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A Enchente

Orozimbo era mais conhecido do que nota de dez. Um senhor com seus mais de

sessenta anos que andava pelas ruas de Muriaé. Ia da praça da matriz até o Hotel

Muriahé sempre cumprimentando e sorrindo para todos que passavam.

A alguns estendia a mão, a outros, virava a cara resmungando e xingando.

Mas todos o conheciam bem. Vivia sozinho. Diziam que tinha sido abandonado pela

família por causa do vício da bebida.

Parava em todos os bares e pedia uma dose aqui, outra ali. Comia um salgado, ganhava

um pão. Levava da banca do Faria uns tomates murchos, uma cenouras embaçadas.

Umas mandiocas, chuchu velho. Enfim, fome não passava.

Morava na Rua Espera Feliz, próximo ao Rio Muriaé e, todas as manhãs, levantava

cedo. Coava um pouco de café numa chaleira feita de meio litro de óleo. Aliás, tudo ali

era meio improvisado.

A cama era de forquilhas em um estrado feito de ganhos e palha. O colchão, bom, eram

dois. Um ele ganhou e outro achou jogado numa calçada e levou pra casa. Ajudava a

evitar dores na costas.

Os banco eram de tábuas de construção que ele ia levando sempre que encontrava na

rua ou jogada em um canto e, ai daquele que resolvesse querer tomar dele o “achado”.

Orozimbo virava “o demônio da mulesta”, como ele mesmo dizia sorrindo com os três

dentes que lhe restavam na boca.

Voltamos as panelas. Uma chaleira esmaltada encontrada na rua, uns três copos

americanos encontrados “na encruza”, dois copos de dose, um prato de plástico meio

derretido em uma das pontas (prato redondo tempo ponta?), bom seguindo com os

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“bens do Orozimbo”, duas outras panelas maiores onde ele cozinhas seus alimentos,

arroz e feijão. Sempre que estava em casa, mas passava os dias mesmo na rua.

Voltava para casa altas horas da noite. Aliás, seu barraco era de madeira e a porta, a

única que tinha era trancada com uma grande corrente e um cadeado enorme. Ninguém

sabia ao certo o motivo, pois, afinal, quem iria entrar ali para roubar algo de alguém eu

tinha menos que todo mundo da cidade?

Orozimbo fazia questão de levar a chave na cintura junto com um canivete que sempre

usava para descascar umas frutas, arrancar bicho de pé ou mesmo cortar as unhas. Fazia

tudo com o mesmo equipamento e não ligava para limpá-lo depois de usar.

Descascava laranja ou maçã, passava na perna da calça próximo da coxa. Depois,

“futucava” o bicho de pé do dedão ou, então, sentado na praça, cortava as unhas.

Depois, passava na calça e estava limpo.

Bom, Orozimbo saia cedo de casa, antes das sete da manhã como se tivesse um

compromisso inadiável. Antes das crianças chegarem às suas escolas, levadas pela mãe

ou avó, de vez em quando o pai de carro, lá estava Orozimbo, brincando com todos.

Sorria e sabia o nome da molecada toda.

Alguns zombavam dele. Outros cumprimentavam de olhos arregalados e segurando

firma nas mãos das mães ou avós. Também, estas viviam dizendo que se o pequeno (ou

a pequena) não ficassem quietas, iriam entrega-las para aquele homem tão conhecido,

roupas suja, cabelos desgrenhados e barba por fazer. O medo era geral, embora não

fizesse mal a uma mosca.

Os cães da cidade o conheciam e seguiam para todos os lados. Ele era um protetor e, ao

mesmo tempo, guardador. Pois se ganhasse um pão, dava a metade pro animais.

Orozimbo ganhava quase tudo que comia ou bebia e, mesmo assim, vivia pedindo aqui

e acolá.

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Uns, mais generosos davam mais, outros resmungavam. E mesmo conhecendo que dava

ou não, Orozimbo pedia. Gostava de ver a cara da pessoa. Talvez pedisse até de

implicância.

Mas, ao cair da noite, voltava para a casa, bêbado. Só. Sujo. Vez ou outra arriscava

tomar um banho no Rio Muriaé.

Se tivesse fome, comia algo. Sabia cozinhar a seu jeito. Não tinha convidados ou

alguém para experimentar sua comida. Mas fazia, quando queria.

Sentava-se na beira da cama. Desenrolava o trapo de pano da perna direita onde uma

bicheira lhe corroía a carne.

Espantava os mosquitos com a mão, aproximava a lamparina do local. Passava fumo e

outros ramos que ia colhendo no meio do caminho. Fazia um emplastro e colocava

naquela dolorida ferida.

Vez ou outra pedia pra Deus leva-lo e, logo em seguida, dizia que era brincadeira.

Mas, sentado em sua cama de dois colchões, sem lençol e com um travesseiro roto e

com fronha ensebada. Tirava lá de dentro um saco plástico envolto em um pano e

amarrado por “ligas de borracha”.

Desenrolava tudo. Olhava em cima da cama seu dinheiro. As pequena fortuna. Tinham

notas de cinquenta, de vinte, dez. Muitas de cinco e dezenas. Não! Talvez, centenas de

notas de dois reais.

Orozimbo contava aquele montante todas as noites.

Depois, como num ritual, retirava dos bolsos da calça e da camisa o dinheiro ganhado

durante o dia. Separava as iguais, amontoava. Olhava para os lados, depois contava cada

pacote.

Sorria com seus poucos dentes. Os olhos, como de uma criança, brilhava.

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Deveria ter, em seu poder, quase dez mil reais. As moedas ele guardava uma lata de

leite ninho com tampa. Quando enchia levava no banco para trocar. E, o dinheiro

apurado, ia para o monte que seria enfiado num saco, enrolado em um pano e amarrado

pelas “ligas de borracha”.

Antes de dormir, Orozimbo ajoelhava-se como podia naquele chão de terra batida.

Orava a Deus. Agradecia pela conquista. Depois, cambaleando e com dores nos joelhos,

levantava. Alisava cada um deles. Batia a sujeira do chão e deitava-se na cama, sem

mesmo tomar seu banho.

O velho Orozimbo vivia deste ritual sem precedentes. Até que, certa tarde, por volta de

15 horas o tempo começou a fechar.

O céu foi ficando escuro, escuro e as luzes da cidade começaram a se ascender.

Muitas lojas começaram a fechar as portas e as gotas de água começaram a cair.

As crianças foram dispensadas das escolas e, os servidores públicos da prefeitura e

câmara foram embora, afinal, ficar ali em dia de chuva forte era perigoso.

Mas Orozimbo se escondeu em uma marquise e ficou ali em pé, conversando e sorrindo

para quem chegava de pressa em busca de um lugar no ônibus.

Foi assim que, certo cidadão disse que o Rio Muriaé estava enchendo e poderia levar

tudo que estava próximo. Orozimbo arregalou os olhos e quis saber mais deste assunto.

Pegou, pela primeira vez, no braço de alguém com força. O homem se virou querendo

briga e Orozimbo pediu desculpas dizendo:

- Moço! É verdade que o rio tá enchendo rápido?

- É sim! Vai levar tudo que estiver perto. Tem umas casas que serão invadidas. Dizem

que, além da chuva, ainda tem as barragens aqui perto que pode inundar tudo.

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Ao ouvir isto o velho senhor saiu em disparada rumo à sua casa. A ferida parece que

abriu e um filete de sangue saiu por baixo do pano. Orozimbo não teve outra maneira.

Teve que parar. Ajustar o pano e engolir a dor.

Correu mais alguns metros e parou. Desta vez faltava fôlego. Decidiu ir de ônibus

mesmo. Esperou junto às pessoas que se afastavam dele.

Seus olhos arregalados pensava em seu barraco. Queria chegar em casa. Precisava

chegar em casa. Ia perder tudo. Dizia em voz alta. E o povo, olhando-o naquele estado e

conhecendo onde o mesmo morava e de não ter nada a não ser quinquilharia, riam por

dentro.

E Orozimbo conseguiu embarcar pedindo desculpas ás pessoas por estar naquela

situação. Estar ali Afinal, sabia se reconhecer e, quando entrou n o coletivo, algumas

pessoas torceram o nariz e outras se espremiam para não serem tocadas por aquele

homem sujo.

Chegando a uns 10 quarteirões do local a água estava subindo pelas calçadas. O

motorista tentou ir, mas a água entrava pelas portas e o povo lá dentro gritando.

Orozimbo, sem ao menos entender, também passou a gritar, mas para o motorista ir

mais rápido.

Seu pensamento estava no barraco. No que tinha no travesseiro.

O motorista parou e disse, vou ir por outra rua. Não dá pra seguir viagem. Muitos

reclamaram dentro do ônibus. Até mesmo Orozimbo. Queria seguir o trajeto. Precisava

chegar ao seu barraco.

Mas o motorista virou na primeira rua e saiu daquela situação. O motor morreu.

Orozimbo quase teve um infarto dentro do ônibus. Algumas pessoas começaram aquela

algazarra, principalmente porque tinham jovens saindo da escola. Era um Deus nos

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acuda. O motorista irritado, o cobrador sorrindo para umas moças e Orozimbo

desesperado. Todo minuto era precioso.

Alguém pediu que a porta fosse aberta. Ia a pé mesmo. O motorista tentava ligar o

motor que só fazia barulho. A porta foi aberta e algumas pessoas começaram a descer.

Dentre elas, Orozimbo que, ao tentar saltar quase deu de cara com o muro, pois

tropeçou com o dedo do pé direito na barra da calça esquerda.

Muitos sorriram dele e, naquele sofrimento. Machucou uma das mãos que parou no

muro de chapisco.

Balançou a mão como que para aliviar a dor e tomou folego Pôs-se a correr. Hora

corria, hora dava passos largos. A chuva que lhe caia no corpo não importava mais.

A dor na perda direita era muito e seus olhos corriam água, tanto da chuva, quanto pela

dor.

Orozimbo queria ir, chegar, correr. Precisa proteger o que tinha. Chegando perto de casa

viu que a água era muita e, encostando-se nos muros, levava quase um minuto para dar

um passo. A água estava acima da cintura. Muitos diziam para ele parar. Ficar. Esperar

e, como em transe, seguia sem dar atenção ao que lhe pediam.

Muitos temiam por sua morte. Mas o velho ia em frente e, somente ele sabia o motivo

da necessidade.

E, a poucos metros de sua humilde residência viu quando uma onda do rio começou a

levar seu barraco. As telhas foram caindo e as paredes deitando-se. Orozimbo deu um

berro e tentou nadar para perto do que ainda restava e ia sendo levado junto com os

poucos pertences.

Os colchões flutuavam em meio à água suja que vinha do Rio Muriaé. E Orozimbo

chorava e gritava para deus não levar o que tinha. Procurava em meio aos escombros o

travesseiro. E virando-se para todos os lados, como um louco ensandecido viu, a cerca

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de 50 metros o travesseiros sendo levado junto com sacos e sacolas de lixo que

flutuavam nas águas.

Deu algumas braçadas como nadador, mas algo enrolou em seus pés, travando-o.

Orozimbo tentava se soltar, mas a cada tentativa ficava mais apertado o nó. Uma tábua

veio em sua direção e, ao tentar desviar-se dela, sentiu um impacto na perna direita.

Era uma placa de muro que caia de uma residência em frente à sua pequena casinha.

Orozimbo deu um grito. Talvez de dor. Talvez de desespero.

A perna presa por uma corda ou pano não se sabia ao certo devido à agua turva do rio.

A outra, esmagada pela placa de muro e, os seus olhos no travesseiro que já ia bem mais

adiante em cima das águas.

E o desespero crescente.

Foi neste transe total que ele sentiu duas mãos segurando-o pelos braços.

Era o Vicente. Um home de seus 30 e poucos anos. Servente de pedreiro que pulara

naquela água para salvar o homem.

E, puxando com força, Orozimbo viu sua perna livre e, notou que em certo local estava

vermelho de sangue. Mesmo assim tentou argumentar para ir atrás do travesseiro.

Vicente teve que contê-lo dizendo que lhe arrumariam outro. Mas olhando para a água

que se misturava com o rio, pensava no que perdera.

Como um louco não dizia nada com nada. Já a salvo. Foi encaminhado ao Hospital São

Paulo.

Os enfermeiros deram-lhe um banho e os médicos vieram olhar a ferida da perna.

Orozimbo ainda não se conformava e fala do travesseiro. E, os médicos pensando em

algo mais sério, deram-lhe medicamentos para dormir e esquecer.

Na mesma noite Orozimbo tentou ir embora quando acordou ali e, tentando tirar as

mangueiras de soro, fora amarrado na maca. E mais medicamentos lhe foram aplicados

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e, novamente adormeceu entorpecido pelas drogas gritando por seu bem precioso: seu

travesseiro.

E a cena se repetia dia após dia e a ferida, cada vez mais aberta, não dava trégua as

médicos.

Orozimbo não melhorava e, uma febre súbita fez com que seu corpo envermelhasse

mais ainda. Nos momentos de delírio gritava por seu travesseiro. Pedia que

encontrassem seu travesseiro. Chorava por tê-lo perdido.

Na cidade todos falavam do ocorrido e de que duas pessoas tinham perdido a vida na

enchente. Muitas casas foram derrubadas e o povo só falava da barragem, da chuva, das

mortes. Ninguém lembrava-se de Orozimbo, nem sua falta sentiam.

E, seis dias após o ocorrido, fechou os olhos numa madrugada, em uma cama de

hospital. Amarrado. E, nem enfermeiros, nem médicos, pessoal da limpeza que o

conheciam na cidade entendiam porque ele queria tanto o seu travesseiro.

Naquela manhã, seu corpo desceu no cemitério levado apenas pelo pessoal da funerária.

Sem cortejo. Sem missa. Sem dinheiro.

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