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DE
SÃO FRANCISCO DE SALES
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D. Jean-Pierre Camus
Bispo de Belley
O ESPÍRITO
DE
SÃO FRANCISCO DE SALES
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© Santa Cruz - Editora & Livraria, 2019.
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P812
Pontcarré, Jean-Pierre Camus de (1584-1652)
O Espírito de São Francisco de Sales / Jean-Pierre Camus – 1ª ed. – São Caetano do Sul, SP: Santa Cruz –
Editora e Livraria, 2019.
244 p.
ISBN 978-85-5932-029-9
1. Igreja Católica. 2. Espiritualidade. 3. Biografia
I. Título
CDD: 235
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SUMÁRIO
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XVI — Estimação que fazia o Santo de um eclesiástico que fora seu mestre
XVII — Sobre a verdadeira perfeição
XVIII — Conferência do Santo com o seu discípulo, a respeito do ponto
precedente
XIX — Prossegue-se a conferência do assunto precedente
XX —Do amor dos inimigos
S E G U N D A PA R T E
I — Da humildade e castidade
II — Como se portava com os enfermos
III — O seu juízo sobre uns sermões
IV — Aversão aos seus louvores
V — Sua grande humildade
VI — Lembrança dos mortos
VII — A sua resignação
VIII — Do seu amor à pobreza
IX — Das importunidades
X — Sobre as tentações
XI — Sobre a conversação com as mulheres assim de palavras, como por
escritos
XII — Dos que se humilhavam na presença do Santo
XIII — Da política
XIV — Sua grande caridade com uma moribunda
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T E R C E I R A PA R T E
I — Das virtudes menores
II — Do temor da castidade e da castidade do temor
III — Esperar sempre bem dos pecadores
IV — Animava muito aos pecadores penitentes
V — Que não há verdadeira desconfiança de si mesmo, sem uma legítima
confiança em Deus
VI — Estimação que fazia o Santo da virtuosa simplicidade
VII — Dos escrúpulos
VIII — De um réu que desesperava da sua salvação
IX — Que tudo sucede por vontade de Deus
X — Honra que davam todos à virtude do nosso Santo, e particularmente
Monsieur de Lesdiguières
XI — Ardente desejo do céu num homem do povo
XII — Escrúpulos de um homem rico e grande esmoler
XIII — Das securas na oração
Q U A R TA PA R T E
I — Da singularidade
II — O seu parecer a respeito das dignidades e a residência dos bispos
III — Recusa o Santo ser Arcebispo de Paris
IV — O seu desejo de retiro
V — Que se devem ocultar as virtudes
VI — Do jejum
VII — Diversas espécies de humildade
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VIII — Da pobreza de espírito
IX — Do amor para com os pobres
X — Recusa uma pensão que o rei lhe oferecia
XI — Que alimentos se podem permitir aos soldados no tempo da quaresma
em caso de necessidade?
XII — Sobre o ocultar as suas austeridades
XIII — Saber gozar a abundância e padecer a penúria
XIV — Da recreação e como lhe servia, assim como tudo o mais para se elevar
a Deus
XV — Nada pedir e nada recusar
XVI — Nada recusava do que justamente se lhe pedia
XVII — Da devoção para com a Mãe de Deus
XVIII — Tentação fortíssima, que padeceu o nosso bem-aventurado
Q U I N TA PA R T E
I — Como se portou o Santo perdendo um anel de grande preço
II — A sua oculta mortificação
III — Sinais da graça santificante
IV — Obedecer aos poderes seculares
V — Excelências do voto
VI — Da pontualidade
VII — Desprezo que fazia o Santo dos bens da terra e zelo que tinha da
salvação das almas
VIII — Sua paciência nas enfermidades
IX — Do seu comportamento com os domésticos
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X — Vitória do bem-aventurado sobre as suas paixões
XI — Da simplicidade
XII — Do adiantamento na virtude
S E X TA PA R T E
I — Sua grande humildade
II — Da perfeição do estado
III — Da lição dos bons livros
IV — Resposta que deu o Santo a um bispo que queria abandonar o seu
bispado
V — Do amor de Deus
VI — Tudo por amor, nada por força
VII — Da cautela nos olhos
VIII — Da sinceridade
IX — Da ciência e da consciência
X — Da paciência nas dores
XI — Das hospedarias e estalagens
XII — Do espírito de pobreza nas riquezas; e do espírito de magnificência na
pobreza
XIII — Da Paixão do Senhor
XIV — Do Rosário
S É T I M A PA R T E
I — Da prudência e sinceridade
II — Do amor ao próximo em Deus
III — Sobre os sinais de benevolência
IV — Do amar ser aborrecido e aborrecer ser amado
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V — Dos espíritos demasiadamente reflexivos
VI — Da mortificação das inclinações naturais
VII — Das reformas
VIII — Excita com suas lágrimas um pecador à compunção
IX — Consola o Santo a outro penitente
X — Da Congregação das Religiosas da Visitação
O I T AVA P A R T E
I — Do desprezo da estima
II — Da verdadeira humildade
III — Do sentimento da divina presença
IV — Utilidade das moléstias
V — Da resignação perfeita na vontade de Deus
VI — Bonança na tempestade
VII — Dos que desejam a morte
VIII — Das boas inclinações
IX — Que se pode ser devoto e muito mau
X — Da devoção, com a vocação
XI — Do recolhimento interior e aspirações
N O N A PA R T E
I — Do amor da Palavra de Deus
II — Da leitura espiritual
III — Da Penitência e Eucaristia
IV — A verdadeira devoção nos deveres de cada estado
V — Juízo que fazia sobre as virtudes o glorioso Sales
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VI — Quem se queixa peca
VII — Uso das ofensas recebidas
VIII — Resposta do bem-aventurado sobre o mal que diziam dele
IX — Como se deve falar de Deus
X — Contra a zombaria
XI — Não julgar os outros
XII — Contra a maledicência
D É C I M A PA R T E
I — Não contradizer sem razão
II — Sobre as aversões
III — Da presença de Deus
IV — Do amor-próprio e do amor de nós mesmos
V — Da medida no amor de Deus
VI — Da mortificação e oração
VII — Sobre o ponto essencial da caridade
VIII — Diversas qualidades de obras
IX — Sua gravidade e sua doçura
X — O amor é o que dá valor às obras
XI — Paciência notável do glorioso Santo
XII — Diferença entre o pecado venial e a imperfeição
U N D É C I M A PA R T E
I — Converte o glorioso Sales a um eclesiástico escandaloso; e confessa-se
depois a ele
II — Da pobreza contente
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III — Do justo apreço do próprio estado
IV — Da injustiça dos homens a respeito da salvação
V — Das pregações eloquentes
VI — Do amor e respeito para com a palavra de Deus
VII — Da prosperidade ou boa fortuna
VIII — Segurança do Santo entre os perigos
IX — Do purgatório
X — Prática virtuosa em ocasião de calúnias
XI — Da desconfiança de nós mesmos
D U O D É C I M A PA R T E
I — Da mudança de Confessor
II — Das desculpas
III — Alguns avisos sobre as tentações
IV — Da vaidade
V — Da paz do coração entre grandes ocupações
VI — Da mortificação
VII — Do amor do próximo
VIII — Sobre o temor da morte
IX — Das queixas impacientes
X — Das austeridades indiscretas
XI — Das tentações menores
XII — Das distrações inseparáveis dos negócios
XIII — Dos enfermos, que não podem orar
XIV — A glória de Deus é o fim da nossa salvação
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A HISTÓRIA DESTE LIVRO
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Daí saiu este livro. De tudo o que pude observar em santíssimas ocasiões que
tive o gosto de observar o nosso Santo, e de tudo que consegui anotar em muitas
conversações que escutei com a mais cuidadosa atenção, saiu este livro que intitulei:
“O Espírito de São Francisco de Sales”. Aqui encontrará o leitor “O retrato
espiritual de nosso Santo” e as maravilhosas respostas que sabia dar às consultas
mais variadas da vida. A leitura destas páginas levará muitas almas crentes à
doutrina de um dos mais exitosos diretores de almas que teve nossa Santa Igreja
Católica em todos os séculos.
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P RÓLOGO
Ainda que a intenção do Ilustríssimo bispo de Belley, nas suas obras, foi dar a
ver o espírito do grande S. Francisco de Sales; contudo, como uma pena tão fecunda e
tão rápida, como a sua, nem sempre se conteve nos limites deste assunto,
estendendo-se várias vezes a outras matérias (que não obstante o serem excelentes,
fazem perder o fio do principal objeto), pareceu justo, e de grande utilidade para todos
os fiéis, extrair unicamente daquela obra as ações, e palavras, que formam um
agradável ponto de vista do heroico espírito deste admirável Santo.
Corrigiram-se alguns termos, que já não estão em uso: porém com tal
sobriedade, que não diminuíssem a unção e energia das expressões assim do
prodigioso Sales, como do seu virtuoso discípulo. E como este compôs a sua obra de
várias passagens avulsas, que não têm ligação entre si mesmas, julgamos, que
devia seguir-se o mesmo método, que pela variedade, clareza e brevidade, instrui,
recreia e não fatiga.
Pode-se dizer que aqui se trata de todas as virtudes com a competente extensão:
e que não há pessoa alguma, de qualquer estado que seja que não ache abundante
matéria, com que se instruir e edificar na atenta lição do presente livro. Praza a
Deus abençoar a nossa intenção, de modo que bem sirva para sua maior glória.
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VIDA ADMIRÁVEL DE S. FRANCISCO DE SALES
Cada Santo tem a sua fisionomia particular, como cada flor de um jardim tem
a sua fragrância própria. O distintivo especial de São Francisco é a doçura, virtude
celestial à qual foi devido o encanto sem igual de seu rosto e que lhe mereceu durante a
vida e merece-lhe ainda hoje um ascendente incomparável sobre as almas.
Francisco nasceu a 28 de agosto de 1567, no castelo de Sales. Seus pais,
depois de seis anos de matrimônio, viram-se favorecidos com este primeiro filho,
ao qual se seguiram outros doze dos quais cinco morreram no berço. Francisco foi
oferecido a Deus antes de nascer, e apenas chegado ao mundo, Deus aceitou o
oferecimento, e o menino, desde seus mais tenros anos, deu sinais visíveis de sua
predestinação.
Pequenino, reunia seus coetâneos ao som de uma campainha, e levava-os à
igreja para rezar com eles ou para lhes repetir as lições de catecismo.
Tendo passado dois anos no colégio de La Rache, esteve um lustro no
colégio de Annecy, onde fez a sua primeira comunhão e recebeu a confirmação das
mãos de D. Ângelo Justiniani, que o tinha apelidado o “anjo visível da pátria”.
Terminados seus estudos de literatura em Annecy, seu pai o mandou a Paris, ao
colégio de Clermont, dirigido então pelos padres da Companhia de Jesus, para aí
cursar as humanidades. Acompanhavam-no o Pe. Déage, seu preceptor, e Jorge
Rolland, que lhe devia servir de criado até a morte.
Francisco fez o curso de retórica com grande aplicação e brilho, edificando seus
mestres e condiscípulos pela eminência de sua virtude, amado e venerado de todos
pela sua bondade sempre humilde e sua inalterável doçura.
Deus para temperar seu valor, enviou-lhe uma horrível tentação: Francisco
convenceu-se que estava condenado, e, perseguido por esta ideia fixa, perdeu o sono
e o apetite. Redobrou as orações e austeridades, porém o demônio lhe repetia sem
cessar: “Serás condenado”.
“Senhor, exclamava então o Santo jovem, se não vos posso amor na outra
vida, concedei-me ao menos que aproveite para vos amar todos os momentos da
minha breve existência terrestre”.
Torturado deste modo durante seis semanas entrou um dia na igreja de Santo
Estevão des Gres, e rezou o “Lembrai-vos” perante a imagem da Santíssima
Virgem, venerada ainda hoje na capela das Damas de São Tomás de Vilanova; e,
depois de ter rezado a dita oração, renovou seu voto de castidade. Caiu-lhe no mesmo
instante o véu que lhe obscurecia o espírito, e a prova terminou para sempre.
Apenas acabados, em Paris, seus estudos literários e filosóficos, Francisco após breve
permanência entre os seus, foi enviado por seu pai para estudar Direito na
Universidade de Pádua, onde chegou em 1586.
Ali sua piedade sempre crescente, granjeou-lhe todas as vontades. Contudo,
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alguns libertinos, aos quais seus exemplos e conselhos não tinham logrado
conduzir ao bem, resolveram fazer-lhe perder a estima geral, expondo-o ao ridículo de
passar por covarde. Tendo-se colocado alguns deles numa rua deserta, por onde
Francisco devia passar, cercaram-no simulando um atentado à sua vida. Porém, o
Santo jovem, usando o direito de legítima defesa, desembainhou a espada, pôs-se em
guarda e ameaçou utilizar-se da arma se não se retirassem. Intimidados por tal atitude,
os tolos desapareceram e não mais molestaram Francisco quando passava pelo meio
deles.
Uma grave enfermidade veio interromper, temporariamente, seus estudos.
Chegou-se a temer pela sua vida, e no momento em que o perigo era maior, ele
mesmo expressou ao Pe. Déage o desejo de que seu corpo fosse levado ao anfiteatro
para as pesquisas de anatomia. Deus, movido por esta humildade e destinando
Francisco a uma alta posição, restituiu-lhe a saúde quase subitamente.
Em 5 de setembro de 1591, tendo alcançado o título de doutor em Direito,
dirigiu-se a visitar Roma e Loreto. Salvo milagrosamente em Roma de uma morte
certa, Francisco deveu também ao amparo divino o não ser devorado pelo mar.
Resolvendo viajar de Ancona a Veneza, uma dama napolitana pretendia ter reservado
para si e para seu séquito a embarcação em que Francisco tinha tomado passagem.
Apesar das razões do jovem, a dama insistiu com tanta arrogância e teimosia que o
Santo julgou oportuno ceder.
Mal o navio afastara-se da costa, uma tempestade, que de súbito se
desencadeou, tragou-o com todos os seus passageiros. Após uma breve demora em
Veneza, Francisco voltou para Saboia, e reuniu-se à sua família depois de uma
ausência de vários anos; contava vinte e cinco anos.
Sua inteligência, sua virtude, e ainda a compostura de sua pessoa, causaram uma
indizível alegria a seus pais. O senhor de Boisy e de Sales, persuadido de que seu filho
havia de ser o orgulho da família e dos pais, quis que procurasse a dignidade de
advogado no Parlamento de Saboia.
Francisco, sempre submisso, partiu para Chambery, onde, depois das provas
solenes, foi recebido e proclamado advogado. Porém, em consideração a um prodígio,
três vezes renovado, Francisco, convencido de que tinha chegado para ele a hora de
Deus, e aconselhado pelos mais sábios conselheiros, dispôs-se a solicitar a
autorização paterna para abraçar o estado sacerdotal.
Tão longe estava o senhor de Boisy de imaginar que seu filho pudesse
abandonar o mundo, que primeiro pensou em arranjar-lhe um matrimônio e logo
instou com ele para que aceitasse as altas funções de senador com que então o
quiseram brindar.
Luiz de Sales, primo de nosso Santo, cônego do cabido de Genebra,
imaginando as dificuldades que Francisco tinha que enfrentar no conflito com a
vontade paterna, ideou granjear-lhe com o sinal de uma honra pouco comum. Estando
vago o lugar de deão0F[1] no dito cabido1F[2], Luiz insinuou ao bispo de Genebra, o
Il.mo Sr. Cláudio de Granier, a nomeação do Santo jovem, a quem o prelado
conhecia e admirava desde muito.
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Entrando nos caminhos da Providência, o bispo de Granier apressou-se em
aceitar a proposta e alcançou a aprovação da Santa Sé. Francisco, provisto da bula
papal e acompanhado de seu primo, foi prostrar-se aos pés de seu pai para lhe suplicar
lhe concedesse a única coisa que no mundo constituía o objeto de seus desejos e
esperanças: consagrar-se a Deus.
O senhor de Boisy, vivamente comovido, opôs a princípio algumas objeções,
porém, cedendo às lágrimas de sua esposa e às instâncias de Francisco, fez
generosamente o sacrifício e deu sua bênção ao filho, que entregava a Deus, aos
pobres, à Igreja, e que, com sua santidade, devia ilustrar a sua linhagem com uma
glória muito superior a todas as humanas.
Tão universalmente era reconhecida a santidade de Francisco, que ninguém
protestou contra a dignidade de deão com que, tão jovem ainda, fora investido.
Acolhido com entusiasmo pelo cabido e a povoação de Annecy, Francisco
atraiu em breve para si toda a benevolência do bispo que, inspirado do alto, viu naquele
jovem seu futuro sucessor. Imediatamente lhe conferiu o subdiaconato, e seis meses
depois ordenou-o sacerdote, a 16 de dezembro de 1593.
Preparado com tantas virtudes ao sagrado ministério, Francisco consagrou-se
sem reserva ao serviço das almas, dedicando-se de preferência aos pobres e desvalidos,
que ele consolava e confortava com a mais alta bondade.
Procurando os mais desprezados, aqueles cujas chagas os tornavam mais
repugnantes, infundia-lhes alento e prodigalizava-lhes seus cuidados.
Para com os pecadores mostrava-se particularmente compassivo: levava-os a
Deus pela doçura e ascendente de suas virtudes e chegava até a impor para si a
penitência dos pecados dos mesmos, não desejando deles outra obrigação a não ser a
do arrependimento.
Não se poupando ao trabalho, quase todos os dias pregava a palavra de Deus,
multiplicando seus esforços a favor dos protestantes arrastados e seduzidos pelo cisma
de Lutero e Calvino, conduzindo-os pelos seus sermões ao grêmio da Igreja.
Cumpre advertir que sempre se achava disposto a praticar isto perante um
auditório de poucas pessoas como ante o mais numeroso público.
Depressa preparou a Providência ao zelo de Francisco um campo mais vasto,
eriçado de sarças e espinhos, que, porém, devia ser fecundado pelos seus trabalhos e
lágrimas. Era a província do Chablais, cujas cidades, sucessivamente tomadas pelos
Berneses e retomadas pelo Duque de Saboia, estavam, havia pouco tempo, sob o
domínio deste último.
Os habitantes jogados durante sessenta anos do erro à verdade e vice-versa,
tinham-se fixado no erro e o calvinismo exercia sobre eles sua autoridade despótica.
O duque Carlos Manoel de Saboia e o bispo de Genebra, desejosos de
restituir a verdadeira fé àquelas povoações extraviadas, procuraram um apóstolo que
a elas pudesse ser enviado com proveito. Francisco, sem levar em conta os trabalhos
e os perigos da empresa, ofereceu-se ao bispo para executá-lo, e apesar das lágrimas
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de seu pai, cuja oposição conseguiu outra vez vencer com seu generoso denodo,
partiu sem tardar para a missão que acabava de lhe ser confiada.
Foi à fortaleza dos Allinges, castelo situado a 6 quilômetros de Tonon, onde
Francisco, a princípio, fixou a sua residência. Indo todas as manhãs a Tonon, reunia os
poucos católicos que ali restavam. Mas, apenas conhecida a sua chegada, os
ministros protestantes amotinaram o povo contra ele. Uma tarde em que Francisco
regressava ao castelo dos Allinges, lançaram-se contra ele, espada em mão, dois
fanáticos. Francisco aproximou-se, falou-lhes com doçura e autoridade sobre-
humana, excitou neles o arrependimento e abriu-lhes os braços. Os assassinos
caíram de joelhos e juraram converter-se.
Por motivo da cilada em que Francisco estivera a ponto de perecer, o Sr. de
Boisy, unindo seus rogos aos do barão de Hermonn, governador do castelo dos
Allinges, suplicou-lhe não tornasse a se expor de tal maneira; porém o Santo não se
deu por entendido. Confiando em Deus, por quem trabalhava e padecia, resolveu, pelo
contrário, com o fim de tornar sua missão mais eficaz, morrer em Tonon, no próprio
centro da heresia. Alugou um quarto na casa de uma piedosa viúva e como não havia
na cidade nenhuma capela católica, o apóstolo começava diariamente sua jornada indo
oferecer o Santo Sacrifício na igreja de Morin, à pequena distância da cidade.
Para chegar à dita igreja tinha que passar uma pontezinha, pouco sólida, por
fim levada pelo degelo. Foi substituída por um tronco de árvore, que a geada e a neve
tornaram tão escorregadia, que Francisco tinha de atravessar engatinhando esse
passadouro improvisado, suspenso sobre o abismo.
O exemplo de tantas virtudes produzia já frutos abundantes, porque as almas
vinham a ele, os pecadores se convertiam, e dia por dia voltavam a Deus alguns
protestantes. Abriram a marcha os pobres e os humildes, mas muito em breve as
conversões famosas, a de Pedro Poncet, advogado de grande conceito, e a do barão
de Avully, o primeiro personagem do Chablais, acabaram de resolver muitos fracos e
vacilantes a abandonar a heresia.
Um dos principais ministros calvinistas de Genebra, chamado La Foye, cometeu
a imprudência de escrever ao barão de Avully taxando-o de vítima do engano de
Francisco e comprometendo-se a convencer o Santo de erro.
Este, contando com o auxílio de Deus, aceitou o desafio, e como o ministro
não aparecesse em Tonon, conforme a sua promessa, Francisco foi a ele
acompanhado do Sr. de Avully e grande número de protestantes. Realizou-se a
conferência publicamente, e com tanta lógica refutou Francisco os erros do herege
que este rematou a discussão com uma descarga de insultos. Imenso foi o efeito em todo
o país: comoveu-se toda a povoação, registrarem-se centenas de conversões e aldeias
inteiras voltarem à unidade da fé.
Sobremodo satisfeito ficou o duque de Saboia com estas maravilhas; enviou
Francisco a Turim e se propôs facilitar com todas as veras o restabelecimento do
culto católico em seus estados. Ordenou que se restituísse aos párocos do Chablais os
bens eclesiásticos que lhes tinham sido arrebatados pelos calvinistas e devolveu as
igrejas ao culto católico. Francisco, de volta a Tonon, teve a consolação de celebrar
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ali a Missa da Noite de Natal, apesar das ameaças dos protestantes, que quiseram
impedi-lo pela violência, e desde aquele dia ofereceu-se ininterruptamente o Santo
Sacrifício naquela feliz povoação, onde a heresia tinha triunfado por mais de
sessenta anos.
Entretanto Deus continuava abençoando o zelo e as virtudes de seu servo e as
mais estrepitosas conversões, como a de Pedro Fournier, prefeito de Tonon,
recompensava os esforços do apóstolo. Insistindo a Santa Sé para que fosse a
Genebra a fim de conferenciar com Teodoro de Beza, sucessor de Calvino e cabeça da
heresia, Francisco, não vacilou um momento. Depois de várias travessias perigosas
em que esteve em risco de perecer no lago de Genebra, o apóstolo do Chablais
chegou finalmente à casa do ilustre protestante em 8 de abril de 1597. Contava
então o ministro setenta e sete anos. Grande foi seu assombro quando, apresentando-
se-lhe Francisco, lhe expôs seu desejo e sua atrevida empresa; porém subjugado pela
santidade de seu visitante, aceitou discutir com ele.
Nesta primeira conferência, Beza viu-se forçado a confessar que é possível
alcançar a salvação na Igreja romana; porém insistiu em atribuir aos abusos
exteriores que nela se haviam introduzido, as revoluções, guerras, matanças e
incêndios provocados pelos calvinistas, e se estendeu, para defender sua causa, sobre
o grande princípio do protestantismo: que a fé sem as obras é suficiente para a
salvação.
Duas vezes mais Francisco voltou a Genebra, porém todos os seus esforços
esfacelaram-se contra o endurecimento do ancião, o qual via a verdade, mas não
tinha, para segui-la, a força de lhe sacrificar suas honras e fortuna. Conta-se que
tentou fugir de Genebra, porém, foi tão bem guardado pelos protestantes, que
escravo, até o fim, destes sectários, morreu sem se atrever a abjurar a heresia.
Nem para todos foi perdida a passagem de Francisco por Genebra. Sabendo o
apóstolo de que um católico estava agonizando na casa de um calvinista, correu para
lá, e tendo mandado sair a todos do aposento do enfermo, pôde confessá-lo e
administrar-lhe o santo viático, que tinha levado consigo naquela viagem; e assim o
deixou consolado e preparado para a morte.
No albergue em que se alojava, vivia uma pobre filha do campo, chamada
Jacoba Coste, que desempenhava o humilde ofício de servente. Deus, que a
destinava para ser um dia uma das primeiras filhas de São Francisco de Sales da
futura Ordem da Visitação, tinha-a levado com tal fim a Genebra.
Todos os domingos ia ela à Missa num povoado perto da cidade, porque em
Genebra estava rigorosamente proibido o exercício do culto católico, e a celebração da
Missa era um crime castigado com a morte; ali, como em todo lugar onde dominava
a Reforma, este era o primeiro artigo do código da liberdade religiosa inaugurada pelo
protestantismo.
Apenas Francisco se retirou a seu quarto, apresentou-se-lhe Jacoba, que o tinha
reconhecido. Recebeu-a com bondade, ouviu-a em confissão, e, depois de ter
anoitecido, deu-lhe a santa comunhão. Perguntou-lhe ela ingenuamente: “Como
fareis, padre, pois não tendes clérigos que vos assistam?” — “Minha filha,
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respondeu, não repare nisto porque os nossos anjos aqui presentes lhes farão as
vezes, porque seu ofício é orar na presença do Santo Sacramento”. Deixou a pobre e
santa donzela contente e consolada, e ele por sua vez tirou da entrevista o
pressentimento de que mais adiante haveria de encontrar nela uma ajuda para o
cumprimento da vontade de Deus.
De volta a Tonon, Francisco obteve de seu bispo três zelosos missionários para
trabalharem com ele na evangelização do Chablais. Os novos missionários puseram
logo mãos à obra e recolheram abundantes frutos da messe semeada e preparada por
Francisco. Um dos seus primeiros pensamentos foi o de celebrar com a maior
solenidade possível a cerimônia das Quarenta Horas, na localidade de Annemasse, a
uma légua de Genebra.
Para lá se transladou Francisco, no dia fixado, precedido do fiel Rolland, que
levava a cruz, e seguido de uma multidão de católicos, cujo número ia crescendo em
cada povoação por onde passavam. Continuaram-se as procissões durante três dias e
só cessaram com a mesma solenidade.
A ereção da cruz com que se rematou a cerimônia foi ainda mais comovedora.
No momento em que o sagrado signo da salvação, levado pelos penitentes de Annecy,
foi elevado nos ares e fixado no solo, frente à herética Genebra, um estremecimento
passou por toda aquela gente que não contava menos de trinta mil católicos. Os
protestantes associados à multidão diziam com lágrimas: “Aí está Deus e nós jamais
vimos coisa parecida”. Converteram-se muitos, muitos ficaram profundamente
impressionados, e uma parte dos ministros de Tonon e dos arredores, renunciando a
lutar contra a corrente geral e contra os missionários, ausentaram-se do lugar.
Tendo ido Francisco a Annecy para pôr em ordem diversos assuntos,
encontrou toda a região consternada por uma enfermidade contagiosa, que causava
espantosos estragos, ceifando cada dia novas vítimas. Em vez de tomar um
descanso de que tanto necessitava, o Santo sacerdote pôs-se a lutar com todas as
suas forças contra o terrível flagelo. Noite e dia visitava os doentes, servia-lhes
pessoalmente, consolava e preparava-os à morte. A sua saúde, já esgotada pelas
inauditas fadigas do apostolado, não pode resistir a tal prova, e, em 4 de janeiro de
1598, viu-se Francisco atacado do mal que o levou em poucas horas às portas do
túmulo. O bispo Granier, desolado pela iminente perda de quem era seu braço
direito, entregou-se à oração com a cidade inteira para pedir a Deus a cura do Santo.
Aplacado o céu, o enfermo recobrou subitamente a saúde.
Francisco aproveitou disso para regressar logo a Tonon, onde a graça de
Deus obrava maravilhas, porque o Pe. Humoeus, da Companhia de Jesus, tinha
convertido ele só dez mil hereges. A mais célebre destas conversões foi a de um
senhor chamado Bouvier, a quem uma estranha circunstância tinha posto em
relação com o nosso Santo. Certo dia caçando nos bosques do Chablais viu que os
cães voltavam para ele, e tendo saído ao descampado, viu Francisco a falar a um
grupo de camponeses. A prática daquele desconhecido, sua fé e seu zelo chegaram-lhe
à alma. Averiguou seu nome, foi ter com ele e abjurou publicamente em suas
mãos.
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O mérito e a honra de todas estas conversões, ante os homens e Deus,
pertenciam o Francisco. Um milagre estrondoso, produzido por sua intercessão, veio a
imprimir um como selo à sua fama de santidade. Num dos arrabaldes de Tonon vivia
uma senhora protestante que até então, apesar de tudo, tinha permanecido na adesão ao
calvinismo. Deu à luz um menino a quem não se apressou em batizar; o menino morreu
pouco tempo depois. A pobre mãe, enlouquecida de dor, quis levar nos próprios
braços o filho ao cemitério. Encontrando-se por acaso no caminho com São Francisco,
corre para ele exclamando: “Meu padre, devolvei-me meu filhinho, ao menos pelo
tempo suficiente para que possa ser batizado, e eu me farei católica”. Francisco cai
de joelhos e ora. Apenas terminada a oração, o menino abre os olhos, movimenta os
membros e volta à vida. A mãe, fora de si de alegria, faz batizá-lo no mesmo momento
pelo Santo que está rodeado por imensa turba de gente. A mãe converteu-se pouco
depois com toda a família.
O duque de Saboia tinha procurado ir pessoalmente organizar no Chablais a
religião católica e castigar os perseguidores de outrora. Mas às instâncias do
senhor bispo Granier e de Francisco, que advogaram pelos culpados e pelos membros
do consistório, renunciou a infringir-lhes castigo. Tanta clemência acabou por ganhar
todos os corações: trinta mil almas voltaram à Igreja Católica. A obra do apóstolo
estava cumprida; Deus o chamava a outros trabalhos.
D. Granier, consumido pelas fadigas e alquebrado pelas enfermidades, resolveu
tomar Francisco por coadjutor, com direito à sucessão, no bispado de Genebra. Às
primeiras palavras do santo bispo sobre isto, Francisco, cheio de temor e perturbação,
declarou-se incapaz de desempenhar semelhante cargo e decididamente recusou
aceitá-lo. O bispo então encarregou seu capelão de lhe dar a ordem formal de aceitar:
Francisco viu-se constrangido a ceder. Foi imensa a alegria de toda a diocese, porém,
de pouca duração porque se apoderou do Santo uma febre maligna que o levou às
portas do sepulcro. À mesma hora em que Annecy consternada aguardava a notícia
de sua morte, Deus, pela terceira vez, devolveu-lhe subitamente a saúde. Apenas
restabelecido, partiu para Roma com o fim de resolver diversos assuntos. O Papa
prodigalizou-lhe as maiores atenções e quis que se sujeitasse em sua presença ao
exame imposto naqueles tempos aos bispos. Francisco causou admiração a todos os
cardeais por sua ciência e humildade e voltou para Annecy com o título de bispo de
Nicópolis; porém a sua modéstia fez-lhe adiar a cerimônia da consagração episcopal.
Ao cabo de alguns meses Francisco teve de apresentar-se perante Henrique IV,
que chegara a declarar a guerra ao duque de Saboia. A benevolência e respeito do rei
foram tais, que o enviado do duque obteve primeiro a paz, e logo, apesar dos esforços
dos protestantes, tudo que solicitou para o apoio da religião católica no Chablais.
Voltando para Annecy, Francisco teve de ir ao castelo de Sales, onde o Sr. de
Boisy, seu pai, estava gravemente enfermo. Depois de tê-lo consolado e fortalecido
para o último transe, voltou a pregar a quaresma já começada e não demorou em receber
a notícia da morte do piedoso ancião.
Terminada a pregação, o Santo dirigiu-se a Paris, a pedido de seu bispo, para
defender perante o rei a causa do culto católico no país de Gex. Henrique IV, cada
vez mais impressionado pela santidade do apóstolo, concedeu-lhe tudo que pedia.
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Recusando Francisco um bispado importante e os favores reais, disse-lhe o monarca:
“Vossa modéstia vos eleva sobre mim. Eu me considero acima daqueles que pedem
meus benefícios, porém abaixo dos que os recusam”.
Enquanto voltava Francisco para sua querida diocese, faleceu D. Cláudio de
Granier, e nosso Santo teve por fim de resolver-se a aceitar por inteiro o
ministério episcopal, de cujas dignidades havia fugido até então.
Sua consagração foi assinalada com um prodígio: ao ajoelhar ante o prelado
consagrante, iluminou-se seu rosto, viu claramente a Santíssima Trindade e cada uma das
três Pessoas divinas deu-lhe uma bênção particular, enquanto a Santíssima Virgem, São
Pedro e São Paulo, igualmente visíveis a seus olhos, tomavam-no sob o seu amparo.
O fervor e a piedade de Francisco aumentaram ainda mais pelas graças da
consagração; o nosso bispo, resolvido a entregar-se sem medida ao serviço de Deus,
começou a organizar por toda a parte a obra dos catecismos, que ele considerava a
primeira de todas; e, para pregar com o exemplo, ele mesmo o dava às crianças de
sua cidade episcopal, julgando seu dever ensinar-lhes os princípios de nossa santa
fé, as primeiras virtudes da infância e da juventude. Então instituiu para seus
sacerdotes reuniões sinodais que lhe permitissem conhecê-los melhor e os
entusiasmassem a dedicar-se mais ao estudo.
Rogado para pregar a quaresma em Dijon, aceitou depois de se ter
aconselhado com o papa e o duque de Saboia. Antes de partir para a cidade
mencionada, quis fazer um retiro no castelo de Sales. Foi ali onde, por inspiração
divina, viu em espírito a senhora Joana Fremiot de Chantal que devia ser, por meio
dele, instrumento da Providência para conduzir muitíssimas almas à santidade. D.
Fremiot, célebre arcebispo de Bourges, era precisamente o irmão da senhora de
Chantal. Após ter resolvido com este diversas dificuldades concernentes à sua diocese,
o apóstolo entregou-se à pregação com o zelo já costumado.
Toda a povoação agrupava-se ao redor de seu púlpito.
Acudiu também a senhora de Chantal, e encontrando-se com o Santo à mesa
de seu irmão, entregou-lhe a direção de sua vida e travou com ele uma das amizades
mais afetuosas e angelicais que jamais tenham existido.
A senhora de Chantal, que tinha então trinta e dois anos, era o modelo das
esposas. Consorte durante oito anos do intrépido e piedoso barão de Chantal, morto
casualmente por um dos seus amigos durante uma caçada, tinha consagrado a sua
vida aos pobres e aos meninos. Desejando preparar esta alma eleita aos desígnios
d e Deus, que ele já pressentia sem conhecer, Francisco levou pelas suas cartas, a
senhora de Chantal a uma piedade mais elevada. Porém, enquanto se empenhava, no
recolhimento e oração, a planejar esta Ordem com que Deus queria, por seu
intermédio, adornar a Igreja da terra e a do céu, não descuidava nenhuma das obras de
sua diocese.
Amado por todos, a todos se prodigalizava. Logo que saía de casa, os
meninos corriam a ele, seguiam seus passos e recolhiam-se, por assim dizer, em seus
braços paternais; os pobres, por sua vez, encontravam nele o mais seguro e fiel
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apoio, e os pecadores a mais prodigiosa misericórdia. Todo para cada um esforçava-
se por atrair a Deus as almas que Deus lhe havia confiado. O dom da profecia
iluminou amiúde sua direção espiritual, e penetrando o segredo dos corações,
arrojava seus penitentes à fogueira do divino amor.
A seus trabalhos juntavam-se as visitas pastorais, que ele fez até a morte com
perfeita exatidão e caridade sem igual, falando a todos, recebendo as confidências, as
confissões, as lágrimas, reanimando e fortalecendo os corações, feito objeto de
admiração universal não menos pela sua humildade do que pela sua abnegação.
Livrou publicamente mais de oitenta possessos; sua bondade para com os
doentes, que ele se comprazia em visitar e ainda muitas vezes em cuidar deles
pessoalmente, chegou a alcançar de Deus estrondosos milagres de cura.
Durante a quaresma de 1606, que Francisco pregou em Chambery na presença
do Senado e de numeroso auditório, um dia em que falava do amor divino, tanto se
acendeu sua palavra e inflamou seu rosto que se teria dito que percebia claramente a
majestade de Deus. Ao mesmo tempo um crucifixo que pendia da parede fronteira
ao púlpito, projetou sobre ele raios de glória. A multidão ouvia com devoção aquela
palavra cuja santidade era proclamada por tantos prodígios retumbantes.
Antes de deixar essa cidade, Francisco conferiu as sagradas ordens a cem
eclesiásticos, os quais ele próprio quis confessor antes de ordená-los. E como o
repreendessem, por tal motivo de não cuidar de si, respondeu: “Não devia eu lavar
pessoalmente estas pobres ovelhas, quando eu mesmo era quem as devia tosquiar?”
Com estas doces e encantadoras formas de linguagem velava sua austeridade e os
santos excessos de sua caridade.
De volta a Annecy, encontrou a cidade toda sobressaltada: os Genebrinos
deviam vir para assaltá-la. Faziam pressão sobre Francisco para que se pusesse a salvo
com a fuga; ele, porém, recusou-se a fazê-lo, querendo permanecer no perigo no
meio de seu rebanho, ao qual só sua presença infundiu coragem. Vieram, com efeito,
os Genebrinos até as muralhas da cidade; num domingo quando começavam as
Vésperas. Francisco assistiu, sem se perturbar, ao Ofício divino, e suas orações, mais
poderosas que um exército, foram suficientes para que os protestantes, tomando
melhor partido arredassem da empresa.
Seu valor, haurido nos divinos mananciais, raiava às vezes pela temeridade.
Tendo recebido ordem de Henrique IV para se transladar a Gex e conferenciar com
o lugar-tenente geral sobre as medidas tocantes ao exercício do culto, partiu
imediatamente. Porém, não sendo possível vadear o Rio Ródano por causa de uma
enchente, tinha que passar pela ponte de Genebra. Francisco não vacilou: “Vamos,
disse, e juntos à mão de Deus”. Ao chegar às portas de Genebra, perguntaram ao
séquito a quem acompanhava. “Ao bispo da diocese”, responderam os interrogados.
Não sabendo o oficial o que significava a palavra diocese, deixou-o passar. De tal
sorte, Francisco e os seus atravessaram a cidade onde o esperava a morte, se tivesse
sido preso. Grande foi o despeito e a raiva dos calvinistas quando souberam deste ato
heroico. Declararam ainda que se Francisco voltasse, lhe fariam cortar a cabeça na
praça de Molard, onde ele, um dia numa conferência, tinha convencido de mentira e
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heresia aos ministros dissidentes.
No meio de todos os seus trabalhos apostólicos, não esquecia Francisco as
belas artes e ciências.
Assim é que fundou em Annecy uma academia de filosofia, teologia e
literatura. A reputação desta academia, composta de quarenta membros como a
francesa, à qual serviu de modelo em muitos pontos, difundiu-se muito depressa
por toda a Saboia, e cabe dizer de São Francisco de Sales que, tanto por seu estilo
como pela fundação desta academia, foi um dos pais da literatura francesa.
Essa ciência da linguagem primorosa e esse incomparável encanto da palavra
que brilham nas cartas do Santo, prevalecem, sobretudo nos admiráveis livros que
nos deixou e que atravessam os séculos como monumento imperecível de sua ciência
e virtude.
Referimo-nos ao Tratado do amor de Deus, que compôs nos seus últimos
anos, e à Introdução à vida devota, com que principiou sua carreira de escritor.
Este último é, depois da Imitação de Cristo, o livro mais formoso saído das mãos
humanas.
Foi escrito a pedido de seus amigos e às instâncias encarecidas de Henrique
IV, que, digam o que quiserem os numerosos historiadores, transformou-se depois da
sua conversão em um cristão convicto e praticante.
A ressonância desta obra foi imensa e maior ainda o bem que ela faz. Papas,
cardeais, bispos, príncipes cristãos, fizeram dele seu livro de leitura habitual, livro em
que encontravam, como os mais humildes fiéis, a ciência de servir a Deus e a força
de amá-lo. Todo o rumor feito por este livro tornava pesaroso o nosso Santo, que
não procurava senão humilhar-se. “Eu quisera que me conhecêsseis bem, escrevia à
senhora de Chantal; então em pouco me teríeis. Havíeis de dizer: Eis aí um junco em
que Deus quer que me apoie: esteja bem segura, porque Deus o quer; porém o junco
nada vale”. “As águas da graça, dizia outra vez, correm para as almas humildes e
deixam secos os cimos das montanhas, isto é, as almas soberbas”. Tais eram a
simplicidade e a humildade admiráveis deste homem todo divino, no qual o gênio
igualava a santidade.
Se Francisco procurava e amava Deus em todas as coisas, bendizia sobretudo a
mão paternal do mesmo Deus nas provas que se dignava enviar-lhe. No ano de 1610
repetiram-se sobre ele os mais terríveis golpes, sem lhe arrebatarem a serenidade no
meio dos padecimentos mais duros para seu coração amante. A senhora de Boisy, sua
mãe, aproximava-se do termo de seus dias. Movida por um pressentimento
desconhecido, tinha vindo para fazer, junto de seu filho, um retiro de um mês para
s e preparar à morte. Apenas de volta a seu castelo de Sales, foi acometida por um
ataque de apoplexia. Francisco correu à sua cabeceira. A santa mãe reconheceu o
filho, tomou-lhe a mão, e beijando-o piedosamente, disse: “Eu vos dou este
testemunho de respeito como a meu pai”. Ele beijando-o na fronte, respondeu: “E
eu vos dou este sinal de carinho como a minha filha”. Recebeu logo os últimos
sacramentos e adormeceu placidamente no Senhor.
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Ainda a chorava Francisco quando perdeu o Pe. Déage, seu preceptor e
amigo, que lhe morreu nos braços.
Nunca tinha deixado o mestre de repreender o aluno quando se lhe oferecia a
ocasião, e o aluno, sempre humilde, nunca havia deixado de escutar os conselhos
de seu mestre.
Enfim, a morte trágica de Henrique IV acabou de fazer para Francisco
desse ano de 1610, a época mais dolorosa de sua vida. Seu afeto, reconhecimento e
admiração para com o grande monarca, tinham conquistado desde muito tempo ao
rei de França um grande lugar no coração do Santo bispo.
Nesse mesmo ano de 1610 viu nascer na dor a Ordem das Religiosas da
Visitação. Francisco, que desde seu encontro em Dijon com a senhora Chantal, tinha-
lhe ido formando a alma com esmero, com vistas na fundação de tal Ordem, mandou-
a chamar por ocasião da festa do Espírito Santo, e lhe disse: Deus vos destinou a
fundar uma Ordem em que presidirão a caridade e doçura de Jesus Cristo, em que
serão admitidas as débeis e doentes, e que se ocupará em cuidar dos enfermos e
visitar os pobres.
Meu padre, respondeu a Santa, estou pronta a obedecer.
Segundo se vê, o Santo pensava em dar à sua nova Ordem um fim de caridade;
porém Deus, que reservava esta glória a São Vicente de Paulo, dispôs de outra
maneira e a Ordem da Visitação devia responder a outras necessidades.
Desde o ano precedente, Santa Joana de Chantal tinha comunicado a seu pai,
o presidente Frémiot, o desejo de consagrar-se a Deus. Devendo o barão de Thorens,
irmão de Francisco, casar-se com a filha mais velha da santa viúva, apresentava-se
a ocasião de ver ao Santo prelado e tratar com ele. Depois que o bispo de Genebra
expôs e demonstrou que tal era a vontade de Deus, o pai e o irmão de Santa Joana
deram-lhe seu consentimento, e, tendo-se tomado a respeito dos filhos as
providências de família que reclamava a nova situação da mãe, fixou-se a saída desta
para fins de novembro. Um novo prazo pedido então pelo presidente Frémiot fez
prorrogar a dita saída até a Páscoa seguinte.
A hora de Deus soa infalivelmente: podem os homens crer que a retardam,
porém, apesar de tudo, chega no instante assinalado pela Providência.
Poucas cenas mais comovedoras do que esta separação, encerra a história da
dor humana. Achava-se toda a família reunida na casa do presidente Frémiot. O pai
dominado pela emoção saiu improvisamente de seu aposento para dar largas ao
pranto.
Igualmente Joana, com o rosto banhado em lágrimas, dava sinais da mais viva
comoção. Seu filho Benigno, que a amava apaixonadamente, arrojou-se-lhe aos pés e
chamando-a com os nomes mais amáveis, suplicava-a entre soluços que desistisse de
seu propósito. Desolada, ainda que sem titubear, ela o estreitou em seus braços e
lhe expôs as razões de sua partida, que nenhum alívio, porém, causaram ao filho.
Quando, esgotadas as forças, dirigiu-se a pobre mãe para sair do aposento,
Benigno estendeu-se diante da porta: “Já que não vos consegui convencer,
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exclamava, saiba-se ao menos que calcastes aos pés vosso filho”. A este grito, ante
semelhante atitude, a santa mulher detém-se por um momento, eleva ao céu os olhos
rasos de lágrimas e soltando um gemido que repercute no coração de todos os
assistentes, passa por cima do corpo, e para na porta, transida de dor e como vencida
por sua própria vitória.
Estava consumado o sacrifício! A senhora de Chantal, acompanhada de suas
filhas e seu genro, chegou a Annecy, onde Francisco a aguardava e a recebeu
saindo-lhe ao encontro com alguns notáveis da cidade. Em 6 de junho de 1610,
Joana Frémiot de Chantal e suas duas companheiras, as senhoritas de Bréchard e
Favre, tendo-se despojado de todos os seus bens deste mundo, entravam na pequena
casa que lhes tinha sido aparelhada. O Santo deu-lhes a comunhão e dirigiu-lhes
palavras caídas do céu; a seguir abençoando-as, deixou-as com seu Deus.
Começaram logo as três religiosas seu noviciado e durante este primeiro ano
vieram dez novas irmãs para aumentar o número das noviças.
Em 16 de junho de 1611, a senhora de Chantal e suas primeiras
companheiras emitiram seus votos e consagraram-se imediatamente ao cuidado dos
pobres e dos doentes, segundo Francisco projetara desde o princípio.
Ao cabo de cinco semanas, a Madre Chantal recebia um golpe muito cruel com
a morte de seu pai, o presidente Frémiot. Teve de ir, seguindo as instruções do Santo,
deixar em regra o concernente a seus filhos.
Fê-lo com grande tino e voltou para suas irmãs para dedicar-se de novo ao
serviço dos pobres.
Em breve, vencida de cansaço, caiu doente; porém, Francisco fê-la sarar
imediatamente ordenando-lhe tomar umas relíquias de São Braz; sobrevindo uma
recaída mais grave, o Santo vendo-a nas últimas, deu-lhe para tomar uma poção
com um pouco de pó das relíquias de S. Carlos Borromeu, e fez voto de ir, se a
madre de Chantal sarasse, a Milão, em peregrinação à sepultura do Santo bispo.
Com isto a enferma recobrou em seguida perfeita saúde.
Tão rapidamente desenvolveu-se a Ordem da Visitação que Francisco, a pedido
do cardeal de Marquemont, arcebispo de Lion, consentiu em fundar nessa cidade uma
segunda casa. Foi o ponto de partida de uma importante transformação. Cedendo aos
rogos do cardeal, Francisco modificou as constituições de sua Ordem e converteu-a
numa comunidade de clausura, inteiramente animada do espírito de mansidão, amor e
suavidade, sem austeridades corporais consideráveis, porém, com absoluta
mortificação do coração e da vontade. Nos Entretenimentos Espirituais do Santo
com suas filhas, campeia o duplo fim do Fundador: o amor de Deus e o
desprendimento de si mesmas.
Este desprendimento de si, o Santo, inspirava-o a suas filhas, não somente
pelas palavras, mas muito mais ainda pelas obras.
Pregações, confissões, visitas aos pobres e conversões dos hereges, viagens
incessantes em sua diocese e formação dos sacerdotes, tudo realizava, como ele
mesmo dizia “sem se apressar jamais”.
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Não deixou ficar no esquecimento seu voto e dirigiu-se a Milão para rezar junto
ao túmulo de S. Carlos Borromeu; foi também a Turim, onde venerou o Santo Sudário.
Tendo realizado a viagem, voltou para Annecy. Enquanto celebrava a missa pontifical
no dia de Pentecostes, uma pomba, que voou da abóbada, foi pousar na sua cabeça.
Igual prodígio operou-se no dia de Natal. O povo, compenetrado da virtude
do prelado, viu nestes fatos extraordinários a prova da santidade que Francisco
procurava debalde ocultar aos olhos de todos.
Não passava dia sem que Francisco convertesse algum herege ou algum
grande pecador. Seu porte, seu olhar, uma palavra sua enterneciam os corações
mais endurecidos. Ao mesmo tempo em que curava as almas, sarava os corpos e
afugentava os demônios com sua bênção. Um dia, em que lhe tinham trazido muitos
doentes ao palácio episcopal, o fiel Rolland suplicou-lhe que os curasse: “Alegro-
me, disse sorrindo, de que o senhor Rolland me ensine a fazer milagres”. Logo orou
sobre eles, e abençoando-os, curou a todos.
Entretanto, este poder sobre os demônios e as almas pecadoras tropeçava às
vezes, com um obstáculo insuperável daquelas mesmas almas. Um advogado de
Genebra havia concebido um ódio implacável contra o Santo e, sempre que o
encontrava prorrompia em injúrias e calúnias contra ele. Tendo-se Francisco
encontrado com ele, acercou-se e lhe disse: “Vós me quereis mal, e, contudo, se me
arrancardes um olho, não deixarei de vos olhar carinhosamente com o outro”.
Tal doçura não foi capaz de desarmar este inimigo, que chegou a atirar, de
noite, com a pistola, contra as janelas do palácio episcopal e a ferir com a espada o
vigário geral. Preso e condenado à morte, ia ser executado, quando os rogos de
Francisco lhe alcançaram a graça.
O Santo foi-lhe levar ao cárcere e ajoelhando-se pediu-lhe perdão pela ofensa
que lhe tivesse podido causar sem o saber.
Este prodígio de caridade não enterneceu o desditoso, que morreu pouco
depois, impenitente e miserável.
A admirável caridade do Santo bispo para com seus inimigos estendia-se a todos
que o rodeavam: seus domésticos, os pobres, os pequenos e os pecadores de modo
especial, desfrutavam amplamente de sua inesgotável bondade, cheio de delicadeza e
agrado. Um dia em que lhe trouxeram um moço a fim de que o repreendesse, fê-lo
com tanta amabilidade que algumas pessoas lançaram-lhe isto em rosto: “Que
quereis?, respondeu-lhes, fiz quanto pude para me armar daquela cólera que não
peca. Tomei o coração com ambos as mãos e não tive força para lhe atirar. Demais a
mais, temia derramar num quarto de hora esse pouco licor de mansidão que desde
há vinte anos estou tratando de recolher, como um orvalho, no vaso de meu coração”.
Sua beneficência para com os pobres parecia crescer de ano para ano a par de
sua dignidade e das demais virtudes.
Todo dinheiro que possuía, seus recursos pessoais, e até os castiçais de sua
capela, tudo ia cair nas mãos dos indigentes, apesar dos protestos de seus domésticos.
Num dia de frio glacial, viu entrar em seu quarto um homem tão pobremente vestido,
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que tiritava. Movido de compaixão, o Santo foi examinar o guarda-roupa; mas como não
achasse nada nele, despojando-se das roupas que levava debaixo de sua batina, deu-a
ao pobre. Tendo ocultado muito bem o fato aos seus, permaneceu deste modo até a
noite, exposto ao frio de que havia preservado seu visitante.
Sabendo que o sacerdote vive do altar, o bispo de Genebra aceitava com
singeleza aqueles pequenos presentes com que os do lugar o brindavam na ocasião de
seu ministério: eram nozes, castanhas, outras frutas, ovos, queijos. Dava aos pobres
o dinheiro que recebia e queria que o resto servisse para seu próprio sustento,
repetindo com alegria esta palavra da Escritura: “Ditosos sois porque comeis o fruto
de vosso trabalho”.
Fazia mais do que dar seu dinheiro: dava-se a si mesmo, prodigalizando seu
tempo, sua saúde, seu coração e não poupando nada quando se tratava do serviço de
Deus e das almas.
Reprovava-o um dia seu irmão por ter concedido uma audiência demasiado
longa a uma pobre criada que tinha ido ter com ele. — “Não sabeis, vós, disse-lhe
Francisco, que os bispos são como grandes bebedouros públicos, de onde todos têm
direito de tirar e onde vão matar a sede, não só os homens, mas também os
animais?”
Enfim, para resumir a vida de nosso Santo, servir-nos-emos da expressão de S.
Vicente de Paulo, que tão bem traduzia a opinião unânime dos povos: “Que sereis
vós ó meu Deus, se o bispo de Genebra, que não é mais que homem, é tão bom?”
Em Paris, para onde Francisco teve de voltar para tratar do matrimônio do
príncipe do Piemonte com a princesa Cristina de França, foi que Vicente de Paulo
viu e apreciou o Santo bispo. Nesta ocasião Francisco pediu a S. Vicente de Paulo
que aceitasse a direção do mosteiro da Visitação que ele acabava de fundar em
Paris.
Não obstante os maiores esforços feitos para retê-lo na França, Francisco de
Sales, apenas combinado esse matrimônio, apressou-se a voltar à sua amada diocese,
muito em breve, para novas viagens a Pinerolo e a Turim, e finalmente para a última a
Lion, onde iria morrer. Conhecia por inspiração divina que a morte o aguardava no
termo de sua viagem. Depois de ter regulado todos os assuntos de sua diocese com
João Francisco de Sales, seu coadjutor e irmão, pôs-se a caminho, rodeado de todos
os notáveis da cidade que choravam a saída daquele a quem não voltariam a ver neste
mundo. De Avignon, para onde se dirigia primeiro, chegou a Lion com o rei Luís
XIII e o duque de Saboia. Alojou-se no convento da Visitação, numa pobre alcova
da casa do jardineiro.
Quase ao mesmo tempo chegou a Lion Santa Joana de Chantal, que andava
então visitando os mosteiros de sua Ordem. Três anos já se tinham passado que não
via seu pai espiritual. Entreteve-se com ele quatro horas e recebeu, como de Deus
mesmo, suas instruções que haviam de ser as últimas.
A madre Chantal tinha prosseguido o curso de suas visitas, e Francisco, por sua
parte, dispunha-se a deixar a cidade de Lion, que tinha edificado com suas virtudes,
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e onde, entre outras predições, tinha anunciado à senhora de Olier que seu filho havia
de ser um dia uma das glórias da Igreja de França, quando, em 27 de dezembro de
1622 pelas duas horas da tarde, foi acometido de um ataque de apoplexia.
Os solícitos cuidados com que o socorreram imediatamente fizeram-no voltar
a si; porém, Francisco bem sabia que tinha chegado para ele a hora da recompensa.
Preparou-se, portanto, à morte com o mais intenso fervor, recebeu a extrema-
unção e aguardou tranquilo e impassível até o fim, o instante de adormecer no
ósculo do Senhor.
O santo enfermo não cessou até o ultimo transe de consolar aos que o
cercavam, abençoando-os e exortando-os a submeter-se à vontade divina. Em 29 de
dezembro, ao cair da noite, pronunciou o nome de Jesus, e, enquanto se rezavam as
últimas orações, entregou sua alma ao Criador. Desde aquele momento começou
para o Santo um culto público que Deus mesmo favoreceu com inumeráveis
milagres. O corpo foi transportado para Annecy, onde descansa até hoje. Dez anos
mais tarde, quando foi aberto o ataúde na presença de Santa Chantal e dos
comissários do Papa, encontrou-se o corpo inteiro, como no momento em que a alma
o tinha deixado para o céu. Santa Chantal, tomando a mão do Santo, colocou-a sobre a
própria cabeça, e a mão, animando-se, estreitou-lha como em uma carícia paternal.
As insistentes e renovadas súplicas dos bispos aceleraram a canonização, que
foi decretada em 19 de agosto de 1665. Em 1877, Pio IX proclamou São Francisco
de Sales Doutor da Igreja, e Pio XI em 1923 designou-o autêntica e solenemente
patrono celestial dos escritores católicos.
A influência de São Francisco de Sales irradia-se ainda como no dia da
morte do ilustre Confessor.
Aí estão essas admiráveis filhas da Ordem da Visitação, as Salesianas, cujos
conventos formam como outras tantas colunas vivas de orações e penitência elevadas
entre a terra e o céu, para conter a ira divina pronta a descarregar-se sobre a
humanidade culpável; aí estão todas essas obras que o reconhecem como fundador,
inspirador e patrono.
Aí está finalmente a Obra Salesiana, de São João Bosco. Extraímos do
volume II das suas Memórias Biográficas: Alguém poderia perguntar aqui: ― Como
e porque o Oratório foi dedicado a São Francisco de Sales e honrado com seu nome?
― Dom Bosco, achando-se ainda no Instituto Eclesiástico (para aperfeiçoar-se nos
estudos e no sagrado ministério) já tinha formado o propósito de pôr todas as suas
obras debaixo da proteção do Apóstolo do Chablais; mas esperava que o Pe. Cafasso
lhe manifestasse seu pensamento sobre este particular. O Pe. Cafasso pronunciou-se e
escolheu São Francisco de Sales para patrono do Oratório. Dom Bosco aprovou a
eleição por três razões: Primeiro, porque no local que a marquesa Barolo lhe tinha
cedido para iniciar a sua obra mandara pintor um quadro do Santo bispo de Genebra.
Em segundo lugar, porque a missão que Dom Bosco tinha empreendido para com a
juventude, requeria grande calma e mansidão, e por isso a queria pôr sob a proteção
de um Santo que fosse modelo perfeito desta virtude.
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Uma terceira razão tinha também sua força: Vários erros, especialmente o
protestantismo, começavam a insinuar-se insidiosamente no povo e de modo
particular na cidade de Turim. Ora, recebendo-o por patrono, D. Bosco quis granjear
para si o favor daquele Santo, para lhe alcançar do céu aptidão especial na empresa de
ganhar as almas para o Senhor; luz e coragem para combater com êxito os mesmos
inimigos dos quais São Francisco tão gloriosamente tinha triunfado durante sua vida
mortal para glória de Deus e da Igreja, e para proveito de inumeráveis cristãos. Em
uma palavra, julgava que o espírito de S. Francisco de Sales era o mais adaptado aos
tempos para a educação e instrução popular.
A S. Francisco de Sales dedicou S. João Bosco sua primeira igreja; com
grande solenidade celebrava sua festa, data na qual reunia, nos primeiros tempos,
todos os diretores de suas casas para ouvir relações e propostas e comunicar
instruções. Quis que sua família religiosa tivesse, em vez do nome do fundador, o
do Santo bispo e doutor da Igreja, intitulando-se Pia Sociedade de São Francisco
de Sales ou Pia Sociedade Salesiana.
Continue o Santo a exercer sua proteção sobre a Obra de D. Bosco!
A.R.R.
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PRIMEIRA PARTE
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I — DA VERDADE CARITATIVA
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II — C OMO SE PODE CONHECER SE TEM A VERDADE A RAIZ NA
CARIDADE
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III — O UTRO SINAL DE A VERDADE PROCEDER DA CARIDADE
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IV — D A CARIDADE E CASTIDADE
Nos primeiros tempos da sua direção dizia o bispo de Belley ao nosso Santo:
No meu espírito combatiam duas virtudes, quais eram a caridade e a castidade.
Porquanto a caridade, como forte e robusta, se avança a grandes empresas para honra e
glória de Deus. Ela não teme a fome, a sede, a nudez, a perseguição, os cárceres, os
suplícios, nem ainda a mesma morte, e o que é mais, nem também a todo o inferno,
contanto que não perca a graça do seu Divino Amado, e lhe ofereça hóstias vivas,
santas e agradáveis aos seus puríssimos olhos.
E pelo contrário a castidade, que é uma virtude tenra, tímida e delicada,
qualquer vista a espanta e uma simples palavra a inquieta, por isso mesmo que
anda, como coberta de olhos e ouvidos; ou como aquele que levando muito ouro e
diamantes pelo meio de um espesso bosque, ao menor rumor se esconde, temendo ser
acometido, roubado e morto pelos inimigos ladrões.
Em suma, a caridade manda socorrer ao próximo, ou seja, são ou enfermo,
pobre ou rico, moço ou velho, sem atender à idade, nem ao sexo, nem ao estado;
respeitando somente a Deus. Em todas as coisas, e a todas as coisas em Deus. E pela
outra parte, a castidade, sabendo que traz num vaso de vidro um precioso tesouro,
que pode perecer em qualquer encontro, anda numa perene ansiedade, e temor
contínuo. Logo como poderão concordar-se em um só sujeito estas duas diferentes
virtudes?
A esta proposta deu o nosso Oráculo uma solução toda celeste, como sua. É
necessário, disse ele, distinguir as pessoas constituídas em dignidade, que têm súditos
a seu cargo, dos que se acham em uma vida particular, sem outros cuidados, que de si
mesmos. O que suposto, devem as primeiras encomendar a sua castidade à sua
caridade: a qual, sendo verdadeira, lhe servirá de forte escudo, e invencível defesa. E
as pessoas particulares obrarão com mais acerto, e maior proveito, cometendo a
guarda da caridade à sua própria castidade.
E a razão disto vem a ser: porque os superiores, que pelo seu cargo, se vêm
obrigados a exporem-se aos perigos inseparáveis das ocasiões, são assistidos da divina
graça, contanto que não tentem a Deus por temeridade. O que não gozam os
particulares, expondo-se aos acasos, sem legítima vocação; senão sempre certo, que
o que ama o perigo (e muito mais o que o procura) perecerá nele.
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V — N OTÁVEL PACIÊNCIA
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VI — S UA DESTREZA EM DESCULPAR AO PRÓXIMO
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VII — D A REPREENSÃO
Censurando o Santo padre alguns defeitos a seu discípulo, lhe dizia: Eu bem
presumo que não será isto contra o vosso agrado, porque estas são as provas maiores,
que posso dar-vos do meu afeto para convosco; e se vós me fizéreis outro tanto, eu
conheceria melhor o vosso amor para comigo. Porém eu vejo-vos a meu respeito
demasiadamente circunspecto, e quisera na verdade que o não fôsseis tanto.
Eu da minha parte vos protesto, que vos amo com extremo, e não posso ver
em vós nem o menor defeito. Quisera sim, que fôsseis tal, como desejava S. Paulo
ao seu Timóteo. Quisera-vos inteiramente irrepreensível, e por isso as faltas que em
qualquer outro talvez me parecessem ligeiras moscas, reputo-as na vossa pessoa
por gigantes desmarcados.
Ímpio sem dúvida seria o mau cirurgião, que deixasse perecer uma pessoa,
por lhe não curar, como pudera, uma perigosa ferida. E não será pior neste suposto o
que (podendo, e devendo) omitisse a censura, que seria talvez em ocasião oportuna
um vigoroso remédio para a saúde da alma? O certo é, que assim como a sangria dada
a bom tempo, pode restabelecer a temporal vida, também uma repreensão feita a
propósito, pode livrar da morte eterna.
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VIII — D AS PALAVRAS DE HUMILDADE
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IX — D A OBEDIÊNCIA DOS SUPERIORES
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X—O SEU AMOR À JUSTIÇA, E SEU DESPREZO DAS COISAS
TEMPORAIS
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XI — S UA HUMILDADE MODESTÍSSIMA
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XII — S UA DOÇURA PARA COM OS DOMÉSTICOS
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XIII — C ARIDADE DA CASTIDADE E CASTIDADE DA CARIDADE
Falando-se na presença do nosso Santo sobre certa donzela, de ilustre casa, que
caíra numa falta escandalosa, disse ele: É para admirar que haja tanto zelo e caridade
pelo que respeita à castidade; havendo tão pouca pelo que diz relação à castidade da
caridade! E explicou deste modo o seu sentido:
É tão certo, que todos têm zelo para com a conservação da castidade, que
ainda aqueles mesmos que a não amam, a louvam; e os que a não observam, a fazem
guardar pelas pessoas, que deles dependem. No que, sem dúvida são louváveis;
fazendo-se precisa toda a boa diligência para a conservação de tão rico tesouro, em
que muito se interessa a honra das famílias e a decência pública.
Mas prouvera a Deus, que nós tivéssemos outro tanto zelo pela castidade da
caridade, que consiste na pureza e perfeição desta virtude, mãe e rainha de todas as
outras; sem a qual não são virtudes verdadeiras, nem têm mérito algum para com
Deus. E destas caridades falsas há muitas, com que se ofende a Deus e ao próximo com
o simulado pretexto e indiscreto zelo da mesma caridade.
E, portanto, se costuma dizer, que o zelo é uma virtude perigosa que poucos
sabem praticar como é devido; imitando muitos nesta parte aqueles maus pedreiros,
que entrando a consertar um telhado, causam maior ruína. O certo é que só vendo a
Deus em todas as coisas, e todas as coisas em Deus, se observa a castidade da caridade
com o legítimo zelo, que deve praticar um fiel cristão.
Com esta diversão prudente desterrou o nosso Sa n t o aquela prática
murmuradora, e que Deus era ofendido e a criatura injuriada.
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XIV — S OBRE O PROCEDIMENTO POMPOSO
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XV — A CEITA O DESAFIO DE UM MINISTRO PROTESTANTE
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XVI — ESTIMAÇÃO QUE FAZIA O SANTO DE UM ECLESIÁSTICO QUE FORA
SEU MESTRE
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XVII — S OBRE A VERDADEIRA PERFEIÇÃO
Tenho ouvido a muitos, dizia o Santo, falar da perfeição; mas vejo que são
poucos os que a observam, como deve ser. Cada qual discorre a seu arbítrio, fabrica
uma perfeição de vida a seu modo. Porque uns a constituem na austeridade dos
vestidos; outros na parcimônia do alimento, outros na prestação da esmola, outros na
frequentação dos Sacramentos; outros nos exercícios da oração, outros nas graças
extraordinárias, denominadas gratuitas: e todos estes se enganam tomando os meios
pelo fim, ou os efeitos pela causa.
Eu, pois, quanto a mim, não sei, nem conheço outra perfeição verdadeira,
fora de amar a Deus com todo o coração, e ao próximo como a si mesmo. Toda a
perfeição, sem esta, é uma perfeição falsa. A caridade é o próprio laço da perfeição
entre os católicos, e a única virtude, que nos une a Deus e ao próximo, como é justo;
em que consiste o nosso último termo e consumação final. E, portanto, os que nos
designam outras perfeições sem esta, nos enganam.
Todas as virtudes, por maiores e mais excelentes que pareçam, nada são
sem a caridade. Porque tudo o que se não funda nesta virtude, está na morte, como
diz o Apóstolo São João. E consequentemente, todas as obras, por qualquer bondade
aparente que tenham, são obras mortas e de nenhum valor para a eternidade.
Eu sei que as austeridades, a oração, e outros exercícios de virtude, são muito
bons meios para chegar à perfeição; contanto que se façam em caridade, e por motivo
desta virtude. O que suposto, como indubitável e certíssimo, segue-se por
consequência, que não se deve colocar a perfeição nos meios, mas só no fim, a que
esses meios conduzem; porque de outra sorte seria parar no caminho, em vez de
chegar ao termo.
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XVIII — C ONFERÊNCIA DO S ANTO COM O SEU DISCÍPULO A RESPEITO
DO PONTO PRECEDENTE
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XIX — P R O S S E G U E - S E A C O N F E R Ê N C I A D O A S S U N TO P R E C E D E N T E
Eu bem sabia, disse ao nosso Santo o seu virtuoso discípulo, que a perfeição
cristã consiste na caridade pura, que é amar a Deus por amor dele mesmo e ao próximo
por amor de Deus. Mas se o amor é a paixão primeira do coração humano, que nos
leva a querer o bem para o objeto amado: que bem podemos nós querer a Deus, que
em si não tenha, sendo Ele a Bondade essencial, e o Bem sumo?
Podemos, respondeu o Santo, podemos desejar a Deus duas sortes de bem:
um que Ele sempre possui: gozando-nos com amor de complacência de ser Ele o
que é, sem faltar coisa alguma à suma grandeza da sua perfeição infinita. E podemos
depois com o nosso amor de benevolência desejar a Deus outro bem, que em certo
modo lhe falta; dando-lhe na realidade, e, com efeito, se está em nosso poder o
procurá-lo; ou só por afeto e desejo, se não está na nossa mão o consegui-lo.
É este precioso bem (denominado exterior) o que provém da honra e glória
que lhe rendem as criaturas todas, principalmente as racionais e virtuosas. E, portanto,
amando nós verdadeiramente a Deus, lhe oferecemos o seu maior bem por nós
mesmos, gozando-nos da sua eterna felicidade, e referindo para sua maior glória
t o d o o nosso ser, e todas as nossas operações, até as mais indiferentes. E
aplicamos depois todos os nossos esforços para conduzir os outros ao seu amor e
serviço, a fim de que Ele em tudo e por tudo haja de ser glorificado.
E nesta mesma conformidade, amar ao próximo em Deus, é gozarmo-nos do
bem que ele possui enquanto pode servir para glória do mesmo Senhor: é prestar-lhe
todo o possível, que ele nos pede na sua necessidade: e é ter zelo da sua salvação,
procurando-a como a nossa, pelo motivo principal de que Deus assim o quer. Eis aqui,
pois, o que é ter legítima caridade, amando sinceramente a Deus por amor dele
mesmo, e ao próximo também por amor do mesmo Deus, em que sempre consiste a
verdadeira perfeição.
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XX —D O AMOR DOS INIMIGOS
Dizendo ao nosso Santo uma pessoa de sua amizade, que nada achava no
Cristianismo mais dificultoso do que amar aos inimigos, lhe respondeu ele: E eu não
sei como é o meu coração; ou como Deus foi servido criar-me um de novo, pois que
não só não encontro dificuldade em praticar este preceito, senão que tenho tal prazer, e
sinto nele uma suavidade tão deliciosa, e tão particular, que se o preceito fosse o não
amar os inimigos, me custaria obedecer.
Com efeito sendo o Santo consideravelmente ultrajado por um fidalgo soberbo,
depois de muitas razões que lhe expôs com a maior doçura para lhe aplacar o furor,
concluiu dizendo: Sabei de certo, que eu sou tanto vosso, que ainda que vós me
arrancásseis um dos meus olhos, eu pelo outro vos veria sempre com tanto afeto,
como se fôsseis o meu maior amigo no mundo.
É bem verdade, dizia o Santo a seu amigo, que ninguém deve amar o vício do
seu adversário, nem o seu ódio, ou a sua inimizade com que ele desagrada e ofende a
Deus. Mas todo bem se pode fazer, separando o precioso do vil, e não confundindo
jamais a sem-razão do pecado com a pessoa do pecador.
Ah! Meu bom amigo, assentemos de uma vez neste ponto. Que ninguém deve
isentar-se de amar ao seu inimigo, por mais e mais que se lhe oponha a sem-razão da
ofensa recebida. Pois por que não olharemos com bom afeto aqueles a quem o
mesmo Deus suporta? E muito mais tendo aquele grande exemplo diante dos
olhos, a Jesus Cristo na Cruz orando pelos seus inimigos, que não eram somente os
que o blasfemavam e lhe pregavam os cravos: senão também aqueles, que o
maltratam e perseguem em nós outros, por Ele muito amados, como seus místicos
membros.
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SEGUNDA PARTE
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I — DA HUMILDADE E CASTIDADE
Instruindo o nosso Santo ao seu amável discípulo, lhe disse em certa ocasião:
Há duas grandes virtudes — a humildade e a castidade — que merecendo ser
estimadas, e praticadas por todos, contudo, se possível fosse, não se deveriam
nomear; ou tão poucas vezes, que a sua mesma raridade passasse por verdadeiro
silêncio.
Ouvindo este misterioso paradoxo, exclamou logo o sincero discípulo, dizendo
abertamente: Oh! Meu venerável mestre, eu não posso neste ponto concordar com o
vosso juízo. Antes eu quisera, que soassem por toda a parte estes belíssimos
nomes: humildade e castidade; quisera que se escrevessem com letras de ouro em
todos os mármores, e que até se vissem impressos nos mesmos troncos das árvores.
Por uma parte dizeis bem, replicou o Santo varão, mas o meu sentido é este:
Que não se podem nomear essas virtudes, nem ainda louvá-las tanto em si mesmas,
como em qualquer pessoa, sem lhes alterar de algum modo a sua substância. Por
todas as razões seguintes:
1 — Como não há língua humana, segundo o meu parecer, que possa
dignamente exprimir o seu justo valor, servirá um baixo elogio para diminuir de
algum modo o seu preço.
2 — Louvar a humildade é fazê-la desejar por um secreto amor-próprio, ou
que se entre nela por uma porta falsa: o que é contra a sua substância.
3 — Louvar a humildade em alguma pessoa é tentá-la de vaidade com
perigosa lisonja; porque será tanto expô-la a ser menos humilde, quanto mais ver que
a estimam por tal.
Por outra parte: 1 — Louvar a castidade em si mesma é deixar nos espíritos
uma oculta e quase imperceptível ideia do vício contrário, de que se pode originar
algum fatal perigo. 2 — Louvar esta virtude em alguma pessoa, encarecendo-lhe o
seu valor, e não menos a sua fragilidade, será também de algum modo, como pôr-
lhe diante dos pés um tropeço; para cair depois no precipício. 3 — Porque ninguém
jamais deve confiar na castidade passada; sendo esta virtude uma joia, que tendo os
engastes de vidro, pode perigar sempre em qualquer encontro futuro.
Ora, eu não digo que o escrúpulo nesta matéria deve chegar a tal ponto que
ninguém se atreva a nomear estas virtudes, de que uma é o mais precioso ornamento
do espírito e outra o mais belo esmalte do corpo. Antes, devendo ser elas em todo o
tempo estimadas, deveriam ser a toda a hora aplaudidas. Digo somente e
recomendo muito a maior cautela, para que não se exponha a risco a sua prática;
porque todas as folhas dos maiores elogios não podem suprir o valor do menor
dos seus frutos.
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II — C OMO SE PORTAVA COM OS ENFERMOS
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III — O SEU JUÍZO SOBRE UNS SERMÕES
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plenamente satisfeito.
Continuai, pois, desta maneira e fareis grandes serviços ao Senhor da vinha.
Segui este modo, ou este estilo com fidelidade; e Deus fará os vossos trabalhos
frutuosos e honoríficos. E que devemos nós saber, nem procurar no nosso santo
ministério, senão a Jesus Cristo crucificado?
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IV — A VERSÃO AOS SEUS LOUVORES
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V — S UA GRANDE HUMILDADE
Não podia ignorar o prodigioso Sales a grande estimação, com que o tratava o
seu povo, e o alto conceito, que todos faziam da sua piedade, e vendo-se ele reputado
por um Santo e fiel servo de Deus, confundia-se na presença do mesmo Senhor, e
muitas vezes se envergonhava diante dos homens.
Ele quando falava de si mesmo não dizia palavras de humildade; antes fugia
delas, como de tropeços, em que perigava esta virtude. E por isso dizia algumas
vezes que falar qualquer de si próprio (tanto no bem, como no mal) sem alguma
culpa, não era menos difícil, do que dançar bem sobre uma corda; necessitando de
grandes circunspecções, como indispensável contrapeso, para não cair em algum
defeito.
Quereis vós saber, dizia ele, o que me poderá resultar de todos os louvores e
estimação dessas boas gentes? Será talvez o padecer mais tempo no Purgatório;
porque depois de eu morrer, não orarão a Deus pela minha pobre alma; tendo para si,
como de certo, que ela irá logo diretamente ao Paraíso. Eis aqui todo o fruto, que
produzirá o conceito com que me reputam por Santo.
Eu, pois, mais quisera achar em todos o fruto de boas obras e o óleo da
misericórdia do que as folhas e flores de tantos aplausos e fantásticos elogios.
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VI — L EMBRANÇA DOS MORTOS
Quando falecia algum dos amigos do nosso Santo, era insaciável em dizer
bem dele, orar pela sua alma, e pedir por sua intenção as orações dos outros. E
costumava dizer a este respeito:
— Nós não nos lembramos dos nossos mortos, quanto é justo; antes desviamos
desta parte o nosso discurso, como de um desagradável objeto. Assim deixamos aos
mortos sepultar os seus mortos, e perecer a sua memória entre nós outros com o
som dos fúnebres sinos.
Mas a amizade, que com a morte acaba nunca foi verdadeira; antes, a
Escritura nos ensina que o amor tem mais força do que a morte. E por outra parte, o
referir as boas qualidades do próximo falecido, é um vigoroso estímulo para imitar-se
o seu exemplo; assim como o exercitar a piedade para com os mortos é uma obra de
misericórdia, que compreende as outras todas.
Porquanto, dizia ele, o impetrar com as nossas orações o alívio das almas, que
estão no Purgatório, não é em certo modo visitar uns pobres enfermos? Não é dar de
beber a quem tem tão grande sede da visão de Deus entre as mais vivas chamas, ou
subministrar-lhe com as nossas orações um suavíssimo refrigério?
E não é isto ao mesmo passo dar de comer a quem tem fome, visitar os
presos, vestir os nus, e hospedar os peregrinos, introduzindo-os felizmente nas eternas
moradas? — E quanto às outras obras de espiritual misericórdia: Que grande
consolação, ou poderoso auxílio se usará com os necessitados neste mundo, que se
possa comparar com o que recebem pelas nossas orações e sufrágios aquelas pobres
almas extremamente afligidas?
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VII — A SUA RESIGNAÇÃO
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VIII — D O SEU AMOR À POBREZA
Tem uma grande renda (dizia S. Paulo a seu discípulo Timóteo) a piedade, que
se contenta só com o que basta. O que bem se verificava no nosso Santo, que se dava
por satisfeito com o pouco rendimento do seu bispado.
Prouvera a Deus, dizia ele, que nós fôssemos privados ainda deste pouco
resto, contanto que a Religião Católica tivesse em Genebra pelo menos um
pequeno Oratório! Se assim fosse, ela em pouco tempo faria um grande progresso,
porque a disposição daquele povo para este efeito é mais do que se pensa; reinando ali
a razão de estado coberta de uma imaginária liberdade, mais que a substância da
religião.
Ocupava nosso Santo em Annecy uma bela casa de aluguel, cuja sala de
visitas estava decentemente adornada; mas a sua ordinária residência era um
pequeno quarto, um pouco escuro, que ele denominava a Câmara de Francisco, em
contraposição à dita sala, chamada por ele Câmara do Bispo.
Falando ele uma vez com o bispo de Belley seu discípulo, mostrando-lhe a
roupa, que trazia debaixo da batina, lhe disse com a sua graça costumada: As
minhas gentes fazem uns pequenos milagres: porque de uma roupa velha me formaram
esta nova. E o discípulo acrescentou logo dizendo: Parece-me esse milagre semelhante
aos dos filhos de Israel, cujos vestidos não tiveram consumo em todo o espaço de
quarenta anos, que habitaram no deserto.
Com efeito, parecia coisa milagrosa sustentar-se com tão pouca renda a sua casa.
E perguntando-lhe o discípulo, como isto se fazia, respondeu ele: Se isto se pudesse
dizer, não seria milagre, como vós pensais. E não somos nós felizes em viver por
milagre? Se eu possuísse mais, teria maior cuidado em ponderar onde bem o gastaria. E
aquele que mais tem maior é a conta que deve dar.
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IX — D AS IMPORTUNIDADES
Entre as virtudes de que o nosso Santo fazia grande apreço, era a que nos faz
sofrer tranquilamente as importunidades do próximo; para cuja tolerância basta sempre
um pouco de modéstia, moderação e doçura.
Quando se fala de paciência, ensinava o Santo bispo, julgareis vós, que só
deve ser reservada para aqueles males, cujo sofrimento nos causa glória. E, contudo,
é certo que enquanto esperamos por essas grandes ocasiões (que poucas vezes
acontecem na vida) desprezamos as menores, que nos sobrevêm a cada hora.
Nós outros imaginamos, que a nossa própria paciência é muito capaz de
sofrer as mais vivas dores e as maiores injúrias; e a experiência depois nos mostra
que facilmente nos alteramos com as mais leves importunidades. Parece-nos, que
poderemos servir e aliviar o próximo nas suas grandes enfermidades; e vemos depois,
que não sabemos, ou não queremos dissimular as suas grosseiras incivilidades,
rústicos gênios e melancólicos humores. É logo necessário ter o espírito mais justo, e
mais tolerante das importunidades do próximo.
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X — S OBRE AS TENTAÇÕES
Se nós fizéssemos bom uso das tentações do demônio, dizia o nosso bem-
aventurado, em vez de as temermos, as provocaríamos. Porém como a nossa fraqueza e
laxidão é tal, quanto de lastimosas quedas nos tem mostrado a experiência: justamente
pedimos a Deus, que não nos deixe cair em tentação.
E se a esta desconfiança de nós mesmos ajuntarmos a confiança no mesmo
Senhor (que é muito mais forte para nos livrar da tentação, do que nós somos fracos
para nela cair) elevaremos as nossas esperanças sobre a diminuição dos nossos
temores. E diremos com o Profeta: com o vosso auxílio, meu Deus, venceremos todos
os obstáculos, que se opõem à nossa salvação: pois com tal socorro andaremos
seguramente entre áspides e basiliscos, e pisaremos aos pés o leão e o dragão.
Como nas grandes tentações se prova o nosso valor e a nossa fidelidade para
com Deus, também nestas ocasiões se utiliza o nosso espírito, fazendo progressos
na virtude. Porque então aprendemos a manejar as armas da nossa milícia, que são
todas espirituais contra as milícias dos nossos inimigos que são invisíveis. E no
mesmo tempo a nossa alma, protegida pela graça, lhes parece tão terrível, como um
exército ordenado em batalha.
Pensam alguns a este respeito, que tudo para eles vai perdido quando se veem
tentados com pensamentos de blasfêmias, de impiedade e outros semelhantes. Mas
contanto que estes pensamentos lhes desagradem, não lhes podem causar dano, antes
lhes vêm a servir para lançar profundas raízes na fé, e fazem-se mais agradáveis aos
olhos do Divino Senhor.
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XI — S OBRE A CONVERSAÇÃO COM AS MULHERES ASSIM DE PALAVRAS ,
COMO POR ESCRITOS
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XII — D OS QUE SE HUMILHAVAM NA PRESENÇA DO S ANTO
Ele de modo ordinário se portava com aquele ou aquela que diziam palavras
de humildade na sua presença, confirmando-as, e ainda acrescentando alguma coisa, a
fim de procurar uma saudável confusão a quem as proferia; estando na certeza de que
a maior parte daquelas pessoas não quereria que se formasse juízo de serem tais
como diziam. E eis aqui dois exemplos:
Desejando o nosso bem-aventurado que o bispo de Belley, a quem ele muito
amava, não tivesse nem o menor defeito, lhe dava documentos da mais alta perfeição.
Sobre o que lhe disse uma vez este seu discípulo: Oh! Meu Pai, vós não
sabeis, que eu saindo há pouco do mundo, me vejo constituído mestre, quando
apenas começo a ser discípulo? E sendo isto assim, porque me falais como a um varão
de virtude eminente, e capaz de ensinar aos outros?
Dizeis bem (replicou o sábio mestre) e isso creio eu mais do que vós: e pode
ser que eu veja, e conheça melhor tudo o que vós protestais. Eu vos considero como
um homem que escapou das ruínas, e que saiu de um incêndio, de que ainda sente o
fumo.
Porém, vendo-vos agora bispo, considero também, que deveis ter sentimentos
de pai, e dirigir os vossos passos para a mais alta perfeição. Já vos não podeis
contentar só com beber a água da vossa cisterna: deveis também comunicá-la aos
outros; porque Deus, a razão, e o vosso emprego assim o pedem, e para isso vos
ajudam. Se vós, pois confiais em si mesmo, nada de bom fareis. Mas se confiais
em Deus, que não fareis vós? Tudo podereis.
O segundo exemplo é de uma religiosa, que sendo eleita superiora, recusava
aquele emprego, alegando e propondo deveras ao nosso Santo os seus poucos anos,
e a sua muita indignidade. Sobre o que, tomando-lhe ele a palavra, e encarecendo
ainda sobre o que ela propunha, lhe dizia: Que na verdade entre filha e folha havia
pouca diferença.
Com o que lhe dava a entender, que bem conheciam as religiosas a sua
insuficiência, a pequenez do seu espírito, a fraqueza do seu juízo, a grosseria do seu
gênio, e, sobretudo o seu mau exemplo. O que não obstante, podia ser que permitisse
Deus a sua eleição, para se emendar dos seus defeitos; ou pelo menos para que
tratasse de ocultá-los e regular bem os seus passos; vendo que estava constituída em
espetáculo a Deus, aos anjos e aos homens.
E como tal se persuadisse que não se confiava a ela a sua comunidade, mas a
Deus, que elege algumas vezes as pessoas loucas para conduzir e confundir as
sábias; Ele que nos quis salvar pela estultícia da Cruz, como diz S. Paulo. Mas por
outra parte entendesse bem, que assim cana frágil como era, conservando-se e
confiando na onipotente mão de Jesus Cristo, poderia fazer-se uma forte coluna do
seu templo.
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XIII — D A POLÍTICA
O bispo de Belley disse uma vez ao nosso Santo, com a confiança de discípulo
amado, que se admirava muito, de que o sereníssimo Carlos Manuel, duque de
Saboia, sendo um dos mais excelentes príncipes do seu tempo, de um profundo juízo
e talento igual na mais sólida política, o não chamasse para seu ministro, e lhe
encarregasse o manejo dos negócios: que por mais difíceis que fossem a sua
prudência e destreza e mais ainda o geral conceito da sua virtude, os faria concluir
com feliz sucesso!
Certamente, respondeu o Santo, vós, dizeis muito, e a vossa retórica é
excessiva. Vós imaginais que eu estou na estimação dos outros, como na vossa;
divisando as minhas ações e a minha pessoa por um microscópio apaixonado, que
engrandece os objetos. Mas deixemos isto, pelo que é.
O meu sentimento a respeito do nosso príncipe é bem diferente do vosso;
descobrindo no mesmo que vós dizeis a grandeza do seu juízo. Porque, além de eu
não ter a destreza e a prudência no manejo dos negócios políticos, que vós me
considerais; eu devo dizer-vos, que até as mesmas palavras de secular prudência em
negócios políticos me causam horror!
E, para de uma vez vos dizer tudo, fiarei de vós esta palavra de amigo: Eu
totalmente ignoro, nem jamais quererei aprender a perniciosa arte de mentir, de
dissimular e fingir com destreza, que é a mola real do manejo político, e a arte das
artes em matéria de prudência humana.
Eu não diria de propósito uma mentira, ainda que me fizessem senhor de
todos os Estados do Império, da França, e da Saboia. O que eu profiro com a língua,
é o que tenho no pensamento; e todos que tratam comigo, conhecem logo este meu
caráter, que nada tem de próprio para um cortesão político. E, quando assim não fosse,
deveria sempre lembrar-me aquela divina máxima do Apóstolo S. Paulo: “O que é
consagrado a Deus, não deve intrometer-se nos negócios seculares”.
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XIV — S UA GRANDE CARIDADE COM UMA MORIBUNDA
Uma religiosa da Visitação, depois de haver tolerado quase por toda a vida
uma penosa enfermidade, não só com a maior paciência, senão ainda com prazer e
alegria, por último chegando a sua moléstia ao final extremo, fez chamar ao nosso
Santo, para que lhe assistisse naquele passo.
Ora, esta boa religiosa, que sempre seguira o caminho da Cruz com admirável
constância, depois de haver feito, sempre em seu perfeito juízo, os atos de fé, de amor,
de contrição, de humildade, de confiança, de resignação e conformidade com a
vontade de Deus, começou a sentir (duas horas antes do seu trânsito) novas dores, e
tão agudas, que a pondo no maior abatimento, disse ela ao nosso Santo com um
profundo suspiro: Oh! Meu padre, será mal feito? E calou-se.
Então o bem-aventurado, temendo que ali houvesse alguma tentação do espírito
maligno, lhe perguntou: Que mal, caríssima? Ao que ela respondeu: Não, meu padre,
não; isto seria uma grande infidelidade. E aqui parou. Mas que infidelidade?
replicou o Santo, entrando em maior apreensão. E quem vos tirou aquela grande
confiança, que o Senhor vos tinha dado em mim? Serão talvez os meus pecados?
Não, meu padre, respondeu a moribunda; eu tenho presentemente maior
confiança na vossa caridade: porém isto é coisa de tão pouca substância que não
merece a vossa aflição. — Pode ser (replicou o santo) que exceda ao que vós
pensais; porque as indústrias do tentador são finíssimas e muito mais nas
extremidades da vida, para ruína das almas. Rogo-vos, pois, e vos conjuro que nada
me oculteis do que tendes no vosso ânimo.
Ah! Meu bom pai, disse ela, isso seria uma grande infidelidade para com
Deus; e principalmente nesta hora, em que lhe devo ser mais obediente, e mais fiel.
— Oh! Minha filha, (instou o bem-aventurado) vós não fareis ato de maior submissão,
nem mais agradável a Deus, que o dizer-me agora com simples candura a causa dos
vossos suspiros.
Eu, meu padre, disse ela, que tenho assaz padecido até o ponto desta hora, devo
agora mais suspender a meu respeito toda a queixa e toda a ternura. — Não, minha
amada filha, replicou o Santo, não deve ser assim. Vós bem sabeis que o sacrifício
da obediência é superior a todos os mais. E suposto que não me atrevo a mandar-vos
em nome do Senhor, que me declareis a vossa inquietação, rogo-vos, contudo,
quanto posso, que me tireis a pena em que estou; porque na verdade é tal, que se bem
a conhecêsseis, teríeis compaixão de mim.
Oh! Meu padre, disse ela, vós tendes muito grande inteligência, para vos
afligirdes por coisa tão pouca. Tão pouca coisa chamais vós, replicou o Santo, a
salvação de uma alma, pela qual Jesus Cristo sacrificou a sua preciosa vida? Eu
desfaleço, considerando o perigo da vossa, talvez por uma bagatela. — Tendes
razão, meu padre, disse ela; porque isto é nada. — Mas que nada, replicou o Santo,
um nada, que Deus pode punir com pena eterna! Oh! minha boa filha, será preciso
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que eu aplique os últimos remédios, para apartar de vós esse demônio fatal, que vos
prende a língua, e vos faz muda.
Com efeito, ia o Santo prelado mandar pôr em oração todas as religiosas,
quando a moribunda lhe disse com submissa voz: Meu padre, se vós me mandais em
virtude da santa obediência, eu direi o que é. — Sim, minha filha, disse logo o Santo,
e que grande alívio me dais! Vós me tirais o gravíssimo peso que tinha sobre o meu
coração.
Mas, meu padre, disse ela, dais-me agora a certeza, de que nisto não há culpa?
— Eu vo-lo asseguro, respondeu o Santo, na minha consciência sobre a minha própria
alma. — Mas eu vejo-me assim precisada, replicou ainda a moribunda, a fazer um
ato de laxidão no extremo da minha vida. Eu sinto-me bem oprimida do mal; e o
dizer eu isto não é uma laxidão insigne e uma infidelidade grande para com o
Senhor?
Vendo então o Santo pastor ser este todo o veneno, que tinha aquela pobre
moribunda sobre o seu coração, exclamou em alta voz: Não, não, da parte de Deus;
não, minha amada filha, aí não há laxidão, nem infidelidade alguma. E nada mais
tendes? — Não, meu padre, respondeu ela, nada, nada mais.
Pois, minha caríssima, concluiu o Santo padre, vós bem sabeis, que o Filho de
Deus, nosso Salvador e nosso Mestre, estando na Cruz oprimido de dores,
exclamou dizendo ao Eterno Pai: “Meu Deus, meu Deus, porque me desamparais?”
E daqui deduzo eu, acrescentando ainda, que a santa virtude da verdade,
simplicidade e candura nos obriga (principalmente quando o mal é forte) a manifestar
o que padecemos aos que nos assistem, e nos podem aplicar algum remédio.
— Oh! Meu padre, disse então a moribunda, segundo esse vosso ditame,
bastantes faltas tenho eu cometido; porque há muitos anos que estou enferma, e não
me lembro de haver passado um só dia sem alguma dor, de que nunca me queixei.
Agora pois sentindo-me já sem vigor, e padecendo aflições muito maiores, temia
dizê-las, e queixar-me; parecendo-me que seria demasiada ternura para comigo e
laxidão e infidelidade para com meu Senhor Jesus Cristo, que padeceu na Cruz
outras penas muito maiores a meu respeito.
Movida pois deste pensamento a humilde religiosa, pediu ao nosso Santo a sua
bênção e absolvição geral daquelas imaginadas faltas. E a pouco espaço, desfalecendo-
lhe os sentidos, depois de uma meia hora de suave agonia, rendeu a sua bela alma nas
mãos do divino Esposo, com inexplicável consolação do nosso Bem-aventurado,
depois da suma opressão, que ali padecera.
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TERCEIRA PARTE
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I — D AS VIRTUDES MENORES
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II — D O TEMOR DA CASTIDADE E DA CASTIDADE DO TEMOR
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III — E SPERAR SEMPRE BEM DOS PECADORES
A bondade do nosso Santo chegava a tal excesso, que ainda para com
muitos ímpios não sabia ter maus sentimentos. Ele procurava, quanto podia, cobrir
as faltas do próximo, umas vezes alegando a humana miséria, outras a violência
da tentação e, por último, o grande número dos que cometem outras
semelhantes.
E quando os crimes eram tais e tão públicos, que se não podiam encobrir, nem
desculpar, apelava para o futuro e dizia: Quem sabe que esse pecador se não há de
converter? E quem somos nós outros para julgar os nossos irmãos? Se Deus não
nos sustivera com a sua graça, agiríamos pior ainda, e estaríamos já no inferno. Dos
maiores pecadores têm saído heroicos penitentes, como vemos em Davi, Manassés e
outros muitos, que edificaram mais com a sua penitência, do que arruinaram com o seu
escândalo. Deus sabe fazer das mesmas pedras filhos de Abraão, e preciosas peças de
honra dos mesmos vasos de ignomínia.
Não queria pois o nosso bem-aventurado, que jamais se desesperasse da
conversão dos pecadores até o seu último suspiro; dizendo que a vida presente era
uma voz contínua da nossa última sorte, podendo sempre a impulsos da natureza
corrupta, cair os que estão em pé e levantar-se também com o socorro da graça, os
que houverem caído.
E passava mais adiante; porque ainda depois da morte não consentia que se
julgasse mal, até daqueles, cuja vida fora perversa, senão só dos que a Escritura
declara por condenados. Por quanto, dizia ele, só podemos ter nesta matéria umas
simples conjecturas, fundadas sobre o exterior, em que até os mais hábeis e de
melhor juízo se podem enganar.
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IV — A NIMAVA MUITO AOS PECADORES PENITENTES
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V — Q UE NÃO HÁ VERDADEIRA DESCONFIANÇA DE SI MESMO , SEM UMA
LEGÍTIMA CONFIANÇA EM D EUS
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VI — E STIMAÇÃO QUE FAZIA O S ANTO DA VIRTUOSA SIMPLICIDADE
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VII — D OS ESCRÚPULOS
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VIII — D E UM RÉU QUE DESESPERAVA DA SUA SALVAÇÃO
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IX — Q UE TUDO SUCEDE POR VONTADE DE D EUS
Exceto o pecado, dizia o nosso Santo, tudo vem por vontade de Deus, ou seja
bem, ou seja mal. BEM, porque Deus é fonte original donde procede tudo o que é
bom. E MAL, porque segundo a sentença do profeta Amós, “não há mal na cidade,
que não seja ordenado pelo Senhor”. O que se deve entender pelo MAL DE PENA; pois
sendo Deus a suma Bondade por essência, não pode querer o mal da culpa, ainda que
o permite, deixando agir a vontade humana, segundo a liberdade natural, que Ele
mesmo lhe deu.
Pensemos pois, como é justo, nesta importante verdade, respeitando sempre a
Deus, em todos os sucessos, e a todos os sucessos em Deus ou sejam prósperos, ou
adversos; e será grande a consolação e felicidade nossa, se assim recebermos todas
as coisas da benigna mão paterna daquele poderoso Senhor, que abrindo-a de qualquer
modo, felicita com a sua bênção a tudo o que tem vida.
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X — H ONRA QUE DAVAM TODOS À VIRTUDE DO NOSSO S ANTO , E
PARTICULARMENTE M ONS . DE L ESDIGUIÈRES
Como a grande virtude do glorioso Sales era bem reconhecida, não só pelos
católicos, mas também pelos protestantes, fazia-se universalmente venerada.
No ano em que ele pregou o Advento e a Quaresma na cidade de Grenoble,
Mons. de Lesdiguières, que ali era lugar-tenente do Rei, e marechal de França, não
estava ainda convertido à Igreja Católica. Porém respeitava muito ao nosso Santo, e lhe
fazia honras extraordinárias, convidando-o frequentemente para a sua mesa,
visitando-o também na sua casa, e assistindo algumas vezes aos seus sermões; porque
estimava muito a sua doutrina, e fazia grande conceito de sua virtude.
Causou tudo isto os maiores zelos aos da religião pretendida reformada, e
principalmente as ocultas e longas conferências que tinha o Santo bispo com aquele
grande fidalgo, o qual o elogiava em toda a ocasião, denominando-o sempre o Mons. de
Genebra, de que todos se admiravam!
Ameaçaram naquele tempo os ministros da reforma aos do seu partido que
haveriam por excomungados aos que assistissem aos sermões do Santo bispo. —
Porém nada bastou para que não fossem muitos deles ouvir as suas doutrinas, de
que saíam todos edificados, e alguns também convertidos.
Tiveram depois aqueles ministros vários consistórios para descobrirem os
meios mais eficazes com que representassem a Mons. de Lesdiguières o escândalo
que causavam a todos os protestantes, de que ele era a principal coluna, a honra que
dava ao bispo de Annecy, a familiaridade que com ele tinha, a assistência e elogios
grandes que dava aos seus sermões. E para este efeito destinaram alguns mais distintos
do seu partido.
Mas advertido aquele senhor desta intenção, logo que os tais deputados
chegaram ao seu palácio, antes de admiti-los, lhes fez dizer: Que se eles o
procuravam para algum seu particular negócio, ou da república, de boa-vontade os
receberia. Mas se vinham com intenção de lhe propor alguma exortação
consistorial, tivessem logo a certeza, de que entrando pela porta, sairiam pela janela.
Vendo então aqueles ímpios frustrado este meio, tomaram o expediente de
mover a um dos principais senhores da província, que era da sua mesma crença, para
expor em uma particular conferência a Mons. de Lesdiguières; o que os ministros
consistoriais não se atreveram a fazer pessoalmente, pelo temor da sua indignação.
Feito isto, assim respondeu aquele senhor:
— Dizei a esta gente que eu tenho idade bastante para saber como hei de
viver no mundo. Até a idade de trinta anos, em que me fiz protestante, vi como os
católicos-romanos tratam os seus bispos, ainda os mesmos reis e príncipes, que os
respeitam e veneram. E entre nós outros (depois de rejeitada a dignidade episcopal,
ainda que bem fundada na Escritura), não passam os nossos ministros de uns
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desprezíveis curados.
E dizei particularmente a tal ministro… (que sobre ser de baixo nascimento,
tinha sido seu doméstico, e subira por favor à dignidade de governar a igreja
pretendida reformada de Grenoble) que quando vir feitos ministros entre nós outros os
filhos dos reis, e príncipes, como os vejo os cardeais, arcebispos e bispos entre os
católicos romanos, então considerarei a honra que lhes devo dar.
E pelo que toca ao bispo de Annecy, se eu fosse, como ele é, bispo e príncipe de
Genebra, eu me faria ser obedecido, e que se reconhecesse o meu principado. Eu sei
muito bem quais são os seus direitos e os seus títulos, melhor ainda que um tal… e
seus colegas e assistentes. E sei assim mesmo, que me pertence o corrigi-los quando
antes não se calem, como sábios. Eles são muito pequenos e muito moços para
ensinarem a viver a um homem do meu caráter e da minha idade.
Ele depois disto duplicou as honras e obséquios ao Santo bispo, só com
desprazer dos pretendidos reformados. E as frequentes comunicações, que com ele
teve lhe fizeram tais impressões sobre a verdade pura da nossa santa religião, que por
fim, sendo chamado para o cargo de condestável, abjurou os seus erros, como um
bom católico, e mereceu ter uma morte edificante e felicíssima.
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XI — A RDENTE DESEJO DO CÉU NUM HOMEM DO POVO
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— Tenho de todos os meus, respondeu ele, a melhor satisfação, que justamente
se pode desejar. E se eu tivesse pena por deixar agora este mundo, só deles, ou por
eles me poderia nascer o motivo.
Ora, não podendo adivinhar o Santo bispo, donde vinha àquele enfermo o
desgosto da vida lhe disse:
— Pois, meu irmão, qual é o motivo, porque desejais a morte? — É, meu
senhor, lhe respondeu, por ter ouvido nas pregações, fazer tanto apreço do outro
mundo, e das glórias do Paraíso, que reputo o assistir na terra, como viver num
cárcere e prisão penosa.
E continuando a falar sobre este agradável assunto, disse tão belas coisas, que o
Santo bispo admirado se banhou em lágrimas de ternura, vendo que a maravilhosa
locução daquele virtuoso enfermo não lhe fora sugerida pela carne e sangue, mas pelo
magistério do Divino Espírito.
E logo o mesmo enfermo, descendo daquelas altas especulações celestes,
entrou a descrever a baixeza desprezível das mais eminentes grandezas, das
riquezas mais suntuosas e dos prazeres mais refinados do mundo, tanto ao natural, e
com tão vivas cores, que até imprimiu a este respeito um desprezo novo no mesmo
coração do nosso bem-aventurado.
Mas, para maior segurança, concluiu a prática com fazer muitos atos de
resignação e conformidade com a vontade divina, assim para viver, como para
morrer. E dali a poucas horas (depois de receber a extrema-unção pelas mãos do
Santo bispo) expirou, sem se queixar de alguma dor; e ficou depois da morte ainda
com mais agradável presença do que a boa, que tivera em vida.
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XII — ESCRÚPULOS DE UM HOMEM RICO E GRANDE ESMOLER
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XIII — D AS SECURAS NA ORAÇÃO
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QUARTA PARTE
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I — DA SINGULARIDADE
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II — O SEU PARECER A RESPEITO DAS DIGNIDADES E A RESIDÊNCIA
DOS BISPOS
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III — R ECUSA O S ANTO SER ARCEBISPO DE P ARIS
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IV — O SEU DESEJO DE RETIRO
O desígnio do nosso Santo (se voltasse de Lion, onde morreu) era retirar-se
para a solidão, e empregar ali o resto dos seus dias nas contemplações de Maria,
depois de ter gastado os seus anos nos ofícios de Marta.
Tinha ele para esse efeito mandado fazer uma residência em um sítio muito
agradável, próximo ao lago de Annecy, com uma capela bem adornada e cinco ou
seis cubículos no circuito de um belo claustro. O que tudo estava junto a um célebre
mosteiro de Beneditinos, em que pelos seus cuidados se introduzira a mais perfeita
reforma.
Intentava, pois, retirar-se a este deserto, depois de entregar ao bispo de
Calcedônia, seu irmão e coadjutor, o governo do bispado. E falando várias vezes
deste retiro com o prior do mosteiro vizinho, dizia: Quando nós estivermos na nossa
amada solidão, ali serviremos a Deus com o nosso breviário e rosário, e também com
nossa pena.
Oh! Quem me dera, dizia muitas vezes, quem me dera asas de pomba, para
voar àquele espiritual descanso; onde pudesse respirar à sombra da Santa Cruz; até
chegar o feliz momento da minha final mudança, ou total saída deste mundo. Estes
eram os desejos do nosso bem-aventurado; porém Deus lhe preparava no mesmo
tempo outro descanso, que era o fruto dos seus trabalhos.
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V — Q UE SE DEVEM OCULTAR AS VIRTUDES
Visitando ao nosso Santo um prelado seu amigo, ele, segundo o seu costume, o
recebeu com todo o bom acolhimento, e o teve por hóspede alguns dias. Chegando,
pois, a uma sexta-feira, perguntou-lhe o Santo, se queria vir para a mesa, onde a
ceia estava pronta. Hoje não é dia de cear, respondeu o hóspede, e não é muito em cada
semana um dia de jejum. Ouvindo isto o Santo, mandou que lhe trouxessem a
colação; e ele foi cear com os domésticos daquele prelado e com os da sua própria
família.
Então os familiares daquele prelado lhe disseram, que ele era tão exato e
pontual nestes exercícios de mortificação, que por mais respeitável que fosse o
hóspede que então tivesse, ele nada alterava do seu costume, porque ainda que se
punha com todos à mesa, comia somente o que o jejum lhe permitia.
Depois, falando o Santo com o bispo de Belley sobre liberdade de espírito,
referindo-lhe este passo, lhe disse que a condescendência era filha da caridade, assim
como o jejum era irmão da obediência. E nesses termos, se a obediência era maior que
o sacrifício, não havia dificuldade em preferir a condescendência e a hospitalidade ao
jejum.
E por aqui vereis, concluiu dizendo, que não se deve ter tanto apego, ainda aos
exercícios mais pios, que se não hajam de interromper algumas vezes. Porque do
contrário pode suceder que, com o pretexto de fidelidade e firmeza de espírito, se
introduza um finíssimo amor-próprio, que faz deixar o fim pelo meio, quando em lugar
de se unir a Deus, se une ao meio que a ele conduz.
E pelo que respeita ao fato, de que se falou acima, certo que aquele jejum da
sexta-feira, por então interrompido, ocultaria os outros; e ocultar tais virtudes não é
virtude menor do que as mesmas que se ocultam. Podia, pois, aquele prelado, reservar
o seu jejum de sexta-feira para o dia ou semana seguinte. E podia não menos omiti-lo
inteiramente, substituindo em seu lugar a virtude da condescendência. Exceto se a
obrigação procedia de voto; porque neste caso a fidelidade para com Deus precede a
tudo.
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VI — D O JEJUM
Perguntou uma vez o nosso Santo ao bispo de Belley seu discípulo, se tinha
facilidade em jejuar. Tanta, lhe respondeu, como quem nunca tem fome; e quando me
ponho à mesa, é quase sempre sem apetência. — Visto isso, lhe disse o bem-
aventurado, jejuai só nos dias de preceito.
— Logo, para quem se dispôs, replicou o discípulo, esta espécie de
mortificação tão recomendada nas Escrituras? — Para aqueles, respondeu o Santo, que
têm melhor ou maior apetite do que vós. E, portanto, comutai o jejum em outra obra
de mortificação, quanto permitir a prudência, segundo a vossa débil natureza.
Com efeito, o nosso Santo, que não aprovava os jejuns imoderados, costumava
dizer: O espírito não pode suportar o corpo muito nutrido: nem também o corpo
macerado com excesso pode suportar bem o espírito. Amava, pois, o Santo, igual
tratamento, dizendo que Deus queria ser honrado com juízo.
E acrescentava, dizendo, que pode cada um quando quer, diminuir as forças do
próprio corpo, mas não pode com igual facilidade repará-las, depois de abatidas;
porque o ferir é mais fácil que o curar. Em suma, a regra geral na presente matéria vem
a ser esta: — o espírito deve tratar ao corpo como a seu filho, sem oprimi-lo,
quando lhe obedece; e dar-lhe o castigo, como a vassalo rebelde, quando se lhe
revolta; segundo dizia e praticava S. Paulo: “Castigo o meu corpo, e o faço obedecer
como servo”.
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VII — D IVERSAS ESPÉCIES DE HUMILDADE
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VIII — D A POBREZA DE ESPÍRITO
Pela pobreza de espírito, dizia o nosso Santo, devem-se entender três excelentes
virtudes: 1 — a Simplicidade; 2 — a Humildade; 3 — a Pobreza Cristã.
A Simplicidade consiste em referir de coração todas as coisas a Deus. A
Humildade consiste em qualquer um se reputar por um verdadeiro nada e um servo
inútil. E a Pobreza Cristã distinguia o Santo em três classes, a saber: em afetiva e
não-efetiva; em efetiva e não-afetiva; e em afetiva e efetiva.
A pobreza afetiva e não-efetiva é excelente e se pode exercitar entre as maiores
riquezas, como fizeram Abraão, Isaac, Davi e outros heróis na lei antiga; e assim
também vários reis, príncipes e santos da lei da graça, inteiramente dispostos para
receber a pobreza, não só sem repugnância, senão ainda com louvor a ação de graças,
se Deus assim o permitisse.
A pobreza efetiva e não-afetiva faz duas vezes desgraçada a pessoa que a
padece; tendo as incomodidades, que traz consigo a indigência, e a pena que
procede da privação dos mesmos bens ardentemente desejados.
Por último, a pobreza afetiva e efetiva, muito louvada no Evangelho, ou
provém da indigência dos nossos pais, ou de algum revés de fortuna (quando não
venha de alguma desordenada paixão da natureza humana). Então pois, se de boa
vontade recebemos a pobreza conformando-nos, louvando a Deus neste estado, imitamos
a Jesus Cristo e aos seus Apóstolos, que nasceram e viveram pobres neste mundo.
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IX — D O AMOR PARA COM OS POBRES
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X — R ECUSA UMA PENSÃO QUE O REI LHE OFERECIA
O grande Henrique IV, rei da França, fazia grande apreço da virtude do nosso
Santo. E esperando que vagasse algum bispado mais rendoso que o de Genebra, que
era assaz diminuto, lhe ofereceu, entretanto, uma pensão considerável.
Mas o discreto e modesto bem-aventurado, que não queria deixar a sua igreja,
nem dar zelos ao seu príncipe nacional, fazendo-se pensionário de outro senhor,
descobriu um expediente, com que evadiu no mesmo tempo aqueles dois golpes:
rendendo humildes graças a sua majestade pela honra que lhe fazia de conservá-
lo na sua lembrança, e cuidar no seu cômodo; e suplicando-lhe ao mesmo passo, que
o não privasse do posto em que Deus o colocara na sua igreja; porque ele julgava que
os bispados não se faziam estimáveis à proporção das rendas, mas pelo maior
serviço que neles se podia fazer a Deus; e pensava também, que neste particular a
sua diocese excedia a muitas.
E quanto à pensão oferecida, como vinha de mão tão respeitável, não podia
recusar. Mas que suplicava a sua majestade o haver por bem que ficasse em depósito
nas mãos do tesoureiro, até lhe ser necessária para o serviço da religião católica, ou
remédio dos pobres. Pois quanto à sua própria pessoa, tinha o que bastava para passar a
vida.
Admirou o generoso monarca a sua destreza, juízo e desinteresse. E louvando
também sua grande prudência, disse: Eis aqui a mais agradável e mais bem
temperada repulsa, que até agora se me tem feito. Este homem é fora de toda a
corrupção e excede a todos os demais.
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XI — Q UE ALIMENTOS SE PODEM PERMITIR AOS SOLDADOS NO TEMPO DA
QUARESMA EM CASO DE NECESSIDADE ?
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XII — S OBRE O OCULTAR AS SUAS AUSTERIDADES
O nosso bem-aventurado em toda a sua vida soube ocultar com tanta destreza
os instrumentos de penitência, de que ele se servia, que só a morte revelou este
segredo, inteiramente incógnito até ao mesmo criado, que ao recostar-se e levantar-
se quotidianamente o servia no seu cubículo.
Por uma casualidade se julgará o restante. Aquele seu criado achou uma vez na
bacia de lavar uma pequena porção de água, como tinta de sangue. E não podendo
adivinhar a causa disto, porque havia pouco tempo, que lhe trouxera água naquela
mesma bacia para lavar o Santo as mãos, veio depois a conhecer que naquela bacia
lavara ele as disciplinas tintas em sangue; e despejando logo água, ficara por acaso
aquela porção que deu lugar ao reparo, e por ele à conjectura.
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XIII — S ABER GOZAR A ABUNDÂNCIA E PADECER A PENÚRIA
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XIV — D A RECREAÇÃO E COMO LHE SERVIA , ASSIM COMO TUDO O MAIS
PARA SE ELEVAR A D EUS
Não tomava jamais o nosso Santo recreação alguma, senão por condescender
com algum amigo. Assim pois nunca saía a passeio, senão quando a companhia o
obrigava, ou lhe ordenava o médico para sua saúde, porque era muito pontual
nesta obediência.
O nosso bem-aventurado, com o seu espírito de doçura, não recusava alguns
breves entretenimentos depois da mesa. Quando o bispo de Belley seu discípulo o
vinha visitar, cuidava muito em diverti-lo depois do trabalho da pregação. E da
mesma sorte, quando o glorioso Sales o ia visitar na sua residência, não recusava
outros tais divertimentos, que o bom discípulo lhe oferecia. Porém, como fica dito,
nunca ele os procurava, nem a ele se conduzia por seu próprio movimento.
Quando se lhe falava de edifícios, pinturas, plantas, flores, caça, música, etc.,
ele não censurava os que a isto se aplicavam. Quisera, sim, que eles se servissem de
todas estas ocupações, como de outros tantos meios para elevarem o espírito e o
coração a Deus. Sobre o que lhes dava ele o exemplo, deduzindo de tudo isto
virtuosos afetos, que o seu espírito lhe excitava; como quem via todas as coisas em
Deus. Ou, para o dizer melhor, como quem não via mais do que uma só coisa, a
qual era Deus.
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XV — N ADA PEDIR E NADA RECUSAR
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XVI — N ADA RECUSAVA DO QUE JUSTAMENTE SE LHE PEDIA
Na última viagem, que o nosso Santo fez a Paris, onde assistiu oito meses, foi
tão desejado de várias partes, que quase todos os dias tinha de pregar; o que lhe
causou uma enfermidade perigosa, se bem que sarou dela com presteza.
Disseram-lhe então algumas pessoas de respeito e amantes da sua conservação,
que não se encarregasse de tantas empresas superiores às suas forças, para não causar
ruína à sua própria saúde. Ao que ele respondeu, que todos aqueles que eram por
ofício, luz do mundo, deviam consumir-se como as tochas, até se acabar a cera.
— Mas as pregações tão frequentes, instaram os mesmos, fazem a palavra de
Deus menos preciosa; porque o mundo só estima o que é raro. — Pois se isto assim
é , replicou o bom prelado, será preciso nomear-me um vigário destinado para as
escusas; porque a mesma palavra que eu anuncio, me ensina que somos devedores a
todos, para lhes darmos o que nos pedem com justiça; e a escusa nestes casos, além de
grosseira incivilidade, seria inteiramente oposta à caridade fraterna.
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XVII — D A DEVOÇÃO PARA COM A M ÃE DE D EUS
Como o nosso Santo nasceu num dos dias da oitava da Assunção de Nossa
Senhora (21 de agosto do ano de 1567) teve sempre uma especial devoção para com
a Santíssima Virgem; honrando-a com frequentes obséquios desde os seus
primeiros anos, e consagrando por voto a Deus, em honra e amor da mesma Senhora,
não só a sua virginal pureza, senão também o rezar-lhe todos os dias o seu rosário.
Chegando, pois, esta notícia a uma pessoa devota, desejou praticar o mesmo
quanto ao voto do rosário, porém não o quis fazer, sem tomar primeiro a este propósito
o seu conselho. E o Santo lhe disse logo que tal não aprovava. Então aquele devoto
lhe replicou admirado: Pois vós recusais aos outros, o que para vós escolhestes na
vossa mocidade?
Sim, respondeu o Santo, e a palavra mocidade decide e satisfaz a pergunta.
Porque agora sem dúvida não faria eu aquele voto, que então ofereci com menos
consideração e madureza. E, se vou a dizer tudo, mais de uma vez me tem
embaraçado e ainda ocorrido o fazer-me dispensar o tal voto, ou comutá-lo em
outra obra de igual importância, mas de menor sujeição.
Aconselho-vos, pois, e vos exorto, quanto mais me é possível, que não
passeis algum dia sem o rezar, por ser uma devoção muito agradável a Deus e à
Santíssima Virgem. Porém seja sempre como um propósito firme e nunca por voto,
para que tendo alguma vez de omiti-lo, não vos exponhais a perigo de pecar.
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XVIII — T ENTAÇÃO FORTÍSSIMA , QUE PADECEU O NOSSO BEM -
AVENTURADO
Entre as grandes tentações, que servem de prova à nossa fé, a que respeita a
predestinação, é uma das mais penosas, por ser um abismo profundo, em que toda a
sabedoria humana é submergida. E Deus, destinando ao nosso bem-aventurado para
conduzir as almas no caminho do espírito, permitiu que fosse tentado com força a
este respeito, para que aprendesse a ser enfermo com os enfermos.
Acabara ele os seus estudos em Paris na idade de dezesseis anos. E o espírito
maligno intrometendo-lhe na imaginativa, que ele era do número dos condenados,
imprimiu-lhe esta tentação tão vivamente na sua alma, que fazendo-lhe perder o
descanso e nem poder comer, nem beber, ia a grandes passos dessecando-se e
caindo num total desfalecimento.
Vendo-o, pois, o seu mestre, assim macerado, pálido e sem fazer gosto de coisa
alguma, lhe perguntava muitas vezes, qual era a causa de tão estranha melancolia?
Mas o cruel demônio, que lhe introduzira a tremenda ilusão, era daqueles chamados
mudos, pelo total silêncio que fazem guardar aos miseráveis possessos, sobre os
quais se lhes concede poder, para mais afligi-los.
E o mais é que ele no mesmo tempo, se viu privado da suavidade do amor
divino, ainda que não da fidelidade, por meio da qual, como com um escudo
impenetrável, procurava repulsar, ainda que sem o perceber, os ardentes impulsos e
sugestões do inimigo. Então as delícias espirituais, que gostara com tanto prazer, antes
desta tempestade, lhe vinham na memória e lhe duplicavam a pena.
Em vão, dizia ele a si mesmo, esperava eu algum tempo ser inebriado com a
abundância das doçuras da casa de Deus, e ver-me submergido na torrente dos seus
inefáveis prazeres. Oh! Amáveis tabernáculos e deliciosos aposentos do templo do
Senhor! Eu não terei de ver-vos jamais, nem ser um dos vossos felizes moradores?
Que desgraça!
Um mês inteiro padeceu o nosso Santo estas amargas agonias, que ele podia
comparar às dores da morte e aos perigos do inferno; passando os dias em gemidos
dolorosos, e assim também as noites sem descansar nem dormir, regando o
próprio leito com amargos e copiosos prantos.
Até que por fim, movido de uma divina inspiração, entrou na igreja de S.
Estêvão para invocar a misericórdia de Deus sobre a sua miséria. E posto de joelhos
diante de uma imagem da Santíssima Virgem, rogou fervorosamente a esta Mãe de
misericórdia, que fosse advogada sua para com Deus, e lhe obtivesse de sua
bondade, que, se ele miserável tinha de ser tão infeliz, que houvesse de ficar
eternamente separado do mesmo Senhor, pudesse ao menos amá-lo com todo o seu
coração enquanto lhe durasse a vida. E concluiu a sua súplica com a seguinte oração
de São Bernardo:
“Lembrai-Vos, ó piíssima Virgem Maria, que nunca se ouviu dizer que algum
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daqueles que têm recorrido à vossa proteção, implorado a vossa assistência, e
reclamado o vosso socorro, fosse por Vós desamparado. Animado, pois, com igual
confiança, a Vós, Virgem entre todas singular, como a Mãe recorro, de Vós me
valho, e, gemendo sob os pesos dos meus pecados, me prostro a Vossos pés. Não
rejeiteis as minhas súplicas, ó Mãe do Filho de Deus humanado, dignai-Vos de as
ouvir propícia e de me alcançar o que Vos peço. Amém”.
Acabada esta oração, sentiu o nosso bem-aventurado o desejado efeito do
socorro da Mãe de Deus, e o poder do seu patrocínio na presença do mesmo Senhor.
Porque, sem mais demora, aquele dragão maligno, que lhe enchera o coração das suas
ilusões funestas, se retirou totalmente; e o Santo ficou possuindo tal prazer e
consolação, que onde abundaram as trevas, superabundou a luz.
Este combate e esta vitória, este cativeiro e este livramento, esta
tempestade e esta bonança lhe deram depois tanta prudência e destreza no manejo
das armas espirituais, que era ele como um arsenal, que subministrava defesas,
armas e indústrias a todos os que lhe manifestavam as tentações e opressão das suas
almas, aconselhando-lhes sobretudo, que recorressem ao patrocínio da Mãe de Deus;
a qual era sempre contra todo o inferno, como um exército ordenado em batalha.
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QUINTA PARTE
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I — COMO S E P O RTO U O S A N TO PERDENDO UM ANEL DE GRANDE
PREÇO
107
II — A SUA OCULTA MORTIFICAÇÃO
108
III — S INAIS DA GRAÇA SANTIFICANTE
Uma das grandes penas, que pode padecer qualquer alma que ama a Deus é
entrar na dúvida sobre se está na posse da sua graça e se é por Ele verdadeiramente
amada. Pois, como diz o Espírito Santo no capítulo do sagrado livro do
Eclesiástico, ninguém sabe (com certeza de fé, sem verdadeira revelação) se é
digno de amor, ou de ódio.
Contudo, o Doutor Angélico aponta alguns sinais a este respeito. O primeiro
vem a ser não sentir remorso algum de pecado mortal; isto é, não ter algum na alma,
de que se não haja purificado pelo sacramento da penitência.
O segundo é, quando cada qual sente em si, que ama a Deus, e se compraz nas
cosias que pertencem ao serviço do mesmo Senhor. Porque é sem dúvida, que
agrada a Deus, e é por Ele amado, aquele a quem Deus agrada; segundo está
definido pelo mesmo Senhor no sagrado Livro dos Provérbios: Eu amo aos que
me amam.
O terceiro vem a ser, quando em comparação do Criador nada estimamos as
criaturas. O que no Evangelho se exprime com o nome de ódio, dizendo Jesus Cristo
no capítulo 10 de S. Lucas: Aquele que não tem ódio a seu pai, a sua mãe e ainda a
si mesmo (isto é, à sua vida) não é digno de ser meu discípulo.
E o nosso glorioso Santo reduz tudo isto a estes dois pontos. O primeiro é
examinar, se no fundo da alma reside uma firme e invariável resolução de não ofender
jamais a Deus com algum pecado mortal; porque neste particular consiste a nossa
grande união com a vontade de Deus.
E o segundo ponto é examinar, se temos um firme e constante desejo de amar
a Deus; isto é, com um desejo eficaz, firme e resoluto, e não por impulso daquelas
vontades imperfeitas, que se apelidam veleidades.
109
IV — O BEDECER AOS PODERES SECULARES
110
repugnado. Assim é que ele obedecia e ensinava os outros a obedecer; como
poderoso em palavras e obras; podendo dizer, como Gedeão: Fazei o que me virdes
fazer.
111
V — E XCELÊNCIAS DO VOTO
É sem dúvida que o jejum (sirva de exemplo) feito por voto, é mais perfeito,
do que outro, que se faz sem essa obrigação, segundo a doutrina do Doutor Angélico,
compreendida nas razões seguintes:
1 — Porque o voto é um ato da virtude da religião, nobilíssima entre as morais;
e sendo por sua natureza mais excelente do que o jejum, aumenta-lhe o valor e
perfeição.
2 — Além disso, o que jejua por voto, dá não somente o fruto do jejum, senão
também a árvore e o fundo inteiro, que é a vontade resoluta, e obrigada por voto.
3 — Porque o voto, ajuntando uma obrigação estreita ao ato do jejum, liga mais a
vontade e a faz para a execução mais firme, mais resoluta, e mais constante; e um bem
junto a outro, é sem dúvida, que se aumenta.
Sem embargo do que, deve-se confessar, que o que jejuar sem voto, mas com
um amor grande, fará uma obra mais perfeita, do que outro que jejuasse por voto, mas
com menor caridade; porque essa sublime virtude é a que dá o preço às nossas
obras diante de Deus. E por isso as pessoas que fazem boas obras por voto, devem
amiudar, e aumentar os atos da caridade, para não perderem o mérito.
112
VI — D A PONTUALIDADE
Esta era uma das suas máximas que a grande fidelidade para com Deus se vê
nas coisas pequenas. Porquanto, aquele que bem sabe governar os dinheiros
mínimos, melhor se portará, sendo fiel administrador, no manejo das moedas
grossas.
E isto que ele dizia, exatamente o praticava; não só nos ofícios divinos, no
altar, e no coro, senão também quando rezava as suas horas em particular, e assim
também nas demonstrações de civilidade sem faltar a coisa alguma.
Queixando-se-lhe uma vez o seu discípulo da sobrada honra com que o tratava,
respondeu pronto: Eu honro a Jesus Cristo na vossa pessoa. E tomai daqui exemplo
para observardes fielmente aquele preceito de S. Paulo: Tudo se faça entre vós outros
com decência e justa ordem.
113
VII — D ESPREZO QUE FAZIA O S ANTO DOS BENS DA TERRA E ZELO QUE
TINHA DA SALVAÇÃO DAS ALMAS
114
VIII — S UA PACIÊNCIA NAS ENFERMIDADES
Sofria o nosso Santo as dores de qualquer moléstia com tal paciência, e com
tanto amor e doçura, que se lhe não ouvia jamais nem a mínima queixa, nem ainda o
menor desejo, que não fosse conforme à santa vontade de Deus.
De maneira que nem mostrava sentimento pelos serviços, que pudera fazer a
Deus e ao próximo no tempo da saúde; querendo só padecer, por Deus assim o
ordenar. Como Ele, costumava dizer, sabe melhor o que nos convêm, devemos
deixar agir a tão bom Senhor, segundo Ele mais quiser. Sim, meu Celeste Pai, eu
nada mais quero, que seguir em tudo vosso agrado.
Quando se lhe perguntava, se queria tomar um remédio ou um caldo, ou
sangria, ou coisas semelhantes, respondia: Deus me entregou à disposição dos
médicos: e eu estou pronto para o que eles me ordenarem. Assim honrava a Deus
nos médicos; como quem não ignorava, que Ele fizera a medicina; e esta honra que
lhes dava era inseparável da obediência.
Ele dizia simplesmente o seu mal, sem aumentá-lo com excessivas queixas, e
também sem diminuí-lo com afetada dissimulação. E suposto que a parte inferior da
alma se achasse oprimida com o peso das veementes dores, contudo a parte superior da
mesma mostrava sempre no rosto, e principalmente nos olhos uma perfeita serenidade,
apesar das dolorosas nuvens, que lhe assombravam e molestavam o corpo.
115
IX — D O SEU COMPORTAMENTO COM OS DOMÉSTICOS
Nunca o nosso bem-aventurado falou com aspereza, nem altivez aos seus
domésticos. E quando sucedia algumas faltas, ele temperava as suas correções com
tanta doçura, que eles se emendavam logo por amor, sem temerem a vara de ferro, de
que sabiam que ele não usava.
E dizendo-lhe o seu discípulo a este respeito: Que a familiaridade gerava
desprezo…
— Assim é, respondeu, mas é só a familiaridade indecente, grosseira e
repreensível; e de nenhuma sorte a que é civil, honesta e virtuosa. Pois como ela
procede do amor, este gera o seu semelhante; e o amor verdadeiro nunca é sem
estimação, e consequentemente sem respeito para com a pessoa amada.
— Logo, será necessário, replicou o discípulo, deixá-los agir, como eles
quiserem.
— Não por certo, respondeu o Santo. Mas se a caridade estiver senhora do
coração, saberá dar lugar à prudência, à justiça, à moderação, à magnanimidade, e
assim também à humildade, abjeção, paciência, tolerância e doçura.
Eu digo sempre a respeito dos nossos domésticos que os devemos amar, como a
nós mesmos, por serem nossos irmãos, e nossos próximos que vivem conosco
debaixo de um mesmo teto, e como tais os devemos tratar segundo quiséramos que
se usasse a nosso respeito, se nos achássemos na mesma situação e circunstâncias.
É bem verdade, que não se devem dissimular as suas faltas notáveis, nem poupar-
lhes a correção; mas também, por outra parte, devemos reconhecer agradecidos o
bem que por eles recebemos; e ainda mostrar-lhes algumas vezes o nosso agrado
pelos seus serviços. Pois, assim como uma rajada de bom vento nas velas de uma
embarcação a faz viajar muito mais do que o impulso de muitos remos, assim também
uma demonstração de amizade e benevolência tirará mais e melhor serviço de um
doméstico, do que muitos preceitos altivos ou rigorosos castigos.
116
X — VITÓRIA DO BEM-AVENTURADO SOBRE AS SUAS PAIXÕES
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XI — D A SIMPLICIDADE
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XII — D O ADIANTAMENTO NA VIRTUDE
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SEXTA PARTE
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I — S UA GRANDE HUMILDADE
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II — D A PERFEIÇÃO DO ESTADO
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III — D A LIÇÃO DOS BONS LIVROS
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IV — R ESPOSTA QUE DEU O S ANTO A UM BISPO QUE QUERIA
ABANDONAR O SEU BISPADO
Pediu um certo bispo ao nosso Santo o seu conselho sobre o desígnio que
formava de abandonar o seu emprego para viver em retiro, alegando-lhe o exemplo de
S. Gregório Nazianzeno, que largou nada menos de três bispados (Sazimo, Nazianzo
e Constantinopla) e foi acabar os seus dias retirado em Arienzo.
O nosso bem-aventurado lhe respondeu, dizendo: Nós devemos presumir,
que ele e outros grandes santos nada fizeram em tais casos sem um particular
movimento do Espírito de Deus. E por isso não devemos julgar as suas ações só pela
aparência exterior. Quanto mais que o mesmo S. Gregório não cedeu por vontade, mas
foi obrigado com violência a deixar a sua cadeira de Constantinopla.
E replicando o bispo, que a grandeza do cargo o espantava, tendo que dar conta
de tantas almas… Ah! Respondeu o Santo: E que diríeis ou faríeis vós, se tivésseis
um peso como o meu sobre as vossas costas? E, contudo, eu sempre confio na
misericórdia de Deus.
Instava o bispo, queixando-se de ser como a tocha, que se consome alumiando
os outros e de ter tantas ocupações para o serviço do próximo, que quase não lhe
ficava tempo para cuidar em si e na sua salvação. E vós, replica o Santo, podeis
conseguir vossa salvação, sem procurar a dos outros, depois de serdes chamado para
isto mesmo?
Aqui disse então o bispo, que tratando de conduzir os outros à santidade, se
expunha ao risco de perdê-la. Mas o Santo replicou dizendo-lhe: Vós bem sabeis,
pela história eclesiástica, que em nenhuma outra ordem há tantos santos, como na
dos bispos; porque nenhum outro estado na igreja de Deus subministra tantos meios
de santificação e perfeição, pelo caminho de instruir aos outros com a palavra e com
o exemplo, a que os bispos estão obrigados pelo seu emprego.
Perseverai, pois, na embarcação, em que Deus vos pôs para fazerdes a
passagem desta vida; a qual com efeito é tão curta, que não há precisão de mudar de
baixel. E se a vossa cabeça se vos perturba, em um navio grande, muito mais
padecerá em um pequeno, sujeito ao movimento das ondas. Eu quero dizer, em
outra menor condição, que, suposto seja menos ocupada, e na aparência mais
tranquila, não será menos exposta.
Estas e outras razões fortes persuadiram aquele bispo a continuar no mesmo
emprego, seguindo o conselho do apóstolo na vocação a que Deus o destinara.
124
V — DO AMOR DE D EUS
Sem este amor, reputava o nosso bem-aventurado, todas as mais virtudes são
um montão de inúteis pedras. E por isso recomendava ele, sobretudo, que nada se
fizesse sem caridade, inculcando sempre, sem se cansar, o que dizia S. Paulo, que
sem caridade nada serve: nem a fé, nem as esmolas, nem a ciência, nem ainda o
martírio mais penoso.
Oh! Quantas boas obras, exclamava o Santo, ficam inúteis, por não serem
animadas com este motivo. E com ser esta a mesma verdade, isto é, de modo
ordinário no que menos se pensa, como se a intenção não fosse a alma das nossas
ações; e como se Deus tivesse prometido recompensar as obras que não são feitas por
Ele, e referidas à sua honra.
A salvação, ensinava o Santo, é mostrada à fé, preparada para a esperança, mas
dada só à caridade. Porque a fé mostra o caminho da terra prometida, como a coluna
de nuvem e de fogo, clara e escura. A esperança nos alimenta com o seu maná de
suavidade. Mas a caridade, como a arca da aliança, é a que introduz na Pátria celeste,
prometida aos verdadeiros israelitas; onde a coluna da fé já não serve de guia, nem de
alimento o maná da esperança.
125
VI — T UDO POR AMOR , NADA POR FORÇA
Esta era a sua grande sentença e o primeiro móvel de todo o seu governo.
Assim, pois, dizia o nosso Santo, que os que pretendem forçar as vontades humanas,
exercem uma tirania extremamente odiosa a Deus e aos homens. E por isso ele não
aprovava aqueles espíritos absolutos, que a todo o custo querem ser obedecidos e que
tudo ceda ao seu império. E dizia, que se por esse modo eles amam o fazer-se
temer, justo é que temam o fazer-se amar; e que temam mais que todos os outros;
porque os outros só a eles temem e eles a todos os mais.
O certo é, concluía o Santo, que na galera real do amor divino não há
forçados; porque todos os remeiros são voluntários. E fundado neste princípio,
intimava os seus preceitos por forma de persuasão, ou de súplica; como quem no
governo das almas queria sempre imitar a Deus e aos anjos.
A Deus, que com ter na mão os corações dos homens, sofre as suas resistências e
rebeliões às suas luzes; consente que se oponham às suas inspirações; e até deixa
perder os que pela dureza de seus corações impenitentes ajuntam tesouros de ira para
o dia das vinganças. E mais, não deixa o mesmo Senhor de nos solicitar com
inspirações, por mais que rejeitemos os seus atrativos e não queiramos seguir os seus
caminhos.
E assim também aos nossos Anjos custódios, que imitam a respeito de nós
outros os procedimentos divinos. De maneira que, ainda que abandonemos a Deus
pelas nossas iniquidades, eles sempre nos assistem, nos inspiram e nos socorrem. Não
há maiores nem melhores exemplos para regularmos santamente a nossa prática para
com os nossos inferiores.
126
VII — D A CAUTELA NOS OLHOS
Falava-se um dia de uma fidalga de sua terra, e parenta sua, dizendo-se que
era a senhora mais formosa de todas aquelas terras. E o Santo, voltando-se para o seu
discípulo, que ali se achava, lhe disse: Assim o tenho ouvido afirmar a muitos. —
Assim o tendes ouvido? replicou o discípulo. Pois ela não é parenta vossa, e vós não
lhe falais com frequência? Sim, respondeu o Santo mestre, eu a tenho visto, e
falado com ela muitas vezes; o que não obstante, afirmo novamente, que não a tenho
visto; por ser ela de um sexo, que se há de ver, sem se divisar. Isto é, deve-se ver
superficialmente e em geral, para distinguir que é uma mulher a quem se fala e não
um homem e no mesmo tempo acautelar-se de contemplá-la com olhos fixos e
demasiadamente curiosos.
127
VIII — D A SINCERIDADE
128
IX — D A CIÊNCIA E DA CONSCIÊNCIA
129
X — DA PACIÊNCIA NAS DORES
Foi chamado o nosso Santo para assistir a uma pessoa extremamente enferma,
da qual se dizia, que no meio das mais terríveis dores, se conservava com uma
prodigiosa paciência. Mas como ele amava as virtudes sólidas e verdadeiramente
perfeitas, quis logo sondar, se aquela paciência era cristã; isto é, se a tal pessoa
padecia puramente por amor de Deus e por sua glória; ou se era só pela estimação das
criaturas.
Começou, pois, a louvar a sua constância, encarecer as suas penas e admirar a
sua bravura, o seu silêncio e o seu bom exemplo; como quem sabia, que por este
meio poderia logo conhecer os verdadeiros sentimentos do seu coração.
E com efeito, não se enganou porquanto aquela pessoa verdadeiramente
virtuosa e provida daquela paciência, chamada na Escritura “obra perfeita”,
prontamente lhe disse: Oh! Meu padre vós falais deste modo, porque não vedes as
revoltas dos meus sentidos e da parte interior da minha alma, onde está tudo em
desordem. De maneira que, se a graça de Deus e o seu temor santo não me formassem
na parte superior uma valente fortaleza, há muito tempo que seria geral o meu
delíquio, e a minha revolta, universal. Seriam grandes os meus gritos, sensíveis os
meus abatimentos, e talvez as minhas maldições notórias. Porém Deus me prende os
lábios por tal modo, que não posso queixar-me debaixo dos golpes da sua mão
benigna, que tudo ordena para sua maior glória e utilidade nossa.
Retirando-se, pois, o nosso Santo disse aos que o conduziram: A enferma tem a
verdadeira paciência cristã. E nós devemo-nos alegrar, mais do que sentir as suas
dores; porque a verdadeira virtude se aperfeiçoa nas enfermidades, fazendo-se como ali
vedes, não somente animosa, senão também ao mesmo tempo afetuosa e humilde.
Porém, guardai-vos de lhe referir o que acabo de dizer, para que lhe não
resulte alguma vaidade, e se lhe venha a perverter a bela economia da graça; cujas
águas só correm claras no vale da humildade. Deixai-a, pois, possuir
tranquilamente a própria alma na sua paciência, perseverando em paz na sua
extremosa amargura.
130
XI — D AS HOSPEDARIAS E ESTALAGENS
131
XII — D O ESPÍRITO DE POBREZA NAS RIQUEZAS ; E DO ESPÍRITO DE
MAGNIFICÊNCIA NA POBREZA
132
XIII — D A P AIXÃO DO S ENHOR
A este respeito dizia o nosso bem-aventurado, que não havia mais poderoso
estímulo para nos fazer adiantar no amor santo, do que a consideração atenta da morte
e tormentos do Salvador, que ele chamava o mais doce e o mais violento entre todos
os motivos de religiosa piedade. E perguntando-se-lhe, como se podiam unir a doçura
com a violência, respondeu, que pelo modo, com que se diz na Escritura, que o amor
é tão forte como a morte, porque nada é tão forte nem tão constante como a sua
doçura, e nada mais doce nem mais amável do que a sua força.
Com efeito, o Salvador na Cruz é o leão da tribo de Judá e o enigma de Sansão,
em cujas feridas se encontra o favo de mel da mais forte caridade; que com a força
da sua mesma doçura produz a nossa maior consolação. E por isso, como a Paixão e
morte do nosso divino Redentor é o mais alto efeito do seu amor para conosco,
deve ser também o mais forte de todos os motivos do nosso amor para com Ele.
133
XIV — D O R OSÁRIO
134
SÉTIMA PARTE
135
I — DA PRUDÊNCIA E SINCERIDADE
Eu não sei, dizia o glorioso Sales, que mal me tem feito a pobre virtude da
prudência; vendo que não me custa pouco ter-lhe amor! E ainda quando a amo é
como necessitado, por ser ela o sal, a luz da vida. E pelo contrário, a beleza da
sinceridade me arrebata, de maneira que eu daria sempre cem serpentes por uma
pomba.
Eu não ignoro ser útil a alternativa destas duas virtudes e o Evangelho a
recomenda. Mas parece-me, que se deve imitar aos que preparam a triaga 4F[5], que com
uma pequena porção de víboras lhe metem muitas mais drogas saudáveis. Mas se a
parte de víbora fosse igual com a da pomba, eu temera; porque a víbora podia
matar a pomba, e não a pomba a víbora. O que vem a dizer que há uma prudência
humana que serve só para fazer mal, por caminhos ocultos e nada retos.
É bem verdade que, em um século tão corrupto como o nosso, necessita-se de
prudência para evitar os danos da malícia. Mas eu seguirei sempre, que o bom cristão
deve querer em todo o tempo ser antes bigorna, do que martelo; antes roubado do que
ladrão; antes mártir, do que tirano; antes morto do que homicida; e em suma, antes
bom e sincero, do que astuto e malicioso.
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II — D O AMOR AO PRÓXIMO EM D EUS
137
III — S OBRE OS SINAIS DE BENEVOLÊNCIA
138
IV — D O AMAR SER ABORRECIDO E ABORRECER SER AMADO
Queria o nosso Santo, que se estimasse o ser aborrecido, por motivo de Deus,
segundo aquele texto do Evangelho: “Sereis venturosos, quando os homens vos
aborrecerem, e disserem de vós todos os males por meu respeito… porque a vossa
recompensa é grande no céu”. Deste modo pois se deve amar o ser aborrecido. E no
mesmo tempo se deve aborrecer o ser amado (não sendo em Deus ou por Deus) pelas
razões seguintes:
1 — Por causa do grande perigo, de que a amizade humana (por mais honesta
e legítima que seja na sua origem) degenere em criminal, principalmente versada em
pessoas de diferente sexo.
2 — Porque o querer ser amado, sem ser em Deus, é uma espécie de
latrocínio, com que se rouba ao mesmo Senhor aquela parte do coração, que para nós
queremos, e é devida a Deus por inumeráveis títulos.
3 — Porque é ferir de zelos a Deus, que não admite companheiro, nem
competidor na esfera do nosso coração. E, portanto, se o nosso amor para com Ele
não é todo, é nenhum.
4 — Porque é uma vaidade assaz grosseira em qualquer um o pensar, que tem
por si algum mérito, pelo qual possa ter direito sobre o amor de cada um.
— Oh! Como são venturosos, dizia o glorioso Sales, aqueles que nada têm de
amável. Porque nestes supostos estão certos, de que o amor, com que os tratam é
excelente, verdadeiro e puro; por ser todo fundado em Deus.
Ah! Piedoso Senhor! Ou tirai-nos do mundo, ou tirai o mundo de nós. Arrancai
o nosso coração do mundo, ou arrancai o mundo do nosso coração. Tudo o que não é
Deus, é menos do que pouco, é nada. E que é o que nós queremos, ou devemos querer
na terra, e no céu, senão a Deus.
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V — D OS ESPÍRITOS DEMASIADAMENTE REFLEXIVOS
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VI — D A MORTIFICAÇÃO DAS INCLINAÇÕES NATURAIS
Costumava o nosso Santo repetir muitas vezes esta sentença espiritual: Aquele
que mais mortifica as suas naturais inclinações, merece e concilia melhor as
inspirações sobrenaturais.
E na verdade, a mortificação interior e externa é um poderoso meio para
atrairmos sobre nós os favores do céu, contanto, porém que ela se pratique em
caridade e por caridade. E aqueles que, (como diz S. Paulo), trazem a mortificação de
Jesus Cristo em seu corpo e em seu coração, são semelhantes à vítima do profeta
Elias, sobre a qual desceu o fogo do céu e àquela água crassa, de que se diz no
Livro dos Macabeus, que tomou fogo dos raios do Sol.
Mas, assim como o celeste maná se deu aos israelitas no deserto, só depois de
consumidas as farinhas, que trouxeram do Egito; assim também os favores do céu só
são concedidos aos que não se conduzem segundo as inclinações terrenas. O meu
espírito (diz o Senhor) não residirá no homem, que todo é carne.
141
VII — D AS REFORMAS
142
VIII — EXCITA COM SUAS LÁGRIMAS UM PECADOR À COMPUNÇÃO
Apresentou-se uma vez, ao nosso Santo, certa pessoa ilustre para confessar-se;
o que entrou a fazer com tal desembaraço e tão pouco sentimento (por não dizer
com desaforo), que mais parecia referir uma história de que se comprazia, do que
uma confissão que o magoava.
Conhecendo então o bem-aventurado o estado interior daquela alma (que das
três partes do sacramento da penitência só tinha uma, que era a confissão de boca, e
essa ainda muito imperfeita, por falta daquele santo pejo, que lhe deve fazer
companhia), ele sem lhe interromper a narração, começou a chorar, suspirar e
gemer.
O que vendo aquela pessoa, lhe perguntou, se padecia alguma moléstia? Não,
meu caríssimo, (respondeu o Santo) eu estou bom de saúde, graças a Deus; porém
vós estais muito mal.
Não certamente, (respondeu ele), porque eu não sinto em mim moléstia
alguma.
Continuai, pois, lhe disse o Santo. E ele prosseguindo com a mesma liberdade, foi
referindo sem pejo algum seus enormes delitos. E continuando o bem-aventurado a
chorar e suspirar com abundância, respondeu à nova pergunta, que lhe fez o penitente a
este respeito: — Eu choro, porque vós não chorais.
Vendo, pois, o miserável, que as suas gravíssimas culpas causavam tão largos
prantos àquele inocente, foi tal a sua dor com golpe da divina graça, que caindo sem
alento, esteve em termos de perder a vida. E, recebida a graça do sacramento, deu-
se todo a Deus e se fez um modelo de penitência. E dizia depois aos seus amigos
referindo-lhes este passo: — Os outros confessores fazem algumas vezes chorar aos
seus penitentes; mas eu fiz chorar ao meu confessor, donde procedeu todo o meu bem.
143
IX — C ONSOLA O S ANTO A OUTRO PENITENTE
144
X — D A C ONGREGAÇÃO DAS R ELIGIOSAS DA V ISITAÇÃO
Falando em certo dia com o nosso Santo uma pessoa ilustre, sobre a
Congregação daquelas religiosas (presentemente denominadas Salésias) lhe disse com
liberdade: Que quereis fazer com essa congregação; ou de que servirá ela na Igreja de
Deus? Não há já outras muitas, a que poderiam destinar-se estas mulheres?
E vós não agiríeis com maior acerto, instituindo uma congregação de
eclesiásticos? O tempo que vós gastais na instrução dessas religiosas (as quais para
perceberem uma coisa, se lhes deve repetir cem vezes) seria aplicado com utilidade
maior à instrução dos eclesiásticos. Além de que, essa vossa congregação é um
tesouro desconhecido; e procurar que produza utilidade sólida é querer pintar sobre
as águas, é semear sobre as areias.
Ouvindo isto o nosso Santo, sorriu-se graciosamente, e respondeu logo com a sua
costumada serenidade: Não sei trabalhar em materiais tão relevantes. E se pertencem
aos ourives as obras de ouro e prata, é próprio dos oleiros trabalhar em barro. Crede-
me: Deus é um grande artífice, que com pobres instrumentos faz grandes obras. Ele
escolhe o fraco, para confundir o forte, a ignorância, para confundir a ciência, e o que é
nada, para destruir o que parece ser alguma coisa.
Que não fez Ele com uma vara na mão de Aarão? Com uma queixada na mão
de Sansão? Por quem venceu a Holofernes, senão pela mão de uma mulher?
Quando criou o mundo donde tirou a matéria, senão do nada?
Além de que, por isso mesmo que o sexo feminino é mais fraco, necessita de
maior auxílio e deve-se-lhe ter mais compaixão. O Divino Salvador não se dedignou,
nem proibiu às mulheres a sua assistência. Ele de modo ordinário era seguido de
muitas, ainda, até ao mesmo Calvário, onde exceto o Evangelista amado, o
abandonaram os discípulos. E a Santa Igreja, que dá a este sexo o nome de devoto,
bem mostra que o estima muito.
De resto não é considerável o exemplo, que elas podem produzir onde o
mesmo Deus as chamar? Das duas qualidades que devem ter os eclesiásticos
pastores (a palavra e o exemplo) qual é, segundo o vosso juízo, a que merece maior
apreço? Eu por mim confesso, que estimo mais uma onça de exemplo santo, do
que muitas libras de eloquência. A ciência instrui, mas ao que a tem sem a boa vida,
se converte em escândalo e se lhe diz justamente: Médico, cura-te a ti mesmo.
É bem verdade, que há outras congregações na Igreja, em que poderiam ser
religiosas algumas que professam nesta. Mas também é certo, que muitas aqui
professas não seriam admitidas nas outras, por causa dos seus anos, das suas moléstias,
com que não poderiam cumprir as austeridades corporais daquelas ordens. E por outra
parte, se nesta congregação se aceitam algumas mulheres fortes, é com o desígnio de
servirem às enfermas, para as quais principalmente foi esta ordem instituída.
E pelo que respeita à exortação que me fazeis para eu instituir uma
congregação de eclesiásticos, devo dizer-vos que já lançou mão dessa alta empresa o
145
grande e fiel servo de Deus, Mons. de Bérulle, que tem maior talento para isto e
muito mais tempo do que eu, que tenho a carga de uma diocese tão pesada, e que é
como o centro dos erros que perturbam a Igreja. Deixemos, pois, aos grandes operários
os grandes desígnios; e Deus fará o que for servido deste pequeno emprego do meu
trabalho.
146
OITAVA PARTE
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I — DO DESPREZO DA ESTIMA
O cuidado que tinha o nosso Santo da reputação de sua pessoa, era só pelo que
tocava ao serviço de Deus, não por sua própria honra; e mais para evitar o escândalo,
do que para aumentar a sua glória. Para o que praticava ele primeiro o que ensinava a
este propósito como vou a dizer.
Uns espíritos apaixonados, interpretando sinistramente um conselho muito
santo que ele dera em Paris a umas pessoas de singular virtude, tomaram daí motivo
para difamá-lo. Sobre o que disse ele a um seu amigo: Escreve-se-me de Paris,
que ali se me faz muito bem a barba, mas eu espero em Deus, que me a fará crescer
mais volumosa, se assim for necessário para o seu serviço, que é só o que estimo, e de
que faço apreço; pois, contanto que Deus seja servido, que importa que seja pela
nossa boa ou má fama, pelo aplauso, ou pelo abatimento da nossa reputação?
Quanto mais, que o que chamamos reputação é um sonho, uma sombra, uma
opinião, um fumo, um louvor, cuja memória se desfaz no ar, e finalmente uma
estimação, de modo ordinário tão falsa, que muitos se admiram de ver-se louvados
por virtudes, quando não ignoram ter os vícios contrários, assim como censurados por
defeitos, que nunca tiveram.
São logo esses delicados os que se ressentem de quaisquer murmurações,
que por si mesmas não são mais do que uma pequena cruz de palavras, que o vento
leva. E é necessário que tenha os ouvidos nimiamente mimosos quem não pode tolerar
por um pouco o impertinente som de um mosquito.
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II — D A VERDADEIRA HUMILDADE
149
com os remeiros, que voltam as costas ao lugar, para onde se dirigem.
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III — D O SENTIMENTO DA DIVINA PRESENÇA
Quando Deus nos priva das suas consolações e do suave sentimento da sua
presença divina, devemos dar-lhe graças com todo o humilde reconhecimento, como
um valente soldado, que agradece ao seu capitão, quando lhe comete alguma difícil e
perigosa empresa; porque então lhe mostra a estimação, que faz da consideração
do seu afeto e fidelidade.
Devemos, pois, dar graças a Deus no tempo dessas subtrações e securas por
todas as razões seguintes.
1 — Porque Deus deve ser louvado em todo o acontecimento, e se deve
adorar em tudo a sua vontade, as suas disposições e as ordens da sua Providência.
2 — Porque Ele nada faz que não seja para nosso bem e utilidade maior.
3 — Porque tudo se converte em bem para aqueles que amam, e que Ele ama.
4 — Porque nós, como filhos da cruz, devemos participar em alguma porção
dos tormentos do Salvador.
5 — Porque na desconsolação e securas temos meios mais próprios para
mostrar a Deus a nossa fidelidade.
6 — Porque a doçura das consolações gera algumas vezes a corrupção da
complacência e por ela a soberba, que é o veneno da alma.
7 — Finalmente, porque no tempo das doçuras sucede não poucas vezes, que
em lugar de amarmos ao Deus das consolações, amamos somente as consolações de
Deus.
O certo é, que assim como Jacó tirou sem custo as peles, que não eram suas,
sendo-lhe dadas por sua mãe para cobrir a garganta e as mãos; e pelo contrário, se
arrancassem a própria pele de Esaú, o fariam gritar, pela veemência da dor; assim
também as queixas que formamos, quando Deus nos retira as consolações
sensíveis, bem mostram que estavam pegadas ao nosso coração, ou o nosso
coração pegado a elas. E, consequentemente, quando nós suportamos aquela
privação sem queixa é muito bom sinal de que só Deus e não a criatura, tem a posse
do nosso coração.
151
IV — U TILIDADE DAS MOLÉSTIAS
Uma pessoa ilustre, mas de procedimento libertino e com grandes riquezas, que
ele dispendia em suntuosidades e magnificências e principalmente numa esplêndida
mesa, caindo por suas desordens em uma perigosa enfermidade, mandou recomendar-
se às orações do glorioso Sales, dizendo-lhe que estava de cama e sumamente aflito.
Ao que respondeu o bem-aventurado, dizendo logo ao mensageiro: — Aquele
que zombava algumas vezes do mérito das obras boas, recebe agora o efeito que lhe
mereceram as suas más. Os médicos lhe protestam que pelos seus criminais excessos
arruinou ele a própria saúde. E eu rogo a Deus, que a ruína do corpo lhe sirva de
proveito à saúde da alma. Dizei-lhe, pois, que tenha grande confiança porque essa
enfermidade não lhe será para morte.
Consolaram muito as primeiras palavras ao miserável enfermo. Mas o
aguilhão da ameaça que vinha no favo de mel, penetrou a sua carne com um tão santo
temor, que verificou a profecia do nosso bem-aventurado com à sua conversão;
mudando por tal forma os seus costumes, que os que o tinham visto antes da sua
moléstia, quase que o não conheciam depois de convalescido.
Ele com efeito, recobradas as forças perdidas, foi logo à igreja render graças
a Deus e também agradecer ao nosso Santo o precioso benefício das suas orações,
que ainda se aumentou com esta suave admoestação: — Agora vedes, meu caríssimo,
como semelhantes males nos sucedem por uma justiça de Deus, acompanhada de
misericórdia; que como nós não fazemos pelas nossas culpas as devidas penitências
voluntárias é justo que as façamos por este modo necessárias.
É, pois, venturoso, quem sabe aproveitar-se e fazer da necessidade virtude;
porque Deus não dá a todos esta graça, nem lhes manifesta os seus juízos com tanta
bondade. E por isso deveis reconhecer o favor que vos fez, em vos castigar com tanto
amor.
152
V — DA RESIGNAÇÃO PERFEITA NA VONTADE DE D EUS
153
VI — B ONANÇA NA TEMPESTADE
154
VII — D OS QUE DESEJAM A MORTE
155
VIII — D AS BOAS INCLINAÇÕES
156
IX — Q UE SE PODE SER DEVOTO E MUITO MAU
Não vos enganeis (dizia o nosso bem-aventurado ao seu discípulo), pode-se ser
muito devoto (ainda falando da verdadeira devoção), e ao mesmo tempo ser muito
mau.
Porque a devoção, por sua natureza, é uma virtude moral e adquirida, não divina
e infusa; pois de outra sorte, seria virtude teologal e não o é, sendo só uma virtude
subordinada à que se chama religião, a qual é compreendida em uma das quatro
cardeais, denominada justiça.
Assim pois, como se pode ter fé, com que se façam transportar os montes,
sem ter caridade, e se pode ser profeta e mau homem, como foram Saul, Balaão e
Caifás; e se podem fazer milagres, como se diz os fez Judas, e ser mau como ele; e se
podem repartir pelos pobres todos os próprios bens, sem ter caridade, muito mais
facilmente se poderá ser devoto e muito devoto, e ao mesmo tempo ser mau e muito
mau; porquanto a devoção é uma virtude de sua natureza menos estimável do que as
outras agora referidas.
Assim, pois, não se deve estranhar o dizer-se que se pode ser devoto e muito
mau, quando se pode ter fé, misericórdia, paciência e constância, ainda tendo muitos
vícios capitais, como soberba, inveja, ódio, intemperança e outros semelhantes segundo
a doutrina do Doutor das Gentes.
Ora, tal devoção, ainda que verdadeira, é morta. Pois, assim como o corpo
morto, inteiro e perfeito de um homem, é verdadeiro corpo de um homem verdadeiro,
mas privado da alma, assim também a devoção sem a caridade, que é a alma da
virtude, é devoção verdadeira, porém morta, é devoção sem alma, devoção informe
e nada viva.
O homem, pois, pela devoção pode ser devoto; porém como só pela caridade é
bom, faltando-lhe esta pode ser devoto e juntamente mau; pois pelo pecado mortal
não se perdem os hábitos adquiridos, nem assim mesmo a fé e a esperança, senão só
pelos atos contrários plenamente formados de infidelidade e desesperação.
157
X — DA DEVOÇÃO , COM A VOCAÇÃO
Uma das grandes máximas do nosso bem-aventurado era que a devoção não
conforme ou oposta ao estado e vocação de cada um, era falsa devoção; e que a
devoção verdadeira era conveniente a todo o estado, por ser como um licor que toma
a forma do vaso onde é metido.
Ser, pois, devoto, cada qual no seu estado, é cumprir fielmente as suas
respectivas obrigações com fervor, atividade e alegria, por amor, honra e glória de
Deus. Este culto é ato de religião; e aquele fervor, prontidão e amor da devoção é
efeito da caridade. Agir, pois, assim, é ser perfeitamente devoto na sua própria
vocação, e servir a Deus por amor, executando, como é justo, as suas vontades.
O Angélico Doutor S. Tomás distingue três classes dos que praticam a devoção
animada da caridade; a saber, dos principiantes, dos proficientes e dos perfeitos.
Os primeiros são os que se abstém do pecado, que rebatem as tentações, e
praticam as interiores e exteriores mortificações e os mais exercícios da virtude com
trabalho e dificuldade.
Os segundos são os que exercitam estas mesmas coisas com mais
facilidade, marchando no caminho de Deus com presteza e prontidão.
E os terceiros são os que praticam as mesmas obras com júbilo, alegria e um
prazer extremo. Os primeiros, agem por Deus com algum peso; os segundos
caminham com presteza; e os terceiros correm e voam com prazer e alegria,
observando, não só os mandamentos da lei de Deus, mas também os conselhos e
inspirações do céu.
158
XI — D O RECOLHIMENTO INTERIOR E ASPIRAÇÕES
159
NONA PARTE
160
I — DO AMOR DA P ALAVRA DE D EUS
Dizia o glorioso Sales, que entre os sinais de predestinação era um dos melhores
o ouvir com prazer a palavra do Senhor. Porquanto (como se diz no Evangelho)
aquele que é de Deus, gosta de ouvir a palavra de Deus; e o que ama a Deus ama a
sua palavra e a guarda no seu coração. E na verdade, gostar de ouvir a voz do próprio
pastor é sinal de ser boa ovelha, e de que estará à direita no último dia, para ouvir da
boca do Salvador: Vem para mim, bendito do meu Pai…
Porém, desejava o Santo, que não se recebesse em vão, nem se tornasse inútil
a divina palavra, por falta da legítima observância. E por isso dizia, que Deus se
dispunha a atender às nossas rogativas, quando nos esforçávamos para cumprir o
que Ele nos propunha pelos seus embaixadores e intérpretes das suas vontades.
Porque, assim como nós lhe pedimos na oração dominical (ou do Pai nosso) que
nos perdoe as nossas dívidas, como nós perdoamos aos nossos devedores; assim
também está disposto o mesmo Senhor a fazer o que lhe pedimos na oração, estando
nós prontos para executar o que de nós pretende pela sua palavra.
161
II — D A LEITURA ESPIRITUAL
162
III — D A P ENITÊNCIA E E UCARISTIA
163
IV — A VERDADEIRA DEVOÇÃO NOS DEVERES DE CADA ESTADO
Costumava o glorioso Sales censurar uma desordem assaz comum entre algumas
pessoas, que, fazendo particular profissão de piedade, se aplicam às virtudes menos
convenientes ao seu estado, e desprezam as que por todos os títulos lhes são mais
conformes. Esta desordem (dizia ele) procede do ordinário desgosto que tem a maior
parte das gentes contra as condições anexas ao seu próprio dever.
Há pessoas que para darem um bom elogio a uma casa secular, dizem que ali
se vive e tudo ali se observa, como em um convento; sem pensar, que isto é querer
colher figos nos silvados e uvas entre os espinhos. Não porque os tais exercícios não
sejam santos e bons, senão porque é preciso atender e considerar as circunstâncias
dos lugares, dos tempos, das condições e das pessoas.
Com efeito, a caridade fora da ordem, não é caridade, antes é como um peixe
fora d'água, ou como uma árvore em terra que lhe não é própria. Esta desigualdade de
espírito, tão falta de razão e prudência, parece-se com aqueles glutões, que apetecem
cerejas frescas pelo Natal, não se contentando de comer cada coisa na sua estação
própria. E tais cérebros assim perturbados, precisam mais de limpeza que de
raciocínio.
164
V — JUÍZO QUE FAZIA SOBRE AS VIRTUDES O GLORIOSO SALES
165
VI — Q UEM SE QUEIXA PECA
Esta era uma das ordinárias sentenças do nosso Santo. Não porque não seja
permitido a qualquer o queixar-se à justiça das injúrias e ofensas que se lhe fizerem,
nem também porque nas suas moléstias ninguém possa queixar-se e dizer o seu mal
ao médico e ainda aos assistentes, para receber algum alívio; pois persuadir o contrário
seria demasiado rigor.
Falava pois o Santo daquelas queixas que vem a dar em murmurações, e dizia
que ordinariamente os que assim se queixam, pecam; porque o nosso amor-próprio
costuma engrandecer as ofensas que se nos fazem, usando de termos excessivos para
exprimir umas injúrias assaz ligeiras, que talvez reputaríamos por coisa de nada, se as
divisássemos em outra pessoa.
Contudo, ele não reprovava (como fica dito) que se denunciassem à justiça,
com paz e sem paixão, as injúrias feitas aos nossos bens, aos nossos corpos e a nossa
honra. Mas é tal a fraqueza humana, que não lhe é fácil, ainda na face da mesma
justiça, conter o próprio espírito, e observar a equidade necessária. Donde nasceu o
provérbio que não se achará uma onça de amizade em cem libras de processos.
Queria também o glorioso Sales, que no tempo da enfermidade, dissesse cada
um simplesmente o seu mal aos que lhe podiam dar remédio; por ser esta a
vontade de Deus, que criou a medicina, e manda honrar ao médico, por este respeito.
Porém, fora do caso da justiça e de moléstia, ele reputava as queixas não só
por inúteis, senão de ordinário por injustiças; sendo extremamente difícil, que o
ofendido ao queixar-se, não exceda os limites da retidão e verdade.
Porque ou seja que nos sobrevenham os males por coisas ímpias ou inocentes,
sempre se deve atender à causa primeira, que é a vontade de Deus, o qual costuma
servir-se de umas e outras: das inocentes, absolutamente, e das ímpias, por permissão,
ou para nos corrigir a iniquidade, ou para nos aumentar a virtude. E por isso as
queixas que formamos, sempre de algum modo (tiradas as exceções referidas) são
ofensas de Deus.
Com efeito, várias pessoas, que assistiram ao bem-aventurado nas suas
moléstias até na mesma de que morreu, publicamente atestaram que jamais lhe
ouviram formular ainda uma só queixa; dizendo ele só simplesmente o seu mal, como
o sentia, sem aumentar, nem diminuir, abandonando-se inteiramente às disposições
dos médicos, tomando sem repugnância tudo o que se lhe ministrava e ainda com
algumas demonstrações de alegria.
166
VII — U SO DAS OFENSAS RECEBIDAS
Dizia o nosso Santo, que a seara das virtudes era sofrer bem as afrontas e
injúrias, porque nesta santa prática concorriam outras muitas.
1 — A justiça: pois qual é aquele, que não peca, e consequentemente não é
digno de correção? Se vós fostes ofendido, considerai logo, quantas vezes ofendestes a
Deus; e vereis como é justo que as criaturas vos castiguem, como instrumentos da sua
justiça.
2 — Se vos acusam justamente, deveis reconhecer a vossa culpa; e pedindo
perdão a Deus e aos homens, agradecer àquele que vo-la apresenta. Pois ainda que
o faça com mau ânimo e desagradável modo, devemos lembrar-nos de que as
medicinas, por não serem gostosas, não deixam de ser saudáveis.
3 — E se a acusação é falsa, deve-se, com paz e sem alteração, dar testemunho
à verdade. Porque assim o pede esta virtude e a edificação do próximo, que poderia
reputar por uma tácita confissão o nosso mesmo silêncio.
4 — Feito assim, se ainda se continua a nos acusar e arguir, não nos
defendamos mais; perseveremos no exercício da paciência, do silêncio e da modéstia.
5 — A prudência e a discrição vêm a praticar o seu ofício, que é a virtuosa
moderação.
6 — A força e grandeza de ânimo aqui vencem tudo, unindo-se com a
temperança, que refreia as paixões, para lhes impedir os excessos.
7 — A humildade tem neste caso uma porção grande, fazendo-nos conhecer e
amar a nossa abjeção.
8 — A fé, nestas circunstâncias, nos faz lembrar de Jesus Cristo Salvador
nosso, carregado de opróbrios e ignomínias, e ao mesmo tempo, observando um
profundo silêncio.
9 — A esperança, que nos faz ter por nada qualquer tribulação que nos oprima.
10 — Finalmente a caridade concorre muito e põe a coroa ao nosso
sofrimento, pois como benigna, paciente e graciosa, dissimula, padece e tolera tudo.
Como, pois, são amáveis as ofensas e injúrias, consideradas pela parte com
que nos subministram os meios mais próprios para exercitar ao mesmo tempo
tantas ações agradáveis a Deus!
167
VIII — R E S P O S TA D O B E M - AV E N T U R A D O S O B R E O M A L Q U E D I Z I A M
DELE
168
IX — C OMO SE DEVE FALAR DE D EUS
O nosso bem-aventurado dizia a este propósito: Não se deve falar de Deus e das
coisas que pertencem ao seu culto, por modo de conversação passatempo, mas
sempre com um respeito grande, e uma estima profunda. E por isso acrescentava
dizendo: Falai sempre de Deus, como de Deus; isto é, com piedade e reverência,
com espírito de doçura, de caridade e humildade.
O primeiro aviso pertence aos que falam das coisas da religião, como de
qualquer assunto de conversação e divertimento, sem atender ao tempo, ao lugar e às
pessoas. Miséria de que já no seu tempo se lamentava S. Jerônimo, dizendo que tendo
em todas as artes e ciências pessoas práticas e instruídas, às quais pertencia o falar com
esmero e reverência, só a Escritura santa e a sagrada Teologia, por serem a raiz das
ciências, eram tão indignamente tratadas, que muitas vezes se resolviam
decisivamente as suas questões mais altas, não só nas casas particulares, mas ainda
nas mesmas tavernas e praças públicas.
O segundo aviso é para aqueles que, nas suas conversações familiares, querem
passar por pessoas de grande instrução em matéria de ciência mística e oral,
sustentando as suas opiniões com o maior calor e teimosa soberba e voz estrondosa;
como se o clamar mais alto pudesse dar maior peso e solidez a um bem fundado
raciocínio.
E por isso o nosso bem-aventurado concluía dizendo: Não faleis jamais de Deus
nem da devoção por modo de conversação e passatempo, mas sempre com atenção,
humildade e respeito. E por esse modo evitareis a indigna vaidade que se acha em
muitos, que parecendo devotos, a qualquer propósito acomodam palavras do sagrado
texto, para se mostrarem instruídos na divina escritura.
169
X — C ONTRA A ZOMBARIA
170
XI — N ÃO JULGAR OS OUTROS
171
XII — C ONTRA A MALEDICÊNCIA
172
DÉCIMA PARTE
173
I — N ÃO CONTRADIZER SEM RAZÃO
Não há espíritos mais inimigos da sociedade humana, que os que são teimosos
e propensos para contradizer aos outros. São eles as pestes das conversações, os
flagelos das companhias e semeadores das discórdias. E pelo contrário, os espíritos
condescendentes, flexíveis e tratáveis são uns laços vivos que prendem os corações de
todos.
O nosso bem-aventurado louvava muito a prática de S. Luís, que era de não
contradizer a pessoa alguma, quando não havia pecado ou notável prejuízo. E o
Santo rei não se portava assim por prudência humana (da qual era inimigo) nem
segundo a máxima daquele imperador pagão, que tinha por indispensável, que
ninguém saísse mal contente da presença do seu príncipe; senão só por um
sentimento verdadeiramente cristão, a fim de evitar toda e qualquer contenda, como
aconselha S. Paulo.
E suposto que a condescendência nunca deve dirigir-se para participar do erro
ou pecado alheio, contudo, quando seja necessário contradizer a algum e opor-se à
sua errada opinião, deve-se usar de grande doçura e igual destreza, sem lhe fazer
violência, porque nada se lucra pela prática da aspereza. O espírito humano deve ser
persuadido e não obrigado. Constrangê-lo, é revoltá-lo; e a correção verdadeira, como diz
o profeta, entra pela porta da doçura.
174
II — S OBRE AS AVERSÕES
Tem havido muitos, que à viva força, com o socorro da divina graça,
arrancaram de seus corações o mortal ódio, que haviam concebido contra os que os
tinham agravado. Mas, assim como depois de cortada inteiramente uma árvore,
ainda lhe ficam as raízes na terra que para se arrancarem de todo pedem maior
trabalho, assim não menos ao ódio sucede a aversão; a qual tanto mais custa para se
destruir totalmente, quanto parece menos censurável, do que o ódio.
Todos sabem, que devemos perdoar ao inimigo, por maior ofensa que nos haja
feito, se queremos que Deus nos perdoe, como lhe pedimos na oração do Pai Nosso.
Mas, assim como depois de uma furiosa tempestade, ainda ficam em grande movimento
as ondas, assim também, depois de repudiado o ódio que se tinha ao inimigo, e com
efeito não lhe desejando algum mal, julgam muitos (contra o preceito do Evangelho)
que a nada mais estão obrigados.
Algum também persuadido destas razões, diz assim: Eu não só tenho perdoado
ao meu irmão a ofensa que me fez, senão ainda, sobre lhe não querer algum mal,
lhe desejo os mesmos bens da natureza, da fortuna, da graça e da glória, como para a
minha pessoa; porém não posso determinar-me a vê-lo, nem a conversar com ele,
porque a sua presença altera minhas potências, e temo que se renove o meu furor
contra a injúria que me fez.
Esta desculpa à primeira vista mostra ser bem fundada, suposta a fragilidade
humana. Porém não é assim diante de Deus, que manda a cada um recorrer a ele,
desconfiando da própria fraqueza e confiando na sua graça. De maneira que,
havendo-nos Ele dado auxílios para perdoarmos ao nosso adversário, para lhe não
querermos mal e ainda para lhe desejarmos todos os bens, devemos também confiar,
que o mesmo Senhor nos dará força para resistir às tentações, que se possam excitar na
parte inferior da nossa alma à vista daquele que nos ofendeu, contanto que lhe
hajamos perdoado com sincero e bom coração.
Outros haverá, que capacitados pelo presente discurso, dirão deste modo: Eu
não porei dúvida ao ver ao meu amigo, e ainda achar-me na sua companhia, porém,
falar-lhe, isso não, porque me podem escapar na conversa algumas palavras picantes,
que suscitando as passadas injúrias, acendam novamente o fogo do ódio, e venham a
fazer o último erro pior ainda do que o primeiro.
Ora, certo é, que todo o enfermo, que ao parecer, já livre da febre, bebe ainda
com demasiada ânsia um copo de água fria, dá bastante sinal de que ainda lhe resta
algum calor oculto no interior das veias. E, portanto, tal modo de falar e proceder
em todas essas pessoas, saídas a seu pesar do Egito do ódio, é convincente indício de
que se conserva ainda não pouca aversão no mais fundo dos seus corações.
Devem pois, esses tais, tomar o seu coração (a bem de dizer) com ambas as
mãos; e tirar dele mediante o divino auxílio, aquela aversão secreta com generoso
esforço, para haverem de praticar, como é justo, a santa doutrina do evangelho: de
175
fazer bem aos que lhe querem mal, suplantando o mal com o mesmo bem.
176
III — D A PRESENÇA DE D EUS
177
IV — D O AMOR - PRÓPRIO E DO AMOR DE NÓS MESMOS
Há grande diferença entre estes dois amores, porque ainda que todo o amor-
próprio é amor de nós mesmos, nem todo o amor de nós mesmos é amor-próprio.
O amor-próprio sempre é mau; e não há pecado grande, nem pequeno, sem
amor-próprio, isto é, sem uma resolução voluntária, tomada pela criatura contra a
vontade do Criador.
Mas o amor de nós mesmos não é desta natureza, porque sendo ele ordenado
pelo Céu, não pode deixar de ser bom, e por isso nós devemos amar em Deus, e
como Deus quer, procurando merecer e conseguir os bens da natureza, da graça e
da glória.
Assim pois, este amor de nós mesmos pode ser natural, ou sobrenatural;
natural, quando se dirige aos bens temporais, e regulado em forma, que não
desagrade a Deus. E sobrenatural, quando diz respeito aos bens da graça e da
glória, sendo assim tanto mais precioso que o outro amor, quanto os bens da graça e
da glória excedem incomparavelmente aos da natureza.
Ora, o amor sobrenatural de nós mesmos pode proceder ou da esperança ou da
caridade. O amor da esperança não é tão puro, porque leva seu interesse, amando nós
a Deus, como a nosso sumo bem e não como a bem sumo em si mesmo, e por si
mesmo. Já o amor de caridade é amor desinteressado e perfeitíssimo, com o qual
amamos a Deus só por Ele ser quem é, e a nós outros nele e por Ele, referindo tudo
à sua glória.
Donde se segue, que o amor legítimo de nós mesmos, ainda que nem sempre se
refere a Deus, sempre, contudo se lhe pode referir. E o amor santo da caridade, como
puro e isento de todo o interesse tanto virtual, como atualmente, sempre se refere e vai
dirigido a Deus.
O Divino Salvador, que nos remiu pelo seu sangue, deseja infinitamente que
nós o amemos, para que sejamos eternamente venturosos. E deseja que nos salvemos,
para o amarmos sem fim; dirigindo-se por este modo o seu amor à nossa salvação, e a
nossa salvação ao seu amor. Deve-se, pois, estender a nossa salvação no seu total, tanto
para a glória, que Deus nos dará no Céu, como para aquela, que nós lhe daremos, na
proporção da mesma glória.
E nisto se enganam os que falam da salvação eterna, pensando só no seu
interesse, isto é, na glória que Deus lhes dará no céu, e não naquela que eles darão a
Deus; pois esta é o principal, e o último fim pelo qual fez Deus o paraíso; pois só
glorifica a Deus no Céu aquele a quem Deus glorifica, para ser nele glorificado.
178
V — DA MEDIDA NO AMOR DE D EUS
A medida deste amor é não tê-la, porque sendo infinito o seu objeto, não pode
ter limites. Por isso o glorioso Sales chamava relaxados e preguiçosos aqueles
espíritos, que pretendiam encerrar este amor em uns tantos deveres, fora dos quais não
queriam estender-se, como se houvessem de enclausurar o espírito de Deus nas suas
mãos.
Donde bem se deduz, que na prática deste amor, quem não ganha, perde;
quem não sobe, desce; e se na dificuldade não fica vencedor, é vencido. Nós
vivemos entre batalhas, que nos apresentam vários inimigos, onde se não resistimos,
perecemos. Porém sempre que amamos, resistimos; e se sempre resistimos,
triunfamos. Por isso, pois, o não adiantar é retroceder; porque navegando nós em um
mar tempestuoso, se não remamos com todas as forças, seremos levados pela
corrente das águas.
179
VI — D A MORTIFICAÇÃO E ORAÇÃO
Dizia o glorioso Sales que a mortificação sem oração era um corpo sem alma; e
a oração sem mortificação era uma alma sem corpo. Por isso ele não queria, que
estas duas virtudes estivessem separadas, senão que, como Marta e Maria, se
conservassem de bom acordo no serviço do Senhor. E comparando-as também aos
dois pratos da balança (dos quais, quando um se abate, o outro se levanta) dizia, que
para elevar o espírito na oração, se deve abater o corpo pela mortificação, porque de
outro modo a carne oprimirá o espírito e lhe servirá de impedimento para se não
elevar a Deus.
E dizia mais, que o lírio e a rosa da oração e contemplação só se conservam e se
nutrem bem entre os espinhos das mortificações. Nem se vai ao monte do incenso,
símbolo da oração, senão pelo monte da mirra, figura da mortificação. E que assim
como o mesmo incenso exala o seu perfume só depois de queimado; assim também a
oração, para subir ao Céu com boa fragrância, deve sair de uma pessoa mortificada.
180
VII — S OBRE O PONTO ESSENCIAL DA CARIDADE
181
VIII — D IVERSAS QUALIDADES DE OBRAS
182
IX — S UA GRAVIDADE E SUA DOÇURA
183
X—O AMOR É O QUE DÁ VALOR ÀS OBRAS
184
XI — P ACIÊNCIA NOTÁVEL DO GLORIOSO S ANTO
185
XII — DIFERENÇA ENTRE O PECADO VENIAL E A IMPERFEIÇÃO
186
UNDÉCIMA PARTE
187
I — C ONVERTE O GLORIOSO S ALES A UM ECLESIÁSTICO
ESCANDALOSO ; E CONFESSA - SE DEPOIS A ELE
188
II — D A POBREZA CONTENTE
189
III — D O JUSTO APREÇO DO PRÓPRIO ESTADO
190
IV — D A INJUSTIÇA DOS HOMENS A RESPEITO DA SALVAÇÃO
Os filhos dos homens, diz o Profeta-Rei, são mentirosos nas suas balanças,
porque a vaidade dos seus sentidos os engana. A injustiça (para tirar o temor de
Deus diante dos seus olhos) diz em si mesma por boca dos libertinos, que Deus por
sua bondade suma não olha, nem se ofende pelas culpas dos homens; ponderando,
que cercados de misérias, de paixões e concupiscências, e ao mesmo passo tentados
pelo demônio, naturalmente se precipitam no pecado.
Pelo contrário os escrupulosos, caminhando por outro extremo, imaginam um
Deus que, armado de raios, só gosta de castigos. Tudo lhes faz sombra e não pensam
que a misericórdia de Deus, quanto aos seus efeitos, é superior à sua justiça, que ela
excede a todas as suas obras e que quase não pode conter-se, ainda nas suas maiores
iras.
Suposta, pois, esta desigualdade do espírito humano, o nosso bem-aventurado
tomava daqui algumas vezes ocasião para formar as suas exortações públicas e
particulares, dizendo a este propósito, que todos aqueles que se obstinavam no mal,
até o deplorável extremo de não terem cuidado algum da sua própria salvação, ou
faziam muito, ou muito pouco.
Muito, se eles acreditavam que havia um inferno. Porque em tal caso (ao
menos pelo seu amor-próprio) não deviam querer aumentar as suas penas,
carregando-se de novas dívidas contra a justiça de Deus; visto que ainda os mais
ímpios não fazem na república todo o mal que lhes inspira a sua malignidade, pelo
temor dos castigos temporais. E pela outra parte, fazem muito pouco, se eles têm
abandonado toda a crença das penas da outra vida, de modo que não cheguem a
temer o que lhes propõe a fé contra todo o seu mal.
E a respeito daqueles que ainda têm algum cuidado da sua salvação, protestando
que se não querem perder, certamente (dizia o nosso Santo), uma grande parte deles,
ou fazem muito, ou quase nada. Muito, se eles não observam os seus passos,
imaginando que não precisam ser tão pontuais nem tão exatos para conseguir a vida
eterna, suposta a divina misericórdia. Ou fazem quase nada pelo pouco bem que
fazem; e ainda esse pouco tão imperfeitamente e com tanta negligência, quanta é a
sua contínua tibieza. E não há muitos destes, ainda entre aqueles que fazem profissão
de praticar uma vida devota?
191
V — D AS PREGAÇÕES ELOQUENTES
Quando se falava dos pregadores que faziam maravilhas, dizia o nosso bem-
aventurado: Quantas gentes se converteram pelos seus sermões? Isto só é o que se
deve aplaudir e tanto mais admirar; quanto a conversão das almas é uma operação que
excede a ressurreição dos mortos; sendo uma passagem milagrosa da morte do pecado
à vida da graça.
E respondendo-se que por aquelas maravilhas se entendia a eloquência, a
ciência, a memória, a beleza das ações, a doçura e clareza da voz… Essas qualidades,
replicava o Santo, são próprias de um orador profano; porém não daqueles em que o
Divino Espírito derrama a ciência da salvação e dos santos.
Assim pois, se, ao sair da pregação, virdes alguns, que ferindo os peitos,
exclamam dizendo: Verdadeiramente pela boca daquele homem fala Deus; ele prega
a Jesus Cristo crucificado, e não a si mesmo; ele nos ensina a detestarmos os nossos
pecados e, retrocedermos dos nossos maus caminhos; Oh! Quanto penitência é
necessária para merecer a salvação eterna! Como é bela a virtude; amável o peso da
cruz, leve o jugo da lei, monstruoso e aborrecível o pecado! E, em suma, ainda sem
tantos discursos, se os ouvintes mostram o fruto das pregações pela pronta emenda, e
total reforma das suas vidas, julga então por muito bom e louvável o pregador não
para glória sua, mas de Deus, que o enviou e falou por sua boca depois de enchê-lo
do seu espírito.
Um célebre pregador, referia o Santo a este propósito, chegando a Annecy, lhe
pediu licença para pregar um sermão na sua catedral, o que facilmente lhe concedeu.
E o famoso pregador o fez com tão altos e tão sublimes conceitos, termos tão
pomposos, e tão magnífica eloquência, que admirou a todos os bons montanheses,
que ali concorreram em grande número.
Acabada a pregação, tudo eram exclamações de assombro, louvor e aplauso,
que exaltavam o pregador bem até as estrelas. Mas o nosso bem-aventurado, que
também assistira ao sermão e reconhecia, quanto era ele superior à capacidade
daqueles ouvintes, perguntou depois a alguns, que particular doutrina haviam
conservado, e que utilidade virtuosa haviam deduzido? Ao que não souberam
responder coisa alguma.
Só um deles, mais cândido e de melhor juízo, respondeu deste modo: Se eu
percebesse e compreendesse tudo o que ouvi naquele sermão, ele nada teria que
não fosse vulgar. A nossa ignorância é a que nos excitou aquelas admirações; porque o
sábio orador discorreu sobre coisas tão altas e com termos tão sublimes, que
totalmente excedem a nossa grosseira capacidade. E isso é o que nos obriga a fazer
maior apreço da grandeza dos mistérios da nossa santa religião.
Ouvindo isto, o nosso Santo louvou a probidade ingênua daquele bom homem;
achando com efeito que ele tirara da pregação algum fruto. Mas concluiu dizendo que
se o pregador não tem mais do que folhas de linguagem e belas ideias, está no perigo
192
de ser posto no número daquelas árvores infrutuosas, ameaçadas no evangelho com o
machado e com o fogo. E o Senhor disse a seus Apóstolos: Eu vos tenho escolhido
para irdes, frutificardes, de modo que o vosso fruto permaneça.
193
VI — D O AMOR E RESPEITO PARA COM A P ALAVRA DE D EUS
194
VII — D A PROSPERIDADE OU BOA FORTUNA
195
VIII — S EGURANÇA DO S ANTO ENTRE OS PERIGOS
196
IX — D O PURGATÓRIO
197
X — P RÁTICA VIRTUOSA EM OCASIÃO DE CALÚNIAS
198
XI — D A DESCONFIANÇA DE NÓS MESMOS
É verdade sem a menor dúvida, que não há quem tenha de si próprio senão
malícia e fragilidade. Porque, a respeito do verdadeiro bem sobrenatural não podemos
ter por nós mesmos nem um só bom pensamento; porque toda a nossa suficiência
vem de Deus, de quem procede todo dom perfeito, como diz S. Tiago.
O nosso bem-aventurado, seguindo a doutrina do seu amado livro Combate
Espiritual, tinha esta desconfiança por base do edifício da perfeição interior. E dizia
que, assim como os funâmbulos não dançam sobre uma corda, sem usar de
contrapeso, para evitarem o precipício; nós outros também na presente vida, em que
há tantos despenhadeiros, devemos andar sempre entre o temor e a esperança; ou com
os dois místicos pés da desconfiança de nós mesmos, e da nossa confiança em Deus.
A mesma lembrança das nossas culpas nos deve representar ao vivo a nossa
suma fragilidade, persuadindo-nos com evidência, que só pelo auxílio da divina graça
não havemos recaído em nosso primeiro estado, onde sem dúvida seria maior a
nossa miséria; mostrando a experiência, que de modo ordinário as recaídas são mais
perigosas do que as enfermidades.
Ninguém pois deve confiar-se na sua imaginada virtude, nem nos próprios
bons hábitos, que pense haver adquirido; por ser tanta a nossa miséria, fragilidade e
fraqueza, que basta um só momento, para de uma vez perder tudo; como basta um
quarto de hora para queimar-se um grande palácio, que para se fazer e adornar levou
o espaço de muitos anos.
Um religioso de S. Pacômio, dizia a este propósito o glorioso Sales,
denominado Silvano (que era no mundo comediante) havendo-se convertido e feito
religioso, passou nada menos de vinte anos uma vida exemplaríssima. Julgando,
pois, que as suas paixões estavam já de todo amortecidas, pareceu-lhe que poderia
praticar alguma galanteria para recrear a seus irmãos. Mas enganou-se, porque
despertando-se a sua paixão antiga, passou pouco a pouco das galanterias a
dissoluções tais, que o desterrariam do mosteiro, se um bom irmão não se oferecesse
por fiador da sua emenda, como assim sucedeu; vivendo dali em diante no perene
exercício de todas as virtudes até o ponto da sua morte.
199
DUODÉCIMA PARTE
200
I — DA MUDANÇA DE C ONFESSOR
Tanto a virtude, como a verdade, andam sempre a este respeito, entre dois
extremos e ambos repreensíveis, que vêm a ser, mudar a cada passo de confessor, e
absolutamente não deixá-lo. O primeiro, é veleidade e inconstância; e o segundo é
fraqueza, ou contumácia.
E se agora me perguntais, qual destes extremos é mais digno de censura?
Direi, que é o segundo; por ter muito de temor humano, de apego à criatura e de
escravidão inteiramente contrária ao Espírito de Deus, que só reside onde há santa
liberdade.
O Santo Concílio Tridentino, na sessão vigésima sexta ordenou, que três ou
quatro vezes no ano se dessem às religiosas confessores extraordinários, para lhes tirar
a aflição, que talvez lhes poderia nascer da continuação sucessiva de um confessor
ordinário.
E assim também quis o nosso bem-aventurado, que as suas religiosas da
Visitação o tivessem todos os anos na semana das quatro Têmporas. E ainda
recomendou apertadamente às superioras, que francamente concedessem esta graça
às religiosas, que expressamente lha pedissem.
A madre Santa Teresa também cuidou muito em dar às suas filhas esta santa e
justa liberdade. E o nosso bem-aventurado, escrevendo a uma superiora sobre esta
matéria, diz assim: Sem uma grande razão, não se deve permitir a variação de confessor,
mas também por outra parte não se deve ser invariável a este respeito: podendo haver
causas legítimas que façam justa esta mudança. E os superiores não se devem ligar as
mãos de tal sorte, que não possam fazer esta graça, quando for expediente; e sobretudo,
quando a mesma Comunidade fizer tal requerimento.
201
II — D AS DESCULPAS
202
III — A LGUNS AVISOS SOBRE AS TENTAÇÕES
Por não sabermos discernir, se a tentação que nos sobrevêm está diante do
nosso coração, ou dentro dele, nos perturbamos e padecemos. Mas como se há de
conhecer, perguntareis vós, esta grande diferença? Eis aqui a pedra de toque,
respondia o Santo.
Vede lá bem, se a tentação vos agradou ou se não foi do vosso agrado; e sabei,
que os pecados não vos podem ser nocivos, enquanto vos desagradam, e muito
menos as tentações. Sim, quando a tentação vos desagrada, nada tendes que temer;
pois, porque vos desagrada ela, senão porque a não quereis?
— Mas se eu me demoro na tentação (perguntou o discípulo) ou por
inadvertência, ou por alguma laxidão em lhe resistir, não haverá aqui alguma culpa
de criminal complacência?
— O mal da tentação (respondeu o Santo) não se mede pela sua duração;
podendo ela continuar sem culpa nossa por toda a nossa vida. Enquanto ela nos
desagrada, não há culpa; antes por isso mesmo que ela nos desagrada, este desprazer
nos preserva do seu veneno; e servindo-nos de matéria de virtude, nos vai merecendo
a coroa.
E se vós replicais, que sempre temeis o haver-vos de algum modo agradado,
respondo que esse mesmo temor é um sinal certo de que vos não agradou, porque
nada do que agrada se teme. E se vós pudésseis refletir, em que a tentação era um
mal, não vos podia causar prazer.
E no caso de haver alguma demora na tentação, deve-se saber que, se a tal
demora foi sem advertência, não é de grande importância; pois para ser criminal a
deleitação chamada morosa, é sempre necessário que haja expresso consentimento
e voluntária malícia. Mas como hei de conhecer (instou ainda o discípulo) se tive
em tal caso esse criminal consentimento?
— Ainda que não é fácil de conhecer (respondeu o Santo), contudo segui
sempre esta regra. Quando vós duvidardes de haver consentido no mal, tomai essa
vossa dúvida por uma expressa negativa; porque não pode haver culpa, sem
concurso da vontade; e se este concurso está duvidoso, e como tal não é conhecido,
podeis ficar em sossego.
203
IV — D A VAIDADE
204
V — DA PAZ DO CORAÇÃO ENTRE GRANDES OCUPAÇÕES
É grande abuso de certas almas (por outra parte pias e boas) imaginarem
que se não pode conservar o descanso interior entre embaraços externos. Os
navios no meio do mar nunca estão sem movimento; e, contudo, os que ali vão
embarcados não perdem o seu descanso e necessário sono, nem a agulha de marear
o seu norte.
Quem não atende mais do que a Deus em todas as suas ações, sendo toda a
sua intenção referi-las para glória do mesmo Senhor, em tudo acha descanso, ainda
nas agitações mais veementes, porque referindo-as para honra daquele Senhor que as
permite ou as envia, chega ao fim dos seus intentos, que é honrar a Deus em todas as
coisas e por todos os modos.
Eu me admiro (dizia o glorioso Sales) de que alguns, que se dedicaram a Deus
em vocações muito santas, cheguem a queixar-se de os destinarem para certos
empregos, em que há movimentos e distrações contínuas! O certo é, que só o pecado
nos separa de Deus; e, portanto, qualquer ocupação legítima, que não for criminal, não
pode produzir aquela fatal separação.
Sei que no mar do mundo há contínuos movimentos, mas também a solidão
tem seus assaltos e a fidelidade para com Deus mostra-se melhor nos casos adversos.
Tudo enfim é mar tempestuoso, mas contanto que haja em nós coração reto, intenção
boa, valor firme, constância e confiança em Deus, não há perigo em qualquer
emprego.
205
VI — D A MORTIFICAÇÃO
206
VII — D O AMOR DO PRÓXIMO
207
VIII — S OBRE O TEMOR DA MORTE
Não deve ser a morte reputada por um mal, nem considerada como funesta,
quando a precede uma vida boa; porque nada a pode fazer formidável, senão as fatais
consequências de uma vida perversa.
Mas contra os justos temores que nascem da apreensão dos juízos divinos,
temos o escudo da boa esperança, que nos oferece a misericórdia de Deus, dando-nos
toda a certeza de não serem jamais confundidos os que esperam na sua bondade.
Assim é que todos nós havemos cometido muitas culpas; mas qual será o
louco que se atreva a dizer que pode mais delinquir do que Deus pode perdoar? Ou
que pretenda medir a grandeza dos seus crimes com aquela imensa misericórdia que
os lança no mar do esquecimento, logo que nós os detestamos, e nos arrependemos
por seu amor? Só os desesperados, como Caim, poderão dizer serem as suas culpas
tais, que absolutamente não merecem perdão. A misericórdia de Deus é infinita, a sua
redenção copiosa, Ele sempre está pronto para remir a Israel de todas as suas
iniquidades.
É bem verdade, que a vista geral das nossas culpas nos deve sempre excitar um
contínuo temor e amargura de coração. Porém não havemos de parar aqui; devemos
passar adiante e chamar em nosso socorro a fé, a esperança, e o amor da divina
bondade; e logo a nossa amargura se converterá em doce paz; o nosso temor servil
se mudará em casto e filial; e a desconfiança de nós mesmos, por mais amarga que
seja, se poderá bem adoçar pelo açúcar da confiança em Deus.
208
IX — D AS QUEIXAS IMPACIENTES
Era opinião do nosso bem-aventurado, que nenhuma queixa se podia formar, por
mais justa que parecesse, sem alguma porção de amor-próprio; e que por isso as
grandes e longas queixas eram um sinal evidente de ternura própria demasiada, ou de
uma laxidão manifesta.
Porque enfim, para que servem as queixas, senão para ferir o ar e mostrar a
todos, que não há tolerância da injúria, antes sempre se conserva um vivo desejo de
vingança? A roda mal untada é sempre mais sonora; e o que tem menos unção de
paciência, exalta mais a sua queixa.
É bem verdade não ser absolutamente proibido o queixar-se cada qual entre
grandes dores do corpo ou do espírito, e assim também entre grandes e
consideráveis perdas; visto que o grande exemplar da paciência, o Santo Jó, assim o
praticou, sem ofensa da virtude, que o fez tão memorável e tão estimado de Deus.
E por outra parte, não deixaria de ser pecado o encobrir por tal modo uma dor
grave do corpo, pelo motivo de não se queixar, que se não recorresse ao médico, nem
aos remédios, com perigo evidente de se expor à morte. Deve-se, pois, sobre este
ponto, observar um justo regulamento.
De maneira que, sendo alguma vez preciso sofrer em silêncio, outras é
necessário exprimir o que se padece. Sobre o que nos dá o nosso bem-aventurado uma
excelente lição: É preciso (diz ele) evitar uma imperfeição insensível, mas
grandemente prejudicial, de que poucas gentes se abstêm; e vem a ser que,
censurando nós ao próximo, ou nos queixando dele (o que rara vez se devia praticar)
não acabamos jamais, antes começamos sempre, e repetimos de novo as mesmas
queixas; o que é sinal de um coração ofendido, e que nada tem de verdadeira
caridade.
E pelo contrário, os corações fortes e generosos não se afligem sem grandes
motivos, e ainda nestes casos se portam sem perturbação e com sossego.
E estas últimas palavras, sem perturbação e com sossego, são a pedra de
toque, que distingue as queixas justas das ímpias e excessivas; dando a conhecer os
que são, ou não são como a pomba, que não tem fel e só se queixa com amor.
209
X — D AS AUSTERIDADES INDISCRETAS
É este um dos tropeços ordinários dos que entram a dar-se deveras à devoção.
Parece-lhes que nunca fazem o que basta; como querendo à força de braço reparar as
faltas passadas; de modo que só reputam que agem com acerto, quando fazem mais
do que é justo. O maligno espírito, que de toda a matéria forma flechas para nossa
perda, serve-se daqueles fervores imoderados, a fim de constitui-los depois
inábeis para o serviço de Deus, por falta de vigor corporal.
Advirta-se, pois, que Deus quer de nós um serviço razoável, e que a sua
honra requer juízo.
O glorioso S. Bernardo, nos seus princípios tropeçou nesta pedra; queixava-se
depois de tais excessos, chamando-os erros da sua mocidade. E eu conheço (dizia o
nosso Santo) uma pessoa de insigne doutrina e virtude, que arruinou em si mesmo
a mais vigorosa compleição; e que só depois de muito tempo, e já tarde, veio a
conhecer este erro.
E a uma religiosa, que com o pretexto de penitência praticava as maiores
asperezas corporais, superiores em tudo ao seu delicado temperamento, deu o nosso
mesmo Santo este sábio conselho, digno da sua natural doçura e discreta prudência:
— Não oprimais a fraqueza do vosso corpo com alguma austeridade, fora das que
impõe a vossa regra. Guardai as vossas forças corporais para servir a Deus com
fervor nas práticas espirituais, que são da vossa quotidiana obrigação.
Muito poucas pessoas (ainda entre as espirituais) conservam a balança igual
nesta matéria; porque o espírito, que está pronto, carrega quase sempre a carne, que é
enferma, sem considerar que assim como o espírito não a pode suportar quando é
muito pesada; também ela, quando está muito fraca, não pode suportar ao espírito.
210
XI — D AS TENTAÇÕES MENORES
211
XII — D AS DISTRAÇÕES INSEPARÁVEIS DOS NEGÓCIOS
212
XIII — D OS ENFERMOS , QUE NÃO PODEM ORAR
Todas as coisas têm seu tempo, diz o Espírito Santo no livro do Eclesiástico.
Há tempo de padecer e tempo de orar. Ninguém busca frutos nas árvores na
primavera e no inverno. Para orar padecendo e padecer orando, seria necessário ter
uma carne de bronze.
Assim, pois, quando Deus nos chama e nos conduz para padecer, Ele mesmo
nos desobriga de toda outra operação.
Eu sei que há enfermos, que vendo-se obrigados à cama, não se queixam
tanto das suas dores, quanto da impossibilidade, em que se acham, de não poderem
cumprir as devoções, que praticavam no tempo da saúde.
Mas enganam-se muito a este respeito, pois uma hora de sofrimento por amor
e submissão à vontade de Deus, vale mais do que muitos dias de trabalho, feito com
menos amor.
E o erro nesta matéria vem a ser, querermos servir a Deus pelo nosso modo e
não como Ele quer; segundo a nossa vontade e não conforme a sua.
E assim quando Ele quer que estejamos enfermos, queremos nós praticar a
humildade, a oração e outras virtudes, não por serem do seu divino agrado, mas por
se conformarem ao nosso gosto.
De maneira que só amamos a virtude temperada com açúcar, e não com fel e
vinagre. Nem o Calvário nos agrada tanto, como o Tabor, onde, e não naquele,
quiséramos estabelecer a nossa morada. Em vez de amar o amor de Deus, amamos a
doçura deste amor; quem ama só a Deus, ama-o igualmente em todo o tempo de
enfermidade e saúde, de prosperidade e adversidade, de trabalho e descanso; porque
sendo Deus sempre igual a si mesmo, a desigualdade do nosso amor para com Ele,
só pode vir de coisa que não seja Ele.
Por isto o nosso bem-aventurado dizia a uma alma, que por uma longa
enfermidade se queixava de não poder aplicar-se à oração: Não tomeis tristeza por
este motivo; porque os flagelos do nosso Salvador não são menor bem, do que o
meditar.
Não, sem dúvida; porque o estar na Cruz com o Salvador é muito melhor, do
que o vê-la somente.
Portai-vos, pois, com sossego de ânimo; e quando os médicos vos proibirem
qualquer exercício, ou de oração mental ou vocal, ainda, o mesmo ofício divino
(exceto as orações jaculatórias) rogo-vos, quanto posso, pelo respeito e amor, que me
tendes, que obedeçais prontamente; porque Deus assim o quer. E quanto
recobrardes a saúde perdida, fareis no caminho do espírito novos e maiores
progressos.
213
XIV — A GLÓRIA DE D EUS É O FIM DA NOSSA SALVAÇÃO
Tudo o que se faz pela própria salvação deve ser dirigido, primeiro que tudo,
ao serviço e glória de Deus.
Mas se perguntardes à maior parte dos Cristãos, que se exercita em boas
obras, qual o motivo por que as fazem responderão todos a uma voz: Que é para
haverem de conseguir, com a graça de Deus, a sua eterna salvação.
Mas se lhes perguntardes de novo: — Porque é tão ativo nesta parte o seu
desejo? Vereis logo que falando a sua língua pelo que tem no coração,
ingenuamente vos confessam que o seu intento principal é chegar a possuir os
gloriosos bens, que se gozam no Céu. E se lhes falardes sobre as circunstâncias
maiores de glorificarem ali a Deus, vereis que não é esse o seu fim principal.
Todos, pois, devem saber que o último fim porque Deus criou o Paraíso e
todas as coisas é a sua glória; como bem o entendeu o Profeta Real, quando ao falar
da felicidade suma, que gozarão os bem-aventurados no Céu, não diz que será pelas
honras, pelas riquezas e delícias, que ali terão; senão porque louvarão ali a Deus por
todos os séculos dos séculos.
É bem verdade, que o que nós fazemos para a nossa salvação é feito por
serviço de Deus; contanto que nos refiramos à nossa mesma salvação para glória do
Divino Salvador, como nosso último fim.
É também certo, que o nosso Salvador neste mundo operou a nossa salvação
como nosso último fim, para glória de seu Pai; dizendo Ele próprio que não viera
procurar a sua glória, senão a daquele que o enviara; protestando a este respeito, que a
sua glória seria nada, se não tivesse a glória de Deus por seu último fim.
E assim se deve entender o nosso Credo, quando diz que Jesus Cristo, por
amor de nós e da nossa salvação, desceu dos Céus, se fez homem e foi crucificado.
Porquanto, aquele por amor de nós não se deve tomar, como se nós outros e a
nossa salvação eterna fosse o último fim da Encarnação e Paixão de Jesus Cristo
e não a glória de seu Pai.
214
Non nobis Domine, non nobis,
sed nomini tuo da gloriam!
[1]
Deão: Dignidade eclesiástica a que está inerente a presidência do cabido [N.E.].
[2]
Cabido: Corporação dos cônegos de sé ou colegiada [N.E.].
[3]
Conezia: 1. dignidade de cônego = canonicato. 2. renda do canonicato [N.E.].
[4]
Finta: Contribuição municipal ou paroquial extraordinária, proporcional aos haveres de cada um: derrama,
imposto [N.E.].
[5]
Triaga: Mitridato de 63 elementos, usado no passado como preventivo e remédio contra diversas
enfermidades, além de antídoto contra a mordedura de animais venenosos [atribuída a Andrômaco de Creta,
médico de Nero, manteve-se em uso até o séc. XVIII]. [N.E.].
[6]
Descalcez: Qualidade de descalço. Designação genérica da ordem religiosa dos Carmelitas Descalços [N.E.].
215
Índice
A história deste livro 13
Prólogo 15
Vida admirável de S. Francisco de Sales 16
PRIMEIRA PARTE 32
I — Da verdade caritativa 33
II — Como se pode conhecer se tem a verdade a raiz na caridade 34
III — Outro sinal de a verdade proceder da caridade 35
IV — Da caridade e castidade 36
V — Notável paciência 37
VI — Sua destreza em desculpar ao próximo 38
VII — Da repreensão 39
VIII — Das palavras de humildade 40
IX — Da obediência dos superiores 41
X — O seu amor à justiça, e seu desprezo das coisas temporais 42
XI — Sua humildade modestíssima 43
XII — Sua doçura para com os domésticos 44
XIII — Caridade da castidade e castidade da caridade 45
XIV — Sobre o procedimento pomposo 46
XV — Aceita o desafio de um ministro protestante 47
XVI — Estimação que fazia o Santo de um eclesiástico que fora seu mestre 48
XVII — Sobre a verdadeira perfeição 49
XVIII — Conferência do Santo com o seu discípulo, a respeito do ponto
50
precedente
XIX — Prossegue-se a conferência do assunto precedente 51
XX —Do amor dos inimigos 52
SEGUNDA PARTE 53
I — Da humildade e castidade 54
II — Como se portava com os enfermos 55
III — O seu juízo sobre uns sermões 56
IV — Aversão aos seus louvores 58
V — Sua grande humildade 59
VI — Lembrança dos mortos 60
VII — A sua resignação 61
VIII — Do seu amor à pobreza 62
IX — Das importunidades 63
216
X — Sobre as tentações 64
XI — Sobre a conversação com as mulheres assim de palavras, como por
65
escritos
XII — Dos que se humilhavam na presença do Santo 66
XIII — Da política 67
XIV — Sua grande caridade com uma moribunda 68
TERCEIRA PARTE 70
I — Das virtudes menores 71
II — Do temor da castidade e da castidade do temor 72
III — Esperar sempre bem dos pecadores 73
IV — Animava muito aos pecadores penitentes 74
V — Que não há verdadeira desconfiança de si mesmo, sem uma legítima
75
confiança em Deus
VI — Estimação que fazia o Santo da virtuosa simplicidade 76
VII — Dos escrúpulos 77
VIII — De um réu que desesperava da sua salvação 78
IX — Que tudo sucede por vontade de Deus 79
X — Honra que davam todos à virtude do nosso Santo, e particularmente
80
Monsieur de Lesdiguières
XI — Ardente desejo do céu num homem do povo 82
XII — Escrúpulos de um homem rico e grande esmoler 84
XIII — Das securas na oração 85
QUARTA PARTE 86
I — Da singularidade 87
II — O seu parecer a respeito das dignidades e a residência dos bispos 88
III — Recusa o Santo ser Arcebispo de Paris 89
IV — O seu desejo de retiro 90
V — Que se devem ocultar as virtudes 91
VI — Do jejum 92
VII — Diversas espécies de humildade 93
VIII — Da pobreza de espírito 94
IX — Do amor para com os pobres 95
X — Recusa uma pensão que o rei lhe oferecia 96
XI — Que alimentos se podem permitir aos soldados no tempo da quaresma
97
em caso de necessidade?
XII — Sobre o ocultar as suas austeridades 98
XIII — Saber gozar a abundância e padecer a penúria 99
XIV — Da recreação e como lhe servia, assim como tudo o mais para se
100
elevar a Deus
217
XV — Nada pedir e nada recusar 101
XVI — Nada recusava do que justamente se lhe pedia 102
XVII — Da devoção para com a Mãe de Deus 103
XVIII — Tentação fortíssima, que padeceu o nosso bem-aventurado 104
QUINTA PARTE 106
I — Como se portou o Santo perdendo um anel de grande preço 107
II — A sua oculta mortificação 108
III — Sinais da graça santificante 109
IV — Obedecer aos poderes seculares 110
V — Excelências do voto 112
VI — Da pontualidade 113
VII — Desprezo que fazia o Santo dos bens da terra e zelo que tinha da
114
salvação das almas
VIII — Sua paciência nas enfermidades 115
IX — Do seu comportamento com os domésticos 116
X — Vitória do bem-aventurado sobre as suas paixões 117
XI — Da simplicidade 118
XII — Do adiantamento na virtude 119
SEXTA PARTE 120
I — Sua grande humildade 121
II — Da perfeição do estado 122
III — Da lição dos bons livros 123
IV — Resposta que deu o Santo a um bispo que queria abandonar o seu
124
bispado
V — Do amor de Deus 125
VI — Tudo por amor, nada por força 126
VII — Da cautela nos olhos 127
VIII — Da sinceridade 128
IX — Da ciência e da consciência 129
X — Da paciência nas dores 130
XI — Das hospedarias e estalagens 131
XII — Do espírito de pobreza nas riquezas; e do espírito de magnificência na
132
pobreza
XIII — Da Paixão do Senhor 133
XIV — Do Rosário 134
SÉTIMA PARTE 135
I — Da prudência e sinceridade 136
II — Do amor ao próximo em Deus 137
218
III — Sobre os sinais de benevolência 138
IV — Do amar ser aborrecido e aborrecer ser amado 139
V — Dos espíritos demasiadamente reflexivos 140
VI — Da mortificação das inclinações naturais 141
VII — Das reformas 142
VIII — Excita com suas lágrimas um pecador à compunção 143
IX — Consola o Santo a outro penitente 144
X — Da Congregação das Religiosas da Visitação 145
OITAVA PARTE 147
I — Do desprezo da estima 148
II — Da verdadeira humildade 149
III — Do sentimento da divina presença 151
IV — Utilidade das moléstias 152
V — Da resignação perfeita na vontade de Deus 153
VI — Bonança na tempestade 154
VII — Dos que desejam a morte 155
VIII — Das boas inclinações 156
IX — Que se pode ser devoto e muito mau 157
X — Da devoção, com a vocação 158
XI — Do recolhimento interior e aspirações 159
NONA PARTE 160
I — Do amor da Palavra de Deus 161
II — Da leitura espiritual 162
III — Da Penitência e Eucaristia 163
IV — A verdadeira devoção nos deveres de cada estado 164
V — Juízo que fazia sobre as virtudes o glorioso Sales 165
VI — Quem se queixa peca 166
VII — Uso das ofensas recebidas 167
VIII — Resposta do bem-aventurado sobre o mal que diziam dele 168
IX — Como se deve falar de Deus 169
X — Contra a zombaria 170
XI — Não julgar os outros 171
XII — Contra a maledicência 172
DÉCIMA PARTE 173
I — Não contradizer sem razão 174
II — Sobre as aversões 175
III — Da presença de Deus 177
IV — Do amor-próprio e do amor de nós mesmos 178
219
V — Da medida no amor de Deus 179
VI — Da mortificação e oração 180
VII — Sobre o ponto essencial da caridade 181
VIII — Diversas qualidades de obras 182
IX — Sua gravidade e sua doçura 183
X — O amor é o que dá valor às obras 184
XI — Paciência notável do glorioso Santo 185
XII — Diferença entre o pecado venial e a imperfeição 186
UNDÉCIMA PARTE 2
I — Converte o glorioso Sales a um eclesiástico escandaloso; e confessa-se
188
depois a ele
II — Da pobreza contente 189
III — Do justo apreço do próprio estado 190
IV — Da injustiça dos homens a respeito da salvação 191
V — Das pregações eloquentes 192
VI — Do amor e respeito para com a palavra de Deus 194
VII — Da prosperidade ou boa fortuna 195
VIII — Segurança do Santo entre os perigos 196
IX — Do purgatório 197
X — Prática virtuosa em ocasião de calúnias 198
XI — Da desconfiança de nós mesmos 199
DUODÉCIMA PARTE 200
I — Da mudança de Confessor 201
II — Das desculpas 202
III — Alguns avisos sobre as tentações 203
IV — Da vaidade 204
V — Da paz do coração entre grandes ocupações 205
VI — Da mortificação 206
VII — Do amor do próximo 207
VIII — Sobre o temor da morte 208
IX — Das queixas impacientes 209
X — Das austeridades indiscretas 210
XI — Das tentações menores 211
XII — Das distrações inseparáveis dos negócios 212
XIII — Dos enfermos, que não podem orar 213
XIV — A glória de Deus é o fim da nossa salvação 214
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