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O DIACONATO NO CÂNON 1009

Kleber Rodrigues Oliveira1

RESUMO

A legislação canônica nunca foi muito clara sobre a distinção entre os três graus do
sacramento da ordem, nem sobre a condição específica daqueles que recebem o
diaconato. Ao longo dos séculos, os concílios abordaram a temática de maneira
superficial e a lacuna se arrastou até as últimas décadas. Com o Concílio Vaticano II o
assunto foi delineado de maneira mais precisa e o Papa Bento XVI, por meio da Carta
Apostólica Ominium in mentem, reformou os cânones 1008 e 1009 que tratavam sobre o
tema no Código de Direito Canônico. Abordamos o assunto de maneira objetiva, por isso
o artigo oferece uma visão sinóptica e profunda da reforma do cânon 1009, citando os
cânones modificados com o Motu Proprio e acrescentando comentários e citações.

Palavras-chave: Ordem. Diaconato. Reforma. Graus.

ABSTRACT
Canonical legislation has never been very clear about the distinction between the three
degrees of the sacrament of orders, nor about the specific status of those who receive the
diaconate. Over the centuries, the councils approached the subject in a superficial way
and the gap dragged on until the last decades. With the Second Vatican Council the
matter was delineated more precisely and Pope Benedict XVI, through the Apostolic
Letter Ominium in mentem, reformed canons 1008 and 1009 that dealt with the subject
in the Code of Canon Law. We approach the subject objectively, which is why the article
offers a synoptic and in-depth view of the reform of canon 1009, citing the canons
modified with the Motu Proprio and adding comments and quotations.

Keyword: Order. Diaconate. Reform. Grade.

1
Mestrando em Direito Canônico pela Faculdade de Direito Canônico São Paulo Apóstolo e pós-graduado
em Direito Matrimonial Canônico pela Faculdade Católica do Rio Grande do Norte.
INTRODUÇÃO

A imprecisão acerca da compreensão teológica do diaconato é bastante antiga na


Igreja e sua fundamentação escriturística parece complexa. Motivado pelos documentos
do Concílio Vaticano II, São João Paulo II determinou que fosse modificado o texto do
número 1581 do Catecismo da Igreja Católica, que trata sobre o caráter indelével do
sacramento da ordem. Posteriormente, na esteira desta modificação, Bento XVI
promulgou a Carta Apostólica em forma de Motu proprio Omnium in mentem, com a qual
foram reformados os cânones 1008, 1009, 1086, 1117 e 1124 do Código de Direito
Canônico (CIC-1983). Posto que os cânones 1117 e 1124 compõem o Título VII, que
trata especificamente sobre o sacramento do matrimônio, optamos por abordar neste
artigo apenas o cânon 1009, fazendo rápidas referências ao correlato cânon 1008.

O DIACONATO NO CÂNON 1009

Para muitos autores da atualidade, é incorreto admitir a associação tradicional do


capítulo 6 do livro dos Atos dos apóstolos2 com o que posteriormente foi chamado de
ministério diaconal. Na verdade, o texto não cita o termo διάκονος3. Os sete escolhidos
para assistir as viúvas também realizavam outras tarefas diferentes do servir à mesa, como
Estevão que pregava (At 6,8-10) e Felipe, que além de pregar, realizava exorcismos e
batizava (At 8,5-8.38). Deste modo, é possível afirmar que as primeiras gerações cristãs
não nos legaram uma imagem precisa do diácono, mas esboços diversos.
O Concílio de Trento, por sua vez, apresentou o sacramento da ordem como
instituído por Jesus Cristo4 e abordou sua hierarquia5, todavia, não foi capaz de explanar

2 “
Naqueles dias, aumentando o número dos discípulos, surgiram murmurações dos helenistas contra os
hebreus. Isto porque, diziam aqueles, suas viúvas estavam sendo esquecidas na distribuição diária. Os Doze
convocaram então a multidão dos discípulos e disseram: Não é conveniente que abandonemos a Palavra de
Deus para servir às mesas. Procurai, antes, entre vós, irmãos, sete homens de boa reputação, repletos do
Espírito e de sabedoria, e nós os encarregaremos desta tarefa. Quanto a nós, permaneceremos assíduos à
oração e ao ministério da Palavra. A proposta agradou a toda a multidão. E escolheram Estêvão, homem
cheio de fé e do Espírito Santo, Filipe, Prócoro, Nicanor, Timon, Pármenas e Nicolau, prosélito de
Antioquia. Apresentaram-nos aos apóstolos e, tendo orado, impuseram-lhes as mãos”. (At 6, 1-6)
3
O vocábulo διάκονος aparece pela primeira vez no Novo Testamento apenas em Fl 1,1 e 1Tm 3,8. O
versículo 3 do Capítulo 6 do livro dos Atos dos Apóstolos utiliza o verbo διακονέω (servir às mesas).
4
“Si quis dixerit, sacramenta novae Legis non fuisse omnia a Iesu Christo Domino nostro instituta, aut esse
plura vel pauciora, quam septem, videlicet baptismum, confirmationem, Eucharistiam, paenitentiam,
extremam unctionem, ordinem et matrimonium, aut etiam aliquod horum Septem non esse vere et proprie
sacramentum: anathema sit”. (Se alguém disser que os sacramentos da Nova Lei não foram todos instituídos
por Jesus Cristo Nosso Senhor, ou que são mais ou menos que sete, a saber: Batismo, Confirmação,
Eucaristia, Penitência, Extrema-Unção, Ordem e Matrimônio; ou que algum destes sete não é verdadeira e
propriamente sacramento — seja excomungado) DENZINGER-HUNERMANN. Compêndio dos símbolos,
definições e declarações de fé e moral. Paulinas/ Loyola, São Paulo, 2007, p. 416.
5
“Si quis dixerit, in Ecclesia catholica non esse hierarchiam, divina ordinatione institutam, quae constat ex
episcopis, presbyteris et ministris: anathema sit”. (Se alguém disser que na Igreja Católica não há hierarquia
eclesiástica estabelecida por ordem de Deus, que se compõe de bispos, presbíteros e ministros — seja
excomungado). DENZINGER-HUNERMANN. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e
moral. Paulinas/ Loyola, São Paulo, 2007, p. 454.
o tema do diaconato. O Concílio Vaticano II, porém, apesar de ter se ocupado
prioritariamente do múnus episcopal, foi um pouco mais preciso e propôs que o ministério
eclesiástico é exercido de diferentes maneiras por Bispos, presbíteros e diáconos6. Para
os padres conciliares, o sacerdócio está em função da missão de pastorear o rebanho de
Deus, desempenhando, na pessoa de Cristo cabeça, os tria munera que recebe para
ensinar, santificar e governar. Estes ofícios são compartilhados por todos os ministros
ordenados, porém, “em grau inferior da hierarquia estão os diáconos, aos quais foram
impostas as mãos ‘não em ordem ao sacerdócio, mas ao ministério’. Pois que, fortalecidos
com a graça sacramental, servem o Povo de Deus em união com o Bispo e o seu
presbitério, no ministério da Liturgia, da palavra e da caridade7”. Assim como o Decreto
Ad gentes8, a Constituição Dogmática Lumen Gentium assente indiretamente a
sacramentalidade da ordenação dos diáconos, visto que fala sobre graça sacramental, mas
não cita o caráter indelével, como o fazem a Perfectae caritatis9 falando dos presbíteros
e a própria Lumen gentium10 no ao tratar sobre os Bispos.
Portanto, quando analisamos com atenção o que a teologia compreendeu como
ministério diaconal, parece evidente por toda a tradição da Igreja tratar-se de um
ministério que implica a participação no sacramento da ordem. A Lumen gentium, com
efeito, afirmou que os diáconos são fortalecidos com a graça sacramental, onde
sacramental refere-se, evidentemente, ao sacramento da ordem11.
A partir destas afirmações dos padres conciliares, era necessário, portanto, reformar
o Livro IV do Código de Direito Canônico, que trata sobre o Sacramento da ordem, para
esclarecer a função ministerial dos diáconos, presbíteros e epíscopos, dado que o cânon
1009 expunha apenas os três graus do sacramento, enquanto o cânon 1008 mencionava,
também de maneira lacônica, tão somente o caráter dos graus, como doutrina comum
também em relação ao diaconato, embora esta nunca tenha sido definida pelo magistério.
Segundo o professor Gianfranco Ghirlanda, podemos dizer que o cânon 1008
tentava “afirmar de modo geral a participação, em virtude do sacramento da ordem, nas
funções de ensinar, santificar e governar também por parte dos diáconos, para que possam
exercer seu ministério na Igreja, e nada mais, porquanto não é tarefa do Código resolver
questões ainda discutidas em teologia sobre a natureza do diaconado. Contudo, o cânon,
sob este aspecto, se não fosse lido à luz da tradição e dos documentos conciliares, poderia
ficar doutrinariamente ambíguo12”.
Por isso, para eliminar esta ambiguidade, no dia 26 de outubro de 2009 o Papa
Bento XVI promulgando o Motu proprio Omnium in mentem13, com o qual confirma-se
a distinção essencial entre o sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial e, ao
mesmo tempo, evidencia-se a diferença entre episcopado, presbiterado e diaconato.
“Sacramento ordinis ex divina institutione inter christifideles quidam, charactere
indelebili quo signantur, constituuntur sacri ministri, qui nempe consecrantur et
deputantur ut, pro suo quisque gradu, novo et peculiari titulo Dei populo inserviant”.
(Mediante o sacramento da ordem, por divina instituição, alguns de entre os fiéis, pelo
carácter indelével com que são assinalados, são constituídos ministros sagrados, e assim

6
Cf. LG 28
7
Cf. LG 29
8
Cf. AG 16
9
Cf. PC nº 2
10
Cf. LG nº 21
11
Cf. ANTÔNIO, C.O Motu proprio Omnium in Mentem, 01 de julho de 2011, em URL:
<https://www.infosbc.org.br/site/encontros-sbc/1745-o-motu-proprio-omnium-in-mentem> (04/09/2021).
12
GHIRLANDA, G., O Direito na Igreja, mistério de comunhão. Santuário, Aparecida-SP, 2003, p. 344.
13
Incipit em latim que significa: “para a atenção de todos”.
são consagrados e delegados a servir, segundo o grau de cada um, com título novo e
peculiar, o povo de Deus)14. A Carta Apostólica altera substancialmente o texto do cânon
1008 na relação indistinta dos três graus da ordem. “Com o novo texto, somente os Bispos
e presbíteros podem agir na pessoa de Cristo Cabeça. Aos diáconos limita-se a afirmar,
de maneira mais genérica, que estão destinados a servir o povo de Deus com título novo
e peculiar15”. A reforma promovida pelo Papa Ratzinger atingiu em cheio também o
cânon 1009, que recebeu um terceiro parágrafo no qual o legislador adverte: “Ordines
sunt episcopatus, presbyteratus et diaconatus. Conferuntur manuum impositione et
precatione consecratoria, quam pro singulis gradibus libri liturgici praescribunt. Qui
constituti sunt in ordine episcopatus aut presbyteratus missionem et facultatem agendi in
persona Christi Capitis accipiunt, diaconi vero vim populo Dei serviendi in diaconia
liturgiae, verbi et caritatis” (as ordens são o episcopado, o presbiterato e ao diaconato.
Conferem-se pela imposição das mãos e pela oração consecratória, prescrita para cada
grau pelos livros litúrgicos. Aqueles que são constituídos na ordem do episcopado ou do
presbiterado recebem a missão e a faculdade de agir na pessoa de Cristo Cabeça; os
diáconos, ao contrário, sejam habilitados para servir o povo de Deus na diaconia da
liturgia, da palavra e da caridade)16.
De tal modo, fica claro que o diaconato, mesmo sendo o primeiro grau da ordem
sacra, é um ministério de natureza não-sacerdotal em relação aos sacramentos17 e que
Bispos e presbíteros recebem a missão e a faculdade de agir na pessoa de Cristo Cabeça,
enquanto diáconos recebem a autorização para servir ao povo de Deus. Agir “in persona
Christi Capitis” e assumir a missão pastoral de apascentar não é mais uma finalidade
específica do sacramento da ordem, e sim do ministério sacerdotal.

CONCLUSÃO

A promulgação do Motu proprio de Bento XVI foi a primeira vez em que um


documento eclesiástico afirmou claramente que o sacramento da ordem imprime caráter
em todos os seus graus. Através da reforma do cânon 1009, a secular e jamais resolvida
diversidade de condição e a distinção entre os três graus do sacramento da ordem foi
finalmente esclarecida. Entretanto, restam ainda algumas perguntas: qual é a
especificidade do múnus diaconal? Seria possível determinar um elemento que seja
comum a todos os graus? Parece-nos que com a adequação realizada por Bento XVI, ficou
mais difícil definir qual é este elemento. De qualquer maneira, o “Motu Proprio” eliminou
a disparidade entre a norma canônica e os documentos do Concílio Vaticano II e precisou
algumas questões importantes que envolvem o diaconato.

BIBLIOGRAFIA

BÍBLIA DE JERUSALÉM, Paulus, 2ª Ed., São Paulo, 2002

14
Cânon 1008
15
GERALDO, D., O sacramento da Ordem na legislação canônica, em Revista Scientia Canonica, 01
(2013), n 82, Instituto Superior de Direito Canônico, Santa Catarina, p. 139.
16
Cânon 1009
17
Cf. LG 29; CD 15
DENZINGER-HUNERMANN. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e
moral. Paulinas/ Loyola, São Paulo, 2007.

ANTÔNIO, C.O Motu proprio Omnium in Mentem, 01 de julho de 2011, em URL:


<https://www.infosbc.org.br/site/encontros-sbc/1745-o-motu-proprio-omnium-in-
mentem> (04/09/2021).

GHIRLANDA G., O Direito na Igreja. Mistério de Comunhão, Santuário, Aparecida-SP,


2003.

GERALDO, D., O sacramento da Ordem na legislação canônica, em Revista Scientia


Canonica, 01 (2013), n 82, Instituto Superior de Direito Canônico, Santa Catarina.

BENTO XVI. Motu proprio Ominium in mentem, in AAS 102 (2010).

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