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251-08
O objetivo deste Curso não é apenas transmitir o tão necessário conhecimento de
gramática normativa, que muito se vem desdenhando nas últimas décadas.
Pretende-se, ainda, objetivo mais audacioso: provocar a sensibilidade do aluno
para outras qualidades textuais, além da correção gramatical: a coesão, a
coerência, a clareza, a precisão, a objetividade, o tom adequado e a persuasão.
Assim, a primeira parte deste Curso lança luz sobre a construção das ideias e o
estilo do parágrafo, ocasião em que se trabalharão os elementos mencionados.
Ainda nessa primeira parte, apresentar-se-ão alguns instrumentos que todo
escritor deve dominar para se fazer entendido, afinal:
“Quem escreve de maneira displicente confessa, com isso, antes de tudo, que ele
mesmo não atribui grande valor a seus pensamentos. Pois apenas a partir da
convicção da verdade e importância de nossos pensamentos, surge o entusiasmo
que é exigido para buscar sempre, com incansável perseverança, a expressão mais
clara, mais bela e mais vigorosa.” (Schopenhauer, A Arte de Escrever)
Não é objetivo fácil, senão bastante audacioso. Mas, se é audacioso, é para nós.
Vivemos imersos na internet, e é preciso dizer: por muito que ela nos tenha trazido
infindáveis facilidades, é comum não nos valermos das mais básicas para a construção
de um bom texto. O manuseio de dicionários comuns, dicionários de sinônimos e até
mesmo do Volp (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa) não pertence ao
cotidiano de imensa parte da população.
Falemos sobre algumas dessas ferramentas, esperando francamente que elas passem a
integrar o cotidiano de todo aluno deste Curso.
1) Dicionários comuns
Antes propriamente de falar sobre dicionários, vale ressaltar algo que escapa à
observação da maioria dos usuários de um idioma: pensamentos e palavras não se
descolam. É praticamente impossível pensar sem palavras.
Sem dúvida, quanto mais limpa e clara é a ideia do indivíduo, quanto mais preciso e
acurado é o domínio que tem das palavras, tanto mais rica será sua própria capacidade
de ler o mundo. Um vocabulário apequenado apequena o próprio pensamento, a
própria imaginação, a própria capacidade de observar o mundo e de nele se
posicionar. Dominar poucas palavras estreita a própria experiência humana, que
acaba por apelar para formas tacanhas de posicionamento, como gestos em demasia
ou gritos.
Uma pesquisa chefiada pelo Dr. Johnson O’Connor e divulgada pelo professor Othon
Garcia no livro Comunicação em Prosa Moderna confirma essa constatação:
resumidamente, grande parte dos alunos executivos analisados pelo doutor os quais
tinham mais vasto vocabulário ocuparam cargos de direção, e nenhum daqueles com
vocabulário mais defasado o fizeram. De toda forma, um olhar puramente empírico é
capaz de constatar que a capacidade de comunicação é ferramenta indispensável para
bons líderes – e a melhor articulação verbal depende de um bom vocabulário.
São livros que se dispõem a fazer, portanto, um inventário abrangente dos termos da
língua, seus significados e empregos.
Não existe um excelente usuário da língua que não seja assíduo frequentador dos
dicionários. Gratuitamente na internet, citam-se alguns de boa qualidade: Michaelis,
Aulete, Priberam e Porto. Dúvidas comuns do cotidiano, relacionadas à grafia e à
semântica, resolvem-se com uma simples incursão ao dicionário.
É claro que, dado o dinamismo da língua e a velocidade com que ela se expande e se
modifica, há limitações naturais que são impingidas aos dicionários. É justamente o
que reconhece Aurélio Buarque no prefácio de seu Novo Aurélio (3ª impressão):
“Entre os autores, dos mais desvairados gêneros, figuram com certa frequência os cronistas, por se
mostrarem, em maior ou menor grau, bons espelhos da língua viva. São, aliás, vários deles, mestres
da prosa dos nossos dias. Não foi esquecida outra classe de autores: a dos letristas de sambas,
marchas, canções. Eles – tal como, até certo ponto, também os cronistas –, além de captarem a
criação linguística popular, não raro são, ainda por cima, criadores, inventores de palavras.
Injusto seria deixar de recorrer aos comentaristas políticos, econômicos etc., aos repórteres, aos
noticiaristas – desde os mais qualificados colaboradores, de vária espécie, de jornais e revistas, até
aos mais modestos, aos focas anônimos, aos que fazem a cozinha da profissão.”
Entre os primeiros integrantes, estavam Machado de Assis, Olavo Bilac, Rui Barbosa
e Joaquim Nabuco. O número de membros é sempre 40, e a entrada de novos só
ocorre com a morte de algum acadêmico.
Entre notáveis atividades da ABL, está a edição do Volp – Vocabulário Ortográfico da
Língua Portuguesa –, espécie de dicionário que lista palavras reconhecidas
oficialmente como pertencentes à língua portuguesa, bem como lhes fornece a grafia
oficial. Seu objetivo, no entanto, difere daquele dos dicionários comuns, uma vez que
ele não explica o significado dos termos registrados, mas apresenta sua grafia correta,
seu gênero, sua categoria morfológica, eventualmente sua pronúncia correta etc. É o
Volp que oficialmente registra a ortografia das palavras da língua portuguesa do
Brasil.
Observação importante:
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3) Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
“A existência de duas ortografias oficiais da língua portuguesa, a lusitana e a
brasileira, tem sido considerada como largamente prejudicial para a unidade
intercontinental do português e para seu prestígio no Mundo.” (Anexo II)
“Com a emergência de cinco novos países lusófonos, os fatores de desagregação da unidade essencial
da língua portuguesa far-se-ão sentir com mais acuidade (...) Nesse sentido, importa, pois,
consagrar uma versão de unificação ortográfica que fixe e delimite as diferenças atualmente
existentes e previna contra a desagregação ortográfica da língua portuguesa.”
4) Gramáticas normativas
O melhor livro de gramática normativa é aquele que, apresentando a teoria correta,
consegue ser mais bem entendido pelo leitor.
Passemos a qualidades que devem permear nosso texto e, antes dele, nosso próprio
pensamento.
1) Clareza
Pode-se definir como claro aquele texto que possibilita imediata compreensão pelo
leitor. Portanto, ele deve ser inteligível, limpo, fluido – o que exige, por exemplo,
pontuação adequada e a escolha estratégica das palavras.
Veja o que escreveu um estudante universitário que desejava apresentar seu artigo:
Meu artigo nesta semana será uma demonstração científica prático-teórica da maneira
pela qual os vocábulos em línguas diversas passam naturalmente por um processo
orgânico que se dá de forma sistemática, em toda a plenitude de sua manifestação por
meio de ações de economia de esforço dos indivíduos que a usam.
Note como, à medida que se vai lendo, o pensamento vai se tornando mais e mais
disperso. A quantidade de palavras abstratas – e praticamente só abstratas – faz com
que o leitor não tenha um referente bem delineado na realidade.
Note que terminamos o parágrafo sem saber de fato sobre o que o tal artigo fala.
Anote: Quanto mais geral e abstrato é o sentido de uma palavra, tanto mais vago e
impreciso; quanto mais específico, tanto mais concreto e preciso.
“Que é que expressamos realmente com o adjetivo ‘belo’, de sentido geral e abstrato, aplicável a uma
infinidade de seres ou coisas, quando dizemos uma bela mulher, um belo dia, um belo caráter, um
belo quadro, um belo filme, uma bela notícia, um belo exemplo, uma bela cabeleira? É possível que
a ideia geral e vaga de ‘beleza’ lhes seja comum, mas não suficiente para distingui-los, para
caracterizá-los de maneira inconfundível. Praticamente quase nada se expressa com esse adjetivo
aplicado indistintamente a coisa ou seres tão díspares. Seria possível assinalar-lhes traços
singularizantes por meio de outros adjetivos mais especificadores: mulher atraente, tentadora,
sensual, arrebatadora, elegante, graciosa, meiga...; dia ensolarado, límpido, luminoso, radiante,
festivo...; caráter reto, impoluto, exemplar...; rapaz esbelto, robusto, guapo, gentil, cordial,
educado... É certo que, ainda assim, o resultado não seria grande coisa, pois muitos dos adjetivos
propostos são ainda bastante vagos e imprecisos, se bem que em menor grau do que ‘belo’. No caso,
o recurso a metáforas e comparações teria maiores possibilidades de salientar os traços mais
característicos e pitorescos do que a simples adjetivação.”
Veja como até mesmo expressões abstratas (como “expressão de caráter geral”) são
imediatamente compreendidas quando chega o exemplo concreto.
Isso não significa que toda palavra abstrata necessariamente deva se seguir de um
exemplo. Ao final do parágrafo, o filósofo fala, a saber, em “disposições dos seus
ouvintes”, sem explicar de forma pormenorizada a que está se referindo. Contudo,
pelo contexto não é difícil intuir a que se refere.
Assim, pode-se concluir que a grande sabedoria está na virtude, ou seja, no caminho
do meio. Para que o leitor seja devidamente orientado, é preciso que o escritor
primeiro formule em sua própria cabeça o que deseja transmitir e só depois passe, com
estratégia e didática, para o papel.
*A metáfora e a clareza
Metáfora é a figura de linguagem que faz uma palavra ser empregada fora do seu
sentido básico, passando a designar algo diferente por meio de uma comparação entre
seres de universos distintos.
(Othon Garcia)
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Quando não se está trabalhando com textos técnicos, que exigem linguagem
denotativa e função referencial da linguagem – como dissertações de mestrado e
ofícios de órgãos públicos, por exemplo –, as metáforas podem ser excelentes para
ilustrar o que se quer dizer.
E por que a metáfora pode ser tão útil? Porque a formação imagética traz
esclarecimento ao leitor, aumentando sua conexão com a história. Temos um
vocabulário repleto de palavras abstratas, as quais não têm, por definição,
correspondência palpável no mundo real. Se digo que estou com fome, que imagem
costuma vir à cabeça? Talvez a de um estômago vazio. Isso ocorre porque “fome” é
substantivo abstrato, ao passo que “estômago” é concreto; somente o último tem um
correspondente imaginável.
A situação fica ainda menos ilustrativa quando usamos palavras como “saudade”,
“angústia”, “interpretação”, e, menos ainda, com conceitos específicos, como
“hermenêutica”, “epistemologia” e esses refinamentos de nossa mente. São terrenos
frios, não palpáveis, e o vácuo de imagens pode colocar o leitor pelado no meio da
Antártica, sozinho, rodeado por neve recém-caída a perder de vista (aliás, veja que
metáfora potente), daí o papel esclarecedor da metáfora.
Ainda que a maioria de nós não seja grande artista da palavra, não custa usar um
pouco de engenharia reversa para compreender de que maneira os grandes nomes
manuseiam a palavra e fogem dos lugares-comuns. Um dos recursos mais potentes
certamente são as figuras de linguagem.
Para que seja eficiente, as metáforas não podem ser batidas, sob pena de deixarem o
texto até mais pobre do que se não as tivesse. Metáforas já muito recicladas nos soam
tão familiares, que perdem sua capacidade de provocação. Dizer que o resultado
“abalou as estruturas” da empresa, que o professor é “fera” em matemática ou que a
mulher “brilhou como uma estrela” não agrega muito poder expressivo.
“Enfim, como diz a famosa frase, ‘quem se lembra dos anos setenta é porque não os
viveu’. Acho que eu os vivi bastante bem, e, talvez por isso recorde tão pouco. Por
outro lado, às vezes também recorro a uma teoria pessoal provavelmente ingênua, mas
reconfortante: penso que talvez a imaginação concorra com a memória para se
apoderar do território cerebral. Vai ver que a gente não tem cabeça suficiente para ser
ao mesmo tempo memoriosa e fantasiosa. A louca da casa, inquilina prendada, limpa
os salões das lembranças para ficar mais à vontade.” (Rosa Montero, A Louca da
Casa)
Note como a imagem da imaginação (“a louca da casa”) limpando o que seriam os
salões da lembrança faz com que entendamos com perfeição o que a autora quer dizer.
Há ainda outras figuras de linguagem nesse trecho, mas a maioria delas derivada da
metáfora.
Agora veja esta outra passagem, escrita por um copywriter ao falar sobre o ato de
redigir:
“Estas são as duas grandes fugas de muitos profissionais que não dominam
gramática: ou elas se escondem na insegurança, ou elas se escondem atrás da
aparência de uma comunicação pedregosa.”
“Quando o profissional não domina a gramática, ele age de duas formas: ou evita
escrever, por medo de passar vergonha; ou escreve de maneira rebuscada e difícil, para
disfarçar sua falta de domínio da língua.”
2) Precisão
O atributo da precisão complementa o da clareza. Ser preciso significa escolher as
palavras com exatidão. Para isso, é indispensável conhecer o significado delas, bem
como analisar seu cabimento no contexto.
Os manuais de redação sempre enfatizam o dano que a falta de precisão na escolha
das palavras traz. Veja o exemplo abaixo:
“É bem difícil imaginar uma pessoa com sentimento, com consciência do dever para
consigo mesma e para com os outros, viver sozinha.”
A frase não apresenta um único erro gramatical ou coesivo, mas não consegue passar
a mensagem pretendida.
Veja o que diz o professor Alcir Pécora a respeito desse trecho:
“É bem possível que o seu usuário saiba exatamente a que se refere essa noção, quais
os valores que a fundamentam e os motivos que oferece para concluir o que conclui.
Mas certamente a simples menção à consciência do dever não é suficiente para
garantir a especificidade desse argumento, uma vez que a noção que o constitui tem
recebido os mais diversos empregos e recoberto instâncias tão genéricas como
contraditórias.”
Essa falta de intimidade com as palavras faz com que o recado seja passado de forma
trapalhona e tropeçante, como se nota nos excertos abaixo, retirados de peças
jurídicas reais:
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Veja a seguir o que significam algumas palavras usadas e como elas são incompatíveis
com a mensagem que o autor pretende passar:
O recado poderia ter sido transmitido de forma infinitamente mais precisa, correta e
sem rodeios. Exemplo:
“Os fatos contradizem a tese apresentada no processo. Como se percebe, o réu agiu
no exercício de seu direito e não cometeu nenhum ato ilícito.”
“As cabeças banais simplesmente não podem se decidir a escrever do modo como pensam, porque
pressentem que, nesse caso, o resultado teria um aspecto muito simplório. Mas já seria alguma
coisa. Se elas apenas se dedicassem com honestidade à sua obra e simplesmente quisessem
comunicar o pouco e usual que de fato pensaram, da maneira como pensaram, seriam legíveis e até
mesmo instrutivos dentro de sua esfera própria. Só que, em vez disso, esforçam-se para dar a
impressão de ter pensado mais e com mais profundidade do que o fizeram realmente. Essas pessoas
apresentam o que têm a dizer em fórmulas forçadas, difíceis, com neologismos e frases prolixas que
giram em torno dos pensamentos e os escondem. Oscilam entre o esforço de comunicar e o de
esconder o que pensaram. Gostariam de expor o pensamento de modo a lhe dar uma aparência
erudita e profunda, para que as pessoas achem que há, por trás deles, mais do que percebem no
momento.” (Schopenhauer, A Arte de Escrever)
“Se você quer abolir o choro do seu bebê, deve explorar as possibilidades deste
remédio para cólica.”
(Seria mesmo “abolir” o choro? O bebê nunca mais chorará? O que seria “explorar as
possiblidades de um remédio para cólica”?)
É por isso, por exemplo, que uma palavra como “literalmente” vem ganhando
incontornável aumento de significado, deixando de designar apenas “em sentido
literal” (ou seja: ao pé da letra) e se tornando um intensificador de sentido mais geral:
“O ar estava tão frio, que eu literalmente morri congelado ontem”.
É desordenador que cheguemos a tal nível de imprecisão das palavras. Não raramente,
dois falantes pensam dizer a mesma coisa, quando podem tranquilamente usar o
mesmo significante com diferentes significados e referentes na realidade. Alguém que
chame a prática do ato sexual casual de “fazer amor”, por exemplo, certamente não
entende por “amor” o mesmo entendido por quem o compreende a partir de C.S
Lewis.
Uma manchete como esta a seguir não poderia ser menos precisa:
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3) Objetividade
Ser objetivo é ir diretamente ao assunto que se deseja abordar, sem voltas e
redundâncias. É preciso, para tal, que o escritor saiba quais são suas ideias-chave
dentro do texto, aquelas primárias, e quais são as ideias que orbitarão em torno das
principais, ou seja, as secundárias. Se as ideias secundárias não servirem para
detalhar, exemplificar ou esclarecer as primárias, provavelmente é melhor
descartá-las.
Uma das qualidades de um texto objetivo há de ser a concisão, ou seja, a transmissão
do máximo de informações possível com o mínimo de palavras possível. O poema de
José Paulo Paes concisamente nos traz esta lição:
“Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas
os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela
os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim
embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou
vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas.
Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa
ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os
braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das
mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa;
mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na
cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por
cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede.” (Machado de Assis,
Missa do Galo)
Como o texto é narrado em primeira pessoa por Nogueira, é por meio das descrições
aparentemente banais dele que notamos – embora ele mesmo não note – a volúpia de
Conceição.
Observação: Um texto pode ser coerente sem que haja elementos linguísticos
expressos de coesão – são casos raros, mas existem –, no entanto é imperativo que as
partes textuais tenham relação entre si (coesão) para que sejam inteligíveis
(coerentes).
As perguntas feitas na carta, por sua vez, visam a suscitar reflexões absolutamente
coerentes com o cenário. Não se desperdiça uma única palavra. As frases são bem
construídas e breves, passando ar de segurança (apesar da humildade manifesta).
“Recordo, ainda, que a senhora, na posse, manteve reunião de duas horas com o Vice-Presidente
Joe Biden – com quem construí boa amizade – sem convidar-me, o que gerou em seus assessores a
pergunta: o que é que houve que, numa reunião com o Vice-Presidente dos Estados Unidos, o do
Brasil não se faz presente? Antes, no episódio da "espionagem" americana, quando as conversas
começaram a ser retomadas, a senhora mandava o Ministro da Justiça para conversar com o
Vice-Presidente dos Estados Unidos. Tudo isso tem significado absoluta falta de confiança.”
Para construir seu argumento principal – de que era um vice “decorativo”, como ele
mesmo diz –, Temer apresenta inúmeros argumentos ao longo da carta, alguns deles
razoavelmente complexos, como no caso. O emprego dos elementos de coesão é
fundamental para construir a ligação de seus pontos, deixando o texto coerente e
fluido.
De toda forma, apenas a presença de elementos de coesão não é suficiente para que o
texto seja coerente. É comum encontrarmos textos com correlação frágil de ideias,
como no exemplo abaixo:
“Os políticos se condicionam pelo poder. Eles evitam encontrar seus eleitores em
shoppings, restaurantes e até mesmo em seus gabinetes. Recentemente, o deputado X
foi pego saindo pela porta de trás do gabinete para não se encontrar com uma eleitora
que vinha cobrar dele ações prometidas, mas não cumpridas.”
Antes de qualquer coisa: o que seria “condicionar-se pelo poder” e o que isso tem a
ver com a afirmação da segunda frase? Ademais, embora haja políticos que evitam
seus eleitores (como no caso do exemplo citado), não se pode afirmar que todos são
assim. A afirmação é genérica e fraca do ponto de vista argumentativo.
Estudaremos vários elementos de coesão mais à frente. Quanto à coerência,
certamente será trabalhada, como já vem sendo, ao longo de todo o curso.
5) Persuasão
Persuadir é levar alguém a crer ou a aceitar uma ideia. É por meio da persuasão que se
demonstra por que determinada coisa deve ser escolhida em detrimento de outras.
Muitas são as possibilidades argumentativas para levar alguém a optar por algo:
pode-se argumentar que um bem é melhor porque ele vem acompanhado de outro; que
um bem é melhor porque ele é mais autossuficiente; que um bem é melhor porque é
mais raro; que um bem é melhor porque é mais útil; que um bem é melhor porque nos
inspira o que há de mais nobre e belo; que um bem é melhor porque pessoas de bom
entendimento o escolheram anteriormente etc.
- O segundo depende dos ouvintes: quando o discurso afeta suas emoções. Nosso
julgamento varia segundo experimentamos sentimentos diferentes (angústia, júbilo,
amizade, hostilidade);
“A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes
vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e
legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto,
a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é,
tu mesmo? Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os
cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem
anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção
moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as
vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito
social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo
a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente.”
(Machado de Assis, A Igreja do Diabo)
Em 1891, pouco depois de ler O retrato de Dorian Gray, do grande Oscar Wilde, um
jovem perplexo, chamado Bernulf Clegg, escreveu ao autor, pedindo-lhe que
explicasse a afirmação “Toda arte é completamente inútil”, contida no prefácio do
romance. Para sua surpresa, Wilde não demorou a responder-lhe.
“Prezado senhor,
Uma obra de arte é inútil da mesma forma que uma flor é inútil. Uma flor se abre
para sua própria alegria. Vivemos um momento de alegria ao contemplá-la. Isso é
tudo o que há para dizer sobre nossa relação com as flores. Naturalmente, alguém
pode vender a flor e, assim, torná-la útil para si mesmo, porém isso nada tem a ver
com a flor. Não faz parte de sua essência. É acidental. É uso indevido. Receio que
tudo isso seja muito obscuro. Mas o assunto é longo.
Ainda que haja argumentos contrários, as palavras são tão bem engendradas, as frases
se organizam de forma tão cadenciada, o pequeno drama nas curtas frases finais é tão
cativante, que se desperta a claramente poesia do olhar. A sublime poesia da prosa
também é persuasora.
6) Tom adequado
Othon Garcia define “estilo” como “tudo aquilo que individualiza obra criada pelo
homem, como resultado de um esforço mental, de uma elaboração do espírito,
traduzido em ideias, imagens ou formas concretas. A rigor, a natureza não tem estilo;
mas tem-no o quadro em que o pintor a retrata, ou a página em que o escritor a
descreve. [...] quando falamos em ‘feição estilística da frase’, estamos considerando a
forma de expressão peculiar a certo autor em certa obra de certa época”.
Escolher bem o tom é, portanto, escolher a feição do texto, que será responsável por
despertar no leitor sentimentos diversos.
Isso não significa, no entanto, que alguém mais doce não possa calibrar seu tom para
escrever de forma séria e impessoal, quando o contexto exigir. Novamente, então,
ressalta-se a importância de se pensar antes de escrever, a fim de fazer escolhas
conscientes e estratégicas.
Analisemos os excertos:
“Em meus tempos como professor, procurei fornecer aos estudantes de literatura informações exatas
sobre os detalhes e as combinações de detalhes que propiciam a centelha sensual sem a qual um
livro é uma coisa morta. Nesse sentido, as ideias gerais não têm a menor importância. Qualquer
idiota pode assimilar os principais elementos da posição de Tolstói a respeito do adultério, porém, a
fim de apreciar sua arte, o bom leitor deve desejar visualizar, por exemplo, o interior de um vagão
do trem noturno que ligava Moscou a São Petersburgo cem anos atrás.” (Vladimir Nabokov, Lições
de Literatura)
“Prezado senhor:
Gosto de palavras. Gosto de palavras gordas, untuosas, como lodo, torpitude,
glutinoso, bajulador. Gosto de palavras solenes, angulosas, decrépitas, como pudico,
ranzinza, pecunioso, valetudinário. Gosto de palavras espúrias, enganosas, como
mortiço, liquidar, tonsura, mundana. Gosto de suaves palavras com “V”, como
Svengali, avesso, bravura, verve. Gosto de palavras crocantes, quebradiças,
crepitantes, como estilha, croque, esbarrão, crosta. Gosto de palavras emburradas,
carrancudas, amuadas, como furtivo, macambúzio, escabioso, sovina. Gosto de
palavras chocantes, exclamativas, enfáticas, como astuto, estafante, requintado,
horrendo. Gosto de palavras elegantes, rebuscadas, como estival, peregrinação,
elísio, alcíone. Gosto de palavras vermiformes, contorcidas, farinhentas, como
rastejar, choramingar, guinchar, gotejar. Gosto de palavras escorregadias, risonhas,
como topete, borbulhão, arroto.
Gosto mais da palavra roteirista que da palavra redator, e por isso resolvi largar meu
emprego numa agência de publicidade de Nova York e tentar a sorte em Hollywood,
Acabei de voltar e ainda gosto de palavras. Posso trocar algumas com o senhor?
Robert Pirosh Madison Avenue, 385 Quarto 610”
(Retirado do livro Cartas Extraordinárias, de Shaun Usher)
Os três textos apresentam tons diferentes. O primeiro tem tom franco e quase
confessional; além disso, vale-se de pontos informais, criando conexão com o leitor e
transmitindo a honestidade de um professor que, analisando sua carreira em
retrospectiva, chega a determinadas conclusões.
O ESTILO DA FRASE
1) Frase de arrastão
Leia o parágrafo abaixo:
“Na cidade nova, matriculei-me na academia e descobri bons bares, mas não tinha
companhia para ambos, pois não conhecida ninguém. Decidi ligar a um velho
conhecido. Aí ele me atendeu, mas não podia sair, pois estava ocupado. Mas aí
mudou de ideia e me ligou horas depois. Acabamos saindo para um bar bacana, mas
ficamos pouco tempo.”
Note como a estruturação das frases é quase simplória e reflete um discurso que
poderia perfeitamente ser oral. A linguagem beira o infantilismo: as curtas orações
vão se arrastando umas às outras, atadas fragilmente por conectivos de amplo sentido
e grande frequência em discursos orais: então, mas, mas então, aí. Há, ainda, várias
orações coordenadas soltas.
Quando o recado que se pretende passar é simples e o contexto permite, não há
problema nesse tipo de estrutura. Veja Machado:
“Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens.
Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de
magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria
vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe
arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde
casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca
de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo
recebê-lo.” (Machado de Assis, A Cartomante)
Veja que, apesar das frases de arrastão, Machado enriquece o parágrafo com orações
subordinadas (“que queria vê-lo médico”, por exemplo) bem como com pontos e
Quando o que se pretende é apresentar ideias mais complexas, que exigem certo
intrincamento de raciocínio, esse tipo de construção não é suficiente. Há que se
recorrer a artifícios mais elaborados linguisticamente, em especial à subordinação de
orações.
Analise o texto:
Perceba como o autor escreve de forma acessível, mas longe do simplismo: enriquece
seu texto com orações subordinadas e pontuação rica (incluindo dois-pontos e
travessões), objetivando provar um ponto de vista de certa forma complexo. Daí ser
importantíssimo dominar os elementos de coesão e a diversidade de pontuação, os
quais se estudarão mais adiante.
2) Frase entrecortada
Essa estratégia pode ser boa quando bem aproveitada, pois, ao exigir menos do leitor,
facilita o entendimento de sua parte.
Analise:
“Mas quantas vezes a insônia é um dom. De repente acordar no meio da noite e ter essa coisa rara:
solidão. Quase nenhum ruído. Só o das ondas do mar batendo na praia. E tomo café com gosto,
toda sozinha no mundo. Ninguém me interrompe o nada. É um nada a um tempo vazio e rico. E o
telefone mudo, sem aquele toque súbito que sobressalta. Depois vai amanhecendo. As nuvens se
clareando sob um sol às vezes pálido como uma lua, às vezes de fogo puro. Vou ao terraço e sou
talvez a primeira do dia a ver a espuma branca do mar. O mar é meu, o sol é meu, a terra é minha.
E sinto-me feliz por nada, por tudo. Até que, como o sol subindo, a casa vai acordando e há o
reencontro com meus filhos sonolentos.” (Clarice Lispector, A descoberta do mundo)
Observe um trecho escrito por mim num texto denominado A Palavra é Fatal:
Pensar com clareza, vincular bem as ideias e transpô-las para o papel, organizar linhas de
raciocínio claras e bem amarradas, expor verbalmente as próprias percepções sem titubear e sem as
embaralhar, tudo isso faz com que o indivíduo se imponha sobre a vida, defenda-se, ocupe espaços,
leia o mundo e as pessoas com acuidade. Leia novamente: dominar a comunicação verbal faz com
que o indivíduo se imponha sobre a vida.”
“A comunicação é a arma mais poderosa que alguém pode dominar. Os gregos sabiam disso. Em
grego, ‘logos’ quer dizer pensamento, razão, linguagem e palavra. Sem palavra, sem pensamento. A
comunicação faz o indivíduo se impor. Quem domina as palavras ocupa mais espaços. Defende-se.
Impõe-se sobre a vida.”
O final do texto fragmenta uma oração, o que, em tese, contraria o rigor normativo.
Esse tipo de recurso pode contribuir para o estilo do texto, mas perceba como, no
caso, o texto fica praticamente asmático. São frases soltas, ou pedaços de frases; a
falta de coesão faz com que se tornem excessivamente telegráficas, a ponto de
prejudicar o texto.
“Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma
igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso
que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia,
por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada
regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as
outras religiões, e destruí-las de uma vez.” (Machado de Assis, A Igreja do Diabo)
Note:
“É comum que as escolas separem as matérias em ‘caixas’. É o que ocorre, por exemplo, com a
Língua Portuguesa, que frequentemente é dividida em quatro: Gramática, Texto, Redação e
Literatura. Essa dinâmica faz com que o aluno não apreenda a totalidade da disciplina e a veja de
forma fragmentada. Por tal razão, muito contribui a escola que foge desse modelo.”