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Os Gigantes

Se longe enxerguei, é porque estive


apoiado sobre os ombros de gigantes.
–Isaac Newton

Um conto sobre o ano miraculoso de Newton...

de Diego de Melo
Capítulo 1

Visita na quarentena

17 de Agosto de 1666. Lincolnshire, Inglaterra.

Havia mais de um ano desde que o Trinity College,


da Universidade de Cambridge, tinha fechado suas
portas devido à epidemia de Peste Bubônica que asso-
lava a Inglaterra. A contagem de mortos, em menos
de dois anos, já devia estar na casa dos 70.000.
Isaac Newton, na época com seus 23 anos de idade,
estava entre os alunos do Trinity College que ha-
viam sido mandados de volta para casa. Seguindo sua
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sensatez, Newton isolou-se na casa onde seus pais


moraram, em Woolsthorpe, até que a Grande Peste
fosse embora.
Até aquela data, sua quarentena estava sendo parti-
cularmente muito produtiva, pois já havia descoberto
o Teorema Fundamental do Cálculo e feito grandes
avanços na óptica física.
Há dias, Newton estudava com afinco os trabalhos
de Kepler, objetivando compreender melhor a intrin-
cada dança das esferas. Porém, naquela tarde, ele
decidiu sair de sua casa, de modo a fugir um pouco
de sua rotina. Sob a velha macieira, onde brincara
quando criança, parecia ser o local perfeito para es-
pairecer seus pensamentos.
Todavia, mesmo descansando embaixo da maci-
eira, era acometido por pensamentos que involunta-
riamente o mobilizavam para resolver os problemas
matemáticos sobre os quais tanto se debruçava.
Seus pensamentos o impediam de perceber que
naquele exato momento, algo no mínimo estra-
nho estava acontecendo: quase que repentina-
mente, o ambiente pareceu ficar mais frio; folhas
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rodopiavam, pois havia começado a ventar muito.


Foi quando inexplica-
velmente um tipo de
“portal” cintilante sur-
giu bem à sua frente.
Isaac Newton foi ar-
rancado à força do
seu estado de absor-
ção. O chão estreme-
ceu e uma maçã caiu
em sua cabeça.
E então, eles apare-
ceram... Seres muito magros, quase que esqueléticos.
Embora com a aparência humana, pareciam ter mais
de dois metros de altura e utilizavam um pequeno
aparelho para respirar.
Newton estava inerte, apavorado, não sabia o que
fazer. E então os gigantes começaram a gesticular:
– Você é Isaac Newton? – perguntou um dos gi-
gantes.
– Si-im, sim – respondeu Newton, com a voz em-
bargada.
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– Meu nome é Salviati, e este é Simplício. – se


referindo ao outro gigante. – Somos cientistas. Vie-
mos de um planeta chamado Gravitas. Fizemos uma
longa viagem, partindo dos confins do espaço-tempo,
e precisamos que venha conosco, senhor.
– Po-or quê? O que são vocês e o que querem
co-comigo? – indagou Newton, ainda com a voz em-
bargada.
– Há mais coisas acontecendo entre as estrelas do
que você pode imaginar. – respondeu Salviati. – O
meu povo está em guerra com o planeta Leibnik. Pre-
cisamos que você construa uma bomba Antigravidade
para que possamos ganhar esta guerra. O destino de
nosso povo depende de sua ajuda!
– Eu não participo de guerras. – respondeu New-
ton. – E o que é Gravidade?
– Não temos tempo para isso. – falou Simplício. –
Pegue-o! Agora!
Foi então que Salviati injetou um medicamento no
braço de Newton. Ele começou a se sentir zonzo e,
por fim, desmaiou. Salviati e Simplício o pegaram, e
o levaram pelo portal.
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Capítulo 2

Outro mundo

Quando Newton acordou, se


deparou com um céu extrema-
mente lindo: as cores iam de
um laranja muito forte a gran-
des traços avermelhados. De
imediato, ele sabia que já não
estava mais em seu mundo.
Entretanto, não era o céu de
um mundo estranho que lhe
causava espanto, tampouco os seres de mais de dois
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metros que o carregavam, mas sim o seu peso. Inex-


plicavelmente, ele se sentia mais leve. Poderia dar
incríveis saltos, ele pensou; ou até mesmo se jogar de
um lugar relativamente alto que não iria se machucar.
Newton não sabia o que estava acontecendo, mas
precisava entender:
– Por que eu me sinto mais leve?
– Você praticamente inventou a gravidade e está
me perguntando como ela funciona? É sério? – res-
pondeu Simplício.
– Eu já disse. Não tenho ideia do que vocês estão
falando. Eu não sei o que você quer dizer.
– Já passamos dessa fase. Sabemos quem você é. E
você vai nos ajudar a construir essa bomba! – retru-
cou Simplício.
– Pelos céus. Eu já falei: eu não participo de guer-
ras! Sou apenas um matemático. Vocês pegaram a
pessoa errada... – falou Newton, já angustiado.
– Apenas continue andando! – ordenou Simplício.

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Capítulo 3

Gravidade e equilíbrio

Após uma longa caminhada, os três chegaram


a uma pequena escarpa. Os gigantes conseguiriam
escalá-la facilmente, pensou Newton. Entretanto,
para que ele pudesse chegar no topo, foi necessário
que subisse nos ombros dos gigantes.
Sobre os ombros dos gigantes, Newton obteve uma
visão assustadora: a de um lugar totalmente devas-
tado: com construções destruídas e fumaça, ema-
nando de todas as partes, mesclando-se ao alaranjado
do céu. Dando-lhe um tom lamentoso e causando
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arrepios em Newton.
– O que aconteceu aqui?
– Nunca viu uma guerra, Sir Isaac Newton? – per-
guntou Simplício.
Embora soubesse
das consequências
da Guerra dos Trinta
Anos, Isaac Newton
nunca vira os horro-
res de tais conflitos,
de perto. Contudo, a
curiosidade diante da
esquisita aparência
dos gigantes ainda
o deixava intrigado,
obrigando-o a perguntar:
– E o que aconteceu com vocês?
Enquanto continuavam a caminhada, Salviati se
prestou a responder:
– Nosso planeta já passou por muitas alterações
geológicas. Hoje sua aceleração gravitacional corres-

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ponde a apenas 0, 4 g 1 . Em decorrência, perdemos


muita massa muscular. Além disso, como não há
um campo gravitacional forte para contrabalancear
a estrutura óssea, nossa altura aumentou significati-
vamente ao longo dos milênios.
Isaac Newton sempre tivera muito orgulho de seu
próprio intelecto, mas naquele momento, se sentia
muito estranho com relação a isso, pois, ou ele es-
tava ouvindo grandes absurdos desconexos e que não
faziam o menor sentido, ou ele realmente não tinha
capacidade para entender o que estava ouvindo.
– De fato, a gravidade é uma interação fundamen-
tal magnífica. – complementou Salviati.
Naquele instante, Newton finalmente soube do que
se tratava aquela conversa...
– Espere. O quê? Você está insinuando que algum
tipo de “força” é responsável por isso? É um absurdo.
1
A aceleração gravitacional na Terra corresponde a aproximada-
mente g = 9, 8 m/s2 . Logo, a aceleração gravitacional no planeta
Gravitas corresponde a aproximadamente 0, 4 g = 3, 92 m/s2 .

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Não existem forças de ação à distância2 . Descartes


deve estar se revirando em seu túmulo neste mo-
mento...
– Você continua insistindo nessa narrativa... – co-
mentou Salviati. – O que acha, Simplício? Aquela
maçã pode ter feito ele perder a memória?
– Vamos! Nosso tempo está se esgotando! – res-
pondeu Simplício, indo em direção a um tipo de “lo-
comotiva” parada ali perto.
Quando chegaram na locomotiva, Newton ficou
fascinado. Ele nunca vira algo como aquilo. Mas não
era o fato de ele nunca ter visto uma locomotiva que
o deixava intrigado. A questão era que a locomotiva
parecia não precisar de nenhuma força motriz para se
deslocar. Nada de vapor, nada de eletricidade: tudo o
que era necessário era um simples “empurrão” inicial,
e a locomotiva permanecia em movimento indefinida-
mente. Além disso, a locomotiva parecia estar imersa
em um tipo de “túnel” de vácuo transparente.
2
O ano de 1666 fazia parte de uma época marcada pelo racionalismo
de René Descartes, o que influenciou fortemente Isaac Newton.
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Alguns segundos
após a locomotiva re-
ceber o “empurrão”
inicial, Newton notou
que ele parecia ter
entrado em um tipo
de estado de equilí-
brio. Não havia cha-
coalho ao longo do
percurso. Caso ele co-
locasse um pêndulo em movimento enquanto todas
as janelas da locomotiva estivessem fechadas, não
saberia dizer se a locomotiva estaria em repouso ou
em movimento, pois seu estado não afetaria o movi-
mento do pêndulo.
Diante de todos os fatores ali presentes, Newton
argumentou que aquele tipo de movimento só poderia
ocorrer sob uma condição: não havendo atrito entre
os trilhos e as rodas da locomotiva. Certamente não
haviam forças de contato que pudessem perturbar o
estado de movimento da locomotiva. A tecnologia
dos gigantes era mesmo magnífica.
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Após alguns minutos de viagem, os três chegaram


ao destino. Algum tipo de “freio” presente ao final
da linha retardou o movimento da locomotiva e, por
fim, a parou.

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Capítulo 4

Cedo demais

O estranho laboratório dos gigantes era relativa-


mente próximo do ponto de onde partiram. Quando
Newton olhou para trás, viu que o percurso era, com
um bom grau de precisão, em linha reta.
Ao desembarcarem, Newton novamente ficou
pasmo. Ainda nem haviam entrado no laboratório,
mas o aparato tecnológico já o surpreendia. Do lado
de fora do local, havia uma grande torre com o for-
mato de um “prato” no topo: devia ser alguma arma
para destruir mundos inimigos, ele pensou.
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– O que é aquilo? – indagou Newton, apontando


para a grande torre.
– É um radar. – disse Salviati.
Quando finalmente entraram no laboratório, New-
ton se deparou com diversas bugigangas alienígenas.
Ele ficou fascinado por cada um daqueles instrumen-
tos. No entanto, parecia não haver tempo para co-
nhecer mais sobre os seus funcionamentos...
– Chegamos. – disse Simplício. – Agora faça o que
você veio fazer!
– Como você espera que eu construa essa tal bomba
Antigravidade? – indagou Newton, perdendo mo-
mentaneamente sua fascinação pelo laboratório.
– Isso, você terá que nos dizer. – retrucou Simplí-
cio. – Após construir a bomba, você deverá alterar
suas propriedades ópticas, de forma a encontrar uma
brecha em seu espectro visível. Queremos que o fim
dessa guerra seja silencioso. Sem alarde. Sem pânico.
Já sofremos muito com a destruição de nossos lares.
Com o desespero de nosso povo. Desabando, cho-
rando, gritando... Só queremos que isso acabe de vez.
Então que seja em silêncio, sem eles saberem. Pois
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não há dor quando não se sabe o que está por vir.


– Deus... será um extermínio. – disse Newton, apa-
vorado. – Olha, pela milésima vez, eu não sou quem
vocês estão pensando...
– Chega! – gritou Simplício, furioso. – Você não
entende? Estamos em guerra. Estamos fazendo o
necessário para sobreviver. Por que se recusa a nos
ajudar?
– Eu não sei como ajudá-los... E mesmo se soubesse,
eu não os ajudaria. – falou Newton, entristecido. –
Vocês me disseram que eram homens da ciência, mas
estão fazendo guerra. Em qualquer civilização que
se preze, a ciência deveria ser um instrumento de
prosperidade, e não um instrumento de guerra!
– Seja lá o que farão comigo, façam logo. – com-
plementou Newton. – Tenho muito o que fazer em
meu mundo!
– Simplício... – começava Salviati, segurando um
estranho dispositivo em sua mão.
– Agora não, Salviati! – respondeu Simplício.
– Simplício, acho que cometemos um erro. – falou
Salviati, tenso.
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– O quê?
– Fomos cedo demais...
– Espere. – falou Simplício, se voltando para New-
ton. – Em que ano você estava?
– 1666 – respondeu Newton.
– Pelos céus, Salviati. Você não verificou o ano
antes de irmos?
– Verifiquei. Quer dizer, eu não me lembro... –
respondeu Salviati, envergonhado. – Mas talvez ele
ainda tenha alguma utilidade...
– Você ao menos sabe o que é massa inercial 1 ? –
Simplício perguntou a Newton.
– Não. – respondeu Newton, já irritado. – Olha, já
estou cansado desse assunto...
– Ela está presente em sua segunda lei. – comentou
Salviati, tentando relembrá-lo. – É um conceito que,
teorizamos, será fundamental para que você construa
a nossa bomba Antigravidade...
– Segunda lei de quem? – indagou Newton, con-
fuso.
1
Em mecânica, temos a massa inercial e a massa gravitacional.
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– Parem com isso, preciso pensar – disse Simplício,


interrompendo Newton. – Temos de devolvê-lo à
sua época imediatamente – complementou, apreen-
sivo. – Isso pode perturbar o tecido espaço-tempo
irreversivelmente!
Simplício começou a vasculhar o laboratório de-
sesperadamente, até que encontrou um estranho dis-
positivo com um formato plano-convexo.
– Espere – disse Newton. – O que está aconte-
cendo?
Simplício atirou o estranho dispositivo aos pés de
Isaac Newton e raios ofuscantes começaram a diver-
gir para todos os lados...
– Você estava certo, Sir Isaac Newton. A ciência
não deveria ser um instrumento de guerra. – disse
Simplício, tentando esboçar um sorriso.
– Esper... – falou Newton, enquanto desaparecia
em meio ao brilho ofuscante.

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Capítulo 5

Céu vermelho

Depois que Newton se foi,


Simplício e Salviati saíram
do laboratório. Os dois pa-
reciam estar muito cansados
e sentaram-se aos pés do
grande radar. Olhando para
o céu alaranjado, que ficava
cada vez mais vermelho, os
dois começaram a conversar...
– Você acha que deveríamos ter contado a ele que
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este, na verdade, é o futuro da humanidade? – inda-


gou Salviati, observando o céu avermelhado.
– Não. – respondeu Simplício. – Cumprimos nossa
missão. Ele tem tudo de que precisa, agora. Salvamos
o Annus Mirabilis1 .
– E então, Salviati... – complementou Simplício,
após uma pausa. – Quer dizer que estamos em guerra
com um planeta chamado Leibnik?
Salviati deixa escapar um leve sorriso abatido...
– Nunca me canso de olhar para este céu no final
do dia... – comentou Salviati, maravilhado com o céu
avermelhado.
– A beleza da poluição. – complementou Simplício,
também maravilhado.

1
Annus Mirabilis é uma expressão em latim para ano miraculoso.
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Capítulo 6

Ombros de gigantes

Alguns segundos após Newton desaparecer do


laboratório, ele surgiu no mesmo lugar de onde havia
sido sequestrado. O ambiente estava da mesma forma
como o tinha deixado. A maçã que caiu em sua cabeça
ainda estava no chão. Haviam folhas espalhadas por
toda parte. Parecia não ter passado um único minuto
desde que saiu.
Foi então que ele começou a questionar se aquilo
tudo realmente tinha acontecido...
– Será se estou ficando louco? – ele indagou a si
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mesmo.
Independentemente de ter sido real ou não, New-
ton precisava constatar se aquilo tudo que haviam
dito tinha mesmo algum fundamento.
– Interação à Distância, Gravidade, Massa Inercial...
– Newton falava para si mesmo, tentando encontrar
algum sentido naquilo tudo. – Preciso fazer alguns
cálculos!
E então ele correu para dentro de sua casa, ansioso
para verificar suas suposições.

Alguns anos mais tarde...

Isaac Newton está prestes a tomar posse como o


novo presidente da Royal Society. A obra Principia,1
e os trabalhos a respeito do Cálculo Infinitesimal, lhe
renderam grande reconhecimento por toda Londres.
Embora sua Teoria da Gravitação Universal ainda
não fosse amplamente aceita, Newton sabia que era
1
Princípios Matemáticos da Filosofia Natural é a monumental obra
de Isaac Newton a respeito do estudo do movimento.

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apenas questão de tempo até que isso acontecesse.


– Recebam com
uma salva de palmas,
Sir Isaac Newton!
Apesar das con-
trovérsias nas quais
se envolvia, Newton
parecia contar com
grande respeito e
admiração entre os
membros da Royal
Society, o que lhe
rendeu grandes aplausos.
– Obrigado! Obrigado a todos! – agradeceu New-
ton. – Receio que seja impossível citar o nome de
todos os que me ajudaram a chegar até aqui. Mas o
que posso dizer é... se longe enxerguei, é porque estive
apoiado sobre os ombros de gigantes!

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Fim!

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