas de água, luz e gás,
e assim nasceu essa luta, irmã da plataforma, para trabalhar em paralelo a pressão e a
negociação com as companhias prestadoras desses serviços públicos.4
Em outras assembleias também fazem outros esforços para ajudar a criar um movi-
COMO E POR QUE TECER REDES
mento popular mais amplo em seu território. No Bages criam espaços novos também
COM OUTROS COLETIVOS
para permitir que as pessoas se mantenham ativas para além de sua vinculação direta
com a plataforma. “A assembleia da PAHC também pode ser dura e monótona, porque
é cada semana o mesmo, então há gente que se cansa depois de anos. Por isso pro- Ter presença nos espaços para além do nível local
curamos gerar outros espaços para que as pessoas sigam envolvidas”, conta Berni. No que possam ajudar a legitimar o movimento
seu caso, a rede de movimentos estimulados ou próximos à PAHC inclui uma escola
popular para apoiar crianças no processo educativo, uma escola de alfabetização para Compartilhar experiências e ferramentas com outras pessoas
mulheres, uma academia popular para jovens, um coletivo feminista ou um sindicato que fazem uma luta similar em outros espaços
popular. Àlex explica que “a assembleia nos faz ver outras necessidades e que precisa-
mos de espaços de luta e auto-organização para abordá-las. Temos uma perspectiva de
gerar uma vinculação que vai além da questão da moradia”. Participar em outras reivindicações que se cruzam com as do próprio movimento

Contar com o apoio de outros coletivos para aquelas questões


que a assembleia não pode resolver por si só

Aliar-se com outros coletivos para criar novos espaços de luta paralelos e fraternos

VOLTAR AO
SUMÁRIO

4 As ações da APE seguem a fórmula da PAH, mas em vez de ocupar agências bancárias ocupam escritórios
das companhias de luz, água ou gás, como se pode ver neste vídeo: Aliança contra la Pobresa Energètica (1
VOLTAR AO
de abril de 2016). #NiTallsNiDeutes – Els nostres drets no es negocien! Disponível em: <https://youtu.be/
SUMÁRIO
xu52hJu0qiQ> (12.02.2023).

108
VOLTAR AO
SUMÁRIO
SIM, SE PODE

“Gente sem casa e casas sem gente, não se entende”, diz uma palavra de ordem
que popularizou a Plataforma de Afetadas pela Hipoteca. No entanto, o fato é que,
sim, se entende. Entende-se segundo a lógica do capital e da acumulação. Entende-se
segundo a lógica da moradia como ativo financeiro.
Mas não é possível entender segundo a lógica que a plataforma aplica, uma lógica
humana, de garantia de direitos.
Essa humanidade, colocar as pessoas e seus direitos no centro, é o que move a PAH.
Colocar as pessoas no centro é escutá-las quando chegam pela primeira vez, é fazê-las
sentir que não estão sozinhas e é organizar-se de maneira que possam ser parte de algo
que se constrói coletivamente. A lógica da PAH é de empoderar acolhendo, de lutar
cuidando – do “sim, se pode” que nasce de um “não está sozinha”.
A PAH denuncia aquilo que não se entende, mas muito de seu mérito está justamente
em conseguir que não se entendam certas coisas: que aquilo que antes era senso
comum deixou de sê-lo. Por exemplo, algo tão simples como que sua casa jamais
deveria valer menos que a hipoteca que lhe deram para pagar, e portanto não tem
sentido que siga carregando uma dívida se entrega a própria casa ao banco. Tampouco
faz sentido que, uma vez que o banco toma sua casa, não tenha outro lugar para viver
porque os preços da moradia não se encaixam no seu orçamento e porque o conjunto
de moradias públicas quase não existe.
E quando a maioria da população pode estar de acordo em que nada disso se entende,
a PAH conseguiu que tampouco se entenda que os políticos não legislem para mudar
essa situação. Fez entender que fazer política não é defender interesses de quem tem
mais, mas é outra coisa: que demandas básicas por anos apresentadas como impossí-
veis são apenas uma questão de vontade política, questão de qual lógica é aplicada e
quem é priorizado. Ou como diz o lema da campanha de escrachos da plataforma, que
“sim, se pode, mas não querem”.

111
A PAH: MANUAL DE USO Sim, se pode

Queiram ou não os que governam e legislam, a PAH insiste que, sim, se pode. Talvez o ná-lo realidade. Coletivamente. O empoderamento na PAH não é triunfo do indivíduo,
mais importante que fizeram entender é que, quando as pessoas se unem, se organi- mas sim um aprendizado de que a luta coletiva é a maneira de mudar as coisas. É um
zam e lutam, podem garantir seus direitos. Podem conseguir coisas que nunca haviam fazer feminista, com uma luta encarnada sobretudo por mulheres, e que gira ao redor
imaginado. de cuidar-se e sustentar a vida conjuntamente.
Coisas tão simples e tão importantes como perder o medo. Se a PAH se converteu em um movimento de referência em escala global é porque está
O medo faz parte da vida, mas ninguém deveria viver com medo de ficar sem um direito formada majoritariamente por pessoas que estão afetadas pela problemática. Porque
básico como uma moradia digna, com todos os outros direitos que dependem deste. evitou o assistencialismo para construir um movimento coletivo protagonizado justa-
Reconhecer que há coisas que são direitos permite enfrentar cara a cara banqueiros, mente pelas pessoas que se dizia que não poderiam ser protagonistas da vida pública,
advogados, juízes, policiais ou políticos. da vida política ou de suas próprias vidas. Pessoas às quais se disse que fracassaram
por não poder arcar com um crédito hipotecário.
O “sim, se pode” é o lema do empoderamento, do saber que temos direito a reivindicar
o que é fundamental para a vida, e saber que se isso nos é negado temos direito a tor- São muitas as pessoas que afirmam que a PAH mudou sua vida. Deixar para trás a
angústia, conhecer seus direitos, começar a ver o mundo em coletivo não é pouco. Que
tudo isso seja, além disso, ponto de partida para a ação política tem ainda mais mérito.
A plataforma não tem fórmulas mágicas, mas muita experiência. Ano após ano se rein-
venta para seguir lutando e acompanhando. Nessas páginas se recolheu um pouco
dessa experiência para fazê-la útil para quem busca se organizar, acolher, empoderar,
desobedecer, conquistar direitos, mudar relatos, transformar políticas ou tecer redes.
Talvez as receitas da PAH não possam ser aplicadas à perfeição em qualquer contexto,
mas podem ser uma boa inspiração.
Em qualquer caso, mesmo que pareça difícil  – e é  – enfrentar discursos, entidades
financeiras ou governos que têm muito poder, o que a PAH nos faz entender é que, com
criatividade, persistência e em coletivo, sim, se pode.
VOLTAR AO
SUMÁRIO
Barcelona, dezembro de 2020.

112 113
VOLTAR AO
POSFÁCIO
SUMÁRIO
ESPERANÇA
E RESISTÊNCIA

PAH Barcelona
As conversas que deram origem a este livro ocorreram ao longo de 2020, em plena
pandemia da Covid-19. Desde então a Terra segue girando e a partir da Plataforma de
Afetadas pela Hipoteca seguimos lutando – e aprendendo a lutar. As realidades mudam
e nós não deixamos de fazê-lo.
A pandemia impactou nossas vidas de muitas maneiras. Uma delas é a crise econô-
mica que se faz cada vez mais presente desde quando o confinamento começou em
março de 2020. Cada dia é mais difícil pagar não só o que nos cobram da hipoteca ou
do aluguel para ter um lugar onde viver, como também tudo aquilo que precisamos:
alimentos, água, luz, gás… Mas seguimos resistindo.
Por outro lado, a pandemia abriu algumas janelas para que possamos mostrar que,
sim, é possível conseguir aquilo que passamos anos reivindicando. Pela primeira vez
o governo espanhol decretou moratórias para os despejos, algo que diziam que seria
impossível quando fizemos essa demanda ao Congresso em 2013. As medidas toma-
das pelo governo para responder à crise social, porém, não foram suficientes para
responder aos problemas que vemos a cada semana em nossas assembleias. E mesmo
que os despejos sigam acontecendo e que as moratórias deixem pessoas vulneráveis
fora, e mesmo que muitos juízes cheguem inclusive a reinterpretar a lei e não aplicá-la,
ao menos deixou de ser um tabu o fato de proibir despejos sem apresentar uma alterna-
tiva para as famílias. O que nos diziam que era inviável hoje é um compromisso, embora
quem governe não o cumpra.
Nesse contexto, vemos que há mais consciência sobre a importância de ter um lugar
para viver com dignidade no conjunto da sociedade e também sobre o fato de que o
acesso aos nossos direitos não pode estar condicionado a dinâmicas de um mercado
global no qual os preços disparam sem levar em conta nossas necessidades. Tal qual
aconteceu na crise econômica quando a PAH nasceu em 2009, a dura realidade faz que
as pessoas tenham mais claro que nossas demandas são puro senso comum.

115
A PAH: MANUAL DE USO

Do outro lado do Atlântico, nos alegra poder compartilhar agora nossa experiência e
nossas aprendizagens com lutadoras brasileiras. Vemos com esperança a situação polí-
tica no Brasil. As pessoas que resistimos em todo o planeta devemos celebrar que o
povo organizado tenha conseguido barrar o avanço das políticas que atentam contra
a vida. No Brasil se sofreu de forma especialmente dura uma dinâmica política que é
global e que devemos combater a partir dos lugares em que nos encontramos. Celebrar
cada pequena vitória nos parece fundamental, e o final deste 2022 é uma ótima ocasião,
porque o que tiveram nas urnas é uma vitória fundamental.
No entanto, e sem querer rebaixar a esperança, também gostaríamos de compartilhar
humildemente o que aprendemos com nossa experiência com o Estado espanhol, que
não é comparável à brasileira, mas pode servir para que pensemos conjuntamente. A
partir de 2011, quando chegamos às praças de nossas cidades e se criaram muitas
PAH por todo o território espanhol, vivemos um período de fortes mobilizações na rua,
com pouco reflexo em nossas instituições. A partir de 2014, algumas de nossas com-
panheiras deixaram a Plataforma para aventurar-se no terreno eleitoral e algumas delas
conseguiram entrar em governos, parlamentos e prefeituras. Depois de anos enfren-
tando um muro intransponível nesses espaços, pode ser útil encontrar agora do outro
lado pessoas com que compartilhamos objetivos. Mas temos claro que nosso trabalho
não é abraçar nenhum partido, e sim seguir lutando a partir das ruas.
O terreno institucional é para nós um terreno no qual é preciso lutar. É imprescindível
mudar as leis e as políticas para que protejam as pessoas que mais precisam. Mas é
um campo de areia movediça, de pactos, equilíbrios e prioridades que muitas vezes
se desviam daquilo que é imprescindível para a vida das pessoas. O diálogo com as
instituições pode ser produtivo, mas nossa experiência é que o atendimento de nossas
reinvindicações não depende da vontade de quem está no governo, por exemplo, mas
sim da nossa capacidade de organização e mobilização a partir das ruas.
Ver como se abrem janelas de esperança é fundamental, e há que se agarrar a elas para
avançar, mas o futuro construímos entre nós, resistindo e empurrando, juntas nas ruas.
Nossa aprendizagem é que não podemos jamais esquecer disso. É o que nos permite,
governe quem governe, seguir gritando que “sim, se pode”.
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SUMÁRIO
Novembro de 2022

116 117
VOLTAR AO DE AFETADA
A ATIVISTA
SUMÁRIO

Costuma-se dizer que para entender a PAH basta apenas ir a uma de suas assembleias
de boas-vindas. Ali, em poucas horas, se entende não apenas o problema da moradia
na Espanha, mas também se descobre que a solidariedade e a organização de base são
ferramentas poderosíssimas para transformar a realidade.
Por todos esses motivos, decidiu-se completar este livro com o vídeo El primer día
(legendado em português), um curta-metragem em que várias pessoas explicam como
foi sua primeira vez na PAH. Por meio de testemunhos e de imagens de arquivos dos
últimos dez anos, entendemos por que aquelas que um dia pisaram na PAH como “afe-
tadas” se converteram, em questão de meses, em parte do movimento como ativistas.
QR Code do endereço abaixo:
https://vimeo.com/505006894

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SUMÁRIO
CRÉDITOS

Este livro só foi possível graças à colaboração de 49 ativistas da PAH que compartilha-
ram seus conhecimentos e experiências em debates e entrevistas.

PAH DE BARCELONA PAHC DO BAGES PAH DE BERRIOZAR COMISSÃO


Delia Àlex Jesús INTERNACIONAL
Edu Aziza Virginia David, PAH Sevilla Este-Amate
Francisco Bernat Maka, PAH Barcelona
PAH DE MURCIA Marcia, PAH Barcelona
Gabriele Berni
Paco Ricardo, PAH Barcelona
Lucía D. Diego
Lucía N. Ishaan PAH DE CARDEDEU Toñi, Stop Desahucios Móstoles
Santi Lídia Maria Antònia
Tania Yaqoubi
PAH DE VALLEKAS
COORDENAÇÃO PAH DE MÁLAGA Diego
DE VALÊNCIA Asun Este livro foi possível também graças a
Eliseo, PAH Safor PAVPS DE MADRI
Chary todas as pessoas que contribuíram para
José Luis, PAH Valência Alejandra
Curro gerar conhecimentos, transmiti-los para
Juan Luis, PAH Torrevieja Angelines
Félix suas companheiras e redigir documentos
Lorenzo, PAH Elx-Crevillent Pilar PAHC DE SABADELL úteis ao longo dos 14 anos da história da
Marga, PAH Elx-Crevillent Emma PAH.
Nicole, PAH Castelló PAH DE SEGOVIA
Paula, PAH Elx-Crevillent Amanda
Rosa, PAH Altea Faustino
Saskia, PAH Torrevieja María
Sole
Teresa
Wences
TÍTULO ORIGINAL
La PAH: manual de uso.
Aprendizajes para la acción colectiva a partir de la lucha por el derecho a la vivienda
DIREÇÃO DO ESCRITÓRIO DA FRL
Andreas Behn (São Paulo)
Anna Schröder (Bruxelas)
COORDENAÇÃO DE PROJETOS E EDIÇÃO
Jorge Pereira Filho (São Paulo)
Vera Bartolomé (Madri)
TRADUÇÃO
Leandro Rodrigues
PROJETO GRÁFICO ORIGINAL
Taller de Traficantes de Sueños
DIAGRAMAÇÃO
Estúdio Bogari
REVISÃO TÉCNICA
Márcia Falcão
FOTOS
Páginas 4, 18, 38, 42, 52, 72, 86, 92, 98, 110, 112, 114, 117 / PAH Barcelona
Páginas 24, 62, 68-69, 80, 104 / Álvaro Minguito
Páginas 32, 39, 107 / David F Sabadell

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

França, João
A PAH : manual de uso : aprendizagem para a ação coletiva a partir da luta pelo
direito à moradia /João França. – 1. ed. – São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo,
2023.
Bibliografia.
ISBN 978-65-89834-04-5
1. Habitação – Aspectos sociais – História  2. Habitação – Legislação
– Espanha   3. Moradias – Espanha   4. Movimentos sociais – Espanha –
História  I. Título.

23-149829 CDD-303.484

  3.0 BR
Esta publicação foi realizada com o apoio da Fundação Rosa Luxemburgo
e fundos do Ministério Federal para a Cooperação Econômica e de Desenvolvimento da
Alemanha (BMZ). O conteúdo da publicação é responsabilidade exclusiva do autor e não
representa necessariamente a posição da FRL.

FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO


Rua Ferreira de Araújo, 36 – Pinheiros, São Paulo (SP) / Brasil – CEP: 05428-000
info.saopaulo@rosalux.org

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