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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS

INTRODUÇÃO AO ESTUDOS LITERÁRIOS II

LEANDRO NAOKI MATSUMOTO

N° USP: 11772889 Frequência: 100%

PROCÓPIO: DA DEPENDÊNCIA À INDEPENDÊCIA E SEUS MEIOS

Análise do conto “O Enfermeiro” de Machado de Assis

São Paulo

Dezembro de 2020
A obra “O Enfermeiro” de Machado de Assis conta a história de um narrador relembrando
um caso que o aconteceu em 1860 a alguém que deseja publicá-lo em um livro. Após
estabelecidas suas condições para a publicação, inicia-se o relato: trabalhava para um padre
de Niterói copiando textos teólogos quando um dia recebeu uma proposta para trabalhar de
enfermeiro a um coronel chamado Felisberto em uma vila. Ao chegar no vilarejo, descobriu
que o coronel era alguém insuportável e exigente o qual já quebrara a cara de dois
enfermeiros antes. Todavia, seu primeiro encontro não foi ruim e Procópio, o nome do
narrador, passou uma boa impressão a ele. No entanto, esse momento de pazes entre ambos
durou apenas sete dias e no oitavo o enfermeiro tornou-se a uma vida como seus antecessores,
sujeito a noites sem dormir e injúrias.

Procópio tentou se demitir do cargo após um ataque físico do coronel mas foi implorado
para que ficasse pelo próprio agressor e no fim cedeu. Acabaram-se as agressões físicas,
porém as injúrias verbais continuavam as mesmas se não piores. Com o constante sofrimento
do narrador e também sua vontade de retornar à Corte, decidiu-se que na primeira ocasião
sem desculpas demitir-se-ia. Assim, em agosto contou ao vigário e ao médico sobre sua
partida e eles pediram apenas que ficasse um pouco mais de tempo para arranjarem-no um
substituto.

Em uma noite de agosto, Felisberto teve um ataque de raiva e acabou jogando um prato de
mingau em seu enfermeiro. Nessa mesma noite, enquanto o coronel dormia, Procópio estava
ao lado de sua cama lendo um livro pois deveria dar um remédio ao enfermo à meia-noite.
No fim, acabou também caindo no sono e acordou aos gritos do coronel e o arremesso de
uma moringa. Assim, Procópio atirou-se e lutou com o doente até perceber que este expirava,
checou-o e percebeu: o coronel estava morto. Saiu da sala e passou duas horas da madrugada
delirando, atordoado e com o sentimento de culpa; abriu uma janela para calar o silêncio
mas a noite estava tranquila. Só então Procópio começou a pensar na punição, no castigo.

Antes do amanhecer, foi ao quarto do senhor, escondeu as evidências do assassinato e em


seguida chamou um escravo para notificar a morte. Procedeu-se o ritual funerário e a todo
momento estava com medo de ser descoberto pelo crime cometido. Quando finalmente
acabara o sepultamento do corpo, Procópio sentiu-se com uma consciência leve, por mais
que fosse somente por alguns dias.
Logo que acabou o funeral, Procópio foi embora ao Rio de Janeiro e lá viveu aterrado,
aproveitou a impressão de outros para elogiar o morto de modo a convencê-los e também a
si mesmo. Depois de sete dias no Rio de Janeiro, recebeu uma carta do vigário afirmando
que Procópio virou o herdeiro universal dos bens do coronel. Ao descobrir sobre, ficou
pasmo, não acreditou no que leu: na ironia dos bens do coronel estarem em suas mãos. No
fim, decidiu que receber-lhe-ia mas doaria tudo, aos poucos e de maneira escondida. Desse
modo, pagaria pelo seu crime com um ato de virtude e ficaria sem dívidas com o destino.

Assim, seguiu-se à vila e quanto mais próximo chegava, mais lembrava-se de seu tempo lá.
Procópio indagava se o acontecimento daquela noite foi um crime ou luta e fixou em sua
mente que foi uma luta com o coronel, cuja vida já era breve. Quando chegou na vila, foi
recebido com parabéns e elogios dos habitantes. Estes vinham a Procópio para conversar
sobre o falecido e vários casos envolvendo-o, de maneira sempre ruim e sem moderação; o
herdeiro, como sempre, o defendia. Após meses de entrar na posse dos bens, sua vontade de
distribuí-la diminuiu, doou apenas uma parte para os pobres, o vilarejo e à Santa Casa,
somando ao tudo trinta e dois contos; além de um túmulo ao coronel.

Enquanto o tempo passava, sua memória do coronel tornava-se nebulosa. Procópio conferiu
com médicos e todos concordaram que o coronel estava em seus últimos momentos de vida,
por mais que ele tenha exagerado em descrever seus sintomas. Por fim, Procópio despede-
se e pede que, se a história serviu-lhe de algo, pagasse com um túmulo de mármore escrito
nele: “Bem-aventurados os que possuem, porque eles serão consolados.”.

Há duas figuras principais no conto: o coronel Felisberto e o enfermeiro Procópio.


Primeiramente, o coronel é alguém duro, insuportável, bravo, velho; sua personalidade é
quase como uma caricatura: um idoso doente com constantes acessos de raiva, rabugento,
sádico e sem amigos ou parentes ao seu redor. Tal comportamento vem de uma vida inteira
de mimos e foi intensificado por sua moléstia, proclamado por próprio Procópio em: “Tudo
impertinências de moléstia e do temperamento. (...) Tinha perto de sessenta anos, e desde os
cinco toda a gente lhe fazia vontade.”

No entanto, a proximidade à morte amedronta Felisberto, este pressente sua solidão e dessa
maneira agarra-se à Procópio fortemente quando ele ameaça ir embora e diz: “Estou aqui,
estou na cova. Você há de ir ao meu enterro, Procópio (...) Se não for, acrescentou rindo, eu
voltarei de noite para lhe puxar as pernas.”. Nesse momento vê-se uma parte de humanidade
do coronel, por menor que seja. Embora haja na fala do coronel um tom irônico e até um
pouco maligno, percebe-se o desespero de Felisberto ao ver seu último e único companheiro
antes da hora, em seus olhos, ir embora. Percebe-se essa dependência do coronel pelo fato
de Procópio ser o herdeiro universal de seus bens.

Em segundo lugar, há Procópio, nosso protagonista e narrador da história. Sua vida anterior
ao emprego de enfermeiro não era algo espetacular: vivia com 42 anos na casa de um padre
copiando textos teológicos; poderia considerá-lo alguém medíocre. Procópio, além de não
ter vivido muito, também é alguém inocente, altamente persuasível. Ele tentou despedir-se
várias vezes, mas em todas foi convencido ou pelo vigário ou pelo próprio coronel. A todo
momento, Procópio suspeita que todos sabem que é ele o assassino do coronel.

Todavia, Procópio é também esperto: utiliza de sua paranoia e isolamento para fingir o luto
pelo coronel e enaltecia a figura do coronel para retirar todas as suspeitas de assassinato
quando diz: “E eu aproveitava a ilusão, fazendo muitos elogios ao morto, chamando-lhe boa
criatura, impertinente, é verdade, mas um coração de ouro.”.

A partir das teorias discutidas por Antonio Dimas em sua obra “Espaço e Romance”, não
há muitos vazios narrativos no conto e as descrições são em sua maioria de ambientação
dissimulada, visto que o narrador é o protagonista da ação e vê-se através de seus olhos os
acontecimentos. O principal espaço do conto inteiro que é descrito por Procópio é a vila e,
consequentemente, a casa do coronel.

O vilarejo é um lugar afastado, no interior no qual mora o coronel. Esse isolamento físico
é traduzido também em um isolamento social, visto que ao se afastar de Niterói e de seu
cotidiano, Procópio confina-se com Felisberto sem receber informações externas além
daquelas que o coronel trazia, evidenciado no excerto: “Para avaliar o meu isolamento, basta
saber que eu nem lia os jornais; salvo alguma notícia mais importante que levavam ao
coronel, eu nada sabia do resto do mundo.” Assim, o ambiente catalisa a ira e a perda de
empatia o qual culminará no assassinato do paciente.

Um fato importante de notar-se é que o narrador conta a partir de um momento futuro sobre
memórias de uma época passada. Logo no início, o narrador transporta o leitor para um
passado e a partir desse ponto é contado a história obedecendo o tempo cronológico, de
maneira linear, segundo Bendito Nunes. Os únicos momentos em que a linearidade é
quebrada acontece quando personagens relatam os enfermeiros e pessoas anteriores à
chegada de Procópio na vila como: “Era homem insuportável, estúrdio, exigente, ninguém
o aturava, nem os próprios amigos. Gastava mais enfermeiros que remédios. A dous deles
quebrou a cara.” e “Não tinha parentes; tinha um sobrinho que morreu tísico, em fins de
maio ou princípios de julho”.

O momento provavelmente mais importante no conto é após o assassinato do coronel,


quando Procópio tem um colapso emocional e se sente culpado, atordoado e delirando sob
durante a madrugada. Nesse momento, há a manipulação do tempo psicológico porque
apesar de se passar duas horas inteira, pelo seu estado de atordoamento ele não tem ideia do
que aconteceu neste tempo. O som do relógio torna-se lento e reflete o silêncio e a solidão.
Toda a ação agora ocorre na mente de Procópio e essa parte expõe sua desconfiança, o medo
de castigo e dos olhos alheios.

Algo importante a se notar é a maior preocupação com o fato do assassinato não ser
descoberto do que a morte em si. Passagens como: “Não creia que esteja fazendo imagens
nem estilo; digo-lhe que eu ouvia distintamente umas vozes que me bradavam: assassino!
assassino!”, “Achei-me com um crime às costas e vi a punição certa.” e “Minutos depois, vi
três ou quatro vultos de pessoas, no terreiro espiando, com um ar de emboscada; recuei, os
vultos esvaíram-se no ar; era uma alucinação.” exemplificam o terror que Procópio tem de
ser acusado do crime, visto que a parte de sua vida conhecida pelo leitor é em dependência
de alguém: ou o padre de Niterói ou o coronel. Ele sempre serviu alguém, foi auxiliado por
alguém e se for indiciado, essa relação nunca mais seria feita pois Procópio matou seu
contratador. Portanto, Procópio tem medo da morte de Felisberto não por matá-lo mas por
não ter a vida fácil que possuía.

Desse modo, ao receber a herança do coronel ele perde o medo da morte. Procópio, agora
rico, vê a oportunidade de independência e ao longo do processo de obtenção dos bens
justifica-se: “Crime ou luta? Realmente, foi uma luta, em que eu, atacado, defendi-me, e na
defesa (...) Considerei também que o coronel não podia viver muito mais; estava por pouco;
ele mesmo o sentia e dizia.” Ele também enganava a todos ao forjar um laço de aspiração e
amor ao coronel. Assim, Procópio tornou-se independente e rico, por mais que às custas de
outro.

Acima de tudo, a narração é sujeita a enganar o leitor, o qual toma partido em Procópio. A
peculiaridade desse conto é que o narrador é o protagonista da história, ou seja, ele a conta
na primeira pessoa. No entanto, ele não narra no presente, no momento em que acontece a
ação, mas em um futuro longe do acontecimento. A partir disso, é capaz de inferir dois
aspectos da narração: não existe uma descrição minuciosa por causa da grade diferença de
tempo e deve-se tomar muito cuidado com sua palavra.

Procópio não possui uma visão onisciente e só pode adivinhar sobre os sentimentos e
pensamentos dos outros. Desse modo, a impressão passada de Felisberto é filtrada pelos
olhos de Procópio, como: “Se fosse só rabugento, vá; mas ele era também mau, deleitava-se
com a dor e a humilhação dos outros.”, “Coibiu-se das bengaladas; mas as injúrias ficaram
as mesmas, se não piores.” e “(...) o coronel teve um acesso de raiva, atropelou-me, disse-
me muito nome cru, ameaçou-me de um tiro, e acabou atirando-me um prato de mingau, (...)”
Essas afirmações não tem como serem provadas devido ao grande intervalo de tempo. Logo,
Procópio pode ter hiperbolizado muitas das ações e características do coronel para tornar
Felisberto um vilão e melhorar sua imagem por comparação no processo.

O conto “O Enfermeiro”, portanto, mostra a história de um narrador não confiável em uma


situação de interdependência com o coronel. Este depende emocionalmente de Procópio pois
ele se sente sozinho e Procópio possui uma dependência monetária com Felisberto, visto que
ele é seu enfermeiro. O assassinato do coronel propicia a independência do narrador e muda
sua maneira de ver.
Bibliografia

ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. v. II.

NUNES, Benedito. O Tempo na Narrativa. 2. ed. São Paulo: Editora Ática, 1995. 84 p.
(Série Fundamentos).

DIMAS, Antonio. Espaço e Romance. 2. ed. São Paulo: Editora Ática, 1987. 77 p. (Série
Princípios).

FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito


crítico. Revista USP, São Paulo, n. 53, p. 166-182, março/maio 2002.

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