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Gabriela Arruda de Abreu - cantanhedegabi@gmail.com - CPF: 058.815.

251-08
O objetivo deste Curso não é apenas transmitir o tão necessário conhecimento de
gramática normativa, que muito se vem desdenhando nas últimas décadas.
Pretende-se, ainda, objetivo mais audacioso: provocar a sensibilidade do aluno
para outras qualidades textuais, além da correção gramatical: a coesão, a
coerência, a clareza, a precisão, a objetividade, o tom adequado e a persuasão.

Assim, a primeira parte deste Curso lança luz sobre a construção das ideias e o
estilo do parágrafo, ocasião em que se trabalharão os elementos mencionados.
Ainda nessa primeira parte, apresentar-se-ão alguns instrumentos que todo
escritor deve dominar para se fazer entendido, afinal:

“Quem escreve de maneira displicente confessa, com isso, antes de tudo, que ele
mesmo não atribui grande valor a seus pensamentos. Pois apenas a partir da
convicção da verdade e importância de nossos pensamentos, surge o entusiasmo
que é exigido para buscar sempre, com incansável perseverança, a expressão mais
clara, mais bela e mais vigorosa.” (Schopenhauer, A Arte de Escrever)

Só depois, numa segunda parte, trabalhar-se-á o aspecto gramatical normativo,


sem o qual fica incontornavelmente prejudicada a transposição das ideias para o
texto. Nesse sentido, ressalta o psicólogo e grande estudioso da linguagem Steven
Pinker:

“Aprender a ter consciência das unidades de uma sentença gramaticalmente bem


formada pode permitir que o escritor siga um caminho racional até formar um
diagnóstico do problema, quando percebe que na sentença há algo errado, mas
ainda não conseguiu identificar o erro. Saber um pouco de gramática dá ao
escritor acesso ao mundo das letras.” (Steven Pinker)

A combinação dessas duas partes do Curso há de melhorar substancialmente a


consciência textual do aluno e sua retórica – a qual, segundo Aristóteles, é o
“poder, diante de quase qualquer questão que nos é apresentada, de observar e
descobrir o que é adequado para persuadir [ou seja, para demonstrar]”.

Tal demonstração, sem dúvida, depende da melhor forma de combinar frases em


parágrafos e estes numa composição completa e correta.

Não é objetivo fácil, senão bastante audacioso. Mas, se é audacioso, é para nós.

Gabriela Arruda de Abreu - cantanhedegabi@gmail.com - CPF: 058.815.251-08


FERRAMENTAS NECESSÁRIAS PARA
A CONSTRUÇÃO DE UM BOM TEXTO
A linguagem verbal permite uma combinação infinita de palavras que, mesmo sem ter
nenhuma semelhança com o que se passa dentro de nós, é capaz de fazer os outros nos
entenderem.

Vivemos imersos na internet, e é preciso dizer: por muito que ela nos tenha trazido
infindáveis facilidades, é comum não nos valermos das mais básicas para a construção
de um bom texto. O manuseio de dicionários comuns, dicionários de sinônimos e até
mesmo do Volp (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa) não pertence ao
cotidiano de imensa parte da população.

Falemos sobre algumas dessas ferramentas, esperando francamente que elas passem a
integrar o cotidiano de todo aluno deste Curso.

1) Dicionários comuns
Antes propriamente de falar sobre dicionários, vale ressaltar algo que escapa à
observação da maioria dos usuários de um idioma: pensamentos e palavras não se
descolam. É praticamente impossível pensar sem palavras.

Sem dúvida, quanto mais limpa e clara é a ideia do indivíduo, quanto mais preciso e
acurado é o domínio que tem das palavras, tanto mais rica será sua própria capacidade
de ler o mundo. Um vocabulário apequenado apequena o próprio pensamento, a
própria imaginação, a própria capacidade de observar o mundo e de nele se
posicionar. Dominar poucas palavras estreita a própria experiência humana, que
acaba por apelar para formas tacanhas de posicionamento, como gestos em demasia
ou gritos.

Uma pesquisa chefiada pelo Dr. Johnson O’Connor e divulgada pelo professor Othon
Garcia no livro Comunicação em Prosa Moderna confirma essa constatação:
resumidamente, grande parte dos alunos executivos analisados pelo doutor os quais
tinham mais vasto vocabulário ocuparam cargos de direção, e nenhum daqueles com
vocabulário mais defasado o fizeram. De toda forma, um olhar puramente empírico é
capaz de constatar que a capacidade de comunicação é ferramenta indispensável para
bons líderes – e a melhor articulação verbal depende de um bom vocabulário.

Passemos agora à definição de dicionário.

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De acordo com o Dicionário Michaelis, o vocábulo “dicionário” quer dizer “coleção,
parcial ou completa, das unidades lexicais de uma língua (palavras, locuções, afixos
etc.), em geral dispostas em ordem alfabética, com ou sem significação equivalente,
assim como sinônimos, antônimos, classe gramatical, etimologia etc., na mesma ou
em outra língua”.

São livros que se dispõem a fazer, portanto, um inventário abrangente dos termos da
língua, seus significados e empregos.

Não existe um excelente usuário da língua que não seja assíduo frequentador dos
dicionários. Gratuitamente na internet, citam-se alguns de boa qualidade: Michaelis,
Aulete, Priberam e Porto. Dúvidas comuns do cotidiano, relacionadas à grafia e à
semântica, resolvem-se com uma simples incursão ao dicionário.

É claro que, dado o dinamismo da língua e a velocidade com que ela se expande e se
modifica, há limitações naturais que são impingidas aos dicionários. É justamente o
que reconhece Aurélio Buarque no prefácio de seu Novo Aurélio (3ª impressão):

“Pretendeu-se fazer um dicionário médio, ou inframédio, etimológico, com razoável contingente


vocabular (bem mais de cem mil verbetes e subverbetes), atualizado (dentro dos seus limites), atento
não só à língua dos escritores (muito especialmente os modernos, mas sem desprezo, que seria pueril,
dos clássicos), senão também à língua dos jornalistas e revistas, do teatro, do rádio e televisão, ao
falar do povo, aos linguajares diversos – regionais, jocosos, depreciativos, profissionais, giriescos...”

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O próprio dicionarista reconhece, portanto, tratar-se de um dicionário “médio” ou
“inframédio”, revelando a natural e esperada impossibilidade de se registrarem todos
os verbetes existentes na língua.

A fonte para a produção de um dicionário é abrangente, a fim de captar as tendências


da língua. Ainda no Prefácio, explica Aurélio:

“Entre os autores, dos mais desvairados gêneros, figuram com certa frequência os cronistas, por se
mostrarem, em maior ou menor grau, bons espelhos da língua viva. São, aliás, vários deles, mestres
da prosa dos nossos dias. Não foi esquecida outra classe de autores: a dos letristas de sambas,
marchas, canções. Eles – tal como, até certo ponto, também os cronistas –, além de captarem a
criação linguística popular, não raro são, ainda por cima, criadores, inventores de palavras.

Injusto seria deixar de recorrer aos comentaristas políticos, econômicos etc., aos repórteres, aos
noticiaristas – desde os mais qualificados colaboradores, de vária espécie, de jornais e revistas, até
aos mais modestos, aos focas anônimos, aos que fazem a cozinha da profissão.”

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2) Volp
A Academia Brasileira de Letras (ABL) é uma instituição cultural privada,
inaugurada em 20 de julho de 1897 e sediada no Rio de Janeiro, cujo objetivo é o
cultivo da língua e da literatura nacional.

Entre os primeiros integrantes, estavam Machado de Assis, Olavo Bilac, Rui Barbosa
e Joaquim Nabuco. O número de membros é sempre 40, e a entrada de novos só
ocorre com a morte de algum acadêmico.
Entre notáveis atividades da ABL, está a edição do Volp – Vocabulário Ortográfico da
Língua Portuguesa –, espécie de dicionário que lista palavras reconhecidas
oficialmente como pertencentes à língua portuguesa, bem como lhes fornece a grafia
oficial. Seu objetivo, no entanto, difere daquele dos dicionários comuns, uma vez que
ele não explica o significado dos termos registrados, mas apresenta sua grafia correta,
seu gênero, sua categoria morfológica, eventualmente sua pronúncia correta etc. É o
Volp que oficialmente registra a ortografia das palavras da língua portuguesa do
Brasil.

Abaixo, vê-se exemplo de pesquisa no Volp. Em “inexorável” (=rigoroso, inflexível),


esclarece-se que a pronúncia-padrão é de /z/. Em “xerox”, apresentam-se a dupla
possibilidade de grafia e a correta pronúncia do x final: /cs/.

Observação importante:

Não raro, há divergências entre os próprios dicionários ou entre alguns dicionários e o


VOLP, o que não deve causar estranhamento ao usuário da língua. Catalogar o léxico
enquanto a língua ainda vive e se transforma não poderia ser missão completamente
uniforme. Cabe ao estudioso pesquisar sempre, buscando o melhor e mais primoroso
emprego das palavras.

 
    
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3) Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
“A existência de duas ortografias oficiais da língua portuguesa, a lusitana e a
brasileira, tem sido considerada como largamente prejudicial para a unidade
intercontinental do português e para seu prestígio no Mundo.” (Anexo II)

Esse é precisamente o argumento de abertura da Nota Explicativa do Acordo


Ortográfico. Desde 1931, quando foi aprovado o primeiro acordo entre Brasil e
Portugal, houve inúmeras tentativas de unificar as grafias, todas malsucedidas pelo
desrespeito às peculiaridades de cada país no emprego da língua. A unificação
ortográfica absoluta, embora ideal, passava longe de se concretizar, uma vez que vias
administrativas jamais conseguiram transpor artificialmente as diferenças inegáveis
entre os países.

Feita tal constatação, o último Acordo Ortográfico (Decreto de 29 de setembro de


2008) adaptou seu escopo, surgindo com o intuito não de unificar tudo o que já
existia, mas de acautelar a grafia futura, especialmente porque, além de Brasil e
Portugal, entraram no debate os países africanos oficialmente falantes de português:
Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Justifica o
documento do Acordo:

“Com a emergência de cinco novos países lusófonos, os fatores de desagregação da unidade essencial
da língua portuguesa far-se-ão sentir com mais acuidade (...) Nesse sentido, importa, pois,
consagrar uma versão de unificação ortográfica que fixe e delimite as diferenças atualmente
existentes e previna contra a desagregação ortográfica da língua portuguesa.”

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Ressalta-se que, apesar de o decreto ser de 2008, o acordo em si é de 1990. O
Timor-Leste tornou-se signatário em 2004.

Estima-se terem sido unificados 98% do léxico, o que certamente já representa um


avanço.
Algumas divergências foram mantidas (de acentuação gráfica – bebê e bebé,
acadêmico e académico etc. são formas aceitas e registradas oficialmente –;
preservação de consoante muda – carácter e caráter, facto e fato etc. são também
formas registradas oficialmente), mas substancial parte se unificou.
As principais alterações incidiram sobre a colocação do hífen, a acentuação de alguns
vocábulos, o emprego de maiúsculas e minúsculas e o trema (o qual foi, em regra,
abolido).

Fazem-se, com razão, algumas críticas à Reforma, como a manutenção de hífen em


“exceções consagradas pelo uso”, sem que haja um critério objetivo para medir o que
é “consagrado”. No entanto, trata-se de um documento oficial, cujas alterações
devem ser seguidas, especialmente na produção de documentos oficiais e acadêmicos,
dada a necessidade de padronização.

4) Gramáticas normativas
O melhor livro de gramática normativa é aquele que, apresentando a teoria correta,
consegue ser mais bem entendido pelo leitor.

Algumas gramáticas (como as de Rocha Lima e Paschoal Cegalla) expõem a matéria


de forma extraordinariamente didática, sem preocupação com divergências muitas
vezes de cunho puramente acadêmico. Outras, por sua vez, adentram nessas
discussões e balizam o debate (como Napoleão Mendes, Evanildo Bechara, Amini
Hauy e Celso Cunha).

5) Dicionário de sinônimos, dicionário de antônimos, site de


conjugação verbal etc.
Inúmeros são os sites que nos ajudam a escrever melhor, com mais riqueza e precisão.

Os dicionários de sinônimos e antônimos oferecem suporte vocabular para evitarmos


a repetição de palavras, bem como para encontrarmos aquela mais precisa, não raro
insubstituível no contexto.
O site de conjugações verbais (conjugacao.com.br) auxilia-nos a não nos perder
quanto à correção das flexões verbais.
Vários outros sites, ainda, oferecem informações capazes de esmerar nossa
comunicação verbal.

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AS QUALIDADES DE
UM BOM TEXTO
Considerando-se que “o caminho da cabeça para o papel é muito mais fácil do que do
papel para a cabeça” (Schopenhauer), é preciso que o escritor ajude o leitor a entender
exatamente o que se passa em sua cabeça; para isso, é necessário – antes de tudo –
pensar bem.

Passemos a qualidades que devem permear nosso texto e, antes dele, nosso próprio
pensamento.

1) Clareza
Pode-se definir como claro aquele texto que possibilita imediata compreensão pelo
leitor. Portanto, ele deve ser inteligível, limpo, fluido – o que exige, por exemplo,
pontuação adequada e a escolha estratégica das palavras.

Veja o que escreveu um estudante universitário que desejava apresentar seu artigo:

Meu artigo nesta semana será uma demonstração científica prático-teórica da maneira
pela qual os vocábulos em línguas diversas passam naturalmente por um processo
orgânico que se dá de forma sistemática, em toda a plenitude de sua manifestação por
meio de ações de economia de esforço dos indivíduos que a usam.

Note como, à medida que se vai lendo, o pensamento vai se tornando mais e mais
disperso. A quantidade de palavras abstratas – e praticamente só abstratas – faz com
que o leitor não tenha um referente bem delineado na realidade.

– O que concretamente é uma demonstração científica prático-teórica?


– O que é um processo orgânico?
– O que é uma forma sistemática?
– O que é plenitude de sua manifestação?
– O que são ações de economia de esforço? Que esforço?

Note que terminamos o parágrafo sem saber de fato sobre o que o tal artigo fala.

Anote: Quanto mais geral e abstrato é o sentido de uma palavra, tanto mais vago e
impreciso; quanto mais específico, tanto mais concreto e preciso.

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Sobre o emprego de palavras amplas e muito genéricas, ressalta Othon Garcia:

“Que é que expressamos realmente com o adjetivo ‘belo’, de sentido geral e abstrato, aplicável a uma
infinidade de seres ou coisas, quando dizemos uma bela mulher, um belo dia, um belo caráter, um
belo quadro, um belo filme, uma bela notícia, um belo exemplo, uma bela cabeleira? É possível que
a ideia geral e vaga de ‘beleza’ lhes seja comum, mas não suficiente para distingui-los, para
caracterizá-los de maneira inconfundível. Praticamente quase nada se expressa com esse adjetivo
aplicado indistintamente a coisa ou seres tão díspares. Seria possível assinalar-lhes traços
singularizantes por meio de outros adjetivos mais especificadores: mulher atraente, tentadora,
sensual, arrebatadora, elegante, graciosa, meiga...; dia ensolarado, límpido, luminoso, radiante,
festivo...; caráter reto, impoluto, exemplar...; rapaz esbelto, robusto, guapo, gentil, cordial,
educado... É certo que, ainda assim, o resultado não seria grande coisa, pois muitos dos adjetivos
propostos são ainda bastante vagos e imprecisos, se bem que em menor grau do que ‘belo’. No caso,
o recurso a metáforas e comparações teria maiores possibilidades de salientar os traços mais
característicos e pitorescos do que a simples adjetivação.”

Para a explicação de conceitos mais abstratos, é preciso tomarmos cuidado a fim de


evitar a vagueza. Foi o que fez Aristóteles ao dar a seguinte explicação:

“Como já asseverei, a máxima é uma forma de expressão de caráter geral; ora, as


pessoas apreciam ver expresso em termos gerais aquilo que já conceberam antes
individualmente. Por exemplo, aqueles que têm maus vizinhos ou maus filhos não
deixarão de dar boa acolhida a qualquer um que declare que ‘nada é mais penoso do
que ter vizinhos’, ou então ‘Não há pior insensatez do que gerar filhos’. A conclusão
é que o orador deve ter em cista apurar quais são as disposições de seus ouvintes no
tocante aos assuntos relativamente aos quais eles realmente já detêm opinião e quais
são essas opiniões; em seguida deve externar-se de uma maneira geral acerca desses
assuntos.” (Aristóteles, Retórica)

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Note como, embora trate de um assunto teórico e esteja explicando um conceito,
Aristóteles se faz claro: ele começa com uma definição (“a máxima é uma forma de
expressão de caráter geral”), acresce um comentário que advém de uma percepção
própria sua (“ora, as pessoas apreciam ver expresso em termos gerais aquilo que já
conceberam antes individualmente”) e, na sequência, para se fazer cristalino,
apresenta um exemplo cotidiano. Por fim, conclui algo que o orador deve fazer
(“apurar as disposições dos seus ouvintes...”), fechando o parágrafo com uma
retomada de sua ideia inicial.

Veja como até mesmo expressões abstratas (como “expressão de caráter geral”) são
imediatamente compreendidas quando chega o exemplo concreto.

Isso não significa que toda palavra abstrata necessariamente deva se seguir de um
exemplo. Ao final do parágrafo, o filósofo fala, a saber, em “disposições dos seus
ouvintes”, sem explicar de forma pormenorizada a que está se referindo. Contudo,
pelo contexto não é difícil intuir a que se refere.

Assim, pode-se concluir que a grande sabedoria está na virtude, ou seja, no caminho
do meio. Para que o leitor seja devidamente orientado, é preciso que o escritor
primeiro formule em sua própria cabeça o que deseja transmitir e só depois passe, com
estratégia e didática, para o papel.

*A metáfora e a clareza
Metáfora é a figura de linguagem que faz uma palavra ser empregada fora do seu
sentido básico, passando a designar algo diferente por meio de uma comparação entre
seres de universos distintos.

A sabedoria popular traduzida nos provérbios é um exemplo de linguagem metafórica


bastante útil:

(Othon Garcia)

 
    
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Quando não se está trabalhando com textos técnicos, que exigem linguagem
denotativa e função referencial da linguagem – como dissertações de mestrado e
ofícios de órgãos públicos, por exemplo –, as metáforas podem ser excelentes para
ilustrar o que se quer dizer.

E por que a metáfora pode ser tão útil? Porque a formação imagética traz
esclarecimento ao leitor, aumentando sua conexão com a história. Temos um
vocabulário repleto de palavras abstratas, as quais não têm, por definição,
correspondência palpável no mundo real. Se digo que estou com fome, que imagem
costuma vir à cabeça? Talvez a de um estômago vazio. Isso ocorre porque “fome” é
substantivo abstrato, ao passo que “estômago” é concreto; somente o último tem um
correspondente imaginável.

A situação fica ainda menos ilustrativa quando usamos palavras como “saudade”,
“angústia”, “interpretação”, e, menos ainda, com conceitos específicos, como
“hermenêutica”, “epistemologia” e esses refinamentos de nossa mente. São terrenos
frios, não palpáveis, e o vácuo de imagens pode colocar o leitor pelado no meio da
Antártica, sozinho, rodeado por neve recém-caída a perder de vista (aliás, veja que
metáfora potente), daí o papel esclarecedor da metáfora.

Ao filosofar sobre a escrita, disse o grande escritor Nabokov:

“Os grandes artistas aprenderam a expressar de maneira peculiar a cada um deles


uma série de surpresas especiais. Aos escritores menores resta a ornamentação dos
lugares-comuns, pois, não se dando ao trabalho de reinventar o mundo, simplesmente
tentam extrair o máximo possível de determinado esquema de coisas, dos padrões
tradicionais da ficção.”

(Vladimir Nabokov, Lições de literatura)

Ainda que a maioria de nós não seja grande artista da palavra, não custa usar um
pouco de engenharia reversa para compreender de que maneira os grandes nomes
manuseiam a palavra e fogem dos lugares-comuns. Um dos recursos mais potentes
certamente são as figuras de linguagem.

Para que seja eficiente, as metáforas não podem ser batidas, sob pena de deixarem o
texto até mais pobre do que se não as tivesse. Metáforas já muito recicladas nos soam
tão familiares, que perdem sua capacidade de provocação. Dizer que o resultado
“abalou as estruturas” da empresa, que o professor é “fera” em matemática ou que a
mulher “brilhou como uma estrela” não agrega muito poder expressivo.

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Leia a seguinte passagem do livro A Louca da Casa, da escritora espanhola Rosa
Montero:

“Enfim, como diz a famosa frase, ‘quem se lembra dos anos setenta é porque não os
viveu’. Acho que eu os vivi bastante bem, e, talvez por isso recorde tão pouco. Por
outro lado, às vezes também recorro a uma teoria pessoal provavelmente ingênua, mas
reconfortante: penso que talvez a imaginação concorra com a memória para se
apoderar do território cerebral. Vai ver que a gente não tem cabeça suficiente para ser
ao mesmo tempo memoriosa e fantasiosa. A louca da casa, inquilina prendada, limpa
os salões das lembranças para ficar mais à vontade.” (Rosa Montero, A Louca da
Casa)

Note como a imagem da imaginação (“a louca da casa”) limpando o que seriam os
salões da lembrança faz com que entendamos com perfeição o que a autora quer dizer.
Há ainda outras figuras de linguagem nesse trecho, mas a maioria delas derivada da
metáfora.

Agora veja esta outra passagem, escrita por um copywriter ao falar sobre o ato de
redigir:

“Estas são as duas grandes fugas de muitos profissionais que não dominam
gramática: ou elas se escondem na insegurança, ou elas se escondem atrás da
aparência de uma comunicação pedregosa.”

Note como “esconder-se na insegurança” e “esconder-se atrás de uma comunicação


pedregosa” não são imagens visualmente compatíveis com a ideia de “fuga”.

A insegurança é, na verdade, uma consequência de não se escrever bem, não uma


fuga. E a escrita “pedregosa”, por sua vez, é uma consequência da insegurança. Logo:
escrever mal gera insegurança, que culmina numa escrita pedregosa como
compensação.

Sem nenhuma metáfora, o trecho ficaria muito mais claro:

“Quando sente insegurança para escrever, o profissional costuma usar inúmeras


expressões difíceis, numa clara tentativa de disfarçar sua falta de domínio da língua.”

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Ou então:

“Quando o profissional não domina a gramática, ele age de duas formas: ou evita
escrever, por medo de passar vergonha; ou escreve de maneira rebuscada e difícil, para
disfarçar sua falta de domínio da língua.”

Que a metáfora, quando bem-vinda, seja empregada para enriquecer o texto e


esclarecer as ideias.

2) Precisão
O atributo da precisão complementa o da clareza. Ser preciso significa escolher as
palavras com exatidão. Para isso, é indispensável conhecer o significado delas, bem
como analisar seu cabimento no contexto.
Os manuais de redação sempre enfatizam o dano que a falta de precisão na escolha
das palavras traz. Veja o exemplo abaixo:
“É bem difícil imaginar uma pessoa com sentimento, com consciência do dever para
consigo mesma e para com os outros, viver sozinha.”
A frase não apresenta um único erro gramatical ou coesivo, mas não consegue passar
a mensagem pretendida.
Veja o que diz o professor Alcir Pécora a respeito desse trecho:
“É bem possível que o seu usuário saiba exatamente a que se refere essa noção, quais
os valores que a fundamentam e os motivos que oferece para concluir o que conclui.
Mas certamente a simples menção à consciência do dever não é suficiente para
garantir a especificidade desse argumento, uma vez que a noção que o constitui tem
recebido os mais diversos empregos e recoberto instâncias tão genéricas como
contraditórias.”
Essa falta de intimidade com as palavras faz com que o recado seja passado de forma
trapalhona e tropeçante, como se nota nos excertos abaixo, retirados de peças
jurídicas reais:

 
    
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Veja a seguir o que significam algumas palavras usadas e como elas são incompatíveis
com a mensagem que o autor pretende passar:

O recado poderia ter sido transmitido de forma infinitamente mais precisa, correta e
sem rodeios. Exemplo:

“Os fatos contradizem a tese apresentada no processo. Como se percebe, o réu agiu
no exercício de seu direito e não cometeu nenhum ato ilícito.”

A respeito de adornos linguísticos como esses, assevera ferinamente Schopenhauer:

“As cabeças banais simplesmente não podem se decidir a escrever do modo como pensam, porque
pressentem que, nesse caso, o resultado teria um aspecto muito simplório. Mas já seria alguma
coisa. Se elas apenas se dedicassem com honestidade à sua obra e simplesmente quisessem
comunicar o pouco e usual que de fato pensaram, da maneira como pensaram, seriam legíveis e até
mesmo instrutivos dentro de sua esfera própria. Só que, em vez disso, esforçam-se para dar a
impressão de ter pensado mais e com mais profundidade do que o fizeram realmente. Essas pessoas
apresentam o que têm a dizer em fórmulas forçadas, difíceis, com neologismos e frases prolixas que
giram em torno dos pensamentos e os escondem. Oscilam entre o esforço de comunicar e o de
esconder o que pensaram. Gostariam de expor o pensamento de modo a lhe dar uma aparência
erudita e profunda, para que as pessoas achem que há, por trás deles, mais do que percebem no
momento.” (Schopenhauer, A Arte de Escrever)

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Analise, por fim, as frases abaixo quanto à precisão:

“Se você quer abolir o choro do seu bebê, deve explorar as possibilidades deste
remédio para cólica.”
(Seria mesmo “abolir” o choro? O bebê nunca mais chorará? O que seria “explorar as
possiblidades de um remédio para cólica”?)

“Enfrentei muitas histórias felizes no consultório onde trabalhei. Pude perceber a


beleza da usualidade das dos meus pacientes.”
(O que seria “enfrentar histórias”? O que seria a “beleza da usualidade dos
pacientes”?)

“Só vamos melhorar a pandemia do coronavírus quando aprendermos a nos


relacionar com o vírus, pois ele não interromperá.”
(O que seria “melhorar a pandemia”? Torná-la ainda mais pandêmica? O que seria se
“relacionar” com um vírus? O que significa dizer que o vírus “não interromperá”?)

*Palavras de sentido vago


Um dos grandes inimigos da precisão são as palavras de significado tão amplo, que
simplesmente não conseguem oferecer ao leitor um sentido bem delineado dentro do
contexto. Qual seria a explicação para que uma palavra como “ter”, por exemplo, seja
tão imensamente polissêmica (no dicionário Michaelis, são 46 entradas e 18
expressões registradas formalmente)?

O linguista Guy Deutscher explica:


“[...]a deterioração do significado não parece se originar de nenhum desejo indolente
de economia de esforços, mas pelo seu quase exato oposto: o desejo de aumentar a
expressividade. Os falantes às vezes se empenham bastante para intensificar o efeito
de seus enunciados, para dar mais força e ênfase às suas falas, e ao fazer isso eles
tendem a usar, a cada vez, palavras com significados mais robustos. A curto prazo,
esse método pode atingir objetivos almejados, porém, a longo prazo, a estratégia é
autodestrutiva, simplesmente porque ela é inflacionária. [...]A força do significado de
uma palavra particular depende de sua distintividade, de modo que, quanto mais
ouvimos uma palavra, e em contextos cada vez menos específicos, menos poderosa é a
impressão que ela causará.”

É por isso, por exemplo, que uma palavra como “literalmente” vem ganhando
incontornável aumento de significado, deixando de designar apenas “em sentido
literal” (ou seja: ao pé da letra) e se tornando um intensificador de sentido mais geral:
“O ar estava tão frio, que eu literalmente morri congelado ontem”.

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Embora tenha escrito seu livro na década de 60, já Othon Garcia anunciava um
fenômeno parecido com esse, que só viria a crescer:
“A polarização e o sentido intencional tornam a linguagem ainda mais polissêmica,
agravando os conflitos e desentendimentos. Que se entende exatamente por
nacionalista, entreguista, reacionário, democrata, imperialista, comunista, socialista
ou subversivo? Há trinta anos ou menos, nazistas e fascistas, que se opunham, e ainda
hoje se opõem, a comunistas, diziam-se, e ainda se dizem, nacionalistas; hoje os
nacionalistas são com frequência tachados de comunistas, e aqueles outros, de
reacionários. Os partidários da estatização eram antes fascistas, hoje são comunistas,
mas eles mesmos se dizem nacionalistas. Quem defende a iniciativa privada é
anticomunista para uns, reacionário para outros, embora se considere democrata e
progressista. Para muitos, nacionalismo é amor à pátria, para outros,
xenofobia...Polarização e polissemia andam de mãos dadas.” (Othon Garcia)

É desordenador que cheguemos a tal nível de imprecisão das palavras. Não raramente,
dois falantes pensam dizer a mesma coisa, quando podem tranquilamente usar o
mesmo significante com diferentes significados e referentes na realidade. Alguém que
chame a prática do ato sexual casual de “fazer amor”, por exemplo, certamente não
entende por “amor” o mesmo entendido por quem o compreende a partir de C.S
Lewis.

Uma manchete como esta a seguir não poderia ser menos precisa:

Que se entende por “fascismo”?


Que se entende por “democracia”?
Que se entende por “protestos”?

Tal instabilidade dos signos linguísticos pode prejudicar – e muito – a comunicação,


daí a importância de se ser preciso no que se diz.

 
    
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3) Objetividade
Ser objetivo é ir diretamente ao assunto que se deseja abordar, sem voltas e
redundâncias. É preciso, para tal, que o escritor saiba quais são suas ideias-chave
dentro do texto, aquelas primárias, e quais são as ideias que orbitarão em torno das
principais, ou seja, as secundárias. Se as ideias secundárias não servirem para
detalhar, exemplificar ou esclarecer as primárias, provavelmente é melhor
descartá-las.
Uma das qualidades de um texto objetivo há de ser a concisão, ou seja, a transmissão
do máximo de informações possível com o mínimo de palavras possível. O poema de
José Paulo Paes concisamente nos traz esta lição:

conciso? com siso


prolixo? pro lixo

Para falarmos sobre objetividade na prática, leia o parágrafo abaixo, do jornalista


Arnaldo Jabor. Trata-se de seu último texto – um texto de despedida – para o jornal O
Tempo:
“Muita gente despreza jornalismo como literatura, pois, no dia seguinte, a obra
embrulha o linguado. Pois bem, eu adoro embrulhar linguados e robalos, porque acho
que um banho de efêmero só faz bem à literatura. Vejam Rubem Fonseca e Nelson
Rodrigues. Resolvi ser repórter e prova do crime. Odeio os comentários ‘de fora’, do
comentarista intocado, isento, como se morasse num tapete mágico ou num
helicóptero existencial. Ninguém está fora do jogo.” (Arnaldo Jabor, crônica para O
Tempo)

Agora imagine se Arnaldo Jabor tivesse decidido se despedir do jornal O Tempo


assim:
“O jornalismo é uma atividade profissional que muito frequentemente é vista pelas
pessoas de maneira geral apenas como uma forma de transmitir notícias,
principalmente pela televisão e pela internet. Uma quantidade muito grande de
pessoas não consegue enxergar essa atividade formal como uma fonte de literatura,
porque entende que o jornalismo ele é datado, ou seja, fica velho rapidamente, e essa
característica o afastaria, teoricamente, do que se chama de literatura. Na minha
opinião, mesmo que se trate de um trabalho vinculado a um momento específico da
história – ou seja, da história atual –, o jornalismo pode, sim, ser visto como parte da
literatura, e é exatamente o que nos mostram escritores consagrados, não apenas no
Brasil como no mundo, como Nelson Rodrigues e Rubem Fonseca. Eu mesmo decidi
ser um repórter que se envolve diretamente com os assuntos sobre os quais fala, não
apenas aquele profissional que observa os acontecimentos e depois apenas os relata e
analisa, como se não fizesse parte deles, pois eu vivo no mesmo mundo no qual os
acontecimentos estão se passando e, por isso, sou uma testemunha ocular deles, o que
torna a minha opinião mais crível, afinal é de uma pessoa que viveu exatamente
aquilo sobre o qual decidiu falar em algum veículo de comunicação.”

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Embora não tenha nenhuma incorreção gramatical, o texto é bem enfadonho, pois
peca pelo excesso de palavras e de ideias absolutamente cortáveis.
É claro que Arnaldo Jabor tem a vantagem de poder contar com uma linguagem um
pouco mais informal e artística, dado o gênero em que escreve (crônica). No entanto,
mesmo que tivesse de privilegiar uma linguagem mais formal, poderia dizer:
“Muitos não consideram jornalismo como literatura, pois os textos ali produzidos são
datados. Eu não poderia discordar mais: penso que o textos ligados ao cotidiano do
cidadão podem contribuir literariamente, sim, como provam Rubem Fonseca e Nelson
Rodrigues. Resolvi ser um jornalista que vive o fato e o relata – não tolero
profissionais que fazem comentários de forma asséptica, como se não tivessem
vivenciado aquilo sobre o qual dissertam.”
Um jeito eficiente de estruturar um texto objetivamente é esboçar todas as ideias que
se pretende passar – numa espécie de tempestade de ideias – e depois identificar as que
têm ligação entre si, organizando-as em parágrafos. Não custa dizer que,
diferentemente do exemplo prolixo mostrado, o escritor deve evitar parágrafos
imensos, sob pena de enfastiar o leitor. É preciso ter clemência para com o leitor e
permitir que ele descanse os olhos de tempo em tempo.
Em textos literários, dependendo da intenção do autor, as ideias aparentemente
secundárias podem permanecer. É importante, em todo caso, que essa escolha seja
consciente, ou seja, que o escritor não lance ideias apenas por lançar, mas com algum
objetivo específico.
Em Missa do Galo, Machado de Assis traz uma série de detalhes aparentemente
desinteressantes e bobos, mas que, quando se considera a inteireza de seu conto, têm
um propósito claríssimo. Veja um trecho:

“Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas
os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela
os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim
embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou
vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas.
Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa
ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os
braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das
mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa;
mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na
cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por
cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede.” (Machado de Assis,
Missa do Galo)

Como o texto é narrado em primeira pessoa por Nogueira, é por meio das descrições
aparentemente banais dele que notamos – embora ele mesmo não note – a volúpia de
Conceição.

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4) Coerência e coesão
Coesão é a ligação, a interdependência entre as partes do texto, ocorrendo quando
usados os recursos formais da língua, a fim de se estabelecerem relações lógicas de
sentido (coerência). Pode-se, então, afirmar ser a coerência basicamente consequência
da coesão textual. Quanto mais coerente for o texto produzido, mais interpretável
será.

Observação: Um texto pode ser coerente sem que haja elementos linguísticos
expressos de coesão – são casos raros, mas existem –, no entanto é imperativo que as
partes textuais tenham relação entre si (coesão) para que sejam inteligíveis
(coerentes).

Percebemos a coesão e a coerência de um texto quando as palavras, as frases e os


parágrafos estão bem agrupados, bem ligados, uns dando continuidade aos outros
harmoniosamente.

Leia a carta a seguir, de Gandhi – líder do movimento pela independência da Índia –


para Adolf Hitler (!), com o objetivo de evitar a Segunda Guerra Mundial.
“Caro amigo,
Os amigos insistiram para que eu lhe escrevesse pelo bem da humanidade. Mas relutei
em fazê-lo, por achar que seria uma insolência de minha parte. Alguma coisa me diz
que devo deixar a relutância de lado e formular meu apelo, seja qual for o resultado.

É evidente que, no momento, o senhor é a única pessoa do mundo capaz de impedir


uma guerra que pode reduzir a humanidade ao estado de barbárie. O senhor pagaria
esse preço, por mais valioso que lhe pareça o objetivo que tem em mente? Ouvirá o
apelo de alguém que, deliberadamente, tem repudiado a guerra com considerável
sucesso? De qualquer modo, conto com seu perdão, se errei ao escrever-lhe.

Seu amigo sincero,”

(Retirado do livro Cartas Extraordinárias, de Shaun Usher)

Note as palavras e expressões sublinhadas e sua capacidade de construir uma linha de


raciocínio clara e limpa, que se desenrola sucinta e precisamente, culminando com um
forte argumento: ele, Ghandi, tem repudiado a guerra com considerável sucesso e
pede que Hitler faça o mesmo.

As perguntas feitas na carta, por sua vez, visam a suscitar reflexões absolutamente
coerentes com o cenário. Não se desperdiça uma única palavra. As frases são bem
construídas e breves, passando ar de segurança (apesar da humildade manifesta).

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Abaixo, um trecho da carta de Michel Temer a Dilma Roussef, escrita em 2015, numa
espécie de desabafo:

“Recordo, ainda, que a senhora, na posse, manteve reunião de duas horas com o Vice-Presidente
Joe Biden – com quem construí boa amizade – sem convidar-me, o que gerou em seus assessores a
pergunta: o que é que houve que, numa reunião com o Vice-Presidente dos Estados Unidos, o do
Brasil não se faz presente? Antes, no episódio da "espionagem" americana, quando as conversas
começaram a ser retomadas, a senhora mandava o Ministro da Justiça para conversar com o
Vice-Presidente dos Estados Unidos. Tudo isso tem significado absoluta falta de confiança.”

Para construir seu argumento principal – de que era um vice “decorativo”, como ele
mesmo diz –, Temer apresenta inúmeros argumentos ao longo da carta, alguns deles
razoavelmente complexos, como no caso. O emprego dos elementos de coesão é
fundamental para construir a ligação de seus pontos, deixando o texto coerente e
fluido.
De toda forma, apenas a presença de elementos de coesão não é suficiente para que o
texto seja coerente. É comum encontrarmos textos com correlação frágil de ideias,
como no exemplo abaixo:

“Autoestima, de acordo com o dicionário Caldas Aulete, é a ‘qualidade ou condição


psicológica de quem está satisfeito consigo mesmo e demonstra confiança no próprio
modo de ser e de agir’. Devido a isso, é muito comum indivíduos perderem controle
sobre si mesmos e acabarem cometendo suicídio. Assim, é necessário que se esteja
sempre atento à maneira como somos recebidos pela comunidade, a fim de evitar o
pior.”

Embora não haja propriamente um erro gramatical e haja elementos linguísticos


claros de coesão, a correlação entre as ideias é falsa. O conectivo “devido a isso”
introduz ideia de causa; ora, o conceito de “autoestima” não é a causa de alguns
indivíduos perderem o controle sobre si e cometerem suicídio. Da mesma forma, a
conclusão de que precisamos estar atentos à maneira como somos recebidos pela
comunidade nada tem a ver com o que se disse antes.

Fica evidente a completa falta de nexo, ou seja, a completa incoerência interna do


texto.
A incoerência pode, ainda, ocorrer com relação à realidade em si: o que se toma como
real simplesmente não tem correspondência no mundo concreto, ou tem uma

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correspondência frágil. Exemplo:

“Os políticos se condicionam pelo poder. Eles evitam encontrar seus eleitores em
shoppings, restaurantes e até mesmo em seus gabinetes. Recentemente, o deputado X
foi pego saindo pela porta de trás do gabinete para não se encontrar com uma eleitora
que vinha cobrar dele ações prometidas, mas não cumpridas.”

Antes de qualquer coisa: o que seria “condicionar-se pelo poder” e o que isso tem a
ver com a afirmação da segunda frase? Ademais, embora haja políticos que evitam
seus eleitores (como no caso do exemplo citado), não se pode afirmar que todos são
assim. A afirmação é genérica e fraca do ponto de vista argumentativo.
Estudaremos vários elementos de coesão mais à frente. Quanto à coerência,
certamente será trabalhada, como já vem sendo, ao longo de todo o curso.

5) Persuasão
Persuadir é levar alguém a crer ou a aceitar uma ideia. É por meio da persuasão que se
demonstra por que determinada coisa deve ser escolhida em detrimento de outras.
Muitas são as possibilidades argumentativas para levar alguém a optar por algo:
pode-se argumentar que um bem é melhor porque ele vem acompanhado de outro; que
um bem é melhor porque ele é mais autossuficiente; que um bem é melhor porque é
mais raro; que um bem é melhor porque é mais útil; que um bem é melhor porque nos
inspira o que há de mais nobre e belo; que um bem é melhor porque pessoas de bom
entendimento o escolheram anteriormente etc.

Para Aristóteles, há 3 tipos de persuasão pela palavra:

- O primeiro depende do caráter pessoal do orador: quando o discurso é proferido de


tal maneira que nos faz pensar que o orador é digno de crédito. Deve ser obtido pelo
que é dito pelo orador, não pelo que se pensa previamente de seu caráter;

- O segundo depende dos ouvintes: quando o discurso afeta suas emoções. Nosso
julgamento varia segundo experimentamos sentimentos diferentes (angústia, júbilo,
amizade, hostilidade);

- O terceiro depende do próprio discurso: quando demonstramos a verdade, ou o que


parece ser a verdade, graças à argumentação persuasiva.

De toda forma, um discurso persuasivo depende, antes de tudo, de que o discursante


pense direito. Pensar, limpar o raciocínio, desembaraçar as ideias e só então trabalhar

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a melhor forma de apresentá-las é algo que exige treino e organização mental.

Veja como argumenta o Diabo no conto A Igreja do Diabo, de Machado de Assis:

“A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes
vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e
legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto,
a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é,
tu mesmo? Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os
cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem
anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção
moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as
vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito
social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo
a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente.”
(Machado de Assis, A Igreja do Diabo)

Ardilosamente, o Diabo nubla o campo da moralidade quando trabalha com um


silogismo escorregadio: se podemos vender o que nos pertence – e a palavra, o voto, a
fé, a opinião nos pertencem –, logo podemos vendê-los também.

Embora seja incômoda do ponto de vista moral, a argumentação é tenaz e persuasiva,


pois, após todo o contorcionismo retórico, ela se apresenta de maneira plausível,
aceitável e até mesmo razoável. Termina-se de ler e fica-se com a sensação de que o
argumento é bom, pois goza de razão e prudência – ainda que só aparentemente.
Vejamos outro caso.

Em 1891, pouco depois de ler O retrato de Dorian Gray, do grande Oscar Wilde, um
jovem perplexo, chamado Bernulf Clegg, escreveu ao autor, pedindo-lhe que
explicasse a afirmação “Toda arte é completamente inútil”, contida no prefácio do
romance. Para sua surpresa, Wilde não demorou a responder-lhe.

“Prezado senhor,

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A arte é inútil porque seu objetivo se resume em criar um estado de espírito. Ela não
pretende instruir nem influenciar qualquer tipo de ação. Ela é esplendidamente
estéril, e a característica de seu prazer é a esterilidade. Se à contemplação de uma
obra de arte se segue qualquer espécie de atividade, ou a obra é medíocre, ou o
espectador não conseguiu ter a completa impressão artística.

Uma obra de arte é inútil da mesma forma que uma flor é inútil. Uma flor se abre
para sua própria alegria. Vivemos um momento de alegria ao contemplá-la. Isso é
tudo o que há para dizer sobre nossa relação com as flores. Naturalmente, alguém
pode vender a flor e, assim, torná-la útil para si mesmo, porém isso nada tem a ver
com a flor. Não faz parte de sua essência. É acidental. É uso indevido. Receio que
tudo isso seja muito obscuro. Mas o assunto é longo.

Cordialmente, Oscar Wilde”


O texto é praticamente hipnótico – seja pela poesia de seu conteúdo, seja pelo primor
de sua redação.

O raciocínio se desvela da forma mais convincente possível: a arte é inútil como é


inútil uma flor, sublime criação da natureza. Para que serve uma flor senão para ser
contemplada? Essencialmente, seu fim é sua estéril e inútil existência.

Ainda que haja argumentos contrários, as palavras são tão bem engendradas, as frases
se organizam de forma tão cadenciada, o pequeno drama nas curtas frases finais é tão
cativante, que se desperta a claramente poesia do olhar. A sublime poesia da prosa
também é persuasora.

6) Tom adequado

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Definição de “tom” (Aulete): Modo de dizer, caráter, estilo (tom oratório; tom
enfático)

Note que o conceito de tom está intimamente vinculado ao de estilo.

Othon Garcia define “estilo” como “tudo aquilo que individualiza obra criada pelo
homem, como resultado de um esforço mental, de uma elaboração do espírito,
traduzido em ideias, imagens ou formas concretas. A rigor, a natureza não tem estilo;
mas tem-no o quadro em que o pintor a retrata, ou a página em que o escritor a
descreve. [...] quando falamos em ‘feição estilística da frase’, estamos considerando a
forma de expressão peculiar a certo autor em certa obra de certa época”.

Escolher bem o tom é, portanto, escolher a feição do texto, que será responsável por
despertar no leitor sentimentos diversos.

O tom escolhido depende, é claro, do autor e de seu estilo, mas também do


interlocutor, do contexto e da intenção comunicativa. É evidente que um texto
voltado para crianças há de ser diferente de um voltado para adultos. Da mesma
forma, uma crônica reflexiva sobre pormenores do cotidiano há de ter tom diferente
do de uma notícia de jornal. No mesmo sentido, uma pessoa mais doce há imprimir
tom naturalmente diferente do de uma mais colérica.

Isso não significa, no entanto, que alguém mais doce não possa calibrar seu tom para
escrever de forma séria e impessoal, quando o contexto exigir. Novamente, então,
ressalta-se a importância de se pensar antes de escrever, a fim de fazer escolhas
conscientes e estratégicas.

Analisemos os excertos:

“Em meus tempos como professor, procurei fornecer aos estudantes de literatura informações exatas
sobre os detalhes e as combinações de detalhes que propiciam a centelha sensual sem a qual um
livro é uma coisa morta. Nesse sentido, as ideias gerais não têm a menor importância. Qualquer
idiota pode assimilar os principais elementos da posição de Tolstói a respeito do adultério, porém, a
fim de apreciar sua arte, o bom leitor deve desejar visualizar, por exemplo, o interior de um vagão
do trem noturno que ligava Moscou a São Petersburgo cem anos atrás.” (Vladimir Nabokov, Lições
de Literatura)

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“A partir de amanhã, o Aeroporto Internacional de Heathrow, na região
metropolitana de Londres, também deixará de exigir o uso de máscaras em suas
dependências, embora oriente que a manutenção da proteção seja ideal para
circunstâncias de contato próximo com outras pessoas. No entanto, o Aeroporto frisa
que passageiros devem estar atentos às regras das companhias pelas quais irão voar,
porque a decisão de cobrar a proteção dentro das aeronaves pode variar de acordo
com a empresa.” (Fonte: Revista Oeste)

Agora leia esta história antes de analisar a carta que a segue.


Em 1934, um redator de Nova York chamado Robert Pirosh largou um emprego bem
remunerado numa agência de publicidade e rumou para Hollywood, decidido a
trabalhar como roteirista, a profissão de seus sonhos. Lá chegando, anotou o nome e
o endereço de todos os diretores, produtores e executivos que conseguiu encontrar e
enviou-lhes o que certamente é o pedido de emprego mais eficaz que alguém já
escreveu, pois resultou em três entrevistas, uma das quais lhe rendeu o cargo de
roteirista-assistente na MGM. Quinze anos depois, Robert Pirosh ganhou o Oscar de
melhor roteiro original com o filme O preço da glória, e meses mais tarde recebeu
também um Globo de Ouro:

“Prezado senhor:
Gosto de palavras. Gosto de palavras gordas, untuosas, como lodo, torpitude,
glutinoso, bajulador. Gosto de palavras solenes, angulosas, decrépitas, como pudico,
ranzinza, pecunioso, valetudinário. Gosto de palavras espúrias, enganosas, como
mortiço, liquidar, tonsura, mundana. Gosto de suaves palavras com “V”, como
Svengali, avesso, bravura, verve. Gosto de palavras crocantes, quebradiças,
crepitantes, como estilha, croque, esbarrão, crosta. Gosto de palavras emburradas,
carrancudas, amuadas, como furtivo, macambúzio, escabioso, sovina. Gosto de
palavras chocantes, exclamativas, enfáticas, como astuto, estafante, requintado,
horrendo. Gosto de palavras elegantes, rebuscadas, como estival, peregrinação,
elísio, alcíone. Gosto de palavras vermiformes, contorcidas, farinhentas, como
rastejar, choramingar, guinchar, gotejar. Gosto de palavras escorregadias, risonhas,
como topete, borbulhão, arroto.

Gosto mais da palavra roteirista que da palavra redator, e por isso resolvi largar meu
emprego numa agência de publicidade de Nova York e tentar a sorte em Hollywood,

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mas, antes de dar o grande salto, fui para a Europa, onde passei um ano estudando,
contemplando e perambulando.

Acabei de voltar e ainda gosto de palavras. Posso trocar algumas com o senhor?
Robert Pirosh Madison Avenue, 385 Quarto 610”
(Retirado do livro Cartas Extraordinárias, de Shaun Usher)
Os três textos apresentam tons diferentes. O primeiro tem tom franco e quase
confessional; além disso, vale-se de pontos informais, criando conexão com o leitor e
transmitindo a honestidade de um professor que, analisando sua carreira em
retrospectiva, chega a determinadas conclusões.

O segundo é puramente informativo. Apesar do assunto delicado, não apresenta


envolvimento pessoal do escritor e privilegia a função referencial da linguagem. É
desapaixonado e impessoal, como é típico do gênero notícia, num estilo asséptico. O
objetivo é passar distância do fato, justamente para trazer credibilidade ao veículo
noticiante.
O último texto tem tom brincalhão, sagaz e caloroso. Como seu objetivo era chamar
atenção e fazer o currículo do aspirante a roteirista se destacar entre vários outros,
ele decide quebrar o protocolo. A irreverência é estrategicamente usada para causar
certo espanto aos leitores, que logo se rendem à genialidade da ideia (tanto que o
autor foi chamado a fazer três entrevistas).

O ESTILO DA FRASE

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Como já vimos, o estilo é a forma pessoal de expressão em que se trabalham os
elementos lógicos e os afetivos.
Por ser proveniente de um esforço mental para a tradução das ideias, deve ser
trabalhado pelo autor. O estudo das escolhas linguísticas que resultam no estilo do
texto (e do autor) chama-se estilística.
Quanto mais estrategicamente lapidadas e aprimoradas forem as frases, melhor será a
expressão da ideia.
A seguir, apresentar-se-ão alguns desvios comuns relativos à estilística.

1) Frase de arrastão
Leia o parágrafo abaixo:
“Na cidade nova, matriculei-me na academia e descobri bons bares, mas não tinha
companhia para ambos, pois não conhecida ninguém. Decidi ligar a um velho
conhecido. Aí ele me atendeu, mas não podia sair, pois estava ocupado. Mas aí
mudou de ideia e me ligou horas depois. Acabamos saindo para um bar bacana, mas
ficamos pouco tempo.”

Note como a estruturação das frases é quase simplória e reflete um discurso que
poderia perfeitamente ser oral. A linguagem beira o infantilismo: as curtas orações
vão se arrastando umas às outras, atadas fragilmente por conectivos de amplo sentido
e grande frequência em discursos orais: então, mas, mas então, aí. Há, ainda, várias
orações coordenadas soltas.
Quando o recado que se pretende passar é simples e o contexto permite, não há
problema nesse tipo de estrutura. Veja Machado:
“Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens.
Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de
magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria
vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe
arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde
casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca
de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo
recebê-lo.” (Machado de Assis, A Cartomante)

Veja que, apesar das frases de arrastão, Machado enriquece o parágrafo com orações
subordinadas (“que queria vê-lo médico”, por exemplo) bem como com pontos e

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vírgulas.

Quando o que se pretende é apresentar ideias mais complexas, que exigem certo
intrincamento de raciocínio, esse tipo de construção não é suficiente. Há que se
recorrer a artifícios mais elaborados linguisticamente, em especial à subordinação de
orações.

Analise o texto:

“Vejo muita gente gritando ‘Originalidade! Originalidade!’ — e, quando vou ler o


resultado de tanta ‘originalidade’, encontro apenas iconoclastas que desconfiam da
linguagem, que escrevem como se fossem gagos, que não usam palavras ou frases,
mas sinais de trânsito.
O ceticismo em relação ao poder da linguagem é um bom tema para piadas na mesa
de bar, mas, quando o escritor se coloca solitário, diante do papel em branco, o que
deve prevalecer é a certeza de que, se milhares de escritores antes dele conseguiram
produzir beleza e transmiti-la aos leitores, então a linguagem pode continuar sendo
trabalhada: ela merece nossa confiança. No mínimo, pela forma como assegura nossa
sobrevivência. Portanto, não transforme seu texto num amontoado de experimentos
vazios. Não faça como os vanguardistas, que primeiro estipulam regras e depois
passam a vida presos numa camisa de força — ou, pior, divertindo-se em prender os
outros nas mesmas fôrmas.” (Rodrigo Gurgel, texto Há Inúmeras Formas de Escrever
Bem)

Perceba como o autor escreve de forma acessível, mas longe do simplismo: enriquece
seu texto com orações subordinadas e pontuação rica (incluindo dois-pontos e
travessões), objetivando provar um ponto de vista de certa forma complexo. Daí ser
importantíssimo dominar os elementos de coesão e a diversidade de pontuação, os
quais se estudarão mais adiante.

2) Frase entrecortada

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Especialmente após o movimento modernista, ganhou a literatura uma estrutura mais
dinâmica, com menos intrincamento de orações, em prol da simplificação. Frases
curtas e incisivas ganharam espaço, numa apresentação atomizada do pensamento.

Essa estratégia pode ser boa quando bem aproveitada, pois, ao exigir menos do leitor,
facilita o entendimento de sua parte.

Analise:

“Mas quantas vezes a insônia é um dom. De repente acordar no meio da noite e ter essa coisa rara:
solidão. Quase nenhum ruído. Só o das ondas do mar batendo na praia. E tomo café com gosto,
toda sozinha no mundo. Ninguém me interrompe o nada. É um nada a um tempo vazio e rico. E o
telefone mudo, sem aquele toque súbito que sobressalta. Depois vai amanhecendo. As nuvens se
clareando sob um sol às vezes pálido como uma lua, às vezes de fogo puro. Vou ao terraço e sou
talvez a primeira do dia a ver a espuma branca do mar. O mar é meu, o sol é meu, a terra é minha.
E sinto-me feliz por nada, por tudo. Até que, como o sol subindo, a casa vai acordando e há o
reencontro com meus filhos sonolentos.” (Clarice Lispector, A descoberta do mundo)

Note como há certo laconismo na passagem, certa economia de palavras e carência de


conectivos. A situação cotidiana retratada é simples e, portanto, compatível com tal
característica textual. Períodos muito mais complexos talvez nem fossem tão
expressivos e adequados.
No entanto, novamente, se a ideia é mais profunda, dificilmente esse tipo de
estrutura consegue, sozinho, apresentá-la satisfatoriamente e pode empobrecer o
texto facilmente.

Observe um trecho escrito por mim num texto denominado A Palavra é Fatal:

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“A comunicação é a arma mais poderosa que alguém pode dominar. Os gregos sabiam disso a
ponto de conferir ao vocábulo ‘logos’ um amplo sentido: pensamento, razão, linguagem, discurso
e... palavra. Um único conceito, um único vocábulo: sem palavra, não há razão ou pensamento
articulado.

Pensar com clareza, vincular bem as ideias e transpô-las para o papel, organizar linhas de
raciocínio claras e bem amarradas, expor verbalmente as próprias percepções sem titubear e sem as
embaralhar, tudo isso faz com que o indivíduo se imponha sobre a vida, defenda-se, ocupe espaços,
leia o mundo e as pessoas com acuidade. Leia novamente: dominar a comunicação verbal faz com
que o indivíduo se imponha sobre a vida.”

(Lara Brenner, A palavra é fatal, página Língua e Tradição, no Facebook)

Agora imagine se a ideia anterior fosse veiculada assim:

“A comunicação é a arma mais poderosa que alguém pode dominar. Os gregos sabiam disso. Em
grego, ‘logos’ quer dizer pensamento, razão, linguagem e palavra. Sem palavra, sem pensamento. A
comunicação faz o indivíduo se impor. Quem domina as palavras ocupa mais espaços. Defende-se.
Impõe-se sobre a vida.”

O final do texto fragmenta uma oração, o que, em tese, contraria o rigor normativo.
Esse tipo de recurso pode contribuir para o estilo do texto, mas perceba como, no
caso, o texto fica praticamente asmático. São frases soltas, ou pedaços de frases; a
falta de coesão faz com que se tornem excessivamente telegráficas, a ponto de
prejudicar o texto.

A virtude, portanto, reside no meio. Frases entrecortadas e fragmentárias podem


muito bem ser úteis, quando usadas – ressalta-se mais uma vez – com consciência e
intenção.

A seguir, Machado eficientemente trabalha com um entrecorte de frase. Como está


explicando uma situação razoavelmente complexa, no entanto, vale-se de orações

Gabriela Arruda de Abreu - cantanhedegabi@gmail.com - CPF: 058.815.251-08


mais sofisticadas e até mesmo discurso indireto livre.

“Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma
igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso
que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia,
por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada
regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as
outras religiões, e destruí-las de uma vez.” (Machado de Assis, A Igreja do Diabo)

3) Frase labiríntica ou centopeica

Se, por um lado, o excesso de frases entrecortadas e fragmentadas pode decepar as


ideias, por outro, as frases imensas, que abusam da subordinação, podem
prejudicá-las. Ainda que sejam corretas do ponto de vista normativo, o leitor
dificilmente consegue manter a atenção na mesma frase por um tempo longo demais.

Note:

“A escola, quando não separa o pensamento do aluno em ‘caixas’, ao organizar as matérias em


partes rigorosamente delimitadas – como a divisão do estudo da Língua Portuguesa em Redação,
Gramática, Literatura e Texto –, fazendo com que o aluno não compreenda a totalidade da
disciplina, contribui muito para o aprendizado.”

Do ponto de vista da norma-padrão, não se pode apontar erro. No entanto, a enorme


intercalação (iniciada em “quando” e terminada em “disciplina”) faz com que o
pobre leitor se perca num labirinto de ideias. A oração principal “A escola contribui
muito para o aprendizado” praticamente não é absorvida pelo leitor comum numa
primeira lida.

Em casos assim, o que se sugere é um esforço de reescrita total:

“É comum que as escolas separem as matérias em ‘caixas’. É o que ocorre, por exemplo, com a
Língua Portuguesa, que frequentemente é dividida em quatro: Gramática, Texto, Redação e
Literatura. Essa dinâmica faz com que o aluno não apreenda a totalidade da disciplina e a veja de
forma fragmentada. Por tal razão, muito contribui a escola que foge desse modelo.”

Gabriela Arruda de Abreu - cantanhedegabi@gmail.com - CPF: 058.815.251-08

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