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23º festival do lme


documentário e etnográ co
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228 n n • sessões especiais

Na pele tesa das coisas


sobre Sedução da Carne, de Julio Bressane

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Sedução da Carne começa como um filme de viagem. A câmera explora paisagens


recônditas que ora se descortinam, ora se desarranjam diante do olhar de quem filma –
o próprio Bressane, presente na imagem desde o primeiro plano. Mais do que extensão
do olho, a câmera é uma continuação das mãos: percorre o tronco das árvores, tateia as
pedras, explora mil angulações oblíquas entre a floresta, as montanhas e o mar, enquanto
ouvimos a respiração do viajante e o ruído do vento. Reconhecemos os arredores de
Sils Maria, o vilarejo suíço onde Nietzsche passou seus últimos verões a caminhar e a
escrever algumas de suas obras mais célebres, geografia fundante em Nietzsche Sils
Maria Rochedo de Surlej (Julio Bressane, Rosa Dias e Rodrigo Lima, 2019). De súbito, o
céu claro de Sils Maria dá lugar a uma menina a mergulhar em câmera lenta, e o rochedo
piramidal às margens do lago de Silvaplana convoca uma praia de mar bravio, de ares
indianos, povoada por pescadores a puxar a rede em meio à algazarra das aves marí-
timas. Novamente, é o sentido do tato que impera: a câmera roça a superfície da corda,
enquanto a vibração do vento no microfone impõe sua força de presença; os movimentos
da imagem intranquilizam o olhar sobre a paisagem, enquanto a banda sonora incorpora
os ruídos da filmagem e faz do ouvido um órgão permanentemente retesado.
Como a filosofia derradeira de Nietzsche, a obra recente de Bressane é um cinema da
imanência. Mais do que adotar os pressupostos filosóficos nietzschianos, porém, trata-se
de desdobrá-los, encontrar uma reverberação formal dessa imanência na carne das
imagens e dos sons. Da deriva na praia oriental, onde umas gotas de sangue se anunciam
na areia, uma elipse – temporal, espacial, cósmica – nos leva ao mergulho concentrado
num espaço cênico fechado, onde uma mulher, Siloé (Mariana Lima), contracena com
um papagaio, uma porção de livros, uma jarra d’água e um prato cheio de carne crua.
A elipse introduz uma perspectiva – narrativa, imagética, corporal – nova: agora é essa
mulher que nos conduzirá pelo filme. Viúva há três anos, ela nos conta que seu marido
morreu de repente, numa viagem que faziam juntos “por lugares quase secretos desse
mundo”. Tudo o que vimos até aqui é tragado pela voracidade da ficção, sem perder nada
de sua presença material. As imagens do prólogo se afirmam em sua imanência carnal,

1. Crítico de cinema, programador e professor. Escreve regularmente na revista Cinética e no portal Con Los Ojos
Abiertos. Contribuiu com publicações como Senses of Cinema, La Fuga, Desistfilm e La Furia Umana. Doutor em
Comunicação Social pela UFMG, com passagem pela Université Sorbonne-Nouvelle (Paris 3).
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ao mesmo tempo em que são imantadas por uma força narrativa que, agora sabemos, é
parte do universo ficcional de Sedução da Carne. O filme de viagem que víamos até ali se
transforma em memória enlutada, no mesmo movimento em que a prosa memorialista
de Siloé é encampada por uma encenação que busca a vibração tátil das superfícies: a
pele ou as penas, as páginas dos livros, os objetos de cena delicadamente iluminados,
o suor ou a saliva. “A poesia, a imaginação, os meus sonhos, tudo isso é real” – diz Siloé,
como se reverberasse a empreitada do filme.
A deriva agora não é pela imensidão das paisagens secretas, mas pelos meandros
dessa eremita e de seu reino. Ela nos conta do sexo entre homens e animais – fartamente
documentado nos livros de história da arte que ela folheia – ou das exegeses de João
Ribeiro para os aforismos da língua portuguesa, enquanto a câmera desliza pelas penas
do papagaio ou pelas curvas do vestido de Mariana Lima. Numa súbita aparição de
imagens de arquivo, um microfone ausculta as inscrições gravadas em pedras imemo-
riais ou registra um indígena andino a tocar seu charango. De volta ao espaço cênico, o
som dos arquivos rebate na banda sonora, numa interpenetração que não cessa, como
se o filme se tornasse uma membrana permeável, constantemente vazada pelas cenas
de outrora: os ruídos do mar a perturbar o sono da viúva, a multiplicação insistente dos
pios de pássaro, até que eles passem a operar como acompanhamento musical das
derivas de Siloé pelo espaço. Enquanto a carne se acumula no prato, o corpo de Mariana
Lima se reparte em perambulações, converte-se em superfície pictórica, desfaz-se em
espelhamentos, sombras, desfigurações.
Se o papagaio, no dizer de Siloé, é o “guardião da memória das coisas antigas” –
como o bicho levado dos trópicos por Humboldt, que guardava na voz a língua da
tribo exterminada dos maipuré –, Bressane não é o último zelador da grande tradição
da mise-en-scène entre nós, como quer uma crítica idealista, mas sobretudo um cole-
cionador obsessivo das espessuras acústicas do passado e do presente, um guardião
curioso das intensidades luminosas de ontem e de hoje. Os ecos do passado estão aqui,
junto com os filmes anteriores do cineasta – a obra recente de Bressane é também uma
autobiografia fílmica em processo –, mas sem um pingo de nostalgia. O cineasta que
decide incluir na trilha sonora uma canção interpretada por Nora Ney ou arvora elogios
à prosa elegante e “atenta aos arcaísmos” de João Ribeiro é o mesmo que investiga a
materialidade das câmeras amadoras, deixa vazar as conversas com Rosa Dias na banda
sonora ou constrói um espaço cênico perfeitamente insular, hermeticamente fechado,
para depois implodir o artifício, sempre integrando-o na energia do filme como uma
dobra insuspeita da ficção.
As geografias de algures, as páginas dos livros, a penugem do papagaio, a luz que
vaza pelo tecido do estúdio, a língua vermelha e as cavidades do rosto de Mariana Lima:
tudo é imanência, tudo é proximidade, tudo é superfície imantada. Bressane filma como
quem roça a pele das coisas – que, arrepiadas pelo toque, devolvem a energia em forma
vibrátil. Perto do fim, essa obsessão pelas texturas encontra um anteparo: na convocação
das longas sequências do matadouro de O Sangue das Bestas (Georges Franju, 1949),
não por acaso o filme que, junto com Noite e Neblina (Alain Resnais, 1955), introduzira
Serge Daney em seu longo aprendizado das distâncias do cinema, a paixão carnal de
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Sedução da Carne encontra seu limite. O olho enfrenta o intolerável. É então que os
pedaços de carne acumulados no prato durante todo o filme se voltam contra Siloé de
forma avassaladora.
Mas, antes do final terrível, a carne será manuseada, vestida, penetrada pela língua
ereta de Mariana Lima, num êxtase triunfal. Ainda que a eremita enuncie que “a matança
diária e industrial dos animais é um espelho de nós mesmos”, ainda que a carne morta
reviva e se rebele contra a protagonista, espalhando-se pela casa e possuindo-a mortal-
mente, Bressane continuará sempre fiel à vida que se aninha na carne das matérias. Do
primeiro plano até o último, Sedução da Carne é um filme sempre teso, de atenção máxima
à sensualidade das superfícies, às suas vibrações imprevistas. Um filme inteiramente
seduzido pelo mistério sob a pele de tudo, testemunha contumaz de suas manifesta-
ções exteriores. No aparente contrassenso da aniquilação da protagonista pela carne
ressuscitada, aninha-se uma lição mais profunda: frente a um cinema cada vez mais
desencarnado, é preciso reencontrar, na pele tesa das coisas, a carne viva do mundo.
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fotografia/cobertura agradecimentos acknowledgements


Edgar Xakriabá Ademilson Concianza, Adirley Queiroz, Adrien
Vidal-Berthaud, Alessandra Brito, Alice Lamou-
tradução/legendagem
nier, Ana Carvalho, Ana Estrela, Ana Martins
Henrique Cosenza
Marques, Ana Tereza Brandão, André Brasil,
Luís Fernando Moura
André Di Franco, Antônio Bispo dos Santos, Arthur
Pedro Veras
Omar, Bernard Machado, Breno Henrique, Bruno
Roberto Romero
Hilário, Bruno Pinheiro Wanderley Reis, Bruno
Victor Guimarães
Vasconcelos, Roberta Veiga, Nina Gazire, Carol
autoração digital/ projeção forumdoc.bh Almeida, Castiel Vitorino, Célia Xakriabá, César
Hatari Filmes Guimarães, Charles Bicalho, Christopher Harris,
Julio Cruz Cínthia Gil (Doc Lisboa), Claudia Rankine, Cláudia
Vitor Miranda Mesquita, Clarisse Alvarenga, Claudiney Ferreira,
Cristina Amaral, Cristiane Lima, David MacDou-
assessoria de imprensa gall, Daniel Queiroz, Daniela Vargas, Davi de Jesus,
Helga Prado Denilson Baniwa, Diana Taylor, Eduardo de Jesus,
colaboração/assistência de produção Eliane Lopes (IGPA/PUC Goiás), Elizabeth Povi-
Cora Lima nelli, Emmanuel Burdeau, Ernesto de Carvalho,
Fernanda Torres Campos Fábio Andrade, Fabio Rodrigues Filho, Film
Gabriel Nunes da Silva Quarterly, Francisco Rocha, Gabriel Portela
Marcos Afonso Alves Rocha Saliés, Gabriel Sanna, Gabriela Moullin, Gilmar
Mariana Nunes Galache, Giovanna Heliodoro, Heitor Augusto,
Isabel Casimira, Isael Maxakali, Israel do Vale,
colaboração/pesquisa filmes indígenas Jair Fonseca, João Paulo Rabelo, Juca Ferreira,
Ana Carvalho Karen Shiratori, Karime Gonçalves, Kênia Freitas,
gerência de cinema Leda Maria Martins, Leonardo Lessa, Luís Felipe
Flores, Luiz Soares Júnior, Marcial Godoy, Mateus
Cine Humberto Mauro
gerente Araújo, Matheus Pereira, Michael Boyce Gillespie,
Miguel Ribeiro, Milene Migliano, Olívia Sabino,
Bruno Hilário
Paula Berbert, Paula Gaitán, Pedro Aspahan,
produção Pedro Portella, Rafael Barros, Renata Marquez,
Julio Cruz Renata Otto Diniz, Renato Sztutman, Rosângela
Mariah Soares de Tugny, Stella Penido, Sueli Maxakali, Tatiana
Matheus Pereira carvalho Costa, Théo Lionel,Tomyo Costa Ito,
Vitor Miranda Vicente Rios, Victor Guimarães, Vinícius Andrade,
estagiária Wellington Cançado, e a todxs xs realizadorxs,
Josi Santos equipes e coletivos que compõem esta 23ª edição
administrativo do forumdoc.bh.
Roseli Miranda
projeção Cine Humberto Mauro
Frames

associação filmes de quintal


Avenida Brasil | 75/sala 06 | Santa Efigênia
CEP 30140-000 | Belo Horizonte-MG | Brasil ISBN: 978-85-63837-18-9 (impresso)
filmes@filmesdequintal.org.br ISBN: 978-85-63837-19-6 (eletrônico)
forumdoc.org.br Impressão: Imprensa Universitária da UFMG

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