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O MUNUS REGENDI DO BISPO DIOCESANO E SUA INCIDÊNCIA


NO PROCESSO BREVE PARA AS SENTENÇAS DE NULIDADE
MATRIMONIAL

Isac Antonio Pereira Parente1

RESUMO: Início do cristianismo, e por direito divino os bispos exercem pessoalmente o poder
judicial. No decorrer da história, a trajetória dos cânones testemunhará que na figura do bispo
repousou desde as primeiras comunidades cristãs certa tutela sobre a indissolubilidade do
matrimônio sacramental. Todavia, ao longo dos séculos, tensões entre a titularidade e o poder
judicante dos bispos diocesanos fizeram com que o Magistério recomendasse aos bispos
julgarem pessoalmente apenas algumas situações específicas. Depois, a própria demanda
pastoral em torno dos bispos comprovou que lhes seria impossível ocupar-se plenamente do
ofício de juiz. Após muitos decênios, o Concílio Vaticano II reformulou e mesmo fixou uma
nova teologia católica sobre o episcopado. Agora, na pessoa do bispo subsiste sacramentalmente
o tríplice múnus de sacerdote, profeta e rei. O presente artigo destaca o ofício de regência (ou
governo) dos bispos. Surgido naturalmente no meio dos fieis, este serviço permitiu-lhes
exercerem aquela função basilar na história das igrejas primitivas, a saber, a de julgar causas.
Neste sentido, a reforma dos processos de nulidade matrimonial promulgada pelo Papa
Francisco apoiou-se justamente no princípio histórico e na premissa canônica do bispo como
juiz nato em sua diocese. Ver-se-á que ao instaurar o processo breviore coram epíscopo essa
premissa eclesial foi digna e licitamente reinstaurada pelo Sumo Pontífice. Com Francisco, o
bispo outra vez se ocupará pessoalmente na administração da justiça para o bem dos fiéis.

PALAVRAS-CHAVE: Episcopado; Munus regendi; Nulidade matrimonial; Reforma


canônica; Papa Francisco.

Introdução

Em virtude da consagração episcopal os bispos recebem a plenitude do sacramento


da ordem. Junto a configuração sagrada está o tríplice ofício de santificar, ensinar e
governar o povo de Deus que lhe foi confiado 2. Destacando o poder de governo do
bispo, afirma-se que ele o exerce para regular a Igreja particular à qual foi enviado
como vigário e legado do próprio Jesus Cristo. Por essa razão, o Concílio Ecumênico
Vaticano II (1962-1965) solenemente define que o bispos possuem o sagrado direito e
também o dever perante o Senhor Jesus de legislar sobre todos os seus súditos, assim
como a missão de julgar e de regulamentar as realidades ligadas ao culto e ao

1
Bacharel em Filosofia pela Faculdade Católica de Fortaleza (FCF). Aluno do Curso de Especialização
em Direito Processual e Matrimonial Canônicos na Faculdade São Basílio Magno (FASBAM), localizada
em Curitiba-PR. E-mail: parenteisac@gmail.com.
2
2

apostolado cristãos. Na mesma linha conciliar, o novo Código de Direito Canônico de


1983 estabelece os bispos diocesanos como juízes de primeira instância em suas Igrejas
locais. Como consequência de uma revalorização sacramental dos ministros ordenados,
o Código é considerado o último documento oriundo do Concílio.
Ainda em seguimento ao impulso do Vaticano II, o Papa Francisco promulgou no
ano 2015, através do Motu proprio Mitis Iudex Dominus Iesus, algumas significativas
mudanças no processo de nulidade matrimonial. Nas normativas canônicas
estabelecidas pelo papa, o acento cai enfaticamente sobre a pessoa do bispo e seu dever
pessoal para com a reta administração da justiça, cujo reflexo concreto se dá no
processo breviore coram episcopo. Ao longo do trabalho, constatar-se-á que o Santo
Padre nada mais fez do que continuar o itinerário histórico perpassado na História da
Igreja e do Direto eclesial, já que os primeiros apóstolos e seus sucessores imediatos
exerceram o poder de julgar situações das mais variadas tipologias, principalmente as
causas envolvendo o matrimonio sacramental, no seio daquelas comunidades de que
assumiram o governo3.

1. Base teológica ao tríplice ofício dos bispos diocesanos: o Concílio Vaticano II

Às vésperas do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), confirmava-se que a


concepção teológico-magisterial do episcopado fora profundamente influenciada pela
tradição medieval. Para a Igreja daquele médio período, o ministério presbiteral era
concebido em função da Eucaristia: único vínculo existente entre os ministros
ordenados (diáconos, padres e bispos). Mesmo a ordem episcopal era compreendida
como uma mera ampliação do sacerdócio (SANTORO, 2005).
Até então a estrutura hierárquica funcionava no seguinte modelo: o presbítero
detinha [...] o ‘poder sacramental ou de ordem’ sobre o corpo de Cristo, isto é, a
eucaristia – enquanto [...] ao bispo correspondia o “poder jurídico” sobre o corpo
místico de Cristo, a Igreja. [...] (SANTORO, 2005, p. 36). Portanto, na Idade Média
migrara-se da Igreja em sua dimensão sacramental, cuja origem remonta aos tempos
primitivos do cristianismo, para a noção de Igreja como uma corporação social
essencialmente marcada pelo jurisdicismo. Essa cisão substanciosa entre sacramento e
ofício permitiu que as realidades inerentes à Igreja; a saber: sacramental e jurídica,
ficassem décadas apartadas uma da outra.
3
cf. Mt 18, 15-18; 1Cor 6, 1-6; todo o livro dos Atos dos Apóstolos.
3

Dessa forma, o exercício da potestade judicial dos bispo manteve-se inalterado em


sua forma rígida até o alvorecer do Concílio Vaticano II, quando desabrochará a noção
do bispo como reflexo dos três poderes auridos de Cristo: a cabeça e o mestre da Igreja.
Outro fato importante é que durante o Concílio muitos bispos solicitaram reforma nos
procedimentos às causas de nulidade matrimoniais. Esse debate perdurou até 1963 e
requereu máxima atenção da então Pontifícia Comissão para a revisão do Código de
Direito Canônico (KRAKOWSKI, 2016).
Quando do Vaticano II, o Sagrado Magistério da Igreja mostrou-se contrário a
qualquer concepção estritamente jurídica do episcopado; recusando em peso o
entendimento medieval da determinação canônica como conditio et fons4 do ministério
episcopal. Ao invés disso, o Concílio entregou à Igreja uma visão teológica do
episcopado como plenitude da ordem sacerdotal. Noutros termos: a sucessão apostólica
perpetuada em cada bispo é transmitida por instituição divina. A partir dessa definição
que o Concílio Vaticano II recuperou a natureza sacramental do ministério episcopal
(SANTORO, 2005).
Implicar assegurar que a sacralidade do episcopado reside na continuidade Cristo-
apóstolos e nos sucessores dos apóstolos. A partir de então, três atividades expressarão
e acompanharão o exercício do ministério episcopal. São também conhecidas na
literatura canônica como o “tríplice ofício” ou “tríplice múnus” de santificar, ensinar e
governar o povo de Deus. Tenha-se em consideração que essa quantidade tríplice de
poderes forma no bispo uma unidade (RABINO, 2017). Em tese, a assembleia dos
padres conciliares defendeu [...] que se é bispo só depois da consagração episcopal e se
pode exercer autenticamente e livremente tal ministério com a condição de estar em
comunhão com todo o colégio e seu chefe, o papa. [...] (SANTORO, 2005, p. 37).
Segundo o bispo e canonista brasileiro Dom Lelis Lara (2017), os Documentos do
Vaticano II devem ser considerados fontes aos cânones que se referem à figura do
bispo, principalmente dois deles a Constituição Dogmática Lumen Gentium5 e o Decreto
Conciliar Christus Dominus6. Mediante o último grau do Sacramento da Ordem Cristo
mesmo ensina, santifica e governa por meio dos bispos 7. No Código de Direito
Canônico Comentado, resumidamente consta que a teologia católica do pós-concílio
instituiu o seguinte

4
Latim. Tradução livre: “condição e fonte”.
5
Cuja abreviatura é LG.
6
Cuja abreviatura conhecida é ChD.
7
cf. LG, n. 21; cf. ChD, n. 2
4

[...] ‘cada um dos Bispos é princípio e fundamento visível da unidade


nas suas respectivas Igrejas’ (Lumen Gentium, n. 23). É sua obrigação
‘promover e defender a unidade da fé e a disciplina comum a toda a
Igreja, contribuindo para o magistério ordinário da Igreja e para a
adequada aplicação da disciplina canônica universal, educando seus
fieis no sentido da Igreja universal e colaborando na promoção de toda
a atividade comum à Igreja" [...] (GOMES, RAMOS, LIMA, 2013, p.
520)

Ainda o Concílio Vaticano II fixa dois traços sobre os quais se assenta a teologia do
episcopado: a sacramentalidade e a colegialidade. A respeito disso, o bispo diocesano
não pode mais ser tido independentemente do colégio episcopal, em cujo centro está o
Bispo de Roma. Portanto, no núcleo do pensamento conciliar está a apostolicidade dos
bispos. Aurindo da rica tradição teológica distribuída nos escritos dos Padres da Igreja,
os prelados participantes do Vaticano II puderam aprofundar a natureza colegial do
episcopado (SANTORO, 2015), os textos da Patrística foram digna e legitimamente
utilizados para
[...] Fundamentar a colegialidade ao nível sacramental, não mais
considerando como realidade de direito eclesiástico ligada ao papa,
mas de direito divino, e devolver ao bispo sua autêntica missão de ser
centrum unitatis na sua Igreja local e instrumentum communionis na
relação entre as Igrejas e na Igreja Católica no seu conjunto, permite
significar o valor mesmo da ministerialidade na Igreja que brota do
sacramento e se pode exercer como justamente a tradição patrística
sempre sustentou - na forma comunal/ colegial. [...] (SANTORO,
2005, p. 40)

Naquelas alturas, o Magistério Católico unanimemente reconhece que a Igreja


precisava de um Direito Canônico [...] mais flexível e personalista que, longe de coagir
a consciência, lhe ofereça suficientes dados para uma formação reta da mesma, para
que o fiel cristão se sinta livre na obediência da lei. (RUIZ, DIÉGUEZ, MORENO,
REY, PRISCO, 2006, p. 62, tradução nossa 8). Com o concílio, passou-se, então, de uma
“[...] Igreja-sociedade à uma Igreja-comunhão, da concepção de Igreja como sociedade
jurídica perfeita, de carácter prevalentemente apologético, jurídico e externo, a uma
Igreja que busca em seu interior reencontrar a consciência que tem de si mesma. [...]”
(Ibid, p. 53, tradução nossa9).

8
“(...) más flexible y personalista que, lejos de coaccionar la conciencia, le ofrezca suficientes datos para
una formación recta de la misma, para que el fiel cristiano se sienta libre en la obediencia de la ley. (...)”
9
“(...) de una Iglesia-sociedad a una Iglesia-comunión, de la concepción de la Iglesia como sometas
mridice perfecta, de carácter prevalentemente apologético, jurídico y externo, a una Iglesia que busca en
su interior re-encontrar la conciencia que tiene de sí misma. (...)”
5

Em verdade, a redação do Novo Código de Direito Canônico (1983) é uma


continuidade à extensa obra conciliar de renovação da Igreja. O CODEX10 não só
representa um dos maiores frutos do Vaticano II, como também um complemento da
reforma interna, um reflexo de uma necessária conversão conciliar. Estabeleça-se,
contudo, de forma clara e incisiva que o Código não é uma espécie de tradução do
concílio em leis; mas, por outro lado, o direito eclesiástico dever de ser interpretado e
aplicado segundo a hermenêutica conciliar da reforma (RUIZ et al, 2006).
Uma outra inovação no Código de Direito Canônico vigente é a sistemática que
possui. Na sua totalidade, os livros do código refletem a Igreja em cunho também
espiritual: Igreja da Palavra de Deus e dos sacramentos e sublimemente a imagem da
Igreja mistério de Comunhão. Daí surgir uma visão espiritual também do bispo
enquanto guardião e dispensador da graça, principalmente nas celebrações litúrgicas 11.
Concepção que influenciou decisivamente na redação do novo Código de Direito
Canônico (RUIZ et al, 2006).
Alguns canonistas percebem resumido no cân. 375 a tese do episcopado como
direito divino. Dispõe-se aqui o conteúdo: “§ 1. Os Bispos, que por instituição divina
sucedem aos Apóstolos, são constituídos Pastores na Igreja pelo Espírito Santo que lhes
foi dado, para serem mestres da doutrina, sacerdotes do culto sagrado e ministros da
governação.” (Codex Iuris Canonici, 1983, p. 120). E o parágrafo subsequente continua
afirmando que: “[...] § 2. Pela própria consagração recebem os Bispos com o múnus de
santificar também o múnus de ensinar e governar, que, todavia, por sua natureza não
podem exercer senão em comunhão hierárquica com a cabeça e os membros do
Colégio” (Ibid, p. 120).
Chamam-no de cânon dogmático justamente por fundamentar a hierarquia católica
na suprema autoridade, isto é, a autoridade divina; e ainda resumir a origem do múnus e
dos poderes episcopais. Acerca do cân. 375, o ordenamento canônico considera-o por
isso a chave mestra para a nova compreensão pós-conciliar do episcopado como Missão
confiada por Jesus aos Apóstolos e, posteriormente, confirmada pela imposição das
mãos, através da ação e da graça Espírito Santo12.
Para além da dimensão espiritual-pastoral, o cân. 375 urge ao bispo cumprir as
obrigações de todos os clérigos, bem como lhe garante usufruir dos direitos que lhe são

10
Abreviatura para o latim: Codex Iuris Canonici, ou simplesmente CODEX.
11
cf. Código de Direito Canônico, cc. 210, 387 e 389
12
cf. LG, nn. 20-21; ChD, nn. 2, 4, 6
6

assegurados13. Esses direitos são originados do próprio tríplice múnus dos bispos:
função de santificar, ensinar e governar (GHIRLANDA, 2003). Presidindo o rebanho
no lugar de Deus, o bispo participa ontologicamente dos três ofícios de Jesus Cristo
mostrados no cân. 375: mestre, pontífice e pastor, pois eles “[...] têm a plenitude do
sacramento da Ordem, e deles dependem, no exercício do seu poder, quer os presbíteros
— que são consagrados [...] para serem cooperadores da ordem episcopal — quer os
diáconos [...]” (ChD, n. 15. Compêndio do Vaticano II. Constituições, Decretos e
Declarações, 1984, p. 412).
O munus docendi14, depende intrinsicamente do anuncio da Palavra de Deus. No cân.
386, §§1 e 2, o ensino do bispo está associado a dois papeis: mestre da fé, com a
exposição do objeto da fé e sua explicação; guarda da fé, com a defesa firme do
depositum fidei 15recebido dos apóstolos e seus sucessores. O Concílio concebe que a
Igreja em [...] sua visibilidade externa, por vontade de Cristo, aparece como una
comunidade hierarquicamente estruturada, tanto a Igreja universal como as Iglesias
particulares e seus agrupamentos [...] (RUIZ, DIÉGUEZ, MORENO, REY, PRISCO,
2006, p. 63, tradução nossa). “[...] os Bispos são, portanto, os principais dispensadores
dos mistérios de Deus, como também ordenadores, promotores e guardas da vida
litúrgica na igreja a si confiada.” (ChD, n. 15. Compêndio do Vaticano
II. Constituições, Decretos e Declarações, 1984, p. 412).
Em relação ao munus santificandi16, o bispo é chamado a viver uma vida santa,
esmerada pelas virtudes teologais e mergulhada simplicidade evangélica. Cabe-lhe fazer
crescer a santidade na vida dos seus fieis, cujo meio eficaz é a celebração dos
sacramentos17. O bispo deve estar no centro e em torno da mesa eucarística presidindo
todas as ações litúrgicas dos fiéis18. Essa constância nos sacramentos como que
obrigaria o bispo a levar uma vida virtuosa e exemplar (DROBNER, 2003). Lembre-se
que,
[...] como cada um realiza sua santidade segundo sua própria
específica vocação, o bispo, considerando o bem de toda a Igreja e não
somente o bem de sua diocese, deve respeitar e promover as diferentes
vocações para os diversos ministérios e para a vida consagrada,
especialmente as vocações para o ministério sagrado e para as missões
[...] (GIANFRANCO GHIRLANDA, 2003, p. 607)

13
cf. Código de Direito Canônico, cc. 273-279
14
cf. LG n. 25; ChD nn. 12, 13, 14
15
Latim. Trad. livre: “depósito da fé”; “tradição”.
16
cf. LG n. 26; ChD n. 15 e cf. Código de Direito Canônico, cân. 387
17
cf. Código de Direito Canônico, cân. 210
18
cf. idem, cc. 387 e 389
7

Guirlanda (2003) acrescenta como dever no ensinamento do bispo a garantia da


ortodoxia católica. As verdades da fé não apenas devem ser anunciadas pela pregação
dos bispos, mas cridas pelos fieis e seguramente aplicadas nos seus costumes. Daí que
de acordo com o exposto no cân. 375 o munus docendi19 ocupe o primeiro lugar no
elenco do tríplice múnus episcopal (SANTORO, 2015). Com relação ao munus regendi
dos bispos diocesanos, ser-lhe-á dedicada particular descrição.

2. O munus regendi dos bispos: dados canônicos e percurso histórico

O novo Código de Direito Canônico, promulgado20 pelo Pontífice João Paulo II em


1983, favoreceu o estabelecimento de uma estável organização judiciária e timidamente
trouxe à tona a visão do Bispo que como iudex natus21 da sua diocese. Enquanto tal, o
bispo é chamado não só ao supervisionamento do tribunal canônico; mas pede-se lhe
que seja visto como garante de respeito pela justiça e responsável por seu
funcionamento, sobretudo nos casos relativos à causa matrimonial (RABINO, 2017). A
esse respeito, o Código de 1983 entende o processo de declaração de nulidade
matrimonial como um
[...]A legislação não prevê qualquer possibilidade especial para o
Bispo de intervir no processo ou qualquer forma encurtada do
processo, exceto para o processo documental. (KRAKOWSKI, 2016,
p. 194, tradução nossa22)

O Código elucida que o bispo representa a Cristo, sendo seu enviado mesmo à Igreja.
Ele não é um súdito ou emissário do Papa. Não obstante o desenvolvimento do primado
de Roma e do Papa sobre as demais Igrejas particulares estar ainda em crescimento no
séc. II, a potestas23 do bispo fora considerada desde muito cedo independente de outra
autoridade que não a divina, daí o poderio episcopal ter sua natureza imediata
(GHIRLANDA, 2003). Entretanto, “a jurisdição não é um poder propriamente dito, mas
um ato mediante o qual a autoridade legitima o campo de exercício de poderes

19
cf. Código de Direito Canônico, cân. 386
20
Através da Constituição Apostólica Sacrae Disciplinae Legis, datada de 25 de janeiro de 1983
21
Latim. Trad. livre: “juiz nato”, ou “juiz natural”.
22
“(...) processo specciale, per cui si applica anche le norme del processo ordinario contezioso, le cause
vengono tratte per la via giudiziale. Ovviamente il CIC 1983 ribadisce la normativa stabilita da Papa
Benedetto XIV di un obbligo della doppia conferma sentenza. La legislazione non prevede nessuna
speciale possibilità per il Vescovo per intervenire nel processo o nessuna forma abbraviata del processo,
ecceto il processo documentale.”
23
Latim. Trad. livre: “potestade”, ou “poder”.
8

preexistentes ou recebidos de outro modo, ou seja, através da ordenação. [...]


(SANTORO, 2005, pp. 37-38). Esse poder de governo, como mencionado no cân. 391 é
[...] legislativo: [...] exercido só pessoalmente, ainda que em princípio
não esteja excluída sua delegação, e salvo o fato de que o bispo não
pode dar uma lei que seja contrária ao direito superior (c. 135, §2);
executivo: é exercido quer pessoalmente quer por meio de outros, que
podem ter poder ordinário vigário ou delegado (cc. 135, §4; 136-144):
vigário geral ou episcopal (cc. 475, § 1; 476), chanceler (c. 482, § 1),
notário (c. 483, § 1), ecônomo (c. 494, § 3); [...] judiciário: é exercido
quer pessoalmente quer por meio de outros, que podem ter poder
ordinário vigário, como o dos vigários judiciais e dos outros juízes, ou
delegado para executar os atos preparatórios de um decreto ou de uma
sentença (cc. 135, § 3; 1419-1421). [...] (GHIRLANDA, 2003, pp.
604-605)

Propositadamente, a Constituição Dogmática Lumen Gentium elenca em terceiro e


último lugar o munus regendi 24dos bispos no terceiro lugar da lista das tria munera25.
Igual ordem de enumeração dos ofícios se reflete no cân. 375 do Código de Direito
Canônico (1983). Com isso, o concílio quis realçar a dimensão serviçal no ministério
episcopal, [...] encargo que o Senhor confiou aos pastores do Seu povo é um verdadeiro
serviço, significativamente chamado ‘diaconia’ ou ministério na Sagrada Escritura [...]
(LG, n. 24). A mesma Constituição, no número 21, cita o seguinte: “[...] na pessoa dos
Bispos, assistidos pelos presbíteros, está presente no meio dos fiéis o Senhor Jesus
Cristo, pontífice máximo. [...]” (Compêndio do Vaticano II. Constituições, Decretos e
Declarações, 1984, p. 62) e continua: “Sentado à direita de Deus Pai, não deixa de estar
presente ao corpo dos seus pontífices. [...]” (Ibid, p. 62).
Quando a educação dos fies o exigir, a fim de cumprir eficazmente o mandato
canônico, o bispo servir-se-á da autoridade e do poder sagrado que lhe revestem (LG, n.
27). Que ele se esqueça de que a garantia dos direitos dos fieis tem por exigência e
repousa na submissão de todos, inclusive do próprio bispo, às leis canônicas. Para
poderem os bispos “[...] atender melhor ao bem dos fiéis, segundo a condição de cada
um, procurem conhecer-lhes bem as necessidades, dentro das circunstâncias sociais em
que vivem, recorrendo aos meios convenientes, sobretudo à investigação social. [...]”
(ChD, n. 16. Compêndio do Vaticano II. Constituições, Decretos e Declarações, 1984,
p. 413)
Outro documento magisterial digno de na esteira do Concílio Vaticano II é o
Diretório para o Ministério Pastoral dos Bispos, intitulado de Apostolorum

24
Latim. Trad. livre: “ofício de governar” ou “ofício de governo”.
25
Latim. Trad. livre: “três atividades”.
9

Successores. O Documento emanado pela Congregação para os Bispos é dedicado


especificamente ao ministério pastoral dos bispos. Ele explicita as maneiras adequadas
de ação no exercício diário do ministério episcopal, indicando maior atenção ao
manuseio do Bispo com o Direito Canônico, a fim de que esse interesse se torne um
26
modo ulterior de se garantir o favor matrimonii. (RABINO, 2017). Como juiz
prudente, recomenda o Diretório que
[...] julgue o Bispo segundo aquela sapiente equidade canónica
inerente em toda a organização da Igreja, tendo perante o seu olhar a
pessoa, que em todas as circunstâncias será ajudada para alcançar o
seu bem sobrenatural, e o bem comum da Igreja. [...]
(CONGREGAÇÃO PARA OS BISPOS. Diretório para o Ministério
Pastoral dos Bispos: Apostolorum Successores” - Sucessores dos
Apóstolos, 2005, n. 66, p. 58)

Pois, o Diretório Apostolorum Successores demonstra valoração ao Direito da Igreja,


estimada encontrada especialmente no respeito prescrito pelo documento às normas
estabelecidas e exibindo uma breve síntese do percurso traçado pela ciência canonística,
até o cume da nova codificação de 1983 Já o n. 62 do Diretório adverte o modo pelo
qual o bispo diocesano desempenhará uma saudável aplicação da lei eclesiástica em sua
Diocese: apoiando-se nos princípios da justiça e da legalidade. Seguramente essa
postura permitirá que o bispo governe longe de esquemas ou perspectivas subjetivas,
grande parte contrárias à real necessidade eclesial. (RABINO, 2017). De fato,
O Bispo observe e faça observar as normas processuais estabelecidas
para o exercício do poder judicial, pois ele bem sabe que tais regras,
longe de serem um obstáculo meramente formal, são um meio
necessário para a verificação dos factos e a obtenção da justiça (cf. cc.
135 e 391) (CONGREGAÇÃO PARA OS BISPOS. Diretório para o
Ministério Pastoral dos Bispos: Apostolorum Successores” -
Sucessores dos Apóstolos, 2005, n. 68, p. 60)

Os dois milênios de história eclesiástica aportam a evolução do ius canonicumm27


como algo homogêneo. Seja logo no séc. I d. C. quando do Concílio de Jerusalém, seja
nos séculos XI e XII, quando houve certa institucionalização do poder judicante dos
bispos28, ainda que o exercício da autoridade se tenha dado por meio de outras figuras
jurídicas ou de estruturas como o sínodo diocesano. (RABINO, 2017). Nessas duas
instituições,

26
Expressão clássica na doutrina canônica que significa “o matrimônio goza do favor do direito”, ou seja,
o matrimonio é uma instituição protegida pela lei. cf. cân. 1060
27
Latim. Trad. livre: “lei canônica”, ou mesmo “doutrina canônica”.
28
Mesmo não havendo ainda no séc. III radical diferenciação jurídica entre o conselho de anciãos
(presbíteros), os servidores das mesas e dos pobres (diáconos) e os epíscopos.
10

[...] a jurisdição sinodal e o arquidiaconato - além de poder já intuir os


futuros desenvolvimentos da justiça episcopal, pode-se ainda
aproveitar os sinais de uma consciência clara: o Bispo sozinho não é
capaz de exercer, o tempo inteiro e pessoalmente, todos as atribuições
do próprio ofício. [...] (RABINO, 2017, p. 18, tradução nossa29)

Progressivamente, os pastores das Igrejas particulares serão aconselhados a não


exercitarem per si o ofício de juízes nas causas judiciais, especialmente àquelas de
espécie matrimonial. Neste sentido, alguns aspectos correlativos à figura do bispo como
juiz próprio na Diocese encontram eco na história da doutrina canonística. Aliado a isso
se estrutura uma organização eclesial cuja incumbência é a administração da justiça,
mas sempre submetida à autoridade do bispo. Ver-se-á que esta é uma temática sempre
nova et vetera30 no âmbito eclesiástico.
Mediante o exposto anteriormente, tem-se que o tríplice múnus garante o exercício
da potestade judicante do bispo para com seus diocesanos. Nas primeiras comunidades
cristãs, era bastante comum apelar à justiça e à santidade do bispo. Padres como Inácio
de Antioquia, Basílio de Cesareia, Ambrósio de Milão e Agostinho de Hipona
testemunham um imenso fluxo de contendas a serem resolvidas pelo bispo em reuniões.
[...] os testemunhos diretos dos Bispos dos primeiros séculos
descrevem um “quase irreprimível fluxo de contendas perante o
tribunal episcopal”, favorito não somente pela acima mencionada
acessibilidade do juízo, mas ainda pelo notável prestigio do qual
gozavam os pastores. Se trata de fonte de grande importância, seja
pela sua autoridade, seja porque é fruto daqueles que, em primeira
pessoa, deveriam supervisionar a administração da “justiça do Bispo”.
[...] (RABINO, 2017, p. 11, tradução nossa31)

Estes momentos apelativos aconteciam em forma de audiência e serviam ao bispo


para escutar os fieis, para resolver contendas de toda índole geradas entre eles ou entre
eles e o clero, ou mesmo o clero entre si. Nessas audiências episcopais, a sentença final
emitida era considerada como uma resposta divina à situação discutida. As reuniões em

29
“(...) la giurisdizione sinodale e l’arcidiaconato - oltre a potersi già intuire i futuri sviluppi della
giustizia episcopale, possono anche cogliersi i segni di una chiara consapevolezza: il singolo Vescovo non
è in grado di esercitare, a tempo pieno e personalmente, tutte le attribuzioni del proprio ufficio. Nei
giudizi era sempre stato assistito, come si è visto, da altri chierici, ma pur sempre cercando di garantire la
propria presenza effettiva. Così non può più essere: è necessario, appunto, tanto circondarsi di figure
ausiliarie, quanto ‘ottimizzare’ le proprie attività (...)”
30
Latim. Trad. livre: “nova e antiga”.
31
“(...) le dirette testimonianze di Vescovi dei primi secoli descrivono un ‘quasi inarrestabile flusso di
contendenti davanti ai tribunali episcopali’, favorito non solo dalla predetta accessibilità del giudizio, ma
anche dal notevole prestigio di cui godevano i Pastori. Si tratta di fonti di grande importanza, sia per la
loro autorevolezza, sia perché prodotte da coloro che, in prima persona, dovevano sovrintendere
all’amministrazione della ‘giustizia del Vescovo’. Tuttavia le testimonianze in questione, a ben vedere,
sono vere e proprie ‘lamentele’ dei Vescovi per l’ingente dispendio di tempo e di forze provocato dalla
soluzione delle controversie. (...)”
11

torno do episco eram importantes porque, além de garantirem a equidade no processo


levantado, procuravam superar a concepção de justiça como mera restauração de danos.
Mais do que isso, a Igreja pretendia estabelecer uma nova realidade sobrenatural: o mal,
sinônimo da injustiça, não apenas era detectado nos casos, mas superado pela atuação
da justiça cristã mediante a Igreja. (RABINO 2017).
Ora, o precedente histórico da episcopalis audientia32 exemplifica uma progressiva
apropriação do poder eclesial por parte dos bispos, fato testemunhado pela história
particularmente na Idade Média. Embora [...] seja o único legitimo juiz, o bispo,
todavia, evite de julgar sozinho as causas e deve, ao invés, fazer-se sempre assistir pelo
seu clero [...]. (RABINO, 2017, p. 4, tradução nossa 33). Por meio das sentenças ali
emanadas, eram de fato superadas as rivalidades, pois o bispo tinha direta filiação com o
poder divino.
Por um lado, coube à Igreja suprir a potestade de regime do fragilizado Império
Romano; por outro, o já “recuperado” Império Constantino-Teodosiano concedeu livre
incidência da Igreja em casos envolvendo seus fiéis. Ainda mais interessante é observar
que no século IV a atividade intermediária da Igreja se institucionaliza pelos poderes
públicos romanos através da episcopalis audiencia que é reconhecida com um mandato
imperial neste “primeiro direito” eclesiástico em um Império Romano que
progressivamente abandonava o paganismo.
No período sucessivo (séc. VIII-IX), o da queda do Império do Ocidente à época
carolíngia, a administração da justiça em âmbito matrimonial ganha certo revelo.
Todavia, somente na idade medieval aperfeiçoam-se os “tribunais seculares”, de tal
forma que o refinamento do estudo na área processual permite que nele sejam também
abordadas as questões relacionas ao vínculo conjugal dos católicos. A partir do séc. XII
testemunha-se uma nova forma de representação do bispo no exercício da jurisdição: a
oficialidade. (Krakowski, 2016). Como consequência
[...] dessa novidade o Bispo – o Pastor – se liberta progressivamente
de alguns encargos e de algumas obrigações. No Medievo existe um
princípio nullum divortium sine iudicio Ecclesiale, que selava a defesa
da indissolubilidade e do caráter propriamente espiritual do juízo. A

32
Instituição posteriormente oficializada pelo Imperador Constantino em 318 d. C., apenas 5 anos após a
promulgação do Edito de Milão. Sucessivamente, a episcopalis audientia foi aperfeiçoada pelos
imperadores Arcadio, Honório, Teodósio e Justiniano. Como consequência disso, as sentenças
eclesiásticas obtiveram reconhecimento civil.
33
“(...) benché sia l’unico giudice legittimo, il vescovo deve tuttavia evitare di giudicare in solitudine e
deve invece farsi sempre assistere dal proprio clero. (...)”
12

competência dos bispos em matéria matrimonial se retinha exclusiva,


mas não absoluta. (KRAKOWSKI, 2016, p. 192, tradução nossa34)

Em comparação com as igrejas primitivas, o número dos cristãos havia aumentado


exorbitantemente. Nalgumas diocese da Idade Média não existia sequer uma adequada
demarcação territorial. Sem a frequente visita canônica pastoral do bispo, dada a
desproporcionada extensão territorial de sua diocese, aconteceram abusos das mais
variadas espécies: civis, disciplinares, et cetera. (RABINO, 2017)
Além disso, a demanda pastoral cobrada aos bispos permitiu que o arquidiácono
invadisse cada vez mais o âmbito do poder episcopal. Dever-se-ia, agora, delimitar o
poder que ele havia adquirido. Ao longo do tempo, juntamente a um presumível intento
de garantir a justiça em si e para garantir a devida atenção ao direito matrimonial em
particular, esses foram os motivos que inspiraram os papas a constituir vigários
estáveis aos bispos, permitindo-os munirem-se de uma nova figura auxiliar: o oficial 35,
uma espécie de seu colaborador genérico, mas estável. No final do séc. XV, o Oficial
junto ao bispo e a outros colaboradores formava um único tribunal com poderes
absolutos e deexclusiva competência nas causas matrimoniais. E daquela
[...] supremacia se passa a um quase monopólio, que, por muitos
séculos, consentirá à Igreja ser o único juiz não só das questões
relativas ao ligame matrimonial, em si, mas ainda de matéria conexa,
quais a filiação ou as relações patrimoniais entre os cônjuges.
(RABINO, 2017, p. 16, tradução nossa36)

Doutra parte, mostrou-se que mesmo o bispo bem formado em ciência canônica não
conseguiria, apesar da melhor intenção, não conseguia conciliar as muitas demandas do
ministério episcopal e o exercício ativo da função judicante. Com efeito, se reforça a
modalidade de exercício do munus regendi per alios37. No decorrer do tempo, a figura
do Oficial tornou-se consagrada e foi passando por atualizações dentro dos limites da
própria função a que fora dado cumprir: cooperar com o Bispo na administração da
justiça. Mas, consciente de que seu poder pode ser também exército pelo tribunal da
34
“(...) di queste novità il Vescovo – il Pastore - si libera progressivamente di alcuni oneri ed incombenze.
Nel Medioevo esiste un principio nullum divortium sine iudicio Ecclesiale, che suggellava la difesa
dell’indissolubilità e il carattere propriamente spirituale del giudizio. La competenza vescovile in materia
matrimoniale si ritenva esclusiva ma non assoluta.”
35
O Oficial é um clérigo escolhido pelo bispo. Para além de alguma jurisdição, o Oficial exerce um
mandato também espiritual enquanto dignatário eclesiástico. Mas se trata de um clérigo sem nenhuma
parcela de jurisdição própria, ele exercita sua atribuição graças ao mandato conferido pelo bispo. Dessa
forma, o arquidiácono e o oficial diferem radicalmente um do outro, pois o primeiro começava a atribuir a
si um poder legislativo próprio do epíscopo, daí a supressão de seu encargo.
36
“(...) dalla supremazia si passa a un quase monopolio, che, per più secoli, consentirà alla Chiesa di
essere unico giudice non solo delle questioni relative al legame matrimoniale in sé, ma anche di materie
connesse, quali la filiazione o le relazioni patrimoniali tra coniugi.”
37
Latim. Trad. livre: “ofício de reger por meio de outrem”.
13

Diocese e por outros operadores judiciais por ele nomeados, o Bispo vele para que os
atos do tribunal se desenvolvam em consonância com os retos princípios de
administração da justiça na Igreja. (RABINO, 2017). Dessa forma,

[...] O sistema per alios é, portanto, historicamente consolidado e fruto


de um longo desenvolvimento; um percurso que as codificações
medievais haviam finalmente levado à maturação, assegurando definir
com cuidado os requisitos e os deveres dos operadores dos tribunais,
com particular resguardo às causas matrimoniais. (RABINO, 2017, p.
41, tradução nossa38)

No medievo mostra-se particularmente a vivacidade de uma nova forma de justiça


eclesiástica. O Concílio de Trento (1545-1563) apresentou como um dos resultados
mais significativos um novo modelo, por assim dizer, de Bispo. Em Trento a atenção do
episcopado estava voltada à normatização da Igreja. Em geral, os bispos reunidos em
capítulo reclamavam por maiores explicitações acerca dos seus poderes. De acordo
com os prelados católicos, os séculos mais recentes haviam sido testemunhas gritantes
de uma perturbationem in episcoporum iurisdictione39 causada em peso pelos
arquidiáconos. (RABINO, 2017)
O chamado “bispo tridentino” conseguiu liberar-se da sua intervenção pessoal nas
causas matrimoniais e criminais, mas não pôde transcurar da própria responsabilidade
judicial. Em particular, as causas matrimoniais devem ser reservadas à sua competência,
ainda que não estejam mais atreladas exclusivamente à sua resolução pessoal. Trento
acabou estabelecendo os critérios para a nomeação de um corpo de juízes qualificado,
bem como estabeleceu a fundação dos tribunais eclesiásticos. (RABINO, 2017). Dessa
forma, o reconhecimento da jurisdição episcopal foi desatrelado do exercício pessoal do
juízo por parte dos bispos, mas agora ganhava força o conferimento da potestade aos
juízes delegados40 (LLOBELL, 2016). Em suma,
[...] Trento reafirmou a doutrina sobre o matrimonio e reafirmou a
exclusividade da jurisdição eclesiástica nas causas espirituais. No
âmbito da disciplina processual o Concílio de Trento estebelece que as
causas de nulidade de matrimonio devem ser julgadas pelo Tribunal
do Bispo diocesano, isso significa perante o Bispo diocesano, não ao
invés pelos outros juízes inferiores que desempenham seus serviços no

38
“(...) Il sistema per alios è perciò storicamente consolidato e frutto di un lungo rodaggio: un percorso
che le codificazioni novecentesche avevano infine portato a maturazione, provvedendo a definire con cura
i requisiti e i doveri degli operatori dei tribunali, con particolare riguardo alle cause matrimoniali.”
39
Latim. Trad. livre: “perturbação na jurisdição episcopal”.
40
cf. cc. 1419-1421
14

território da diocese (arquidiácono e diácono). [...] (KRAKOWSKI, p.


192, 2016, tradução nossa41)

A visão de Trento viria a ser amplamente reforçada pelos cânones do Código Pio
Beneditino de 1917: ainda que o bispo seja o juiz natural da diocese e possa julgar
sempre, ele é obrigado a nomear os vigários judiciais 42. Ademais, a codificação de 1917
recebeu e tornou estável o modelo delineado por Trento. Na normativa hoje em desuso,
processo de nulidade matrimonial será abordado pelos cânones 1960-1992. Novamente,
a competência pessoal do ordinário do lugar é prevista apenas às causas especiais.
Recomenda-se, para tanto, a formação do tribunal colegial geralmente formado por
presbíteros (KRAKOWSKI, 2016).
Em contrapartida, o Concílio Vaticano II percebeu a necessidade de retornar “às
mãos do bispo” muitas competências centralizadas na Sé Apostólica. Seguindo a
teologia do episcopado, na esteira da história do cristianismo primitivo, o Código de
Direito Canônico de 1983 prezou pelo envolvimento pessoal do bispo na administração
de todos os setores em sua Igreja particular. Dessa forma, o desenvolvimento da ciência
canônica mostrou ser infundada qualquer controversa levantada à participação do bispo
diocesano como juiz único no processo breve para as causas de nulidade matrimonial,
instituído em pelo então Sumo Pontífice Papa Francisco.

3. Pressupostos à reforma do processo de nulidade matrimonial

Antes de tudo, é indispensável considerar que a reforma normativa promulgada pelo


Papa Francisco através dos documentos em forma de Motu proprio: o Mitis Iudex
Dominus Iesus (para a Igreja Católica de rito romano) e o Mitis et Misericors Iesus
(para a Igreja Católica de rito oriental), mudança tornada pública aos 8 de setembro de
2015, não desponta como um fenômeno isolado, à margem do costume canônico ou à
margem da pastoral católica (ESTEBAN, 2016). O Mitis Iudex Dominus Iesus
[...] é uma Carta apostólica [...] que contém uma extensa introdução e
6 artigos que, a modo de epígrafes, dão nova redação a os 21 cânones
codiciais integrantes do Livro VII do Código de 1983, Parte III,
Título, capítulo I, sobre as causas para declarar a nulidade do
matrimonio (cc. 1671-1691), que permanecem integramente que são
41
“(...) Trento ha riaffermato la dottrina sul matrimonio e ribadito l’esclusività della giurisdizione
ecclesiastica nelle cause spirituali. Nell’ambito della disciplina processuale il Concilio di Trento
stabilisce, che le cause di nullità del matrimonio devono essere giudicate dal Tribunale del Vescovo
diocesano, ciò signifi ca davanti al Vescovo diocesano, non invece dagli altri giudici inferiori che
svolgevano loro servizio nel teritorio della diocesi (arcidiaconi o diaconi) (...)”
42
Exercem o poder ordinário, mas na forma vicária; cf. cân. 131
15

integramente substituídos pela nova normativa. (GARCÍA, 2015, p.


627, tradução nossa43)

Pelo contrário, a reforma de Francisco localiza-se dentro do amplo contexto da


pastoral familiar. Dentre as várias prerrogativas elencadas, a III Assembleia geral
extraordinária do Sínodo dos Bispos sobre a família 44 solicitou que se estudasse uma
possível via administrativa mais breve para os processos de nulidade matrimonial sob a
responsabilidade dos bispos diocesanos. Antes do Sínodo, foram enviados questionários
às conferencias episcopais do mundo inteiro sobre a atual situação e os desafios hoje
enfrentados pelas famílias católicas (ESTEBAN, 2016).
No que diz respeito ao sacramento do matrimônio, as respostas dos bispos ao redor
do orbe majoritariamente solicitaram duas coisas: uma maior simplificação e uma maior
celeridade nos processos de nulidade matrimonial. Já dois meses antes da assembleia, o
Papa Francisco havia instituído uma comissão especial para a reforma dos processos de
nulidade matrimonial, sendo a comissão presidida pelo Decano do Tribunal da Rota
Romana.
[...] Um grande número de padres sublinhou a necessidade de tornar
mais acessíveis e ágeis, possivelmente totalmente gratuitos, os
procedimentos para o reconhecimento dos casos de nulidade. Entre as
propostas se indicaram: deixar atrás a necessidade da dupla sentença;
a possibilidade de determinar una via administrativa sob a
responsabilidade do bispo diocesano; um juízo sumário a colocar em
seguimento os casos de nulidade notória. Porém, alguns Padres se
manifestaram contrários a estas propostas porque não garantiriam um
juízo seguro. Cabe ressaltar que em todos esses casos se trata de
comprovação da verdade acerca da validez do vínculo. (ESTEBAN,
apud RELATIO SYNODI, 2016, p. 101, tradução nossa45)

No contexto geral da reforma, nem mesmo o processo abreviado tem como


finalidade aumentar a quantidade de sentenças matrimoniais nulas. Ainda que de modo
indireto, também no processo breve subjaz o critério de facilitar o acesso dos fiéis à

43
“(...) es una Carta apostólica en forma de motu proprio dada por el Papa Francisco, que contiene una
extensa introduc-ción y 6 artículos que, a modo de epígrafes, dan una nueva redacción a los 21 cánones
codiciales integrantes del Libro VII del Código de 1983, Parte III, Título I, capítulo 1, sobre las causas
para declarar la nulidad del matrimonio (cc.1671-1691), que quedan íntegramente reemplazados por la
nueva normativa.”
44
Celebrada entre os dias 5-19 de outubro de 2014 no Vaticano-IT
45
“Un gran número de padres subrayó la necesidad de hacer más accesibles y ágiles, posiblemente
totalmente gratuitos, los procedimientos para el reconocimiento de los casos de nulidad. Entre las
propuestas se indicaron: dejar atrás la necesidad de la doble conforme; la posibilidad de determinar una
vía administrativa bajo la responsabilidad del obispo diocesano; un juicio sumario a poner en marcha en
los casos de nulidad notoria. Sin embargo, algunos Padres se manifiestan contrarios a estas propuestas
porque no garantizarían un juicio fiable. Cabe recalcar que en todos estos casos se trata de comprobación
de la verdad acerca de la validez del vínculo.”
16

justiça eclesial, uma das finalidades na linha dos trabalhos sinodais (GARCÍA, 2015).
Portanto, a finalidade dessa reforma processual é direta e substancialmente pastoral.
Com efeito, a fim de tornar mais ágil o processo de nulidade matrimonial,
desenvolveu-se uma forma de processo breviore coram episcopo46 para ser aplicado
somente naqueles casos os quais a é evidente 47 a acusada nulidade do matrimonio.
Trate-se de uma nova tipologia processual, um processo especial que pode ser uma
maneira de tornar menos demorados alguns casos bem delineados. A rapidez nos
processos dar-se-ia com o fim de torná-los mais acessíveis e, consequentemente, menos
dolorosos, aos fieis cujo casamento havia fracassado ou àqueles fieis em situação
irregular e que duvidavam da validez do sacramento contraído. (ESTEBAN, 2016). Em
suma,
Os seus passos respeitam o modelo geral do processo
ordinário, apresentação do libelo (aqui com uma alteração
significativa que veremos em seguida), análise do mesmo, aceitação,
nomeação de um instrutor e assessor, citação das partes, formulação
do dubium, uma única sessão de instrução e recolha de testemunhos e
provas, envio ao Bispo diocesano a quem compete julgar. Se
for afirmativa a nulidade a sentença passa a executiva, se não for o
bispo remete a causa para o processo ordinário. (BIZARRO, 2021, p.
33)

Não obstante o referido desiderium48 dos bispos e do papa por celeridade jurídica, a
configuração do processo breviore enquanto processo judicial cuja natureza é
declarativa termina protegendo adequadamente o princípio da indissolubilidade
matrimonial. Isso faz com que seja evitada qualquer interpretação desta novidade
processual em chave dissolutiva. Sobretudo porque o cân. 1683 fixa os pressupostos que
autorizarão a utilização da via processual breve, são tais os requisitos: 1. Que a demanda
seja apresentada por ambos nos cônjuges ou por um com o consentimento do outro; 2.
Que concorram circunstâncias e provas que tornem patente a nulidade do matrimonio e
não requeiram uma instrução mais por menorizada. (GARCÍA, 2015).

46
Dada a vastidão do conteúdo canônica presente na reforma instituída pelo Papa Francisco, optou-se por
não se adentrar profundamente nem na carta apostólica e nem no processo breviore em si. Todavia,
acreditamos haver exposto o suficiente para entendimento do tema.
47
Alguns exemplos de evidente nulidade citados no Mitis Iudex art. 14, são eles: a falta de fé que pode
gerar a simulação do consentimento ou o erro que determina a vontade; a brevidade da convivência
conjugal; o aborto provocado para impedir a procriação; a obstinada permanência em uma relação
extraconjugal no momento das núpcias ou em um tempo imediatamente sucessivo; a ocultação dolosa da
esterilidade ou de uma grave enfermidade contagiosa ou de filhos nascidos de uma relação anterior ou de
uma prisão; um motivo para casar-se totalmente estranho a vida conjugal ou pela gravidez imprevista da
mulher; a violência física exercida para arrancar o consentimento e a falta do uso da razão comprovada
por documentos médicos.
48
Latim. Trad. livre: “desejo”.
17

Trata-se de dois requisitos concorrentes, ambos necessários para a


legítima utilização deste processo, isso evita que se possa interpretar
esta via como uma nulidade “de mútuo acordo”, cuja concessão
dependa do interesse de ambas partes em obtê-la, posto que, em
qualquer caso, o determinante será que a nulidade se deduza com
claridade das provas aportadas. Pressuposta, portanto, tal
conformidade dos cônjuges nos fatos fundantes da nulidade – não
simplesmente na vontade de obter essa – deveram, além disso, apontar
com o pedido provas suficientes da mesma, que façam supérflua uma
instrução demorada do processo e que permitam ao bispo alcançar a
certeza moral da nulidade do matrimonio (GARCÍA, 2015, p. 631,
tradução nossa49)

Um dos princípios inspiradores à reforma do processo é manifestado pelo


Pontífice no mutuo próprio, quando no proêmio se reconhece a decepção de muitos fieis
ante às estruturas jurídicas da Igreja. Dessa forma, a distância física e moral da mesma
Igreja deve ser revertida em caridade e misericórdia, símbolos da acessibilidade aos
filhos desamparados. A reforma enseja, antes de tudo, uma mudança de perspectiva e de
espírito na dimensão jurídica da Igreja. Essa “chamada à conversão pastoral das
estruturas eclesiásticas” está difusamente presente no Mutuo próprio, encontrado tanto
da Introdução quanto nas orientações inscritas nas páginas finais. Ao facilitar o acesso
dos fieis, a Igreja oferece-lhes um concreto remédio e termina por salvaguardar a
verdade e da indissolubilidade do matrimonio (GARCÍA, 2015).
[...] além disso, como se já disse, esta conversão e esta reforma das
estruturas processuais eclesiais exigirá também uma cuidadosa
formação –jurídica, pastoral e humana– de todos os membros e
cooperadores nesta missão. Igualmente, se recorda na Introdução o
dever das Conferencias Episcopais de apoiar e promover, em união
com os bispos, a conversão que supões esta reforma e que exigirá uma
profunda mudança de perspectivas e método na tramitação dessas
causas, sem prejuízo de salvar sempre sua essencial estrutura jurídica
e as garantias processuais, salvaguarda dos direitos dos fieis e de um
mais adequado descobrimento da verdade do matrimonio. (GARCÍA,
2015, p. 631, tradução nossa50)

49
“Se trata de dos requisitos contrapuestos, ambos necesarios para el uso legítimo de este proceso, por lo
que se evita interpretar de esta forma una nulidad “de común acuerdo”, cuya concesión depende del
interés de ambas partes en obtenerla, ya que, en todo caso, lo determinante será que la nulidad se deduzca
claramente de la prueba presentada. Supuesta, por tanto, tal conformidad entre los dos cónyuges, los
hechos que fundamentan la nulidad -y no sólo la voluntad de obtenerla- deben, además, acreditar
suficientemente, a petición de los mismos, que una instrucción tardía en el proceso es superflua y que
permite al obispo alcanzar la certeza moral, anula el matrimonio”
50
“(...) además, como se ha dicho, esta conversión y esta reforma de las estructuras procesales eclesiales
exigirá también una cui-dadosa formación –jurídica, pastoral y humana– de todos los miembros y
cooperadores en esta misión18. Igualmente, se recuerda en la Intro-ducción el deber de las
Conferencias Episcopales de apoyar y promover, en unión con los Obispos, la conversión que supone esta
reforma y que exigirá un profundo cambio de perspectiva y método en la tramitación de estas causas, sin
perjuicio de salvar siempre su esencial estructura ju-rídica y las garantías procesales, salvaguarda de los
derechos de los fie-les y de un más adecuado descubrimiento de la verdad del matrimonio.
18

3.1. O bispo diocesano como figura central no processo breve

Considerando o risco que pode decorrer da agilidade de um abreviado juízo, a fim de


não seja posto em perigo o princípio canônico da indissolubilidade do casamento,
determinou a Igreja que para tal processo o Bispo mesmo seja-lhe constituído Juiz. Ora,
o Bispo é garante e, ao mesmo tempo, servo fiel da doutrina e da unidade acerca do
matrimonio católico. No ministério episcopal se reconhece a melhor defesa aos vínculos
matrimoniais validamente celebrados. (GARCÍA, 2015). Em suma,
Com a reforma proposta pelo MIDI, a autoridade do Bispo
diocesano é sublinhada. A ele já cabe a potestade de julgar, mas pode
exercitar esta potestade através do Vigário judicial e pelos juízes do
seu tribunal, ou no do tribunal interdiocesano. Pede-se que
cada Bispo, tanto quanto lhe for possível, «constitua um tribunal
diocesano para as causas matrimoniais»7 (cân. 1673 §2) ou se junte a
um tribunal vizinho ou interdiocesano. A novidade consiste em
atribuir ao Bispo diocesano uma específica tipologia processual. Ou
seja, que seja ele a julgar as causas que, segundo os cc. 1683-
1688, sejam apresentadas no seu tribunal. (BIZARRO, 2021, p. 25)

Outro princípio inspirador à reforma de Francisco foi a recuperação da


importância do bispo diocesano no cumprimento do exercício pessoal de seu munus
regendi (GARCÍA, 2015). Conforme o disposto no motu próprio, a atuação do Bispo
diocesano na resolução do processo é uma atuação essencialmente judicial
fundamentada sobre a concepção teológico-eclesial de que o bispo é, por direito e
condição próprias, Juiz nato da diocese. Esse princípio
[...] constitui a concreta atuação dos ensinamentos do Concílio
Vaticano II e de quanto previsto pela Congregação para os Bispos no
Diretório para o ministério pastoral dos Bispos, cujo conteúdo afirma
que a responsabilidade de governar a diocese e atrelada a pessoa do
Bispo, ainda se normalmente ele exerça o poder judicial per alios,
mediante o próprio tribunal (can. 1419 CIC) ou, junto a outros bispos,
em um Tribunal interdiocesano (can. 1423 § 2 CIC) (VENTRONE,
2018, p. 2, tradução nossa51)

Desse modo, o motu proprio torna indispensável o papel do Bispo dentro da reforma
processual. Todavia, a missão do bispo não se esgota em fundar, manter e sustentar
economicamente o tribunal eclesiástico de sua diocese. Mais além: ele é convocado a

51
“(...) costituisce la concreta attuazione degli insegnamenti del Concilio Vaticano II e di quanto previsto
dalla Congregazione per i Vescovi nel Direttorio per il ministero pastorale dei Vescovi, al cui interno è
stato affermato che la responsabilità di governare la diocesi è affidata alla persona del Vescovo, anche se
normalmente egli esercita il potere giudiziale per alios, mediante il proprio tribunale (can. 1419 CIC)
oppure, insieme ad altri Vescovi, in un Tribunale interdiocesano (can. 1423 § 2 CIC).”
19

garantir que haja pessoas especializadas e dedicadas, clérigos ou leigos, que cooperem
diretamente no exercício da pastoral judicial. Ora,
[...] a revalorização do papel do Bispo nas causas de nulidade não se
cumpre preferentemente pela reserva de algumas causas ao bispo –
que será sempre necessariamente algo minoritário –senão que passa
por tomar consciência da responsabilidade deste na provisão adequada
dos ofícios implicados na pastoral judicial selecionando a pessoas
tecnicamente preparadas, com boa formação jurídica e com qualidades
humanas e sensibilidade pastoral que permitam que o planejamento, a
tramitação e a conclusão dos processos de nulidade sejam realmente
expressão de uma verdadeira atuação pastoral das estruturas
diocesanas, e, mais especificamente, do tribunal eclesiástico.
(GARCÍA, 2015, p. 630, tradução nossa52)

Trata-se de uma recuperação histórico-jurídica que não deseja tanto sobrecarregar o


bispo com a responsabilidade e a tarefa de julgar pessoalmente as causas dos fieis da
sua diocese, quanto de demonstrar que a função de julgar lhe é tão própria e requer
tamanha dedicação ou preocupação como a função de ensinar e santificar (GARCÍA,
2015). Certamente as normas do mutuo proprio não proíbem expressamente a delegação
do poder judicante dos bispos, mas a mens legislatoris53 não está na linha da
delegabilidade (CONDE, 2018). Sobre a função técnica do bispo no processo de
nulidade via rito breve, é a
[...] decisão, único dever do bispo, necessita distinguir entre decidir e
escrever a sentença; ao bispo compete o pressuposto da certeza moral
para decidir, embora com o obrigado conselho do instrutor e do
assessor. Ao bispo se confia também o modo de a escrever, ao passo
que seja garantida a motivação e notificação às partes e aos outros
interessados; sobre ele, portanto, pesa o dever de fazer com que as
razões da decisão sejam compreendidas pelos destinatários. Ele deve
fazer também seu o texto, enquanto é obrigado a assinar a sentença. A
decisão deve ser afirmativa e nunca negativa, consentindo-se somente
o reenvio a exame ordinário em caso de falta de certeza. (CONDE,
2018, p. 214)

Portanto, será o bispo quem, auxiliado pelos devidos assessores, ex actis et probatis
54
dará a certeza moral sobre a nulidade do matrimonio em questão. A certeza moral
constitui uma ausência positiva da dúvida de direito ou de fatos, isso não significaria,
então, uma certeza absoluta. Alcançada a certeza moral, o bispo emana sentença
52
“(...) la revalorización del papel del Obispo en las causas de nulidad no se cumple preferentemente por
la reserva de algunas causas al Obispo –que será siempre necesariamente algo minoritário – sino que
pasa por tomar conciencia de la responsabilidad de éste en la provisión adecuadade los oficios
implicados en la pastoral judicial, seleccionando a personas técnicamente preparadas, con buena
formación jurídica y con cualidades humanas y sensibilidad pastoral que permita que el planteamiento,
tramitación y conclusión de los procesos de nulidad sean realmente expresión de una verdadera actuación
pastoral de las estructuras diocesanas, y, más específicamente, del tribunal eclesiástico.”
53
Latim. Trad. livre: “mente do legislador”.
54
Latim. Trad. livre: “por meio de atos e provas”.
20

afirmativa. Caso contrário, não conseguindo chegar a esta certeza, o bispo remeterá a
causa para o rito ordinário (BIZARRO, 2021). Em sentido técnico,
[...] Não é o bispo quem instrui a causa interrogando as partes e as
testemunhas, mas pessoas qualificadas assistem ao bispo na busca da
verdade, e é ele quem única e pessoalmente deve alcançar a certeza
moral na ordem à decisão: podemos dizer que o bispo intervém
pessoalmente no momento da decisão final [...] (ESTEBAN, 2016, p.
106, tradução nossa55)

Ademais, é o bispo diocesano quem deve pronunciar a sentença às partes envolvidas


no processo breve, justamente porque a sentença é de sua exclusiva competência. Ele
não pode delegar o seu pronunciamento nem mesmo ao tribunal diocesano ou
interdiocesano. A intenção por detrás disso repousa no fato de que o bispo seja ele
próprio o sinal de proximidade da justiça eclesial aos fiéis e, simultaneamente,
simbolize a garantia contra quaisquer possíveis abusos ao sacramento do matrimônio
(RABINO, 2017).

Considerações finais

Seguindo a linha mestra do Concílio Vaticano II, o Sumo Pontífice Papa Francisco
realizou mudanças no processo de nulidade matrimonial. Com a instituição do processo
breviore coram episcopo, o papa determinou que o bispo diocesano é o juiz único para
as causas evidentes de nulidade matrimonial. Essa decisão recordou a tese conciliar de
que o munus regendi dos bispos católicos influencia cotidianamente no cuidado dos
bispos para o bem comum da Igreja e para com as almas dos seus fiéis 56. Dessa forma,
embora brevemente, contemplou-se os princípios históricos e os aspectos canônicos do
poder de governo dos bispos, principalmente no função de julgar. No decorrer do artigo,
ficou evidente que o Santo Padre Francisco não trouxe nenhuma novidade ao
procedimento canônico da Igreja. Do contrário, pode-se seguramente afirmar que o papa
restaurou uma lícita tradição em cujo centro foi desde o princípio a pessoa do bispo. Por
fim. recorde-se que o zelo pastoral do bispo está na óptica do serviço caridoso,
procurando constantemente cumprir àquela norma vital e perene do Direito Canônico

55
“No es el Obispo quien instruye la causa interrogando a las partes y a los testigos, sino que personas
cualificadas asisten al Obispo en la búsqueda de la verdad, y es él quien única y personalmente debe
alcanzar la certeza moral em orden a la decisión; podríamos decir que el Obispo interviene personalmente
en el momento de la decisión final (...).”
56
cf. ChD, n. 2
21

“[...] tendo diante dos olhos a salvação das almas que, na Igreja, deve ser sempre a lei
suprema.” (Codex Iuris Canonici, 1983, p. 317).

Referências

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