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A cultura do eu e as suas armadilhas

A cultura do eu resulta do movimento do desenvolvimento pessoal que surgiu nos anos 60


e que foi influenciado por personalidades importantes do campo das ciências humanas,
como por exemplo os psicólogos Abraham Maslow e Carl Rogers. Esta corrente formava
uma mescla que juntava a psicologia humanista, o movimento do potencial humano e o
Instituto Esalen da Califórnia, um dos berços do New Age. Os seus teóricos partiam da
constatação segundo a qual o homem possui um elevado potencial afectivo, intelectual,
artístico, relacional, social e espiritual que, infelizmente, é desperdiçado na civilização
moderna. Acusavam particularmente a influência da racionalização, o peso esmagador das
organizações, a tirania do quantitativo, os excessos da sociedade de consumo e as falhas
da educação. O movimento do desenvolvimento pessoal pretendia um homem
desenvolvido, equilibrado, feliz e livre. Como escrevia um dos líderes do movimento,
tratava-se de «CRIAR o equivalente moderno do homem do Renascimento».

Todavia, este nobre objectivo não se concretizou. A louvável intenção dos fundadores foi
desviada. Hoje em dia, inúmeros adeptos do desenvolvimento pessoal contentam-se com
técnicas de psicoterapia, de dopagem psíquica, de descondicionamento e de programação
mental. O exame da literatura do desenvolvimento pessoal e das práticas propostas nos
estágios é, a este respeito, revelador. Criámos engenhocas psicológicas. Em jeito de
projecto de felicidade e de perfeição, assistimos a uma reparação mental, em particular
com a panóplia das técnicas de ser, popularizadas pelo New Age. Relaxamento,
pensamento positivo e ginástica suave são muitas vezes o único viático de Narciso…
Pensamos estar a agir correctamente quando criamos técnicas sofisticadas de
relaxamento, de bem-estar, de pensamento positivo. Haverá apenas as «técnicas do ser» e
da «visualização criadora»? Será que não poderemos procurar igualmente a paz da alma
nas igrejas, nos templos, nas sinagogas, nas mesquitas; nos textos sagrados, nas orações;
numa célula familiar destinada à entre-ajuda, ao amor, à partilha e à escuta; junto de
crianças que esperam que os adultos as insiram no mundo com entusiasmo; no reconforto
da leitura; na tragédia e na comédia, com as suas virtudes catárticas; na poesia e na
música que servem de confidentes à alma; numa natureza que ainda é possível admirar;
na conversação amigável; na experiência da benevolência que incrementa as tendências
altruístas; nas tradições de sociabilidade e de civilidade que desenvolvem o eu social?… Se
o homem se atrevesse a utilizar estes recursos, encontraria consolo para muitas tristezas,
o seu eu cresceria, a sua alma elevar se ia e não precisaria tanto de especialistas em
recursos humanos, de terapeutas, de técnicos do potencial humano, de peritos em gestão
mental armados com programação neurolinguística, análise transaccional, cassetes
relaxantes, dianéctica, tranquilizantes, respiração holotrópica, técnicas de ondas alfa…
«Larga essas muletas», diz Noé a Narciso.

Mas não é tudo. A cultura do eu, do modo como é praticada actualmente, está ameaçada
por uma outra deriva: o solipsismo, e isso devido à tecnicização dos seus comportamentos.
Os apoiantes do desenvolvimento pessoal dão frequentemente a impressão de estarem
enclausurados no seu ego. É certo que estabelecem objectivos ambiciosos para o seu
desenvolvimento pessoal: a actualização do potencial cerebral, o aumento da confiança
em si, a capacidade de enfrentar a competição e de gerir o stress, a sensibilidade à beleza,
a exploração dos estados místicos, a aprendizagem da meditação e do relaxamento, a
libertação do seu poder criativo, um melhor equilíbrio do corpo e do espírito, um grande
bem-estar, o desaparecimento da angústia… Estes objectivos são tão ricos e tão sedutores
que não deixam muito espaço para uma experiência de alteridade. A relação com outrem
é o parente pobre do desenvolvimento pessoal, o que acarreta duas consequências.

Por um lado, o indivíduo que se fecha nos limites do seu eu não estará de forma alguma
preparado para desempenhar o papel imposto pelos novos campos da acção, nos quais a
parte do relacional é predominante. Como vimos, a esfera da acção modesta está
preenchida pela luta contra a exclusão, a ajuda às crianças, às pessoas idosas, a protecção
aos fracos, a benevolência, o humanitarismo… Esta esfera requer homens que tenham
desenvolvido o seu potencial relacional.

Por outro lado, o próprio desenvolvimento corre o risco de continuar sem sentido se não
incluir a ligação com outrem. Um projecto de felicidade e de perfeição que pretendesse
dispensar a alteridade e a partilha estaria condenado ao fracasso. O «Eu» só se pode
desenvolver verdadeiramente através da mediação do «Tu».

É por isso que importa esclarecer um possível mal-entendido a respeito da alusão a


Narciso que aqui fazemos. É urgente, pensamos nós, reabilitar Narciso, dado que a
civilização reprimiu durante demasiado tempo as necessidades do eu. O desenvolvimento
é uma aspiração legítima que deve ser reconhecida. Contudo, simultaneamente, é
necessário que a cultura do eu integre a dimensão da intersubjectividade. A preocupação
consigo próprio não deve obliterar o sentido de alteridade. Quando evocamos o mito de
Narciso, estamos portanto a falar de um Narciso sem narcisismo.

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