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1. Crítico de cinema, programador e professor. Escreve regularmente na revista Cinética e no portal Con Los Ojos
Abiertos. Contribuiu com publicações como Senses of Cinema, La Fuga, Desistfilm e La Furia Umana. Doutor em
Comunicação Social pela UFMG, com passagem pela Université Sorbonne-Nouvelle (Paris 3).
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ao mesmo tempo em que são imantadas por uma força narrativa que, agora sabemos, é
parte do universo ficcional de Sedução da Carne. O filme de viagem que víamos até ali se
transforma em memória enlutada, no mesmo movimento em que a prosa memorialista
de Siloé é encampada por uma encenação que busca a vibração tátil das superfícies: a
pele ou as penas, as páginas dos livros, os objetos de cena delicadamente iluminados,
o suor ou a saliva. “A poesia, a imaginação, os meus sonhos, tudo isso é real” – diz Siloé,
como se reverberasse a empreitada do filme.
A deriva agora não é pela imensidão das paisagens secretas, mas pelos meandros
dessa eremita e de seu reino. Ela nos conta do sexo entre homens e animais – fartamente
documentado nos livros de história da arte que ela folheia – ou das exegeses de João
Ribeiro para os aforismos da língua portuguesa, enquanto a câmera desliza pelas penas
do papagaio ou pelas curvas do vestido de Mariana Lima. Numa súbita aparição de
imagens de arquivo, um microfone ausculta as inscrições gravadas em pedras imemo-
riais ou registra um indígena andino a tocar seu charango. De volta ao espaço cênico, o
som dos arquivos rebate na banda sonora, numa interpenetração que não cessa, como
se o filme se tornasse uma membrana permeável, constantemente vazada pelas cenas
de outrora: os ruídos do mar a perturbar o sono da viúva, a multiplicação insistente dos
pios de pássaro, até que eles passem a operar como acompanhamento musical das
derivas de Siloé pelo espaço. Enquanto a carne se acumula no prato, o corpo de Mariana
Lima se reparte em perambulações, converte-se em superfície pictórica, desfaz-se em
espelhamentos, sombras, desfigurações.
Se o papagaio, no dizer de Siloé, é o “guardião da memória das coisas antigas” –
como o bicho levado dos trópicos por Humboldt, que guardava na voz a língua da
tribo exterminada dos maipuré –, Bressane não é o último zelador da grande tradição
da mise-en-scène entre nós, como quer uma crítica idealista, mas sobretudo um cole-
cionador obsessivo das espessuras acústicas do passado e do presente, um guardião
curioso das intensidades luminosas de ontem e de hoje. Os ecos do passado estão aqui,
junto com os filmes anteriores do cineasta – a obra recente de Bressane é também uma
autobiografia fílmica em processo –, mas sem um pingo de nostalgia. O cineasta que
decide incluir na trilha sonora uma canção interpretada por Nora Ney ou arvora elogios
à prosa elegante e “atenta aos arcaísmos” de João Ribeiro é o mesmo que investiga a
materialidade das câmeras amadoras, deixa vazar as conversas com Rosa Dias na banda
sonora ou constrói um espaço cênico perfeitamente insular, hermeticamente fechado,
para depois implodir o artifício, sempre integrando-o na energia do filme como uma
dobra insuspeita da ficção.
As geografias de algures, as páginas dos livros, a penugem do papagaio, a luz que
vaza pelo tecido do estúdio, a língua vermelha e as cavidades do rosto de Mariana Lima:
tudo é imanência, tudo é proximidade, tudo é superfície imantada. Bressane filma como
quem roça a pele das coisas – que, arrepiadas pelo toque, devolvem a energia em forma
vibrátil. Perto do fim, essa obsessão pelas texturas encontra um anteparo: na convocação
das longas sequências do matadouro de O Sangue das Bestas (Georges Franju, 1949),
não por acaso o filme que, junto com Noite e Neblina (Alain Resnais, 1955), introduzira
Serge Daney em seu longo aprendizado das distâncias do cinema, a paixão carnal de
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Sedução da Carne encontra seu limite. O olho enfrenta o intolerável. É então que os
pedaços de carne acumulados no prato durante todo o filme se voltam contra Siloé de
forma avassaladora.
Mas, antes do final terrível, a carne será manuseada, vestida, penetrada pela língua
ereta de Mariana Lima, num êxtase triunfal. Ainda que a eremita enuncie que “a matança
diária e industrial dos animais é um espelho de nós mesmos”, ainda que a carne morta
reviva e se rebele contra a protagonista, espalhando-se pela casa e possuindo-a mortal-
mente, Bressane continuará sempre fiel à vida que se aninha na carne das matérias. Do
primeiro plano até o último, Sedução da Carne é um filme sempre teso, de atenção máxima
à sensualidade das superfícies, às suas vibrações imprevistas. Um filme inteiramente
seduzido pelo mistério sob a pele de tudo, testemunha contumaz de suas manifesta-
ções exteriores. No aparente contrassenso da aniquilação da protagonista pela carne
ressuscitada, aninha-se uma lição mais profunda: frente a um cinema cada vez mais
desencarnado, é preciso reencontrar, na pele tesa das coisas, a carne viva do mundo.
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