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Fundamentalismo Religioso Cristão

Olhares Transdisciplinares

André Leonardo Chevitarese


Juliana B. Cavalcanti
Sérgio Dusilek
Tayná Louise de Maria

1° edição

Rio de Janeiro
2021
Fundamentalismo Religioso Cristão - Olhares Transdiciplinares
2021
Klínē Editora®
Rua Maria Amália,591, Tijuca - Rio de Janeiro – RJ - Brasil
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RJ - Brasil
Coordenação Editorial
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Conselho Editorial
Daniel Brasil Justi (UNIFESSPA)
Marta Mega (UFRJ)
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Osvaldo Ribeiro (UNIDA)
Diagramação e Projeto Gráfico

Alberto Cavalcanti
Capa
Juliana Cavalcanti
Raphael Botelho
Revisão e Preparação dos Originais

Felinto Pessôa de Faria Neto

C530 Chevitarese, André L; Cavalcanti, Juliana B.; Dusilek,


Sérgio; de Maria, Tayná Louise
Fundamentalismo Religioso Cristão. Olhares
transdisciplinares/ André L. Chevitarese, Juliana Cavalcanti,
Sérgio Dusilek, Tayná Louise de Maria (organizadores). – 1.
Ed. – Rio de Janeiro: Klíne, 2021.
249 p., 16x23cm
1. Fundamentalismo Religioso; 2. Transdisciplinariedade;
3. Cristianismo
CDU
29.22
CDD
230.220
SUMÁRIO
Prefácio

Introdução

I. Fundamentalismo Religioso Cristão : em Busca de um Conceito

II. Iluminismo: Luzes e Sombras de uma Ideia.

III. A Astronomia Moderna e as Interpretações da Bíblia: novas teorias da origem e do fim do mundo
para novas teorias para o mundo

IV. Arqueologia Bíblica: a cultura material como discurso fundamentalista religioso cristão

V. A Bíblia como Literatura e suas Implicações para a Reflexão Teológica

VI. O Nascimento do Fundamentalismo Cristão nos Estaddos Unidos: das origens ao Caso Scopes

VII. A Resistência

VIII. Identidades e expansão do fundamentalismo de matrizes protestantes (décadas de 1930, 1940 e


1950)

IX. Evangelicalismo na Segunda Metade do Século XX: O “Esquecimento“ das Ideias


Fundamentalistas e a Cristalização do Evangelicalismo

X. “Palavras de Morte e Não de Vida“: O Estudo dos Fundamentalismos e seu Acesso ao Primeiro
Testamento

XI. Fundamentalismo Cristão na Perspectiva Protestante

XII. A Intolerância Religiosa e a sua Tipificação - Uma Análise de Casos Concretos

XIII. O Imaginário Radical Diante dos Racismos e Fundamentalismos: Esboço do Cenário Brasileiro
Denominado Evangélico

Biografia dos Autores

Índice Onomástico

Bibliografia
Prefácio

Tempos como esse em que vivemos impõem urgentes e necessárias


reflexões sobre fenômenos históricos de longa duração. Um deles, o
fundamentalismo, que se poderia pensar como algo marginal na história
da cultura ocidental, irrompeu com incomparável força nestas últimas
décadas e na atual conjuntura, lavando-nos à constatação de que era uma
realidade mais central do que imaginávamos. Trata-se de uma
construção histórica e social que não se esgota numa definição ou num
conceito, na medida em que só se pode captá-lo na sua historicidade, nas
formas como se reinventou nas distintas temporalidades.
Daí a pluralidade de olhares que a presente obra traz ao ajudar na
compreensão de um termo que se tornou popularizado e utilizado até
para estigmatizar alguém caracterizado como intolerante, radical,
negacionista, anti ciência, moralista, inflexível nas opiniões e inclinado a
algum tipo de violência, seja física, seja simbólica. O fato é que, assim
como o termo fascismo, o seu uso se faz necessário e inevitavelmente se
refere ao aspecto negativo de uma dada mentalidade política e religiosa,
mas deve sempre ser compreendido nos seus limites históricos e sociais.
O fundamentalismo não se constituiu como um fenômeno atemporal,
antes se reinventou a partir de sujeitos, instituições, grupos sociais e
condições favoráveis à sua plausibilidade e funcionalidade, no devir das
mudanças e das transformações sociais.
Nascido no contexto religioso e teológico estadunidense, extensão das
heranças europeias da modernidade e do Iluminismo, o fundamentalismo
seria a negação e, paradoxalmente, o subproduto desse complexo
processo cultural. O acirrado embate entre as verdades da crença
religiosa e os estatutos postos pelo racionalismo científico, gerou, no
âmbito das ideias e das ações, comportamentos enrijecidos, por um lado,
e tentativas de diálogo, por outro. O que estava e ainda está em causa ou
em pauta seria o estatuto do que seja a verdade nas distintas esferas da fé
e da razão, do conhecimento e da experiência, entre a observação e o
senso comum, entre a análise e a mera opinião. Ser fundamentalista
representa uma dada atitude de defesa, de trincheira, de apologética, de
conservação e de reação ante a uma ameaça, ora real, ora imaginária, de
perigos tidos como devastadores da ordem, do dogma, da base de
autoridade para a verdade. Não é sem razão que sua estruturação
teológica se deu no período coincidente à primeira grande guerra, uma
guerra de trincheiras.
Contudo, o fundamentalismo estadunidense mobilizou-se para
adquirir argumentos e força intelectual para superar vexames públicos
sofridos, a exemplo do julgamento de Scopes em 1925. Apropriou-se de
bases científicas a fim de comprovar suas verdades, sobretudo as
afirmadas pelas escrituras, objeto de uma leitura literalista dos seus
eventos desde uma hermenêutica que tratou o livro como autoridade
sagrada e não como literatura, sujeita a mudanças culturais e a processos
civilizatórios. Paradoxalmente, o pensamento fundamentalista valeu-se
do seu outro ameaçador, a ciência, a fim de legitimar-se como verdade.
Em outras palavras, a ciência serviu aos interesses desse discurso como
base de autoridade comprovadora de seus pressupostos, a exemplo das
descobertas arqueológicas. O texto escrito resultado da revelação
adquire e incorpora a ciência como referente material de sua autoridade,
a fim de manter-se como atemporal, a-histórico.
É possível, entretanto, pensar em experiências próximas ao que se
denomina fundamentalismo, antes dessa configuração histórica
específica, embora central na história do ocidente, e também no modo
como ele se desprendeu e se deslocou para outras esferas, regiões,
crenças e experiências que não estavam demarcadas como cristãs
protestantes ou evangélicas. Antigas matrizes religiosas históricas
monoteístas ou não apresentaram formas semelhantes de exclusivismo,
de dogmatismo e de intolerância, na tentativa de fixação de suas
ortodoxias. Por sua vez, sobretudo após a segunda grande guerra, os
conflitos civilizacionais, a descolonização, as independências africanas e
na Ásia, a mundialização do capital, as revoluções culturais e o conflito
da guerra fria, criaram as condições para uma universalização dessa
atitude reapresentada em culturas e políticas de outros povos, ganhando
espaço na mídia internacional que as denominou de fundamentalistas,
principalmente categorizando assim os grupos radicais islâmicos.
Ao considerar ainda o contexto estadunidense é preciso identificar
também as resistências a esse fenômeno ideologicamente ligado a
grupos financeiros financiadores de suas empreitadas. Vozes internas e
externas denunciaram seus reducionismos e estreitamentos em relação
aos pressupostos da fé, das confissões, da figura de Jesus Cristo e das
escrituras sagradas. Ao mesmo tempo, os desdobramentos de uma
cultura religiosa oriunda do etos da religião civil norte-americana,
geraram formas outras como o chamado que ora procura se distanciar,
ora se refugia no fundamentalismo. Foi essa configuração religiosa e
cultural vinculada ao processo de mundialização do capital que, por
meio de agentes e instituições, aportaram no Brasil e na América Latina,
trazendo seus valores, atores, literaturas, discursos, igrejas e dólares,
junto com o germe de uma politização reacionária como resultado da
teologia.
O atual cenário coloca a urgente tarefa de se repensar a condição
humana em suas conquistas, avanços e retrocessos civilizacionais, diante
das atitudes de intolerâncias e de violências de várias formas, desde os
feminicidios, os racismos e as agressões a cultos afro-brasileiros, tendo
como matriz uma dada postura e mentalidade religiosas. Em tempos de
necropolítica e de necrocalvinismos, a presente coletânea reúne textos de
especialistas que contribuem para o debate, a decifração e a
compreensão do que estamos passando como sociedade, ainda mais
agravado em tempos de pandemia. Espero que a sua leitura inspire aos
leitores e às leitoras para o enfrentamento corajoso, democrático e
dialogal de tudo daquilo que nos desumaniza, porquanto gerado pela
barbárie do capital.
Lyndon de Araújo Santos.
Rio de Janeiro, 27 de Agosto de 2020.
Introdução

Este livro traz dois objetivos desafiadores, comumente não


enfrentados em obras publicadas sobre esta temática: tomou-se a
experiência fundamentalista a partir de uma perspectiva histórica; e
optou-se por construí-lo em bases transdisciplinares, de modo que o
leitor pudesse entrar em contato com diferentes intelectuais oriundos das
áreas de História, Teologia e do Direito.
Desde o seu início, os organizadores entendiam este livro como sendo
urgente e necessário.
Ele se faz urgente pelo avanço nefasto do movimento fundamentalista
cristão em diferentes partes do globo, no geral, e no Brasil, no particular.
Enfatizasse aqui o seu elemento nefasto, na medida em que o
combustível que o faz mover é composto pela aversão à democracia e
pelo ódio ao diferente. Convém chamar atenção aqui: não há limites para
aqueles que desprezam à democracia e vivem de semear o ódio
religioso, pois se já não bastassem ser intolerantes, eles ainda ensinam o
outro a ser e a praticar a intolerância; e se já fosse bastante suas ações,
elas ainda descambam para a prática de várias modalidades de crimes,
como homicídio, lesão corporal, crime à liberdade individual e contra à
honra.
Este livro se torna necessário, especialmente por produzir debates, ao
mesmo tempo em que também se insere naqueles que estão em curso, a
fim de construir melhores definições sobre: fundamentalismo; grupos
fundamentalistas; e as “origens” de tal movimento. Por este motivo,
continua na ordem do dia promover análises e discussões sobre este
movimento religioso, cuja capilaridade pode ser sentida nos mais
diferentes espectros de nossa sociedade.
Torna-se imperativo lançar luzes sobre o fundamentalismo religioso
cristão, por causa de três fatores: (i) o fator político. Percebe-se uma
fortíssima inserção de discursos religiosos nas Casas Legislativas
brasileiras, desde o início do século XX até os dias atuais; (ii) o fator
social. Há uma estreita relação entre falas de destacadas lideranças
religiosas brasileiras e ações reais, pautadas em discursos e/ou atitudes
de ódio; e (iii) o fator científico. Os grupos fundamentalistas cristãos
manifestam-se quase sempre contrários às ideias científicas negam ou
colocam em dúvida suas certezas bíblicas.
O livro Fundamentalismo Religioso Cristão conta com a participação
de quinze intelectuais brasileiros, os quais produziram treze capítulos
inéditos.
André Leonardo Chevitarese e Tayná Louise de Maria (capítulo I)
apresentam conceitualmente o que vem a ser fundamentalismo religioso.
Eles pensam o conceito na História, logo, suas discussões ganham uma
dimensão que, apesar de envolve, acaba também por transcender a
própria a experiência religiosa cristã. Chevitarese e de Maria
fundamentam suas discussões em duas forças temporais (sincronia e
diacronia) que não apenas atuam initerruptamente, como também gestam
o movimento fundamentalista. Uma vez que analisam o processo em sua
longa duração, a começar pelo século XVI – onde definem o conceito de
“ocidente” –, passando pela importância do Iluminismo e da laicização
dos saberes – embasados agora na teoria do conhecimento –, até se
debruçarem na curta duração, onde analisam eventos pontuais –
especificamente situados nas últimas décadas do século XIX e primeiras
décadas do século XX.
Este capítulo torna-se um bom ponto de partida para se iniciar a
leitura do livro, pois ele dá elementos chaves para se compreender que o
movimento fundamentalista é formado por uma ideologia pautada não só
na reação, mas que contém em si um elemento camaleônico, fazendo-o
sempre oscilar entre a estabilidade e a mudança, a fim de defender
fortemente seus princípios religiosos.
Lair Amaro (capítulo II) apresenta os séculos XVII e XVIII como
pontos de mudança paradigmática na História, quando as bases
religiosas judaico-cristãs, constitutivas daquilo que se convenciona
chamar de “Ocidente, são fortemente contrapostas diante da ciência e de
seu pressuposto ancorado na teoria do conhecimento. Utilizando-se das
análises de Pinker e de Todorov, Lair Amaro analisa como o Iluminismo
instaurou novas finalidades ao agir humano.
Carlos Ziller Camenietzki (capítulo III) parte de um interessante
estudo de caso, a vida do presbiteriano William Whiston, situado no
final do século XVII, matemático e professor de Filosofia Natural da
Universidade de Cambridge. Ziller explicita como homens de saber
conviviam com a dualidade entre Ciência e Bíblia e se sentiam
pressionados em buscar soluções que mediassem estes dois universos
distintos.
O autor traz uma interessante ideia de que o professor Whiston precisa
ser estudado em seu período histórico, pois naquele momento a Bíblia
ainda era a principal fonte de inspiração, até mesmo para cientistas. Ele
diz que este estudo de caso não pode ser visto como algo retrógado, pois
era muito comum pessoas eruditas reunirem dois conhecimentos que
hoje podem ser considerados como díspares.
Juliana Cavalcanti (capítulo IV) analisa como os cristãos se
comportaram após a teoria do conhecimento questionar, e até mesmo
ambicionar o lugar do argumento divino. Neste capítulo, o leitor
perceberá como os religiosos, pressionados em defender suas crenças,
criam a chamada “Arqueologia Bíblica”, no século XIX. Desde o seu
início, este tipo de arqueologia tinha (e continua ainda hoje tendo) por
objetivo fortalecer o argumento religioso, fincado em bases
fundamentalistas, na defesa da verdade bíblica.
Marcio Simão de Vasconcellos (capítulo V), situando também as suas
discussões no século XIX, coloca em evidência a Escola Teológica
Alemã e o impacto por ela trazido ao dizer que a Bíblia, livro sagrado
para muitos, era uma forma de literatura.
Rodrigo Farias de Souza (capítulo VI) concentra a sua discussão nas
primeiras décadas do século XX. A sua análise aborda a primeira fase do
movimento fundamentalista religioso cristão nos Estados Unidos. Ele
explica o porquê de a Teoria das Espécies ter se tornado o principal
“inimigo” dos cristãos, bem como contempla uma interessante discussão
sobre como muitas das principais lideranças evangélicas organizaram e
sistematizaram o fundamentalismo, o qual, inclusive, acabou por
produzir o célebre julgamento do professor John T. Scopes, conhecido
como The Monkey Trial, em 1925.
Élcio Sant’Anna (capítulo VII) traz uma discussão sobre o que ele
chamou de “fundamentalismos” e suas relações com o Antigo
Testamento. O seu ponto de partida é o estudo de um caso brasileiro – o
Batalhão de Operações Especiais da PMERJ –, muito embora o leitor
também encontrará uma discussão sobre as religiões da Era Axial.
Jefferson Ramalho (capítulo VIII) estuda o fundamentalismo religioso
protestante desde as suas origens clássicas até o recorte de tempo de
1930 até 1950. Ele analisa o contexto em que seu deu a expansão da
ideologia após o The Monkey Trial, quando a teologia liberal ganhou
mais força. Mas os fundamentalistas, apesar de terem sofrido pesadas
críticas durante este período “cada vez mais se uniam para propagar suas
mensagens de conversão religiosa aos seus valores, ou seja, aos
fundamentos da fé cristã segundo as suas percepções”. Ramalho fala não
apenas de um “novo” movimento fundamentalista, onde o discurso está
mais relacionado aos valores morais do cristão, como também analisa
como se manifestou/manifesta a ideologia fundamentalista no Brasil.
Ivan Dias (capítulo IX) traz a origem o Evangelicalismo, tomado
“como uma alternativa ao aparentemente moribundo fundamentalismo
do início daquele século [XX]”. Após o “isolamento produtivo”, que
aconteceu durante as décadas de 1920 a 1940, Dias, de forma bem clara
e detalhada, usa a historiografia para ler eventos e notas que ajudaram a
formação do Evangelicalismo.
Sérgio Ricardo Dusilek (capítulo X) joga uma interessante luz nas
tensões internas do cristianismo do século XX, demonstrando que o
movimento fundamentalista cristão não foi unanime entre os cristãos.
Dusilek traz argumentos que foram usados para resistir a ideologia
fundamentalista, em particular os de Harry Emerson Fosdick. Este
teólogo norte-americano foi, se dúvida, um dos maiores opositores ao
fundamentalismo religioso cristão.
Elizete da Silva (capítulo XI) apresenta uma belíssima análise acerca
das origens do fundamentalismo no protestantismo brasileiro. Ela
destacou momentos no século XX que impactaram a política,
especialmente nas últimas décadas do século XX. A sua ênfase recaiu
nas análises de documentos ligados às igrejas Presbiteriana e Batista.
Carlos Gustavo Direito (capítulo XII), de forma muito original,
analisou processos em que a intolerância religiosa foi vista como um
“não-dito” nas classificações criminais. Ele explica que atitudes ilegais
de fundamentalistas religiosos não se limitam apenas à intolerância
religiosa, mas a outras modalidades de crimes, como homicídio, lesão
corporal, crime à liberdade individual e contra à honra.
Alexandre de Carvalho Castro e Élcio Sant’Anna (capítulo XIII)
enfocaram a relação entre fundamentalismo e racismo. Eles partiram do
conceito de “imaginário radical” de Castoriadis para analisar o cenário
brasileiro.
Desde o início, os organizadores tinham em mente que o objetivo
maior do livro era o seu leitor. De fato, a nossa esperança está
depositada no ganho do leitor na descoberta e no conhecimento de um
movimento religioso que não para de crescer em nosso país. Que ele
possa, ao término de cada capítulo, parar e pensar acerca do nosso tempo
presente. Na verdade, a nossa esperança é a de que o leitor, ao terminar o
livro, tenha uma visão crítica dos riscos reais por que passa a nossa
democracia, sob ataque diário dos fundamentalistas religiosos cristãos.
Que este leitor possa ser mais uma voz crítica a dizer sobre a
importância do respeito ao diferente, seja este diferente no âmbito da
religião, da diversidade de gênero e da diversidade cultural.
Rio de Janeiro, Setembro de 2020
Os Organizadores
I. Fundamentalismo Religioso Cristão :
em Busca de um Conceito

Tayná Louise de Maria


André Leonardo Chevitarese1
I.
Este conceito deve ser construído e compreendido na História, jamais
fora dela. É no seu âmbito que o pesquisador pode observar duas forças
temporais interagindo e gestando o fundamentalismo religioso cristão:
elas até podem ser lidas isoladamente, mas a definição plena do conceito
que aqui se quer propor só se estabelece quando tomadas na sua
inteireza.
As duas forças temporais que atuam na elaboração deste conceito são
a diacronia e a sincronia. A primeira delas age na longa duração
histórica, especialmente a partir do século XVI, ao fazer o cristianismo
se confundir com os pilares do que se convenciona chamar de
“Ocidente”. A segunda força temporal opera na curtíssima duração,
particularmente entre as décadas de sessenta do século XIX e a de vinte
do século XX, quando alguns importantes acontecimentos2 históricos
foram capazes de sistematizar ideias, as quais deram liga e serviram
como uma espécie de bússola a indicar a direção correta a ser seguida
por alguns grupos cristãos. Estes acontecimentos podem ser
sistematizados em quatro encíclicas papais de 1864, 1891, 1893 e 1907;
nas conferências bíblicas de Niágara; na Assembleia Geral Presbiteriana
de 1910; na publicação de uma série de livros, produzidos
originariamente entre 1910 e 1915, em doze volumes, conhecidos como
Os Fundamentos (The Fundamentals); e no Movimento Pentecostal.
Portanto, é na diacronia e na sincronia históricas que os princípios
constitutivos do fundamentalismo religioso cristão se revelam mais
claramente.
Estes quatro acontecimentos históricos não devem ser lidos como
exclusivamente religiosos, como se fossem isentos de uma dimensão
política. Historicamente falando, ao menos na percepção dos autores
deste capítulo, nenhuma experiência religiosa foi (é e será) capaz de se
organizar sem externar a sua visão sobre a vida que a cerca, de como o
mundo é gerido, de como as relações entre os indivíduos são
construídas. A política não deve ser aqui pensada como a responsável
por macular uma experiência religiosa em particular, como se tal
experiência pudesse surgir imaculada, sem contato com o mundo.
Quando se pensa na constituição dos princípios que orientaram (e ainda
orientam) o fundamentalismo religioso cristão, as ideias que o
embasaram foram propostas por lideranças religiosas, algumas delas
com fortes conexões na política nacional3. Tais ideias constitutivas do
referido movimento, eivadas de valores éticos e de princípios morais,
instauraram críticas às experiências políticas geridas por outros grupos
políticos, com estes últimos sendo lidos não apenas como “inimigos do
Deus cristão”. Foram estes “fundamentos da verdadeira fé cristã” que
determinaram (como ainda determinam) a forma de se ler a Bíblia, a fim
de respaldar as suas ações práticas e de dar sustentação e “alimento
espiritual” aos seus apoiadores.
Por fim, mas não menos importante, não deve ser perdido de vista,
que o longo processo de tecedura diacrônica envolvendo a
(autoproclamada) ortodoxia cristã e “Ocidente” foi de tal ordem bem
costurado que ainda hoje se torna praticamente impossível dissociá-los.
O processo de amalgamação os tornou uma só substância. Esta tecedura
constitui-se no chão histórico onde a sincrônica atua no processo de
sistematização de princípios caros ao movimento fundamentalista
religioso cristão.
Mas, há um detalhe aqui que convém ser destacado: o conceito
“fundamentalismo religioso cristão” está sempre em movimento,
alterando-se ininterruptamente, a fim de continuar sendo o que ele
sempre foi. Ele pode e deve mesmo ser assumido como detentor de
características camaleônicas, por trazer em si elementos maleáveis e
flexíveis, como forma de facilitar seu processo de adaptação à cada
conjuntura histórica.
II. Como observado, a diacronia é uma das forças temporais que
atuam na construção do conceito “fundamentalismo religioso cristão”.
Toma-se aqui “Ocidente” não como um dado natural, mas como um
constructo, um conceito assim constituído: (a) por princípios estéticos,
filosóficos e políticos advindos de uma cultura mediterrânica fortemente
helenizada; (b) por princípios éticos e morais cristãos consolidados em
duas corpora literárias: a revelatória, conhecida como Bíblia judaica e
cristã; e a patrística; e (c) por um longo processo, cujo início se deu com
as descobertas marítimas de novos continentes a partir do século XV até
a sua sistematização no Iluminismo do século XVIII. Vê-se aí ser
instaurado um novo paradigma, capaz de produzir rupturas e, por
conseguinte, tensões entre o antigo e o novo, na medida em que
promove a ideia de um mundo em movimento. Referimo-nos aqui às
ideias preconizadas pela Revolução Francesa4, tais como liberdade;
secularização; construção do sujeito, senhor de si e dos seus atos; e
teoria do conhecimento.
Ao tomar por base este novo paradigma, que explicita a violenta
tensão entre História e letargia teológica, é possível sistematizar, a partir
de Scott (2004: 73), a querela5 entre criacionistas e evolucionistas (ver
Quadro I):
Quadro I. Dois Diferentes Modelos Explicativos.
Criacionistas Evolucionistas
A natureza permanece largamente estática O universo como possuidor de uma história: o atual cosmo, o planeta Terra e os seres
depois dos eventos da criação de Deus vivos que nele habitam seriam diferentes do cosmo, da Terra e da vida passados

Observa-se, assim, que o conceito de Ocidente6 traz em si uma


interessante tensão, norteada por elementos contraditórios, que se
expressam em três grandes frentes:
1ª. As descobertas de novas terras – América e Oceania – provocaram
rupturas nas narrativas criacionistas de Gn 1-2. Em outras palavras,
colocaram em xeque o modelo teológico explicativo de criação do ser
humano7, de animais, de plantas e do mundo8. Agrega-se a isso as
descobertas de fósseis animais no continente europeu9 e da
estratigrafia10. Estas duas evidências implicaram uma reavaliação da
datação religiosa para a criação do mundo, ainda baseada no calendário
judaico, que em pleno século XVII datava-o em cinco mil e quatrocentos
anos. Os novos dados, daquele século, empurravam a datação da
formação da vida e do próprio planeta para milhões de anos atrás11;

2ª. A teoria do conhecimento se tornava o fio condutor da pesquisa,


onde tudo passava a ser regido pelo critério da verificação. Já não havia
mais espaço para uma discussão entre a experiência religiosa e as novas
informações científicas. Interessante observar que no bojo destas novas
exigências do que seria lido e encarado como conhecimento científico,
vê-se surgir na Alemanha o hipercriticismo bíblico, pautado pelo
contínuo peso racional junto ao pensamento teológico. Esta
característica se fez notar a partir da segunda metade do século XVIII,
perpassando todo o XIX, impactando as pesquisas de inúmeros
pensadores: referimo-nos aqui, por exemplo, a Hermann Samuel
Reimarus (1694-1768), Friedrich Schleiermacher (1768-1834) e David
Friedrich Strauss (1808-1874). Enquanto Reimarus tornou-se pioneiro
nos estudos sobre o Jesus Histórico, coube a Strauss produzir neste
campo de pesquisa os maiores incômodos junto ao público cristão não
necessariamente acadêmico de língua alemã e inglesa12. Quanto a
Schleiermacher, como bem destacaram Dreher (2002: 65-67) e Sheehan
(2005: 223-240), a sua percepção acerca do pensamento religioso, em
geral, e da fé cristã, no particular, foram tão radicais e impactantes, que
até mesmo os seus críticos se viram obrigados a falar dele. A teologia de
Schleiermacher, na sua forma mais simples, era como Karl Barth
escreveu bem mais tarde: uma “teologia do sentimento, da consciência”,
aquela que considerava a intuição de Deus como sendo sua mais alta
aspiração. Neste ponto, em particular, pode-se citar, pela sua relevância,
a distinção feita por Schleiermacher (Op. Cit. em Sheehan, 2005: 205)
entre religião e Escrituras, aliás uma distinção que jamais alguém tinha
ousado fazer:
Você é capaz de desprezar os imitadores insignificantes
que derivam sua religião totalmente de outra pessoa, ou se
apega a um documento morto pelo qual juram e do qual
tiram provas. Toda escrita sagrada é apenas um mausoléu
da religião, um monumento que existia um grande espírito
que não existe mais... não é a pessoa que acredita em uma
escrita sagrada que tem religião, mas apenas aquela que
não precisa de nada e provavelmente poderia fazer uma
para si mesma.
Se inicialmente tais ideias estavam restritas ao próprio ambiente
teológico alemão, rapidamente elas foram traduzidas por eruditos e
estudantes universitários ingleses e de lá chegaram nos Estados Unidos13
(Beale, 1986: 78-80; Lienesch, 2007: 18). Em linhas gerais, este
hipercriticismo alemão preconizava que narrativas de milagres deveriam
ser expurgadas da Bíblia, assim como a Teologia não deveria ser tomada
como um conjunto de proposições teológicas derivadas da Escritura ou
da autoridade da Igreja;
3ª. Os princípios teológicos, até então balizadores da sociedade
europeia, estão sob forte ataque, especialmente no decorrer do século
XIX, seja pelo avanço do liberalismo – através das faces da laicização,
da crescente industrialização, da urbanização, do forte apelo ao consumo
de bens e mercadorias –, e do surgimento de novas ideologias, tais como
o socialismo e o anarquismo. Agrega-se aí a enorme acolhida dada pela
ciência às teses darwinistas, empurrando ainda mais para o limbo a
percepção teológica cristã (por exemplo: criacionista e milenarista) do
mundo.
Os enormes avanços científicos fizeram a Europa se destacar no
cenário mundial no século XIX, tornando-a vanguarda em todas as áreas
do conhecimento. Pode-se dizer que do ponto de vista da ordem
mundial, houve mesmo um grande desequilíbrio na composição das
forças. As nações europeias, especialmente, mas não exclusivamente,
Inglaterra e França, destacaram-se de tal forma, que num curto intervalo
de tempo, um fosso intransponível abriu-se entre elas e os demais países
de todos os continentes. Não deve ser perdido aqui de vista o
aprofundamento da revolução industrial na Inglaterra no século XIX,
com a sua ênfase no consumo.
Como que revestindo toda essa noção de bem-estar social e material e
de progresso científico e tecnológico, o conceito de civilização não
apenas reforçava internamente a ideia aos próprios europeus de que o
caminho por eles trilhados era o mais acertado, como também lhes
instaurava uma noção de alteridade extremada, pautada em pares
binários: europeus/não-europeus; brancos/não-brancos; verdade/mito;
religião cristã/magia; cristãos/ateus; progresso/atraso; cultura/incultura;
ciência/fé; ordem/barbárie; ideias liberais/ideias milenaristas.
Muito embora as críticas feitas pela Modernidade à Teologia tenham
sido duríssimas, elas não questionaram o fato de a religião cristã
pertencer a Europa, de o cristianismo se confundir com esse continente,
de ele ter sido protagonista de importantes conquistas europeias. Mas, ao
mesmo tempo, esta mesma Modernidade respaldou experiências avessas
aos ideais cristãos mediados por uma concepção europeia, tais como o
comunismo, o anarquismo e o consumismo preconizado como uma das
facetas do liberalismo do século XIX.
Bem entendido, as críticas científicas constitutivas da Modernidade
estavam prioritariamente circunscritas (i) aos círculos teológicos
cristãos; (ii) a uma ciência ditada pela Teologia; e (iii) às leis e à
sociedade serem norteados por valores éticos e morais teológicos.
O conceito de civilização trazia no seu cerne cinco pressupostos
básicos:
1º. A identificação do cristianismo como a única e verdadeira religião,
em oposição a todas as demais, lidas como falsas e/ou simples
expressões do primitivo pensamento mágico;
2º. Concomitantemente, o processo de laicização da esfera pública,
com seu forte apelo à ciência, encontrava terreno fértil. Vê-se aí, não só
pelo seu modelo de explicação e análise, as teses darwinistas, que se
colocavam fortemente em oposição ao criacionismo bíblico (Scott, 2004:
74,81-82 – ver Quadro II), ganharem enorme aderência nos ambientes
intelectuais e acadêmicos (Scott, 2004: 91);
Quadro II. Duas Diferentes Percepções sobre a Formação do Universo.
Criacionistas Evolucionistas
Ele se formou repentinamenteEle seria o resultado de um longo processo
Sua origem é recente Sua origem é muito antiga
Ele é imutável Ele é mutável
3º. A superioridade do europeu em face aos demais grupos humanos.
No bojo dessa percepção racista, valores eugênicos eram reforçados, a
fim de se manter a pureza racial europeia. Neste ponto, em particular,
Scott (2004: 93) chama atenção para o fato de o militarismo alemão e
teorias de superioridade racial e eugênica terem sido lidas pelos cristãos
americanos conservadores como estando diretamente relacionados à
aceitação da evolução pelos alemães no final do século XIX. Na
realidade, porém, as visões alemãs de evolução14 eram muito diferentes
daquelas de Darwin (ver Quadro III):
Quadro III. Evolução na Visão de Alemães e de Darwin.
Alemães Darwin
Rejeitavam a seleção natural como um mecanismo de A seleção natural como um mecanismo
mudança biológica e social de mudança biológica e social
Opunham-se à evolução, por meio da seleção natural, pois ela Evolução pela seleção natural implode
rompia com a inevitabilidade do triunfo teutônico qualquer ideia de triunfo racial
Criticavam a seleção natural por romper com o pressuposto de A seleção natural lida com a seleção dos
que qualquer povo venha a ser inevitavelmente superior a mais aptos em termos de um ambiente
todos os outros particular.
4º. A ideia de nação como base para a construção da identidade
nacional, incluindo aí mito de fundação; um povo, uma só cultura; uma
raça, um só sangue; e
5º. A necessidade de se levar para todos os continentes a noção de
progresso, bem-estar e valores europeus, incluindo, com isso, a
obtenção, por meio de conquista militar, de novos mercados.
Este processo de expansão territorial, mais conhecido como
imperialismo europeu, mostra o seu esgotamento, em oposição às
necessidades cada vez maiores de mercados consumidores, no início do
século XX, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Este fato
representou um forte impacto social: taxas de mortalidade15, assim como
o número de feridos e mutilados alcançavam cifras jamais vistas na
História. Muitos cristãos norte-americanos, nas suas mais diferentes
confissões, interpretaram esse quadro de terror como o mundo sendo
posto de ponta à cabeça, pois não tinha ordem, nem Deus (Scott, 2004:
92).
Não deixa de ser interessante notar que o darwinismo, e não à ideia de
civilização, foi lido como o grande vilão, o responsável por todos esses
males. Em uma sociedade que caminhava a passos largos para o
secularismo, falar dele era mais convincente para a maioria das pessoas
(Lienesch, 2007: 70). Além do mais, por se tratar de uma teoria
expansiva, todos os males cabiam no seu interior: das heresias
contemporâneas à imoralidade da I Guerra Mundial (Lienesch, 2007:
70). O darwinismo era descrito pelos fundamentalistas como (a) aquele
que nega a existência de um Deus pessoal e revelador; (b) destruidor da
moralidade humana; (c) criador da guerra de todos contra todos16; (d)
avesso à democracia (Lienesch, 2007: 71,84).
Em suma, na década de 20 do século XX, o significado do termo
evolução estava a milhas e milhas distantes das teorias desenvolvidas
por Darwin ou Spencer. A palavra havia se tornado um símbolo de tudo
o que estava errado com a nação americana naquela década (Lienesch,
2007: 85). Os antievolucionistas arguiam que a narrativa bíblica da
história da criação era base de toda a crença cristã (Lienesch, 2007: 86).
A arguição poderia ser demonstrada pela seguinte equação: sem Adão
→ não haveria a queda do homem → sem a queda do homem → não
haveria expiação → sem a expiação → não haveria salvação.
III.
A sincronia é a outra força temporal que atua na construção do
conceito “fundamentalismo religioso cristão”.
Buscar-se-á aqui apontar alguns momentos históricos decisivos,
devido à sua forte repercussão na elaboração do pensamento
fundamentalista cristão.
Ao longo do século XIX, evangélicos e católicos conservadores
caminharam com alguns obstáculos e, por isso, tornaram-se inquietos
com as tendências liberais em suas igrejas e com a cultura vigente
(Lienesch, 2007: 8). Por muito tempo, esses problemas quase não foram
notados, pois seus protestos tendiam a ser específicos, restritos às suas
próprias igrejas, além de raros.
Este movimento começa a ganhar alguma aderência, à luz de algumas
poucas bandeiras que o aglutinava, durante a segunda metade do século
XIX e as três primeiras décadas do século XX. Podem ser aqui
destacados cinco momentos decisivos.
1º. As Encíclicas Papais.
Pode-se listar ao menos quatro encíclicas que impactaram a formação
do movimento fundamentalista cristão:
(i) “Quanta Cura17”, publicada pelo Papa Pio IX em 8 de dezembro de
1864. A esta encíclica papal, deve ser anexado um segundo documento,
denominado de “Syllabus de Erros”. O que chama atenção nestes dois
textos são os discursos reprovadores em relação às ideias modernas18,
consideradas heréticas, tais como, por exemplo: o comunismo, o
socialismo, o indiferentismo, a separação entre Igreja e Estado e o
liberalismo19.
(ii) “Rerum Novarum20”, publicada pelo Papa Leão XIII em 15 de
maio de 1891. Ela faz a defesa da propriedade privada, além de reforçar
a crítica ao socialismo e ao anarquismo. Ao mesmo tempo, ela converge
com a demanda do movimento operário, fazendo-lhe coro às exigências
dos operários. No entanto, para efeito deste trabalho, um aspecto pouco
enfatizado nas discussões relativas ao fundamentalismo é a crítica papal
ao consumo desenfreado, lido aqui como uma ação desumana do
capitalismo, o que redundou na intensificação da desigualdade social.
Em contraste ao consumo, vê-se o Papa valorizar a caridade e as atitudes
em favor do próximo. É possível ver aqui uma crítica ao próprio
liberalismo, especialmente no que concerne à valorização do
individualismo, com possível ênfase no egoísmo.
(iii) “Providentissimus Deus21”, publicada ainda durante o pontificado
de Leão XIII em 18 de novembro de 1893. Ela chamava atenção da
comunidade católica para o criticismo bíblico. Como resposta, o
pontífice reforçou como “norma suprema” os ensinamentos da igreja
católica, deixando claro que Deus seria o único autor das Escrituras.
Portanto, se Deus, o ser perfeito, foi quem escreveu a Bíblia, como esta
pode possuir erros e contradições? Por isso, é preciso, segundo Leão
XIII, seguir a analogia da fé para que não se tenha uma interpretação
ilegítima do livro sagrado. Esse discurso foi de encontro com os estudos
que investigavam a Bíblia à luz pelo prisma científico (Sheehan, 2005,
especialmente part II, pp. 93-217).
(iv) “Pascendi Dominici Gregis22”, publicada no pontificado de Papa
Pio X em 8 de setembro de 1907. Ela voltava a reprovar o
Modernismo23, entendido aqui, de acordo com Dreher24 (2002: 64),
como “as mais variadas ideias e teorias científicas, como a teoria da
evolução e os avanços nos estudos relativos à Bíblia e apoiados na
crítica textual”. Ao longo do referido documento, lê-se os principais
personagens modernistas que podem “contaminar” a doutrina católica,
como o filósofo, o leigo engajado nas atividades da igreja, o teólogo, o
historiador, o crítico, o apologista e o reformador. O Papa Pio X conclui
que dois sentimentos são a causa do Modernismo: o amor às novidades,
na medida em que o ser humano rompe com tradições e se abre ao que é
novo25; e o orgulho, que pode ser lido como sinônimo de soberba, um
dos sete pecados capitais.
2º. As Conferências Bíblicas de Niágara.
Ainda na segunda metade do século XIX, em 1875, sete homens
criaram um grupo para discutir a Bíblia (Beale, 1986: 23). Desde o
início eles tinham por objetivo debater temas relacionados ao campo
milenarista, entre os quais destacam-se: profecias; o papel do Espírito
Santo na igreja; a segunda vinda de Cristo; e a necessidade de se
conhecer as escrituras. Muito embora se reunissem anualmente, foi em
1878, em Niágara, que este grupo de estudiosos ficou mais conhecido,
pois, naquele ano, eles tiraram um credo (Niagara Creed) composto por
quatorze tópicos (Beale, 1986: 375-379). Para efeito deste capítulo,
quatro tópicos interessam especificamente, pois relacionam as teses
milenaristas a uma percepção de mundo fundamentalista: inerrância
bíblica (tópico I do credo); reafirmação de um Deus trino, como Senhor
do mundo (tópicos II, IV, VI, VII do credo); crítica à materialidade
(tópico XII do credo); e milenarismo com sua dimensão teleológica
(com maior ênfase no XIV tópico do credo).
Alguns autores, como Sandeen (1970), não consideram uma forte
ligação entre as conferências de Niágara e a controvérsia
fundamentalista vivenciada no início do século XX, pois tais
conferências possuíam um caráter eminentemente milenarista.
Contudo, cabe afirmar que as conferências de Niágara se opunham ao
crescimento do Modernismo, bem como a outras ideias modernas que
impactavam a igreja cristã. Em suma, diferentemente do que pensa
Sandeen, esses grupos não estavam isentos dos impactos que a
Modernidade estava trazendo, incluindo aí as ideologias liberal,
comunista e anarquista. Implica dizer, havia a necessidade de discussão
e estratégias de lideranças estratégicas frente a um mundo lido como de
ponta a cabeça. Por isso, pode-se afirmar, mesmo que as lideranças de
Niágara se apresentem, num primeiro momento, como milenaristas, eles
fazem parte de um campo marcadamente fundamentalista., com uma
crítica implícita às ameaças modernas.
3º. A Assembleia Geral Presbiteriana (doravante AGP) em 1910.
Ela ocorreu em maio de 1910 e trazia como marca indelével um tom
de reação (i) à teologia liberal, cujos contornos podem ser delineados
pelo seu caráter de relativização das narrativas bíblicas; e (ii) à violenta
laicização do mundo moderno, com ênfase cada vez maior nos ideais
científicos e liberais. Em suma, ao acreditarem estar vivendo numa era
de dúvidas e incertezas, nota-se claramente um recrudescer no tom de
suas respostas. Reforça-se claramente a crença que a igreja era a única
testemunha verdadeira, que se mantinha de pé, firme, na luta contra os
chamados erros na fé. Na prática, o seu principal objetivo era o de dar
testemunho da verdade revelada por Deus.
Nesta linha, a AGP produziu um credo, em forma de declaração, onde
reafirmava princípios julgados como necessários, indispensáveis e
fundamentais à fé cristã: (i) o Espírito Santo inspirou as Escrituras,
portanto ela é inerrante; (ii) Jesus nasceu de uma virgem, concebido pelo
poder do Espírito Santo, sem pecado; (iii) Jesus se sacrificou para fazer a
justiça divina e para reconciliar o mundo com Deus; (iv) Jesus
ressuscitou, ascendeu aos céus, e está sentado à direita de Deus; e (v)
Jesus retornará. (Lienesch, 2007: 10).
Ainda nesta linha de reafirmação de princípios considerados
fundamentais à vida do crente, aconselhou-se, ao final da AGP, que
todos tivessem cuidado, especialmente os pais e professores, para que
não fossem advertidos pela igreja por expandirem dúvidas e negações da
fé. Ao contrário, esperavam-se deles a preservação e o ensino da palavra
de Deus às crianças. Percebe-se aqui claramente o que estava em jogo
para os participantes da AGP: a luta em preservar algo que estava sendo
ameaçado, isto é, a verdadeira fé cristã.
4º. Os Fundamentos.
A publicação da obra Os Fundamentos entre 1909 e 1915. Tratava-se
de uma série de doze livretos, com noventa artigos, financiada por dois
grandes empresários norte-americanos cristãos conhecidos como Lyman
e Milton Stewart (Lienesch, 2007: 8; para mais detalhes, ver: Sandeen,
1970: 190). O objetivo da obra era evidente: educar os crentes nos
princípios fundantes do cristianismo, como forma de se manterem firmes
diante das ameaças advindas do pensamento liberal e crítico à Bíblia,
especialmente no interior das igrejas cristãs norte-americanas.
Os autores de cada um daqueles noventa artigos eram importantes
pregadores influentes, formados nas fileiras mais conservadoras da
teologia cristã. Os seus objetivos eram o de expandir uma visão geral da
Bíblia, com noções básicas da fé cristã, como, por exemplo: o pecado; o
dispensalismo26; e a graça. Ao analisar os artigos publicados, é possível
encontrar vinte e nove sobre os ensinamentos bíblicos, outros trinta e um
sobre a defesa da doutrina e outro grupo de trinta artigos que tem como
tema os testemunhos pessoais, ataques a outras crenças e discussão
direta entre ciência e religião, sendo esse último tema apenas de quatro
artigos.
De acordo com Sandeen (1970), os Fundamentos serviram para
defender e subsidiar o movimento religioso diante do seu principal
inimigo: a ciência moderna. Ela foi tomada como a origem dos
principais ataques às crenças cristãs. Contudo, Sandeen (1970) acredita
que os Fundamentos não atingiram o objetivo proposto inicialmente: o
de enfrentar a ciência moderna. Aqueles livros, por não lidarem
diretamente com o embate entre ciência e religião, falharam. Daí o autor
(Sandeen, 1970: 206-207) argumentar que “cruzada” dos Fundamentos
só se mostrou evidente em retrospectiva. De fato, o impacto pode ter
sido mínimo. Contudo, é importante ressaltar dois pontos: (i). Embora
tenha somente quatro artigos que enfrente diretamente o embate ciência
e religião, os outros oitenta e seis artigos nascem da vontade de enfrentar
a teoria do conhecimento em desenvolvimento desde o século XVI. Ao
resgatar pontos essenciais bíblicos, enumerar cinco questões
fundamentais da fé como forma de defesa a crença cristã, este grupo se
mostra opositor a algo, e esse algo seria a ciência; (ii). Não diria que Os
Fundamentos falharam, pois é evidente que a série instaura um antes e
um depois, pois:
(i) os livros serviram como uma resposta ao criticismo bíblico
construído ao longo de todo o século XIX, especialmente na Alemanha.
Muito dos argumentos dos autores que criticaram diretamente o
conhecimento científico, o relacionaram à uma “falsa ciência”,
especialmente por ela ainda não ter sido provada; e, como contrapartida,
fizeram uma defesa da Bíblia, ao demonstrarem, à luz dos seus
argumentos, que ela não conteria erros. Para esses autores, a Bíblia seria
a “ciência verdadeira”.

(ii) seu público estava espalhado pelo território americano, divididos


em denominações, fragmentados em congregações, esses cristãos não se
davam conta que compartilhavam ideias semelhantes (Lienesch, 2007:
9). Se viram iguais após partilharem da mesma leitura: um conjunto de
doze livretos. Os Fundamentos não apenas nomearam o movimento
(Lienesch, 2007: 9), mas acabaram definindo uma identidade comum, ao
proclamarem artigos de fé, comunicar um estilo próprio de discurso e
também definir diferenças entre eles e os que não integravam o
movimento, para se diferenciarem dos cristãos liberais (Armstrong,
2001: 202, 203). Contudo, este movimento é marcado por sua ideologia,
mais do que a identidade (Lienesch, 2007: 9).
5º. O Movimento Pentecostal.
Convém destacar que este Movimento não é comumente
considerado27 quando se analisa o pensamento fundamentalista cristão
no século XX.
Enquanto os quatro primeiros momentos destacados foram forjados
em ambientes europeu e norte-americano, cujas elites gestoras eram em
sua quase totalidade formada por pessoas brancas, cuja formação
educacional e científica se assentava em bases racistas, uma parte
considerável do movimento pentecostal foi gestada e formada por negros
norte-americanos, que experimentavam em suas vidas cotidianas toda
sorte de violência imposta pelo racismo institucionalizado a partir de leis
governamentais.
O Pentecostalismo28 também reagiu à Modernidade, muito embora as
suas críticas tenham sido diferentes daquelas oriundas de outras
experiências cristãs mais tradicionais. Ele combateu a racionalidade
trazida pela Modernidade não em bases doutrinais e/ou dogmáticas
(Armstrong, 2001: 209), mas pela ênfase numa antiguíssima experiência
cristã, recordada no livro de Atos dos Apóstolos29. Esta forma de
responder à Modernidade não deixava também de ser uma crítica aberta
às igrejas cristãs tradicionais (católica, protestantes e evangélicas), lidas
e/ou pensadas como que fossilizadas no tempo e espaço, imobilizadas
por seus dogmas e excesso de racionalização teológica.
Coube a Charles Fox Parham30 os créditos pela disseminação do
Pentecostalismo, em especial pelo movimento que ele criou e se tornou
conhecido como Fé Apostólica e suas Missões, constituídas pela adesão
de igrejas independentes. No entanto, não deve ser negligenciada a
importância de um dos seus antigos estudantes31, William Joseph
Seymour, que aliás assistia as aulas sentado numa cadeira no corredor,
do lado de fora da sala. Seymour era filho de ex-escravos, pastor de uma
igreja interracial, apesar da vigência das Jim Crow Laws32. Ele e sua
comunidade foram os responsáveis pela famosa experiência pentecostal
ocorrida na “rua Azusa, 312”, em 1906. Kgatla (2016) também tem
razão ao lhe atribuir a fundação do pentecostalismo moderno33, pois foi
ele, muito mais do que Parham, quem realizou a hibridização daquele
movimento, reunindo em um mesmo espaço brancos e negros, dando
novos contornos à experiência religiosa cristã norte-americana.
Em linhas gerais, o Movimento Pentecostal tinha por objetivo
propagar a salvação pela fé; a santificação do cristão; a cura como parte
da redenção; as previsões pré-milenaristas; e o batismo pelo Espírito
Santo, manifesto através da glossolalia. Suas ações missionárias
ultrapassaram rapidamente as fronteiras dos Estados Unidos, chegando
aqui no Brasil, através da Congregação Cristã, em 1910, e da
Assembleia de Deus, em 1911.
Pode-se perceber, como um balanço preliminar, a partir destes cinco
momentos situados entre o final do século XIX e primeiras décadas do
século XX, as primeiras grandes sistematizações, trazidas pelos mais
diferentes campos confessionais cristãos, não de maneira uniforme, mas
por ações individualizadas, de ideias pautadas na reação à Modernidade,
a um mundo que alicerçava as suas bases na secularização. Instigados
pelas suas lideranças religiosas, muitos cristãos sentiram-se encorajados
a seguir por uma direção que julgavam ser a mais acertada: uma direção
que parecia a princípio ser exclusivamente religiosa, mas que logo
ganhou também contornos políticos, impactando fortemente as relações
sociais, motivando o envolvimento daquelas próprias lideranças
religiosas e/ou de leigos, por elas respaldados, a atuarem abertamente na
política em nível local e/ou nacional.
IV.
Ao longo do século XX, a começar pela primeira década, os autores
que analisaram o fundamentalismo mostraram como esse movimento
religioso reagiu ao que ele entendia ser um mundo perdido, dominado
pela crença na ciência moderna, lida como uma heresia34. Tal grupo
surge entre o final do século XIX e início do século XX, sendo
denominado de literalista, pois toma as narrativas bíblicas no seu sentido
literal ou absoluto (Scott, 2004: 82). O fundamentalismo fez uma
oposição maior à teoria da evolução, gerando forças ao movimento anti-
evolucionismo. (Lienesch, 2007: 69-70).
Como exemplo disso, já nos anos vinte do século XX, o movimento
religioso se adapta e, de acordo com seu contexto, diante de um suposto
inimigo comum a suas crenças. Ao resgatar a Bíblia e a torná-la
inerrante, eles arregimentam forças em todas as regiões dos Estados
Unidos para se colocar contrários às teses evolucionistas. Encontra-se aí
o grande inimigo a ser derrotado pelos religiosos. Toda agitação estava
em torno do perigo que a teoria da evolução representava, especialmente
nas escolas, por se tratar da educação das futuras gerações, pois ela
poderia diminuir e/oumesmo destruir a fé religiosa dos estudantes35
(Lienesch, 2007: 73). Daí a necessidade de a AGP aconselhar
professores e pais a se preocuparem com o ensino de seus filhos e
estudantes, de maneira que os jovens não perdessem a fé. Por isso, os
cristãos, deste movimento, tiveram como alvo a educação escolar, por
acreditarem que os professores seriam mais eficazes na preservação das
ideias cristãs nas vidas dos estudantes, e por reconhecerem que esses
docentes possuíam contato com inúmeros alunos. Ademais, seria nesse
momento, na vida do jovem, que a evolução poderia se tornar algo
errado, para que não fossem contaminados pelas teses evolucionistas
posteriormente, nas universidades36. Inicialmente, a preocupação estava
vinculada ao mundo universitário, os professores eram contratados por
suas produções acadêmicas, mesmo em universidades financiadas pelas
igrejas. Tornou-se um lugar que tinha como objetivo o conhecimento
científico, e por isso, virou sinônimo de Modernismo, ceticismo e
ateísmo (Lienesch, 2007:69). Contudo, por motivos já explicitados,
preferiram centralizar seus esforços na educação básica.
Por parte do movimento, havia preocupação e incredulidade em
relação ao ensino das teses darwinistas nas escolas e universidades, pois
essas teses tornaram-se sinônimo de questões relacionadas ao ateísmo,
agnosticismo e infidelidade. Esta repulsa poderia ser explicada pela
associação feita entre os resultados trazidos pela Primeira Guerra
Mundial e a teoria evolucionista, como também pela percepção que os
esses religiosos tinham de que o darwinismo colocaria em risco o futuro
da humanidade, especialmente no que tange à teoria da seleção natural,
cujo princípio básico consistia na sobrevivência única do mais forte. Não
apenas essa relação, como também a ideia de que a ciência,
desenvolvida naquele período, teria sido responsável por produzir um
enorme número de mortes através da criação de armas e gases tóxicos
(Armstrong, 2001: 203-204) .
O movimento agiu também no campo da política, pressionando
algumas Casas Legislativas dos Estados Unidos, com o intuito de barrar
o que eles entendiam ser ideias agnósticas e ateístas no processo de
aprendizagem escolar37. Talvez o caso mais célebre tenha sido aquele no
Estado do Tennessee, onde foi sancionada a Butler Act em 1925.
Naquele Estado, proibiu-se o ensino de qualquer teoria que negasse o
criacionismo em todas as instituições de ensino. O grupo partiu para o
ataque, buscando o embate entre ciência e religião. Foi justamente aí que
ele ganhou maior visibilidade, se apresentando para muitos cidadãos
norte-americanos, por um lado, e ao mundo, no geral. John T. Scopes,
um professor de escola pública do Estado do Tennessee, foi acusado de
violar aquela lei. O seu julgamento, conhecido como The Monkey Trial,
não se limitou a uma simples acusação do Estado contra um simples
cidadão, mas seus protagonistas e espectadores cristãos foram
envolvidos na crença de que ali naquele tribunal delineava-se uma
batalha espiritual, onde a verdade divina, revelada em Gn 1 e 2, deveria
ser protegida de todas as teorias hereges.
Apesar de ter saído derrotado do Julgamento do Macaco, John T.
Scopes recorreu da decisão à Suprema Corte, onde acabou por ser
absolvido em 1927. Já o Movimento Fundamentalista Cristão sofreu
uma grande derrota, especialmente entre os seus antigos apoiadores
(Armstrong, 20L01: 206): como eles não queriam ser lidos como
conservadores, intolerantes, atrasados e autoritários38, aquele movimento
que se apresentava bastante forte e aguerrido, lentamente foi deixando
de ser destaque, chegando mesmo a quase sumir por completo.
Levou um certo tempo até que ele começasse a sair das sombras,
ressurgindo com algumas características diferentes daquelas do início do
século. Estas diferenças são responsáveis para que nós, os autores deste
capítulo, vejamos o surgimento de um neofundamentalismo39 como uma
segunda onda. Entre as décadas de 1930 a 1960, ele manteve-se distante
da sociedade, inserindo-se na contracultura norte-americana. Neste
período de ressurgimento, os neofundamentalistas criaram escolas
cristãs, seminários e faculdades teológicos e se fizeram presentes em
emissoras de rádio e de televisão (Beale, 1986: 251-260; 261-262; 341-
351; Silva e Barbosa, 2019: 45-46). Não sem sentido, foi exatamente
neste período que os chamados “televangelistas” apareceram com toda a
força40, como por exemplo: Billy Graham, pastor batista que se tornou
mais conhecido devido à organização de uma “cruzada evangelística”
em 1952 que terminou com um culto público nas escadarias do Capitólio
(Dias; Barbosa, 2019: 49); Pat Robertson, pastor pentecostal, advogado
e ex-candidato à presidência dos Estados Unidos. Ele fundou a rede de
televisão TBN e apresentou o programa The 700 Club; Jim Bakker, um
televangelista e empresário, organizou um programa televisivo com sua
esposa Tammy Bakker até 1989 denominado The PTL Club; e Jerry
Falwell, conhecido por ser o principal televangelistas dos EUA. Ele
iniciou seus encontros em uma fábrica abandonada, no Estado da
Virginia, em 1956. Após três anos, sua igreja, a Thomas Road Baptist
Church, contabilizou aproximadamente dezoito mil membros, com
sessenta pastores associados, alcançando milhões de fiéis por meio de
trezentos e noventa e dois canais de televisão e seiscentas emissoras de
rádio. A renda daquele império era de aproximadamente sessenta
milhões de dólares por ano (Armstrong, 2001: 308-309).
Enquanto o movimento fundamentalista estava isolado, o governo
norte-americano, a partir da segunda metade do século XX, se
apresentou como mais forte, interferindo nas legislações estaduais. Por
meio não apenas da Suprema Corte, como demais instituições públicas e
científicas, ele foi capaz de derrubar toda uma legislação considerada
antidemocrática41.
Diante dessas atitudes federais, os cristãos fundamentalistas
acreditaram que a “religião verdadeira” estaria sendo destruída pelo
“humanismo religioso”. Por isso, a partir dos anos trinta, eles criaram
escolas cristãs, bem como Associações de caráter estadual e nacional de
escolas de educação cristãs para defendê-las no plano das esferas
públicas. Acordaram também que seria o momento de romper com o
isolamento social, passando a se inserir na política, como forma de
combater aquele tipo de humanismo em defesa das leis cristãs (Beale,
1986: 343; Armstrong, 2001: 301).
O neofundamentalismo se caracteriza também por um esforço maior
em dialogar com o liberalismo, especialmente na sua vertente
relacionada ao consumo de bens42. Apesar de não articular de maneira
explícita um novo embate com a ciência e o liberalismo, o
neofundamentalismo possui como ameaça outros ideais mais
relacionados com a política, pois reagem contra as “leis humanas” em
oposição às “leis divinas”, como discussão de gênero e sexualidade,
imigração, estado laico, democracia e liberdade religiosa. Este novo
embate ainda possui como base os cinco pontos essenciais do
Movimento Fundamentalista Cristão; ainda estão na luta por educação
religiosa cristã em escolas públicas e ainda são contra ao consumo
exagerado.
A partir disso, é muito comum a presença de neofundamentalistas (tal
como fizeram os fundamentalistas que os precederam) na política. Usam
este meio para defenderem suas ideias religiosas e se protegerem
daquelas consideradas inimigas da Bíblia. Os neofundamentalistas,
apesar de terem nascido e se beneficiarem da democracia, anulam e/ou
negligenciam e/ou ainda ignoram, a partir das suas ações políticas, tudo
aquilo que forem contrários às suas percepções de vida e de mundo. Os
propositores de tais ações, lidos aqui como um pequeno grupo de
indivíduos, provavelmente movidos por princípios pautados na teoria
política das elites43, não reconhecem a democracia liberal, muito menos
aquela pensada em base socialista, pois entendem que o mal da
sociedade está no excesso de participação. Por reconhecerem que a
desigualdade é um fato natural e que a democracia é impossível de ser
alcançada, quando têm a chance, propõem leis excludentes, que a curto
ou médio prazos, fortalecem a intolerância religiosa44, respaldando de
maneira direta e/ou indireta a eliminação de experiências religiosas que
lhe são contrárias, bem como de vidas humanas que pensam o sagrado
de forma diferente.
V.
Não é raro encontrar em trabalhos teológicos interessados no estudo
do fundamentalismo cristão definições conceituais voltadas
exclusivamente ao âmbito religioso. Assim, por exemplo, Beale (1986:
3) diz:
Idealmente, um fundamentalista cristão é aquele que
deseja alcançar pelo amor e compaixão as pessoas, que
acredita e defende toda a Bíblia como a Palavra de Deus
absoluta, inerrante e plena de autoridade, e que permanece
comprometido com a doutrina e a prática da santidade.
[...] Fundamentalismo não é uma filosofia do
cristianismo, nem é essencialmente uma interpretação das
Escrituras. Não é nem uma mera exposição literal da
Bíblia. A essência do Fundamentalismo é muito mais
profunda que isso – é a aceitação e a obediência
incondicional às Escrituras.
Nota-se claramente na passagem citada o quanto Beale trata o
fundamentalismo como um tipo de experiência religiosa sem qualquer
vínculo com a sociedade, como se tal percepção não tivesse suas raízes
no campo da política e/ou das relações sociais. A sua definição parece
pressupor a ideia do fundamentalista como um homo religiosus, que vive
cercado por uma redoma45 sem manter qualquer tipo de vínculo e/ou
relação com o mundo exterior. Para nós, os autores deste capítulo, o
homo religiosus não existe do ponto de vista histórico46, pois não há
ninguém que não esteja inserido no mundo, aliás um mundo que envolve
e reveste tudo e todos, que instaura relações e proporciona meios e
critérios de valores a cada um dos seres humanos, fazendo-os sempre se
posicionar criticamente diante do mundo. Logo, o fundamentalismo
religioso é uma resposta crítica dada por um tipo de cristão, o
fundamentalista, às escolhas feitas pela sociedade, escolhas essas que ele
julga não serem acertadas, condizentes e adequadas às suas crenças e
percepções de mundo.
Assim, como forma de ultrapassar esses limites conceituais estreitos,
produzidos por um tipo de teologia confessional, lança-se mão aqui de
um conceito composto por seis vetores, os quais, quando reunidos,
definem o que aqui está sendo chamado de fundamentalismo religioso
cristão:
(i) Ele se apresenta como um movimento ideológico de matriz
conservadora, quando não reacionária, cujo campo de ação se dá no
interior das igrejas e para além delas, pois o fundamentalismo religioso
cristão atua fortemente na esfera pública (ver item I);
(ii) A sua ideologia está pautada na reação. Implica dizer, ele nunca
será vanguarda. O fundamentalismo religioso cristão reage a um mundo
que, ao se movimentar, provoca fissuras em suas bases teológicas. Tais
rompimentos têm suas origens nas tensões entre o antigo e o novo, uma
vez que este último, ao romper com a dimensão teleológica cristã e seus
contornos milenaristas, traz a noção de progresso e a de um tempo
contínuo e infinito47 (ver item II);
(iii) Ele reúne um enorme espectro de experiências cristãs que reagem
à Modernidade, contudo o fundamentalismo religioso cristão é bastante
heterogêneo, faltando-lhe unidade e identidade teológica (ver item III).
(iv) Ele traz no seu cerne uma aversão à democracia. Por acreditar
estar vivendo em um mundo completamente desorientado, perdido e sem
Deus, o fundamentalismo religioso cristão reage à secularização, a um
mundo regulado pela razão, onde as igrejas perdem cada vez mais
espaço e poder de decisão, sendo forçadas a se submeter às decisões do
poder público, cujo dever é proporcionar a liberdade religiosa e a
separação entre Igreja e Estado (ver itens III e IV).
(v) O fundamentalismo religioso cristão lança mão de meios políticos
para propagar suas ideias, com a clara intenção de impor medidas que
venham proibir, restringir e/ou invisibilizar às demais minorias
religiosas (ver itens III e IV).
(vi) Ele apresenta um caráter camaleônico, pois está em movimento
desde o século XVI, sendo afetado constantemente pelas forças
diacrônica e sincrônica (ver item IV). Apesar de reagir às inúmeras
pautas pontuais ao longo do processo histórico, o fundamentalismo
religioso cristão nunca foi capaz de produzir qualquer vitória duradoura.
1 Gostaríamos de agradecer aos professores Carlos Alberto Ivanir dos Santos, Felinto Pessoa de Faria
Neto, Gabriele Cornelli, Kleber Lucas Costa e Lair Amaro dos Santos Faria que aceitaram ler os
originais deste capítulo. Deixamos claro, porém, que possíveis falhas ou omissões são de nossa inteira
responsabilidade.
2 Tais acontecimentos não devem ser vistos como orquestrados, mas tomados isoladamente por
diferentes confissões cristãs, cada uma delas, a sua maneira, buscando responder a uma mesma
conjuntura histórica que julgavam ser hostil à fé cristã.
3 Por política nacional entende-se a ação, em diferentes instâncias políticas, de lideranças religiosas em
inúmeros países situados no “Ocidente”. Tais ações não necessariamente ocorreram e/ou ocorrem no
mesmo tempo e espaço, mas foram e/ou continuam sendo importantes nichos de atuação para buscar a
transformação da sociedade, de acordo com as suas visões de mundo.
4 Considerar aqui os impactos causados ao catolicismo pelas decisões (i) da Assembleia Nacional
Francesa (1789-1792), (ii) do jacobinismo extremado de Maximilien Robespierre (de 5 de setembro de
1793 a 27 de julho de 1794) e (iii) da prisão em 1809, seguido de um longo exílio, do Papa Pio VII por
Napoleão.
5 Há uma tendência em se pensar a controvérsia criacionismo/evolucionismo como “Deus fez” versus
“processos naturais fizeram”. Conforme Scott (2004: 73) observou, esta é uma falsa dicotomia, já que
para muitas pessoas religiosas cristãs a criação divina seria o resultado de Deus operando por meio do
próprio processo natural. Em outras palavras, uma distinção mais acurada entre criacionismo e
evolucionismo situa-se sobre “o que aconteceu” mais do que “quem fez”.
6 Com seu corolário obviamente definindo o que seria “Oriente”.
7 Convém lembrar aqui de Isaac de La Peyrère (1594/1596-1676) e do seu enorme esforço em tentar
superar a chamada “lacuna criacionista” bíblica. A sua obra Pré-Adamismo (Praeadamitae), publicada
em 1665, fala de duas histórias de criação: a primeira, em Gn 1, falaria dos pré-adamitas (nativos
americanos, polinésios, aborígenes australianos e todos os demais não mencionados na Bíblia); a
segunda história, em Gn 2, diria respeito a criação de Adão e Eva. Como muito observou Scott (2004:
76), essa visão teológica de La Peyrère gerou mais problema do que solução, como, por exemplo: se
esses pré-adamitas estariam ou não isentos do pecado original? Eles estariam inseridos no projeto
salvífico de Deus por meio de Seu filho Jesus?
8 Conforme chama atenção Scott (2004: 75), Europa, África e Ásia eram mencionadas na Bíblia, mas
América e Oceania, tomados aqui como o Novo Mundo, não; dessa forma, a Bíblia não continha todo o
conhecimento de animais (por exemplo: gambás, lhamas) e plantas (por exemplo: tabaco, tomate,
batata e milho). Novas questões foram então colocadas: as espécies recém-descobertas tinham sido
criadas ao mesmo tempo em que aquelas conhecidas? Elas tinham desaparecido em alguns lugares?
9 Ainda de acordo com Scott (2004: 75), no início do século XIX, o anatomista francês, Georges
Cuvier determinou que ossos fósseis encontrados na Europa eram, na verdade, suficientemente
similares às formas vivas para serem classificados como mamíferos ou répteis, apresentando fortes
similaridades com elefantes e outras espécies conhecidas. Contudo, esses mesmos ossos eram
suficientemente diferentes, tornando claro que eles vinham de espécies que não existiam mais. O
desaparecimento dos grandes répteis (dinossauros) e de certos mamíferos, tais como o mamute e os
tigres de dente de sabre, eram inexplicáveis. A noção de alguns “tipos” terem sido extintos era
teologicamente problemática por causa da implicação de que a criação poderia não ter sido tão perfeita.
Ao mesmo tempo, ela gerava problemas para o conceito de pecado original de Adão e Eva.
10 As descobertas de William Smith, que no final do século XVIII recebeu a tarefa de inspecionar o
espaço rural inglês, a fim de prepará-lo para a escavação de um sistema de canais, impactaram
fortemente o conhecimento em três aspectos: (a) diferentes níveis estratigráficos continham diferentes
fósseis. Smith poderia classificar um estrato se ele conhecesse que tipos de fósseis ele continha; (b)
quanto mais profundo fosse um estrato, mais diferente eram os fósseis de plantas e animais. Parecia
lógico que as camadas mais baixas eram mais antigas do que as camadas mais altas. Assim, havia
animais mais velhos que diferiam daqueles mais recentes, e animais extintos que viveram há muitos
anos atrás; e (c) estimativas poderiam ser feitas na quantidade de tempo para um vale erodir ou para
uma cadeia de montanhas se elevar. Em alguns meios começou-se a se admitir que a natureza era
dinâmica na sua essência, ao invés de estática como pressupunha o pensamento criacionista (Scott,
2004: 76-77).
11 Diferentemente dos dados do século XXI que datam os primeiros hominídeos entre 3,9 e 4,2
milhões de anos e o nosso planeta em aproximadamente a 4,5 bilhões de anos.
12 No caso do público cristão de língua francesa, este papel coube a Ernst Renan (1823-1892).
13 A ida de tais obras para os Estados Unidos se deve em grande parte, se não no todo, como forma de
subsidiar outras possibilidades de pensar a experiência cristã, contrapondo-se assim às ideias
fundamentalistas que já se encontravam por lá bastante arraigadas.
14 Bem entendido, críticos à teoria da evolução existem desde o século XIX, porém, como um
movimento, o antievolucionismo só apareceu mais tarde, isto é, na década de 1920 (Lienesch, 2007: 8;
Scott, 2004: 91). Ele deve ser pensado como um produto do protesto religioso (com forte implicação
política) que viria a ser chamado de Fundamentalismo. Convém observar que a cunhagem deste termo
foi feita pelo editor batista Curtis Lee Laws em 1920 (Lienesch, 2007: 34).
15 Pode-se agregar aí também a denominada gripe espanhola, que dizimou milhões de indivíduos nos
anos seguintes à Primeira Guerra Mundial.
16 Tal como foi pensada a Primeira Guerra Mundial.
17 https://w2.vatican.va/content/pius-ix/la/documents/encyclica-quanta-cura-8-decembris-1864.html,
consultado no dia 15 de março de 2020, às 14h48.
18 Pode-se admitir aqui que o desfecho à toda reação católica à agenda modernista, que foi objeto de
violenta crítica na encíclica Quanta Cura e no Syllabus de Erros, se deu no Concílio Vaticano I (1869-
1870), por meio de duas importantes decisões: o episcopado universal do papado e a infalibilidade do
Bispo de Roma.
19 Para as críticas contidas explicitamente ao Liberalismo, ver “Syllabus”, Teses 77-80.
20 http://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-
novarum.html#_ftn16 consultado no dia 18 de março de 2020, às 17h41.
21 http://www.vatican.va/content/leo-xiii/es/encyclicals/documents/hf_l-
xiii_enc_18111893_providentissimus-deus.html Consulta feita no dia 24 de fevereiro de 2020, às 17h.
22 http://www.vatican.va/content/pius-x/pt/encyclicals/documents/hf_p-x_enc_19070908_pascendi-
dominici-gregis.html consultado no dia 03 de março de 2020, as 16h. Esta encíclica, sob muitos
aspectos, reforçava o Decreto “Lamentabili”, do referido pontífice, datado de 3 de julho de 1907, que
versava sobre os erros do “Modernismo”.
23 Sob o papado de Pio X, especialmente a partir de 1 de setembro de 1910, todos os clérigos, pastores,
confessores, pregadores, superiores religiosos e professores em seminários filosóficos-teológicos
católicos tiveram que prestar um juramento antimodernista. Esta obrigação só foi rescendida pelo Papa
Paulo VI em 1967.
24 Dreher (2002: 64), ao definir Modernismo, diz ser ele uma forma romano-católica de
fundamentalismo. Não deixa de ser interessante notar que a reação ao Modernismo não ficou restrita ao
seio catolicismo romano, aliás como o referido autor muito bem salientou em seu livro. Implica dizer, a
sua definição se aplica ipsis litteris a outras confissões cristãs, como as protestantes e as evangélicas.
Sob muitos aspectos, pode-se dizer, que a crítica ao Modernismo é a forma cristã de fundamentalismo e
não apenas a romano-católica.
25 Pode-se entender aqui por “novo” o criticismo que possibilita diferentes leituras bíblicas.
26 Trata-se de uma doutrina teológica cristã baseada em crenças apocalípticas, onde há uma leitura
interpretativa da história que é dividida, segundo a doutrina, em épocas até o reinado definitivo de
Jesus.
27 Pode-se pensar, por um viés conjectural, que o motivo para tal desinteresse esteja no fato de a quase
totalidade dos autores que estudam o Fundamentalismo cristão estar inserido em algum campo
confessional – seja católico e/ou protestante e/ou ainda evangélico. Por esta dimensão religiosa, eles
tenderiam a não reconhecer o pentecostalismo como uma experiência religiosa cristã válida e/ou
merecedora de atenção.
28 A origem moderna desta experiência religiosa é comumente associada a Ch. F. Parham em Topeka,
Kansas, em 1901 e/ou relacionada W. J. Seymour em Los Angeles, California, em 1906. Pode-se
admitir, no entanto, que suas raízes sejam bem mais antigas, possivelmente remontando ao século
XVIII, quando, nos Estados Unidos, um pequeno grupo reagiu às ideias iluministas, voltando-se para
experiências religiosas pautadas no êxtase religioso e na transcendência (Cunha, 2011: 4).
29 O Livro de Atos (2:1-12) fala da descida do Espírito Santo sobre os discípulos e discípulas de Jesus
durante a festa de Pentecostes. Todos, repletos deste Espírito falaram em línguas (glossolalia). Parham
entendia a experiência religiosa de Pentecostes como xenolalia, isto é, falar uma língua conhecida
(Anderson, 2005: 53). Para uma análise envolvendo os problemas relacionados à glossolalia no
material neotestamentário, ver: Chevitarese (2016: 89-98).
30 Este religioso, acusado de ser homossexual, era um fanático racista, adepto das teorias supremacistas
norte-americanas, sendo simpático às causas da Ku Klux Klan. Parham também proclamava a
superioridade espiritual e racial da raça anglo-saxônica branca, a partir de uma identificação do trono
de Davi com a família real britânica, (Anderson, 2005: 52-55; Campos, 2005: 104).
31 As questões raciais estando na base das críticas de Parham a Seymour, ver: Anderson (2005: 53-54).
32 Jim Crow Laws eram leis estaduais que institucionalizaram o racismo nos EUA. Elas vigoraram
entre os anos de 1876 e 1965, impondo a segregação racial em todas as esferas públicas, penalizando e
restringindo os direitos civis de pessoas negras.
33 Sobre este aspecto, convém apontar aqui uma interessante observação de Kgatla (2016): “as
experiências religiosas de Seymour representam uma fusão consistente de componentes africanos e do
novo mundo que persistiram exatamente nas igrejas mais próximas das massas negras”.
34 Especialmente a Teoria das Espécies de Charles Darwin.
35 Na década de 20, do século XX, nos EUA, cerca de quatro milhões de estudantes estavam
matriculados no ensino médio (Lienesch, 2007: 73).
36 Acreditava-se que os professores universitários, influenciados pela política de investimento à
pesquisa, estavam propícios a ensinar as teses de Darwin. (Lienesch, 2007: 74).
37 Segundo Hannon (2010), não se sabe ao certo em quantos Estados a campanha anti-evolução se fez
presente, contudo Nelkin (1982) diz que houve trinta e sete projetos de lei ante evolução pelos estados,
como por exemplo: Arkansas, Missouri, Georgia, Carolina do Sul, Minnesota, New Hampshire, West
Virginia e Kentucky. Destes trinta e sete projetos, entre 1921 a 1929, os anti-evolucionistas obtiveram
vitórias no Tennessee (em 1925), Mississippi (em 1926), Arkansas (em 1928) e Texas (em 1929).
Lienesch (2007) nos diz que durante a década de 20, quarenta e cinco iniciativas anti-evolução foram
propagadas pelo movimento fundamentalista, tendo no Estado do Tennessee, a legislação mais
vigorosa.
38 No Brasil, O Julgamento do Macaco foi visto por uma perspectiva negativa. Para um detalhamento
acerca da recepção deste tema, ver: Maria (2019). Para uma leitura mais ampliada deste processo, ver:
Armstrong (2001).
39 Denominamos de neofundamentalismo o movimento que ressurge como oposição às ideias
Modernistas. Neste livro, alguns autores optaram por utilizar o termo “evangelicalismo” como forma de
diferenciar daquele movimento fundamentalista do final do século XIX e primeiras décadas do século
XX.
40 Naquele momento, os neofundamentalistas se tornaram seguros em suas empreitadas por alguns
motivos, sendo o principal deles o econômico. O sul dos EUA, região conhecida por concentrar o maior
número de conservadores cristãos, recebeu grandes investimentos tecnológicos e industriais, o que
impactou positivamente a vida econômica de milhares de fiéis que ali residiam, resultando, assim, no
crescimento econômico de muitas igrejas evangélicas. Naquele período também algumas lideranças
religiosas se firmavam na mídia. Assim, por exemplo, em 1979, uma pesquisa Gallup mostrou a
existência de aproximadamente 1300 emissoras de rádio e de televisão evangélicas que alcançavam em
média 130 milhões de pessoas, com lucros entre 500 milhões a bilhões de dólares. Para um
aprofundamento Armstrong (2001: 300).
41 inação de cor, religião e sexo, ocasionando futuramente o fim da Jim Crow Laws, em 1965, e
respaldando a inserção de muitas mulheres no mundo do trabalho a partir de 1964; (c) as chamadas
“leis de sodomia” – medidas criadas para impedir várias práticas sexuais, inclusive a homossexualidade
– começavam a ser revogadas pelos Estados a partir da década de 1960. Aqui, em particular, vale a
pena destacar as denominadas “revoltas de Stonewall em 1969; (d) orações religiosas das escolas
públicas em 1962 (Engel v. Vitale); e (e) leitura bíblica também nas escolas públicas em 1963
(Abington v. Schempp); e (ii) a Associação Americana de Psiquiatria em 1973 deixou de considerar a
homossexualidade como doença.
42 A maior parte do catolicismo e setores minoritários do protestantismo permanecem críticos ao
incentivo desenfreado ao consumo de bens e de mercadorias.
43 Recomenda-se aqui a importante análise feita por Miguel (2002: 483-511).
44 Para uma excelente análise acerca da prática de intolerância religiosa entre fundamentalistas cristãos
contra experiências religiosas minoritárias ou não na história brasileira, ver: Santos (2019).
45 Entendida aqui como sendo a sua própria comunidade religiosa.
46 Opomo-nos aqui a uma ideia cara a Eliade (1992) – cujos trabalhos no campo da história das
religiões comparadas continua a constituir um importante manancial de caminhos para novas pesquisa:
a de que as sociedades tradicionais, em oposição à moderna, tenham produzido o homo religiosus. Não
há dúvida que em tais realidades históricas, a natureza dominava amplamente a cultura e os fenômenos
naturais eram muitas vezes lidos como manifestações inequívocas do divino, fosse ele deus e/ou
deuses. Admitimos, enquanto autores deste capítulo, que este homo religiosus deva ser entendido como
um indivíduo tão repleto de deus e /ou de deuses, que nada que acontecia na sua vida e/ou no seu
espaço de atuação social não fosse por ele lido e interpretado como a manifestação inequívoca do
divino. Portanto, compreende-se aqui que a existência de uma tal pessoa era bastante significativa em
sociedades tradicionais. Mas, a nossa discordância a Eliade, e a todos que com ele comungam de tal
ideia, se dá no fato de (i) a ideia de uma compartimentação do sujeito histórico é contemporânea e não
de sociedades tradicionais; (ii) se o homo religiosus existisse, ele também se faria presente entre nós
contemporâneos; e (iii) que tanto nas sociedades tradicionais, quanto na moderna, ele nunca existiu na
sua completude, pois não se tem notícia de ele ter vivido numa redoma. Voltamos a insistir: um sujeito
histórico recortado em compartimentos sociais é uma ideia contemporânea. Em outras palavras, ele não
era (nem é) “vinte e quatro horas” do seu dia homo religiosus. Esta mesma leitura também se aplica a
todas as outras categorias, como por exemplo: homo oeconomicus, homo juridicus, homo politicus...
Para o uso de homem divino como uma categoria de análise bem mais rica e interessante do que a de
homo religiosus utilizada por Eliade, ver: Justi (2017).
47 Convém enfatizar aqui que a noção de progresso e de tempo infinito descartam por completo toda e
qualquer possibilidade de intervenção de agentes a-históricos na História.
II. Iluminismo
Luzes e Sombras de uma Ideia.

Lair Amaro de Faria


“Mais do que nunca”, assinala Steven Pinker, “os ideais da razão, da
ciência, do humanismo e do progresso necessitam de uma defesa
entusiasmada”. Com efeito, ele conclui, é mister dimensionar o perigo
que advém quando não damos “o devido valor às realizações do
Iluminismo”. Nesse mesmo diapasão, Tzvetan Todorov salienta que o
século XX, testemunha de duas guerras mundiais, regimes totalitários na
Europa e para além dela e das consequências mortíferas das inovações
tecnológicas, aparentou desmentir as esperanças formuladas pelos
filósofos das Luzes e, por conseguinte, fez emergir a suposição, quase
uma verdade, que “as ideias trazidas por palavras como humanismo,
emancipação, progresso, razão, livre arbítrio, caíram em descrédito”
(Todorov, 2008: 23).
Assumindo, portanto, como ponto de partida o apelo de Pinker e o
lamento de Todorov, convém traçar os caminhos por meio dos quais o
Iluminismo veio à lume, sem perder de vista, por outro lado, que ao
clamar por uma “defesa entusiasmada”, o professor de ciência cognitiva
aponta para um possível esvaziamento de sentido dos princípios
iluministas em uma sociedade que eles próprios deram forma e
conteúdo.
Importa sublinhar, no entanto, que inexiste um momento exato em que
se possa afirmar que o Iluminismo foi instaurado. Ele não tem certidão
de nascimento tampouco uma cartilha na qual se possa ler alguma
espécie de juramento ou credo. Com efeito, labora em erro quem supõe
que o Iluminismo teve um fundador ou que consistiu em um movimento
harmônico e unificado em torno dos mesmos princípios. Como salienta
um entusiasta das Luzes, aquela foi uma época “mais de debate do que
de consenso; de assustadora multiplicidade, aliás” (Todorov, 2008: 14)48.
Assim, convencionou-se situar o Iluminismo adentrando no cenário
europeu no final do século XVIII, contudo, incorreremos em um
equívoco se olvidarmos que as suas ideias estavam embrionárias na
Revolução Científica e na Idade da Razão que se dão no século XVII e
que tais ideias permaneceram em vigor quando o liberalismo clássico
atingiu seu apogeu, ou seja, na primeira metade do século XIX (Fortes,
1985: 23).
Acima de tudo, porém, cumpre sublinhar que se uma certa memória
acerca dos iluministas os reconhece como portadores da “luz” que
espantava as trevas da ignorância, estes albergavam, mesmo que
inconscientemente, um projeto de poder. Curiosamente, no entanto, salta
aos olhos a constatação de que essa tese passa ao largo das
considerações de Pinker e Todorov, para citarmos apenas dois dos mais
destacados pensadores contemporâneos que dedicaram seu tempo para
escrever sobre aqueles baluartes da civilização ocidental49.
Ambos, a propósito, também não concedem espaço em suas
considerações a respeito do Iluminismo para um processo de
reconstrução do passado operado por historiadores e que, como assinala
John Robertson (2015), alçou a Época das Luzes a patamares ímpares
em virtude de demandas do presente. Robertson observa que as
experiências traumáticas vividas na Segunda Guerra impuseram sobre
historiadores e críticos literários a necessidade de oferecer à Europa um
passado melhor. Por assim dizer, menos sombrio. Nesse sentido, em vez
dos nacionalismos e das doutrinas racialistas do século XIX, os
intelectuais remontaram a um então muito mais atrativo século XVIII e
descobriram o Iluminismo.
Esse processo de reconstrução histórica ensejou, consoante Robertson,
a constatação de não haver condições mínimas para se pensar em um
Iluminismo ou em “o” Iluminismo. Consequentemente, muitos
pesquisadores acordaram que a maneira mais adequada de se referir
àquele contexto devia ser “Iluminismos”. O que, como ficará
demonstrado, não é uma escolha de Todorov e Pinker.
Assim, vejamos como Todorov (2008: 14) se pronuncia:
(...) reconhecemos sem muita dificuldade a existência do
que se pode chamar de projeto das Luzes. Três ideias se
encontram na base desse projeto, as quais nutrem também
suas inumeráveis consequências: a autonomia, a
finalidade humana dos nossos atos e, enfim, a
universalidade.
No que tange à autonomia, Todorov explica que se trata do
reconhecimento da necessidade imperiosa de emancipar-se de toda tutela
que, de fora para dentro dos sujeitos, impõe determinativamente o que se
deve pensar. Com efeito, o que se almeja é a liberdade para examinar,
questionar, criticar e poder, com isso e por isso, pulverizar a sacralidade
de qualquer dogma ou instrução. Importante enfatizar, ademais, que essa
proposição dos iluministas, consoante Todorov, implicava afrontar
qualquer autoridade que tivesse como traço principal o sobrenatural.
Logo, é quase desnecessário dizer, a maior parte das críticas era dirigida
à religião. Contudo, é bom não se deixar ludibriar, já que os iluministas
não advogavam o ateísmo, mas a “religião natural, o deísmo, ou uma de
suas numerosas variantes” (Todorov, 2008: 16)50.
Mais à frente, Todorov assinala que o projeto das Luzes tinha em
mente que os homens estruturariam suas leis e normas sob novas bases,
expulsando, por sua vez, a magia e a revelação. Com efeito, o abandono
“à certeza da Luz descida do alto” resultaria em um estado de coisas no
qual “a pluralidade das luzes” seria a tônica à proporção que essas
seriam difundidas “de pessoa para pessoa” (Todorov, 2008: 16).
Importante destacar, para reflexão crítica posterior, como Todorov
enxerga a disposição dos filósofos das Luzes em democratizar o
conhecimento (Todorov, 2008: 17):
Os promotores desse novo pensamento queriam levar
luzes a todos, pois estavam convencidos de que serviriam
ao bem de todos: o conhecimento é libertador, eis o
postulado. Favorecerão assim a educação em todas as
suas formas, desde a escola até as academias, e a difusão
do saber, por publicações especializadas ou por
enciclopédias dirigidas ao grande público.
Muito embora essa fosse a pretensão dos filósofos iluministas, como
salienta Todorov, é curioso que falte em sua apologia das Luzes
qualquer ressalva ao “todos” que ele utiliza no fragmento acima. Com
efeito, temos a impressão – que pode estar equivocada – que os atuais
comentadores do iluminismo romantizam o passado e, por seu lado,
atuam como agentes de um processo de enquadramento de memórias.
Isso o dizemos porque estamos nos embasando em não tão recentes
críticas desenvolvidas por feministas e não feministas dirigidas a um dos
expoentes do Iluminismo, Jean-Jacques Rousseau. Assim, no
pensamento rousseauniano homens e mulheres não tinham a mesma
natureza e, por esse motivo, não deviam receber a mesma educação. Em
suas próprias palavras (Rousseau, 1992: 430):
Uma vez demonstrado que o homem e a mulher não
devem ser constituídos da mesma maneira, nem de caráter
nem de temperamento, segue-se que não devem receber a
mesma educação. Seguindo as diretrizes da natureza,
devem agir de acordo, mas não devem fazer as mesmas
coisas: o fim dos trabalhos é o mesmo, mas os trabalhos
são diferentes e, por conseguinte, os gostos que os
dirigem.
A citação acima não retira a validade da proposição de Todorov em
torno da pretensão dos iluministas de colocar em funcionamento uma
ampla mobilização para, de uma forma ou de outra, fazer a educação
chegar a “todos”. Afinal, Rousseau postula uma educação franqueada
tanto aos homens quanto às mulheres. No entanto, essa educação não
deve ser a mesma para uns e para outros51. Mais que isso, o autor de O
Contrato Social peremptoriamente declara (Rousseau, 1992: 463):
A procura de verdades abstratas e especulativas, dos
princípios, dos axiomas nas ciências, tudo o que tende a
generalizar as ideias não é da competência das mulheres,
seus estudos devem todos voltar-se para a prática: cabe a
elas fazerem a aplicação dos princípios que o homem
encontrou.
Mas isso foi uma digressão aqui inserida a fim de pontuar que olhos
atentos e sensibilidades aguçadas perceberam que, mesmo muito bem-
intencionados, os corifeus das Luzes eram fruto de sua época e, por
conseguinte, não estavam acima do bem e do mal52.
Voltemos a caminhar seguindo os passos de Todorov. O Iluminismo,
segundo o crítico literário, instaurou novas finalidades ao agir humano.
Ou seja, os homens não se sentem mais obrigados a tudo fazer tendo em
vista Deus. É o bastante, agora, agir aqui neste mundo, encontrando um
sentido para a existência terrena, desviando a preocupação com a vida
após a morte para uma busca da felicidade possível enquanto se está
vivo.
Convém ressaltar que o agir humano, sob o Iluminismo, encontrava
uma restrição diretamente relacionada à noção de que todos os seres
humanos possuem direitos inalienáveis. Direito à vida, direito à
integridade de seu corpo. Em decorrência desse fator, a pena de morte e
a tortura tornavam-se uma aberração. Por conseguinte, decorreria dos
princípios iluministas o axioma de que “o pertencimento ao gênero
humano, à humanidade universal, é mais fundamental ainda que o
pertencimento a determinada sociedade” (Todorov, 2008: 21).
Que engendra, com efeito, a terceira e última das ideias que dão lastro
ao Iluminismo: a universalidade. Com todo o seu entusiasmo por aquele
movimento de ideias, Todorov clama que tal universalidade fomenta o
combate pela igualdade entre os gêneros, a luta pelo fim da escravidão, o
reconhecimento da dignidade dos pobres, dos excluídos, dos marginais.
Implica dizer, fazer acontecer o melhor dos mundos possíveis.
Todorov frisa que os viajantes e sábios daquele período, agora
informados pela noção de universalidade, mudam seus entendimentos
acerca dos povos longínquos com quem travam contato ou tomam
conhecimento. A multiplicidade de formas que a civilização pode
assumir, ele aventa, desperta o senso no homem do Iluminismo de que
não há mais como confundir a sua tradição com a ordem natural do
mundo. Todorov, ao que tudo indica, apaga da história moderna todo e
qualquer traço de etnocentrismo que, porventura, haja ocorrido quando
do contato entre esse genérico homem do Iluminismo e as sociedades
que jamais souberam da sua ocorrência53.
Entretanto, cumpre não esquecer que, na obra aqui sendo
escrutinizada, Todorov se encarregou da tarefa de iluminar o
Iluminismo, ou melhor, tirar o véu que cobre seu espírito. Afinal,
compartilhando dos mesmos receios de Pinker, ainda não nasceu outro
movimento que a ele se iguale. Razão de sobra, portanto, para manter
vivo o seu generoso legado. Legado este que fica inegavelmente patente
pelo fato de a democracia ter se tornado um “modelo querido ou
desejado em todo lugar” e de os “direitos universais do homem” serem
“considerados como um ideal comum” (Todorov, 2008: 23).
Luiz Fortes, professor de História da Filosofia da USP, em um
livrinho de vulgarização do conhecimento histórico voltado para um
público extra acadêmico, explana sobre o Iluminismo – no singular,
ainda que reconheça tratar-se de uma “multiplicidade de pontos de vista
doutrinários heterogêneos” (Fortes, 1985: 14) – e aponta que a sua
característica mais marcante é uma “profunda crença na Razão humana e
nos seus poderes” e que tal crença implicava “esperar que cada homem,
em princípio, pense por conta própria” (Fortes, 1985: 9). Esse pensar por
conta própria, isto é, utilizar a Razão, visava a provocar e a estimular a
curiosidade intelectual do homem daquele período a fim de que a Fé,
jogada para escanteio, não mais fosse a detentora da última palavra54.
Corolário dessa característica central do Iluminismo, a Razão não
deveria admitir qualquer autoridade que, acima dela, lhe ditasse o
caminho a seguir. Ela se colocava, portanto, como o árbitro final de
todas as coisas. Soberana e livre, qualquer limite ao seu emprego
constituía um atentado de lesa-humanidade.
A emancipação da Razão impulsiona, por conseguinte, os luminares
do movimento a desbravarem um terreno já conhecido, porém sob novas
orientações. O passado é esse lugar. O estudo do pretérito lhes mostra
um arsenal significativo de conhecimentos adquiridos e que, bem
manuseados, poderá ser útil ao bem-estar geral. Ensejando, enfim, o
achado de uma nova ideia reguladora, a saber, a ideia de Progresso.
Convém, no entanto, ter clareza do que essa ideia queria afirmar para
os iluministas. Consoante Pinker, labora em erro quem supõe que a
crença iluminista no progresso se confunde com a romântica crença
oitocentista segundo a qual forças, leis, lutas, poderes evolutivos,
impulsionariam a humanidade sempre para o alto e avante. Todorov,
reiterando o pensamento de Pinker, recorre a Rousseau para demonstrar
que a crença de que a História segue como o cumprimento de um
objetivo, ou seja, que é teleológica, não se coaduna com o Iluminismo.

Com efeito, a espécie humana, para Rousseau, não está em uma


marcha para o progresso, mas conserva uma capacidade de se melhorar e
aperfeiçoar o mundo, sem que, no entanto, haja qualquer garantia de
sucesso nessa jornada. Assim, a observação do passado assegura que é
em vão que se pode alimentar alguma esperança em um progresso linear
da humanidade.
Mesmo com tudo isso, as Luzes sofreram críticas acerbas por seus
contemporâneos e seus pósteros. Como sublinha Todorov, os baluartes
do Iluminismo e suas ideias foram contestados em virtude do fato de
terem colocado “o homem no lugar de Deus como fonte de seus ideais, a
razão de cada indivíduo (...) em vez das tradições coletivas, a igualdade
em vez da hierarquia, o culto da diversidade em vez da unidade”
(Todorov, 2008: 34).
À medida em que Todorov orientou-se pela premissa de que o
Iluminismo e os iluministas necessitam ser preservados das injúrias que
sobre eles foram e são lançadas, seu próximo movimento é destacar a
recriminação que se faz em torno de um suposto fornecimento de bases
ideológicas para o colonialismo europeu do século XIX.
“Um olhar um pouco superficial sobre a história das ideias”, ele
assinala, “poderia, com efeito, nos fazer crer que o pensamento das
Luzes preparou as futuras invasões” (Todorov, 2008: 36). Para Todorov,
não é relevante que Condorcet projetasse um Estado universal
homogêneo obtido por meio da intervenção dos europeus. Antes, a
empresa colonial europeia quando toma emprestado, explicitamente,
discursos e o ideário do Iluminismo tão somente prova o prestígio que
esse movimento intelectual ainda goza entre os agentes da colonização.
Assim, contrariando os detratores das Luzes nesse quesito, Todorov
aventa que foram os movimentos anticolonialistas que, de fato, se
apropriaram dos princípios iluministas, pois inspiraram-se nas ideias de
“universalidade humana, a igualdade entre os povos e a liberdade dos
indivíduos” (Todorov, 2008: 38).
Consciente, portanto, dos questionamentos lançados em torno da
relevância atual do Iluminismo e de seus ideólogos55, Todorov se esforça
para convencer seus leitores que, apesar das funestas e sombrias
contradições que obnubilam tanto o presente quanto o futuro, não é de
bom tom ignorar as Luzes. Para ele, as dificuldades que perpassam a
humanidade e trazem angústias a todos podem ser sanadas com apoio
nos princípios iluministas.
Com a condição de compreender que não são todas as propostas dos
filósofos das Luzes formuladas no século XVIII que devem ser
acolhidas, pois, o mundo – obviamente – mudou. Sua sugestão, com
efeito, consiste em uma verificação minuciosa do Iluminismo a fim de
refunda-lo. De acordo com as suas próprias palavras (Todorov, 2008:
29):
Preservar a herança do passado, mas submetendo-o a um
exame crítico, confrontando-o lucidamente com suas
consequências desejáveis e indesejáveis. Fazendo isso,
não arriscamos trair as Luzes; ao contrário: a verdade é
que as criticando, continuamos fieis a elas, e colocamos
em prática seu ensinamento.
Em seu repensar pretensamente refundador das Luzes, Todorov faz a
alegação de que as ideias exaradas pelos filósofos do Iluminismo são
universais. Implica dizer, para ele, antes da revolução suscitada por esse
movimento intelectual europeu do século XVIII, identificam-se seus
traços e ecos em tempos e locais muito, mas muito distantes. Todorov
encontra evidências do universalismo das ideias iluministas na Índia do
século III a.e.c., no Islã dos séculos VIII ao X, na renovação do
confucionismo ocorrida na China e na África, no bojo das lutas
emancipatórias entre os séculos XVII e XVIII.
Em virtude desse fato, Todorov, então, interroga suas leitoras e seus
leitores: se essas ideias estavam em circulação em diferentes civilizações
e em tempos tão distintos, por que motivos elas prosperaram justamente
na Europa? Quais os diferenciais que possibilitaram esse lugar de
destaque no proscênio mundial?
A multiplicidade dos Estados estabelecidos no continente europeu, em
primeiro lugar. Assim, atestando esse dado, nada como recorrer a David
Hume e sua opinião sobre a China (Todorov, 2008: 139):
Na China parece existir um fundo considerável de cortesia
e de ciência do qual poderíamos esperar que, em tantos
séculos tivesse eclodido alguma coisa mais perfeita e mais
acabada do que aquilo que realmente já surgiu. Mas a
China é um vasto império falando uma única língua,
regido por uma lei única, unido pela mesma maneira de
viver.
Por conseguinte, Todorov nos leva a inferir, aquilo que seria a força
da civilização chinesa, constituiu-se em sua maior fraqueza e uma
barreira à emergência dos princípios iluministas em seu solo.
A multiplicidade de Estados, por sua vez, engendrou a pluralidade,
por exemplo, de religiões e religiosidades. Nesse sentido, Todorov traz
para a reflexão de suas leitoras e de seus leitores, as elucubrações dos
próprios filósofos das Luzes. Em Voltaire, por exemplo, ele encontra a
seguinte assertiva: “Se só houvesse na Inglaterra uma religião, seria de
temer-se o despotismo; se houvesse duas, elas cortariam a garganta uma
da outra; mas há trinta, e elas vivem em paz e felizes” (Todorov, 2008:
140) e em Montesquieu, mostra-se útil para seu argumento destacar que,
à medida que as inúmeras religiões inculcam em seus fiéis boas regras
de conduta, “o que haveria de mais capaz de animar esse zelo do que sua
multiplicidade?” (Todorov, 2008: 140).
Por fim, Todorov expõe o que para ele seria a lição magna das Luzes.
A saber, fazer nascer a unidade da pluralidade. Em sua elegia do
Iluminismo, ele não tergiversa por um segundo sequer e presta uma
homenagem quase comovente (Todorov, 2008: 148):
As Luzes são a criação mais prestigiosa da Europa, e elas
não poderiam ter visto o dia sem a existência do espaço
europeu, ao mesmo tempo uno e múltiplo. Mas o inverso
é igualmente verdadeiro: são as Luzes que estão na
origem da Europa, tal como a concebemos hoje. De modo
que se pode dizer sem exagero: sem a Europa, nada de
Luzes; mas também: sem as Luzes, nada de Europa.
Resta-nos, portanto, após todas essas considerações de Pinker,
Todorov e outros, enunciar uma derradeira indagação: Por que importa
estudar ainda hoje os Iluminismos? Como uma resposta possível,
cumpre conhecer a história de uma mulher: Ayann Hirsi Ali.
Ayaan Hirsi Ali nasceu na Somália, em 1969. Ainda criança, em
virtude da militância política de seu pai, teve que deixar o seu país. Ela e
sua família passaram pela Arábia Saudita, pela Etiópia, até se
estabelecerem no Quênia. Como foi criada em uma família islâmica,
viu-se forçada a casar-se com um primo distante, no Canadá. A jovem,
no entanto, escolheu enfrentar sua família, as tradições, a religião e fugiu
para a Holanda.
Nesse país, ela engajou-se em um trabalho como intérprete de
muçulmanas que passavam por situações parecidas com as dela. Por
conseguinte, ela atraiu a ira de pessoas dos mais distintos espectros
religiosos e políticos. Com palavras e textos como armas, Hirsi Ali
denuncia os maus tratos sofridos pelas mulheres mulçumanas ao redor
do mundo. Mais uma vez atacada por descontentes, ela refugia-se, por
fim, nos EUA.
Em seus escritos, a autora declara que
o islã precisa de um Voltaire que convide os muçulmanos
a se libertar das superstições, a usar a mente e não a
emoção, para constatar, como ele o fez no século XVIII,
que ‘Nada pode ser mais contrário à religião e ao clero do
que a razão e o senso comum (Hirsi, 2008: 59).
Quaisquer que sejam as críticas aos Iluminismos e aos seus
responsáveis, o testemunho de Hirsi Ali constata que, não obstante suas
sombras, as Luzes ainda podem fazer a diferença no mundo.
48 Robert Darnton, por outro lado, rejeita essa constatação e pondera: “A vida intelectual floresce
igualmente em várias áreas favorecidas do continente, especialmente nos Países Baixos (...); no norte
da Alemanha (...); e na Itália (...). Mas o verdadeiro berço das Luzes é Paris” (DARNTON, 2001: 23).
49 Foi preciso emergirem os estudos pós-coloniais para que o Iluminismo e suas consequências para os
povos subalternos viessem a ser reavaliado.
50 Robertson frisa que há muitas visões clichê acerca das atitudes dos iluministas para com a religião,
postulando que o mais coerente é reconhecer um espectro amplo de posicionamentos.
51 Todorov volta a tocar nesse ponto mais adiante sem, novamente, adicionar qualquer ressalva:
“Também a escola, destina-se a ser subtraída ao poder eclesiástico para se tornar um lugar de
propagação das Luzes, aberta a todos, portanto gratuita, e ao mesmo tempo obrigatória para todos”
(TODOROV, 2008: 19).
52 Luiz Fortes igualmente alberga essa concepção, asseverando que os iluministas sonhavam em
“intervir nos acontecimentos e desenvolver uma intensa atividade pedagógica e civilizatória”
(FORTES, 1985: 28), sem, no entanto, ressalvar os recortes de gênero e de raça.
53 O ponto de vista de Todorov é, até certo ponto, compreensível, pois cumpre reconhecer que a sua
leitura das Luzes não dialoga com os estudos pós-coloniais. Com efeito, se assim Todorov o fizesse,
talvez ele ponderasse sua fala e admitisse, com Achille Mbembe, que “o negro e a raça têm sido
sinônimos no imaginário das sociedades europeias. (...) a aparição de uma e de outra no saber e no
discurso modernos sobre o homem (e, por consequência, sobre o ‘humanismo’ e a ‘humanidade’) foi,
se não simultâneo, pelo menos paralelo; e, desde o início do século XVIII, constituíram ambos o
subsolo (inconfesso e muitas vezes negado), ou melhor, o complexo nuclear a partir do qual se difundiu
o projeto moderno do conhecimento – mas também de governo” (MBEMBE, 2018: 12).
54 Cumpre destacar, com o próprio Fortes, que nos países de maioria protestante, “as igrejas
reformadas participaram, (...), da tendência no sentido de favorecer a valorização da Razão, do livre
exame das Escrituras e de se contrapor ao domínio absoluto do dogma e da fé” (FORTES, 1985: 18).
55 É de suma importância deixar registradas as críticas proferidas pelos fundadores da Escola de
Frankfurt, Theodor Adorno e Max Hokheimer, em “Dialética do Iluminismo”, segundo as quais em sua
ambição de reordenar o conhecimento humano para o benefício da humanidade, a filosofia do
Iluminismo criou novos instrumentos de dominação tanto tecnológicos quanto políticos.
III. A Astronomia Moderna e as
Interpretações da Bíblia: novas teorias
da origem e do fim do mundo para
novas teorias para o mundo

Carlos Ziller Camenietzki


Um dos grandes problemas da vida religiosa dos povos emerge com
muito vigor nas confissões reveladas. A existência de um texto que traz
aos fiéis a moral, os fundamentos das crenças e os modos de sua
organização, impõe uma homogeneidade bastante grande na vida
comum. De fato, revelar a Verdade aos humanos em um texto, um
escrito, também é uma forma de fixá-la.
As coisas certamente andam bem, quando a língua e os costumes em
que a confissão foi revelada mantêm-se com poucas e pequenas
variações. Mas quando a revelação insiste em permanecer viva por
muito tempo, por gerações e gerações, por séculos e séculos, ao ponto de
desaparecerem os falantes da língua que revelou a fé, a moral e os
modos retos de proceder, tem-se um problema de difícil resolução.
Afinal, será necessário traduzir as línguas mortas nas línguas faladas e
vivas dos povos; será também necessário adaptar ou ocultar aqueles
elementos que ficaram em desuso ao longo de tantos séculos, buscando
preservar aquilo que se considera o ensinamento mais importante.
A Revelação cristã é dependente daquela judaica e decididamente não
foi escrita na língua que consolidou a expansão do cristianismo, o latim.
Em princípio, nada de grave, bastam boas traduções e o problema fica
resolvido. No entanto, essa Revelação seria complementada por textos
escritos há quase dois mil anos, em línguas que não eram apenas aquela
da primeira. Examinando mais minuciosamente: a Verdade do povo
hebreu seria traduzida ao latim e, com a decadência dessa cultura a partir
do fim do Império Romano, desta última às línguas vernáculas
modernas.
Com isso, problemas próprios e decorrentes de haver uma Revelação,
se agravam sensivelmente. Afinal, há um escrito ao qual recorrer quando
algo efetivamente novo se apresenta e esse texto é muito antigo, tão
antigo que até a língua com que foi escrito já não é mais falada por
ninguém. Recorrer a uma Revelação antiga para enquadrar algo novo
não é procedimento simples.
Some-se a isso o fato do cristianismo ocupar largo território na
Europa, onde as populações viviam tradições e culturas bastante
diferentes e em perpétua transformação. Expressa muito bem esse
problema a distinção viva ainda hoje entre o cristianismo latino e o
helênico cuja separação ocorreu há muito e muitos séculos. As
confissões não reveladas, ao contrário, não dispõem de um texto ao qual
recorrer diante dos dilemas culturais e morais que a vida coloca ao longo
de tempos tão dilatados. Elas buscam resolvê-los sem recorrer a uma
verdade antiga e fixada em um escrito.
Mas essa tensão própria das confissões reveladas ficou especialmente
evidente quando os trabalhos das sociedades expandiram o
conhecimento do mundo para muito além daquilo que se tinha como
certo e aceito universalmente. Comprova isso o forte impacto nas
populações cristãs, sobretudo urbanas, da primeira chegada de europeus
ao Caribe, da primeira circunavegação do globo e das novas teorias
filosóficas sobre a reorganização do céu. É claro, nos tempos em que a
Revelação foi feita, nada disso era sequer imaginável.
Mas o próprio cristianismo também se transforma, e não é indiferente
que na época das grandes inovações na cultura e na moral pública, os
cristãos do Velho Mundo largaram sua unidade confessional e
eclesiástica pela exaltação de interpretações variadas do que seria a
Revelação. A interpretação passou ao primeiro plano56.
Vivia-se uma tensão vigorosa entre o que se estava conhecendo do
mundo e aquilo que se conhecia havia séculos. As tradições filosóficas
de então buscaram apoio e fundamento no texto revelado, e as
alternativas de inovação sustentavam-se naquilo que se podia constatar e
interpretar com as alternativas filosóficas recuperadas da Antiguidade
pagã. O processo vem sendo estudado há mais de dois séculos e meio e
envolve episódios significativos como a condenação da obra de
Copérnico por católicos e por luteranos, o processo de Galileu, a
execução de Miguel Servet em Genebra e a de Giordano Bruno em
Roma etc.
É curioso registrar que nesses casos emblemáticos, os condenados
eram eles mesmos cristãos e em boa parte eram sacerdotes. Entre esses
citados Bruno e Copérnico eram sacerdotes ordenados.
Mas se as novas teorias e invenções contraditavam o que se acreditou
ser a Revelação, não se pode negar que esse problema ocorria mais por
ausência de referência no texto revelado do que por uma confrontação
direta com o escrito. É bom lembrar que Copérnico não afirmou que
Lázaro continuou morto embora o fundador do cristianismo tivesse se
empenhado em reavivá-lo! Galileu nunca afirmou que o Mar Vermelho
não se abriu para a passagem do povo de Moisés e Bruno nunca
sustentou que o corpo do Cristo não subiu aos céus!
Dessa forma, não é deslocado afirmar que aquilo que se disputava era
basicamente a interpretação do texto revelado e não o que o texto
efetivamente dizia. Um bom exemplo disso é a utilização de algumas
passagens bíblicas relativas ao movimento dos céus que foram
largamente utilizadas contra o heliocentrismo nas décadas que seguiram
a publicação da obra central de Copérnico:
“Josué falou ao Senhor no dia em que ele entregou os
amorreus nas mãos dos filhos de Israel, e disse em
presença dos israelitas: ‘Sol detém-te em Gabaon, e tu, ó
Lua, no vale de Aialon’. E o Sol parou e a Lua não se
moveu até que o povo se vingou de seus inimigos” (Josué
10: 12-13).
Ainda aqui o que é dominante é a interpretação porque não se tratava
de discutir o movimento da Terra ou aquele do Sol, e sim de manter a
luz do dia e retardar o início da noite para que o exército de Josué
pudesse exterminar seus inimigos no retorno dos hebreus à Terra
Prometida.
Outro exemplo que é bom lembrar refere-se aos esforços de diversos
estudiosos da natureza em refletir sobre passagens das Escrituras em
busca de acerto e compatibilização com aquilo que estudavam do
mundo. O próprio Isaac Newton, e muitos outros insulares ou não,
desenvolveu sua reflexão sobre passagens importantes da Bíblia que
estavam em debate no seu tempo57. No entanto, para todos esses
filósofos, continuava central a ideia de que a Revelação não é
astronômica, como bem indica uma citação famosa usada por diversos
autores do início do século XVII: “a Bíblia nos ensina como se vai para
o céu, e não como vai o céu”.
Paralelamente, reavivava-se uma antiga tradição, datando de uma
época importante da organização eclesiástica, que buscava entender o
texto sagrado como algo que orientaria os cristãos na vida em comum, e
não em algo que lhes imporia o entendimento do mundo natural. Santo
Agostinho, por exemplo, talvez o mais importante dos padres da Igreja,
discutia a interpretação da Bíblia e seus problemas ainda no século V! O
assunto era tema de outros responsáveis religiosos e acabou gerando
longa controvérsia aproveitada tempos depois pelos filósofos da época
de Copérnico, de Galileu e de Newton.
Se, enfim, os investigadores dos céus aceitavam que as contradições
entre passagens bíblicas e aquilo que eles descobriam no mundo eram
basicamente problemas de interpretação, isso implicava então a busca
por modos de compatibilização entre os resultados de seus trabalhos de
investigação do mundo e os trechos bíblicos correlatos. Afinal, os
astrônomos dos séculos XVI ao XVIII eram todos bons cristãos,
frequentavam as missas, ou os cultos, e temiam em primeiro lugar por
suas almas.
O esforço, porém, não era coisa que resultaria facilmente. A grande
rearrumação da vida religiosa dos povos em praticamente toda a Europa
colocou problemas bastante importantes acerca do entendimento
daquelas coisas que a Revelação revelou, além das severíssimas
questões relativas à estrutura eclesiástica. A título de exemplo, o Papa
Sixto V em 1588 lançou a bula Immensa Aeterni Dei, de reorganização
do Estado do Vaticano, estabelecendo quinze congregações
permanentes, entre elas uma que seria responsável pela interpretação das
resoluções do Concílio de Trento, reformulando a congregação criada
por Pio IV logo após o encerramento do Concílio (Cherubini, 1692:
619). O entendimento e a interpretação dos decretos da Reforma
Católica precisavam estar assegurados diante do grande turbilhão
religioso da época. Se os problemas enfrentados na reorganização
eclesiástica e religiosa dos povos tinham essa monta, interpretar as
Sagradas Escrituras e as antigas normas da vida em comum era tema que
se impunha com mais vigor ainda a todos os cristãos.
De fato, a aplicação da Reforma Católica necessitou de uma
congregação permanente de cardeais que guiasse a interpretação de seus
decretos nas décadas seguintes à conclusão do Concílio. É fácil perceber
que estava em questão o entendimento dos decretos da grande Reforma
Católica por parte dos membros da Igreja Católica. E se esse problema
se revelou importante logo após a conclusão do Concílio, o que se
poderá dizer do próprio texto bíblico, escrito havia séculos quase todo
em língua extinta, em linguagem que combinava a narrativa histórica a
outras formas variadas de expressão? De fato, por mais que a exegese
bíblica oferecesse resultados animadores, o problema principal
permanecia: era necessário interpretar o texto sagrado à luz das
transformações nos costumes e no conhecimento do mundo.
Por outro lado, para aqueles que estudavam o céu físico, encontrar
acomodações entre o que descobriam e o que se considerava ser parte da
Revelação era tarefa da maior urgência, e não apenas em terreno
católico, também nos domínios da Reforma. Convém ressaltar que se
trata aqui de exigência que não se colocava sobre os estudiosos, era algo
que partia deles próprios. Não era uma imposição de organizações
eclesiásticas aos estudiosos, ao contrário, era sobretudo uma
preocupação essencial dos próprios sábios.
Um bom exemplo desse empenho pode ser visto em soluções
apresentadas por astrônomos para a compatibilidade entre passagens
bíblicas específicas e as novas teorias do mundo que estavam em
construção nessa época conturbada. No entanto, o estudo dessas
realizações não é coisa nova ou sequer recente. Ao longo dos tempos,
alguns episódios importantes se transformaram em casos exemplares que
atraíram as atenções. É certo que o exame desses casos sempre acaba por
limitar um pouco a análise, tendo em vista que os inúmeros trabalhos
produzidos ao longo do tempo sobre esses episódios deixaram marcas
indeléveis em sua interpretação: qualquer análise que se faça da
condenação de Galileu ou de Bruno faz aparecer uma multidão de
contestadores e de inflamados defensores de teses antigas58. Dessa
forma, para evitar o que é espinhoso, o presente estudo vai se concentrar
no período de poucas décadas após a publicação da obra de síntese de
Isaac Newton, na Inglaterra, em 1687, especificamente na obra de um
matemático e pastor presbiteriano que defendia a nova Física
newtoniana.
Ocorre que ao final do século XVII, depois das estrepitosas
inquietações intelectuais e sociais inglesas, os homens de saber se
puseram a buscar soluções que eles acreditavam essenciais para a
confirmação de suas teorias sobre o mundo, em primeiro lugar, sua
capacidade de explicar passagens bíblicas modelares. O esforço, é claro,
não se restringiu aos filósofos insulares nem mesmo aos reformados. No
continente, diversos pensadores e homens da Igreja também se
dedicaram ao exame dos mesmos problemas, conforme se verá a seguir.
Em particular, importa aqui a obra de um astrônomo e matemático,
apreciador das novas teorias do mundo, que ocupou o cargo de professor
de Filosofia Natural depois do afastamento de Isaac Newton da
Universidade de Cambridge em 1701: William Whiston (1667-1752).
Trata-se de um matemático erudito que, como quase todos de sua
geração, também se dedicava aos grandes problemas religiosos de seu
tempo. Após completar sua formação matemática, sábio newtoniano, ele
permaneceu em Cambridge até 1693, quando se voltou à Igreja
Presbiteriana e acabou se ordenando pastor em 1695. Alguns anos
depois, Whiston abandonou a carreira eclesiástica para assumir as
funções de Professor de matemática na Universidade onde prosseguiu os
ensinamentos de seu mestre e interagiu com os mais importantes
filósofos ingleses da época: Robert Boyle, Edmond Halley, John Locke,
Samuel Clarke etc. No entanto, seu posicionamento em matéria religiosa
acabou por impor seu afastamento de Cambridge e limitando sua entrada
na Royal Society, mas não arrefeceu seu ardor teológico. Whiston ainda
traduziu Flavius Josephus ao inglês e escreveu diversos textos e
prognósticos sobre o povo judeu.
Sua obra mais importante, A New Theory of the Earth from its
Original to the Consummation of all Things (Whiston, 1696) contou
grande impacto insular e boa projeção no Continente; foi debatida
animadamente com leitores e críticos na Península Ibérica, na França, na
Alemanha e em outras regiões. Whiston publicou diversos outros
trabalhos que lhe consolidaram a fama de homem de ciência e de
teólogo heterodoxo que procurava na reflexão matemática e astronômica
bons argumentos em defesa de sua interpretação bíblica59. Ainda no
terreno da Astronomia, ele se integrou ao esforço europeu em obter uma
técnica segura de obtenção da longitude em alto mar. Definitivamente,
ele não era um sábio de gabinete.
A nova teoria da Terra que ele propunha buscava harmonizar os ditos
bíblicos às teorias newtonianas do mundo. É importante notar que esse
esforço de adaptação entre o novo conhecimento do mundo e a Verdade
Revelada não foi exclusivo das religiões reformadas. No Continente, em
domínio católico, diversos sábios deram mãos ao trabalho para assegurar
a coexistência pacífica da Bíblia com os novos saberes. A título de
exemplo, em meados do século XVII, o professor de matemática do
Colégio Romano da Companhia de Jesus, Athanasius Kircher, ele
mesmo jesuíta, escreveu grossos volumes de grande sucesso sobre a
Torre de Babel (Kircher 1679) e sobre a Arca de Noé (Kircher 1675). É
possível encontrar diversos livros escritos por toda a Europa ao longo do
século XVII tratando desses temas e de outros autores, relativos a
passagens bíblicas mais ou menos conhecidas e citadas.
Whiston, em seu primeiro tratado de maior importância, publicado em
1696, apresentava um entendimento da criação do mundo compatível,
segundo ele, com a nova Física que emergia vigorosa na Inglaterra e que
tomaria o resto da Europa nas décadas que seguiram. Tratava-se de
mostrar que a teoria de Newton não contraditava a obra dos seis dias, tal
e qual descrita na Bíblia, nem o dilúvio ou a consumação do mundo,
previstas nos profetas e no Apocalipse de S. João, e mais, ele avançou
uma teoria que atribuía à passagem de um cometa um papel de primeira
grandeza nesses eventos bíblicos.
O sentido geral de sua intervenção era assegurar que a narrativa da
criação do mundo exposta no livro da Gênesis era verdadeira, real e
perfeitamente compatível com suas ideias sobre o mundo natural. No
início do livro, ele apresenta uma proposição que é a síntese da obra:
The proposition therefore which shall be the subject of
this dissertation, and includes the whole point before us,
shall be this: the Mosaic creation is not a Nice and
philosophical account of the origin of all things; but an
historical and true representation of the formation of our
single Earth out of a confused Chaos, and of the
successive and visible changes thereof each day, till it
became the habitation of mankind (Whiston, 1696: 3).
O matemático tentava atribuir uma concretude ao relato de Moisés,
sobretudo a partir das passagens consideradas obscuras pelos teólogos e
filósofos do seu tempo. O esforço concentrava-se na ideia de que a nova
Astronomia poderia resolver os espinhosos e eternos problemas de uma
Revelação que já durava, naquela época, bem mais de dois mil anos.
Whiston buscou apoio naquilo que foi um dos primeiros grandes
sucessos da filosofia de Newton: a análise dos cometas, sua natureza,
composição e trajetória60. A ideia que transparece de sua obra sobre a
Criação é a centralidade dos cometas na conformação do mundo,
buscando na teoria desses corpos celestes, que foi um grande motor da
transformação da Astronomia, as novas explicações do que dizia o livro
da Gênesis. A opção era engenhosa e envolvia a exegese bíblica e o
prestígio da nova física newtoniana e alongava-se ainda a trechos do
Novo Testamento relativo ao Apocalipse, que foram abordados com a
mesma estratégia astronômica e cometária.
Whiston aborda a criação de forma bastante direta, considerando o
que poderiam ser as características físicas da massa disforme do caos
inicial: fluidez, turbulência, escuridão etc. Assim, desordenados, os
átomos do ar, da água, da terra e do fogo se encontravam aproximados e
agitados em perpétua confusão. Com isso, ele crê encontrar semelhanças
físicas prováveis com a atmosfera que cerca os cometas: “the ancient
Chaos, the origin of our Earth, was the atmosphere of a comet”
(Whiston, 1696: 69). O raciocínio prossegue considerando a forma da
Terra e, para abreviar esta exposição, Whiston pondera que a revolução
anual seria congênita e avança a hipótese: “the annual motion of the
Earth commenc’d at the beginning of the Mosaick Creation; yet its
Diurnal Rotation did not till after the fall of man” (Whiston, 1696: 79).
Trata-se claramente de um esforço de compatibilização da nova
Astronomia de Newton com a narrativa da criação exposta no livro da
Gênesis. Talvez Whiston esperasse favorecer a nova Astronomia com
uma solução original de um problema bastante importante para os
defensores dos movimentos da Terra: o silêncio da Bíblia. Afinal, os
estudiosos dos céus daquele tempo eram todos muito ciosos de sua fé.
A passagem que mais importa no momento é relativa ao dilúvio e a
Arca. Aqui, o autor avança sua hipótese de que após a criação do mundo
e a queda de Adão, os planetas e os cometas giravam em círculos
perfeitos ao redor do Sol e esse ordenamento teria se degenerado em
elipses e parábolas pelas mesmas causas próximas que provocaram o
dilúvio. Ele prossegue com análises da cronologia para datar
precisamente a época em que a grande cheia teria dizimado a
humanidade, deixando apenas Noé, sua descendência e os seres vivos
que entraram em sua arca. Apoiado na tese de Halley e Newton e de
outros astrônomos de seu tempo sobre o caráter perene dos cometas,
Whiston busca aproximações entre a data precisa do dilúvio e a
passagem de um cometa, avançando a hipótese de que o dia em que as
águas começaram a cair coincidiu com a passagem da Terra por perto de
um desses objetos celestes. Mais especificamente, pela passagem no
rastro celeste do cometa, em sua atmosfera. A proximidade com o astro
alterou substancialmente os parâmetros do movimento da Terra,
causando a excentricidade da órbita e colocando o Sol em um dos focos
da elipse. E mais, os vapores do cometa teriam alterado os ares da Terra,
provocando as chuvas descomunais que produziram o dilúvio.
Whiston não era um doutrinador, era matemático e a hipótese é
apresentada com cálculos e resultados montados nas regras da
astronomia de seu tempo. Depois de ter assentada a hipótese da
passagem de um cometa no dia do dilúvio, ele se detém no caráter
celeste da enorme quantidade de água que caiu sobre o mundo: “this vast
quantity of Waters was not deriv’d from the Earth or Seas, as Rains
constantly now are; but from some other superior and coelestial
original” (Whiston, 1696: 198). Whiston descreve o dilúvio e seus
efeitos, os quarenta dias de chuva intensa, a destruição das plantas e de
toda a vida na Terra, acentuando sempre seu caráter excepcional.
O matemático também acessa argumentos astronômicos e astrológicos
tradicionais para explicar aquilo que ele acreditava serem os grandes
acontecimentos do mundo, como a teoria das grandes conjunções, já
antiga de alguns séculos quando ele escrevia e que perdia prestígio
aceleradamente. Dizia ele: “the deluge and conflagration are referre’d,
by ancient tradition, to great conjunction of the heavenly bodies, as both
depending on, and happening at the same” (Whiston, 1696: 211)61. Nova
Astronomia, é claro, mas sem deixar de lado aquilo que as tradições
astrológicas poderiam agregar ao seu raciocínio, sem, contudo, nada
ceder ao “encantamento do mundo”, tão frequente entre os sábios
daquele tempo.
A explicação para uma quantidade tão grande de água cair sobre a
Terra está na passagem do planeta pela atmosfera de um cometa:
This has been already explain’d in effect, in the hypotesis
hereto relating; where it was prove’d that a comet on that
very Day here nam’d pass’d by the Earth; and by
consequence began those rains which for the succeeding
forty days sapace continued without any interruption
(Whiston, 1696: 303).
Afinal, toda essa água não poderia vir apenas da evaporação dos rios,
lagos e oceanos. O autor propõe que a matéria da cauda, ou da
atmosfera, do cometa teria se combinado aos vapores terrestres quando o
cometa passou perto da Terra, horas antes do início do dilúvio. Então, os
vapores do cometa se teriam condensado na atmosfera terrestre o
precipitado em grande quantidade provocando as chuvas excepcionais
de quarenta dias que produziram a grande cheia destruidora da vida na
superfície terrestre. Whiston não poupa esforços em detalhar o máximo
que consegue os efeitos do dilúvio na conformação dos continentes e das
montanhas, buscando justificar os seus argumentos sobre o recomeço da
vida depois do fim das chuvas.
O argumento efetivamente não é bom do ponto de vista astronômico.
Mesmo na época de Whiston, se poderia saber a massa do cometa em
comparação à da Terra e apenas isso já seria suficiente para afastar essa
hipótese. Considerando o que se conhece hoje acerca desses objetos
celestes, a passagem da Terra nas proximidades da trajetória de um
cometa gera apenas uma chuva de estrelas cadentes que nada mais são
do que grãos de poeira que ficam ao longo do seu percurso e que
queimam por fricção, emitindo luz, quando entram na atmosfera.
A obra acessa outros diversos temas e aproveita para discutir também
uma diminuição no tempo de vida dos homens após o dilúvio. Ele
registra que a duração média da vida dos patriarcas antediluvianos seria
de oitocentos ou novecentos anos, e depois das chuvas ela teria se
reduzido progressivamente até os tempos médios atuais:
But besides, ‘tis to be consider’d which I take to be the
principal thing, that seeing the corrupted Atmosphere,
with the pernicious steams arising from the newly
acquir’d Chaotick Crust, or sediment of the waters, and
their unhappy effects on the fruits, as well as living
creatures upon the Earth, must be allow’d the occasion
and cause of the shorthing of humane life” (Whiston,
1696: 337).
A redução do tempo de vida seria imposta pela degeneração
provocada pela entrada da matéria caótica do cometa em toda a vida na
Terra, nos vegetais, animais e humanos. As partículas do cometa vindas
com a água acabariam se depositando nas encostas e no solo, passando
daí aos vegetais, animais e ao homem. Assim, a redução do tempo de
vida estaria associada aos malefícios produzidos pela matéria caótica do
cometa sobre os homens. Whiston prossegue explicando a conformação
do mundo depois do dilúvio e os variados efeitos da sedimentação sobre
as montanhas, cavernas, vales, mares etc. A exposição é interessante,
mas um pouco dissociada dos propósitos presentes.
Completando a sua nova teoria da Terra, Whiston avança uma curiosa
hipótese que veio a gerar controvérsia animada com astrônomos de toda
a Europa. Ele apresenta uma síntese antes da exposição completa do
argumento: “As the world once perish’d by water, so it must by fire at
the conclusion of its present state” (Whiston, 1696: 368). O raciocínio é
assemelhado a uma simetria que tira partido da oposição entre a água e o
fogo. Assim, a próxima destruição do mundo seria promovida
novamente pela ação de um cometa que provocaria a consumação de
todas as coisas por imensos incêndios por toda a Terra:
As we have given an account of the Universal Deluge
from the Approach of a Comet in its descent towards the
Sun; so Will it not be difficult to account for the general
conflagration from the like approach of a Comet in it
ascent from the Sun. For ‘tis evident from what has been
already explain’d, that in case a comet pass’d behind the
Earth, tho’ it were in its Descent, yet if it came near
enough, and were it self big enough, it wou’d so much
retard the Earth’s annual motion, and oblige it to revolve
in an ellipsis so near to the Sun in its perihelion, that the
Sun it self wou’d scorch and burn, dissolve and destroy it
in the most prodigious degree; and this combustion being
renew’d every Revolution, wou’d render the Earth a
perfect Chaos again, and change it from a planet to a
comet for ever after” (Whiston, 1696: 368).
A passagem do cometa na descendente da eclíptica em direção ao sol
teria gerado o dilúvio, e outra passagem na ascendente vindo do sol
queimaria toda a Terra e a faria passar à condição cometária, alterando
sua órbita e todos os seus movimentos. Agora, quase ao final de sua
obra, Whiston apresenta seu entendimento astronômico do Apocalipse,
sempre buscando afastar a crença astrológica e as interpretações das
grandes conjunções como causas dos acontecimentos maiores da
humanidade. De fato, ele seguia as teses mais comuns das confissões
reformadas quanto à Astrologia, expostas muito claramente no opúsculo
de Calvino contra a Judiciária62 (Calvino, 1549).
Mas o matemático também era pastor presbiteriano, como foi indicado
mais acima, e esta sua confissão, ao final do século XVII, mantinha sua
forte proximidade à doutrina calvinista, especialmente acerca do tema da
Providência Divina, tão caro a todos os cristãos desde os primeiros
séculos. De fato, Whiston não poderia, ou não conseguiria, assentar suas
conjecturas astronômicas sobre o Dilúvio e a consumação do mundo
sem apresentar alguma solução para a espinhosa questão do governo do
mundo por Deus:
Tho’ the passing by a Comet, and all those effects of it in
the drowning of the world, of which we have so largely
discours’d hitherto, be no to be stil’d in the common use
of the word Miraclulous; (tho’ in no very improper sense,
all such events may have that Appellation, of which
before) yet is there the greatest reason in the World to
attribute this mighty turn and catastrophe of nature, to the
Divine Providence, and the immediate, voluntary, actual,
interposition of God; and that in these ensuing particulars,
and on these following accounts; which I shall be the
shorter upon, as having in the place fore-mention’d
explain’d my mind somewhat largely about things of this
nature” (Whiston, 1696: 357).
De fato, Whiston se nega a tratar a passagem do cometa como um
milagre, ainda que a atribua à Divina Providência, por escolha voluntária
de Deus. A recusa em aceitar a ação divina como milagre encontra
fundamento na ideia bastante calvinista, e também presbiteriana, do
governo do mundo por Deus. Caracterizar os acontecimentos naturais
extraordinários como ação específica e intencional de Deus, um milagre
revertendo a ordem normal das coisas, realmente não se pode reconhecer
como tese aceitável para Calvino ou para teólogos calvinistas63.
Ocorre que o reformador de Genebra entendia a Providência Divina
com um sentido muito mais extenso do que os teólogos de outras
confissões costumavam fazer. Deus não enviaria o cometa naquele
momento em que houve o dilúvio como uma intervenção que se poderia
chamar de excepcional, porque a Providência governa absolutamente
tudo o que ocorre no mundo, o normal e o anormal: nada do que
acontece poderia ser excepcional. Para essa Teologia, não há nenhuma
intervenção divina extraordinária: tudo o que ocorre é feito da
Providência. No que respeita as relações com Deus, o mundo inteiro,
tudo, é governado por sua infinita sabedoria e poder. Aquilo que é
extraordinário e nos parece uma inversão do curso normal das coisas,
mais se deve à nossa ignorância e incapacidade de conhecer os desígnios
de Deus, que uma alteração real na ordem do mundo, um milagre ou
uma intervenção divina específica. Whiston segue de perto essa ideia,
conforme se pode ver na obra que analisa o pensamento do religioso
matemático (Force, 1985).
Assim, o problema fica deslocado do terreno dos fenômenos, dos
acontecimentos, para aquele do conhecimento. Ele sai da ontologia e se
desloca para a epistemologia.
Mas, ao contrário do que se poderia imaginar, Whiston não apresenta
seu raciocínio como uma verdade definitiva, ou como uma teoria
comprovada ou comprovável. Ele organiza seu livro indicando
problemas de interpretação bíblica diante da nova Astronomia
newtoniana, apontando hipóteses e apresentando o que acreditava serem
soluções prováveis para os problemas que analisou. Ele sabia
perfeitamente que suas afirmações não eram teoremas demonstrados, ou
conclusões apodícticas, conforme assume claramente no seu volume.
No entanto, isso não lhe impediu de avançar suas ideias e nem limitou
as vigorosas críticas que lhe foram feitas na Inglaterra e mesmo no
Continente. Afinal, um tema desses não tinha sido inaugurado por
Whiston, nem tão pouco suas referências filosóficas eram consensuais
no debate sobre essa matéria. Ele rebateu boa parte de seus
contestadores reafirmando o que dissera no seu primeiro livro,
publicando outras obras em sua defesa e reiterando suas posições64.
Afinal, tratava-se de um assunto central para si e tema fundamental de
seu entendimento do mundo. Em uma sua obra sobre a compatibilidade
das ciências matemáticas e os ditos bíblicos, publicada em 1717, o autor
reitera e desenvolve seus argumentos, elaborando uma síntese sobre essa
matéria:
But to wave farther preliminaries, some of the principal
reasons which make me believe the Jewish and Christian
revelations to be true, are these following.

I. The reveal’d religion of the jews and Christians lays the


Law of nature for its foundation; and all along supports
and assists natural religion; as every true revelation ought
to do.
II. Astronomy, and the rest of our certain mathematic
sciences, do confirm the accounts of scripture; so far as
they are concerne’d. (Whiston, 1717: 259).
Para ele, como para diversos outros filósofos da natureza, já se
colocava como uma urgência a apresentação de uma solução que
pudesse avançar na compatibilidade entre a narrativa bíblica e o
conhecimento astronômico. A antiga Astronomia geocêntrica, com sua
radical oposição entre a Terra e o céu, com esferas cristalinas carregando
planetas, seus epiciclos e deferentes, e sobretudo com seus cometas
atmosféricos já não conseguia mais sustentar suas teses diante das
observações telescópicas e das análises matemáticas do final do século
XVII. Por isso mesmo, as teses de outrora de pouco serviam para a
interpretação da criação e da consumação bíblicas.
Uma parte expressiva do problema, como é fácil perceber, estava na
exigência de considerar a narrativa de Moisés como algo que descrevia
verdadeiramente a criação do mundo e do homem, como se o dito das
águas se separando para dar lugar a Terra fosse parte efetiva, física, da
formação da casa comum dos homens. Mas essa ideia ainda demoraria
muito tempo para se dissolver, sobretudo entre os religiosos das
confissões reformadas. Os católicos adotaram majoritariamente uma
solução que lhes dava mais horizontes de compatibilidade: é preciso
interpretar os ditos bíblicos sobre a criação, considerando que a
linguagem adotada é simbólica e o escrito foi composto para a
compreensão comum dos homens.
A análise desse esforço de Whiston ajuda a compreender a extensão
das dificuldades que os novos astrônomos do século XVII enfrentaram
para ter suas teorias aceitas e debatidas. De fato, aquela era uma época
em que a Revelação sempre falava mais alto, mesmo entre os sábios. No
entanto, é importante registrar que essa característica não se apresentava
de forma alguma com algo retrógrado, voltado apenas para salvar o que
já não mais poderia ser salvo. Ao contrário, era algo que acompanhava
muito seriamente toda investigação do mundo natural. Aquele não era
um tempo em que o homem de ciência pudesse pensar em deixar Deus
do lado de fora de seu laboratório.
No entanto, no tempo de agora, quando a imagem do mundo já se
encontra largamente assentada em todos os recantos eruditos, o esforço
de Whiston mais se assemelha a uma operação de aproximação de um
tipo de interpretação literal da Bíblia aos enormes sucessos da ciência.
Como se a lógica do final do século XVII se apresentasse invertida,
trezentos anos depois.
O sucessor de Newton, visto pelos olhos do nosso século, se aproxima
daqueles que tentam localizar precisamente o ponto de atraque da Arca
de Noé, ou o ponto exato do Mar Vermelho em que o povo de Moisés
atravessou com seu povo, ou ainda a parte do mundo em que a Torre de
Babel foi edificada. Mas os séculos que nos separam de sua obra são
tantos argumentos que nos permitem ver a dissociação de seu trabalho
desses empenhos “arqueológicos”. Ao final do século XVII era
perfeitamente cabível esse esforço, na aurora do século XXI, isso soa
vão. E mais, se aproxima de uma ideia de que as sociedades não se
transformam, de que a moral não se transforma, de que as formas da
vida em comum não se transformam, como se os objetos físicos a que a
Bíblia faz referência e as metáforas que utiliza fossem testemunhos de
seu significado para os homens.
56 Já há algumas décadas o problema da interpretação na Época Renascentista e Barroca vem sendo
objeto de reflexão por parte dos estudiosos. Cf. (Canziani, Zarka 1993).
57 Cf. o volume de Newton publicado postumamente: Observations upon the prophecies of Daniel and
the Apocalypse of St. John. Os textos de Newton relativos a temas religiosos vêm despertando interesse
nos eruditos de tempos mais recentes.
58 Os estudos e as controvérsias sobre alguns desses casos exemplares são tão numerosos que
impossibilitam o exame integral de toda essa produção. Ademais, o entendimento dos casos de Galileu
Galilei e de Giordano Bruno, por exemplo, já estão de tal forma sedimentados que estudos inovadores
encontram embaraços para se viabilizar. O caso Galileu chegou a ser reavaliado pelo próprio Vaticano
nos anos oitenta do século passado por uma comissão instituída pelo Papa João Paulo II, revelando uma
surpreendente intenção de atualidade.
59 Em 1717, Whiston publicou o livro Astronomical Principles of Religion Natural and Reveal’d em
que expande os argumentos de sua obra de 1696.
60 É necessário ter em mente que grande parte do esforço de Isaac Newton na formulação de sua teoria
deu-se sobre as análises das trajetórias dos cometas Sua obra central, Philosophiae Naturalis Principia
Mathematica, dedica longas páginas à análise desses objetos celestes.
61 A Astrologia desfrutou de enorme prestígio nos séculos anteriores à Época Iluminista. Em
particular, a passagem de um cometa era percebida como grande alteração na ordem celeste e
anunciadora de importantes alterações na vida dos homens. Nos tempos anteriores a Whiston, difundiu-
se largamente uma teoria das grandes conjunções que postulava um reordenamento do mundo devido
ao alinhamento dos planetas e da Terra. Ambos os problemas foram objeto de inúmeras publicações ao
longo dos séculos XVI e XVII. Em particular, para o que interessa aqui, o tema da consumação do
mundo foi especialmente importante nas previsões para o ano de 1524 Cf. Zambelli, 1986.
62 Calvino publicou em Genebra um pequeno tratado questionando qualquer eficácia da Astrologia.
Para ele, os astros não podem autonomamente fazer nada no mundo, dada a extensão de sua ideia da
Providência. O texto de Calvino conheceu uma tradução inglesa em 1561 e certamente era conhecida
pelos insulares interessados na matéria.
63 A análise das teses de Calvino acerca do problema da Providência Divina é bastante numerosa. No
entanto, o exame direto do texto do reformador de Genebra ainda se apresenta como opção bastante
consistente cf. sua obra central: Institutio Christianae Religionis.
64 A título de exemplo, Whiston, 1698 e Whiston, 1700.
IV. Arqueologia Bíblica: a cultura
material como discurso fundamentalista
religioso cristão

Juliana B. Cavalcanti
I. De imediato, seguem as manchetes abaixo:
“Anel de 2.000 anos que pode ter sido de Pôncio Pilatos é
identificado. Artefato foi encontrado na década de 60,
mas só agora inscrições foram reveladas”
(Folha de São Paulo, 3 de Dezembro de 201865)
“Templo de 3 mil anos descoberto em Israel põe em
xeque textos da Bíblia. Segundo especialistas, edifício
religioso data da mesma época que o Templo de Salomão,
em Jerusalém, o único que podia ser usado pelos fiéis da
época, de acordo com o Livro Sagrado”
(Revista Galileu, 05 de Fevereiro de 202066)
Ambas as chamadas acima são bastante corriqueiras nos meios de
comunicação. Esse tipo de matéria quase sempre usa e abusa de um tom
sensacionalista com o intuito de tentar responder a seguinte
problemática: os textos bíblicos teriam veracidade histórica? Para isso a
descoberta arqueológica é colocada como decisiva para se apontar uma
solução.
Esse tipo de reportagem também revela a concepção que o senso
comum tem do que é a Arqueologia, ou melhor, de para que ela serve,
que é: a cultura material comprovando toda a documentação literária, em
especial com eventos ou personagens situados na Antiguidade67, como é
o caso do Cristianismo e do Judaísmo.
Essas ideias sobre o que se convencionou em chamar de Arqueologia
Bíblica também esbarram na história do campo, quando no transcurso do
século XIX e nas primeiras décadas do XX indivíduos de diferentes
países ocidentais, em sua maioria europeus, se lançaram a regiões do
Norte da África, Israel e Ásia Menor com o intuito de “localizar lugares
mencionados na Bíblia e mapear a geografia da região” (Clíne, 2009:
13).
Neste sentido, enquanto área a Arqueologia Bíblica foi gestada dentro
de um cenário de:
(i) Ambiente racionalista em que se enfatizava um forte ordenamento
da natureza e uma erudição bem organizada que aderisse a metodologias
bem definidas para testes e verificação;
(ii) Profundas críticas à religião e à infalibilidade bíblica e da Igreja,
haja vista que a Igreja, a religião e as definições convencionadas sobre a
vida foram agregadas como um dos novos objetos de análise dos
estudiosos. Até então esses elementos eram considerados como não
verificáveis. Isso propiciou, no momento de criação da disciplina, uma
nova forma de estudar a Bíblia, evidenciando por meio da cultura
material a comprovação de suas narrativas;
(iii) O Oriente como espaço de constante interesse do Ocidente por ser
o berço do Cristianismo. Isso nos permite traçar paralelos com as
Cruzadas, em que discursos e campanhas foram criados como pretexto
para a invasão dessas regiões, que estavam nas mãos dos “infiéis”68. Em
contexto de Modernidade, o principal meio de validação foi a pauta
científica que visava a localizar os sítios neo e veterotestamentários, ao
estudo do solo e seu potencial mineral, à investigação do modo de vida
da população local e à averiguação de novas rotas comerciais entre o
Ocidente e o Oriente (Silberman, 1982: 4-5).
II. Assim, podemos afirmar que as bases da Arqueologia Bíblica se
inserem dentro de um recorte específico: a Modernidade e a formação de
discursos fundamentalistas em defesa da fé cristã. Isso nos leva ainda à
necessidade de nos questionarmos e buscarmos compreender melhor
quais foram as intenções e os interesses desses exploradores e de seus
patrocinadores. Boas pistas nesse quesito nos foram dadas,
respectivamente, por William Frend (1996: 91) e Gabriela Rodrigues
(2001: 1):
Se a história da pesquisa arqueológica nos sítios cristãos
primitivos no Norte da África é exclusivamente uma
história da França e de ambições e estudos franceses, o
estudo de remanescentes similares na Ásia Menor foi
dividido por franceses, australianos e alemãs, bem como
franceses.
O contexto político de surgimento dessa disciplina
relaciona nacionalismo, imperialismo, colonialismo.
Trata-se de um período em que os recém-constituídos
Estados nacionais se aproveitaram das histórias de glória
dos Impérios do passado para constituir as suas próprias
memórias.
Como se percebe acima, ambos os autores nos atentam para uma
íntima relação estabelecida entre os Estados nacionais modernos e a
cultura material, isto é, o passado como elemento legitimador da
História daquela nação. Esse dado nos remete ao conceito de tradições
inventadas, que pode ser resumido da seguinte maneira (Hobsbawm,
2006 (1983): 9):
Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de
práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou
abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou
simbólica, visam inculcar certos valores e normas de
comportamento através da repetição, o que implica,
automaticamente; uma continuidade em relação ao
passado.
Assim, o conceito de tradição inventada nos permite vislumbrar os
usos da Arqueologia Bíblica no seu contexto de formação:
(a) O Oriente como o provedor de fontes culturais, religiosas e
linguísticas capazes de definir Ocidente “com sua imagem, ideia,
personalidade, experiência contrastantes” (Rodrigues, 2011: 6):
As primeiras intervenções arqueológicas foram realizadas por
teólogos, religiosos e engenheiros, primariamente, interessados em
localizar os ambientes mencionados na Bíblia e mapear a geografia da
região, como foi o caso do pastor americano Edward Robinson (1856:
31), que em diário de viagem comentou:
(…) Meu primeiro motivo fora a simples recompensa de
sentimentos pessoais. Como no caso da maioria dos meus
compatriotas, em especial, da Nova Inglaterra, as cenas da
Bíblia deixaram uma profunda impressão sobre minha
mente desde a mais tenra idade; e, depois, nos anos da
maturidade, a história da raça humana. De fato, em
nenhum país do mundo, talvez esteja mais amplamente
difundido tal sentimento do que na Nova Inglaterra. Em
nenhum país, são as Escrituras mais bem conhecidas ou
estimadas em maior grau. Desde os primeiros anos, a
criança de lá é acostumada não apenas a ler a Bíblia para
si; mas também ler ou ouvi-la nas preces matinais e
vespertinas da família, todos os dias na escola do
povoado, na escola dominical e na aula de Bíblia, e nos
ministérios semanais do templo. Donde, tão logo ela
cresça, os nomes Sinai, Jerusalém, Belém, a Terra
Prometida, vêm associados a suas mais tenras recordações
e seus sentimentos mais sagrados. Com tudo isso, no meu
caso, aí veio, em seguida, a se juntar um motivo
científico. Eu considerei por muito tempo a preparação de
uma obra de Geografia bíblica; e desejei satisfazer-me
com observações pessoais no tocante a diversos pontos
sobre os quais não pude encontrar nenhuma informação
nos livros dos viajantes.
Nesse sentido, eles tiveram um comportamento análogo aos
arqueólogos e cientistas sociais do século XIX, que escavaram
localidades italianas e gregas com textos clássicos com o intuito de
comparar os achados com a documentação literária, de forma a validar o
discurso textual e levando ao estabelecimento de Escolas de Arqueologia
na Europa Ocidental69. em outras palavras, a esperança desses
missionários era provar que Lucas, por exemplo, era tão histórico quanto
Homero.
Ao fazer tal operação, esses exploradores estariam garantindo a
“limpeza” dos remanescentes materiais e espaciais judaico-cristãos
deteriorados ou islamizados. Assim eles estariam retomando algo que
seria seu por direito cultural-religioso, uma vez que essas áreas
escavadas eram altamente islamizadas desde o projeto desastroso do
imperador Romano IV de expansão territorial para o leste na Armênia,
que levou à sua derrota decisiva frente aos turcos otomanos em
Manzikert. O resultado foi uma completa mudança da vida religiosa e
política, em que, gradualmente, entre os séculos XII e XIII, os otomanos
e seus aliados turco-otomanos seminômades assumiram localidades
anteriormente cristãs, penetrando como uma maré humana, isolando70 e
destruindo cidades e vilas cristãs outrora prósperas. Quando
Constantinopla caiu, em 1453, regiões como a Ásia Menor já haviam
passado do cristianismo para o islã.
Em outras palavras, todos os exploradores envolvidos em mapear as
áreas mencionadas na literatura neo e veterotestamentárias buscaram
encontrar mecanismos que validassem um remanescente material como
judaico ou cristão. No caso daqueles que escavaram a Palestina, o que se
observou foi uma preocupação em reconhecer os processos de mudança
fonética pelos quais os topônimos árabes modernos correspondentes
passaram. Em suas análises, eles incorporavam desde o estágio de
contato entre as duas línguas até a entrada, por empréstimo, “dos antigos
topônimos hebraicos na língua árabe antiga e, dessa última, por evolução
fonética, até a sua forma moderna” (Rodrigues, 2011: 34), sendo isto
peça-chave para a correta identificação, segundo eles, de cidades
bíblicas:
(…) Os nomes hebraicos dos lugares continuaram
correntes em sua forma arameia muito tempo depois do
período do Novo Testamento e se mantiveram na boca
das pessoas simples, a despeito do esforço feito por
gregos e romanos para suplantá-los por outros derivados
de suas próprias línguas. Depois da conquista maometana,
quando a língua arameia aos poucos deu lugar ao
aparentado árabe, os nomes próprios dos lugares, que os
gregos jamais conseguiram curvar à sua ortografia,
encontraram aqui uma rápida aceitação e, desde então,
continuam a viver sobre os lábios dos árabes, seja cristão
ou muçulmano, citadino ou beduíno, invariavelmente até
os nossos dias, quase na mesma forma em que também
nos foram transmitidos nas Escrituras hebraicas.
(Robinson and Smith, 1856: 255)
De forma similar atuaram os exploradores voltados para os
remanescentes materiais do cristianismo antigo. Trabalhos como
Historical Geography of Asia Minor (1890), de W. M. Ramsay,
enfatizaram a necessidade de conhecer o contexto de avanço e de
declínio das instituições do império bizantino para poder “polir” a
gradual islamização da Ásia Menor entre os séculos XII e XIII. Com
isso, seria possível acessar o que seria “puramente” grego e estabelecer
paralelos culturais, linguísticos e imagéticos com o “sistema de vida
cristão” medieval, que seria um perpetuador do modelo cristão
primitivo.
Cabe ainda ressaltar o aspecto missionário desses religiosos
(pincipalmente protestantes), como foi o caso das instituições inglesas
Church Missionary Society (CMS)71 e a London Jews Society72, que
também enviaram diversos missionários para a Palestina, Norte da
África e Ásia Menor com o intuito de promover a salvação e o retorno
dos povos no interior das regiões otomanas à educação, à religião (como
foi o caso dos cristãos coptas) e aos costumes ocidentais. Por suas
práticas, ambas as instituições incomodaram bastante as autoridades
locais e o Vaticano; a primeira ao distribuir a mulçumanos Bíblias
traduzidas, e a segunda por ter fomentado a conversão de judeus ao
cristianismo como mecanismo de restauração da Palestina e a
“promoção do bem-estar espiritual dos judeus” (Frey, 1851: 2, Apud
Smith, 1981: 276).
Neste sentido, elas se inserem dentro de um quadro maior em que
grupos cristãos protestantes, sobretudo os imersos em um discurso
milenarista, acreditavam que regiões como Jerusalém deveriam estar
preparadas para o retorno do messias (Silberman, 1982: 30):
Nos anos seguintes, o número de viajantes cresceu
consideravelmente, mas esse ímpeto exploratório não era
mais o carro-chefe. Missionários protestantes,
preocupados com a situação dos cristãos na Terra Santa,
promoveram a maioria das viagens do período. No fim do
século XVIII, havia, entre alguns protestantes, uma crença
de que o fim do mundo se aproximava. O lançamento do
livro The Signs of the Times, do clérigo anglicano James
Bicheno, em 1792, teria acentuado as preocupações
milenaristas, e a Terra Santa, palco central do
Armagedom, deveria estar preparada para a volta de Jesus
Cristo (1982: 28-30). A onda de exploração que se seguiu
à invasão de Napoleão à Palestina mostrou claramente o
quanto permanecia por ser feito lá, se a Jerusalém Celeste
houvesse, de fato, de se manifestar dentro do curso da
existência atual. Os relatos dos primeiros exploradores
confirmaram cada detalhe da pobreza, da opressão e das
garras aparentemente intratáveis da ignorância que
recaíam sobre toda a população do país. Não apenas os
muçulmanos “fanáticos” e os judeus “cabeças-dura”
teriam de ser convertidos, mas também os cristãos locais,
amarrados aos ensinamentos dogmáticos das Igrejas
católica e ortodoxa.
(b) O assenhoreamento do passado por nações, principalmente,
europeias:
Em 1865 foi criado o Fundo de Exploração da Palestina (FEP), com
sede em Londres, logo após a conclusão do Ordnance Survey of
Jerusalem. Tinha como objetivo a exploração e o registro das
características da topografia e etnografia da Palestina Otomana, o que
levou ao projeto Survey of Palestine, que tinha como missão pesquisas
expedicionárias e coleta de informações militares. A equipe era
composta por engenheiros reais (provenientes do Gabinete de Guerra do
governo britânico) e seus integrantes tinham obrigação de enviar
relatórios quanto à necessidade de recuperação e modernização da
região.
Mais claramente, as pesquisas financiadas pelo FEP pretendiam
mapear a geografia de toda a Palestina, pois como declarou o arcebispo
de York na reunião inaugural do fundo em 1865: “Este país da Palestina
pertence a você e a mim, é essencialmente nosso. (...) Queremos
caminhar pela Palestina, em toda a extensão, porque essa terra nos foi
dada.” Além disso, o arcebispo utilizou como justificativa e explicações
para o FEP o seguinte argumento: “Se você realmente quer entender a
Bíblia, você deve também entender o país em que a Bíblia foi escrita
pela primeira vez”.
De igual forma foi o patrocínio feito pelo também fundo britânico
Asia Minor Exploration Fund (“Fundo de Exploração da Ásia
Menor”), as pesquisas de W. M. Ramsay. A ideia de Ramsay era tecer
um trabalho detalhado de remanescentes materiais e reconhecimento
geográfico no terreno do império otomano, principalmente depois do
Tratado de Berlim73 (1878), com o intuito de entender a personagem
Paulo e a missão da igreja primitiva. Seus resultados tiveram profundo
impacto sobre católicos e protestantes de toda a Europa, levando à
construção e consolidação de uma leitura universal cristã sustentada até
1894, quando se instaurou uma acalorada disputa entre católicos
franceses e protestantes alemães quanto à igreja de Roma e aos aspectos
“pagãos” encontrados nas epígrafes descobertas por Ramsay.
O fato é que as motivações de ambos os fundos britânicos ao
patrocinar exploradores e pesquisadores para áreas de domínio otomano
evidenciam um breve resumo do aspecto religioso das intenções dos
britânicos (Cline, 2009: 15-16).
(c) A cultura material como instrumento do discurso colonialista por
parte de nações ocidentais para obtenção e permanência de ocupação de
territórios do Oriente74:
Contudo, não podemos nos limitar aos aspectos religioso e
nacionalista dos incentivos realizados, sobretudo, por fundos europeus,
haja vista as crescentes disputas por território entre a Grã-Bretanha e a
França em contexto de estágio inicial de colapso do Império Otomano.
Isto é, motivações geopolíticas levaram os britânicos a criarem caminhos
por meio da exploração da Palestina a fim de obter uma vantagem
geográfica75 sobre a França, que também enviou para a região em 1867 o
epigrafista Charles Clermont-Ganneau, que diferentemente dos
americanos e britânicos estava mais interessado nos escritos antigos do
que em arquitetura ou geografia.
Outro aspecto que deve ser observado é como as nações europeias
formaram coligações com as autoridades locais como mecanismo de
garantir e expandir suas fronteiras. Esse foi o caso das viagens do pastor
americano Robinson, que beneficiaram a presença egípcia na Palestina e
as reformas proclamadas pelo governo otomano em 1839, as chamadas
Tanzimat. Em 1841, os Impérios Britânico e Austríaco ofereceram
ajuda militar, o que permitiu a vitória otomana sobre Mohammed Ali e a
reconquista do território Palestino. Em troca, aproveitaram para estender
seu poder no Oriente Próximo e ameaçar a França, ligada ao Egito, na
disputa pelo Canal de Suez (Silberman, 1982: 46).
Como resposta a pressões internas e externas foram mantidas, durante
o Tanzimat, as medidas egípcias em prol das igualdades legal e social
(incluindo não muçulmanos). Apesar de isso não ter implicado no fim
dos impostos estatais para cristãos e judeus, houve nesse mesmo
contexto a nomeação de cônsules europeus em Jerusalém e uma rápida
expansão de seus poderes. Eles eram tão influentes quanto um paxá
(governador de província otomana), detendo direitos legais e
administrativos sob a sua jurisdição. Nesse sentido, esses cônsules eram
mais poderosos que os europeus instalados nos portos de Jaffa e Haifa,
que estavam limitados a questões comerciais.
O primeiro consulado foi o britânico, em 1838, e depois dele
rapidamente surgiram representantes da Prússia, França, Estados
Unidos, Áustria, Rússia, Itália, Espanha, Grécia e Pérsia. A presença
desses países e a crescente disputa entre eles resultaram em profundas
modificações nas estruturas políticas, sociais e econômicas do Império
Otomano, acelerando o processo de perda de seus territórios.
Tais reduções são tão expressivas que ao compararmos as perdas
ocorridas entre os anos de 1807 e 1829 e as estabelecidas na década
1830 o que se consta é que as reduções mais do que dobraram, alterando
assim significativamente o quadro geopolítico e inclusive ampliando as
áreas limítrofes do continente europeu. Este foi o caso da Tessália, que
passou a pertencer à Grécia em 1881 após longas negociações.
A partir disso, britânicos e alemães começaram a intervir a favor dos
protestantes e dos judeus palestinos. Os russos, por sua vez, pelos gregos
e os árabes ortodoxos, que reivindicaram as possessões da Igreja
Ortodoxa local. Por fim, os franceses, principalmente, pela Igreja
Católica. Com o Tratado de Berlim os franceses foram oficialmente
nomeados “protetores” da Igreja Católica Romana na Palestina.76 Cabe
aqui acrescentar que, embora Jerusalém não fosse uma área importante
para o governo otomano, essa cidade se viu como o centro de interesses
europeus e foi por excelência o palco das transformações.
Neste sentido, nos parece ser possível afirmar que a força motriz da
Arqueologia Bíblica era a “fé religiosa” (Rodrigues, 2017: 97), uma vez
que o passado, inventado, recriado e adaptado, foi empregado como
discurso legitimador dos elementos que compunham os Estados-Nação
ocidentais: a democracia e o Cristianismo. Em outras palavras, “se
Grécia e Roma antigas foram escolhidas como as raízes clássicas da
civilização ocidental, a Palestina, ou melhor a “Terra Santa” tornou-se a
fonte espiritual” (Rodrigues, 2017: 100).
Exposto isso, nos voltaremos agora para um estudo de caso: a
descoberta da cidade de Dura-Europos (e nela da primeira casa-igreja)
na década de 1920. Nosso intuito, mais claramente, será observar de que
maneira as expedições, a literatura produzida e as ações do governo
francês sobre o território sírio configuram claros exemplos dos usos da
Arqueologia Bíblica, descritos anteriormente. Em outras palavras, nossa
preocupação a seguir será de demonstrar como Dura-Europos pode
servir de modelo para se perceber que na gênese da Arqueologia Bíblica
ocorreu um forte vínculo com um ambiente religioso, empresarial e
político imperialista, ou como colocou Gabriela Rodrigues (2011: 7),
nosso objetivo será:
(...) explorar o contexto de diversidade de interesses em
que a disciplina foi se constituindo, motivada ora por
potências imperiais buscando tesouros, grupos religiosos
esforçando-se para comprovar materialmente a Bíblia, ao
mesmo tempo em que promoviam a evangelização de
“pagãos”, céticos tentando promover a laicização da
disciplina, grupos políticos procurando justificar seu
direito à terra.
III. Dura-Europos, a cidade-forte romana, foi descoberta em 1920 por
uma companhia militar britânica que encontrou uma parede com um
afresco (mais tarde conhecido como o templo “dos deuses de Palmira”)
enquanto marchava para a sede em Abou Kemal. A assistência
arqueológica foi rapidamente solicitada pelos militares e o arqueólogo
americano James Henry Breasted (orientalista da Universidade de
Chicago) foi designado para lá. Em cinco dias, em conjunto com os
militares, ele escavou o afresco de Konon e identificou as ruínas como
as de Dura a partir de uma outra pintura. A escavação, ainda que curta,
rendeu uma publicação em que Breasted comparou o estilo das pinturas
descobertas com dois mosaicos da Basílica de San Vitale, em Ravenna,
considerados grandes ilustrativos do estilo bizantino na época de
Justiniano. Mais claramente, por meio do rigor da frontalidade das
figuras, vestuários estilizados, olhos fixos e ornamentos luxuosos,
Breasted chegou à conclusão que Dura seria um primeiro elo entre a arte
helenístico-romana do Oriente Antigo e a arte bizantina do sexto século
(Hopkins, 1979: 3-4; Kaizer, 2016: 2).
Após o sucesso da obra, a Académie des Inscriptions et Belles-Lettres
organizou uma expedição entre os anos de 1922 e 1923 para Dura77 sob
a supervisão científica de Franz Cummont, contando com destacamento
militar francês e membros da própria academia de inscrições. O objetivo
era explorar, copiar e relatar as pinturas surpreendentes encontradas pela
primeira vez pelas tropas britânicas. Em suas duas curtas temporadas
trabalhando com tropas do exército, Cummont completou o trabalho no
templo dos deuses de Palmira (o edifício que continha as pinturas).
Além disso, ele escavou uma torre adjacente que fazia parte do muro da
cidade, alguns túmulos, revelou um templo dedicado a Zeus Theos no
meio da cidade e explorou um edifício fortificado com traços
helenísticos. Em 1926 Franz Cummont publicou os resultados da
escavação no livro Fouilles de Doura-Europos (Hopkins, 1979: 17-22).
Com o fim da Revolta de 1925 e 192678 foram retomadas as
expedições, mas em parceria entre franceses e americanos, mais
especificamente entre a Universidade de Yale e a Academia Francesa.
Foram realizadas oito campanhas entre os anos de 1928 e 1937.
Em todas as expedições boa parte da equipe era composta por
beduínos e armênios livres, que aparecem em muitas das fotografias de
campo (Figuras 1 e 2).

Figura 1: Homem de pé na entrada do bloco B2, 1932-1933, sexta temporada.


Figura 2: Homem de pé dentro do Arco de Trajano, fora das muralhas da cidade de Dura, 1930-1931,
quarta sessão.
Olhando atentamente as fotografias é perceptível o choque entre
culturas e o colonialismo reforçado pela postura do Mandato Francês,
que buscou uma construção particular da vida diária romana, tais como:
a criação do Instituto Francês de Investigação e da Direção Geral de
Antiguidades, o lançamento da Revista Síria, a realização de eventos
científicos e exposições (entre elas a exposição sobre a Síria no Louvre,
em 1923), incluindo a primeira conferência mundial sobre arqueologia
síria realizada em 1926. Além disso, as instituições anteriormente
citadas foram decisivas para a emissão de decretos para a partilha de
cultura material descoberta entre as várias missões e previam ainda o
nascimento do Museu Nacional de Damasco. Este último foi aberto com
um foco especial no período clássico, enquanto itens pré-clássicos foram
colocados no Museu de Aleppo (Baird, 2011: 430-431).
Neste sentido, as ações do domínio francês em conjunto com os
registros (imagéticos e textuais) dos exploradores geravam uma
reinvenção, um estranhamento e mesmo um controle sobre o passado,
pois: (a) os remanescentes romanos e gregos se tornavam o passado por
excelência da Síria; (b) o reforço cultural e a consequente oposição entre
o que seria tipicamente “Ocidental” e “Oriental” justificavam o resgate
dos elementos ocidentais em ambiente orientalizado; e (c) as fotografias,
ao apresentarem a população local inserida na paisagem explorada,
tornavam ambas como objeto de estudo, conhecimento e controle
colonial europeu. Em outras palavras, podemos afirmar que (Baird,
2011: 432):
Na Síria, como no norte da África, os franceses haviam se
encontrado numa região onde as fronteiras antigas e
modernas eram as mesmas. Ao tirar fotografias
arqueológicas com pessoas nelas, a Arqueologia tornou-se
um método de viajar no tempo nesses períodos. Como
Trachtenberg escreveu sobre fotografias da Guerra Civil
Americana, essas imagens se tornaram “o equivalente a
ter estado lá”. As escavadoras, colocando pessoas que
equiparavam com os antigos no quadro, podiam ir para
aquele passado, que foi feito para olhar como se estivesse
na cúspide do desaparecimento. Isso fez do “verdadeiro”
passado da Síria algo possuído pelo estrangeiro, o
arqueólogo. Mas, como com toda a recriação histórica:
quanto mais autêntico ela tenta ser, mais reflete a situação
contemporânea.
Dentro desse contexto, a descoberta da mais antiga casa-igreja foi
recebida com bastante euforia, pois com esse remanescente material
Dura-Europos se consagrava como um excelente modelo das bases
culturais e religiosas da civilização ocidental. Boas evidências quanto a
relevância desse achado se encontra no artigo produzido pelo historiador
classicista americano C. Bradfort Welles79, publicado em 1959 e
intitulado “The Hellenism of Dura-Europos”. Abaixo segue um trecho
que selecionamos do texto (Welles, 1959: 24):
Mais importante ainda, Dura-Europos preservou para a
posteridade a imagem de um assentamento selêucida do
interior. Não uma grande cidade como
a Seleucia no Tigris, mas uma cidade de guarnição,
essencial para administração e vida econômica. Tal como
deve ter existido em números consideráveis
nos satrapias superiores. Esta é a maneira pela qual
Dura pagou sua dívida com seu patrono real. Esta é a
importância de Dura para estudantes modernos do
helenismo. Era helenística, não helênica, e sua
contribuição para o grande o desenvolvimento cultural da
Antiguidade não era grande. Podemos considerar a
conquista helênica como a maior, mas se isso for por
meio da razão e de nosso gosto. É o helenismo que nos
deu nossa religião e era no mundo helenístico do Oriente
em que o grego conhecia o semítico e o iraniano. Ali que
foi a fonte do nosso cristianismo, não o Egito ou o litoral
do Mediterrâneo. Precisamos saber tudo que possamos
sobre o reino dos selêucidas, sobre as fortunas do
helenismo na Síria, na Mesopotâmia e no planalto
iraniano e é aqui que Dura entra como nosso único
fornecedor generoso. Dura era pequena e pobre, mas tal
como a viúva da parábola, mesmo na pobreza nos deu
tudo o que tinha.
Nesse texto, C. Bradfort Welles sistematizou suas principais ideias e
conclusões sobre Dura. Ele foi e ainda hoje é o principal autor quando se
pensa em população ou mesmo diversidade na pequena cidade-forte. A
escolha se deve pelas seguintes razões:
(1) Charles Bradford Welles foi um classicista e fez parte da equipe
arqueológica que esteve em sítio durante as intervenções franco-
estadunidenses. O mesmo foi um dos editores responsáveis pela
produção de uma série de volumes de literatura primária sobre a cidade-
forte (relatórios preliminares e o relatório final sobre papiros) e
secundária (artigos e capítulos publicados entre as décadas de 1940 e
1950), corroborando assim para um determinado olhar que ainda, em
muitos aspectos, se perpetua em publicações recentes sobre Dura.

(2) Welles identificou Dura dentro do seu contexto histórico (ou de


atividade como forte desde o período selêucida até o romano) como uma
cidade “pequena e pobre” ou como inexpressiva. Fez de igual forma
quando, em outro momento do mesmo artigo, afirmou: “apesar de
qualquer significado regional, Dura não era uma cidade importante na
Antiguidade. Como pode ser visto a partir de sua ausência quase
completa de fontes escritas contemporâneas fora do próprio sítio”
(Welles, 1959: 28).
No entanto, Dura no momento da redescoberta passou a ser
considerada como a Pompéia do deserto, parafraseando M. Rostovtzeff.
A razão para isso se deveu a descoberta da casa-igreja, o que segundo C.
Welles tornou a cidade uma referência mister para se estudar o
cristianismo, a tal ponto que Welles comparou Dura com uma
parábola neotestamentária: “(...) mas como a viúva da parábola, mesmo
na pobreza nos deu tudo o que tinha”.
O dado material da presença cristã na cidade foi tão impactante que
ela pode ser percebida na literatura produzida sobre Dura. A começar
por ser uma das poucas experiências religiosas que recebeu um olhar
mais cuidadoso. Em conjunto com a sinagoga foram as únicas a
receberem relatórios finais para abordarem em pormenores sobre o
espaço religioso. Além disso, é perceptível o tema da igreja de
Dura entre intelectuais interessados nos cristianismos do século I-IV EC,
sendo apontada como a primeira evidência material
das ἐκκλησία comentadas nas epístolas paulinas (Cavalcanti, 2016;
White, 1991).
(3) A fala de C. B. Welles revela as primeiras motivações para a
escavação do sítio: “Esta é a maneira pela qual Dura pagou sua dívida
com seu patrono real. Esta é a importância de Dura para estudantes
modernos do helenismo. Era helenística, não helênica (...)”, sinalizando
e inserindo, assim, as escavações de Dura-Europos com o momento
histórico em que intelectuais, militares e empresários ocidentais estavam
com os olhos voltados para o Oriente em busca de remanescentes gregos
(um dos basilares ocidentais), combustíveis fósseis e outras formas de
riqueza, bem como o reconhecimento geográfico para perpetuação do
imperialismo sobre essas áreas, como transparecem arqueólogos como
Clark Hopkins, que em seu diário de campo relatou as dificuldades
enfrentadas para se obter financiamento para dar continuidade as
escavações durante o período da Grande Depressão (Hopkins, 1979:
121):
Confesso que sentimos uma necessidade urgente de
descobrir descobertas impressionantes naquele período da
Grande Depressão. Mesmo o entusiasmo de Rostovtzeff e
a elucidação ansiosa do novo edifício cristão em Dura
encontraram-se com reações decepcionantes entre os
estudiosos clássicos. Estes estavam mais preocupados
com a Grécia e a Roma do que com o cristianismo
primitivo e com apenas uma resposta moderada dos
caciques americanos, mais interessados na interpretação
moderna da Bíblia do que nas antigas representações
bíblicas e antigos achados. A descoberta de uma casa
dedicada ao culto cristão no período anterior a
Constantino, admitiram, era esplêndida e incomum - sim,
até mesmo única. Mas parou por aí.
Além disso, é importante ressaltar a distinção apresentada pelo autor
sobre a cidade: ser “helenística” e não “helênica”. A razão para isso
aparece nas páginas seguintes, quando Welles define o impacto da
presença romana sobre Dura-Europos (Welles, 1959: 25):
Dura foi reconstituída como um município romano e
colônia com uma cúria, mas os βουλευταί (senadores) têm
nomes romanos, iranianos ou semíticos de um novo tipo.
A antiga população de Dura sobreviveu em parte, mas foi
em grande parte inundada pelos recém-chegados do oeste.
O que isso fez com o helenismo de Dura? Entre os
remendos e papiros encontrados na cidade há vários
fragmentos literários. Exceto pelo escritor
cristão Taciano, os únicos autores que foram identificados
foram Heródoto e Apiano, e nada parece ser métrico. Eles
são a evidência para o helenismo de Dura, mas muitos
pertencem certamente ao terceiro século. Além disso, não
há como provar que foram escritos na cidade ou terem
estado na cidade antes da ocupação romana. Apenas um
pergaminho em grande parte ilegível que parece um
glossário foi certamente produzido na cidade por volta do
ano 100 EC. Este pode ter sido um livro escolar. Os
pergaminhos e papiros fornecem evidências de dois tipos
e que é relevante para o nosso propósito. Um é gramatical
e o outro paleográfico.
A partir da citação acima o que se constata é que a população de
Dura-Europos, que era de base grega, foi profundamente afetada com o
domínio romano. Ao se tornar uma colônia romana apenas parte da
comunidade primária teria sobrevivido, sendo possível mapeá-la por
alguns remanescentes textuais. Com isso, percebe-se que o autor não
trabalhou com a possibilidade de uma romanização, uma vez que o
padrão cultural continuou, para ele, sendo grego e os romanos não foram
capazes de se impor, optando por se “misturar” com os outros povos.
Isso fica ainda mais evidente em seu clássico artigo “The Population
of Dura-Europos” (1951). Mais especificamente, Welles propôs que em
Dura-Europos houve uma continuidade da administração cívica e da
classe dominante da era selêucida. A base argumentativa dele se
encontrava no estudo de nomes utilizados no último século de existência
de Dura. A partir disso, ele formulou uma estrutura social pautada numa
aristocracia com cidadania grega (tenaz e capaz de tornar a cultura grega
prevalecente), contrastada pelos “nativos” (indivíduos que portavam
nomes irarianos ou semíticos). Haveria ainda uma população étnica e
grega chamada Europaioi que desapareceu nas últimas décadas de
existência da cidade.
C. Welles chamou de onomástica o que ele pensava serem “grupos
raciais (races)80 na cidade nos primeiros e segundos séculos de nossa
era” (1951: 255). Aqueles com nomes aramaicos, ele assumiu como
sendo os “nativos” que se contrastavam com a elite greco-macedônia.
Aqueles com nomes “celíacos” e aramaicos misturados eram “meias
raças” e os indivíduos que tinham nomes tanto gregos como semíticos,
como em PDura 19, foram apontados como casos excepcionais.
Além disso, ele defendeu que graças a esse redutivo perfil linguístico
e onomástico diversificado para vários grupos limitados a categoria
racial dentro da cidade, que no período romano a cidade tornou-se “uma
mistura contendo alguns iranianos, gregos e latinos, mas muitos
elementos semíticos” (Welles, 1951: 270).
Os nomes dos militares romanos também fazem parte de suas
observações. Para Welles os nomes estavam tão misturados que a
“raça”, no sentido da nomenclatura, estava perdida. A partir disso, ele
chegou à seguinte conclusão (Welles, 1951: 274):
(...) num curto espaço de meio século de toda a tragédia
do império romano, que, ao tentar combinar a civilização
com a segurança, acabou conseguindo perder as duas
coisas. A perda lendária de uma classe dominante grega
talvez imaginada em Dura foi assimilada a uma perda de
civilização, e os fragmentos do helênico permaneceram
patéticos.
A tese de C. Welles nos parece muito problemática, primeiramente, por
adotar o conceito de “raça”, que é próprio de um ambiente colonialista e
reforçado ao longo da Segunda Guerra Mundial. Em segundo lugar, por
dialogar com uma percepção ocidental, que aparece no século XIX, sobre os
pilares do espaço urbano:
(i) A conceituação de Droysen para helenismo:
Em 1833 Droysen publicou o livro “Alexandre, o Grande”
(Geschichte Alexanders des Grossen). A obra é fruto de um contexto
em que diferentes nações europeias viam os helenos como uma classe
superior em termos culturais, o que talvez justifique a fala do autor
prussiano sobre as campanhas macedônicas (Droysen, 2010 (1833)):
Esclarecer esses povos, ajudá-los a quebrar as cadeias da
superstição, despertar neles o desejo da inteligência,
habituá-los ao manejo das ideais, em suma, emancipá-los
e conferir-lhes uma identidade histórica – tal é tarefa que
o helenismo determinou para si na Ásia e, aliás, terminou
por cumprir (...).
(Droysen. Alexandre, o Grande, 2010 (1833)).
O passo acima deixa claro uma leitura marcadamente imperialista de
Alexandre para com os povos orientais, traçando nesse sentido uma
virada conceitual na definição de helenismo. Se antes o conceito se
restringia a “pertencer a cultura grega” ou “para falar da Grécia”, com
Droysen a figura de Alexandre se torna central. Pois é a partir dele que
se dá “a amalgamação das culturas do Ocidente e do Oriente Médio sob
os auspícios da educação grega durante o reinado de Alexandre e o
início do cristianismo” (Koester, 2012 (1995): 43).
Dessa forma, por meio de Alexandre se iniciava um processo de
unificação fruto de um “progresso” que estava permeado de elementos
civilizatórios, do racionalismo e da autonomia democrática, mas também
intimamente ligado a dimensão de providência ou do cumprimento dos
desígnios divinos.
(ii) A obra “A cidade antiga” de Fustel de Coulanges, publicada em
1864.81
É importante deixar claro que não se trata de um estudo sobre cidade
antiga, mas sobre cidade-estado. Esse ponto é importante ser
evidenciado, pois a pólis ou a città englobavam o espaço urbano (ásty) e
o meio rural (chorá, ville), elementos que não se fazem presentes na
obra de Fustel. Ele se dedicou as origens da propriedade privada, do
Estado e as “revoluções” dentro de um Estado antigo. Sua tese central
estava calçada no tripé família, religião e propriedade, que depois era
transportado para uma unidade de parentesco maior, a gens. Por fim,
para o Estado mais primitivo, como é possível perceber abaixo
(Coulanges, 2006 (1864): 84):
Há três coisas, que desde os tempos mais antigos,
encontramos consolidadas e estabelecidas nessas
sociedades gregas e italianas: a religião doméstica, a
família e o direito de propriedade - três coisas que tinham
no começo uma relação manifesta e parecem ter sido
inseparáveis. A propriedade privada existia na própria
religião. Toda família tinha seu lar e seus antepassados.
Esses deuses só podiam ser adorados pela família e só
protegiam a ela, era sua propriedade.
Para Fustel a rede família-gens-Estado era claramente uma sucessão
histórica e que estava diretamente ligada as suas inclinações políticas,
religiosas e sociais: a crença no arianismo. Tal elemento é tão latente em
sua escrita que fez com que M. Finley (2003 (1981): 10) afirmasse que
“a cidade antiga é uma ilusão, em sua maior parte, visto que Fustel
sustentava estar revelando um padrão de evolução ariano único”. A base
para isso estava em evidenciar as origens do Cristianismo. Para ele as
bases dessa religião estavam na santificação de tumbas de ancestrais e a
crença de que a alma dos ancestrais poderia ter vida eterna, como é
possível ver abaixo (Coulanges, 2006 (1864): 20):
Essa religião dos mortos parece ter sido a mais antiga que
existiu, antes de adorarem Indra ou Zeus, homem adorou
seus mortos, pela primeira vez o homem teve a ideia do
sobrenatural, acreditou em coisas que transcendiam,
talvez a morte foi seu primeiro grande mistério e elevou
seu pensamento do visível ao invisível, do humano ao
divino.
Mais do que tecer um processo evolutivo do politeísmo para o
Cristianismo, o autor francês ponderou que a morte era o fio condutor da
relação entre religião e propriedade privada. A sustentação de sua
hipótese estava centrada na apresentação de casos em que o sacerdote do
culto era justamente o pater famílias, exercendo assim uma dupla
função na sociedade. A partir desse compartilhamento de cargos se
estabelecia a questão dos bens, do parentesco e claro do Estado, pois
fora dessas atividades poderia se agregar uma terceira: o rei.
IV. Com base nisso, podemos afirmar que o ambiente de descoberta e
as primeiras expedições e produções sobre Dura-Europos se revelam
como belíssimos exemplos de como a Arqueologia Bíblica funcionou
como um elemento central de análise na construção do “outro oriental”
justificado pelo “desenvolvimento científico pós-Iluminismo”, dado que
verificou-se a atuação conjunta de militares, empresários, políticos,
religiosos e acadêmicos com o intuito de mapear e estudar o território
sírio, tornando Dura, após a sua redescoberta, parte de um discurso
colonialista franco-americano. Para isso foram decisivos os
remanescentes materiais de base grega e romana que atrelavam Dura as
bases fundantes do ocidente, tendo a casa-igreja como o ponto religioso
para reforçar esse aspecto, ou como colocou G. Rodrigues (2011: 6):
As ciências ajudaram a definir o europeu como o ápice do
desenvolvimento evolutivo e os outros povos, menos
avançados tecnologicamente, os “bárbaros” ou
“selvagens”, como seu contraponto. A diversidade era
compreendida como inferioridade, logo, estava dado o
pretexto cultural para o imperialismo e para o
colonialismo.
Além disso, deve-se reforçar que o que transcorreu em Dura-Europos
e em outras cidades da Ásia Menor, do Norte da África e da Palestina no
contexto de formação da Arqueologia Bíblica foi resultado de um forte
posicionamento religioso de base fundamentalista em defesa da
veracidade da Bíblia, colocada a prova com a Modernidade. Assim, por
vezes, os relatórios e demais produções realizadas nesse ambiente
devem ser lidos com cautela pelos cientistas sociais. Tais cuidados
talvez expliquem as razões que levaram muitos intelectuais a sugerirem
as expressões Arqueologia do Oriente Próximo e Arqueologia do
Cristianismo Primitivo, com o intuito de propor: (i) uma distinção com a
Arqueologia produzida no século XIX e primeiras décadas do XX,
trabalhada aqui, e (ii) evidenciar que a Arqueologia enquanto ciência
detém suas teorias e métodos, sendo contrária a movimentos ou
concepções que ainda hoje insistem em enxergar a Arqueologia como
uma ferramenta de comprovação de textos, discursos e pautas militantes
e conversadoras.
65*Agradeço a leitura e contribuições de Luiz Felipe Menezes, Mariana Gino, Mariana Pernambuco e
Marcelo Feijó.
Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2018/12/anel-de-2000-anos-que-pode-ter-sido-de-poncio-
pilatos-e-identificado.shtml. Acessado em: 01/04/2020.
66 Disponível em:
https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Arqueologia/noticia/2020/02/templo-3-mil-anos-descoberto-
em-israel-poe-em-xeque-textos-da-biblia.html. Acessado em: 01/04/2020.
67 Para uma discussão detalhada quanto à relação entre História e Arqueologia, ver: Finley, 1989 e
Meneses, 1998.
68 Com o fim das Cruzadas as regiões bíblicas, em especial a Palestina, caíram no esquecimento.
Apenas com a Batalha do Acre (1799) que o interesse por essas áreas foi reaquecido, com a justificativa
de que elas eram muito familiares, mas pouco conhecidas por serem controladas pelo Império Turco-
Otomano (Silberman, 1982: 4).
69 Pincipalmente após as descobertas de Schliemann no local de Tróia, em 1871, estimularem o apetite
por aventura e descoberta.
70 Como no Norte da África e na Síria, em que a chegada de islâmicos resultou no abandono e na
formação de vastas áreas em ruínas, haja vista que eles optaram por se instalar em localidades
adjacentes, mas separadas da população cristã remanescente.
71 Fundada em 1799, a CMS foi uma sociedade britânica composta por cristãos da Comunhão
Anglicana, principalmente, e outras denominações protestantes. A ideia original da missão veio de
Charles Grant e George Uday, da Companhia das Índias Orientais, e do reverendo David Brown, de
Calcutá. Eles enviaram uma proposta em 1787 a William Wilberforce, então jovem membro do
parlamento, e Charles Simeon, um jovem clérigo da Universidade de Cambridge, com o intuito de
formar uma associação que representasse as várias denominações evangélicas. Com a nomeação de
Josiah Pratt para secretário, o movimento se ampliou e estabeleceu missões em diferentes regiões. O
reverendo William Jowett foi o responsável pelas missões no Egito e na Turquia Otomana, tendo como
foco em ambos os casos a tradução da Bíblia para o idioma dos povos autóctones, e acabaram sendo
expulsos pelas autoridades locais por isso. Para a Palestina foram destinados Edith Eleanor Newton e
Frederick Augustus Klein, que conseguiram mais êxito quando se voltaram para missões médicas
(CLINE, 2009: 30-32).
72 Entre os principais líderes desse movimento estava o fundador da associação: Joseph Samuel C. F.
Frey. Ele foi um judeu ortodoxo polonês que se converteu ao cristianismo em 1798, logo após um
missionário tê-lo demonstrado um suposto cumprimento das profecias do Antigo Testamento no Novo
Testamento, e que se mudou para a Inglaterra em 1801 com a London Missionary Society. Como
missionário dessa organização, ele teve a ideia de solicitar autorização para pregar aos judeus que
estavam em Londres com o intuito de tirá-los das condições deploráveis em que eles viviam por não
estarem plenamente integrados à sociedade inglesa, uma vez que não gozavam da mesma fé. Em agosto
de 1808, Frey se separou da London Missionary Society por acreditar que era necessário um trabalho
de pregação unicamente voltado à conversão dos judeus (SMITH, 1981: 275-276).
73 O Tratado de Berlim determinou o estabelecimento de um regime de controle da administração
interna do império, de forma a garantir que os europeus mantivessem o mínimo aceitável de direitos,
em especial quanto à “liberdade religiosa”.
74 Por Oriente estamos partindo das ideias de Edward Said (2007) para afirmar que, em termos
culturais e ideológicos, essas nações se definiram como distintas das áreas por elas colonizadas, sendo a
cultura material alvo de resgate e mesmo uma relíquia que comprovaria o seu direito de ocupar,
conhecer e conquistar.
75 As pesquisas britânicas da década de 1870, conduzidas pelos engenheiros reais sob a liderança de
homens como o capitão Charles Wilson, o tenente Claude Conder e o tenente Horatio H. Kitchener,
resultaram no mapeamento de praticamente toda a Palestina. O trabalho deles foi publicado como 26
volumes de memórias, um enorme mapa, planos arquitetônicos e fotografias.
76 Um bom exemplo de conflito desse quadro foi a Guerra da Crimeia, em que entre os interesses
russos estava a península dos Balcãs, entre o Mar Negro e o Mediterrâneo. O que levou o czar em 1853
a invocar o direito de proteção dos lugares sagrados para os cristãos em Jerusalém e a invadir os
principados otomanos na atual Romênia.
77 Paralelamente as campanhas de Cummont, autoridades francesas designaram outros arqueólogos,
principalmente franceses, para as demais regiões que estavam sob seu controle. Entre esses
especialistas temos as atuações de Claude Schaeffer buscando remanescentes da Idade de Bronze nas
regiões de Ras Shamra e Minet el-Beida, ou ainda Maurice Dunand buscando exemplos de escritos de
alfabeto antigo na Babilônia. No entanto, dentre os principais interesses estavam mapear e deter
proteção de culturas materiais cristãs e islâmicas antigas. Ver: Hopkins, 1979: 9-10.
78 No ano seguinte, 1925, a revolta de Druse contra o controle francês explodiu pelas terras do deserto.
Foram enviadas duas poderosas colunas francesas para suprimir as ruínas destruídas e os insurgentes
avançaram do sul até Damasco. Eles não conseguiram pegar a cidade, mas ocuparam a maior parte do
país vizinho. Em setembro, os líderes da drusa foram acompanhados por líderes nacionalistas em outras
partes da Síria e a rebelião se espalhou. Finalmente, os franceses foram forçados a reconhecer que sua
tentativa de governar Levante pela lei marcial era um fracasso. A guerra arrastou-se para 1926, com os
arrabaldes de Damasco sob fogo e aldeias descascadas por armas de campo e queimadas por
mercenários franceses. Finalmente, em agosto de 1926, a paz foi restaurada com a suspensão da lei
marcial, seguida da nomeação de um novo comissário francês com experiência administrativa civil,
Henri Ponsot. Este último desejava alcançar um acordo real com os árabes e seus sírios líderes, o que
permitiu novas intervenções arqueológicas. Ver: Hopkins, 1979: 12-13; Deguilhem, 2002: 457-459.
79 Um dos editores dos volumes dos relatórios finais de Dura-Europos.
80 Todas as vezes em que aqui for empregado o conceito de raça, estaremos apenas reproduzindo o
termo utilizado por Welles e a ser contextualizado nas linhas a seguir.
81 Atribuída ainda hoje como a primeira obra moderna a falar em cidade como sendo o lugar no qual
atuavam as instituições e circulavam ideias e pessoas.
V. A Bíblia como Literatura e suas
Implicações para a Reflexão Teológica

Marcio Simão de Vasconcellos


Introdução
Do ponto de vista histórico, a Modernidade pode ser compreendida
como um período de profundas mudanças sociais, econômicas, políticas,
religiosas, culturais e epistemológicas que marcaram a sociedade
europeia a partir do século XVI ec. e que se estenderam até o início do
século XX. Tal período se caracterizou pelo desenvolvimento de uma
consciência humana autônoma, baseada em preceitos racionalistas que,
supostamente, seriam capazes de dar conta de todos os fenômenos da
natureza e da sociedade.
Obviamente, como afirma Paul Gilbert, seria ingênuo imaginar que
uma Europa adormecida desde a Antiguidade teria “despertado na alva
dos Tempos Modernos, enquanto a noite teria sido somente um
parêntese vazio. Do ponto de vista da duração histórica, tais interrupções
são insensatas.” (Gilbert, 1999: 12). Contudo, em que pese esta
afirmação, em comparação com o período medieval, a Modernidade de
fato representou uma profunda alteração de paradigma na compreensão
do mundo; uma brusca mudança de época que revelou o caráter obsoleto
dos alicerces que fundamentavam a Idade Média e que abriu espaço para
novas percepções, capazes de dialogar com os novos tempos. Uma
ruptura com o modelo medieval utilizado para leitura e compreensão do
mundo que exigiu, por sua vez, o desenvolvimento de uma nova
linguagem, atenta aos novos contextos culturais que se formavam
rapidamente.
Esse momento histórico também viu o desenvolvimento da crítica
literária aplicada à Bíblia e das diversas reações que surgiram dessa
prática. Em muitos sentidos, a relação entre o texto bíblico e o mundo
recém-construído foi sendo marcada – inicialmente de forma gradativa,
mas posteriormente num ritmo mais acelerado – por um abismo
crescente que separou a interpretação da Bíblia da realidade cotidiana. A
hermenêutica desenvolvida durante a Escolástica medieval,
profundamente especulativa e metafísica, se alterou para uma análise
racionalista que, como veremos a seguir, caracterizou-se por ser fechada,
dualista e, por conseguinte, igualmente divorciada da vida concreta.
Vivenciamos, portanto, uma crise na hermenêutica bíblica e na
própria teologia (cf. Dusilek e Dreher, 2018: 19) que exige uma
autocrítica reflexiva, capaz de articular coragem e discernimento na
experiência da fé cristã no mundo. Nesse sentido, é preciso refletir, tanto
do ponto de vista da prática hermenêutica e exegética, como da leitura
teológica, sobre a compreensão da Bíblia como literatura, afirmada na
Modernidade, e as implicações dessa percepção para a vida da igreja,
bem como as múltiplas reações, tanto católicas como protestantes, que
esse entendimento gerou.
Para isso, importa apresentar uma leitura da Modernidade,
principalmente a partir dos séculos XVIII-XX, para verificarmos como a
Ciência se estabeleceu a partir da moldura proposta pelo Iluminismo e
seus pressupostos, instaurando uma nova ordem de pensar e fazer a
pesquisa científica e propondo a si mesma como opositora à teologia. O
século XIX, em especial, torna-se o pivô do surgimento de novos
movimentos hermenêuticos e exegéticos que geraram resistências por
parte de grupos cristãos distintos. Vale lembrar, por exemplo, que o
século XIX trouxe, no campo protestante, o princípio na inerrância
bíblica e, no campo católico, o princípio da infabilidade papal. Ambas
propostas fundamentalistas que trazem para dentro dos seus próprios
discursos o princípio da verdade absoluta e que relacionam
hermenêutica, exegese e homilética num mesmo e quase indivisível
movimento. Nesse sentido, é preciso questionar: o(a) portador(a) da voz
divina é, ele(ela) mesmo(a), divino(a)? A voz que é personificada na
instituição religiosa é a expressão absoluta e idealizada do Deus que ela
deseja representar? E mais: que implicações surgem do reconhecimento
das Escrituras Sagradas como literatura para a reflexão teológica e para a
vivência da fé cristã hoje? Qualquer tentativa de resposta a tais
questionamentos necessita de uma perspectiva interdisciplinar entre
Teologia, História e Literatura, a fim de construir um panorama a partir
da alteridade. É o que buscaremos realizar a seguir.

O paradigma moderno e a interpretação bíblica


Para descrever o novo mundo formado na Modernidade, é possível
utilizar o termo paradigma, compreendido como estruturas reconhecidas
universalmente “que, durante algum tempo, fornecem problemas e
soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma
ciência” (Kuhn, 1991: 11). Para Kuhn, a alternância entre paradigmas
funciona como motor que põe em movimento o desenvolvimento das
ciências em sua forma amadurecida. (Kuhn, 1991: 32). A partir dessa
definição, o teólogo católico Hans Küng compreende o momento que a
teologia passa como uma crise, não de sintomas isolados, mas sim “uma
crise dos fundamentos” (Küng, 1999: 150), isto é, uma crise de
paradigmas. Aplicado ao universo da Teologia, o termo paradigma pode
ser denominado como “esses grandes modelos hermenêuticos globais de
compreensão da teologia e da Igreja, diante das profundas
transformações de época [...] E a substituição de um antigo modelo
hermenêutico por um novo pode ser chamada de mudança de
paradigma” (Küng, 1999: 152). Nesse contexto, a hermenêutica torna-se
um tema central e um dos principais campos de batalha usado por
grupos distintos, tanto de caráter progressista como de caráter
conservador.
A Modernidade gerou uma cosmovisão pautada por uma nova
antropologia que inseria o ser humano, ápice da criação divina, numa
posição de centralidade no universo. Em certo sentido, podemos dizer
que o Theos (Deus), representado pela Igreja enquanto instituição social,
política e religiosa, foi sendo paulatinamente substituído pelo Antropos,
o ser humano visto primeiro coletivamente e, cada vez mais,
individualmente. Abordando os impactos dessa cosmovisão sobre a
hermenêutica bíblica praticada na Modernidade, Barrera descreve
A hermenêutica “moderna” corresponde a uma concepção
do mundo em que o “eu” do sujeito pensante (cogito), e o
universo físico-matemático desloca o cosmos sagrado do
centro de toda referência. A epistemologia ou teoria do
conhecimento substitui o mito e a metafísica, explicando
já não a realidade objetiva, mas tão-somente como é
possível o conhecimento do mundo objetivo. O sujeito
pensante (res cogitans) se enfrenta ao objeto e ao mundo
(res extensa). O racionalismo crítico da Ilustração termina
questionando o Deus dos teólogos e filósofos, e a crítica
histórica do Romanticismo põe em interdição os textos
nos quais se expressa a revelação Bíblia. (Barrera, 1999:
671).
Houve também um crescente processo de desenvolvimento da
autonomia no pensar. Na Idade Média, a produção de conhecimento
“tinha seu centro e elite no seio das hierarquias estabelecidos pelo
Vaticano” (Rocha, 2017: 45). Isso pressupunha controle severo de
discursos alheios, o que, de fato, foi abundantemente praticado pela
Igreja. Nesta perspectiva, o conhecimento humano servia apenas para
“fundamentar, legitimar e difundir as verdades contidas nas Sagradas
Escrituras e, portanto, para glorificar o Reino de Deus” (Rocha, 2017:
45). A fé, soberana sobre a razão, ordenava a construção do discurso e a
produção do conhecimento, visando “estabelecer contato entre a fonte de
todo saber, Deus, ilimitado, infinito, e eterno, e o homem, limitado,
finito, temporal.” (Rocha, 2017: 45).
Porém, como afirmamos acima, na Modernidade foram apresentadas
novas formas de acesso ao mundo que, embora não negassem, a
princípio, a fé, a inseriam em limites muito bem estabelecidos, no
interior dos discursos religiosos. O mundo abandonava, aos poucos, o
domínio divino e passava a ser considerado mundo dos humanos,
passível de ser acessado pela experiência sensorial e pela razão. A
definição do conhecimento deixou de ser fornecida exclusivamente pela
teologia para se inserir num âmbito racional e científico (cf. Rocha,
2017: 47). A partir dessas premissas, René Descartes estabeleceu a
dúvida sobre o mundo como marco inicial de toda sua filosofia:
Por desejar então dedicar-me apenas à pesquisa da
verdade, achei que deveria agir exatamente ao contrário
(contrário em relação aos costumes e tradições) e rejeitar
como totalmente falso tudo aquilo em que pudesse supor
a menor dúvida, com o intuito de ver se, depois disso, não
restaria algo em meu crédito que fosse completamente
incontestável.” (Descartes, 2005: 61).
Mas de uma coisa Descartes não podia duvidar: do fato de que era ele
mesmo quem duvidava. Mesmo que tudo o mais fosse falso, “resta a
certeza de que eu penso.” (Descartes, 2000: 62). Daí surge seu axioma
mais famoso: Cogito ergo sum, ou seja, Eu penso, logo sou. Portanto, na
epistemologia que nasce na Modernidade, o pensar significa ser. Somos
à medida em que pensamos; a existência se baseia na força da razão e
esta é o bastante para compreender o mundo. Tal leitura revela-se
profundamente dualista e redutora. Se, na Idade Média, a fé como
princípio do pensamento criava hierarquia sobrepujando a razão, agora,
no pensamento moderno, é a razão que recebe primazia. Isso dá
continuidade a um dualismo antropológico, não mais neoplatônico, mas
igualmente metafísico. Para Descartes, o corpo representa apenas “algo
com extensão e que não pensa” e que, por isso, “minha alma, pela qual
sou o que sou, é completa e indiscutivelmente distinta de meu corpo e
que ela pode existir sem ele.” (Descartes, 2000: 320).
A distinção que Descartes faz entre possuir um corpo e
ser uma alma (razão, res cogitans) constitui a base para a
afirmação de uma racionalidade estreita, que se consuma
em certa dimensão da existência (alma/razão - res
cogitans) que pode prescindir sem nenhuma hesitação de
outras dimensões (corpóreo-afetivas – res extensa). Essa
visão dualista reifica a razão em detrimento da
corporeidade e de seus sentidos. (...) Neste sentido
Descartes pôde reduzir o corpo à figura de uma máquina.
(Rocha, 2017: 54).
É essa compreensão dualista que fornece à razão um elemento de
superioridade como a alma que pensa e que considera o corpo destituído
da dignidade sagrada. Tal é o entendimento que pavimentará o chão da
pesquisa científica – inclusive a reflexão teológica – durante muito
tempo. Em outras palavras, o corpo (matéria) passa a ser pensado como
objeto, e a alma (razão pensante) como sujeito que tem a liberdade e o
direito de usar esse objeto conforme lhe apraz. Essa instrumentalização
do corpo, lido de forma utilitária, dará à ciência dos séculos seguintes
(especialmente após a Revolução Industrial) os argumentos e subsídios
filosóficos necessários para criar uma relação de sujeito-objeto com a
matéria criada e mesmo com a concepção de “verdade”. Nessa ótica, a
natureza torna-se objeto a ser explorado, sem traços de sacralidade que a
transformem em sujeito na relação. O próprio corpo humano é
“coisificado”, numa relação espúria que o considera propriedade do ser
racional.
Contudo, a perspectiva hermenêutica moderna e a compreensão da
Bíblia como literatura devem menos ao racionalismo cartesiano e mais
ao Positivismo Iluminista. O humanismo cartesiano ainda continuava
orientado “para o conteúdo doutrinal e moral dos textos, numa
perspectiva bastante dogmática, a-histórica e atemporal.” (Barrera, 1999:
676). “A visão histórica”, completa o autor, “não teve seus primeiros
inícios até o final do século XVIII e alcançou seu desenvolvimento ao
longo do século XIX, especialmente na Alemanha.” (Barrera, 1999:
677). De fato, em seu início, os intérpretes modernos da Bíblia
consideravam o conteúdo do texto bíblico como verdade imutável de
Deus. Posteriormente, contudo, graças também ao Romanticismo do
século XIX que fez surgir uma consciência histórica, desenvolveu-se
uma hermenêutica crítica que se beneficiava dos estudos filológicos,
históricos e literários. “A crítica ilustrada e romântica desenvolveu os
chamados métodos ‘histórico-críticos’, que tiveram imediata aplicação
no campo bíblico” (Barrera, 1999: 682). De fato,
O olhar científico toma o lugar da aproximação aos textos
bíblicos do período do Renascimento e da Reforma e de
seu olhar confiante em relação aos textos. Surgem
perguntas pelas lacunas, incongruências e duplicações dos
textos. Os intérpretes começam a analisar o que, do ponto
de vista racional, é concebido como contradição. A
confiabilidade histórica e a autenticidade transformam-se
em palavras-chave da investigação, além de definirem a
inter-relação entre leitor e texto. (Filho, 2011: 99-100)
Assim, problematizam-se as narrativas bíblicas e investigam-se os
processos redacionais dos textos na mesma proporção que se questiona a
confiabilidade das Escrituras como fonte histórica. Os mesmos
instrumentos de crítica literária aplicados a textos diversos foram
igualmente utilizados na análise dos textos bíblicos. Um dos exemplos
mais clássicos é a crítica feita à autoria mosaica do Pentateuco.
Inicialmente proposta por Jean Astruc (1684-1766), no século XVIII, e
sistematizada por Julius Wellhausen (1844-1918), a Hipótese
Documental propunha a existência de quatro fontes ou documentos que,
num longo processo redacional, deram origem ao Pentateuco. Embora
abundantemente criticada e, num certo sentido, até mesmo superada82,
essa teoria ilustra a parceria entre história e exegese bíblica mencionada
por Paulo Nogueira:
As convergências e parcerias entre história e exegese
bíblica não são novas. Elas construíam um caminho
comum desde o século XIX, quando os estudiosos
buscavam submeter o texto bíblico a uma rigorosa crítica
histórica. O resultado foi a descoberta da falta de precisão
dos textos como fonte para a reconstrução das origens do
cristianismo devido ao caráter mítico e folclórico de sua
linguagem. Esta questão passou a ser central para os
estudos bíblicos: a relação entre história e linguagem.
(Nogueira, 2012: 23).
Transformado em objeto de análise, o texto bíblico é estudado a partir
dos cânones iluministas da razão, da dúvida metódica e da metodologia
científica. E não tardaram a surgir no cenário cristão, tanto católico
como protestante, críticas ao uso de tais metodologias no estudo das
Escrituras. Não é sem um toque de sutil ironia que Barrera afirma: “as
discrepâncias existentes entre o livro dos Reis e o das Crônicas
preocupam muito mais aos fundamentalistas protestantes que a qualquer
judeu.” (Barrera, 1999: 685). Falaremos desse tema num tópico
posterior. Contudo, vale nesse momento pausar a discussão para destacar
o modo como a suposta oposição entre crítica exegética e interpretação
teológica pode gerar profundos abismos entre o biblista e o teólogo,
entre a prática da exegese e a atualização do texto para o cotidiano
concreto da existência. Corre-se o risco de, muitas vezes, transformar a
exegese bíblica numa série de exercícios acadêmicos teóricos e estéreis,
sem vínculo com a vida, reproduzindo a denúncia de Luis A. Schökel:
Os homens nos pedem pão e lhes oferecemos um punhado
de hipóteses sobre um versículo do capítulo 6 de João
(Jesus, o Pão da Vida); nos interrogam acerca de Deus, e
lhes oferecemos três teorias sobre o gênero literário de um
Salmo; têm sede de justiça e colocamos a sua frente uma
inquirição etimológica sobre a raiz sedaqa (justiça)...
(Schökel apud Wegner, 2002: 311).
Do mesmo modo, Barrera apresenta sua leitura a respeito
dessa temática ressaltando a separação entre exegese e
espiritualidade teológica como fator preocupante para a
vida da fé em Cristo atualmente:
O conflito da consciência ilustrada entre o mistério
religioso, reduzido a dogma, e a verdade racional, entre a
consideração da Bíblia como Palavra de Deus ou a
redução da mesma a um mero documento histórico, ainda
não encontrou um verdadeiro caminho de solução.
Chamadas recentes para uma interpretação “pós-crítica”,
ao invés de uma interpretação histórica, uma “espiritual”
[...], ou à substituição de uma hermenêutica da suspeita
por uma do consenso, aberta à transcendência [...]
colocaram ainda mais em relevo a profunda insipidez na
qual se encontram os estudos bíblicos, divididos entre a
exigência crítica e a busca do sentido teológico. (Barrera,
1999: 686).
As diversas metodologias exegéticas utilizadas para acessar o texto
bíblico têm como fundamento a afirmação de que a Bíblia é também
literatura. Em que sentido podemos conceituar a Bíblia como literatura e
quais são as implicações desse fato? É o que veremos a seguir.
Bíblia como literatura: conceituações e implicações para sua
leitura e recepção
A Bíblia é literatura. Embora simples, esta afirmação produziu muita
resistência e rejeição por parte de muitos grupos no decorrer da história
cristã. Na perspectiva de alguns, considerar a Bíblia como literatura
implicaria numa redução de sua sacralidade ou mesmo na rejeição do
texto como Escritura Sagrada. Subsidiando tal percepção, havia a crença
de que, por ser Palavra de Deus, a Bíblia nunca poderia ser considerada
um texto como qualquer outro. Para Antônio Magalhães, um dos
primeiros teólogos brasileiros a desenvolver a relação entre teologia e
literatura, tais obstáculos à compreensão da Bíblia como literatura “não
existem nos autores de literatura, mas em muitos lugares da crítica
literária e da teoria literária assim como no campo da teologia”
(Magalhães, 2008: 16). Segundo o autor, um dos motivos para essa
resistência deve-se ao fato de que “a Bíblia foi vista, por alguns, como
livro da instituição religiosa e não como livro da cultura e de processos
civilizatórios complexos. (Magalhães, 2008: 16)
A afirmação da Bíblia como palavra divina a torna, por pressuposto,
um texto a-histórico, pelo qual o divino suplanta e, por fim, nega o
humano na produção das narrativas bíblicas. Afirma-se o teor sagrado do
texto, lido, contudo, numa perspectiva dualista que compreende ser
necessário rejeitar o humano para defender a inspiração de Deus. Tal
posicionamento sustenta-se na doutrina da inerrância bíblica, que, em
sua formulação clássica, afirma a inexistência de quaisquer erros na
Bíblia. Mesmo diante das descobertas da crítica textual como
duplicações nas narrativas, incorreções geográficas e/ou históricas nos
relatos, e a respeito da existência de múltiplas variantes textuais,
provocadas por erros acidentais ou intencionais dos copistas, a
inerrância foi mantida por muitos que a restringiram apenas aos
autógrafos, isto é, aos originais da Bíblia (Lopes, 2004: 28). Contudo,
uma vez que não temos acesso aos textos originais e, do ponto de vista
metodológico, não é possível recuperá-los, a defesa da inerrância torna-
se muito mais uma questão de fé pessoal e nem tanto de reflexão
acadêmica.
Além disso, tal posicionamento hermenêutico revela uma postura de
“guardião da Bíblia”, que impossibilita o reconhecimento da grande
variedade de gêneros literários nos textos bíblicos e de suas diversas
interpretações possíveis. A polissemia da Bíblia é ofuscada (ou mesmo
intencionalmente escondida) em nome da univocidade da fé. A Escritura
é compreendida quase que exclusivamente como fonte de doutrina
teológica e/ou confessional. Ora, tal interpretação não leva em
consideração o fato da Bíblia ser palavra de Deus em linguagem
humana. “A Sagrada Escritura”, lembra-nos Konings, “é palavra de
Deus, não no sentido literal, mas num sentido analógico. Quer dizer, é
uma literatura humana, na qual – quando lida no contexto de
determinada experiência e tradição religiosa – se reconhece a voz de
Deus” (Konings, 2011: 155).
Resistências à percepção da Bíblia como literatura também se fizeram
ouvir por parte da própria crítica literária, ainda refém de um
positivismo racionalista redutor; muitos críticos literários não
reconhecerem “o tema da religião como constitutivo e estruturante de
parte da literatura ocidental” (Magalhães, 2008: 16). Mas esse tema se
faz presente de forma abundante. Para citar apenas um exemplo,
vejamos a correspondência temática entre o personagem Ivan
Karamazov, de Fiódor Dostoiévski, e o personagem Jó, do texto bíblico:
ambos expressam, com a linguagem cultural de seus autores, o drama
diante do sofrimento do inocente. “Não falo do sofrimento dos adultos:
estes comeram a maçã e que o diabo os carregue a todos. (...) Mas as
crianças! As crianças!” (Dostoiévski apud Delumeau, 2007: 103),
exclama Ivan. “Se uma calamidade mata subitamente, ele (Deus) se rirá
do desespero do inocente”, blasfema Jó (Jó 9:23). Questionamentos
profundamente teológicos, de ambos os personagens.
De fato, transparecem, do Antigo ao Novo Testamento, narrativas
literárias carregadas de teologia; ou afirmações teológicas expressas sob
a forma de gêneros literários diversos. A interconexão entre essas frases
revela o caráter relacional da teologia e da literatura. Longe de
enfraquecer ou mitigar a teologia presente nas Escrituras Sagradas, esse
fato a afirma como um repositório de diversas percepções humanas que
combinam, paradoxalmente, percepções múltiplas sobre Deus, sobre a
vida e sobre si mesmo. Há, no texto bíblico, uma qualidade
profundamente literária que se revela também teológica. As
Lamentações de Jeremias, por exemplo, são um lamento teológico sobre
a destruição da Cidade Santa, provocada pelo pecado, aliado à afirmação
da esperança que faz germinar nova maneira de ver e ser no mundo. E
tudo isso delineado pela beleza literária que revela uma imensa saudade,
nostalgia, tristeza e fé no futuro que Deus reserva a seu povo. Querer
trazer à memória o que pode dar esperança é tema tanto da teologia
como da literatura. E esse tema, vale repetir, é válido para toda a vida
humana.
Compreender a Bíblia como literatura traz importantes implicações à
sua interpretação. Como ocorre com qualquer texto, todo leitor da Bíblia
é, obviamente, também um intérprete. A análise de textos, a partir de
uma metodologia específica, pressupõe a inserção do intérprete num
determinado contexto histórico-cultural que delimita e orienta sua
própria interpretação. Aliás, é exatamente isso que ocorre no processo de
interpretação do texto bíblico.
O texto não se apresenta como um fenômeno isolado,
como um extraterrestre. Provindo de “nosso mundo antes
de nós”, abre caminho e produz um rastro de referências
significantes nas mentes e na linguagem. Representa uma
comunidade de pessoas que falam mediante as palavras
que o texto lhes fornece, que veem o mundo na
perspectiva que o texto abriu e que sonham com o mundo
num jeito para o qual o texto deu as palavras. E,
dialogando com o texto, eu entro nessa comunidade, nesse
diálogo. (Konings, 2011: 176).
Por isso, afirmamos a leitura do mundo como prática que precede a
leitura do texto. Em outras palavras, a construção do sentido de um texto
é antecipada pela disposição mental que possuímos do microuniverso
cultural que habitamos. Assim, a experiência de ler um texto e a
interpretação desse texto ocorrem simultaneamente, mas sempre a partir
de um chão pré-definido no qual a pessoa vive. Por essa razão, é
imprescindível defender a autonomia no processo interpretativo,
processo que envolve gerar consciência histórica e percepção do mundo
em que se vive. Da fusão de horizontes entre essas duas perspectivas,
brota o sentido de um texto. Ler, vale lembrar, não é apenas decodificar
os códigos linguísticos para formar palavras e frases; antes, a leitura está
intimamente ligada ao fator existencial de cada indivíduo.
Se o ato de ler não é a mera decodificação de um sistema
de sinais (escrito, desenhado, esculpido em pedra,
imagem e movimento), não basta uma análise formal do
código em que foi cifrado, para torná-lo legível; se o
universo de discurso importa para a significação, há que
considerar o contexto de sua produção; se há ouvidos
diferentes em cada homem, há que pensar nos efeitos que
o dizer/grafar tem sobre os sujeitos, isto é, como se dá a
recepção por parte do ouvinte/leitor. Cada um recebe a
água vertida no receptáculo de que dispõe... (Yunes,
2002: 20)
Aplicada ao texto bíblico, a afirmativa de Yunes tem total relação com
métodos hermenêuticos e exegéticos praticados. A recepção do texto
importa tanto quanto a(s) metodologia(s) usadas para interpretá-lo. Há
uma reserva de sentido, numa narrativa, que possibilita múltiplas
interpretações. Não existe, portanto, uma prática interpretativa que
produza um resultado unívoco a respeito da hermenêutica de um texto.
A leitura unívoca de uma narrativa ignora, na maioria das vezes
intencionalmente, outras possibilidades interpretativas igualmente
legítimas. O número de interpretações possíveis está relacionado ao
número de intérpretes que investigam o texto o que, claro, não rejeita
critérios de discernimento para a prática hermenêutica. Por isso, pode-se
afirmar que “leitura bíblica é releitura. É fazer reviver a palavra antiga a
partir da tradição que ela criou para chegar até nós, na nova situação em
que hoje nos encontramos”. (Konings, 2011: 179).
Já podemos encaminhar a reflexão para a análise da interpretação
fundamentalista. Antes, porém, vale destacar o uso da linguagem como
mediação de experiências e percepções de mundo. O risco, aqui, é
transformar esta mediação em moldura que cerceia e controla o
pensamento alheio. É, como afirma Yunes, o risco de permitir que a
forma de designar o mundo, pouco a pouco, se torne “o próprio mundo,
ganhando uma transparência ilusória que beira a alienação. A língua
desenha o mundo e não raro o aprisiona em seus clichês.” (Yunes, 2002:
53). O que Yunes descreve nesse trecho constitui um risco muito
presente, sobretudo na prática exegética e teológica: confundir a
expressão da experiência religiosa com a realidade em si. Ora, é preciso
perceber que a realidade não cabe na linguagem. A realidade é
polissêmica (tem diversos sentidos); o texto lido numa lente
fundamentalista é unívoco, como veremos a seguir.
Conceito e práticas hermenêuticas do fundamentalismo cristão
O termo fundamentalismo não é unívoco. Ao contrário, o termo é
utilizado com objetivos e conteúdos muito distintos e até mesmo
contraditórios, O termo fundamentalismo pode aparecer “como
sinônimo de conservadorismo, sectarismo e fanatismo; como movimento
ou corrente amarrados a modelos culturais e religiosos do passado,
fechados aos valores do mundo moderno e até mesmo às ciências.” (Oro,
1996: 23). Historicamente, o termo faz referência a um movimento de
reação às descobertas científicas da Modernidade – incluindo-se a
compreensão da Bíblia como literatura – que se produziu no interior de
denominações cristãs no início do século XX. O fundamentalismo
cristão tem sua origem ligada à escrita de uma série de livros chamada
The Fundamentals, publicada a partir de 1909, que versavam sobre a fé
em confrontação às perspectivas da modernidade. Abordaremos,
brevemente, sua formação histórica para, posteriormente, apresentar as
concepções filosóficas e a cosmovisão que fornecem sustentação a sua
prática, bem como as implicações que traz à vivência da fé em Cristo.
Em sua análise dos movimentos de missão, Luiz Longuini Neto
apresenta uma importante diferenciação entre o movimento evangelical
e o fundamentalismo. “O movimento evangelical”, lembra-nos o autor,
“é anterior ao movimento fundamentalista.” (Neto, 2002: 22). Apesar de
terem pontos de partida em comum, há diferenças entre evangelicais e
fundamentalistas: “o movimento fundamentalista é uma espécie de linha
de frente, um grupo militante que nasceu dentro do movimento
evangelical, vindo mais tarde a se radicalizar e a se distanciar deste”
(Neto, 2002: 23). Por isso, “todo fundamentalista é um evangelical, mas
nem todo evangelical é um fundamentalista.” (Neto, 2002: 23).
Afirmamos, acima, que o racionalismo positivista da modernidade é
dualista e fechado, pois “reduz a tarefa de percepção da realidade a uma
só dimensão da existência humana: a razão concebida como consciência
e sede do ser” e que, por sua dinâmica hierarquizante, “impede em
última análise que nos realizemos como seres complexos” (ROCHA,
2014: 19). Paradoxalmente, embora tenha surgido como reação à leitura
racionalista da fé, o fundamentalismo é igualmente racionalista. Sua
perspectiva é formada pela mesma tensão entre razão e fé que
caracterizou a modernidade. Como afirma Zabatiero, “o debate entre
liberalismo (racionalismo) e fundamentalismo cristãos é uma das
expressões desse conflito: como ser, simultaneamente, racional e
cristão? A tendência chamada de liberal acentua o polo da racionalidade,
enquanto a chamada fundamentalista acentua o da fé heterônoma.”
(Zabatiero, 2011: 109). Nesse sentido, o fundamentalismo não é tanto
uma recusa à Modernidade e ao novo tempo que surge no horizonte, mas
antes o “alter-ego reprimido da Modernidade, a barbárie que se encobre
nos monumentos da civilização.” (Zabatiero, 2011: 111). Como tal, o
fundamentalismo seduz ao supostamente devolver ao cansado coração
do ser humano moderno um chão firme sobre o qual se estabelecer: um
refúgio das incertezas e dúvidas que surgem na caminhada; “seduz
porque propicia um fundamento religioso inabalável – um deus
controlável, não-arbitrário, sempre-presente, um Da-sein, mero existente
entre os existentes.” (Zabatiero, 2011: 112). Sobretudo seduz porque
substitui os riscos do pensar alternativo pela segurança de fronteiras já
devidamente conhecidas, exploradas e demarcadas, garantindo, por
suposição de fé, a manutenção da pureza doutrinária (numa teologia de
repetição sistemática) e a estabilidade da própria civilização cristã
ocidental.
Ao insurgir-se contra o modernismo teológico, o
conservadorismo protestante pretendia estar reagindo a
uma hipotética ameaça aos próprios fundamentos da
civilização cristã, surgida em razão da incorporação ao
trabalho teológico de métodos e técnicas julgados
“alheios à fé”. (Mendonça e Filho, 2002: 114)
Nesta lógica, não apenas a ortodoxia protestante estaria ameaçada,
mas toda a cultura cristã que havia sustentado a civilização até aquele
momento. Essa suposta ameaça à fé gerou uma teologia feita em
trincheiras, não mais em fronteiras. Era preciso rejeitar ativamente os
postulados da Modernidade, ignorando qualquer postura de autocrítica
acerca dos próprios fundamentos. “A defesa do mito da civilização cristã
ocidental, corporificada na cultura dos países protestantes dominantes,
justificava a renúncia intransigente à racionalidade e às ciências.”
(Mendonça e Filho, 2002: 114)
A fundamentação filosófica, que sustenta o fundamentalismo
enquanto interpretação literal do texto bíblico e prática de fé a partir
disso, está baseada numa determinada concepção de verdade tida como
universal e capaz de ser expressa, pela linguagem, a qualquer pessoa
independente da cultura ou da época em que se vive. Nessa lógica, a
verdade recebida é preservada pela memória sem qualquer alteração
interpretativa; o texto bíblico é lido por meio de uma lente literalista que
empobrece sua riqueza hermenêutica; e os possíveis conflitos entre a
cosmovisão gestada pela Ciência e a produzida por essa leitura
fundamentalista da Bíblia são solucionados, atabalhoadamente, com
concordismos superficiais entre o texto bíblico e as afirmações
científicas.
Tal leitura fornece munição a posicionamentos fechados ao diálogo e
à alteridade. Gera, como afirmamos acima, uma teologia de trincheiras,
incapaz do diálogo com o diferente, aguerrida, militante e
doutrinariamente vigilante. Uma “hermenêutica”83 teológica cuja
“rigidez inibe e castra qualquer espontaneidade, ainda que seja em nome
da experiência primeira.” (Dusilek e Dreher, 2018: 62). Desse
pressuposto de controle de discursos alheios – pautado na interpretação
literal dos textos bíblicos – brota uma postura combativa, defensora de
uma suposta pureza doutrinária contra os “desvios” defendidos por
outros grupos. Destrói-se o discurso do outro em nome de Deus. “Daí a
importância de constituir um grupo coeso alternativo às facções
‘apóstatas’, que ofereça ao crente a certeza da verdade, conduzindo-o
pouco a pouco em seu processo de conversão e adesão radical e
incondicional.” (Lima, 2009: 342). Assim, o diferente é demonizado na
mesma proporção que a doutrina é afirmada, doutrina esta, aliás, elevada
a um nível de atemporalidade que fornece sustentação ao mito da
continuidade histórica.
Nesses moldes, a doutrina ganha mais valor que a vida, numa
reprodução quase literal do farisaísmo das elites religiosas, presente nas
narrativas evangélicas. O ódio é (mal) disfarçado de defesa da ortodoxia
e o interesse no cumprimento das exigências da Lei repudia a vivência
da fé de forma contextual, vinculada ao chão histórico de homens e
mulheres. Trata-se de um paradoxo pelo qual a “sã” doutrina causa
insanidade emocional, mental, psíquica, afetiva ou mesmo física. Aliás,
a afirmação de uma sã doutrina pressupõe a existência de uma doutrina
insana, louca, distinta dos padrões pré-estabelecidos. Nessa lógica, o
próprio Deus e seus supostos representantes são encarados como
instrumentos de coerção e controle das consciências alheias. A teologia
perde sua dimensão mistagógica, vinculada ao Mistério que é Deus, para
se tornar apologética, geradora de um sistema teológico fechado em si
mesmo.
Ao substantivar-se e institucionalizar-se em forma de
poder, seja sagrado, social, cultural e militar (como nos
Estados Pontifícios de outrora), as religiões perdem a
fonte que as mantém vivas – a espiritualidade. No lugar
de homens carismáticos e espirituais, passam a criar
burocratas do sagrado. Ao invés de pastores que se
colocam no meio do povo, geram autoridades
eclesiásticas, acima do povo e de costas para ele. Não
querem fiéis criativos, mas obedientes; não propiciam a
maturidade na fé, mas o infantilismo da subserviência. O
resultado é a mediocridade, a acomodação, o vazio de
profetas e mártires e o emudecimento da palavra
inspiradora de novo ânimo e de nova vida. As instituições
podem tornar-se, com seus dogmas, ritos e morais, o
túmulo do Deus vivo. (Boff, 2001: 28-29).
Os dogmas cristãos, originalmente desenvolvidos como “expressões
profundas e maravilhosas da verdadeira vida da igreja”, que relacionam
sua piedade, devoção e crenças, foram, em variadas ocasiões,
substituídos por “poderes repressivos destinados a produzir
desonestidade e fuga” (Tillich, 2004: 23). Esse é o perigo que o
fundamentalismo traz à teologia e à própria fé cristã: transformar
sistemas teológicos em prisões, devido a uma identificação com o que se
compreende como “resposta definitiva e final” (Tillich, 2004: 19) acerca
de Deus e sua revelação. Nesse processo, a doutrina importa mais que os
questionamentos reais e existenciais de homens e mulheres, silenciados
pelo discurso totalizante e paralisador fundamentalista.
Do ponto de vista bíblico e teológico, a leitura fundamentalista reduz
o texto bíblico a um depósito de afirmações ontológicas sobre Deus,
interpretadas por representantes hierarquicamente escolhidos e únicos
autorizados a interpretar corretamente o texto para outros. Ignora-se o
elemento simbólico, do mito e da poesia presentes nas narrativas
bíblicas, transformando a Bíblia num substituto doutrinário para Deus.
No lugar da encarnação – Deus encarnado – defende-se um Deus
“enlivrado”, encaixotado em fórmulas e dogmas já estabelecidos e
previamente aceitos como “verdade”.
Aliás, vale perceber que determinadas definições de Verdade,
sustentadas numa metafísica racionalista (igualmente utilizada pelo
fundamentalismo como base epistemológica) serviram na história
humana a alguns episódios muito terríveis e é nesse sentido que a tese de
Karl Poper (1902-1994) deve ser entendida. Segundo este filósofo, o
apelo à metafísica como lugar da verdade pode gerar propostas
autoritárias e violentas. Comentando esta tese, Vattimo afirma que, para
Poper, os inimigos da sociedade humana e da própria democracia são
todos os teóricos que, “tendo saído, uma vez, da caverna em que vivem
os homens comuns e tendo tido a oportunidade de ver diretamente as
ideias eternas das coisas (em suma, a verdade do ser e não mais apenas
as sombras)”, sentem-se no direito de, retornando ao mundo, “guiar seus
semelhantes, até mesmo, eventualmente, à força, ao reconhecimento da
verdade.” (Vattimo, 2016: 19). Propostas heteronômicas são aplicadas,
em nome da defesa da fé, sobre indivíduos ou grupos que destoam da
melodia imposta. A noção de verdade que sustenta tais propostas é a
verdade como objeto, estático, absoluto, imutável; algo que por assim
dizer sempre esteve lá, à espera de ser descoberto por um grupo ou um
indivíduo em particular a fim de ser imposto (inclusive com o uso da
força) à vida dos outros. Esse é o risco do pensamento fundamentalista:
A conclusão a que quero chegar é que a verdade como
algo absoluto, como correspondência objetiva, entendida
como última instância e valor de base, é um perigo, muito
mais que um valor. Leva à república dos filósofos, dos
especialistas, dos técnicos e, no limite, ao Estado ético,
que pretende poder decidir qual seja o verdadeiro bem dos
cidadãos, mesmo contra a opinião e as preferências deles.
(Vattimo, 2016: 26).
Paradoxalmente, a defesa da “verdade” absoluta, lida a partir da ótica
metafísica, pode conduzir à exploração dos seres humanos. Nesse
sentido, é preciso adotar uma postura de desconfiança crítica em relação
ao indivíduo ou grupo que se afirmam como detentores da verdade. Nas
palavras da filósofa Hannah Arendt (1906-1975), “Quem, em um
contraste de opiniões, afirma possuir a verdade, demonstra uma
pretensão de domínio.” (Arendt apud Vattimo, 2016: 28).
Vale lembrar também que afirmar a incapacidade humana em dar
conta da verdade em termos absolutos significa, apenas, o
reconhecimento das limitações e condicionamentos históricos, culturais,
sociais, econômicos, políticos, religiosos etc. que cercam o ser humano,
inclusive em suas experiências de fé. Do ponto de vista teológico, isso
significa afirmar o humano como lugar da revelação divina, como
topografia da manifestação do Sagrado, com todas as implicações que
essa proposta possa gerar. Dito de outra forma: desejar o monopólio de
uma verdade tida como absoluta e inflexível acaba retirando da prática
da fé o elemento humano que deve caracterizá-la. E, por fim, acaba
fazendo desta prática um instrumento de intolerância e perseguição aos
discursos diferentes.
Teologia é um discurso histórica e culturalmente condicionado. Trata-
se da sistematização de uma experiência de fé, sempre mediada pelo
horizonte cultural de quem a vivência. Importa ressaltar esse fato pois,
em grande medida, compreender ou não essa questão está intimamente
ligada ao entendimento que se tem da Bíblia como texto sagrado e como
expressão teológica de experiências de Deus. A Bíblia é palavra de
Deus, contudo, ela o é em linguagem humana, pois não existe palavra de
Deus pura; ela sempre é mediada para chegar ao ser humano. É preciso
reconhecer, enfim, que espiritualidade cristã se concretiza não em
doutrinas, ainda que estas sejam importantes, mas na experiência de
encontro e de acolhimento em relação ao outro.
82 A partir da segunda metade do século XX, essa Hipótese Documental perdeu adeptos em função de
muitos exegetas preferirem abandonar suas prerrogativas na busca de novos paradigmas de leituras do
Antigo Testamento. Obviamente, contudo, isso não resultou num retorno à visão da autoria mosaica,
mas antes produziu uma ênfase hermenêutica na forma final do Pentateuco, e nem tanto ao seu processo
redacional. Como afirma José Luis Sicre, “isso, todavia, não impede que as Introduções ao Antigo
Testamento dediquem um bom número de páginas a J, E, D e P. Reconheço que, às vezes, é preciso
falar de tradições javistas, eloístas, sacerdotais e deuteronômicas, para deixar claro que o Pentateuco
não é um bloco compacto e homogêneo. Nada, porém, de otimismo exagerado, para não cair em
posições tão ingênuas como as de quem ainda pensa que Moisés escreveu o Pentateuco.” (SICRE,
1999: 90). Vale lembrar que os métodos histórico-críticos também foram aplicados ao Novo
Testamento, obtendo como resultados as afirmações de pseudoepígrafes e de processos redacionais nas
cartas neotestamentárias, bem como a Teoria das Duas Fontes aplicada aos evangelhos sinóticos. Cf., a
respeito: MAINVILLE, Odette (Org.). Escritos e ambiente do Novo Testamento. Uma introdução.
Petrópolis: Vozes, 2002: 161-196; WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de
metodologia. 3ª edição. São Paulo: Paulus; São Leopoldo: Sinodal, 2002: 108-111.
83 O uso de aspas no termo hermenêutica é proposital. Deseja-se afirmar, com isso, que não é possível
aplicar o termo hermenêutica à postura fundamentalista pois falta a esta qualquer abertura e
acolhimento às metodologias hermenêuticas e suas discussões. Como afirmam Dusilek e Dreher, “não é
possível haver uma hermenêutica fundamentalista. Isso porque o fundamentalista não reconhece os
avanços da filologia e da linguagem, tampouco o ‘surgimento de uma concepção inteiramente diferente
de linguagem’ que fará ‘crescer uma tendência entre o significado figurado e o que se chama de
significado ‘literal’” (Dusilek e Dreher, 2018: 62).
VI. O Nascimento do Fundamentalismo
Cristão nos Estaddos Unidos: das
origens ao Caso Scopes

Rodrigo Farias de Sousa


A Bíblia não é um livro a ser estudado da forma como
estudamos geologia e astronomia (...); mas é um livro que
revela a verdade, destinado a nos trazer a uma comunhão
viva com Deus. Podemos estudar as ciências físicas e
obter um conhecimento razoável dos fatos e fenômenos
do universo material; mas que diferença isso faz para nós,
como seres espirituais, se a teoria copernicana do
universo é verdadeira, ou a de Ptolomeu?
George F. Pentecost (Torrey, 1917: posição 21481)
Atualmente, a palavra fundamentalismo costuma ser usada para
designar uma postura específica frente à religião: literalista,
intransigente, intolerante, antimoderna. No século XXI, depois dos
atentados de 11 de setembro em Nova York, é muito provável que a
primeira imagem que ela evoque nos países ocidentais seja a de
muçulmanos extremistas, ostentando fuzis e fazendo ameaças em nome
de Deus. Apesar desse estereótipo, o fundamentalismo tem uma origem
bastante diferente: não as paisagens áridas do Oriente Médio, mas as
cidades dos Estados Unidos; não as suras do Alcorão, mas os versículos
da Bíblia; e não uma postura genérica de radicalismo religioso, mas um
movimento específico, com identidade própria, nascido no
protestantismo evangélico nos Estados Unidos em começos do século
XX.
Neste artigo, traçaremos uma breve história desse fundamentalismo
original, desde o contexto histórico do qual surgiu até seu primeiro
despontar no debate público dos Estados Unidos, em meados da década
de 1920, com algumas considerações sobre seu “ressurgimento” no
cenário americano décadas mais tarde.
1 – O contexto da modernidade: alta crítica, teologia liberal e
darwinismo.
Hoje praticamente um sinônimo de “fanatismo” ou “entendimento
literal e intransigente de uma doutrina religiosa”, o termo
fundamentalismo nasce nos Estados Unidos do século XX de forma bem
mais modesta do que seu sentido atual sugere. Ele denotava uma posição
teológica que, até algumas décadas antes, era o padrão da maioria das
denominações evangélicas. Se a partir de um determinado momento
ganhou uma acepção popular como uma forma intransigente de
conservadorismo, não foi por nenhum exotismo doutrinário
propriamente dito, e sim pela mudança de contexto do cristianismo na
era moderna, e do evangelismo84 americano em particular.
A partir do século XVII, uma nova abordagem das Escrituras
Sagradas abriu caminho para uma verdadeira revolução teológica. A
princípio praticada por teólogos e filósofos, como Hugo Grotius (1583-
1645) e Baruch Spinoza (1632-1677), ela se baseava na análise crítica
dos textos bíblicos, apontando suas contradições e inconsistências
internas, do que resultaram as primeiras teorias questionando as
tradições a respeito da autoria dos textos (por exemplo, se Moisés era
realmente o autor do Pentateuco, onde se narra a sua morte). Mais tarde,
no século XVIII, esse tipo de investigação ganha corpo com a ascensão
do racionalismo e a aplicação, por parte de estudiosos alemães, dos
métodos de crítica documental histórica ao texto bíblico, agora tratado
como uma produção humana e não uma revelação sobrenatural. Foi este
desenvolvimento que ficou conhecido como a alta crítica bíblica85. Ela
implicava, necessariamente, uma dúvida metódica em relação às fontes,
a comparação com outros tipos de documento e a disposição para
eventualmente contestar a veracidade da narrativa bíblica ou as
interpretações tradicionais construídas a seu respeito. Produto do
racionalismo iluminista, a alta crítica secularizava o texto sagrado,
tratando-o como uma fonte no mesmo nível de tantas outras, pondo em
questão sua autoridade dogmática, tal como era entendida. Essa guinada
interpretativa logo ganharia expressão no campo teológico por meio de
pensadores como Friedrich Schleiermacher (1768-1834), considerado
por muitos o “pai” do que viria a ser conhecido como teologia liberal
protestante86.
Em obras como Sobre a religião (1799) e A fé cristã (1821),
Schleiermacher tira o foco do aspecto sobrenatural do cristianismo e
tenta conciliá-lo com a razão iluminista. Na primeira, ele analisa a
experiência religiosa em si — que afirma ser o verdadeiro objeto da
Teologia —, distinguindo suas características comuns e um espectro de
seu desenvolvimento que ia desde o fetichismo até fés mais elaboradas,
como o cristianismo. Na segunda, que viria a ser seu trabalho mais
importante, o autor questiona e reformula algumas das crenças cristãs
mais tradicionais, como a existência de milagres (Deus atuaria pelas leis
naturais), a queda de Adão e Eva (uma alegoria para uma predisposição
inerente a toda a humanidade), a divindade de Jesus (que seria apenas
um ser humano, porém possuidor de uma “consciência de Deus” muito
poderosa) e as penas eternas (consideradas inconsistentes com a bondade
e justiça divinas). Além disso, em consonância com a alta crítica,
Schleiermacher via a Bíblia não como a tradicional revelação inerrante
de Deus, mas uma compilação das experiências religiosas de seus
autores, portanto passível de erros e imperfeições. Como se não bastasse,
ele via o Novo Testamento como superior ao Antigo, e aquilo que havia
de “inspirado” em ambos podia ser encontrado fora do texto bíblico, em
outras manifestações do espírito humano, como nas artes e outros
campos da cultura (Macgregor, 2019: 27-28). No fundo, o que
Schleiermacher propunha, e se tornou um dos fundamentos da teologia
liberal, era uma “mediação” entre a cultura moderna, particularmente a
ciência, e a fé cristã, uma reinterpretação das crenças tradicionais à luz
de conhecimentos novos, em vez de simplesmente submetê-los à
autoridade do dogma (Tice, 2011).
Nos Estados Unidos, no entanto, já havia uma espécie de liberalismo
teológico autóctone quando Schleiermacher publicou seu livro sobre o
cristianismo (Dorrien, 2001: xiv). Ali, portanto, influência alemã só
chegaria mais tarde e seria menos decisiva. Embora já houvesse sinais
de uma abordagem crítica da religião cristã entre os círculos mais cultos
— vide a Bíblia de Jefferson, em que o patriarca americano editou o
texto retirando os milagres e eventos sobrenaturais —, a articulação de
uma teologia liberal americana, com características próprias em relação
às suas contrapartes europeias, foi um processo que se estendeu por boa
parte do século XIX. Figuras como o transcendentalista Theodore Parker
(1810-1860), o teólogo Horace Bushnell (1802-1876) e os expoentes do
movimento do Evangelho Social¸ Washington Gladden (1836-1918) e
Walter Rauschenbusch (1861-1918), entre outros, levaram a teologia
liberal de uma marginalidade inicial ao prestígio, e mesmo a uma
ascendência intelectual e acadêmica nos Estados Unidos. Marcada pelo
otimismo em relação ao progresso humano, a ligação explícita entre a fé
cristã e a tentativa de construir uma sociedade mais justa e virtuosa —
expressa em movimentos como o de temperança87, o abolicionismo, o
sufragismo, e o por direitos dos trabalhadores —, ela também se
caracterizava por uma relação diferente entre o fiel e sua fé: em vez da
autoridade externa da Bíblia ou do dogma, valorizava-se a racionalidade
humana e a experiência religiosa (Dorrien, 2001: xv-xvi). Aquilo que
Schleiermacher chamava de “consciência de Deus”, um estado
psicológico aperfeiçoado pela relação com Jesus Cristo, e a ética se
tornavam mais importantes que os aparatos formais de uma igreja ou a
adesão aos dogmas “corretos”. Embora Jesus Cristo ainda tivesse um
papel central nessa perspectiva, era o de um exemplo ético a seguir,
muito mais que de um redentor sobrenatural e divindade encarnada.
Milagres, profecias, demônios e outros elementos extraordinários da
narrativa bíblica eram relativizados em prol de uma perspectiva mais
humanista, no lugar de serem vistos como fatos a serem tomados
literalmente.
Inicialmente dispersa por denominações variadas e pregadores
individuais, essa perspectiva modernizante da teologia cristã acabou por
chegar também a alguns centros acadêmicos, como a Escola de Teologia
de Chicago. Na virada do século, com a difusão de movimentos
progressistas, o que antes parecia uma postura exótica de alguns
pregadores e teólogos se tornou verdadeiramente uma escola de
pensamento, presente nos seminários mais antigos e estabelecidos, com
a respeitabilidade que a institucionalização e o diálogo mais direto com
questões do presente, como o reformismo social, podiam trazer.
Paralelamente a essa nova linha teológica, um outro fenômeno também
contribuiu para mexer com o cristianismo tradicional: os avanços das
ciências da natureza. Sobre isso, a concepção vigente entre os
protestantes americanos era, a princípio, de que haveria uma
convergência entre elas e as Escrituras. Assim, por exemplo, quando
descobertas no campo da geologia demonstraram ser a Terra muito mais
antiga do que os 6 mil anos supostamente informados pela Bíblia, a
novidade podia ser acomodada nas ambiguidades do texto sagrado — os
“dias” de Gênesis 1 podiam ser entendidos como períodos mais amplos
que unidades de 24h. Essa foi a postura, por exemplo, de muitos
cientistas e leigos cultos, que nem por isso deixaram de se considerar
bons cristãos. Isso não evitava que a crença literal na narrativa bíblica da
criação continuasse a existir entre os cristãos mais conservadores e/ou
menos instruídos — a diferença era que “essas pessoas raramente
expressavam seus pontos de vista em livros e jornais. Daqueles que o
faziam, só uma pequena minoria invocava o dilúvio para explicar o
registro fóssil, a mais convincente evidência de uma Terra antiga”, isto
é, com mais de 6 mil anos (Numbers, 2006: 30).
No entanto, essas tentativas de conciliação foram se tornando cada
vez mais difíceis com o passar do tempo. Não eram apenas as camadas
geológicas e os fósseis, passíveis de serem engavetados nas entrelinhas
de um versículo. Quando Charles Darwin publicou sua Origem das
espécies, em 1859, e particularmente sua explicação para o surgimento
da espécie humana em A origem do homem e a seleção sexual, em 1871,
a ideia de uma convergência entre revelação divina e pesquisa científica
já não parecia tão convincente. Agora não se tratava mais de mero
detalhe “técnico” — se os “dias” do Gênesis tinham 24h ou 10 milhões
de anos —, mas de uma questão teologicamente muito mais importante.
Afinal de contas, a teoria lançada por Darwin de que o ser humano
provinha do mesmo ancestral que macacos e gorilas — popularizada,
erroneamente, como a de que “o homem descende do macaco” — tinha
duas consequências imediatas sobre a religião. A primeira era invalidar a
narrativa bíblica da criação do homem, e seu status como criação
especial de Deus, com tudo que isso acarretava termos religiosos, como,
por exemplo, a questão do pecado original. Outra era que o processo de
seleção natural tal como descrito por Darwin prescindia da intervenção
de uma inteligência criadora. Se, em 1859, ele ainda recorria a uma
imagem bíblica (“Portanto, devo inferir por analogia que provavelmente
todos os seres orgânicos que já viveram sobre a Terra descendem de
alguma forma primordial, na qual a vida foi primeiro soprada”88), em
seus escritos posteriores isso foi explicitamente rejeitado. Diante da
sugestão do seu amigo, o botanista americano Asa Gray (1810-1888),
para que reconhecesse “um início sobrenatural da vida na Terra”,
Darwin anunciou, já em seu livro Variação de animais e plantas
domesticados, de 1868, que, “‘por mais que desejemos, dificilmente
podemos seguir a sugestão o Professor Gray em sua crença’ em uma
evolução guiada divinamente” (Numbers, 2006: 16-17). Desta forma,
quando A origem do homem apareceu três anos depois, a teoria da
evolução não apenas havia “rebaixado” o ser humano a um animal como
todos os outros, como ousara também tirar de cena o próprio Deus.
Houve resistências no meio científico, algumas com elementos
religiosos, como a do próprio Gray, defensor de um evolucionismo teísta
que admitia um “projeto” (design) por trás dos processos supostamente
cegos (necessity) da seleção natural (Gray, 1876: cap. II, passim). Outras
eram estritamente seculares, como a do suíço radicado nos EUA, Louis
Agassiz (1807-1873), famoso por seus estudos sobre fósseis e a tese das
eras glaciais. Agassiz defendia uma forma de “criação especial” sem
compromisso com a narrativa do Jardim do Éden: a Terra teria sido
povoada e despovoada várias vezes ao longo da sua existência, graças à
ocorrência de grandes catástrofes planetárias que extinguiriam, a cada
vez, todos os seres vivos existentes. No entanto, outros ressurgiriam em
seguida, sem nenhuma continuidade em relação às gerações anteriores
ao último cataclisma. E ao contrário da narrativa bíblica do dilúvio, as
novas espécies não ressurgiriam a partir de um único casal primordial, e
sim a partir de muitos indivíduos. Curiosamente, apesar da antipatia de
vários cristãos para com essa perspectiva, seria ao prestígio científico de
Agassiz que muitos opositores da teoria da evolução recorreriam durante
os primeiros anos dos debates sobre o darwinismo (Numbers, 2006: 19-
20).
Não obstante, a partir da década de 1870, mesmo críticos como
Agassiz reconheciam que a teoria da evolução já contava com uma
“aceitação universal”, ou quase, nos meios científicos. Em 1879, quando
o jornal Independent desafiou um semanário rival e religioso, o
Observer, a nomear apenas “três naturalistas ativos e de renome nos
Estados Unidos — ou dois ([pois] pode achar um no Canadá) — que não
sejam evolucionistas”, só havia dois nomes possíveis, o geólogo
canadense John William Dawson e o seu colega de Princeton, Arnold
Guyot. E mesmo eles faziam várias concessões ao evolucionismo, como
a progressividade do registro fóssil, a antiguidade da Terra e a
possibilidade de pelo menos um grau limitado de desenvolvimento
orgânico das espécies. O criacionismo clássico das Escrituras, com sua
Terra de seis milênios, criação a partir do nada das espécies em sua
forma atual e status especial para a humanidade, continuava popular nos
Estados Unidos, sem dúvida, porém não mais entre os cientistas
americanos (Numbers, 2006: 19).89
Fosse como fosse, tanto a teologia liberal, e sua base na alta crítica
bíblica, como o evolucionismo representavam rupturas com a visão
tradicional do cristianismo, tão cara a uma quantidade enorme de fiéis.
No caso do protestantismo americano, em especial, eles constituíram um
abalo na inter-relação, dada como certa até meados do século, entre fé,
ciência, Bíblia, moralidade e civilização. Como profetizaria Oliver
Wendell Holmes, o pai do famoso jurista homônimo, “A verdade está
olhando de frente para o mundo cristão, de que as histórias dos velhos
livros hebreus não podem ser tomadas como afirmações literais de fato”
(Marsden, 1980: 17). À medida que esse tipo de ponto de vista,
embalado na autoridade da ciência moderna, começou a se expandir para
além dos muros das academias, ganhando visibilidade, começaram a
surgir reações. No início, estas eram mais pontuais, descoordenadas e
limitadas ao interior de cada denominação, mas por fim acabariam por
gerar um movimento organizado, supradenominacional e com identidade
própria: o fundamentalismo.
2 – A criação de um movimento
O fundamentalismo nasce, portanto, como uma reação. Ele é uma
resposta aos questionamentos dos séculos XVIII e XIX às fontes de
autoridade da tradição protestante, notadamente ao preceito de sola
Scriptura. Também não se distingue por novas doutrinas, mas por um
novo amálgama das já existentes. Suas crenças básicas eram familiares a
qualquer evangélico conservador da época: inerrância da Bíblia, tida
como correta sobre qualquer assunto de que tratasse, fosse em história,
moralidade ou ciência; a realidade do nascimento virginal de Jesus, seu
sacrifício redentor e sua ressurreição, e a certeza de seu retorno90. No
entanto, nas palavras de um de seus maiores estudiosos americanos, o
historiador George Marsden (grifo nosso):
A oposição militante ao modernismo era o que mais claramente
separava o fundamentalismo de um número de outras tradições muito
próximas e a ele relacionadas, tais como o envagelicalismo, o
revivalismo, o pietismo, os movimentos de santidade, o milenarismo, o
confessionalismo reformado, a o tradicionalismo batista e outras
ortodoxias tradicionais (Marsden, 1980:4).
Ainda no século XIX, tensões entre cristãos conservadores e os mais
liberais haviam crescido no evangelismo americano, incluindo até
mesmo processos por heresia, como no famoso caso do acadêmico,
pastor e teólogo do Seminário Teológico Union, de Nova York, Charles
Augustus Briggs (1841-1913). Briggs, que ousou questionar a visão
tradicional da autoridade da Bíblia em um discurso, foi suspenso de suas
atividades, processado, absolvido e depois condenado novamente e
expulso da Igreja Presbiteriana em 1893. Ele só conseguiu se manter no
emprego depois que o Seminário, reagindo ao processo por heresia,
cortou laços com a Igreja. Embora mais notório, esse estava longe de ser
um caso isolado, mesmo numa denominação de destaque como a
presbiteriana (Sandeen e Melton, 2016). Seu caso é instrutivo como um
alerta contra a ideia, posteriormente consagrada no imaginário popular
americano, de que as ideias e posturas conservadoras mais tarde ser
associadas ao fundamentalismo eram características apenas de igrejas
rurais de fiéis pouco sofisticados, fora dos grandes centros.
Mas foi apenas no século XX que o movimento fundamentalista
propriamente dito emergiria. Sua origem imediata está no projeto
concebido em 1909 pelo milionário presbiteriano Lyman Stewart, que,
junto com seu irmão, financiou uma série de doze livretos publicados
entre 1910 e 1915, intitulada Os fundamentos: testemunho para a
verdade. Coordenada inicialmente por A. C. Dixon e depois por Reuben
A. Torrey, a série contava com 90 ensaios de 64 autores de diferentes
denominações — entre clérigos, acadêmicos e escritores populares — e
foi enviada gratuitamente para pregadores, missionários, professores de
Teologia, instrutores da Associação Cristã de Moços e diversos outros
membros do Establishment protestante tanto dos Estados Unidos quanto
de outros países de língua inglesa. Calcula-se que a versão original tenha
chegado aos 3 milhões de exemplares, mandados para cerca de 300.000
pessoas (Marsden, 1980: 118-9; Torrey, 1917: Prefácio). Entre
dissertações sobre dogmas específicos, temas especializados como a alta
crítica e testemunhos pessoais, o objetivo explícito da obra, desde o
título, era a defesa dos elementos fundamentais da fé protestante contra
uma vasta lista de perigos modernos, não só os citados na seção acima,
mas também ideologias políticas, como o socialismo, a Igreja Católica
(“romanismo”) e novos movimentos religiosos, como o espiritualismo, o
mormonismo, a ciência cristã e a Aurora do Milênio (hoje testemunhas
de Jeová). O evolucionismo era citado em alguns dos artigos, sendo
inclusive considerado “moribundo”, mas, em retrospecto, sem a repulsa
apaixonada que teria mais tarde — a alta crítica é que era o alvo
preferencial. Aliás, com algumas exceções, o tom predominante na obra
era moderado, notando-se um esforço dos organizadores para que
diferenças e polêmicas internas — como a doutrina do
dispensacionalismo, que vinha crescendo no meio evangélico — fossem
evitadas. Até mesmo para assuntos mais mundanos, como na abordagem
sobre o socialismo, que despertava furor em muitos púlpitos, a
linguagem adotada é de conciliação: por exemplo, o autor do único
artigo específico a respeito, Charles Erdman, do Seminário Teológico de
Princeton, um dos bastiões da resistência à teologia liberal, afirmava ser
possível ao cristão ser socialista, desde que evitasse determinadas
confusões e equívocos atribuídos ao que o autor chamava de “socialismo
popular”. Tal meio-termo se tornaria impensável poucos anos depois.
Isso porque o esforço de coalizão representado pelos Fundamentos,
visando à defesa da teologia evangélica tradicional contra as diversas
ameaças modernas e sem posicionamentos político específico, teria seu
ponto de inflexão na Primeira Guerra Mundial. Nesse período,
especialmente depois da entrada do país na guerra em 1917, a cultura
dos Estados Unidos foi marcada por uma exacerbação de fenômenos
como a xenofobia (especialmente contra os alemães, apelidados de
“hunos”), a rejeição agressiva às ideologias “estrangeiras” de socialistas,
comunistas e anarquistas (que originaria a primeira grande onda de
perseguição a dissidentes ideológicos, o “Pavor Vermelho” de 1919),
além da intolerância com pacifistas e críticos à guerra; e, por fim, o
nacionalismo militante, jingoísta, frequentemente tingido de uma
retórica religiosa e grandiloquente que equiparava o sucesso dos Estados
Unidos na guerra à sobrevivência da própria civilização cristã. Não
foram poucos os líderes religiosos que ecoaram em seus púlpitos e
escritos a propaganda de guerra ultranacionalista então em voga — no
que não estavam sozinhos, haja vista que eram as opiniões de grande
parte da população no momento, inclusive teólogos liberais (Marsden,
190: 141-147). Essa mistura entre religião e política levou a situações
curiosas, como a do teólogo liberal da Universidade de Chicago, Shirley
Jackson Case, que acusou os grupos pré-milenaristas, tradicionalmente
opostos à guerra e aos governos em geral, de receberem dinheiro alemão
para minar o esforço bélico americano; em resposta, o jornal pré-
milenarista The King’s Business tachou a acusação de “ridícula”, mas
não se furtou a observar que era inegável que a “crítica destrutiva” vinda
de Chicago vinha de “fontes alemãs” — acusação que logo se espalhou
entre os opositores da teologia liberal, alguns dos quais não tinham
pudores em relacionar a imoralidade da Alemanha beligerante à alta
crítica e à teologia liberal originados no país (Marsden, 1980: 148).
É justamente nesse momento de ânimos patrióticos acirrados e
conspiracionismos xenófobos, quando a tradição apolítica de muitos
grupos evangélicos cada vez mais dava lugar a uma mescla entre o
sagrado e o profano, que o pastor batista William B. Riley fundou a
Associação Mundial dos Fundamentos Cristãos, em 1919 (o termo
fundamentalista surgiria somente no ano seguinte, em um jornal batista).
De orientação pré-milenarista e interdenominacional, a organização
expressava bem a nova orientação do fundamentalismo do pós-guerra:
em vez do relativo afastamento do mundo profano enquanto se
aguardava o retorno sempre iminente de Cristo, havia agora uma
preocupação explícita com a condição da sociedade americana. O
motivo era a ameaça representada não apenas por uma teologia desviada,
mas por uma combinação de elementos religiosos e culturais: a teologia
liberal, certamente, mas também o evolucionismo e até o comunismo.
Preservar a fé não seria mais uma questão de igrejas e doutrinas, apenas,
mas também de proteger o caráter cristão da sociedade americana, fosse
em questões de moralidade pública — era a época da 18.ª Emenda, ou
Lei Seca — ou, muito em breve, do currículo escolar. Essa seria uma
característica duradoura do fundamentalismo americano, e uma que lhe
proporcionaria uma aliança com um dos mais destacados líderes
políticos da época: William Jennings Bryan (1860-1925).
Três vezes candidato a presidente, expoente do movimento populista
da década de 1890, ex-deputado e ex-secretário de Estado no governo de
Woodrow Wilson, Bryan era um orador notável, um dos expoentes do
Partido Democrata e um cristão ardoroso. Não era, propriamente, um
fundamentalista, mas tinha uma visão pragmática do papel do
cristianismo na sociedade. Depois de deixar o governo Wilson, em 1915,
Bryan diminuiu seu envolvimento com política, preferindo se dedicar à
religião. Na sua residência na Flórida, comandava grandes reuniões
semanais de estudos bíblicos, que podiam reunir até milhares de pessoas.
Também viajava com frequência pelo país, em palestras, falando sobre a
importância da Bíblia e da religião para uma civilização saudável,
defendendo, particularmente, a proibição do álcool (Prohibition) e, até
1917, a oposição à entrada americana na I Guerra. Ao mesmo tempo, era
defensor de várias causas progressistas, como o sufrágio feminino e
direitos trabalhistas. Para ele, “os ideais de piedade cristã andavam
juntos com os ideais da progressista e democrática nação americana [...],
parte de um ramo otimista da herança evangélica” que tinha perdido
parte de sua influência desde a Guerra Civil. Eram opiniões bastante
comuns entre os evangélicos conservadores da época, que podiam ser
abertos a ideias de reforma sem renunciar a sua ortodoxia religiosa.
O que levou Bryan, um presbiteriano, a se associar à nascente
movimento fundamentalista foi um ponto específico: o evolucionismo.
Já em 1909, o próprio William B. Riley se queixara de que, “Todo
pregador da hora presente é obrigado a lidar com a teoria da evolução.
Seus advogados invadiram [nosso] reino” (Numbers, 2006: 51). Ao
iniciar a década de 1920, o evolucionismo acabou sendo visto como a
epítome da hostilidade moderna à fé cristã, especialmente porque,
constituindo a esta altura um consenso científico, passara a integrar o
conteúdo dos livros didáticos. Dessa forma, todo jovem estudante
americano era exposto a uma objeção à narrativa bíblica, envolta na
autoridade da ciência como uma verdade. Isso, para os fundamentalistas,
era um erro grave que induzia os jovens à descrença e por isso tornou-se
um foco de indignação em seus jornais, pregações, livros e panfletos. O
resultado foi que, ao longo da década, “mais de vinte legislaturas
estaduais debateram leis antievolução,e três — Tennessee, Mississippi e
Arkansas —baniram o (seu ensino) das escolas públicas. Um quarto,
Oklahoma, proibiu a adoção de livros didáticos evolucionistas” e um
quinto, a Flórida, considerou o ensino da teoria darwinista como
“impróprio” e “subversivo”. Até o Senado americano chegou a debater
projetos de lei nesse sentido, mas não acabou por rejeitá-los” (Numbers,
2006: 55).
Bryan juntou-se a essa cruzada em 1921. Um homem culto, com
várias formações universitárias, ele não era, porém, versado em Biologia
e tampouco um estudioso acadêmico da Bíblia. Ele nem mesmo era um
literalista, diferente de seus aliados nessa luta. Para Bryan, a questão
maior era de manter os benefícios da fé para a civilização, o que o
evolucionismo punha em risco. Sem a crença na Bíblia e na religião
cristã, os jovens estariam expostos a uma degradação moral que podia
até mesmo levá-los ao crime. E havia ainda uma questão de democracia,
em que a história de Bryan com o populismo se fazia sentir: ele se
queixava dos “cientistas elitistas que queriam ‘estabelecer uma
oligarquia sobre 40 milhões de cristãos americanos’” e ditar a eles o que
poderia ou não ser ensinado nas escolas. Cabia ao povo tomar esse tipo
de decisão, como já tinha feito na questão da Lei Seca, aprovada em
1919 (Numbers, 2006: 58).
O auge dessa batalha contra a teoria evolucionista veio em 1925, no
Tennessee. Para testar a constitucionalidade da proibição do ensino da
teoria evolucionista91, a recém-criada União Americana pelas Liberdades
Civis (ACLU, na sigla em inglês) recrutou um professor da cidade de
Dayton, John T. Scopes, que infringiu deliberadamente a proibição e por
isso foi processado. A punição era apenas uma multa, mas a ACLU tinha
interesse em dar a máxima visibilidade ao caso e para isso montou uma
equipe de advogados que incluía o famoso Clarence Darrow (1857-
1938), um agnóstico com experiência em julgamentos notórios. Além
disso, vários estudiosos seriam convocados como testemunhas para
validar a legitimidade da evolução como tópico científico e escolar. O
lado da acusação, porém, também contou com um “astro”: ninguém
menos que William Jennings Bryan, que viu ali uma oportunidade de
pôr à prova seus argumentos antievolucionistas e fortalecer sua causa.
Estava claro que o que menos importava no Caso Scopes, apelidado
jocosamente de “O Julgamento do Macaco” (The Monkey Trial), era o
réu. O processo era um verdadeiro bufê de interpretações e
enquadramentos possíveis: ciência vs. religião, obscurantismo vs.
progresso, a sofisticação urbana vs. o reacionarismo rural, entre outros,
cada um deles à espera de um narrador competente. O mais memorável
nessa tarefa foi H L. Mencken (1880-1956), escritor e jornalista célebre
pelo seu humor cáustico. Implacável com Bryan, que tinha vindo para
“um vilarejo de um cavalo só no Tennessee” e amava “os primatas
boquiabertos dos vales altos”, Mencken ajudou a eternizar o caso na
memória popular como um choque entre a modernidade metropolitana e
o reacionarismo fanático do interior ignorante. O estereótipo do
fundamentalista como “caipira” e “atrasado”, ressentido dos homens da
cidade, em vez de membro de um movimento religioso específico em
oposição a certos aspectos da cultura moderna, se consagrava ali. “Os
fundamentalistas estão em todo lugar onde o ensino é um fardo pesado
demais para as mentes mortais (...). Eles marcham com a [Ku-Klux-
]Klan” e várias outras organizações típicas de interior, todas “as bandas
rococós que as gentes pobres e infelizes organizam para trazer alguma
nova faísca de propósito a suas vidas” (Marsden, 1980: 187-8).
O processo terminou com a condenação de Scopes, cuja multa foi
paga por um jornal da Baltimore (a decisão seria revertida mais tarde
pela Suprema Corte estadual, com base numa tecnicalidade). Mas, para
os antievolucionistas, foi uma vitória de Pirro. Já no final do julgamento,
Darrow e Bryan concordaram em se interrogar mutuamente como
testemunhas. Bryan foi primeiro, e Darrow o fuzilou com questões sobre
contradições bíblicas e passagens que contrariavam o consenso
científico, ao que o ex-secretário de Estado respondeu de forma
defensiva e mesmo embaraçosa. O juiz do caso acabou encerrando os
trabalhos sem que Bryan pudesse dar o troco, e esse último desempenho
do grande orador acabou sendo seu canto de cisne na cena pública. Com
65 anos e diabético, Bryan morreria dias depois na própria Dayton, onde
ainda tinha permanecido para fazer alguns discursos públicos e
participar de atividades religiosas (Kazin, 2006: cap. 6). Otimista,
planejava publicar um discurso final que o término antecipado do
julgamento não lhe dera ocasião de usar, talvez sem saber que, em
grande parte da imprensa nacional, sua biografia estava sendo para
sempre associada ao anti-intelectualismo e ao obscurantismo.
Em muitas narrativas sobre o fundamentalismo, a conclusão do Caso
Scopes é vista como uma espécie de derrocada. Embora embates entre
fundamentalistas e liberais ainda continuassem por alguns anos no seio
de diversas denominações americanas, de maneira geral os primeiros
seriam derrotados. Nas denominações centrais do protestantismo
americano, embora houvesse opções teológicas mais ortodoxas que o
liberalismo, muitos dos fundamentalistas propriamente ditos acabariam
por formar igrejas separadas, com quadros formados fora das
universidades e seminários tradicionais. No lugar destes, optaram por
criar “institutos bíblicos” e até instituições próprias de ensino superior,
como a Universidade Bob Jones, fundada na Carolina do Sul em 1927.
Essa “retirada” em relação ao Establishment protestante tradicional teria
uma justificativa teológica na forma da doutrina de “separação de
segundo grau” — “separação não apenas do pecado, da mundanidade e
da apostasia, mas também de outros cristãos que estavam demasiado
próximos dessas coisas” (Sweeney, 2012: posição 109). Assim,
enquanto grande parte dos protestantes americanos, mesmo os
evangélicos conservadores, manteve-se em diálogo com a cultura
moderna — mesmo naquilo que impactava seus posicionamentos
teológicos —, grande parte dos fundamentalistas seguiu outro caminho:
o da recusa.
Paradoxalmente, essa postura não os tornou irrelevantes. Alguns dos
grandes evangelistas americanos do século XX começaram sua carreira
como fundamentalistas, como Billy Sunday e Billy Graham. E a
convicção de que o destino dos Estados Unidos dependia do caráter
cristão de seu povo impedia uma retirada completa do espaço público,
pelo contrário, às vezes era um incentivo na direção oposta. No pós-
Segunda Guerra, questões como a constitucionalidade das orações em
escolas públicas e do aborto mobilizaram fundamentalistas, bem como
vários outros grupos religiosos. E, em fins dos anos 70, movimentos
como a “Maioria Moral” do pastor Jerry Falwell mostraram sua
musculatura eleitoral ajudando na eleição do conservador Ronald
Reagan para a presidência. A partir daí, a chamada “Direita Cristã” —
que não se limitava aos fundamentalistas, mas na qual tinham um peso
importante — se tornou um termo familiar no noticiário político
americano, e uma força a ser reconhecida nos cálculos eleitorais. Ao
mesmo tempo, disputas sobre currículos escolares em estados do Sul,
incluindo a inclusão de teses criacionistas em pé de igualdade com a
teoria evolucionista, continuaram, agora no contexto de guerras culturais
entre conservadores e progressistas, durante os anos 1980 e 90. Se, como
diz George Marsden, “um fundamentalista é um evangélico zangado
com alguma coisa”, os Estados Unidos pós-Scopes continuaram um
campo bastante rico em motivação (Marsden, 2006: 235).
84 No Brasil, evangélico é popularmente usado como sinônimo de protestante, sem maiores
distinções. Historicamente, no entanto, pode-se dizer que o evangelismo ou evangelicalismo é uma
corrente protestante com raízes no século XVIII, caracterizada pela centralidade da experiência
da conversão individual (ou “renascimento”) e do papel de Jesus Cristo para a salvação, a
aceitação da Bíblia como verdade absoluta e a ênfase no proselitismo. Os fundamentalistas de que
trataremos constituem um subgrupo evangélico, caracterizado pela diferença de posicionamento
frente a certos aspectos da cultura moderna, como se verá adiante. Cf. o prefácio de Sutton, 2014.
85 A alta crítica, hoje simplesmente chamada de crítica bíblica, estuda a autoria, fontes e
composição dos textos, seus objetivos e público-alvo, bem como periodização e circunstâncias de
redação. Trata, portanto, do texto em seu contexto histórico. Já a baixa crítica, atualmente crítica
textual, preocupa
-se com a transmissão e preservação dos textos, o estudo dos diversos manuscritos e outras
questões internas.
86 A contraparte católica desse movimento seria conhecida como modernismo, formalmente
condenada pelo papa Pio X na encíclica Pascendi Dominici Gregis, em 1907 (Cf. PIO X, 1907).
Alguns autores, contudo, acabam usando o termo para também se referir às novas tendências
intelectuais no cristianismo de maneira geral. Para evitar confusão, neste texto usaremos apenas
“teologia liberal”, já que nosso foco é o protestantismo americano.
87 Nos EUA, designa-se dessa forma o movimento social contra o consumo de álcool, criado no
século XIX e cujo feito mais notório foi a aprovação da 18.ª Emenda à Constituição, mais
conhecida como “Lei Seca” (1919-1933).
88 Grifo nosso.
89 A bem da verdade, continua popular até hoje. Segundo pesquisa do Gallup Institute,
divulgada em 2017, 38% dos adultos americanos acreditam que “Deus criou o homem em sua
forma presente”. Tal número, que pode parecer muito alto à primeira vista, foi na verdade o
mais baixo registrado desde que o instituto começou a fazer anualmente esse levantamento, em
1982. Vale observar que, conforme a mesma pesquisa, o índice de criacionistas entre pessoas com
pós-graduação chega a 21%. Cf. Swieft, 2017.
90 Neste último ponto, havia uma divergência entre os protestantes americanos: havia aqueles
que acreditavam que a vinda de Jesus aconteceria depois dos mil anos de paz anunciado no
capítulo 20 do livro do Apocalipse, e que eram chamados de pós-milenaristas; e aqueles que
criam que Jesus voltaria antes do citado milênio, chamados pré-milenaristas. Essa divergência
implicava posturas diferentes frente ao mundo: os pós-milenaristas tendiam a ver os progressos
humanos como um sinal da vinda do milênio, portanto eram mais abertos a propostas de
melhorias da vida humana na Terra, como reformas sociais ou inovações científicas; já os pré-
milenaristas eram pessimistas, acreditavam que somente a intervenção direta de Cristo faria uma
real diferença no mundo e tentativas humanas nesse sentido eram essencialmente fúteis. Esta
última perspectiva é que acabaria por se consolidar entre os fundamentalistas, mesclada com
doutrinas mais recentes, como o dispensacionalismo (a crença de que a revelação divina se divide
em diferentes períodos, as dispensações¸cada qual com leis específicas) e o arrebatamento
(segundo a qual, no fim dos tempos, Deus irá levar aos céus os cristãos vivos e mortos).
91 “Testar a constitucionalidade”, nos EUA, se refere ao uso de um caso judicial para provocar a
Suprema Corte a avaliar se uma lei específica violaria os princípios constitucionais do país. É um
recurso que, embora requeira tempo e dinheiro, foi responsável por vários marcos na história do
país, como, por exemplo, o fim da segregação racial nas escolas públicas (Brown v. Board of
Education, 1954).
VII. A Resistência

Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek


O Fundamentalismo é detentor de uma força avassaladora. Parte da
explicação de sua força está no poderoso e vigoroso financiamento que
recebe. Não é por outro motivo que quando se junta os recursos oriundos
daquilo que se denomina hoje Setor de Óleo e Gás, com as
reivindicações pré-milenaristas e a negação de teorias científicas,
especialmente aquelas que apontam para uma dinamicidade da natureza
em sua relação com as interferências humanas, entende-se o porquê
desse fluxo de recursos. Para nós, o Fundamentalismo é uma ideologia
que nasce embebida e embalada pela religião, mas que no final do século
XX ganha um contorno, uma feição mais política, embora ainda se
aproprie de elementos do discurso religioso para legitimar ações de um
capitalismo predatório.
Sua pauta religiosa é ortodoxa-moralista-heterônoma92, oriunda das
trincheiras de grupos e lideranças religiosas que sentiram o
escanteamento da religião por conta da evolução da ciência e do
otimismo com a Razão, especialmente de meados do século XIX ao
início do século XX. Esse escanteamento na percepção de Harry
Emerson Fosdick (1878-1969) se devia a um duplo fator: em primeiro
lugar, o discurso religioso que optou por pautar a relação com Deus na
base do preenchimento, da resposta, do que Deus faz e não em quem
Deus é; em segundo lugar, como consequência, a evolução da ciência
fez com que cada vez menos o ser humano dependesse de respostas
divinas, tornando tanto Deus “menos necessário”, quanto transformando
a ciência numa “religião popular” (Fosdick, 1926: 140). No entanto,
Fosdick ressalta que a ciência “não tem ocupado o espaço de Deus”
(Fosdick, 1926: 140). Ao rejeitarem a proposta de tentativa de diálogo
dos teólogos liberais (também chamados de “modernistas”) com esse
novo momento cultural, os fundamentalistas cobriram a religião cristã
com um denso véu.
Mesmo assim, seus recursos não evitaram que o movimento
experimentasse um arrefecimento ainda na primeira metade do século
XX. Para os que vivemos a experiência oposta, qual seja, a do
recrudescimento do fundamentalismo, é difícil considerar a
possibilidade de uma força contrária a este movimento que tenha alguma
chance de sucesso. No entanto a história registra que houve uma forte
resistência ao movimento fundamentalista, especialmente na década de
1920.
Nosso objetivo nesse capítulo, no entanto, não será historiar os mais
diferentes atores dessa resistência, mas sim os principais argumentos que
foram usados de maneira satisfatória para resistir ao fundamentalismo.
Trata-se de um texto construído por um teólogo a partir de outro teólogo.
Ainda que tanto o historiador quanto o teólogo partam de relatos, de
narrativas, nos parece haver uma distinção fundamental no trabalho de
ambos: para o historiador, grosso modo, o relato determina a mensagem;
já para o teólogo, a mensagem determina o relato. Não por outro motivo
que você irá encontrar aqui uma preocupação em mostrar o pensamento
resistente, e não um relato histórico e até mesmo descritivo dessa
resistência. Nesse sentido é que focaremos nossa atenção no pensamento
do teólogo estadunidense Harry Emerson Fosdick visando elencar seus
principais argumentos daquele que foi considerado por muitos, como um
dos principais opositores do fundamentalismo.
1. A Importância de Fosdick e a Resistência
Fosdick foi pastor em Riverside, sendo um dos mais prestigiados
pregadores e teólogos americanos na primeira metade do século XX. Sua
percepção do labor teológico e homilético se espraiava numa clara
perspectiva que caracterizou o liberalismo nascente e delineou o pós-
liberalismo: o diálogo com as demandas sociais e culturais, assim como
com a ciência. Para Fosdick, a evolução científica não implicava numa
necessária anulação do texto bíblico, nem tampouco numa ameaça,
como os conservadores e fundamentalistas gostavam de apregoar93. Para
o teólogo de Riverside a “ameaça” estava digerida ao pregador, ao
teólogo, pois caberia a ele fazer um novo esforço hermenêutico
objetivando reinterpretar o texto bíblico. Em sua concepção, sendo a
ciência aferidora de uma forma de verdade (a científica) e a Bíblia
aferidora de outra forma de verdade (a religiosa, espiritual), nos pontos
em que havia algum tipo de interseção era premente a busca de um
equacionamento. A essa postura, Fosdick (1961) chamou de “nova
aproximação” do texto bíblico.
Logo se depreende que Fosdick, ao invés de estabelecer dimensões
estanques (como os conservadores) ou mesmo de ataques sumários à
Ciência (como no caso dos fundamentalistas num primeiro momento),
buscou promover o diálogo entre a pesquisa acadêmica e a pesquisa
bíblica. Para ele, a ciência podia iluminar as passagens bíblicas (Fosdick,
1961).
Sua importância, no entanto, não é medida só pela qualidade de seu
pensamento. Dois outros fatores são de importante destaque: o primeiro
é o amplo reconhecimento que teve e tem, dos mais diversos setores e
correntes teológicas, como uma das principais vozes contra o nascente94
fundamentalismo; o segundo é sua relação ministerial como
presbiteriano e batista (Mendonça, 2001: 124 e Hordern, 2003: 75), os
dois grupos que assumiram a proeminência na defesa do
fundamentalismo. Foi uma resistência de dentro e é nessa qualidade que
deve ser considerado.
Diferentes obras, de diferentes correntes teológicas, inclusive
fundamentalistas, atestam sua importância. William E. Hordern (2003)
defensor do que seria uma espécie de “fundamentalismo ilustrado” (se é
que isso pode existir), cita em seu texto a resistência de Fosdick. Roger
Olson (2001), que estaria mais para um conservador moderado, ressalta
a importância de Fosdick dentro da teologia liberal norte-americana. A
pesquisadora e escritora inglesa Karen Armstrong (2001) menciona o
histórico sermão de Fosdick pregado na North Baptist Convention em
1922, como sendo um dos mais importantes momentos de resistência. O
professor Antônio Gouvêa Mendonça (2001) entende que a influência de
Fosdick não ficou restrita a América, mas que ela se fez sentir, inclusive,
na teologia brasileira. Em obras mais recentes, Fosdick também é
lembrado devido a sua importância e singularidade (Dias e Barbosa:
2019).
O outro aspecto do valor de sua análise é que ele faz a crítica a partir
de dentro, o que demonstra que por todo tempo, mesmo embaixo dessa
compactação que o fundamentalismo impinge mediante sua cooptação,
sempre há uma dissidência95. A relevância desse fato se faz notar
especialmente porque o fundamentalismo passou a ser associado
posteriormente e predominantemente a “batistas dispensacionalistas
separatistas” (Dias e Barbosa; 2019: 47). Nesse sentido, Fosdick mantém
a melhor perspectiva e postura batista a qual evita a aproximação com
uma ortodoxia inflexível e rarefeita. No dizer de Walter B. Schurden
(2018: 41), “os batistas não baseiam sua fé em credos”, conquanto
tenham sido influenciados por alguns deles na sua formulação
doutrinária. Segundo ele, “quando os credos substituem a Bíblia, nós
perdemos tanto a Bíblia quanto a liberdade em sua abordagem”
(Schurden, 2018: 42). Não é por outro motivo que o mesmo Fosdick
lembrado pela academia é esquecido pelos batistas, tanto do Sul dos
Estados Unidos, como pelos do Brasil.
Outro fator de resistência foi a comunidade científica, bem como a
repercussão da opinião pública. Já em 1920 houve o prenúncio do que
seria o caso Scopes. Um professor de Baylor, Grove S. Dow passou a
ensinar a teoria da evolução em sala de aula, a qual teve forte reação de
John Franklin Norris, à época pastor da Primeira Igreja Batista de Fort
Worth. O resultado da polêmica foi a renúncia do professor à sua cátedra
e a exclusão do pastor e igreja da Convenção Batista Estadual do Texas
(Dias e Barbosa; 2019: 39).
Já no caso mais ruidoso, o professor de biologia no Tenesse, John T.
Scopes foi acusado de ensinar a teoria da evolução em suas aulas. Seu
julgamento, conhecido como
Monkey Trial parece ter exaurido o movimento fundamentalista de
então. Mesmo tendo vencido o caso no tribunal, o fundamentalismo foi
exposto midiaticamente a um desgaste contínuo, gerando uma vergonha
pública (Dias e Barbosa; 2019: 41). Tal desbastamento arrefeceu o
movimento, embora alguns autores defendam uma espécie de
recolhimento para posterior inserção (Dias e Barbosa, 2019).
Digno de nota também é o que chamamos aqui de Retângulo da
Resistência. A Riverside Church, igreja pastoreada por Fosdick, distava
a duas quadras do Union Theological Seminary. Um lugar que, segundo
Paul Tillich (2004) primava pela liberdade mediante a promoção de um
pensamento dialético. Segundo Tillich (2004: 175), “muitos dos
fundamentalistas não gostariam de ver seus futuros teólogos educados”
num lugar como aquele. Foi no Union que Dietrich Bonhoeffer esteve
num intercâmbio no início da década de 1930 e que marcou
profundamente sua teologia.
Embora o Union Theological Seminary fosse um privilegiado espaço
para a construção de uma teologia, ele não se envolveu diretamente no
embate contra o fundamentalismo. Possivelmente porque as
preocupações mais imediatas dos cristãos negros eram outras, como a
luta contra o rascismo, por exemplo. Fundamentalismo era uma questão
do fazer teológico pelos brancos (Bean, 2015). Entretanto, não há a
menor dúvida de que ao lutar contra o rascismo, a Teologia Negra
gestada no Union Theological Seminary concedia particular e
imprescindível contribuição na luta contra o fundamentalismo.
2. O Fundamentalismo para Fosdick
No processo de compreensão da resistência ao Fundamentalismo no
seu berço protestante, em particular sob a perspectiva de uma das mais
altissonantes vozes contrárias a este movimento ideológico, faz-se
necessário o entendimento de como Harry Emerson Fosdick o
interpretava. Para o teólogo em questão, o Fundamentalismo apresenta
uma dupla incongruência: a primeira, dentro do espectro do próprio
estudo da religião; a segunda, o que para ele é mais evidente, é o
completo destoamento com a figura de Jesus, a própria razão
constitutiva do cristianismo. Fosdick também assinala o argumento não
original das postulações fundamentalistas, bem como seu caráter
impositivo.
2.1 O Fundamentalismo como Incongruência Religiosa.
Para Fosdick (1932), o Fundamentalismo norte-americano é
incongruente e aflora dentro da religião. Sua incongruência se dava
primeiramente na perda da finalidade da religião, uma vez que o
fundamentalismo aponta para uma tentativa de salvar a religião cristã,
diante de sua gradativa queda na América do Norte, e das forças
consideradas ameaçadoras (dentre as quais a Ciência) a uma combalida
expressão religiosa. Para ele, “quando as pessoas se propõem a salvar
uma religião, há algo errado aí, uma vez que é a religião que busca
salvar as pessoas” (Fosdick, 1932: 7). A consequência dessa postura era
a perda da vitalidade96 da religião, de seu elemento dinâmico, de seu
fator propulsor. A causa estava numa falha da Igreja Cristã na sua ênfase
a forma e não à experiência. A defesa do modelo doutrinal, de uma
ortodoxia sempre trouxe um arrefecimento à vida eclesiástica, um
“sufocamento da vida que há na verdadeira religião” (Fosdick, 1932:
22). A própria Igreja de Éfeso, impressa nas páginas do Novo
Testamento, experimentou esse esfriamento do amor (Atos 20 e
Apocalipse 2:1-7).
Esse sufocamento não estava restrito a dimensão comunitária ou
mesmo denominacional. A pretensão fundamentalista é a da
padronização do indivíduo, de sua programação ou mesmo robotização.
Ao se deixar moldar pelos “aspectos obscurantistas” do
fundamentalismo, a religião perde sua mais autêntica força vital, que é a
promoção de uma consciência livre e libertária, valor distintivo do
legado protestante. A sujeição a elemento de manipulação da
consciência alheia degrada a religião, transtornando-a a ponto de virar
um “guia de escravos” (Fosdick, 1926: 209).
Essa ênfase ortodoxa tem reflexo na história da Reforma, momento
histórico para o qual muitos fundamentalistas procuram olhar. Não é por
outro motivo que defendem uma “nova reforma”, mas não tanto aquela
preconizada por Lutero ou mesmo radicalizada por alguns dos seus
contemporâneos discípulos, como Tomaz Müntzer. O foco desse projeto
é o resgate do primeiro grande neto da Reforma, a Ortodoxia, produzida
pela segunda geração de líderes reformadores, dentre os quais se destaca
Teodoro de Besa (Olson, 2001).
Contra isso é Fosdick que nos lembra que “Cristianismo não é uma
forma, mas uma Força” (Fosdick, 1944: 89). Não por outro motivo que a
religião deve preservar a postura de diálogo com a vida, com a
sociedade. Para Fosdick, ela começa a morrer quando se apega a
problemas que não são as questões existenciais que incomodam as
pessoas. Nesse momento ela se torna “decrépita”, pois se volta “para sua
auto-sustentação, para defender seus dogmas e não para gerar um espaço
de experiência real e vital com o divino” (Fosdick, 1932: 32). Aliás, o
teólogo batista defende um triplo caminho para que a religião não
caminhe para a tolice: a) manter o reconhecimento das leis da natureza;
b) a valorização da renúncia pessoal, grande marca da experiência
religiosa e a busca pela transformação do mundo e não a fuga dele
(Fosdick, 1932: 124). O convite do teólogo era para a promoção do
Reino de Deus e não para a preservação da denominação que encampa
um grupo de igrejas. Na lógica do pastor estadunidense: ao enfatizar o
Reino um grupo religioso cristão automaticamente se preservaria; ao
tentar se preservar, o grupo se prejudicaria, lembrando assim a lógica de
Jesus presente no Evangelho segundo Mateus, capítulo 16, versos 25-26.
2.2 Incongruente com o próprio Jesus Cristo.
A incongruência não se manifesta somente na forma ou mesmo na
mudança de uma agenda, ou mesmo da constante promoção da perda da
vitalidade da religião. Esta chamada incongruência reside no paradoxal
indiferença-diferença com a razão maior de ser do cristianismo, a figura
de Jesus de Nazaré. Indiferença porque a produção do pensamento
teológico e defesa da ortodoxia pelo fundamentalismo se dá com
absoluta desconsideração pela mensagem e vida de Jesus de Nazaré.
Diferença por sua vez porque, ao desconsiderá-lo, a teologia que daí
emerge tem sérias dificuldades de compactação com o ensino de Jesus.
No dizer do teólogo: “a religião de Jesus é distinta da religião sobre
Jesus” (Fosdick, 1926: 305).
O que estamos sugerindo aqui a partir de Fosdick? Que o
Fundamentalismo como elemento posterior da experiência religiosa,
acabou enfatizando uma forma mais “domesticada” de religião, fruto da
sua história, da sua tradição, do que o núcleo vivo dela que está, no caso
do cristianismo, na experiência com o Cristo, e na vivência dos seus
ensinos.
Fosdick trabalha com uma perspectiva de não enquadramento
múltiplo. Jesus não pode ser enquadrado por nenhuma perspectiva, ou
corrente teológica, quiçá pelo Fundamentalismo. À Igreja Cristã para ele
tampouco cabia o caráter validador do enquadramento de quem era ou
não cristão. Segundo ele, “é possível estar fora das formulações oficiais
da fé cristã e ser genuinamente cristão” (Fosdick, 1926: 34). Já no
tocante à teologia, esta precisa resgatar a noção de progressividade da
revelação a fim de ser mais cautelosa em suas formulações, coisa que os
líderes judeus não entenderam e que os fundamentalistas insistem, numa
certa dimensão, em ignorar.97
O teólogo estadunidense sacramenta essa incongruência, feita em
nome e em defesa da fé cristã, mas que a prejudica pelo seu
distanciamento do próprio Jesus. Sua declaração é lapidar e foi feita no
auge do embate com o fundamentalismo, na pregação que fez na
Convenção Batista do Norte em 1922 e cuja fala teve uma reverberação
única. Na ocasião ele afirmou que: “você não pode encaixar Jesus Cristo
no molde Fundamentalista” (Fosdick, 1978: 32). Ao dizer isso, o pastor-
teólogo deslegitimou, cortando pela raiz, o argumento fundamentalista.
Não eram eles, os “liberais” que perderam Jesus de vista no seu labor
teológico, mas os fundamentalistas que de tão preocupados com a
moldura, com o enquadramento, retiraram Jesus do coração de sua
teologia.
2.3 Incongruente como falta de originalidade
Um outro aspecto apontado por Fosdick que devia ser considerado por
aqueles que procuram defender o fundamentalismo é a falta de
originalidade do seu argumento. A importância desse sublinho está no
fato de que no campo da teologia cristã a originalidade é um elemento de
distinção, quase “digitalização” do divino. O traço original é uma marca
distintiva de Deus. No entanto, pontos defendidos pelo fundamentalismo
também podem ser encontrados em outros sistemas religiosos.
Nesse sentido é que o teólogo aponta para o problema primário do
fundamentalismo: “suas doutrinas fundamentais também pertencem, em
grande parte, há outros grupos religiosos” (Fosdick, 1932: 40). A noção
de um fundador sacralizado por um discurso que o preserva desde o
útero de sua mãe, com uma concepção não puramente humana e com um
nascimento virginal não é exclusiva da narrativa cristã. Outros grupos
religiosos ao longo da história também produziram narrativas que
apontavam para esse mesmo aspecto, seja a partir dos seguidores que
tentam extrapolar a validação da vida de seu mestre, seja através de
crenças míticas infundidas em comunidades (ágrafas ou não) de que uma
divindade desceria a terra em forma humana, nascendo de uma mulher
(só para ficar num exemplo).
O incrível dessa situação é que a originalidade cristã, segundo
Fosdick, não estava ligada a ortodoxia cristã, mas sim ao caráter pessoal
e antropocêntrico do cristianismo. A gravidade dessa pontuação está em
seu caráter antitético. Uma das principais acusações do
Fundamentalismo é que a Modernidade trouxe no seu bojo um forte
elemento humanista98, que influenciou a prática cristã a qual teria se
tornado menos cristocêntrica e mais antropocêntrica. Nesse sentido o
fundamentalismo corre na contramão da prática de Jesus de Nazaré: este
sacralizou a vida humana99; aquele quer sacralizar o Cristo, o credo, já
que a defesa da depravação100 total do ser humano impede sua
sacralização. Para Fosdick, “Jesus alocou o senso do sagrado na
personalidade e vida humana” pois “nada foi mais sagrado para ele”
(Fosdick, 1932: 48).
Na percepção de Fosdick, a qual não está distante da antropologia
teológica de Ludwig von Feuerbach, o caráter antropocêntrico da fé
cristã se faz não só pela compreensão, mas também pela comunicação. O
sumário da vida cristã para o pastor de Riverside podia ser resumido “na
interpretação do mundo espiritual em termos de personalidade e a
interpretação da personalidade em termos de Cristo” (Fosdick, 1932:
58). Apropriando-se do pensamento tomista, o teólogo americano
defende a compreensão de que a única forma de nomear as coisas
divinas é a partir do empréstimo imagético e simbólico das coisas
criadas, em que pese seu reconhecimento do limitado e fragmentado
conhecimento sobre Deus.
Foi a antropologia de Jesus e não sua teologia, que causou inúmeros
embaraços com os judeus de seu tempo. O ensino de Jesus era sobre
uma dignidade humana que ultrapassava as fronteiras e as barreiras
étnico-religiosas. Para um povo que se percebia como escolhido por
Deus, admitir que a vida de qualquer “gentio” era de igual valor ao
melhor judeu, causava repulsa. Foi isso que o Mestre sentiu em Nazaré,
segundo o relato do evangelista Lucas no capítulo quatro. Seu ministério
quase foi abreviado, diante da tentativa de linchamento e homicídio que
sofreu.
O ensino de Jesus sobre Deus, em plena sinagoga, surpreendeu
aqueles que ouviram falar de sua fama em Cafarnaum, e que o
conheceram em sua meninice. Contudo, foi no ensino sobre o ser
humano, especialmente ao apontar a inserção de Elias e Eliseu com
pessoas que não pertenciam ao chamado “povo de Deus”, que Jesus
experimentou aquilo que Fosdick chamou de despertar de uma “ira
adormecida” (Fosdick, 1926: 32). Ensino esse que entre outras coisas
ressaltou a importância da práxis religiosa como uma dimensão da
vitalidade da religião.
2.4. Fundamentalismo como Imposição
Ao longo dessas últimas páginas vimos mostrando como o pastor de
Riverside enxerga o fundamentalismo. Cabe-nos agora finalizar esse
processo jogando luz sobre aquilo que talvez seja a parte mais visível e
paradoxal do Fundamentalismo: sua vocação para a imposição e sua
capilaridade, seu apelo.
A vocação para a intolerância possivelmente está assentada para
aquilo que Rubem Alves assinalou como a distinção crucial em termos
de organização entre a Igreja Católica e a Protestante. Para o teólogo
mineiro, a Igreja Católica se definiu pela noção de integridade, enquanto
a Protestante pela valorização da verdade101. Ao se preocupar com a
definição da verdade, o protestantismo valorizou a ortodoxia, o que
“torna impossível a tolerância, sem a qual a liberdade e o livre exame
não podem sobreviver” (Alves, 2004: 117). Não é por outro motivo que
a educação fundamentalista se dá pela doutrinação, abolindo qualquer
possibilidade de construção do saber ou mesmo de participação
reflexiva, solidária e responsável.
Um exemplo clássico dessa imposição, por necessidade diante de um
mundo que piora cada dia mais, é a crença na literalidade da parousia
(doutrina da volta de Jesus Cristo) (Fosdick, 1926), fato este destacado
inclusive pelo recrudescimento da escatologia pré-milenista a partir “do
fim da Primeira Grande Guerra” (Fosdick, 1932: 37). O teólogo
estadunidense achava curioso que a revolução tecnológica teve a
capacidade de mudar a visão da vida pela própria humanidade, mas foi
impotente para alterar as “concepções sobre Deus fornecidas por
sociedades antigas” (Fosdick, 1926: 91). Monarquia celestial, a figura de
um trono, entre outras imagens de um mundo cada vez mais distante
histórica e culturalmente falando, são exemplos evocados por ele para
ilustrar essa inquietante dicotomia.
Outro exemplo que trouxe muita repercussão é a compreensão da
inerrância bíblica. Essa noção em meio ao tumulto criado pelo ensino da
teoria da evolução102, fez ressurgir, para Fosdick (1926) a controvérsia
entre ciência e religião. Para ele foi esse caráter impositivo do
Fundamentalismo que gerou um “desagradável tempo de acalorada
controvérsia” (Fosdick, 1926: 92). O argumento fundamentalista partia
em defesa um Deus que não erra e não pode errar. O teólogo de
Riverside por sua vez argumentou que a Bíblia não era um livro
inerrante, nem tampouco seria necessário o uso do recurso de autoridade
para dar valor ao texto. Na verdade, para ele, tal recurso enfraquecia o
próprio texto.
Já a capilaridade do Fundamentalismo se dá por diferentes motivos. O
primeiro deles está num elemento de deficiência do projeto educacional
cristão. Para muitos, o cristianismo foi reduzido a um credo, ao modelo
doutrinal cristão (Fosdick, 1944). Foi assim que aprenderam. Dessa
feita, quando um grupo reafirma esse aprendizado ou mesmo se interpõe
como aquele que representa o verdadeiro cristianismo, a identificação,
pelos que foram assim doutrinados, é quase imediata.
Dentro dessa mesma perspectiva, Fosdick (1932) atribui à passividade
do homem moderno e sua inabilidade para lidar com esse tipo de pauta,
devido a sua incredulidade, a capilaridade fundamentalista. Nesse caso,
há um processo passivo e acrítico de assimilação do conteúdo. Além
disso, destaca-se outro elemento nesse processo de assimilação passiva:
o cansaço. Para Rubem Alves, o “momento emocional que vivemos, de
desapontamento e cansaço, é que faz com que as respostas religiosas do
tipo dogmático e final sejam muito mais atraentes” (Alves, 2004: 83).
Outro fator de capilaridade é o tipo de resultado que essa variante de
proposta religiosa produz. Segundo Fosdick, o resultado apregoado pela
agenda fundamentalista encontra eco nas mais variadas pessoas, das
mais diferentes classes sociais e até mesmo entre aqueles que “não
possuem religião” (Fosdick, 1926: 201). Essa simpatia talvez seja um
dos mais vigorosos indicativos de que o discurso fundamentalista tem
caráter político com verniz religioso. Essa percepção da coloração cada
vez mais política do Fundamentalismo pode ser vista no especial e
sucinto retrato que Walter B. Schurden (2018: 45) faz sobre a forma de
ação de tais grupos entre os batistas americanos:
Um padrão crescente de restricionismo, documentado na
história cristã em geral e tornado mais explícito na
história dos Batistas do Sul dos Estados Unidos, funciona
mais ou menos assim: primeiro, são feitas fortes
afirmações em oposição a todos os credos, como a dos
batistas na fundação da Convenção Batista do Sul dos
Estados Unidos, em 1845: ‘Nós não construímos nenhum
credo novo como nossa base; agindo, assim, em
consonância com a aversão batista por qualquer credo
além da Bíblia’ (Annual, 1845, p. 19). Em seguida, um
grupo, como os fundamentalistas, emerge e clama por
uma ortodoxia teológica estrita. Depois, tal grupo faz uma
conclamação pedindo uma declaração confessional, como
os fundamentalistas entre os Batistas do Sul dos Estados
Unidos fizeram em 1925, para proteger a ortodoxia. Por
fim, eles demandam que tal declaração seja imposta sobre
as igrejas para garantir a ortodoxia. A essa altura, os
batistas já abandonaram a sua herança histórica. Para que
possam se afirmar como batistas históricos, os batistas
precisam ressuscitar sua tradição anticlerical e resistir a
declarações que limitam o acesso à Bíblia e codificam o
entendimento humano da teologia bíblica.
3. A Resistência em Harry Emerson Fosdick.
A teologia construída por Fosdick como resistência ao
Fundamentalismo pode ser qualificada como uma espécie de liberalismo
penitente103. Sua formulação envolve uma abertura, um diálogo para com
o mundo a sua volta, demandando o emprego da Razão, sem que se
perca com isso a piedade. Por esse motivo que para ele era necessário ter
cuidado com um “liberalismo árido, que troca os elementos da religião
pelos da razão” (Fosdick, 1926: 265). Outro cuidado era para com a
tendência de se desfazer da igreja ou mesmo do fiel que a freqüenta
assiduamente. Tal postura era imprescindível, pois é “somente assim que
a voz se faz ouvir para fora e os fantasmas desaparecem” (Fosdick,
1926: 276).
Esse liberalismo penitente é capaz de inspirar uma ardente fé em
Deus, assim como abrir a vida humana para a solidariedade e para a
imaginação (Fosdick, 1926). Tal postura representaria uma atitude
inteligente por parte do teólogo liberal, que era a pessoa mais habilitada,
para o pastor de Riverside, a fim de evitar os partidarismos104 bem como
manter a cordial aliança entre intelecção e religião.
Para Fosdick foi o “crescimento dos liberais que não permitiu o
controle das instituições religiosas pelo fundamentalismo” (Fosdick,
1926: 241). O objetivo não era criar uma nova expressão de fé, uma vez
que os liberais “concordam com aquilo que é profundo e essencial à fé
cristã” (Fosdick, 1926: 246); mas a modernização da fé cristã, uma vez
que o cristianismo fora formulado num contexto pré-científico. Nesse
sentido é que o liberalismo se distingue pelo livre espírito da inquirição,
opondo-se à inquisição fundamentalista, procurando ver novos fatos e
elaborar os “princípios da fé cristã em termos convincentes e
contemporâneos” (Fosdick, 1926: 245).
Outra contribuição do liberalismo está no resgate daquilo que o
teólogo americano chamou de “maiores objetos do Cristianismo, a saber:
a criação de um caráter pessoal e de uma justiça social” (Fosdick, 1926:
247). Ao fazer isso o liberalismo assinala sua contribuição positiva
visando manter a vitalidade da religião. Para o pastor de Riverside, a
vitalidade cristã não residia na manutenção de diferentes programas
pelas igrejas, visto que eles claramente destoam do “Cristianismo no seu
início” (Fosdick, 1932: 7).
Ao retratar um pouco da visão positiva de Fosdick sobre o liberalismo
teológico e sua crucial contribuição para a resistência ao radicalismo
teológico de então, buscou-se apresentar os alicerces da resistência de
Fosdick. Seu pensamento, como alternativa sadia ao Fundamentalismo,
será destrinchado em três fulcrais tópicos: sua visão positiva da Ciência;
sua proposição daquilo que chamou uma “nova aproximação da Bíblia”
(Fosdick, 1961) e sua visão sobre a tolerância.
3.1 Sim à Ciência; não à redução da Religião
Fosdick era um entusiasta pela Ciência. Inserido no contexto do que
foi inicialmente um pleno otimismo nas descobertas científicas, o pastor
de Riverside a celebrou. Contudo sua celebração não envolvia uma
apropriação acrítica. Ele não substituiu a Religião pela Ciência, mas
buscou empreender um diálogo entre ambas. Sobre isso ele faz uma
severa crítica aos modernistas (outro nome para os liberais, usado
especialmente na primeira metade do século XX) que visam “reduzir a
religião à elementos científicos” (Fosdick, 1932: 130), afetando
inclusive religiosos e pregadores em suas homilias. Para o teólogo
americano a melhor linguagem para a religião não é a científica, mas a
oriunda da arte como, por exemplo, as imagens evocadas por Jesus ao
falar das chamadas Parábolas do Reino (Fosdick, 1932: 137).
Para Fosdick, o conhecimento não abole o mistério, antes pelo
contrário o alimenta. Segundo ele, “quanto mais o homem sabe, maior é
o sentimento de maravilha pelo mundo” (Fosdick, 1926: 158). Diante
desta estupefação ele constata: “a ciência não fornece sentido como a
religião” (Fosdick, 1926: 144). Mesmo porque a religião projeta um
mundo, uma leitura possível e palatável de mundo, no que reside a
acusação de que ela não passaria de uma ilusão. Para Fosdick, nada mais
verdadeiro do que apontar a religião como falsa, uma vez que ela
sobrevive como o “mundo que o homem gostaria, imagina que teria que
ser e que, pela imaginação, se impõe sobre a realidade” (Fosdick, 1932:
97).
Seu entusiasmo pela Ciência em nenhum momento esfriou sua paixão
pelo texto bíblico. Reconhecia que a Bíblia não era um texto científico,
tornando inútil usá-la como instrumento de debate ou mesmo de
discussão com um cientista, prática essa comum ao pensamento
fundamentalista. Por mais paradoxal que seja essa ideologia procura em
muitos momentos cientificizar o texto bíblico, ao mesmo tempo em que
nega diversos elementos e provas científicas que se não contradizem
frontalmente certas passagens da Bíblia, pelo menos forçam sua
elaborada reinterpretação. No Fundamentalismo a apropriação das
descobertas nas mais diferentes áreas da Ciência é seletiva105. No
entanto, o caminho proposto pelo teólogo americano é o de “iluminar a
Bíblia com a Ciência e não tornar a Bíblia um texto científico” (Fosdick,
1926: 51).
3.2 A Nova Aproximação da Bíblia
Como propor um profícuo diálogo entre as luzes que a Ciência traz e
o registro bíblico? Para o autor pesquisado, o caminho natural seria uma
nova aproximação da Bíblia. Essa nova aproximação reconsidera os
fatos e aponta para um positivo e importante aspecto da incredulidade: a
preservação do ser humano para que não aceite ingenuamente o que não
é aceitável (Fosdick, 1926: 214). Nesse sentido doutrinas106 tais como a
inspiração verbal107, a inerrância das Escrituras, devem ser mudadas
(Fosdick, 1961: 30).
Para Fosdick a nova aproximação devolve o texto de volta, pois ao
mesmo tempo em que resguarda a Inspiração pelo Espírito em todo o
processo do fazimento do texto, enfatiza um olhar que preserva o todo
da Bíblia nas partes lidas. Segundo ele, foi essa habilidade, qual seja, de
perceber o todo nas partes é que a “igreja recentemente perdeu”
(Fosdick, 1961: 29). A perícope passa a ser analisada, na nova
aproximação, dentro da perspectiva formada por toda a revelação. Aqui
a proposta de Fosdick se aproxima do modelo de interpretação figural
proposto por Auerbach (1997), pelo que a intertextualidade interna, da
própria Bíblia, coloca mediante uma conexão espiritual tais passagens
em dinâmico e interativo processo.
A nova aproximação se torna necessária também pelo distanciamento
cultural que as pessoas sentem ao ler o texto. Fosdick diz que “quando
alguém se move para a Escritura com a mente acostumada aos caminhos
modernos, ele se encontra num estranho mundo” (Fosdick, 1961: 34). É
o elemento referencial que pode comprometer a melhor recepção do
texto. O que Auerbach chamou de “diversificação das condições de
vida”, Martin Heidegger de “multiplicação das referências” e Iuri
Lotman de “distância cultural” (In: DUusilek e Dreher: 2018). É essa
tentativa protestante de harmonizar as Escrituras com a mente moderna
que faz com que “os caminhos para o pensar hoje” sejam “diferentes dos
caminhos para o pensar ontem” (Fosdick, 1961: 90), exigindo essa nova
aproximação.
Para ele é possível usar um “método que privilegie tanto as bíblicas
experiências duradouras quanto o uso de conceitos científicos bíblicos e
trilhas do pensamento de Gênesis ao Apocalipse” (Fosdick, 1961: 60).
Ao contrário dessa perspectiva, o pastor de Riverside via pregadores
produzindo grandes pregações, mas sem qualquer incentivo à reflexão
sobre o domínio da religião e, muito embora estejam carregadas de
alento, tais pregações não abordam as reais questões da existência
humana.
3.3 A Tolerância como Resistência
Poucas coisas são tão contrárias ao ethos fundamentalista do que a
tolerância. O espírito tolerante e o fundamentalismo não coabitam o
mesmo corpo, nem ocupam o mesmo espaço. Herança da modernidade,
a tolerância religiosa nasce como conquista das mais diferentes
expressões religiosas cristãs, estendida posteriormente às demais
expressões religiosas. No pensamento de Fosdick, a tolerância “não é
uma fraqueza, e sim a mais elevada conquista da boa-vontade pessoal
sobre todas as diferenças de opinião” (Fosdick, 1926: 227). Ela é o
“espaço de amor para com a liberdade e as ideias divergentes, com igual
esforço para entender e apreciar o divergente, e a vontade de incluí-lo na
comunhão e trabalhar com pessoas de boa vontade” (Fosdick, 1926:
215).
Essa conquista moderna não foi alcançada sem que muitos equívocos
fossem cometidos anteriormente. Inúmeros embates ocorreram dentro do
próprio cristianismo. Voltaire sarcasticamente assinalou em suas Cartas
Inglesas, por exemplo, que a Bolsa de Valores de Londres se tornara um
espaço mais interessante para o diálogo inter-religioso do que os
próprios locais de culto (Dusilek, 2016).
A dificuldade com o exercício da tolerância primeiramente reside na
pretensão de verdade que tais grupos religiosos possuem. No
Fundamentalismo esta pretensão está bem marcada em sua rígida pré-
compreensão (Fosdick, 1926: 111). Em muitos grupos antigos, havia a
crença de que era a divindade, não a religião como solidificadora de
visão, que mantinha o vínculo social, motivo pelo qual “não podia ser
contrariada” (Fosdick, 1926: 221). A partir dessa premissa, a “religião
passou a priorizar a uniformidade e desprezar a variedade e a diferença”
(Fosdick, 1926: 221). Abre-se então o espaço para a noção de uma
verdade religiosa inerrante, visto que fruto de uma revelação
sobrenatural; bem como para a noção de infalibilidade do seu grupo
religioso. Discordar, divergir, nesses casos equivale a assinar um
atestado de heresia. Nesse momento é que a “tolerância passa a ser vista
como uma ideia do Diabo” (Fosdick, 1926: 222).
Incomodava ao teólogo americano o crescimento da intolerância no
seu tempo. Ele listou pelo menos sete sinais dessa intolerância, ao seu
tempo108: a) o ódio da Ku Klux Klan contra católicos, negros e judeus; b)
as frequentes invasões à garantia constitucional da liberdade de
expressão; c) o sério esforço para impor pela lei uma moral de costumes,
a partir da agenda de um grupo; d) a tentativa de excluir o ensino da
evolução do horizonte mental de todos os estados, pelo esquecimento do
seu ensino nas escolas; e) o forte desejo e intenção fundamentalista por
forçar uma unanimidade ortodoxa nas igrejas; f) de modo geral, um
desgosto pela individualidade e pela independência intelectual; g) o
desejo por modelar as mentes facilitado pela cultura de massa (Fosdick,
1926: 219 passim).
Ele alertou para o cuidado no exercício da tolerância. Uma vez sendo
ela fruto de um sentimento de superioridade, podia gerar um efeito
reverso. Tolerantes que se acham superiores costumeiramente defendem
seus preconceitos raciais, religiosos, ou de classe e o fazem forçando, de
modo dogmático, sua visão através de sua habilidade e capacidade, até
que se torne num “agradável vício para quem a possui” (Fosdick, 1926:
216).
Um interessante apontamento é o efeito reverso que a intolerância
possui. Ela não é efetiva por diminui a causa que defende, produzindo
um efeito contrário. Para Fosdick, ao atacar um herético você lhe
confere audiência, ao condenar um livro, você o torna um Best-seller.
Em suma: os atos de intolerância acabam se voltando contra o propósito
de quem os comete, representando um verdadeiro suicídio da causa. O
teólogo compara tais atos à “espada de Saul” (Fosdick, 1926: 226),
primeiro rei de Israel, que ao se ver cercado pelo exército filisteu, se
joga sobre sua própria espada, num ato suicida, evitando sua captura
pelo exército inimigo.
Por fim é importante ressaltar que a tolerância funciona como uma
salvaguarda para o engano. Fosdick diz que é necessário salvaguardar o
espírito de tolerância e liberdade cristã, mesmo porque as opiniões sobre
determinados assuntos podem estar cheias de engano, mas o amor,
combustível básico e força motriz do respeito a alteridade, nunca erra.
Para o teólogo americano, o “amor nunca se engana” (Fosdick, 1978:
34).
Conclusão
Ao findarmos esse texto é preciso concordar com Fosdick de que
infelizmente, “muito do atual cristianismo, ao invés de melhorar, tem
piorado as pessoas” (Fosdick, 1926: 276). Talvez pelo fato de que
“nunca tenhamos sido muito cristãos” (Fosdick, 1932: 63).

O fato é que o fundamentalismo tem apresentado outro tipo de


divindade para as pessoas, fazendo com que a mudança de vida, a
experiência cristã, esse poder interior que irradia para a vida seja
substituído por um assentimento intelectual. Ora, concordâncias não são
capazes de produzirem significativas e radicais mudanças na vida das
pessoas. Em termos de Religião, somente o contato com a divindade é
que pode produzir essa conversão.
Ao longo desse capítulo vimos como essa dimensão vital da religião, a
que pulsa na intimidade das pessoas, foi respeitada por Fosdick como o
parâmetro na construção de uma religião viva. Nesse sentido é que ele
procura preservar a dinamicidade do fenômeno religioso através não só
da defesa de reformulações, como fez com sua “nova aproximação da
Bíblia”, mas, sobretudo através do diálogo com a Ciência, bem como a
preservação do espaço de diálogo com o diferente, com a alteridade.
Para o pastor de Riverside, é necessário salvaguardar a tolerância.
Tolerância esta que se mostra um apropriado caminho contra a postura
excludente do Fundamentalismo, pavimentando a estrada para o resgate
de um cristianismo que “mantenha os homens unidos e não afastados”
(Fosdick, 1926; 284). Aliás, para Fosdick o futuro da própria Igreja
Cristã, especialmente a de corte evangélico, estaria “ligado à sua
capacidade de ser compreensiva” (Fosdick, 1926: 228).
Mais do que apresentar a Resistência em si, uma lista de fatos
históricos que apontam para essa resistência primeira ao
fundamentalismo, o que se procurou elencar aqui foi o pensamento que
resistiu, com relativo sucesso, ao fundamentalismo. Para isso, buscou-se
no texto focalizar um dos principais atores dessa bem-sucedida
resistência, a saber: o pastor da Riverside Church, Harry Emerson
Fosdick.
É com Fosdick que encerramos esse capítulo. Ao finalizar sua
impactante mensagem na Convenção Batista do Norte dos Estados
Unidos, o pregador de Riverside aponta para uma dupla necessidade: a
busca de clareza interna para com as demandas contemporâneas do
Cristianismo, bem como aquilo que denominou de “vergonha penitente”
(Fosdick, 1978: 38), pois para ele a Igreja estava se voltando para temas
insignificantes enquanto o mundo estava imerso em grandes
necessidades. Longe de sugerir que não se deva debruçar sobre o
Fundamentalismo, Fosdick lamenta que esse assunto tenha tomado
tamanho vulto e ocupado tamanho espaço. Nós também.
92 Segundo Jean Louis Schlegel (2009: 14): “os fundamentalistas nos Estados Unidos defendem as
políticas mais conservadoras: são a favor da pena de morte, da proibição do aborto, contra a liberdade
de costumes e a permissividade ambiente, a favor de sinais visíveis de religiosidade na vida pública”.
93 Para Fosdick (1978: 28), “todo fundamentalista é conservador, mas nem todo conservador é
fundamentalista”.
94 Conquanto seja simpático ao argumento de Karen Armstrong (2001) de que o termo possa ser
aplicado a diferentes momentos da história que trazem as mesmas marcas, estou aqui trabalhando com
a noção do Fundamentalismo como gestado nas conferências de Niágara (a partir do final do século
XIX), nascido a partir da publicação, pelo Seminário de Princeton, da lista dos cinco dogmas essenciais
e dos livretos The Fundamentals entre 1910-1915, e batizado por Curtis Lee Laws em 1920, na
Northern Baptist Convention, ele que era editor do periódico batista “Watchman-Examiner” (Armstrog,
2001; Castro, 2003; Hordern, 2003).
95 Um exemplo clássico disso foi a “Carta de Goiânia”, criada por uma comissão nomeada pela
presidência da Convenção Batista Brasileira (CBB) em sua centésima Assembleia na cidade de Goiânia
no final de Janeiro de 2020, a qual não foi aprovada pelo plenário por ter conteúdo “esquerdizante”,
sendo remetida ao Conselho da CBB para uma análise mais criteriosa. O detalhe é que a carta além de
ter sido feita por uma comissão na qual ninguém era da “esquerda”, estava recheada de citações,
versículos.
96 Fosdick associa a vitalidade da religião com sua essência, a qual é o “poder interior lançado
adequadamente para a vida” (Fosdick, 1932: 15). Aqui ele faz uma irônica comparação: ele compara
esse poder aos mais de 500.000 cavalos de força que as cataratas do Niágara possuem. No entanto é das
conferências do Niágara que surge o proto-fundamentalismo. Ao fazer essa observação/comparação,
Fosdick está dizendo que a força da Religião não estava nas conferências, mas nesse poder interior,
nessa força vital que irradia a vida com energia, quando “aflora do subconsciente para o consciente as
origens cósmicas da pessoa” (Fosdick, 1932: 19).
97 Jesus cria na revelação progressiva e os líderes judeus não entenderam isso. Fosdick também
menciona que a diferença maior do texto bíblico para os demais livros tidos como sagrados em outras
religiões é que a Bíblia, por ser parte de uma revelação progressiva de Deus, o que está contido nela, as
questões culturais latentes e presentes, não estão em termos finais/cabais (Fosdick, 1978).
98 É interessante ressaltar que humanistas como Erich Auerbach, Edward Said, Northrop Frye e outros
atribuem o humanismo, a dignidade e dignificação do ser humano aos evangelhos.
99 Para Fosdick: “sempre que a pessoa humana sofre algum tipo de abuso, debilidade, humilhação (...)
é o cristianismo que está sendo negado” (Fosdick, 1932: 51). Ele também chama de “inimigos de Deus
aqueles que toleram atos inumanos pensando que servem a Deus” (Fosdick, 1926: 38). Tais pessoas são
incoerentes porque “estão dispostos a morrer pela fé, pelo credo, mas não estão dispostos a ter a mesma
atitude pela humanidade como Jesus teve” (FOSDICK, 1926: 38). De forma irônica ele arremata:
“alguns são os mais indesejáveis numa comunidade (...) caminham entre nós, crendo no seu deus”
(Fosdick, 1926: 39 – grifo nosso).
100 Fosdick se posta contrário à noção calvinista da depravação total do ser humano. João Calvino, o
reformador, buscando salvaguardar a obra da salvação somente na decisão e ação divina, estabeleceu
esse pensamento que tirava do humano a possibilidade de contribuir para sua salvação. Ao contrário
dos calvinistas, cujo pensamento é muito utilizado pelos fundamentalistas, Fosdick rejeita essa noção
pois se o ser humano “não presta, só resta o credo. Mas para Deus presta e muito” (FOSDICK, 1926:
45). Como o ser humano conseguiria se relacionar com Deus sendo totalmente depravado, se para que
tal relação aconteça é necessária a clara consciência de demanda por Ele? Afinal, “grandes crentes têm
antes de tudo sede de Deus” (Fosdick, 1918: 37). Tal postulação calvinista impossibilita o
reconhecimento da necessidade de uma salvação, a não ser que algo de bom tenha sobrevivido dentro
da “alma humana”.
101 Fosdick corrobora com a análise de Alves e acrescenta mais dois domínios de valor espiritual: a
bondade e a beleza, sendo esta última negligenciada pelo protestantismo, entre outros motivos, em
virtude do movimento iconoclasta. Por isso a desvalorização com a arte e a imaginação. No entanto, o
teólogo estadunidense nos lembra que Jesus não falou em termos científicos, mesmo porque ele em
algum momento seria preterido pela própria evolução científica. Ele arremata: “o que permanece é a
arte; as demais coisas mudam, passam” (Fosdick, 1932:141).
102 No seu livro The Meaning of Faith, Fosdick relata uma experiência que teve com um colega de
graduação, o qual reencontrou tempos depois. Ele ficara vinte anos sem pisar numa Igreja, porque o
ensino da Igreja sobre a criação destoava de suas aulas de geologia na faculdade. Ao procurar seu
pastor à época, ouviu a seguinte resposta: “A Bíblia nos falou que a terra foi criada em seis dias” e
emendou dizendo que deveria “aceitar isso pela fé” (Fosdick, 1918: 41).
103 Visando clarificar a compreensão da proposta liberal de Fosdick, destacamos o que para ele são os
3 grandes testes de um efetivo liberalismo criativo: “a) sua abordagem desde a expansão até o
aprofundamento da vida espiritual; b) sua habitação nas grandes afirmações e não nas negações; c) sua
preocupação na construção de cidadãos do Reino de Deus” (Fosdick, 1926: 240).
104 Assim ele define o termo: “partidarismo é a habilidade para crer que tudo é ruim sobre o outro lado
e tudo é bom sobre o próprio lado” (FOSDICK, 1926: 258).
105 Ao falar da seletividade fundamentalista, o professor Alexandre Castro (2003) assim se expressa:
“a perspectiva fundamentalista norte-americana é de retorno ao princípio, ao passado, tipificado no
grupo ‘founders’” (CASTRO, 2003: 28). Tal retorno “seleciona dados” (2003: 70) e “nega fatos
históricos” (CASTRO, 2003: 62-3).
106 Aqui cabe uma nota explicativa. Na época de Fosdick florescia uma discussão sobre o papel do
dogma. Adolf von Harnack, importante teólogo alemão, havia publicado seus volumes sobre “A
História do Dogma”. Conquanto seja impossível a uma religião ser comunicada sem seus ritos e
dogmas, como preconiza o filósofo da religião francês Augusto Sabatier (1912: 267), o que demonstra
a necessidade prática de seu surgimento (1912: 278), é importante destacar que: 1) a raiz do dogma está
na religião, ainda que sua força esteja em Deus (1912: 245); 2) o dogma surge quando uma sociedade
religiosa se torna uma sociedade moral (1912: 250); 3) o dogma pode ser reformulado a qualquer tempo
(1912: 252); 4) ao dogma está fadado o desgaste (1912: 257), uma vez que eles possuem história, o que
prova sua mutabilidade (1912: 271); 5) a crítica do dogma, dentro de uma perspectiva cristã, deveria ser
feita a partir da vida e do ensino de Cristo (1912: 311).
107 Para Walter B. Schurden (2018: 38): “a Palavra de Deus não se limita às Escrituras”.
108 O teólogo estadunidense notou que ao longo da história, certo grau de intolerância foi útil para
cientistas, conquistadores, realizadores, os quais criam e perseguem cegamente o que acreditavam. Em
contrapartida, os “suaves expositores da tolerância, dispostos a ouvirem toda opinião abaixo do céu,
têm freqüentemente padecido debilmente de fraqueza moral nos seus tendões e coxas” (Fosdick, 1926:
217). Tal perspectiva tem mudado pois a “intolerância se tornou sinal de fraqueza e não de força”
(Fosdick, 1926: 224), uma vez que cada vez mais pessoas a associam a uma “prática bárbara” (Fosdick,
1926: 223).
VIII. Identidades e expansão do
fundamentalismo de matrizes
protestantes (décadas de 1930, 1940 e 1950)

Jefferson Ramalho
Para estudarmos aquilo que temos identificado como a primeira
expansão do fundamentalismo protestante, se faz necessário
retomarmos, mesmo que de maneira muito breve, alguns elementos que
compõem as identidades do protestantismo americano das primeiras três
décadas do século XX. Ao falarmos em protestantismo americano, não
fazemos referência apenas ao que ocorreria nos Estados Unidos da
América (EUA), mas em todo o continente, no que inclui Américas do
Norte, Central e do Sul. Mas, para a reflexão que propomos é importante
delimitarmos nosso campo de observação. Por isso nos concentraremos
naquilo que se sucederia nos EUA e, como efeitos diretos, no cenário
religioso brasileiro. Apenas assim a nossa leitura fará sentido para
nossos dias e contextos.
Outro esclarecimento inicial, de ordem metodológica, correspondente
à delimitação em nossa abordagem. Se vamos tratar do contexto cristão
e, em particular, do protestantismo, não nos atentaremos, ao menos no
presente trabalho, em questões relativas aos fundamentalismos vistos em
outros universos religiosos, tais como o judaico, o islâmico, o hindu ou
mesmo o católico-romano. Para tanto, há importantes e detalhadas
pesquisas a respeito, já publicadas no Brasil, tais como as obras de
Karen Armstrong (2001) e Pedro Lima Vasconcellos (2008). Neste
capítulo, então, nosso objeto de observação se limitará em verificar
algumas expressões fundamentalistas protestantes.
1 A gênese do Fundamentalismo no Protestantismo estadunidense
O Fundamentalismo religioso e, em particular, o de matriz protestante,
não se trata de um tema novo. Já existe muito publicado a respeito,
mesmo no Brasil, tanto por autores brasileiros como por estrangeiros
traduzidos para a nossa língua. Não queremos, portanto, como se diz
popularmente: “chover no molhado”. Faremos, sem dúvida, uma
retomada de leitura em obras importantes, mas queremos concentrar
nossos esforços em efeitos atuais daquilo que começou a ser gerado com
a expansão fundamentalista dos anos 1930 a 1950.
Já sabemos que o pontapé inicial do fundamentalismo protestante se
deu com a reação ao liberalismo teológico originado e consolidado na
Alemanha do século XIX. As obras dos teólogos liberais começavam a
atravessar o Atlântico e, ao que tudo indicava, desembarcariam e
conquistariam os EUA logo nos primeiros decênios do século posterior.
Igrejas e seminários de diferentes denominações começaram a receber
influência da também chamada teologia liberal; professores de
seminários protestantes estadunidenses importavam pensamentos de
reconhecidos teólogos críticos do século XIX e início do XX como
Friedrich Schleiermacher, David Friedrich Strauss, Julius Wellhausen e
Adolf von Harnack. Esse diálogo com a modernidade que a teologia
liberal travara parecia um caminho sem volta, representando um fator
bastante positivo para a atualização de estudos bíblicos e dogmáticos
(Gibellini, 1998: 13-20; Tillich, 1999), caso não acontecessem reações
impetuosas tanto na Europa como aquela que causaria maior impacto,
nos EUA.
Em linhas gerais, a teologia liberal priorizava uma reflexão crítica que
relativizaria a tradição dogmática cristã, em especial aquela concernente
às questões cristológicas, além de uma hermenêutica histórico-crítica e
os seus respectivos resultados em estudos das narrativas bíblicas e, por
fim, um olhar ético da religião cristã. Tendo como antecedentes
intelectuais as filosofias de Immanuel Kant e Friedrich Hegel, bem como
a teologia e o método hermenêutico do já citado Schleiermacher, a
teologia liberal propunha uma interpretação mais racionalista dos textos
bíblicos e também teria como proeminentes os teólogos Albrecht
Ritschil e Ernst Troeltsch (Gibellini, 1998: 19; Mondin, 2003:24-29).
A reação europeia à teologia liberal, porém, nasceria da pena de
intelectuais como Karl Barth e Emil Brunner, que protagonizariam o que
seria conhecido como neo-ortodoxia, uma espécie de teologia crítica que
ao mesmo tempo não teria rompido com os parâmetros próprios da
tradição reformada (Tillich, 1999: 215-246); na esteira desses teólogos
da neo-ortodoxia podemos também incluir os estudiosos Rudolf
Bultmann (Gibellini, 1998: 33-56) e Paul Tillich (Mondin, 2003: 103-
133). Esses estudiosos, de certa maneira, eram herdeiros da tradição
protestante originada no século XVI, mas se formaram a partir da
teologia liberal da segunda metade do século XIX, unindo, portanto,
crítica teológica e bíblica às suas profissões de fé e à devoção religiosa
particular. Eram teólogos!
A reação ao liberalismo teológico de maior impacto não seria,
contudo, aquela resultante das eruditas obras de Barth, Brunner e
Bultmann, mas aquela nascida pouco antes nos EUA a partir da
publicação, entre 1909 e 1915, de um volume composto por doze
panfletos intitulados The Fundamentals: a testimony to the truth [Os
Fundamentos: um testemunho em favor da verdade]109, formulado por
estudiosos conservadores como Reuben Archer Torrey, James Orr e
Amzi Clarence Dixon como ampliação de ideias desenvolvidas por
alguns presbiterianos que lecionavam na Universidade de Princeton. A
produção e a distribuição dos panfletos The Fundamentals seriam
financiadas pelos irmãos e empresários do setor petrolífero Milton e
Lyman Stewart, fundadores do Bible College, em Los Angeles. Cerca de
três milhões de exemplares desses panfletos foram distribuídos de forma
gratuita em igrejas e seminários dos EUA, objetivando alcançar, a
princípio, pastores, professores e fiéis a fim de, por meio deles, combater
de maneira maciça a disseminação da teologia liberal em terras
estadunidenses (Armstrong, 2001: 199).
Há que se destacar que para estudiosos como Prócoro Velasques
Filho, os panfletos conhecidos como The Fundamentals não podem ser
considerados “a origem do movimento fundamentalista.” (1990: 122)
Nessa obra escrita em parceria com Antônio Gouvêa Mendonça,
intitulada Introdução ao Protestantismo no Brasil, Prócoro procura
apresentar diferenças e aproximações entre o que chama de
fundamentalismo e o que seria apenas o conservadorismo. A propósito,
marcado por uma peculiar rigidez e uma intolerância que tipificariam o
chamado fundamentalismo, este não seria mais que uma das principais
variações do protestantismo conservador. Mais à frente, porém, o
próprio Prócoro diria que “a corrente sob influência da escola teológica
de Princeton, que priorizava a pureza doutrinária em relação à
experiência religiosa, constitui-se em matriz do que veio a ser
posteriormente o movimento fundamentalista.” (Mendonça; Velasques
Filho, 1990: 123)110
Em linhas gerais, a obra The Fundamentals, além de atacar tanto a
grupos religiosos específicos como católicos, mórmons e testemunhas de
Jeová como ao avanço da ciência biológica evidente na teoria da
evolução, de Charles Darwin, e a ciências mais flexíveis visíveis em
diferentes correntes como o ateísmo e o socialismo, tinha como maior
objeto de preocupação tecer críticas à teologia liberal por meio da
afirmação de cinco princípios (ou fundamentos) inegociáveis da doutrina
cristã protestante herdeira da Reforma do século XVI e, em grande
medida, até mesmo da Patrística. Os cinco fundamentos seriam: 1) a
infalibilidade e a inspiração das chamadas Sagradas Escrituras, ou seja, a
Bíblia Sagrada composta por Antigo Testamento e Novo Testamento; 2)
A divindade de Jesus de Nazaré reconhecido como Messias (Cristo); 3)
O nascimento virginal de Jesus de Nazaré, gerado no ventre de Maria
por obra do Espírito Santo; 4) A remissão dos pecados dos seres
humanos por meio da crucificação de Jesus de Nazaré e 5) A
ressurreição de Jesus de Nazaré como acontecimento no tempo e no
espaço bem como a sua volta factual no fim dos tempos. Conjuntamente
defendia-se que havia uma historicidade, uma realidade objetiva dos
milagres operados por Jesus, segundo as narrativas dos chamados
evangelhos. De maneira geral, esses eram os pilares, ou seja, os
fundamentos inegociáveis da fé cristã de protestantes que não se
identificavam com o diálogo proposto pela teologia liberal com as
ciências de seu tempo e a filosofia pós-iluminista (Vasconcellos, 2008:
26-28).
Armstrong entende que um dos episódios que impulsionariam esse
processo que resultou na formulação dos panfletos The Fundamentals
teria sido o discurso “O futuro da religião” proferido em 1909, pelo
professor emérito da Harvard University, Charles Eliot. Graças à
influência exercida pela teologia liberal em muitos protestantes
estadunidenses, estes estavam aos poucos se voltando muito mais para as
propostas de tendências como as do chamado Evangelho Social, de
Walter Rauschenbusch, que se resumia no ato de servir ao próximo, e se
distanciando das práticas litúrgicas, na crença tradicional em relação à
chamada teologia do pecado e até mesmo da necessidade de se afirmar
como adeptos de uma religião detentora da verdade. Logo, segundo
Eliot, em pouco tempo não haveria mais qualquer necessidade de se
existir igrejas, cultos, liturgias e tudo o que costuma estar relacionado a
tais categorias. Assustados com essa possibilidade, os cristãos
conservadores reagiram e trataram de formular os referidos The
Fundamentals (Armstrong, 2001: 198).
Outro episódio de grande importância em meio a todo esse cenário de
conflitos que resultariam na afirmação dos tais fundamentos e no
combate enviesado à visão crítica que os teólogos liberais propunham,
seria o chamado “Caso Scopes”. Em 1925 o até então desconhecido
biólogo e professor John Scopes seria julgado e condenado em Dayton,
nos EUA, por ter transgredido a uma lei que vigorava em diferentes
estados do país. Scopes teria ensinado a teoria da evolução em
detrimento da crença judaico-cristã na criação narrada no livro bíblico
do Gênesis, segundo a qual Deus teria, em sete dias, criado o ser
humano conforme sua imagem e sua semelhança e a todas as outras
coisas e seres que compõem a natureza. Como punição, Scopes teve de
pagar uma fiança, a qual seria depois assumida por uma entidade ligada
à defesa das liberdades civis, chamada American Civil Liberties Union.
Obviamente, a condenação de Scopes teria amplo apoio das diversas
igrejas e instituições cristãs que se identificavam com aqueles
fundamentos publicados nos panfletos The Fundamentals (Vasconcellos,
2008: 19-21; Armstrong, 2001: 205-207).
2. Expressões fundamentalistas protestantes a partir dos anos 1930
Já deixamos sinalizado que nosso recorte temporal compreende das
décadas de 1930 a 1950. É importante lembrar, portanto, que em se
tratando de EUA, além de todo esse embate protagonizado por
protestantes fundamentalistas contra aquela teologia liberal acusada de
levar muitas igrejas europeias à ruína, cresciam ainda discretamente à
margem social grupos protestantes não muito dedicados às questões
teológicas. Referimo-nos ao recém-nascido pentecostalismo. As
primeiras igrejas pentecostais seriam décadas depois as grandes
responsáveis por fortalecer e preservar o mesmo fundamentalismo
teológico apresentado nos panfletos The Fundamentals. Outras questões
e motivações de ordens políticas, econômicas, científicas, sociais e até
religiosas – o ecumenismo viria a ser uma delas – levariam lideranças
pentecostais a assumirem as mesmas doutrinas contrárias à teologia
liberal no início do século, e, a partir dos anos 1960 contra outras
tendências diversas que, em linhas gerais, colocariam em dúvida os
mesmos pressupostos daqueles panfletos. Por ora, contudo, os referidos
pentecostais construíram suas histórias dando ênfase à crença nos
chamados batismo com o Espírito Santo e cura divina, quase sempre à
margem dos demais protestantes, os históricos (Mendonça; Velasques
Filho, 1990: 11-59).
Enquanto maior elemento retórico dos fundamentalistas protestantes a
partir dos anos 1930 até fins dos anos 1950 destacaram-se as cruzadas
evangelísticas e a considerável capacidade dos pregadores evangélicos
de entrar nas casas das pessoas por meio do rádio e da televisão (Boff,
2002: 15). Eles eram marcados por um discurso enfático acerca do fim
dos tempos, da volta de Jesus e da chamada escatologia
dispensacionalista. Essa discursiva apocalíptica era herdeira das
conferências protestantes do final do século XIX nos acampamentos
bíblicos de Niagara Falls que reuniram teólogos e pastores dos EUA, do
Canadá e da Inglaterra entre 1883 e 1895, da fundação de seminários
como o de Dwight Moody, o Moody Bible Institute, em Chicago, no ano
1886, da publicação da The Scofield Reference Biblie pelo pastor Cyrus
I. Scofield no ano 1909, em Dallas, e, claro, da própria publicação dos
panfletos The Fundamentals (Vasconcellos, 2008: 25-31).
Era necessário expandir o discurso fundamentalista protestante; não
bastava expulsar os professores herdeiros da teologia liberal dos
seminários e das igrejas (Armstrong, 2001: 202). Em muitos desses
ambientes, mesmo depois da condenação de Scopes, haveria influente
presença de cristãos adeptos das perspectivas teológicas liberais e até
mesmo da teoria evolucionista. Para citarmos um caso, podemos lembrar
daquilo que ocorreria com professores do Seminário Presbiteriano de
Princeton que, identificados com os pressupostos dos panfletos The
Fundamentals, preferiram sair daquela instituição, àquele momento
predominantemente liberal e crítico, para fundar o Seminário de
Westminster, contrário à crítica bíblica. Além desse e de outros
seminários que trataram de compor um corpo docente mais conservador
em matéria de teologia e de exegese bíblica, ganhavam força e forma
diversas iniciativas, reunindo em eventos e congressos milhares de fiéis
e lideranças provenientes das mais diferentes igrejas protestantes
(Geering, 2009: 15-20).
É importante salientar que a condenação de Scopes explicitou a
postura rígida e inflexível dos fundamentalistas, de tal maneira que esse
episódio não significou a censura dos adeptos da teologia liberal em
ambientes eclesiásticos. Teólogos liberais, ao contrário, assumiriam, em
certa medida, a frente de muitas igrejas locais, além de influenciarem a
formação teológica até de seminários católicos. A abertura, a atualização
(aggiornamento) e o diálogo ecumênico, que seriam propostos a partir
do Concílio Vaticano II, refletem bastante essa influência exercida, antes
de qualquer coisa, pela originalmente protestante teologia liberal. O fato
é que com o “Caso Scopes”, o liberalismo teológico não morreu em sua
proposta de diálogo amplo com as ciências, mas tampouco morreu o
fundamentalismo. Este, contudo, teve de se reinventar rapidamente
(Armstrong, 2001: 206-211).
O pentecostalismo, acerca do qual iniciamos o presente tópico, ainda
representava no final dos anos 1920 e início dos anos 1930, como afirma
Armstrong, (2001: 2008) uma espécie de
rejeição popular da modernidade racional do Iluminismo.
Enquanto os fundamentalistas retornavam ao que
consideravam a base doutrinal do cristianismo, os
pentecostais, que não se interessavam por dogmas,
remontavam a um nível ainda mais fundamental: a
essência da religiosidade primitiva que ultrapassa as
formulações de um credo.
Por esse motivo, o pentecostalismo não só alcançava as camadas mais
pobres e iletradas da sociedade, que era público minoritário nas igrejas
históricas, marcadas pela presença de pessoas mais elitizadas e
estudadas, como também se revelava como uma nova face do
fundamentalismo, uma vez que se negava, à sua maneira, dialogar com a
ciência e, da mesma forma, passava longe de qualquer aproximação das
correntes filosóficas modernas. Aliás, se havia uma coisa que não
interessava ao pentecostalismo era filosofia. Em amplo diálogo com
Harvey Cox (1995: 81), Armstrong (2001: 208-210) nos ajuda a
observar que, enquanto os fundamentalistas clássicos tentavam obter
certa cientificidade para seus discursos teológicos, atribuindo à
experiência religiosa quase que uma identidade de caráter racional, os
pentecostais se preocupavam com a experiência do sentimento, da
mística, da espiritualidade e do êxtase (Mendonça; Velasques Filho,
1990: 46-55).
Acusados por muitos fundamentalistas de serem fanáticos e
supersticiosos, ainda que também exista o que podemos chamar de uma
teologia pentecostal (Bonino, 2002: 59-61), os pentecostais tiveram de
começar a encontrar uma afirmação de sua identidade. Para não mais
serem considerados “o último vômito de Satã” (Cox, 1995: 75) e para
também não serem associados aos liberais, nem considerados sectários,
os pentecostais, com o passar dos anos, optaram por “aderir à linha-dura
dos fundamentalistas e deixariam de dar primazia à caridade”
(Armstrong, 2001: 211), passando a se identificar, ainda que muito
superficialmente, com as bases doutrinárias dos panfletos The
Fundamentals.
Embora os protestantes adeptos da teologia liberal estivessem
presentes, por vezes até liderando, nas congregações locais, havia um
considerável número de protestantes adeptos da teologia de matriz
fundamentalista. Foi nesse contexto que ganharia força o discurso
escatológico pré-milenarista e a crença no chamado arrebatamento da
igreja, propagado por meio de pregações transmitidas em programas de
rádio e em emissoras de televisão e, é claro, de uma nova onda de
faculdades teológicas estadunidenses. Existia nos anos 1930 cerca de
cinquenta escolas de formação teológica e bíblica de orientação
fundamentalista ou, ao menos, conservadora. Eram ambientes nos quais
se rejeitava o estudo crítico da Bíblia. A tônica nesses seminários de
formação de pastores era: se a Bíblia é a Palavra inspirada por Deus, ela
não pode passar pelo crivo da crítica textual como se faz com outras
obras literárias. Somava-se a isso o surgimento de grandes instituições
de comunicação e publicidade. Alpha Rex Emmanuel Humbard e
Granville Oral Roberts, além do pregador batista Billy Graham, se
notabilizariam como os primeiros grandes televangelistas da metade do
século XX (Ammerman, 1991: 32-33).
As cruzadas evangelísticas que, na prática, seriam grandes
concentrações de pessoas em amplos espaços tais como parques e
estádios de futebol, representariam um marco dessa primeira importante
expansão do fundamentalismo protestante, sinalizando aquilo que o
escritor Lloyd Geering chamaria de “linha divisória evangélica” (2009:
60-62). Aliás, essas concentrações teriam sido a voz mais forte do
fundamentalismo protestante no período por nós delimitado, ou seja, as
décadas de 1930 a 1950.111 Sem dúvida, o nome de maior projeção desde
meados dos anos 1940 seria Billy Graham que, além de pastor batista e
pregador em grandes encontros religiosos nas mais diversas partes do
mundo, se tornaria conselheiro pessoal de diferentes presidentes
estadunidenses, desde Dwight D. Eisenhower e Richard M. Nixon a Bill
Clinton e George W. Bush (Graham, 1998; 2008).
Naquele contexto imediatamente posterior à II Guerra Mundial,
fundamentalistas cada vez mais se uniam para propagar suas mensagens
de conversão religiosa aos seus valores, ou seja, aos fundamentos da fé
cristã segundo as suas percepções. Como diz Armstrong, eles eram
pregadores que “se sentiam forasteiros, empurrados para a periferia da
sociedade, mas agora suas faculdades e emissoras lhes proporcionavam
um refúgio num mundo hostil.” (2001: 245) Unidos por uma ampla rede
que se formava através dessas emissoras, tanto de rádio como de
televisão, os fundamentalistas encontraram à época do pós-guerra um
grande desafio, mas ao mesmo tempo um terreno imenso e muito
propício para lançarem as suas sementes (Pace e Stefani, 2002;
Vasconcellos, 2008: 33).
Concomitantemente, os valores morais desse novo fundamentalismo
protestante de meados do século XX disseminava entre os crentes a
preocupação em preservar-se sexualmente até o casamento, em vestir
apenas roupas que não fossem causar algum tipo de escândalo e em
envolver-se socialmente apenas com pessoas que não prejudicassem sua
espiritualidade. Esse extremismo, em particular, fez brilhar os olhos de
líderes pentecostais que, de modo radical, por décadas, proibiriam as
mulheres de usarem calças e maquiagens, além de não permitirem que
os fiéis tivessem televisão em suas residências, pois entendiam que esse
aparelho os desviaria de sua fé (Dreher, 2007: 241-244). Vemos, com
isso, que há ao mesmo tempo proximidade e distanciamento entre
fundamentalistas e pentecostais. Embora unidos pelos fundamentos
clássicos, enquanto os televangelistas se interessavam em conquistar a
sociedade por meio das pregações transmitidas via rádio e televisão, os
pentecostais ainda se manteriam muito resistentes a isso até começos dos
anos 1960.
O marco inicial desse cenário seria a Bob Jones University (BJU),
existente desde 1927 na Flórida, e que com o tempo se consolidaria na
Carolina do Sul a fim de combater o ateísmo, o agnosticismo, o
liberalismo teológico e o humanismo como chave de leitura bíblica. Em
finais dos anos 1940 e início dos anos 1950, a BJU se tornaria o maior
centro de formação de professores, pastores e pregadores estadunidenses
com profissão de fé fundamentalista. Caracterizaria sua formação a
busca por uma intensa autodisciplina em relação à fé, além de uma
formulada apologética no sentido de defender a chamada infalibilidade
bíblica e os fundamentos da fé cristã (Armstrong, 2001: 246).
A questão política também passava a ocupar aqueles ambientes
fundamentalistas. Aos poucos ficava claro que, para ser um cristão
conservador era inadmissível ser sequer simpatizante de qualquer
perspectiva próxima do chamado comunismo. Considerando que no
mesmo período funcionava na União Soviética um regime genocida
protagonizado por Josef Stalin, assassinando milhões de pessoas, tal
antipatia pelo comunismo nos parece justificável. Eric Hobsbawm
descreve com muita clareza o que foi esse período soviético:
Stalin, que presidiu a resultante era de ferro da URSS, era
um autocrata de ferocidade, crueldade e falta de
escrúpulos excepcionais, alguns poderiam dizer únicos.
Poucos homens manipularam o terror em escala mais
universal. Não há dúvidas de que sob um outro líder do
Partido Bolchevique os sofrimentos dos povos da URSS
seriam minimizados, e o número de vítimas menor.
Apesar disso, qualquer política de rápida modernização na
URSS, nas circunstâncias da época, tinha de ser
implacável e, porque imposta contra o grosso do povo e
impondo-lhe sérios sacrifícios, em certa medida
coercitiva. E a economia de comando centralizado que
realizou essa corrida com seus “planos” estava, de
maneira igualmente inevitável, mais perto de uma
operação militar que de um empreendimento econômico.
(...) Por mais difícil que seja de acreditar, mesmo o
sistema stalinista, que mais uma vez transformou
camponeses em servos presos à terra e tornou partes
importantes da economia dependentes de uma força de
trabalho de entre 4 e 13 milhões de pessoas prisioneiras
(os gulags) (Van der Linden, 1993), quase certamente
desfrutava substancial apoio, embora, claro, não entre o
campesinato (Fitzpatrick, 1994). (Hobsbawm, 1995: 371)
Em meio a esse cenário e como resultado dessa tendência contra o
comunismo entre protestantes fundamentalistas dos EUA, nasceria a
Anticomunista Cruzada Cristã, criada por Billy James Hargis, um
evangelista estadunidense, cuja popularidade atingiu seu auge
exatamente nos anos 1950 e 1960, tendo suas pregações transmitidas por
cerca de duzentas e cinquenta emissoras de televisão e por mais de
quinhentas emissoras de rádio. Hargis fazia frequentes referências aos
soviéticos, chamando-os de demoníacos e de monstros de olhos verdes,
e afirmava que estadunidenses adeptos da teologia liberal eram
esquerdistas que compunham uma espécie de organização formada
também por outros grupos não necessariamente ligados à questão
religiosa, cujo objetivo maior era transformar os EUA em uma nação
comunista, ou, como ele próprio alertava, em uma América vermelha.
Carl McIntyre, outro militante fundamentalista, chegava ao ponto de
dizer que muitas igrejas protestantes já tinham passado a compor um
grande plano satânico a fim de eliminar a fé cristã do território
estadunidense. Para militantes como McIntyre e Hargis, todos que não
concordassem com suas ideias delirantes eram adeptos de uma
conspiração que pretendia transformar os EUA em uma ditadura
comunista semelhante ao que acontecera com a nação russa a partir de
1917 (Armstrong, 2001: 247; Fuller, 1995: 137-138). O que parece
marcar, portanto, esse fundamentalismo dos anos 1950 nos EUA é um
intenso fanatismo.
Para se diferenciar desse radicalismo, mas na essência defendendo os
mesmos fundamentos, conservadores como Billy Graham identificavam-
se como evangélicos, em especial por causa de suas iniciativas de
evangelização em massa. Algo, porém, os tornava inseparáveis –
evangélicos e fundamentalistas –, que era a aversão aos avanços da
ciência e do pensamento moderno quando estes representavam uma
negação dos mitos cristãos. Tais avanços, segundo eles, tinham no fim
das contas resultado em duas guerras mundiais que tiraram a vida de
milhões de pessoas. Caberia à mensagem cristã, amparada nos
fundamentos bíblicos, fazer renascer a esperança que a humanidade
perdera após ver tantas destruições consequentes da ação desse ser
humano moderno e cientificamente evoluído.
Coincidência ou não, Billy Graham inicia suas cruzadas de
evangelização logo após o final da II Guerra Mundial e antes daquela
que seria chamada de Guerra Fria. O ano em que ele sairia de vez do
anonimato seria 1949, graças ao apoio e a influência dos jornalistas
estadunidenses Henry Luce e William Randolph Hearst. A primeira
cruzada de maior notoriedade internacional só aconteceria, porém, dez
anos depois, na Austrália. A tônica da pregação de Graham era bem
objetiva: Jesus é o único caminho para a salvação (Graham, 1998; 2008).
Essa perspectiva converge de maneira direta com aqueles fundamentos
panfletados décadas antes, nos EUA, em reação ao liberalismo
teológico.
Logo depois do fim da II Guerra Mundial, figuras como David Grey e
Wilbur Smith teriam se notabilizado, escrevendo que as destruições
iniciadas em 1939 e eventos específicos como as bombas atômicas
teriam servido para comprovar que a melhor leitura a se fazer da Bíblia
Sagrada não era aquela de matriz histórico-crítica proposta pelos
teólogos liberais, mas a literal proposta pelos fundamentalistas, pois
evidenciava a infalibilidade do texto sagrado, sobretudo, no que dizia
respeito às predições acerca do fim dos tempos. As destruições
provocadas pelo ser humano eram uma prova mais que suficiente de que
Jesus estaria voltando, diziam os fundamentalistas pré-milenaristas da
segunda metade dos anos 1940 (Armstrong, 2001: 248; Alencar, 2018).
Não entraremos nos detalhes e aspectos teológicos que caracterizam
as interpretações escatológicas dos diferentes grupos fundamentalistas
dos anos 1930 ao final dos anos 1950. Antes, o que nos interessa aqui é
destacar que foram esses grupos que representariam a face diversa do
fundamentalismo protestante que antecedeu os anos 1960. Sendo plural,
o fundamentalismo protestante das três décadas que nos interessam
podem ser pensados a partir de três grandes matrizes, às quais
identificamos como sendo a radical, a evangélica e a pentecostal. A
radical, conforme vimos, tinha em perspectivas defendidas por figuras
como McIntyre e Hargis suas principais preocupações, ou seja, continuar
combatendo a teologia liberal ainda muito presente em igrejas locais e
seminários, além de enfatizarem que havia uma conspiração comunista
querendo tomar o controle dos EUA. A matriz evangélica, também
fundamentalista em termos teológicos, se mostrava representada por
pregadores das massas como Oral Roberts e Billy Graham.
A terceira e última matriz, a pentecostal, ainda muito à margem em
relação às outras, crescia em número, sobretudo, nas periferias. O
crescimento numérico das igrejas pentecostais no Brasil a partir dos anos
1960, por exemplo, se justifica no fato de que a população pobre
brasileira era predominante, além de ser marcadamente negra e operária.
Há, no entanto, uma atuação pentecostal antes dos anos 1960, em terras
brasileiras, que pode nos servir para vermos o quanto essa vertente seria
nas décadas posteriores a grande força motriz para que o
fundamentalismo protestante não só ultrapassasse as fronteiras dos EUA,
mas se consolidasse no Brasil, provocando certos efeitos e
complexidades até os nossos dias. Já estamos entrando na terceira
década do século XXI.
3. Fundamentalismos protestantes à brasileira
Quando afirmamos que o fundamentalismo já existia na essência do
protestantismo estadunidense queremos salientar que as diferentes
igrejas que de lá vieram para o Brasil na segunda metade do século XIX
já chegaram nesse território com uma proposta de colonização das
mentes que aqui estavam. Era necessário não apenas contrapor àquela
predominância da fé católica, mas marginalizar ainda mais e, com isso,
intensificar uma visão preconceituosa que já existia para com as crenças
e os ritos de matrizes africana e indígena. Rejeitando tais crenças e, por
vezes, associando-as de maneira pejorativa às crenças, ritos e santos da
tradição católica, o protestantismo nascente ganhava terreno. A
conversão ao presbiterianismo do sacerdote católico José Manuel da
Conceição é um exemplo emblemático desse processo. O mesmo se
tornaria o primeiro pastor protestante nascido no Brasil (Mendonça,
1995: 185-187).
Em se tratando de protestantismo, inclusive no Brasil da primeira
metade do século XX, fundamentalismo e pentecostalismo são conceitos
distintos. Fundamentalistas estão preocupados com a fundamentação
teológica, quase racionalista, de suas crenças basilares. Pentecostais
estão interessados em intensificar suas experiências de fé com os
chamados dons do Espírito Santo, em especial o chamado dom de
línguas e o dom de cura divina. A identidade fundamentalista dos
pentecostais só se tornaria evidente a partir dos anos 1960 em função de
diferentes motivações: rejeição a tudo o que parecesse comunista – o
contexto é o de Guerra Fria, de revoluções como a Cubana, de
resistência ou adesão às ditaduras que se implantariam na América
Latina –; aliança com algumas igrejas históricas no sentido de apoiar o
processo de concretização dos regimes ditatoriais encabeçados por
militares; dedicação à pregação, inclusive a partir do rádio, objetivando
conversões em massa, tendo em vista uma convicção escatológica
específica de que a volta de Jesus estaria muito próxima, realização de
eventos e acampamentos conversionistas de jovens por parte de
organizações paraeclesiásticas, entre outras tônicas que ganhariam força
nas décadas posteriores (Mendonça; Velasques Filho, 1990: 46-59;
Alencar, 2018).
Não há motivos para nos estendermos em uma revisão da história do
protestantismo no Brasil, porque já está claro que, em linhas gerais, ele
sempre foi predominantemente conservador e, por influências
estadunidenses já a partir dos anos 1930 e 1940, também seria
fundamentalista. Sem dúvida havia nas grandes igrejas históricas figuras
que eram contrárias ao fundamentalismo dogmático e eclesiástico de
suas de denominações. O que preponderaria, no entanto, seriam as vozes
radicais, contrárias a todo e qualquer diálogo com a modernidade, com a
secularização, com tendências políticas de esquerda e, menos ainda, com
interpretações mais críticas do texto bíblico. Essas igrejas, inclusive, não
deixaram de perder fiéis, de maneira quase imperceptível, para as igrejas
pentecostais que brotavam nas periferias. Não identificados com a
liturgia e a identidade elitizada de igrejas históricas, os mais simples
enxergavam nos cultos pentecostais um ambiente mais próximo de suas
realidades, tanto na estética litúrgica como na pregação, tanto na
dinâmica como na condição econômico-social dos chamados irmãos
(Alencar, 2005; Passos, 2005).
O pentecostalismo brasileiro, bastante marcado pelo apelo à
conversão, à busca do êxtase em suas experiências com o que eles
entendiam e ainda entendem ser o batismo do Espírito Santo sobre as
pessoas e, claro, à crença na chamada cura divina, começou no Brasil a
partir da fundação de denominações que eram dissidências de igrejas
históricas. A Congregação Cristã no Brasil, por exemplo, foi fundada
pelo italiano Luigi Francescon, de origem valdense e ex-presbiteriano,
no ano de 1910. Sua teologia e sua eclesiologia, portanto, eram
derivadas da tradição calvinista, mas sua pneumatologia era pentecostal.
A Assembleia de Deus seria fundada em 1911 por dois missionários
suecos de origem batista chamados Daniel Berg e Gunnar Vingren,
adotando desde o início uma teologia arminiano-wesleyana e uma
eclesiologia batista. A terceira igreja pentecostal fundada no Brasil e que
teria uma grande expansão seria a Igreja do Evangelho Quadrangular,
entre 1952 e 1953. Sua origem, porém, ocorrera nos EUA alguns anos
antes por iniciativa da jovem missionária metodista Aimee Semple
McPherson, nascida no Canadá. Essa denominação começou suas
atividades no Brasil após os pregadores Harold Williams e Raymond
Boatright terem vindo ao estado de São Paulo para uma série de
encontros organizados pela Igreja Presbiteriana Independente do Brasil
(IPI). Os eventos começaram a se intensificar por meio de um
movimento evangelístico conhecido como Cruzada Nacional de
Evangelização. Eram armadas em terrenos baldios enormes lonas,
semelhantes aos circos, e se promoviam cultos conversionistas e sessões
de cura divina. A Igreja do Evangelho Quadrangular, a princípio, adotara
a mesma teologia arminiano-wesleyana das Assembleias de Deus, mas
uma eclesiologia derivada da tradição metodista (Mendonça e Velasques
Filho, 1990: 46-53; Reily, 1993).
Outras denominações pentecostais surgiram no Brasil antes dos anos
1960. Podemos citar a Igreja de Cristo Pentecostal no Brasil (1937),
Igreja Evangélica do Avivamento Bíblico (1946) e, claro, uma de maior
destaque, que seria a Igreja Evangélica Pentecostal “O Brasil para
Cristo” (1956). Essa denominação, fundada pelo missionário de origem
assembleiana Manoel de Mello, também derivou dos eventos
organizados pela Cruzada Nacional de Evangelização. Além de
conquistar uma quantidade significativa de fiéis, Manoel de Mello se
articulara bastante com as questões políticas do Brasil, além de filiar-se
ao Conselho Mundial de Igrejas e à Confederação Evangélica do Brasil.
Esse seu perfil ecumênico o diferenciava em relação a ouros líderes
pentecostais surgidos até 1960, época em ocorria o Concílio Vaticano II,
mas não o suficiente para anular o perfil exclusivista e conservador da
teologia adotada por sua denominação, o que faria com que ela também
compusesse, na prática, a formação de uma identidade evangélica
fundamentalista dali para frente (Mendonça; Velasques Filho, 1990: 52-
54; Reily, 1993).
As agências de cura divina, nascidas a partir dos anos 1960, cujo
protagonismo seria exercido pela Igreja Pentecostal “Deus é Amor”
(1962), fundada pelo missionário David Miranda, seriam o estopim para
que o pentecostalismo brasileiro conquistasse cada vez mais um número
considerável de fiéis, enquanto as igrejas históricas começavam a
vivenciar seu declínio. Anos depois, como sabemos, o Brasil viveria
uma ditadura militar, a qual teria em muitas das igrejas protestantes
importantes aliados (Dusilek, Silva e Castro, 2017; Souza, 2014), o que
não seria unânime (Faria, 2002). A antipatia pela chamada ameaça
comunista era comum entre as elites políticas que promoveram o Golpe
de 1964 e grande parte das lideranças religiosas identificadas com os
valores do fundamentalismo iniciado com a distribuição dos panfletos
The Fundamentals, décadas antes, nos EUA.
Nesse sentido é que temos defendido a hipótese de que as décadas
1930, 1940 e 1950 foram decisivas para a formação dessa importante
face do fundamentalismo protestante brasileiro: o pentecostalismo. Não
que as igrejas históricas, em sua maioria, deixariam de contribuir nesse
processo, mas de longe, com o passar dos anos, o pentecostalismo
causaria efeitos bem maiores. O ápice dessa aproximação do
pentecostalismo às vertentes políticas da direita conservadora no Brasil
se dará a partir das inúmeras igrejas neopentecostais protagonizadas, por
exemplo, pela Igreja Universal do Reino de Deus (1977), fundada por
Edir Macedo, pela Igreja Internacional da Graça de Deus (1980),
fundada por Romildo Ribeiro Soares, pela Igreja Apostólica Renascer
em Cristo (1986), fundada por Estevam Hernandes e Sônia Hernandes,
pela Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra (1992), fundada por
Robson Rodovalho e Maria Lúcia Rodovalho, pela Igreja Mundial do
Poder de Deus (1998), fundada por Valdemiro Santiago e, mais
recentemente, pela Igreja Apostólica Plenitude do Trono de Deus
(2006), fundada por Agenor Duque e Ingrid Duque. Somada a essas, há
uma infinidade de denominações no Brasil que representam
desdobramentos do pentecostalismo e do protestantismo histórico,
algumas já originadas de dissensões em igrejas neopentecostais, mas que
em linhas gerais representam essa face do fundamentalismo religioso
brasileiro (Silva, 2007; Mariano, 2005).
As práticas mais comuns que nos dão suporte para que as
identifiquemos como sendo fundamentalistas, tanto em termos
teológicos como sociais, são: 1) a constante intolerância religiosa em
relação aos locais de culto e até mesmo aos adeptos de religiões de
matriz africana, ainda que por vezes se apropriem de práticas e ritos
semelhantes àqueles dessas religiões, dando-lhes apenas um significado
e uma roupagem cristãos (Silva, 2007); 2) a aliança ideológica com
candidatos, muitas vezes das próprias denominações, em processos
político-eleitorais municipais, estaduais e federais (Burity; Machado,
2006); 3) a defesa de determinados valores tidos como morais em
detrimento de políticas públicas inclusivas que, na prática, acabam por
resultar na legitimação de preconceitos e exclusão do outro (Cavalcante,
2010; Gouvêa, 2006). Uma reflexão mais aprofundada dessas questões
fugiria da delimitação do presente capítulo, mas não temos dúvida
alguma de que elas podem ser pontuadas enquanto efeitos de grandes
proporções do fundamentalismo nascido no início do século XX e que
começaram a se expandir a partir dos anos 1930.
Conclusão
Quando afirmamos que as cruzadas evangelísticas, as pregações por
meio do rádio e da televisão e, sobretudo, o impulso pentecostal que
perpassam as décadas de 1930, 1940 e 1950 representaram as principais
identidades e dinâmicas de expansão do fundamentalismo protestante
desse período, estamos visualizando tal hipótese a partir dos aspectos,
tão bem explorados por Mendonça e Velasques Filho (1990: 130-131),
que caracterizariam o fundamentalismo protestante desde a origem até
nossos dias (D’avila-Levy; Cunha: 2018).
A intolerância, o determinismo histórico e a rigidez doutrinária do
fundamentalismo demonstram o seu caráter ideológico restrito, fechado,
indisponível ao diálogo, à reflexão, a releituras. O reducionismo
maniqueísta que tira não só a liberdade, mas também a responsabilidade
do sujeito justifica o desinteresse de boa parte das denominações
protestantes em relação às questões sociais, para se importarem apenas
com o que julgam ser fundamental para a salvação da alma, a saber, a
devoção nas categorias espirituais, ainda que isso resulte em incoerência
e em uma perda da historicidade de sua identidade.
Somada à intolerância, podemos apontar também a unilateralidade
teológica, que não aceita qualquer diálogo com interpretações que fujam
das suas percepções relativas a ritos, dogmas e costumes. Tal
comportamento evidencia o caráter sectário e exclusivista dos
fundamentalistas protestantes que estão sempre dispostos à exclusão do
outro que pensa ou crê de maneira diferente. Passamos a ter uma noção
mais concreta da gravidade desse comportamento, ao vemos um cristão
adotando, em nome de sua fé, posturas de violência e de defesa da
tortura física e da punição letal dos que julga ser criminoso. Armstrong
(2001: 249) não parece se equivocar ao dizer que os fundamentalistas,
inspirados em suas leituras literais de certas narrativas bíblicas, se
sentem legitimados a defender práticas genocidas.
Agradecimentos
Agradeço a Edin Abumanssur, Fernando Torres-Londoño, Gedeon
Alencar, Ricardo Bitun, Ricardo Quadros Gouvêa, Ronaldo de Paula
Cavalcante e Silas Luiz de Souza. Menciono o apoio institucional do
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência da Religião da PUC-
SP. A responsabilidade pelas ideias contidas neste capítulo restringe-se
ao autor.

109 No Brasil foi publicada em 2005, por uma editora protestante chamada
Hagnos, situada em São Paulo, uma versão dos panfletos The Fundamentals,
editados por Reuben Archer Torrey. Essa edição brasileira foi intitulada Os
Fundamentos: a famosa coletânea de textos das verdades bíblicas
fundamentais.
110 Com duas fortes ênfases que seriam a hipótese da inerrância bíblica – a
Bíblia deveria ser considerada inspirada por Deus –, além da chamada
escatologia milenista (ou milenarista), o fundamentalismo se constituiria e,
em alguns círculos, até se identificaria enquanto tal, a partir da Conferência
Mundial dos Cristãos Fundamentalistas, realizada em 1919, mas não sem
produzir divisões entre as denominações. Nem todos os protestantes
aceitavam essa designação (Mendonça; Velasques Filho, 1990: 123-129).
111 Aqui há que se fazer uma ressalva. Embora esses grupos mais
conservadores protagonizados por figuras como Billy Graham não se
identificassem como fundamentalistas, suas bases eram as mesmas do
fundamentalismo que observamos até aqui, tendo como ponto de partida as
defesas contidas nos panfletos The Fundamentals. Velasques Filho, contudo,
apresenta-nos com precisão às diferenças e aproximações entre
conservadorismo protestante e fundamentalismo (Mendonça; Velasques
Filho, 1990: 111-131).
IX. Evangelicalismo na Segunda
Metade do Século XX: O
“Esquecimento“ das Ideias
Fundamentalistas e a Cristalização do
Evangelicalismo

Ivan Dias da Silva


Introdução:
Os diferentes grupos protestantes nos EUA.
Para uma compreensão maior das questões ligadas ao tema proposto,
faz-se necessário levar em consideração a complexidade do segmento
religioso Protestante americano. Os principais representantes do
protestantismo nos EUA podem ser divididos em três grupos: os
protestantes majoritários (mainline prostestants), os evangélicos112 –
também chamados de “novos evangélicos” – e os fundamentalistas
(Green, 2004; Burge & Djupe, 2018; Bradshaw, 2014). Os protestantes
majoritários têm por característica não aceitarem a doutrina da inerrância
bíblica113 e realizam uma abordagem mais liberal em questões sociais,
políticas e teológicas. Já os evangélicos, surgidos na década de 1940, são
os protestantes do norte e sul dos EUA que, como os fundamentalistas
da década de 20, creem nos “fundamentos da fé” e na necessidade de
recuperar a herança cristã da nação. Originalmente, muitos evangélicos
postulavam o distanciamento das atividades políticas, enquanto outros
segmentos desejavam fazer alianças de base religiosa e política mais
ampla e eram, então, mais influentes politicamente.
Já os fundamentalistas, originados em diversas denominações
protestantes, possuem em comum a crença de que a América se encontra
em um processo acelerado de perda de sua identidade cristã, e necessita
mudar o seu curso. De forma sintetizada, pode-se afirmar que têm um
compromisso com o ideal de uma nação cristã, baseada em princípios
morais protestantes. Seu envolvimento político objetiva o cumprimento
desta visão (Williams, 2010: 4).
As bases teológicas do fundamentalismo podem ser encontradas na
obra The Fundamentals, dos teólogos da Universidade de Princeton,
texto que, como sabemos, tenta estabelecer os chamados fundamentos da
fé, ou seja, os elementos da doutrina tradicional, tidos como
inquestionáveis, tais como a autoridade, inspiração e a absoluta
veracidade da Bíblia, a deidade de Jesus Cristo, seu nascimento virginal,
dentre outros (Torrey, 2005: 07). Uma contribuição a ser levada em
consideração na qualificação do fundamentalismo é a de Karen
Armstrong (2001: 10), para quem é importante compreendê-lo como um
movimento inovador. Na sua avaliação “tem-se a impressão de que os
fundamentalistas são inerentemente conservadores e aferrados ao
passado, e, no entanto, suas ideias são essencialmente modernas e
inovadoras.” Para Armstrong, se os fundamentalistas de fato almejaram
“voltar ao ‘fundamental’, os protestantes norte-americanos agiram de um
modo peculiarmente moderno”, pois, “absorveram o racionalismo
pragmático da modernidade e, sob a orientação de seus líderes
carismáticos, refinaram o ‘fundamental’ a fim de elaborar uma ideologia
que fornece aos fiéis um plano de ação. Acabaram lutando e tentando
ressacralizar um mundo cada vez mais céptico.”
Seguindo avaliação semelhante, Almond, Sivan e Appleby (1995:
402), em um texto intitulado Fundamentalism: Genus and Species,
afirmam que não veem
O fundamentalismo nem como um ‘novo movimento
religioso’ (no sentido técnico do termo) nem como
simplesmente uma expressão ‘tradicional’,
‘conservadora’, ou ‘ortodoxa’ de fé, ou uma prática
religiosa antiga ou pré-moderna. Preferencialmente, o
fundamentalismo é um hibrido de ambos os tipos de
modalidades religiosas, e pertence a uma categoria
própria.
Os primeiros a utilizar o termo “fundamentalismo” foram segmentos
protestantes norte-americanos no início do século XX. Eles passaram a
se autodenominar
‘Fundamentalistas’ para distinguirem-se de protestantes
mais ‘liberais’, que, a seu ver, distorciam inteiramente a
fé cristã. Eles [os fundamentalistas] queriam voltar às
raízes e ressaltar o ‘fundamental’ da tradição cristã, que
identificavam como a interpretação literal das Escrituras e
a aceitação de certas doutrinas básicas. Desde então se
aplica a palavra ‘fundamentalismo’ a movimentos
reformadores de outras religiões, o que está longe de ser
satisfatório e parece sugerir que o fundamentalismo é
monolítico em todas as suas manifestações. Na verdade,
cada ‘fundamentalismo’ constitui uma lei em si mesmo e
possui uma dinâmica própria. (Armstrong, 2001: 10)
No seu começo o fundamentalismo norte-americano caracterizou-se
por ser primariamente um movimento religioso e centrado em questões
teológicas. Foi um movimento originado entre cristãos evangélicos
norte-americanos, pessoas que professavam completa confiança na
Bíblia, preocupadas que eram com a mensagem de salvação enviada por
Deus para os pecadores através da morte de Jesus Cristo. Estes
evangélicos estavam convencidos de que a sincera aceitação da
mensagem contida nos Evangelhos era a chave para uma vida virtuosa
na terra e para a vida eterna no céu. Sua rejeição significava seguir o
caminho largo que levaria às “torturas do inferno”. (Marsden, 2006: 3)
Dentro desta perspectiva, o típico fundamentalista norte-americano é
definido pelo historiador George M. Marsden (1991: 3) como
Um evangélico que milita em oposição à teologia liberal
nas igrejas ou às mudanças dos valores culturais ou das
convenções morais, como as associadas ao ‘humanismo
secular’ (...) os fundamentalistas são um subtipo de
evangélicos para os quais a militância é crucial à sua
percepção (de mundo). Eles não são apenas conservadores
religiosos. São conservadores que se posicionam e lutam
contra seus opositores.
Podemos inferir, portanto, que o fundamentalismo norte-americano
constitui-se numa variação diferenciada do protestantismo evangélico,
moldada de forma única pelas circunstâncias dos EUA no início do
século XX. Dentre as mais comuns compreensões do fundamentalismo
tem prevalecido a de vê-lo essencialmente como “a extrema e agonizada
defesa de um meio moribundo de vida” (Marsden, 2006: 04). Esta
explicação basicamente sociológica foi apresentada por oponentes do
fundamentalismo na década de 1920, e na geração seguinte o
fundamentalismo passou a ser comumente considerado como uma
manifestação de defasagem cultural que o tempo e o desenvolvimento
educacional eventualmente eliminariam.
1. O “Esquecimento” das Ideias Fundamentalistas.
Plantando a semente: duas décadas de isolamento produtivo (1920-
1940)
Nas primeiras décadas do século XX as denominações religiosas do
norte dos EUA envolveram-se numa batalha intelectual denominada
“controvérsia fundamentalista-modernista”. Na década de 1920 os
modernistas alcançaram a vitória na Northern Baptist Convention e
Northern Prebyterian Church, devido, majoritariamente, ao fato que
muitos que defendiam uma posição central no conflito eram adeptos da
teoria da “unidade em meio à diversidade”. Segundo esta teoria, as
referidas denominações deveriam acolher os dois pontos-de-vista
antagônicos, ou seja, o liberalismo e o fundamentalismo teológicos. Esta
posição mostrou-se insuficiente, ainda que pragmática. O fato é que nas
décadas de 1920 e 1930 os fundamentalistas reagiram de forma dividida
ao modernismo. Muitos tornaram-se francamente separatistas,
entendendo ser imperiosa a separação institucional, teológica e até
mesmo física das denominações dominadas pelo liberalismo teológico.
Esta orientação deu vida aos típicos fundamentalistas americanos,
definidos pelo historiador George Marsden (2006: 4) como “cristãos
evangélicos (…) que, no século XX, se opuseram militantemente tanto
ao modernismo em teologia quanto às mudanças culturais que o
modernismo endossava”.
Em sintonia com tal avaliação, Marsden (1991: 1) sugere que “um
fundamentalista é um evangélico que está zangado a respeito de algo”, e
completa afirmando que isto “parece simples”, mas é uma definição
“bastante fiel. Até mesmo Jerry Falwell já a adotou como uma breve
definição de fundamentalismo, que repórteres costumavam citar”.114
Além desta definição informal, pode-se declarar, de uma maneira mais
precisa, que o mesmo termo denota “um evangélico que é militante em
oposição à teologia liberal nas igrejas, ou a mudanças nos valores ou
costumes culturais, como os associados ao ‘humanismo secular’”.
Ambas definições indicam que o “os fundamentalistas são um subtipo de
evangélicos, e a militância é crucial à sua posição. Os fundamentalistas
não são apenas conservadores religiosos, eles são conservadores que
desejam se posicionar e lutar”.
Durante o final da década de 1920 havia uma opinião popular corrente
segundo a qual o movimento fundamentalista estaria em franco processo
falimentar, em virtude de sua voz ter praticamente desaparecido do
espaço público. Marsden (1991: 61) declara que
O fundamentalismo parecia estar em descontrole e a
maioria dos observadores considerava que ele havia se
queimado e iria desaparecer para sempre. Críticos
geralmente haviam assumido que o fundamentalismo
tinha sido, de maneira ampla, o produto da cultura rural, e
que a partir da expansão da educação moderna anterior,
ele perderia sua base social.
Ao contrário dessa interpretação de matriz francamente secularista, o
fundamentalismo protestante americano estava isolado, sim, mas não
inativo ou realizando ações improdutivas. Como o próprio Marsden
descreve, o movimento “não estava desaparecendo, mas se realinhando.
Incapaz de controlar as maiores denominações do norte e a cultura
política, os fundamentalistas continuaram a fazer aquilo no que eram
melhores: evangelizar e organizar igrejas locais” (1991: 61). De fato,
como indica Martin (1996: 17), “o cristianismo fundamentalista,
realmente, atravessou um deserto, mas não havia sido sepultado”.
A verdade é que o referido movimento estava em franco
desenvolvimento, estendendo uma rede de organizações
paraeclesiásticas, e estabelecendo uma série de enclaves que, de maneira
silenciosa, mas efetiva, contribuíram para sua sobrevida e reestruturação
nas duas décadas seguintes. Os calorosos debates internos versavam
sobre temas como o papel feminino na liderança da igreja, a separação
do mundo e a importância da erudição. Carpenter (1999: 76) afirma que
o fundamentalismo nunca esteve estagnado ou agiu somente como um
movimento reacionário. Antes, é um movimento que se baseia em “uma
‘teologia em evolução’, que está sujeita a debate e dissensão: uma
teologia que se adapta à mudança dos tempos”.
Como seu discurso não conseguia prevalecer nas denominações
majoritárias do norte do país e nem influenciar diretamente a cultura
política, os fundamentalistas, no afã de difundir sua mensagem,
utilizaram-se de meios diversos, tais como, por exemplo, movimentos de
juventude (na forma de entretenimento alternativo e instrução espiritual),
evangelização e abertura de novas igrejas e, talvez mais
significantemente, apropriaram-se dos dispositivos da florescente
indústria dos meios de comunicação de massa para difundir sua
mensagem, especialmente através da poderosa nova mídia radiofônica,
sobretudo, inicialmente, em sua dimensão local. Marsden (1991: 47,61)
assinala que os fundamentalistas foram “mestres dos meios de
comunicação de massa, e rapidamente se adaptaram ao rádio” com vistas
à evangelização. De fato, principiando nas emissoras locais, os
pregadores conservadores expandiram-se paulatinamente também para
aquelas de alcance regional, e até mesmo nacional. Desta forma, tiveram
acesso a milhões de radio-ouvintes, de forma comparável ao que os
televangelistas fazem hoje. De acordo com este historiador americano,
Certamente um dos mais notáveis desenvolvimentos na
religião americana desde 1930 foi a reemergência do
evangelicalismo como uma força na cultura americana.
Provavelmente, era o menos provável de ser predito em
1930. Parecia que os fundamentalistas tinham sido
vencidos nestas maiores denominações do norte do país,
onde haviam surgido sérios desafios durante a década de
1920, e onde os progressistas estavam no controle. Tudo o
que restou para ser feito, de acordo com as teorias
sociológicas prevalecentes, foram operações de remoção.
A religião conservadora morreria na medida em que a
modernidade avançasse. O sul retrógrado se tornaria mais
parecido com o norte industrializado. Os fundamentalistas
tinham a sua própria versão da teoria, supondo que a
secularização avançaria regularmente nas igrejas e na
cultura até o retorno de Cristo. Poucos imaginavam que o
sul ascenderia novamente para dar o tom da forma
cultural religiosa de grande parte da nação (Marsden,
1991: 63-64).
Não obstante o fato que durante os anos de 1925 a 1950 o movimento
fundamentalista parecesse invisível para os que dele não faziam parte, a
partir da década de 1940 ele começou a dar provas contundentes de que
não apenas havia sobrevivido, como também reemergiria como um
movimento público extremamente próspero e influente. Marsden (Ibid.:
47, 64) ainda indica que o evangelicalismo de então consolidou-se
através de uma “minoria cognitiva” que, no entanto,
Emergiu como uma maioria sociocultural (...) Os
reformadores neo-evangélicos do fundamentalismo
estavam entre os primeiros a antecipar a possibilidade de
um ressurgimento evangélico. Na verdade, na década de
1940, eles conversavam grandiloquentemente não apenas
sobre tal retorno, mas também a respeito do
‘restabelecimento das teses e princípios fundamentais de
uma cultua ocidental’ e, como declarou Carl Henry,
‘[como um] fundamentalismo recriado, levemente
temperado, o cristianismo evangélico poderia ‘conquistar
a América’115
A partir deste momento ocorre uma mudança no significado do termo
“fundamentalismo”. Originalmente, ele era apenas o nome dado à ala
conservadora militante da coalizão evangélica, que perdeu seu
protagonismo inicial por volta da década de 1930. A partir deste
momento,
O termo ‘fundamentalismo’ começou a tomar um sentido
mais limitado. Muitos fundamentalistas estavam
abandonando as principais denominações protestantes,
essencialmente aquelas associadas com a Federação
Ecumênica (depois, Nacional) do Concílio de Igrejas.
Tendo eles próprios feitos esta mudança, os
fundamentalistas passaram a considerar a separação de
tais denominações um teste da fé verdadeira. A mudança
na terminologia foi ocorrendo gradualmente, mas, por
volta da década de 1960, o termo ‘fundamentalista’
normalmente significava ‘separatista’ e não incluía mais
muitos dos conservadores que faziam parte das principais
denominações. (...). Os fundamentalistas, então, se
tornaram uma autodesignação mais específica. Apesar de
pessoas fora do movimento usarem o termo de forma
mais ampla para designar qualquer conservador militante,
aqueles que se autodenominam fundamentalistas são
predominantemente batistas dispensacionalistas
separatistas (Marsden, 1991:3-4).
Esta mudança de sentido do termo “fundamentalista” ocorreu em
decorrência dessa cisão na ala conservadora militante evangélica,
quando emergiu de dentro dela um movimento independente e
separatista, bem definido no cenário religioso americano, e que fez
questão de se diferenciar do grupo que integrava. Normalmente os
fundamentalistas se orgulhavam de se autointitularem como tais, pois
entendiam como extremamente necessária a separação daqueles que
consideravam terem se corrompido na interpretação e prática da fé.
2. A Cristalização do Evangelicalismo: O frustrado sonho
modernista da unidade evangelical.
O erudito britânico David Bebbington (1989: 2-17) resumiu muito
bem os elementos essenciais do Evangelicalismo, denominado de
“quadrilátero de prioridades”, também conhecido como o “quadrilátero
de Bebbington”, ou seja, conversionismo (experiência sobrenatural e
transformadora de vida central à fé cristã), biblicismo (confiança na
Bíblia como autoridade religiosa sobre outras autoridades),
crucicentrismo (ênfase na crucificação de Cristo) e ativismo (crença de
que os cristãos devem se engajar no mundo, em evangelismo, missões e
de outras formas). De acordo com Hankins (2008: 35), cinco eventos
teriam sido instrumentais para o surgimento e progresso do
Evengelicalismo. O primeiro deles, a formação da National Association
of Evangelicals (NAE), em 1942, que “se tornou o mais importante
desenvolvimento no que um historiador denominou ‘um front unido
evangélico’, que trouxe o renascimento do Evangelicalismo após o
período fundamentalista (1925-1940) que seguiu a controvérsia
fundamentalista-modernista”. A NAE ajudou a
forjar uma identidade cristã pela qual foi possível ser um
evangélico sem ser rotulado como um fundamentalista,
embora muitos na cultura mais ampla, tanto à época
quanto agora, não consigam distinguir a diferença (...)
[Esta organização] era parte de uma tendência mais ampla
na América do século XX que via os cristãos divididos
menos no que diz respeito à diversas linhas
denominacionais – católicos, episcopais, metodistas,
presbiterianos, batistas e assim por diante – e mais de
acordo com [o fato de] alguém ser conservador ou liberal
(Hankins, 2008: 37).
Um segundo evento destacado por Hankins é o surgimento de um
pequeno quadro de erutidos evangélicos, como Carl F. H. Henry, que
compuseram uma vanguarda neoevangélica que cursou doutorado em
respeitadas e prestigiadas universidades, como Princeton, Yale, Harvard
e Universidade de Chicago. Doutor em Filosofia (1949) pela
Universidade de Boston, assim como seus outros companheiros com
graduação semelhante, concluíram que os fundamentalistas separatistas
não se preocupavam com a cultura no todo, e reconheceram ser isso uma
deficiência. Intentando liderar a modelação de uma resposta
neovangélica às deficiências fundamentalistas, Henry escreveu dois
livros: Remaking the Modern Mind (ainda antes de concluir sua tese
de doutorado) e The Uneasy Conscience of Modern Fundamentalism.
Na primeira obra ele defende que somente uma cosmovisão cristã
rearticulada (sem os excessos do modernismo ou a fraqueza do
fundamentalismo) seria coerente e capaz de resgatar a cultura decaída e
prevenir o colapso da civilização ocidental. No segundo livro, o autor
destaca que os fundamentalistas estavam perdendo a oportunidade de
“desenvolver uma perspectiva ética que conduziria a uma reforma social
e renovação cultural” (Hankins, 2008: 28).
A revista Christianity Today teria servido como um terceiro
importante componente do Evangelicalismo emergente. Criado em 1956,
este periódico se tornou o mais influente órgão para a difusão das
perspectivas dos líderes Evangélicos e logo evoluiu para tornar-se a mais
popular e respeitável articulação teológica evangélica e das questões
culturais e políticas. A quarta importante contribuição para
desenvolvimento do emergente movimento evangelical foi a fundação
em 1947 do Fuller Seminary, em Pasadena, Califórnia, que teria por
objetivo treinar pregadores e produzir livros e material a ser publicado
em periódicos teológicos. Ao ser inaugurado, o Seminário anunciou o
evento como “o início de uma nova era para o Evangelicalismo”, que
conduziria o movimento à vanguarda da vida intelectual da América.
Somando-se à NAE, Carl Henry, Christianity Today e o Fuller
Seminary, “um quinto e fator final na emergência do neovangelicalismo
não foi um projeto, mas uma pessoa – Billy Graham” (Hankins, 2008:
41). Carl F. Henry (1980: 1060) escreveu que durante a década de 1960
“sonhava com a possibilidade de que uma ampla aliança evangélica
pudesse surgir nos Estados Unidos para coordenar efetivamente um
impacto nacional no evangelismo, na educação, nas publicações e na
ação sociopolítica”. Esta afirmação feita por Henry, um dos
reconhecidos líderes do Evangelicalismo americano, resume a
expectativa criada na década de 1960 de uma unidade das operações do
movimento, que pudesse de alguma forma influenciar a sociedade como
um todo. O ideal de Henry era que o grupo de reformadores evangélicos
do fundamentalismo anterior pudesse ser eficaz na mobilização de “uma
frente evangelical unida e coesa, reminiscente do apogeu do
Evangelicalismo americano do século XIX” (Marsden, 1991: 63).
Era necessário que houvesse um líder que pudesse, com seu carisma,
catalisar essa unidade evangelical sonhada por Henry, unificando o
protestantismo dos EUA, atraindo e representando os evangélicos,
inclusive sua ala mais conservadora. Na Bíblia, o livro do Êxodo
apresenta uma narrativa segundo a qual o povo de Israel, deixando para
trás um longo período de escravidão no Egito, teria atravessado a pés
enxutos o Mar Vermelho, sob a condução de seu líder, Moisés, rumo à
Canaã, a terra que lhes teria sido prometida por Deus. Por analogia,
poderíamos considerar William Franklin “Billy” Graham Jr.116 como um
tipo de “Moisés”, pois ele, indubitavelmente, conduziu os protestantes
americanos a um novo momento em sua história. Após terem sido
relegados a um silêncio obsequioso durante o período de reclusão em
seus enclaves internos, os evangélicos voltariam a ter destaque no
cenário americano após terem decorrido 20 anos de indiferença pública.
Essa transição teve a contribuição incontestável desse referido ator
religioso. Billy Graham, jovem (aos 30 anos) e carismático pregador,
surge em cena e torna-se popular em 1949, passando a atrair dezenas de
milhares de ouvintes diariamente e contribuindo, de modo indireto, para
o retorno e visibilidade do protestantismo no espaço público do seu país.
Descrevendo bem essa etapa, Reynolds (2009: 404) afirma que
O pastor que realmente trouxe o Evangelicalismo ao
destaque nacional foi Billy Granham, da Carolina do
Norte, que desenvolveu um movimento reavivalista
conhecido como Juventude Para Cristo. Com slogans
como ‘Engrenado com o tempo, mas ancorado à Rocha’,
as reuniões de Graham pautaram-se pelo uso da
linguagem da cultura popular – música, a presença de
celebridades, jogos de perguntas e respostas, e até mesmo
mágicas – mas tudo conduzindo para a pregação do
próprio Graham. ‘Nós usamos todos os meios modernos
para captar a atenção do não convertido’, ele disse, ‘e,
então, os acertamos entre os olhos com o evangelho’.
Graham conquistou o apoio do magnata da imprensa
escrita William Randolph Hearst, que gostou da mistura
de patriotismo e moralidade. Hearst disse laconicamente
aos jornalistas para ‘colarem no Graham’, e eles o
fizeram. Graham tornou-se de fato uma figura
nacionalmente conhecida em 1952, em consequência de
uma cruzada [evangelística] de cinco semanas, em
Washington, D.C., que teve seu encerramento nas
escadarias do Capitólio – o primeiro culto religioso
formal realizado naquele local.
Surgindo como “herdeiro da coalizão fundamentalista original da
década de 1920”, Graham poderia ter sido, certamente, o catalisador da
unidade evangelical, sonhada por Carl Henry. No entanto, as
expectativas de Henry frustraram-se, pois Graham, que desde a década
de 1950 até este início do século XXI foi a figura-símbolo da corrente
neoevangélica do protestantismo, não conseguiu atrair e representar a ala
protestante mais fundamentalista, mais sectária. Para Hankins, Billy
Graham, apesar de ser biblicista, conversionista, crucicentrista e ativista
como os demais evangélicos fundamentalistas, tinha algo de muito
diferente. Segundo este historiador, aquele pastor evangélico era um
homem envolvido com a cultura religiosa dominante nos EUA, isto é,
cultura ecumênica e pluralista, sendo ele mesmo um agente desta
vertente cultural-religiosa. Hankins (2008: 7) assinala que Graham
esteve sempre envolvido
Com a cultura, sendo, senão mesmo, alguém da cultura.
Além do mais, cooperou em suas cruzadas com todo tipo
de cristão – liberal, conservador, protestante, católico ou
ortodoxo. É digno de nota que, a partir da década de 1950,
alguns líderes militantes fundamentalistas tornaram-se
críticos ferrenhos de Graham, e, algumas vezes, o
atacaram violentamente.
Em sintonia com Hankins, Reynolds (2009: 404) declara que
Diferentemente dos antigos fundamentalistas, Graham e
seus companheiros evangélicos tinham uma preocupação
maior em salvar almas do que com a manutenção de uma
pureza teológica. Assim sendo, não se recolheram no
sectarismo, mas buscaram construir pontes com as
principais denominações e com a sociedade americana
como um todo.
A consequência inevitável do confronto de tais pontos-de-vista e
práticas discordantes foi que, finalmente, como assinala Marsden (1991:
62),
Billy Graham havia decididamente rompido com os
fundamentalistas separatistas, havia realizado incursões
nas maiores denominações, se encontrava com a
popularidade em alta e permanecia praticamente o único
líder evangélico reconhecido [publicamente].
Considerando a complexa diversidade do movimento evangélico, não
apenas em questões teológicas, mas também políticas e sociais, Carl
Henry (1980: 1060) assevera que
No início da década de 1970 a possibilidade de uma
significativa aliança evangélica parecia ser mais remota, e
por volta do meio da década havia se dissipado
totalmente. Os obstáculos surgiram não apenas por causa
das diferenças denominacionais, mas também em virtude
dos objetivos opostos [que possuíam]. Ao invés de se
unirem em torno de algo realizável, os evangélicos muitas
vezes se furtaram a tomar a melhor decisão ainda que
fosse para não fazerem nada.
O fato é que, invés da tão sonhada unidade, o que se percebe, então, é
a diversidade no próprio campo evangélico protestante. Esta “incrível
amplitude e diversidade da subcultura evangélica” (Krapohl & Lippy,
1999: 8) é descrita por diversos historiadores do protestantismo com o
uso de metáforas, como “guarda-chuva”, “mosaico” e até mesmo
“caleidoscópio” (Smith, 1986: 128). Estas figuras de linguagem são
apropriadamente utilizadas para indicar que os cristãos conservadores
não formam um grupo monolítico, coeso. Para a perplexidade daqueles
observadores externos ao movimento, que consideram os
fundamentalistas, os evangélicos e seus diversos matizes como um bloco
amalgamado, na realidade eles “representam tendências distintas que
estão frequentemente em conflito” (Cox, 1995: 62). Desta forma,
extinguiu-se a aspiração por um movimento transdenominacional
evangélico, que fosse uma proposta viável e unificadora do
protestantismo americano, e uma alternativa reformadora do
fundamentalismo. Como diz Marsden (1991: 76), “no final da década de
1970, ninguém, nem mesmo Billy Graham, podia reivindicar ser o
mediador de uma coalizão tão dividida”.
De fato, o Evangelicalismo dos EUA pode ser considerado uma
unidade apenas em um sentido mais amplo, no que diz respeito às
questões essenciais do movimento, ou seja, “de que a Bíblia é a única
autoridade em religião e que o único meio de salvação é uma
experiência transformadora de vida pelo Espírito Santo através da fé em
Jesus Cristo” (Wacker, 1997: 17). No demais, este movimento comporta
tradições amplamente independentes, e até mesmo divergentes. Já em
relação ao Fundamentalismo evangélico nos EUA, com propriedade
pode se afirmar que ele
jamais esteve realmente inativo depois da década de 1920,
mas se amoldou às transformações operadas na sociedade.
Assim sendo, invés de ser meramente estigmatizado, ele
deve ser considerado, sobretudo na sua forma atual,
neofundamentalista, como um movimento cuja influência
veio moldando o próprio Evangelicalismo contemporâneo
(Silva e Barbosa, 2019: 249).
Sendo assim, estavam enganados os que criam que o fundamentalismo
morreria após o Scopes Trial117, e que o novo Evangelicalismo reinaria
soberano no cenário da religião protestante norte-americana. Na
realidade, a influência fundamentalista só viria a ser sentida em sua
plenitude a partir da década de 1980.

112 Os “protestantes majoritários” (mainlines) receberam esta nomenclatura porque foram a maioria
protestante nos EUA até meados do século XX, mas atualmente constituem a minoria. Representam as
denominações mainlines norte-americanas, dentre outras, as Igrejas Presbiteriana (EUA), Episcopal
(EUA), Evangélica Luterana na América, Metodista Unida (EUA), Unida de Cristo, Discípulo de Cristo
e a Convenção Batista Americana, que juntas compõe as chamadas “sete irmãs”. São exemplos de
igrejas evangélicas clássicas norte-americanas, dentre outras, a Igreja Presbiteriana na América, a
Convenção Batista do Sul dos EUA. Igreja Cristã Reformada na América do Norte, Igreja Presbiteriana
Americana, Igreja Assembleia de Deus (EUA) e Igreja Luterana (Sínodo Missouri). Green, John.
“Evangelical vs. mainline protestants”.
https://www.pbs.org/wgbh/pages/frontline/shows/jesus/evangelicals/evmain.html [29.04.2004] (acesso
em 31.05.2020); Burge, Ryan P. & Dupr, Paul A. “What is a mainline protestant?”.
https://religioninpublic.blog/2018/06/28/what-is-a-mainline-protestant/ [28.jun.2018] (31.05.2020) e
Brsdshaw, William B. “Mainline churches: past, present, future”. Huffpost.
https://www.huffpost.com/entry/mainline-churches-past-pr_b_4087407 [23.01.2014] (acesso em
31.05.2020)
113 Quando os cristãos mencionam a “inerrância da Bíblia” estão se referindo à convicção de que a
Bíblia não contém ensinamentos falsos ou erro. Ou seja, a crença de que, em relação aos manuscritos
originais, a revelação de Deus é perfeita e sem erro, doutrinariamente, historicamente, cientificamente e
filosoficamente (Cf. Patterson, 2007: 58).
114 Jerry Lamon Falwell (1933-2007) foi um pastor fundamentalista evangélico e televangelista que
durante a maior parte de seu ministério pastoral foi um batista independente. Ele foi o pastor fundador e
presidente da Thomas Road Baptist Church, uma megaigreja situada em Lynchburg Vírginia (EUA) e
da Liberty University, em 1979, na mesma cidade. Falwell foi também o co-fundador (com o ativista
político conservador Paul Weyrich) e mais destacada liderança da organização norte-americana de
lobby político, e de matriz evangélica denominada Moral Majority, extremamente atuante entre os anos
de 1979, quando foi fundada, e 1989, ano de sua dissolução (Silva & Barbosa, 2019: 13,15).
115 O educador, autor e teólogo Carl F. H. Henry é amplamente conhecido com um dos principais
pensadores evangélicos americanos. Foi o editor-fundador da revista Christianity Today. É autor de
cerca de 35 livros - dentre eles The Uneasy Conscience of Modern Fundamentalism (1948) - muitos
dos quais influenciaram decisivamente o molde do cristianismo nos EUA (Hankins, 2008: 37,38).
116 O pastor batista norte-americano William Franklin “Billy” Graham Jr. (1918-2018) foi destacado
membro da Convenção Batista do Sul dos EUA, e conselheiro espiritual de diversos presidentes de seu
país. Graduado pelo Florida Bible Institute e pelo Wheaton College tornou-se evangelista pelo Youth
for Christ (uma organização que tinha por propósito alcançar jovens no ensino médio, superior e nas
Forças Armadas). Tendo a oportunidade de viajar por todos os EUA pregando, bem como pelo
continente europeu e Grã-Bretanha, “desenvolveu uma reputação nos círculos evangélicos como um
dos mais dotados pastores jovens da geração” (Hankins, 2008: 41,42). Fundou em 1950 a Billy Graham
Evangelistic Association, na suas chamadas “Cruzadas Evangelísticas” esteve em 185 países e alcançou
um número de aproximadamente 210 milhões de pessoas. Graham, que já vinha padecendo de há anos
de doença de Parkinson, câncer de próstata, fraturas no quadril e pélvis, faleceu em seu lar em 2018,
aos 99 anos, (Barata, 2018; Balmer, 2004: 80).
117 O Processo Scopes consistiu no histórico julgamento de 1925 no qual o professor de biologia John
T. Scopes foi criminalmente acusado de violar a lei estadual do Tennessee, ao ensinar a Teoria da
Evolução. A questão central debatida no tribunal foi sobre a legalidade ou não do ensinamento de tal
teoria em escolas públicas naquele estado da federação. A legislatura do Tennessee havia recentemente
votado a ilegalidade desta prática. Apesar de ser um julgamento estadual, estavam em jogo as
implicações relativas à educação pública em outros lugares do país. A questão principal era se as juntas
escolares ou governos estaduais tinham ou não legitimidade para decidir, com base em orientações
religiosas, qual parte do conhecimento científico devia ser excluído do currículo escolar (Martin, 1996,
p. 15).
X. “Palavras de Morte e Não de Vida“:
O Estudo dos Fundamentalismos e seu
Acesso ao Primeiro Testamento

Elcio Sant’Anna
O verdadeiro crente não pode descansar enquanto o
mundo inteiro não se ajoelhar. Não é óbvio para todos, diz
o devoto, que a autoridade religiosa está acima de todos e
que aqueles que se recusam a reconhecer isso abrem mão
do direito de existir?
Christopher Hitchens
Introdução.
Os fundamentalismos de corte protestantes são um dos fenômenos
político-religiosos mais vigorosos e persistentes que se manifestaram
entre os séculos XIX e XXI. Na verdade, mesmo depois que já tivessem
sido alvo de especulação e pesquisa pela literatura especializada, só
recentemente passou ser objeto de preocupação de forma geral da
sociedade contemporânea. Talvez, a sua discussão tenha alcançado seu
ápice aqui no Brasil, nas eleições de 2018, com a confluência da
ascensão da extrema direita ao imaginário popular e a aproximação de
atores sociais de estrato religioso, mormente vindo daqueles meios que
gravitavam à esfera do neopentecostalismo brasileiro e outros grupos
conservadores.
Este esforço consiste em dar uma contribuição a partir da antropologia
da religião e outras iniciativas de suas cercanias, para entender a questão
de como é, e quais são as razões pelas quais os fundamentalismos
hodiernos têm se servido do Primeiro Testamento 118 nos dias atuais.
Considerando os aspectos em que estes grupos têm se valido de acessar
as suas Escrituras é importante saber: como o mecanismo de defesa de
seu sistema de crenças tornou-se também ponta de lança de seu ataque à
sociedade contemporânea como um todo? Foco-me nestas duas questões
para entender de que maneira estes fundamentalismos buscam
estabelecer um estágio hegemônico na cultura e sociedade brasileira para
as próximas décadas. Por esta razão desejei tratar a temática a partir da
teoria de dois destacados antropólogos em suas obras sucessivamente:
Jack David Eller em sua “Introdução à Antropologia da Religião” e
Stanley Barrett em sua “Antropologia, guia do estudante...”, bem como
também na etnografia de Carly Machado, entre outras fontes.
Pensando na “ideologia fundamentalista”119 a partir da metáfora dos
conflitos político-bélicos, é possível com bastante acerto dizer que os
fundamentalismos de matizes evangélico-brasileiros têm utilizado em
grande monta o Primeiro Testamento, livro sagrado de judeus e cristãos
como armamento e munição para uma agência contundente em termos
de discurso que não apenas “evangeliza”, como também se dispõe de
forma apologética, a buscar, incapacitar e interditar pessoas de outros
cenários, que assumem posicionamentos discordantes, não admitindo
qualquer tipo de negociação.
Por esta razão é importante mesmo que de modo esquemático, que se
possa apresentar tipologias ou mesmo fenômenos que consigam tratar
das diversas cores dos fundamentalismos pregressos e hodiernos, para
que a compreensão dos grupos religiosos flamejantes, contemporâneos
na sociedade brasileira.

Um caso digno de nota.


Há uma razão considerável agora em parar a fluidez do argumento
que intentei até aqui. É necessário verificar a efetividade de movimentos
fundamentalistas instalados hoje em dia, que têm suas raízes em outros
cenários religiosos. Por isto, é interessante oferecer um exemplo de um
caso etnografado de expressões religiosas presentes na cidade do Rio de
Janeiro: o relato da Tropa de Louvor do Batalhão de Operações
Especiais Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (BOPE)
apresentado pela Profa. Carly Machado, em seu artigo, “Morte, perdão e
esperança de vida eterna: ‘ex-bandido’, pentecostalismo e
criminalidade no Rio de Janeiro”:
Outras brigadas evangélicas formadas por homens
convertidos circulam pelo Rio de Janeiro ‘lutando o bom
combate e guardando a fé’. Mas alguns, além das suas
Bíblias, carregam também seus fuzis. Esse é o caso da
Tropa de Louvor, ministério evangélico do Batalhão de
operações Especiais (BOPE) da Polícia Militar do Rio de
Janeiro. Autodenominado ‘heróis anônimos’, o ministério
Tropa de Louvor referência o início de suas atividades aos
encontros da comunidade Evangélica do BOPE,
oficialmente instaurada em 2007, cujas reuniões
aconteciam na sede da corporação. Esses policiais
evangélicos eram, àquela época denominados ‘caveiras de
Cristo’. Criada em 2009, a banda fez em 2010 uma
sequência de shows em comunidades atingidas pelas
intervenções das UPPS entre elas o Borel, na Tijuca,
Pavão – Pavãozinho, Ladeira dos Tabajaras, em
Copacabana, e morro da Providência, na Gamboa. Em
2010 foi realizado o lançamento do CD do grupo, bem
como diversas reportagens sobre suas atividades.
(...)
O lema do Bope é ‘Vitoria sobre a morte!’ Seu canto de
treinamento é em seus versos: ‘Homem de preto, o que é
você faz? Eu faço coisas que assustam Satanás. Homem
de preto, qual é sua missão? Entrar pela favela e deixar
corpos no chão’.
(...)
Entre os seus pedidos, o policial clama por sua honra e
pede que nunca envergonhe sua fé, sua família e seus
camaradas. Pede coragem, sabedoria, força e conclui: É
pelo Senhor que nós combatemos/E a ti pertence o louro
por nossas vitórias/Pois teu é o Reino, o poder e Glória
para sempre/Amém!
(...)
(...)
No que diz respeito a matar, a ideia da ‘encarnação do
mal’ é decisiva na solução das tensões morais quanto às
exigências da prática policial na perspectiva desses
policiais evangélicos. ‘A luta não é contra a carne, mas
contras as potestades’, afirma um dos sargentos da Tropa
de Louvor. Atingir a carne è apenas um meio de atingir as
potestades, os espíritos do mal. ‘Que Deus nos use como
canal de bênção’. E essa bênção é sutilmente posicionada
entre matar ou atingir gravemente quem deve morrer para
deixar viver ‘a quem de direito’. Essa é a missão do
BOPE.
(...)
A missão do ministério religioso da Tropa do Louvor
ainda vai além do trabalho secular da polícia da cidade:
cumprida a missão do Bope, eles vão buscar as almas que
esperam para ser salvas. ‘Estes homens aqui, treinados
para tirar vidas, ‘silenciar o oponente’, esses homens
agora ganham almas’. Daí os cultos nos locais ocupados
pelo projeto de pacificação do governo do Estado do Rio
de Janeiro. ‘Ocupação e oração’, nos termos da tropa.
Depois de entrar com armas em punho, ‘salvando os
territórios’ dominados pelo tráfico e ‘libertando-os’ dos
opressores, os policiais entram nesses mesmos territórios
com seus cânticos e uma mensagem de salvação para
aqueles que ali ficaram e que podem se libertar também
do julgo moral da criminalidade através da conversão a
Cristo e ao Estado (Machado, 2015: 462-466).
A narrativa acima pode perfeitamente ser vista como uma expressão
do fundamentalismo no tecido social. Os policiais evangélicos estão
atuando na cidade de Rio de Janeiro com base em uma premissa que não
existia nas versões anteriores dos fundamentalismos que vieram a estar
em voga. Estes fundamentalismos assumem as atitudes de plasmar a sua
realidade com os valores de seu sistema de crenças. Por isto, estes
mesmos atores sociais, religiosos não se abstêm de atingir seus objetivos
neste contexto. Não acreditam em termos práticos em uma redenção
futura, prometida numa pátria celestial. Ao contrario, existe um novo
elemento que lhes faz ostentar uma crença de que são relevantes neste
mundo. Não podem esperar uma “parousia” (a volta de Cristo) que lhes
tire das mãos a capacidade de mudar este mundo aqui. Preferem
acreditar que devem concentrar-se em “tarefas que dominam e que
podem experimentar na vida aqui”. O que Zygmunt Bauman chamaria
de “ideia de autossuficiência” (Bauman, 1998: 213).
Este elemento novo, que talvez seja necessário investigar nas
expressões históricas fundamentalistas do passado a fim de trazer luzes
para a situação vivida nos dias de hoje. Mas, além disso, só pude
perceber este aspecto dos fundamentalismos atuais, após ter aprendido a
lição dada por Stanly Barrett em seu guia do estudante à teoria e ao
método antropológico intitulado por Antropologia, 2015. Depois de
descrever a Antropologia americana e da Grã-Bretanha, Barrett diz que:
“a distinção entre as disciplinas é insatisfatória e puramente analítica,
portando não havendo dissociação entre crenças e comportamento no
mundo real” (Barrett, 2015: 23-24). Ainda mais, não havendo
necessidade de se propor um distanciamento entre o “sistema de crenças
e o sistema social”. Desta maneira é que deve se perceber que os
fundamentalismos contemporâneos estão entrelaçados com o tecido
social, de modo que se possa abrangê-los dentro da dinâmica social,
podendo talvez em um futuro próximo verificar se tais
fundamentalismos obedeceriam dinâmicas internas de marcadores
sociais tais como etnia, classe, gênero etc... Todavia, este é um elemento
que deverá ser visto novamente em outra oportunidade.
A semente dos fundamentalismos.
O sociólogo israelense Shmuel Noah Eisenstadt em seu livro
“Fundamentalismo e modernidade”, recorreu à ideia de Karl Jasper para
falar do que em sua opinião representaria as raízes do que chama de
fundamentalismo. Foi após a formação das comunidades religiosas da
Era Axial é que se constituíram os movimentos que segundo ele, podem
ser chamados de fundamentalistas (Eisenstadt, 1997: 11). Naquele
contexto, “constituíram-se e institucionalizaram-se” novas visões
ontológicas, que se aperceberiam da realidade dentro de uma estrutura
de “tensão básica entre ordem transcendental e a ordem mundana”
(Eisenstadt, 1997: 3). Isto teria acontecido em Israel, na Grécia antiga,
na Índia, no Irã e até na China imperial. 120
Segundo Shmuel Eisenstadt esta nova configuração representava uma
série de rupturas revolucionárias – rupturas que se colocam “entre as
mais significativas da história da humanidade” (Eisenstadt, 1997: 3).
Houve uma percepção dissonante vista como um “hiato entre ordem
transcendente e a ordem mundana”. Certos elementos antes cristalizados
foram se esmaecendo, tal como a figura do rei-deus, a encarnação “quer
da ordem cósmica, quer da ordem terrena” (Frazer,1994), que perdeu seu
prestígio para se tornar apenas um governante secular, perante uma
ordem superior (Eisenstadt, 1997: 5).
Neste contexto não houve mais um rei, um mediador entre a ordem
secular e a universal, tornando-se então, hegemônicos os grupos
promulgadores de uma lei cósmica diante das quais até mesmos os
governantes eram sujeitos (Eisenstadt, 1997: 5-6). Desta maneira, o
tecido sociopolítico tornou-se mais tenso de maneira tal qual nunca fora.
Uma contradição insuperável passou a ser vivida pelas sociedades da
Era Axial (Eisenstadt, 1997: 8). As “utopias, escatologias, e as
concepções de realeza juntamente com o surgimento de grupos sectários
‘evoluíram’ para formarem o que Eisenstadt chamou de ‘esferas de
salvação’” (Eisenstadt, 1997: 13). É nesta conjuntura que passou a surgir
magos, profetas e messias, pessoas que de alguma maneira buscavam
precisar uma leitura do tempo e do além, que provocasse uma
conjuminância entre as duas esferas sempre opostas.121
Estes foram elementos que perfazem as raízes e as sementes dos
movimentos fundamentalistas da antiguidade: a) um hiato entre
realidade transcendente e cotidiana; b) grupos moduladores da
dissonância vivida pelas sociedades concretas; e c) e adoção de uma
atitude contundente, mais adequada aos sectarismos
protofunfamentalistas e posteriormente fundamentalistas.
Fundamentalismos pregressos (protofundamentalistas).
Com base nos elementos elencados acima é possível verificar que
existem condições que puderam propiciar o surgimento de movimentos
religiosos com viés político, que representam uma ruptura com o status
da sociedade vigente, para entender os grupos protofundamentalistas
também é necessário olhar para os grupos heterodoxos. Sem que se dê
relevos aos grupos sectários de forma geral não se entenderá de que
maneira estes grupos estão interagindo. Somente dentro de uma estrutura
relacional é que se poderia entender o que seriam os grupos
protoortodoxos.122
Alguns destes grupos podem ser facilmente verificados na história,
outros precisam ser observados mais amiúde em sua trajetória
(Campbell, 2004; Eliade; Couliano, 1994):
Religiões da Era Axial
Pré- XXVI a Índia China Persia Israel Grécia
Axial VIII AEC Hinduísmo Formas Culto dos Javismo Paganismo
Xamânicas ajudas e devas
Henoteísmo Politeísmos Politeísmo Monolatria Racionalismo
étnica
Era VIII a II Budismo Confucionismo Zoroastrismo Judaísmo Racionalismo
Axial AEC Taoismo
Quietismo Racionalismo Monoteísmo Monoteísmo Monoteísmo
Sincrético Quietismo Sincrético Bíblico Racionalista
Com base nas informações levantadas acima é possível entender a
relação que Shmuel Eisenstadt e Karen Armstrong fazem entre a
importância da Era Axial com os movimentos religiosos que
apresentaram uma alteração nos seus fundamentos. Até mesmo grupos
que são apontados como adotando uma prática monolátrica sofreram
alterações em sua forma religiosa. Religiões que antes tinham um perfil
politeísta dão uma guinada em suas convicções. Trata-se uma virada
radical, uma mudança de paradigma significativa.123
Ainda deve ser dito, que segundo Joseph Campbell em sua obra
Mascaras de Deus: mitologia ocidental, existe uma constante nestas
modificações, todas as mudanças de formas politeístas para feições
monoteístas, mesmo que estes monoteísmos não sejam totalmente
coincidentes (Campbell, 2004; 202). Alguns estilos de reflexão e de vida
são o que Campbell chama de monoteísmo sincrético (Zoroastrismo e
Racionalismo ocidental), outros modos religiosos de “monoteísmos
exclusivos” (monoteísmo bíblico - Judaísmo). O primeiro grupo é
formado de religiões monoteístas sincréticas que “são mais inclusivas,
cosmopolitas e abertos”. Já o segundo grupo é formado de monoteístas
exclusivistas, que somente aceitam o deus cultuado pela própria
comunidade, nomeados de étnicos (Campbell, 2004).
Havia movimentos anteriores que tinham pretensões monoteístas
como antigo culto de Marduk no Império neobabilônico que buscava
uma proeminência através de estratégia diplomática e “generosidade”
com vista a se tornar o “único Deus verdadeiro” (Whight, 2012: 114).
Os deuses dos povos conquistados eram aglutinados em seu panteão.
Exatamente como no caso do javismo étnico dos antigos hebreus,
quando se menciona em diversas passagens uma “assembleia de
‘elohim”124. Até certo ponto na história da religião de Israel os deuses
são postos em comparação a Jeová,125 indicando que se tratava de deuses
de outros povos. Somente em data posterior é que as referências a outros
deuses os mencionam como “falsos” ou “nada”. 126
Osvaldo Luiz Ribeiro em seu ensaio: “Seis teses sobre o
fundamentalismo: provocações iniciais” adverte aos seus leitores que o
fundamentalismo é muito mais antigo que a modernidade, remontando
“primórdios da religião”. “Trata-se de uma reação da cultura pré-
moderna à cultura moderna” (Ribeiro, 2017: 146). Em sua 3ª tese afirma
que este tem o elemento político que é “importado direto do
monoteísmo” (Ribeiro, 2017: 149). Assim os impulsos do
fundamentalismo devem seu dinamismo a “uma atitude religiosa
milenar” que remontaria ao monoteísmo judaico (Ribeiro, 2017: 149-
150).
O judaísmo teria surgido dentro da conjuntura da Era Axial. O
interessante é que o historiador britânico Paul Johnson em sua História
dos judeus dá uma data aproximada para o surgimento do movimento
religioso. Segundo sua estimativa o profeta Jeremias seria o primeiro
judeu (626-596 a.C) pois dele a religião que se desencadeou era “ da
nova ortodoxia: o judaísmo” (Johnson, 1995: 89,97).
É neste contexto que entre os judaítas começou a surgir um
movimento contra-hegemônico, um movimento de resistência inspirado
no carisma dos antigos profetas, desempenhado também por intermédio
dos profetas-cantores (Zabatieiro, 1988: p.40.). Estes eram menestréis
que receberam e encarnaram a consciência dos cativos (Sant’ana, 2007:
74). Por isto mesmo, poder-se-á falar de movimento de resistência
acontecido entre os escravos (Sant’ana, 2007: 86). E é neste cenário que
o monoteísmo imerge das vicissitudes dos cativos na Babilônia.
Como escravos sagrados, os judaítas precisaram revisar o sentido a
que foram constituídos em meio à escravidão promovida pela Babilônia
que precisava ser desconstruído pela comunidade dos cativos. É desta
maneira que a memória dos atos de Jeová na história foi revivida e
remodelada; 127 o judaísmo tornou-se a repaginação do antigo javismo. O
judaísmo se reorganizou em face às crises políticas que a nação de Judá
vinha passando entre os anos 597-539 a.C.
A partir do ano 621/20 a.C., houveram importantes acontecimentos
que serviram para pavimentar o surgimento do judaismo durante a
diáspora judaíta. Um dos fatos mais marcantes foi o décimo oitavo ano
do reinado de Josias, exercido entre anos 638-608 a.C. O jovem rei
Josias governou no lugar de seu pai, Amom (Beek,1967:101;
Metzger,1989:111; Crüsemann, 2001: 297-298 ).
Este material parece ter alargado os propósitos do rei de modo que
suas ações cirúrgicas ganharam um lastro de programa de governo de
grandes proporções para todo o reino (Sicre, 1999:135-154). A reforma
conduzida incialmente por Josias não havia empolgado o profeta
Jeremias.
O profeta é o primeiro a vaticinar que as elites de Israel poriam tudo a
perder com a sua arrogância fugindo de Babilônia para o Egito
(Galleazzo, 2006: 79). Por isto, este era tido como “executor do juízo de
Deus, à espera do misterioso inimigo que vem do norte”. 128 Jeremias
desenvolveu o discurso de que é necessário “uma relação inteiramente
pessoal com Deus, (...) uma entrega profunda do homem todo a Deus...”,
(Sellin; Fohrer, 2007: 551. 567).
Um grupo revisionista da história de Israel adotou a opinião de
Jeremias e reformou as narrativas de Israel. Esta escola foi chamada por
pesquisadores de “movimento deuteronomista”, pela influência que a
“Lei Deuteronômica” teve no período josiano de Judá (Lohfink apud
Zenger, 2003: 169).
Estes são elementos fundantes de um monoteísmo ético judaico. A
norma deuteronômica conjugada à profecia de Jeremias, articulada a
uma teologia gestada no cativeiro – a do Segundo Isaías (SANT’ANNA,
2007), são os fundamentos do protofundamentalismo judaico. É o
“monoteísmo absoluto, excludente ou clássico mais contundente no
período do pós-exílio” (Reimer, 2009: 49). Foi no mesmo período em
que a composição definitiva da Torá se deu. E com isto a “Lei
Deuteronômica” tornou-se o seu centro de gravidade visto em
Deuteronômio 13,13-16. 129
É importante considerar que de posse da “Lei Deuteronômica” os
monoteístas adquiriram seu sistema de crença que lhes permitiria fazer a
sua leitura de mundo. Aqui é encontrado o elemento que levou a
Antônio Magalhães afirmar que o monoteísmo trata-se de um “tipo de
religião que traz consigo uma grande herança de antirreligião”
(Magalhães, 2008: 112). Todo um “grande acervo ético é direcionado à
exclusividade de seu Deus único” (Magalhães, 2008: 113). Todavia,
ainda faltaria um elemento catalizador que lhes permitiria a publicização
das leis de Israel.
Por volta do ano 450 a.C., segundo o Livro de Esdras,130 o rei
Artaxerxes determinou a Esdras que de posse da “sabedoria do seu
Deus” nomeasse magistrados e juízes para atuar sobre o povo de Judá.
Com isto a lei de Israel teve o amparo da lei infinita persa (MILLES,
1997: 422). É neste período que a “Lei Deuteronômica” passou a ser
sinônimo de a lei de Esdras - a Torá. Esdras se tornou o portador da lei
dada por Deus (Crüsemann, 2001: 12, 156).
Esdras foi apresentado como o grande Escriba, escrivão e intérprete
da lei131, assumindo o papel de sua interpretação (Crüsemann, 2001:
156). O judaísmo passou a ser a religião da lei de Deus. Por isto as
Escrituras judaicas são textos que na realidade funcionam como
“arquétipos” de todos os fundamentalismos que surgiram entre os
séculos XIX a XXI de matriz judaico-cristã. O rigor religioso destes
grupos permanece na base destes movimentos que até hoje se
estabelecem.
Fundamentalismos clássicos.
A pesquisadora Karen Armstrong surpreendeu os seus leitores quando
mencionou o que chamou de Segunda Era Axial (Armstrong, 2001:
197). Na verdade, esta ideia de uma nova Era Axial é questionada pelo
sociólogo Robert Bellah fazendo referência ao que alguns afirmaram
que: “estamos no meio de uma segunda era axial”, onde continuou
dizendo: “Talvez esteja cego, mas não a vejo”. As suas razões se dão em
razão do fato que o próprio Karl Jasper não estava convicto desta ideia.
E o que para Bellah era mais uma “crise de incoerência e uma
necessidade de integrar (...) as dimensões surgidas desde a Era Axial”
(Bellah, 2011: xix).
Wofgang Schluchter, todavia, acredita que apesar de não haver um
movimento cultural múltiplo na modernidade fundado em experiências
paralelas em diversas culturas como se deu entre os anos 800 a 200 a.C.,
há no entanto um “princípio axial moderno”, “contra-hegemônico”,
antieurocêntrico, ou o que Jasper chamava de “autotranscendência”
(Schcuchter, 2017: 41). A própria modernidade estava se deslocando
para esta direção, não sendo assim, uma ruptura com o passado. Talvez
isto explique porque Zygmunt Bauman diga que “o fundamentalismo
religioso é um filho legítimo da pós-modernidade” (Bauman, 1998: 228
– negrito E.S.).
Penso porém, que os fundamentalismos estariam mais próximos do
que o britânico Antony Giddens diz ser uma “modernidade reflexiva”,
uma “destruição criativa de toda uma era”, então a “vitória da
modernização ocidental” (Beck, 2012: 12). Se para Karen Armstrong a
religião que poderia se depreender daí seria “um empreendimento
criativo de uma busca de fé moderna (e pós-moderna)” (Armstrong,
2001: 197), para Urich Beck pode ser mais uma “fé autodestruidora,
reflexiva fruto da radicalização da modernidade” (BECK, 2012: 44).
Diante do declínio do Ocidente e demais fatores, “os movimentos
religiosos produziram versões mais radicalizadas” (Gideens, 1991: 47-
55; 2012: 281-282). É sempre bom lembrar que o termo “radicalização”
também pode de vir a significar “ir em busca da raiz”.
Nas primeiras décadas do século XX, as denominações de matriz
protestante norte-americana, firmaram-se naquilo que consideravam que
fosse o “mais fundamental na fé cristã, isto é, naquele mínimo de
convicções”. Embora insatisfeitos com a designação fundamentalistas,
pois preferiam serem chamados apenas de cristãos (Hordern, 1974: 64),
havia entre esses o desejo de estabelecer uma autoridade suprema que
viesse a dar conta das incertezas vividas pela média da população
(Bauman, 1998: 228).
O termo fundamentalismo foi utilizado pela primeira vez pelo Dr. C.
C. Laws editor do periódico “Watchman-Examiner” (Hordern, 1974:
64). É importante vir a entender que a alcunha de fundamentalista,
inicialmente não era tida como pejorativa (Nicodemos, 2011).
Posteriormente, preferiu-se ser chamado de “Cristianismo conservador”
(Hordern, 1974: 65).
Não é possível deixar de mencionar também o material que se tornou
a base doutrinal do fundamentalismo que é a obra “The Fundamentals: a
testimony to the thuth”, [Os fundamentos: um testemunho para a
verdade], [2005]. Trata-se de uma obra em doze volumes, com 90
ensaios, escritos por 64 autores entre os anos 1910 e 1915 pelo Instituto
Bíblico de Los Angeles (Rodrigues, 2011: 19). Já no prefácio de The
Fundamentals é dito que a intenção da obra é produzir: “a new statement
of the Fundamentals fo christianity [uma nova declaração dos
fundamentos do Cristianismo] (The Fundamentals, 1910: 11 – trad.
E.S.). Na compreensão de Paulo Augusto Nogueira tratou-se de um
esforço de uma grande reforma do protestantismo (Nogueira, 2002: 35).
O protestantismo na posição assumida pelo fundamentalismo já tinha se
esgotado como esforço de retornar às bases do cristianismo.
Segundo Willian Holdern, os fundamentalistas adotaram um programa
de ação que tinha por objetivo retirar todos os agentes religiosos tidos
como liberais teológicos de instituições eclesiásticas, seminários
teológicos e estudantes postulantes à ordenação ministerial (Hordern,
1974: 65). A data marcante para a controvérsia fundamentalistas x
liberais se deu no ano de 1929, quando o fundamentalismo foi rejeitado
em diversos contextos das instituições religiosas como um todo
(HORDERN, 1974: 65). Então John Gresham Machen, fundou com seu
discípulo, Carl McIntire, em 1929 Westminster Theological Seminary –
WTS, (Seminário Teológico Westminster - STW), na Filadélfia
(Guimarães, 2014: 33).
O antagonismo que o fundamentalismo imprimiu contra o chamado
modernismo teológico foi bastante abalizado na Teologia Sistemática de
Charles Hodge, catedrático do departamento de teologia da Princeton
University, lançada em 1873 e 1874 (Armstrong, 2001: 168). Hodge
afirmou que a “religião tem que lutar por sua existência contra uma
vasta classe de cientistas” (Armstrong, 2001: 68). Citando Hodge, David
Jack Eller afirma que “cada palavra das escrituras era literalmente
verdadeira, e não alegórica ou simbólica” (Eller, 2018: 445).
Segundo o que se sabe, Hodge foi o primeiro comentador cristão do
pensamento darwinista, afirmando que “o sistema é totalmente ateísta, e,
portanto não pode manter-se”. Além disto, Hodge reafirmou o que o
texto de Gênesis 1,1 trata peremptoriamente a respeito da criação132
(Hodge, 2001: 609).
As ideias inflamadas de Charles Hodge foram tomadas como norte
para o pensamento conservador cristão, de modo que a sua obra passou a
servir de base para a formação teológica dos anos vindouros, uma vez
que dizia: “A tarefa do teólogo consiste não em buscar significados além
das palavras” (Armstrong, 2001: 168 - negrito E.S), mas deveria
“organizar o seu pensamento a luz da Palavra de Deus” (Armstrong,
2001: 168). Desta forma, Hodge pregou o primado da Bíblia sobre as
compreensões humanas.
Para os fundamentalistas o liberalismo conduziu a igreja há um passo
“do fracasso e à apostasia” (Nogueira, 2002: 35). Por isto, era necessário
reverter a dependências dos instrumentais do pensamento moderno da
leitura bíblica protestante. Para estes protestantes esta leitura deveria ser
a “pedra fundamente” de todo o cristianismo (Nogueira, 2002: 32).
Em 1964, Carl Mcintire se opôs abertamente ao descendente de
irlandês, católico e liberal John F. Kennedy, apoiando o
ultraconservador Barry Goldewater, seguidor do senador John McCarthy
(Gallindo apud Guimarães, 2014). Entre os membros da Nova Direita
estava Jerry Falwell o mais famoso pregador televisivo da época, que em
1979 criou a organização Nova Direita Cristã (NDC), chamada também
de Moral Majority (Maioria Moral) (Guimarães, 2014: 34-35).
Desde então este apoio dos Estados Unidos a Israel ficou claro na sua
política internacional. A nação americana adotou uma visão de oposição
às nações do Oriente Médio. A matéria de capa da revista Newsweek de
10 de março de 2003, no contexto da guerra contra o Iraque, foi “Bush
and God”, que trás a imagem do presidente “George W. Bush, orando,
cabeça baixa, olhos fechados” (Castro, 2003: 9). Alexandre Carvalho de
Castro diz que aquela era a síntese do fundamentalismo do Século XXI.
Naquela imagem, religião e política estavam indistintamente
apresentados (Castro, 2003).
Desta forma os fundamentalismos que se estabeleceram nos USA
desde o século XIX têm sua base na leitura bíblica que visa resgatar uma
cultura tradicionada e gestada no desejo de se apresentar ao mundo
como únicos portadores da verdade que estabiliza a vida em meio as
inseguranças do tempo moderno. Todavia é importante perceber que
houve em determinado momento uma guinada no movimento
fundamentalista estadunidense com consequências para o Brasil.
Neofundamentalismos reformistas:
Como já foi dito, a Bíblia é tanto alimento como mola de propulsão
destes grupos, e ainda mais o Primeiro Testamento. Agora é forçoso ter
em mente que os fundamentalismos na ambiência contemporânea,
apresentam aspetos diferenciados que não devem ser confundidos sobre
pena de não entender a sua utilização da Bíblia no espaço público. É
possível criar um quadro de referência que ajude a fazer uma
interpretação da atuação dos neofundamentalistas contexto atual,
observável abaixo (Souza, 2017; Eller, 2018):
Neofundamentistas
VIII AEC - XIX Monoteísmo Bíblico
Décadas de 1910 – Fundamentalismos Clássicos
1950
Década de 1960 - 2010 Neofundamentalistas Neofundamentalistas
Reformistas Reconstrucionistas
Aberto Fechadl
Interdenominacionais Separatista
Maioria Moral Nova Direita Cristã
Guerra Cultural Educação
Homes-Chooling
Pós-Milenaristas Pré-Milenaristas
Olhando o quadro acima são observados dois grupos fundamentalistas
que vêm se diferenciando através de sua trajetória. São eles os
reformistas e os reconstrucionistas, que podem ser vistos como tendo
base nos grupos protofundamentalistas com os contornos de uma
religião axial. 133
Também os fundamentalismos clássicos a partir dos anos 10 e 20 do
século XX, tais movimentos protestantes estadunidenses como as igrejas
batistas do Sul, as igrejas batistas regulares, segmentos da Igreja
Presbiteriana da América, as igrejas metodistas entre outros, que aqui
foram chamados ou de fundamentalismos clássicos, ou estadunidenses
(Nogueira, 2002; Rodrigues, 2017: p.19; Baptista, 2017: 177-193;
Souza, 2017: 52).
Para o entendimento do que ocorreu com surgimento do
neofundamentalismo reformista é necessário aventar o que pode ser
considerado como a segunda geração de professores e alunos do
Westminster Theological Seminary –WTS, (Seminário Teológico de
Westminster – STW). Uma nova geração de teólogos mudou o perfil dos
grupos fundamentalistas dos Estados Unidos da América e as suas ações
na esfera pública. Este foram os teóricos do neofundamentalismo,
Francis Schaeffer e Gary North (Souza, 2017: 14). Roger Olson dividiu
o fundamentalismo norte-americano em duas fases: 1) a primeira
moderada; e a 2) a segunda de “caráter extremista e politicamente
articulado” (Olson apud Malheiros, 2015: 258). Isaac Malheiro afirma
que os neofundamentalistas superaram o primado da separação entre
Igreja e Estado tão determinante dos “fundamentalismos originais”
(Malheiros, 2015: 261).
Estes não devem ser considerados como um movimento
exclusivamente teológico (Malheiros, 2015: 261). Estes grupos se viam
ameaçados com o avanço de diversas tendências de moral-liberal que se
estabeleciam em seu contexto e assustados com o “declínio das
denominações protestantes mainstream” provocando ações de
reconquistas por parte de igrejas fundamentalistas (mormente batistas do
Sul), agora unidas em uma confluência com pentecostais e carismáticos
(Mateo, 2011: 3).
Segundo Andréa S. Souza um legado do Seminário Teológico
Westerminster em sua teologia política foi desenvolvido a partir do
teólogo reformado, holandês Conélius van Til, que pode ser assentado
como sendo as correntes reformistas e reconstrucionistas (Souza, 2017:
4). Estas duas vertentes dos neofundamentalismos produziram uma
releitura no ensinamento de van Til, uma atenuando as aplicações do
pensamento vantiliano e a outra levando às últimas consequências de seu
pensamento. Este antagonismo fundamentou a produção de uma agenda
pública moral e política antes relegada a um segundo plano difuso pelos
fundamentalistas clássicos.
Entre os anos de 1960 e 1970 os neofundamentalistas assumiram uma
estratégia de atuação no campo das “práticas culturais” com um
movimento teológico e sociopolítico. Mas é necessário entender como
movimentos a princípio separatistas, avesso a atividades “mundanas”
foram se tornando ativistas atuantes no “plano público”?
Francis August Schaeffer sendo pertencente a uma ala teológica e
sociopolítica mais moderada da escola de Westminster, reinterpretou a
dicotomia dura de Cornelius van Til, constituindo-se assim o
representante principal de uma nova escola. Em Conerlius van Til, a
separação entre o mundo cristão e não cristão encontrava-se bem
marcada. Neste mesmo arcabouço onde a fronteira era tida como bem
pronunciada, Schaeffer a via como borrada. Assim, os campos sociais,
políticos poderiam ser avançados dentro uma estratégia de “guerra
cultural” (Souza, 2017:80). Desta forma, a teologia de van Til sofreu um
alargamento importante.
Schaeffer foi um aluno de van Til em apologética cristã influenciada
pela visão neocalvinista holandesa de Abraham Kuyper que admitia ser
um sistema em que todas as áreas da vida estavam dentro do domínio de
Deus. Por isto instituiu seu próprio pensamento articulado três aspectos:
“1) inerrância da Escritura; 2) a apologética pressuposicional; e 3) as
crenças calvinistas aplicadas a todas as áreas da vida e do pensamento
(Edwards apud Souza, 2017:80).
Francis Schaeffer, neste ponto assumiu uma atitude antisseparatista,
opondo-se a van Til, buscando promover “diálogos com grupos de atores
antagônicos que poderiam absorver uma agenda moral no espaço
público”. A ele não importava considerações sobre interesses difusos
que poderiam sofrer algum tipo de repto, para o que considerava ser um
bem maior. Esta aproximação a grupos de “fora” o colocou em rota de
colisão com grupos mais conservadores.
Por isto mesmo, Schaeffer se interessou em apresentar uma visão que
abarcasse temas como filosofia, artes, música, cultural geral (Albiero,
2011: 12). Seu interesse não se dava em apenas em versar sobre estes
temas, como também encontrar interlocutores que estivessem dispostos a
dialogar. E com isto concebeu a percepção do “declínio do pensamento
moderno através do abando das verdades universais” (Albiero, 2011).
Francis Schaeffer criou um ambiente que pudesse exercer influência
sobre diversos atores sociais, profissionais, estudantes interessados, e
entusiastas por seu pensamento. Tal iniciativa se concretizou na
instituição criada por ele e sua esposa Edith Schaeffer: o projeto L’Abri
Fellowship (Abrigo) em 1955. Entre os jovens que participaram de seus
encontros esteve o jovem Billy Graham (Mendes, apud Albiero, 2011:
25, n.13).
Um dos conceitos mais importantes do pensamento de Schaeffer era o
de “cobeligerância ou o novo ecumenismo” que materializou-se no
espaço público americano”, e que também pode ser chamado de
“interdenominacionalismo”. O que “pressupõe uma luta conjunta por
valores, não representando a adesão de estimas alheias” (Souza, 2017:
100). O conceito está na raiz do lobby religioso que mais tarde será
conhecido como Moral Majority liderado por Jerry Falwell,
teleevangelista batista do Sul dos Estados Unidos, a mesma maioria
moral que foi adotada pela New Religious Right - NRD (Nova Direita
Religiosa, ou Nova Direita Cristã – NDC) nos anos de 1980 (Souza,
2017: 102; Silva, 2016: 48-137).
Andréa Souza, citando Walter Capps (1990), afirma que foi Schaeffer
quem persuadiu Jerry Falwell a deixar fundamentalismo separatista, para
ingressar na ala reformista do fundamentalismo. Falwell afirmou que
Francis Schaeffer foi o articulador intelectual de sua liderança no
movimento (Capps apud Souza, 2017: 105).
É fácil perceber a dívida de diversos segmentos da cultura cristã têm
com Schaeffer. Segundo Karem Armstrong vários teleevangelistas
foram impactados por sua orientação (Armstrong, 2001: 168). Vários
evangelistas eletrônicos iniciaram suas carreiras na década de 50 sob a
influência dos reformistas: Billy Graham, Rex Humbard e Oral Roberts
(Armstrong, 2001). Jerry Falwell disse mais tarde que Schaeffer o teria
feito ver que não havia “um mandamento bíblico que proibisse que
evangélicos de unissem a causas sociais” (Falwell, 1997: 386).
Desta maneira Francis Schaeffer vinha convocando atores de diversos
setores para a “cobeligerância”, a que se “engajassem e lutassem contra
a cultura hegemônica, juntos”, de modo que as pautas conservadoras
foram ganhando adeptos entre protestantes, católicos e outros religiosos
(Silva, 2016: 153). E talvez um das suas obras mais importantes tenha
sido “A Christian Manifesto” [Manifesto Cristão] de 1982. Este texto
teria influenciado milhares de estadunidenses nas questões como aborto,
com a tese de que os “cristãos não teriam que se envergonhar em se
oporem abertamente a uma ‘cultura depravada’” (Banwart apud Silva,
2016: 153).
Assim nasceu um programa de frentes e bancadas temáticas em que
evangélicos, pentecostais e católicos se unificam para barrar
posicionamentos presentes na sociedade. Na prática, Schaeffer foi dando
feitios à fé conservadora nos termos de uma nova reforma e um
reavivamento, onde a religião passaria a exercer um novo papel na
esfera privada e pública. Uma guerra cultural estava se iniciando, uma
guerra contra o que consideravam “heresias civis” o que era entendido
como agressivo e que às comunidades religiosas tinham como
insustentáveis como “os direitos dos gays, os casais homossexuais e,
sobretudo, a legislação do aborto” (Malheiros, 2015: 6).
Com o passar do tempo, algumas outras transformações foram
acontecendo dentro do movimento. Os neofundamentalistas reformistas
deixaram de lado o pré-milenarismo e adotaram o pós-milenarismo.
Karina Kosicki Bellotti explica que Billy Graham participou desta
mudança uma vez que mencionou que o antigo pessimismo do pré-
milenarismo foi abandonado em favor de um “otimismo semelhante ao
do pós-milenistas moralistas do século XIX”. O pré-milenarismo é uma
doutrina “arraigada no imaginário dos Estados Unidos deste os tempos
de Darby” (Armstrong, 2001: 164). O pré-milenarismo não permaneceu
tão relevante com seu “envolvimento político” (Ammerman apud
Bellotti, 2019: 69-70).
Esta mudança é de fundamental importância porque instrumentaliza a
ruptura com o quietismo tão fragrante entre parcelas dos protestantes
mais históricos. Isto permitiu que uma Direita Cristã se formasse e se
aproximasse de uma mobilização entorno do Partido Republicano e
pusesse em movimento uma série de organizações de caráter
paraeclesiástico engajadas na batalha cultural e nos EUA e
posteriormente aqui no Brasil (Bellotti, 2019: 70).
Vários teleevangelistas reformistas tiveram seus programas de rádio e
televisão distribuídos por toda a América Latina. Pat Robertson, Jimmy
Swaggart e os Bakker durante um longo período estiveram em diversos
cantos de todo o planeta (Bellotti, 2019), que segundo Karen Armstrong
estes se gabavam de ter seus programas televisionados em 145 países
(Armstrong, 2001: 398). E assim, estes televangelistas funcionaram
como ponta de lança na luta cultural entre diversas nações.
Desta maneira, pode ser visto que os neofundamentalistas reformistas
assumiram uma agenda de “articulação religiosa e política como uma
forma de fazer valer os valores cristãos” (Pace; Stefani, apud
Panasiewicz, 2008: 7).
Um outro elemento que precisa ser destacado é a chegada dos
pentecostais ao movimento neofundamentalista. Segundo o pesquisador
Saulo Baptista, os fundamentalistas históricos sempre tiveram aversão
aos pentecostais. Em seu livro registra que para um interlocutor de uma
igreja fundamentalista histórica: “nós combatemos o pentecostalismo,
em todas as suas manifestações” (Baptista, 2017: 178).
O que não se pode ser deixado de lado é o fato de que pentecostais já
estavam alinhados aos neofundamentalistas dentro de processo
comunicativo aos feitios da “cobeligerância de Schaeffer”. Jimmy
Swueggart que é reconhecidamente pentecostal, já participava da cena
neofundamentalista. Segundo Karen Armstrong, os pentecostais também
se opunham “diametralmente ao fundamentalismo...” (Armstrong, 2001:
395). No entanto, Armstrong afirmou que Swueggert pregava, o que
chamou de “religião do ódio” com ataques à homossexualidade,
demostrando um rigor aos temas sexuais em geral. Ele e outros
teleevangelistas já estavam em uma “cruzada ética” da Maioria Moral
(Armstrong, 2001).
Sobre o contexto brasileiro, Saulo Batista fala que os neopentecostais
estavam em polêmica com as denominações protestantes de missão nos
anos 1970. No entanto, a partir dos anos 80 os neopentecostais foram
rompendo as barreiras impostas pelas outras denominações, a ponto de
ganharem a disputa “pela identidade evangélica” (Baptista, 2013: 84).
Assim os neofundamentalistas aglutinaram os neopentecostais em sua
“guerra cultural em todos os níveis”.
Estes mesmo neopentecostais, com DNA neofundamentalista,
adotaram uma atitude contundente em sucessivas eleições a partir de
1988. Participaram de forma mais articulada de pleitos, de frentes e
ações na sociedade brasileira (Baptista, 2017). Desta forma, começaram
a adotar agora em instâncias de Estado, a sua agenda cobeligerante,
atuando de forma organizada contra aquilo julgavam ser as mazelas da
sociedade. A cobeligerância agora dos neofundamentalistas brasileiras,
torna-se que estratégia de uma agenda organizada, demandando por
parte desta mesma sociedade, na forma de outros setores aquilo que
Michel Foucault chamou de “lutas transversais”, que Carolina dos Reis e
Roberta B. Barbosa traduziram como lutas de “pautas antiautoritárias e
democratizantes” (Foucault, 1999: 87-88; Reis; Barbosa, 2019: 89).
Então isto explicaria porque no parlamento brasileiro, um deputado
oriundo de fileiras neofundamentalista, pastor neopentecostal, usou seu
twitter para divulgar a opinião a respeito de parcelas da população que
seria visto como “africanos descendem de ancestral amaldiçoado por
Noé. Isso é fato...”. O mesmo deputado em data anterior teria afirmado,
que se daria porque o referido personagem bíblico teria cometido o
“primeiro ato de homossexualismo da história”. O jornalista Guilherme
Balza noticiou estas declarações do referido parlamentar na Revista
Época no dia 31/03/2011 13h37 (Balza, 2011). Assim o referido
deputado tem uma agenda neofunamentalista, e seu seus
pronunciamentos visam trazer o verniz bíblico conservador para seus
projetos, discursos e para a sociedade brasileira.
Considerações finais.
A pesquisa a qual me mantive envolvido interroga pelas razões e
maneiras pelas quais os fundamentalismos hodiernos se serviam do
Primeiro Testamento. Tal questão se mostra hoje relevante porque
rastreia os mecanismos que os neofundamentalismos têm buscado
intervir na sociedade atual. Mas o que não havia percebido é que ao
contrário de ser uma tendência postural do indivíduo, o que se delineou
na pesquisa é uma ação programática altamente organizada que
impactou de forma determinante a cultura ocidental.
O que talvez tenha sido indicado aqui, todavia, é que a história dos
fundamentalismos não seja apenas somente um caso evolutivo, mas
também de rupturas e revoluções. Assim é que de esta trajetória tenha
sido feita de incrementos como é o caso da passagem do monoteísmo
bíblico para os fundamentalismos clássicos estadunidenses, visto de
forma simplista e “desde fora”. Entretanto não parece ser o caso destes
últimos para as formas hodiernas presentes na sociedade norte-
americana e sua consequente versão brasileira.
O fato que é um neofundamentalismo peculiar se mostrou muito mais
presente na esfera pública com importantes ações com vistas a
transformações do panorama sociopolítico, adotando para si uma agenda
de pautas morais e contraculturais que se inseriu de forma entranhável e
entrelaçada na política norte-americana com uma interface bélica na
atmosfera brasileira.
Os neofundamentalismos reformistas tentam agregar vários segmentos
de personalidades políticas, scholars acadêmicos, agentes religiosos e
influencers de mídia de comunicação e sociais, atores de diversos naipes
convocados a partir de um “Christian Manifesto” para uma “Guerra
Cultural” muito bem jogada por estratos conservadores das sociedades
atuais. É assim que Francis Schaeffer fulgurou como astro maior,
estrategicamente radicado em um “Abrigo” (l’Abri) na longínqua Suíça,
que revolucionou os fundamentalismos clássicos entendendo de forma
brilhante, o que as esquerdas ocidentais já fizeram com competência:
que uma revolução se faz melhor através de formação de “massa
crítica”.
A partir disto é que se pode notar que não somente na grandeza dos
números de evangélicos, católicos e religiosos de matiz conservadora
apoiados que as estatísticas dos institutos de pesquisa de opinião
revelam que há uma presença incisiva de agentes formadores em quase
“todos os frontes” do tecido social. Estes influenciadores, cada um em
seu segmento, têm participado de uma mesma guerra cultural nas mais
variadas pontas da sociedade.
E interessante perceber que Carly Machado em sua captura do cenário
de protagonistas da segurança pública do Estado do Rio de Janeiro que
ocupam sistematicamente as telas das TVs de todo o país. Nela é
apresentado dentre os dispositivos do aparato governamental, um
Batalhão de Operações Especiais – BOPE onde é apresentado como
“Tropa de Louvor, ministério evangélicos do BOPE da Polícia Militar
do Rio de Janeiro”. Este é apenas uma das diversas aplicações do
neofundamentalismo que trava uma guerra cultural.
Este é um braço cultural de uma luta muito mais encarniçada em que
Bíblia e fuzis são mostrados como paridade de armas na guerra contra o
mal. Assim a Comunidade Evangélica do BOPE é uma implementação
talvez não pensada por Schaeffer, mas que com toda certeza se enquadra
no contexto de “cobeligerância” de matriz reformista.
Com uma dose de acerto, assim, o Primeiro Testamento, da mesma
forma que a Bíblia, nesta ambiência sofreu rebaixamento programático
para ser utilizado apenas como “palavras de morte e não de vida”, é
visto decisivamente como uma forja contracultural, em que aqueles que
não se encaixam precisam ser, ao deixarem-se ser, endireitados na vida.

118 Entre as duas partes das Bíblias cristãs o Antigo Testamento sofre depreciação. Assim, recai sobre
a Bíblia hebraica uma compreensão inaceitável para os judeus. De olho nesta dificuldade alguns
cientistas bíblicos começaram a propor uma nomenclatura menos problemática a judeus e cristãos.
Estes têm preferido chamar o Antigo Testamento de Primeiro Testamento. Esta terminologia poderia
desonerar a Bíblia hebraica do sentido de revelação ultrapassada. Além disso, ensejaria a ideia de
complementaridade entre a Bíblia cristã e hebraica. Alguns outros mais próximos à tradição Judaica
preferem chamar a Bíblia hebraica de Testamento Original e o Novo Testamento de Testamento Tardio.
De maneira menos partidária, pode também chamar a Bíblia hebraica de Tanak. Este é um termo
técnico aceito entre judeus e cristãos dentro da academia. Para o aprofundamento desta questão é bom
ler: Bloon, Harold; Rosenberg, David. O Livro de J. Rio de Janeiro: Imago, 1992, Zenger, Erich et. al.
Introdução ao Antigo Testamento. Bíblica – 38. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p.19-21 e Santt’ana,
Elcio. Literatura e religião bíblica. Um acesso a partir das ciências da religião. São Paulo: Editora
Reflexão, 2010, p.62-66.
119 É muito importante que se possa levar em conta que na discussão sobre a essência da religião,
alguns poderiam ver apenas as “assertivas religiosas na arena política vistas como um disfarce para o
poder político” (Asad, 1988: 164). Talal Asad lembra que apesar das práticas e das crenças assumirem
naturezas distintivas essência da política e da religião em muitas sociedades as duas possam se sobrepor
e se entrelaçar.
120 Segundo o que se sabe por volta de 700 a 200 a. C, surgiram movimentos que foram “cruciais para
desenvolvimento espiritual da humanidade”, porque é exatamente neste período que em vez de se ter
uma devoção a deidades incorporadas, passou-se a venerar únicas transcendências universais Estas
religiões eram respostas a diferentes problemas da humanidade. Estes novos sistemas religiosos e/ou
filosóficos refletiam às novas condições econômicas e sociais: a) budismo e hinduísmo na Índia; b) o
confucionismo e o taoísmo no Extremo Oriente; c) monoteísmo no Oriente Médio; e d) racionalismo na
Europa (ARMSTRONG, 1994: 39; 2001: 12).
121 As fórmulas conhecidas até então, não se enquadravam mais nas novas circunstâncias que estavam
postas. As soluções precisavam ser mais apropriadas à humanidade. E é isto que Karen Armstrong
nomeia “paradoxalmente de fundamentalismo”, que poderia ser considerada como primeira versão do
fundamentalismo (Armstrong, 2001: p.13).
122 O que pode se caracterizar como o que é chamado de ortodoxia, é o fato de haver estruturas
organizacionais, com corpus de doutrinas definidas (Eisenstadt, 1997, p. 1-4). Desta maneira haveria
grandes centros de tradição com compacidade política de monopolização frente a pequenos polos
retentivos de ideologias periféricas (Gonçalves, 2007: p.6).
123 É o que Hans Küng assumiu no campo teológico as ideias de Thomas Kuhn em seu livro: “A
estrutura das revoluções científicas”, por paradigmas como sendo “toda uma constelação de
convicções, valores, técnicas etc., compartilhados pelos membros de determinada comunidade”, sendo
desta forma a tal mudança configurando-se mais uma transformação “revolucionária do que evolutiva”
(Küng, 1999: 159).
124 Êxodo 15,11.2; 18,10.11; 20, 3; Salmos 16,4; 86,8; 95,3, 136,2 138,1; 1Crônica 16,25.26 (BTB,
2018)
125 A grafia do nome do Deus de Israel é aqui utilizada nos termos que o faz a BIBLIA TRADUÇÃO
BRASILEIRA (BTB), Introduções acadêmicas. São Paulo: Fonte Editorial/ SBB, 2018. Em 2018 a Fonte
Editorial e a Sociedade Bíblica Brasil se associarão para a publicação da BTB, com a participação de
diversos pesquisadores integrantes da Associação Brasileira de Pesquisadores Bíblicos que se esmeram
para a produção de notas acadêmicas constantes daquela edição. Por razões normatização estilística e
editorial a melhor grafia do nome foi preterida aqui (IHWH).
126 É possível considerar que monoteísmos de diversos naipes surgiram de forma geral nesta época,
excetuando-se a forma transitória acontecida no Egito antigo durante o antigo reinado de Akhenaton
(JACQ, 1978), a quem segundo Robert Wright chama de “Auxiliar de Aton” (Wright, 2012: 116).
Então, parece que realmente o monoteísmo é um elemento capital para entender o que se deu nos idos
da Era Axial nos termos tenho falado aqui.
127 “cortando em pedaços a Rahab, profanado o monstro marinho, e secado o mar, as águas do abismo
grande’’ (Isaías 51, 9b.10 – BTB,2018 – negrito E.S.).
128 Jeremias 4.6,15s; 6,22
129 “Uns homens depravados saíram do meio de ti e perverteram os habitantes da tua cidade, dizendo:
Vamos e sirvamos outros deuses que não conheces, indagarás, investigarás e, com diligência,
perguntarás. Se for verdade, se for certo que tal abominação se cometeu no meio de ti, certamente,
ferirás os habitantes daquela cidade ao fio da espada, destruindo-a completamente e bem assim tudo o
que nela há, até os seus animais. 16 Ajuntarás todo o despojo dela no meio da sua praça e queimarás a
cidade e todo o seu despojo como oferta inteira a Jeová teu Deus; ficará um montão para sempre; não se
tornará a edificar” (BTB, 2018 – negrito: E.S.).
130 Esdras 7, 14. 25-26
131 Esdras 7,6
132 “No princípio criou Deus o céu e a terra” (BTB, 2018 – negrito: E.S.).
133 Em razão da delimitação adotada na pesquisa o neofundamentalismo reconstrucionista não será
alvo de estudo. Estes apesar de terem uma leitura bíblica muito similar a dos reformistas, assumem uma
atitude no espaço público é diametralmente oposta a dos grupos em tela aqui. Os reconstrucionistas
merecem ser estudados em um esforço que a sua importância requer, que só pode ser realizado em
outra oportunidade.
XI. Fundamentalismo Cristão na
Perspectiva Protestante

Elizete da Silva
Introdução
Pretendemos analisar a inserção do fundamentalismo no
Protestantismo brasileiro, destacando alguns momentos da sociedade
brasileira no século XX e seus desdobramentos políticos, nas últimas
décadas. Abordaremos a proliferação do movimento no País,
especialmente, na Igreja Presbiteriana e Denominação Batista, numa
perspectiva histórica. Entendemos o fundamentalismo como um
pensamento teológico conservador que construiu discursos,
representações, práticas religiosas e políticas.
O Protestantismo que floresceu no Brasil tem vínculos estreitos com
as Missões Estadunidenses. Metodistas, Presbiterianos, Batistas,
Episcopais Anglicanos são grupos evangélicos originários do trabalho
missionário dos EUA na segunda metade do século XIX. Os irmãos da
outra América, como eram designados os evangélicos estadunidenses
nas fontes da Convenção Batista Brasileira, além de trazerem as
doutrinas protestantes, transplantaram para o País os problemas internos,
como o denominacionalismo, o anticatolicismo e o fundamentalismo,
que ora analisamos.
O elogio do progresso dos EUA e o fascínio que o seu governo
republicano exercia na elite política brasileira, já explicitados, desde o
final do século XIX, por Ruy Barbosa e Tavares Bastos, por exemplo,
tem a sua tradução protestante muito arraigada na mentalidade de setores
majoritários dos grupos Batistas e Presbiterianos. Segundo Rubem
Alves, um presbiteriano ecumênico, os EUA eram a “utopia implícita do
protestantismo brasileiro” (Alves, 1979: 239).
Abordamos o tema na perspectiva da História Cultural (Chartier,
1990) em interfaces com a História das Religiões que, por sua vez,
auxilia a entender as apropriações do fundamentalismo no
Protestantismo brasileiro, numa perspectiva de longa duração, que traz
desdobramentos na História Recente do País. O conceito de campo
religioso auxilia no entendimento das relações com as instituições
políticas (Bourdieu, 1979).
O Fundamentalismo nos EUA.
O conceito de fundamentalismo, não é uma criação islâmica como a
imprensa divulgava por ocasião da caça ao Taliban. Suas primeiras
formulações foram feitas pelo Protestantismo dos EUA, no final do
século XIX, em oposição ao que se considerava como modernismo
teológico e desvio das verdades bíblicas da fé reformada, preconizado
pelos novos teólogos europeus e estadunidenses que se utilizavam da
crítica histórica e dos novos instrumentos para interpretar a Bíblia.
Pugnavam contra “o modernismo pernicioso” e o Evangelho Social que
tinha uma proposta de releitura bíblica a partir dos problemas sociais.
Numa conferência realizada em 1895, em Niagara Falls, teólogos
conservadores estadunidenses, assumiram uma posição oficial contra as
novas perspectivas interpretativas da Bíblia. No final desse encontro
redigiram um documento que constitui as origens do fundamentalismo
protestante. Era uma tendência teológica conservadora e que sofreu
influências da ortodoxia reformada e dos avivamentos evangélicos
ocorridos nos EUA anteriormente. Um movimento organizado tentando
barrar a nova hermenêutica bíblica, reafirmando os fundamentos da fé.
Entre 1909 e 1915, publicaram uma série de brochuras consideradas
pelos autores elementos fundamentais da fé cristã e intitularam The
Fundamentals a testimony to the Truth (Pace e Stefani, 2002).
Os fundamentalistas defendem um retorno às verdades bíblicas, em
torno dos seguintes princípios doutrinários: “a absoluta inerrância do
texto bíblico; reafirmação da divindade de Cristo; Cristo nasceu de uma
virgem; redenção universal garantida pela morte e ressurreição de
Cristo; ressurreição da carne e certeza da segunda vinda de Cristo” (Pace
e Stefani, 2002:28). Os principais inimigos eram: a Igreja Católica, o
Socialismo, a Filosofia Moderna e a Teologia Liberal. “Num encontro
da Northern Baptist Convention em 1920, Curtis Lee definiu
fundamentalista como alguém que está disposto a recuperar territórios
perdidos para o Anticristo e a lutar pelos fundamentos da fé” (Armstrong
2001:150). Durante a Primeira Guerra Mundial demonizam a Alemanha,
considerada um país nefasto de onde procediam as doutrinas
modernistas.
Presbiterianos e batistas formavam a maioria dos fundamentalistas nos
EUA, os quais após intensa campanha, em 1919, organizaram um
congresso em Filadélfia com mais de 6 mil evangélicos de todas as
denominações e fundaram a World’s Christian Fundamentalist
Association (WCFA), com a intenção de propagar suas ideias e práticas.
A criação da homeschooling é desse período, quando pais evangélicos
fundamentalistas resolveram escolarizar suas crianças para evitar as
ideias científicas do darwinismo, que discordavam da leitura criacionista
da Bíblia (Armstrong, 2001).
O movimento fundamentalista dividiu igrejas e convenções
eclesiásticas. Em 1920, um grupo liderado pelo Pastor Batista William
Bell Riley se afastou da Convenção Batista do Norte, criticando o
liberalismo teológico fundando a Bible Baptist Union. A Igreja
Presbiteriana cindiu em função das querelas entre fundamentalistas e
liberais. O Reverendo Carl McIntire abandonou sua comunidade fundou
a Igreja Presbiteriana Bíblica e o Seminário Teológico da Fé, com a
finalidade de formar pastores nos princípios fundamentais da fé. O
movimento conservador foi abraçado por empresários, que passaram a
financiar publicações e atividades proselitistas nos EUA e no exterior.
No século XX, o principal divulgador dos princípios fundamentalistas
foi o Reverendo Presbiteriano Carl McIntire, líder da organização
fundamentalista Concílio Internacional de Igrejas Cristãs, criado em
1948, em oposição ao Conselho Mundial de Igrejas, de linha ecumênica
e progressista. Calcados no princípio da inerrância bíblica condenavam
qualquer exegese bíblica que buscasse uma contextualização dos ensinos
das Escrituras, eram literalistas e ahistóricos na sua interpretação da
Bíblia.
Jean-Paul Willaime sugeriu que a busca do fundamentalismo pode ser
uma demanda psicossocial: “Ao oferecer uma verdade religiosa bastante
definida o fundamentalismo pode responder às aspirações psicossociais
daqueles que, num mundo em profunda mutação, procuram referenciais
estáveis” (Willame, 2000: 28). O final do século XIX foi um tempo de
incertezas nos EUA, o que certamente favoreceu o ressurgimento de
ideias apocalípticas, o reavivamento das doutrinas bíblicas e a certeza
que só Deus salvaria a pátria e o mundo decaído pelo modernismo e o
cientificismo materialista.
Fundamentalismo e Conservadorismo no Brasil
A maioria dos missionários estadunidenses, que divulgou o
Protestantismo na segunda metade do século XIX, no Brasil e continuou
atuando no País no século XX, era originária do Sul dos EUA, região
mais conservadora daquele país, conhecida como “cinturão da Bíblia”.
Naquele momento, escravocrata, racista, biblicista e contrária às
liberdades republicanas defendidas pelos nortistas. Esse
conservadorismo foi introduzido nas diversas comunidades religiosas
brasileiras pelos pioneiros protestantes.
O Reverendo McIntire ultrapassou as fronteiras dos EUA em sua
cruzada fundamentalista, conferenciando no Chile, Peru, Argentina e
Coreia. Em 1959, no centenário da chegada do pioneiro presbiteriano A.
Simonton ao Brasil, realizou palestras no País. Em São Paulo, no Teatro
Municipal, segundo relato de biógrafos: “ a massa reuniu no sábado à
noite e o tema foi a Verdadeira Reforma. O teatro tinha cinco balcões,
com pessoas para todo o lado. Os nacionais estão aderindo de coração e
se opondo ao Comité Missionário Presbiteriano” (Anderson e Rhoads,
2011: 152).
Reverendo McIntire pregou em templos congregacionais, no Rio de
Janeiro, a convite do Pastor Sinésio Lyra da Igreja Bíblica
Congregacional, o qual fez questão de explicar ao articulista do jornal
Correio da Manhã, em uma missiva: “pertenço a um Grupo de Igrejas
Evangélicas Fundamentalistas do Brasil (não confundir com a
Confederação Evangélica do Brasil que está ligada ao Concílio Mundial
de Igrejas) ” (Correio da Manhã, 1959, ed.20358). Posteriormente, Lyra,
considerado por McIntire “um santo e um soldado a nosso comando”
(Anderson e Rhoads, 2011: 153), tornou-se presidente da Associação
Fundamentalista Evangélica da América Latina (ALADIC).
Em Recife, C. McIntire encontrou Israel Gueiros, professor do
Seminário Presbiteriano do Norte e pastor da Igreja Presbiteriana de
Pernambuco. Num debate no Seminário Presbiteriano, organizado por
Gueiros, McIntire narrou o encontro com um egresso do Seminário de
Princeton, provavelmente o Professor Paul Pierson: “o jovem falou em
defesa de Barth, não pensa que o movimento ecumênico é tão terrível
assim. Ele é um excelente exemplo da má influência do novo Princeton”
(AAnderson e Rhoads, 2011: 153). Karl Barth, o teólogo da liberdade,
expoente da nova teologia foi um dos alvos dos ataques
fundamentalistas, ao propugnar uma “teologia entre os jornais e a
Bíblia”; teologizar sobre a realidade cotidiana do mundo (Silva, 2010:
75).
O fundamentalista McIntire encontrou terreno fértil no Brasil,
especialmente nos seminários, onde formavam-se os líderes protestantes.
Ensinava-se uma teologia dogmática, engessada em outras realidades
históricas. Prezavam-se as doutrinas, baseadas num biblicismo
impedindo outras leituras. O emocionalismo, a “bibliolatria” aliados à
uma tendência brasileira de pouco cultivo da leitura, certamente levavam
a atitudes negativas de pensar a fé, de dialogar com a realidade. O
teólogo Richard Shaull, que se tornou um dos líderes do ecumenismo no
País, ao chegar ao Seminário Presbiteriano de Campinas, em 1952
relatou: “nos cursos de Exegese Bíblica, Teologia e História da Igreja,
ao lado de instruções como pregar, usavam material em inglês, a maioria
na linha do fundamentalismo e pietismo importados da América do
Norte” (Shaull, 2003: 112).
A intenção do Reverendo fundamentalista era atrair os brasileiros para
a sua cruzada, denominada de “a Reforma do século XX”. Considerava-
se um enviado de Deus para salvar a Igreja Reformada das iniquidades
do modernismo teológico O discurso de retorno aos fundamentos da fé
atraiu vários setores protestantes no País. Israel Gueiros tornou-se a
grande liderança brasileira na expansão do pensamento fundamentalista
no País. Provocou um cisma na Igreja Presbiteriana e em 1956 fundou a
Igreja Presbiteriana Fundamentalista em Recife e outro seminário.
Deposto pelo Presbitério de Pernambuco em julho de 1956, os
fundamentalistas formaram um presbitério com 1800 membros e se
filiou ao Conselho Internacional de Igrejas Cristãs e à ALADIC.
Um relato do Presidente do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana,
afirma que “McIntire chegou ao Brasil, com uma bolsa preta com 25 mil
dólares, com a intenção de dividir a Igreja Presbiteriana do Brasil”
(Cunha, 2001). A Igreja Presbiteriana do Brasil reagiu ao
fundamentalismo, considerando o movimento como separatista, ao
mesmo tempo se afastava do ecumenismo do Conselho Mundial de
Igrejas.
A primeira divisão na Convenção Batista Brasileira ocorreu em 1910
na Primeira Igreja Batista do Brasil, em Salvador, os fatores que
propiciaram o cisma se vinculavam ao nacionalismo e as relações de
poder entre os missionários estadunidenses e os brasileiros, que
organizaram a Igreja Batista do Garcia e a Missão Batista Independente.
A finalidade da Missão Batista Independente era criar um setor batista
nacional “para que não se diga por causa do bairrismo, muitas vezes ou
quase sempre justificado, inato em nós que a doutrina de Jesus, é um
meio de exploração do estrangeiro” (Silva, 2017: 75).
A Denominação Batista sofreu influências dos fundamentalistas. O
governo eclesiástico congregacional facilitou a origem de duas atitudes:
a adesão efêmera e a adesão de grupos persistentes, a exemplo dos
Batistas Bíblicos e os Batistas Regulares. Os Batistas Bíblicos, oriundos
do Baptist Bible Fellowship, que resultara de uma cisão nas fileiras do
pastor fundamentalista J. Frank Norris, que estabeleceu uma igreja e um
seminário em Missouri. Deslocou-se ao Brasil em 1945, o missionário
Byron Macarthey e construiu igrejas em Recife, São Paulo e Rio de
Janeiro. Para formar uma liderança local, o grupo “organizou institutos
bíblicos em Campinas, São Paulo e em Pernambuco, apaixonados em
escatologia e rigorosos em matéria de modas femininas ” (Pereira, 1982,
p. 215).
Uma tentativa efêmera de inserção institucional do fundamentalismo
ocorreu em 1949, quando missionários estadunidenses da North
American Baptist Association (NABA) do Texas, contatou os Pastores
Ebénezer Cavalcanti e Alfredo Mignac. Ambos eram lideranças da
Convenção Batista da Bahia e da Associação Batista do Brasil, naquele
momento separadas da Convenção Batista Brasileira dirigida pelos
missionários estadunidenses da Junta de Richmond. A NABA se
diferenciava das demais agremiações atuantes no Brasil pela “afirmação
fundamentalista e antimodernista, ao aceitar a doutrina bíblica
exatamente como está nos textos sagrados, numa leitura linear e
interpretação direta” (Teixeira, 2017, p. 90).
Este setor Batista fundamentalista, liderado pelo Pastor Harald Morris,
organizou o Instituto Teológico em Campinas, objetivando concorrer
com os seminários Batistas do Brasil na formação do clero, que deveria
seguir as doutrinas da North American Baptist Association (NABA). A
liderança do Pastor Morris e a administração dos recursos financeiros
desagradou aos brasileiros. Passadas as querelas entre os nacionais e os
missionários da Convenção Batista do Sul dos EUA, a harmonia
retornou aos arraias batistas e oficialmente, em 1956, à sua linha
teológica tradicional.
Persistiram no seio da Convenção Batista Brasileira de forma
naturalizada princípios fundamentalistas, como uma demonstração de
ortodoxia e fidelidade. Pastor Ebénezer Cavalcanti, discorrendo sobre os
Batistas e o ecumenismo se declarou como fundamentalista e
conservador. Eram os Batistas infiéis que aceitavam o ecumenismo, “soa
com sonido estranho para nós, os Batistas fundamentalistas, quanto à
doutrina bíblica, conservadores quanto à teologia de base bíblica
indiscutível e regulares quanto ao sistema eclesiológico de inspiração
bíblica” (Silva, 2010: 38).
A Denominação Batista Regular originou-se de igrejas que se
separaram da Convenção Batista do Norte dos Estados Unidos, em 1932.
A divisão aconteceu devido ao não conformismo com algumas práticas e
doutrinas que consideravam equivocadas e mundanas O movimento
Batista Regular foi organizado em General Association of Regular
Batista Churches (GARBC) liderado por Howard C. Fulton. Na década
de 1950 enviaram missionários ao Brasil, com a intenção de difundir
suas doutrinas. A Igreja Batista Regular contou com esforços dos
missionários Edward Guy McLain no Ceará, e Arlie Ross no Amazonas.
Posteriormente, espalharam-se por todo o território nacional.
Atualmente, os Batistas Regulares representam no Brasil mais de 40
mil membros. Contam com seminários e entidades assistenciais. Não
participam de atividades cooperativas e são antiecumênicos. Tem uma
editora, a qual publica literatura devocional e de divulgação. Para
preservar a identidade doutrinária, organizaram em 1953 a Associação
Nacional de Igrejas Batistas Regulares (AIBREB). Na Bahia, os Batistas
Regulares organizaram a Primeira Igreja Batista Regular, em 1959, em
Salvador, após intenso proselitismo do missionário Keneth Mitchel.
“Espalharam-se por todo o estado fundando congregações e
acampamentos” (Buck e Moraes, 2019: 30). Relevante para a expansão
dos batistas regulares foi a atuação do Pastor Francisco Xavier Pessoa:
por um tempo frequentou com a sua família a Igreja Evangélica
Fundamentalista, em 1974 iniciou oficialmente a Denominação Batista
Regular em Feira de Santana.
O líder do fundamentalismo batista, em Feira de Santana, Pastor
Francisco Xavier Pessoa estudou no Seminário Batista Regular
Bereanos, no Rio Grande do Norte. Foi ordenado, em 1956 e pastoreou
igrejas na região potiguar e ao mesmo tempo ajudava ao missionário
Valmar Mitchell no trabalho de pregação itinerante.
Pastor Xavier era um talentoso pregador, organizou a
Igreja Batista Maranata e a segunda Igreja Batista Regular
Maranata, posteriormente mais duas congregações. Para
formar os pastores fundou o Instituto Bíblico Maranata,
em Feira de Santana (Buck, 2014: 6).
As igrejas locais Batistas Regulares formam as Associações Regionais
de acordo com a região do País. A AIBREB tem uma estrutura voltada
para fortalecer e servir a igreja local, a observância da reta doutrina,
conforme a Bíblia, separação e condenação do que é designado pelo
grupo como mundanismo, heresias e erros teológicos dos católicos e
demais protestantes. Nos Estatutos da Associação Nacional de Igrejas
Batistas Regulares reza no artigo 33º: “Os Artigos de Fé e os Distintivos
Batistas Regulares são irrevogáveis”.
Os principais inimigos da fé, segundo os Batistas Regulares, são o
romanismo, o modernismo, o ecumenismo e o pentecostalismo.
Discordam da Teologia da Prosperidade dos neopentecostais, bem como
do movimento de renovação carismática, que atingiu o protestantismo
histórico e não adotam novidades litúrgicas. Fiéis ao fundamentalismo
seguem a Bíblia literalmente, como regra de fé e prática e não aceitam
leituras interpretativas. Segundo os seus Artigos de Fé: “Cremos que as
Escrituras do Antigo e Novo Testamentos, como originalmente escritas,
foram plenária e verbalmente inspiradas pelo Espírito Santo, e por isso,
expressam toda a revelação divina sem nenhum erro.
Igrejas Batistas independentes ou de tradição congregacional foram
atraídas para o Movimento Batista Regular, a exemplo da Igreja
Evangélica Unida da cidade de Feira de Santana, fundada em 1937 pelo
casal Isobel C. Gillanders e Roderick M. Gillanders, missionários da
Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira, a primeira denominação
protestante a se fixar na cidade (SILVA, 2010, p.162). As doutrinas
fundamentalistas foram introduzidas na Igreja Evangélica Unida pelo
Pastor Antonio Fernandes Oliveira, que fez os estudos teológicos no
Seminário Presbiteriano Conservador, em São Bernardo do Campo,
aconselhado pelo Reverendo Sinésio Lyra da Igreja Bíblica
Congregacional e fundador presidente da Associação Fundamentalista
Evangélica da América Latina.
O Pastor Antonio R. de Oliveira foi ordenado ao ministério em 1964
na Igreja Evangélica Unida de Feira de Santana. Assumiu a igreja neste
mesmo ano, pastoreou a comunidade de 1964 a 2012, quando seu filho
Roderick Fernandes assumiu o pastorado. Uma longa liderança, com
muitos fatos e desdobramentos na estrutura eclesiástica. Em 1968,
transformou a Igreja Evangélica Unida em Igreja Evangélica
Fundamentalista, seguindo os princípios teológicos conservadores, que
recebera no seminário.
A Igreja Evangélica Unida, que congregava presbiterianos e
congregacionais, sem perfil denominacional, passou a ser Igreja
Evangélica Fundamentalista. No seu Regimento Interno, as mudanças
doutrinárias de perfil conservador ficavam explícitas, a exemplo da
inerrância bíblica:
As Sagradas Escrituras foram escritas por homens
divinamente inspirados e que são ricos tesouros da
instrução celestial. Que todo o seu conteúdo é a verdade
sem mescla de erro. Que ela é o padrão único e infalível,
pelo qual a conduta humana, os credos e as opiniões
devem ser julgados (REGIMENTO, 1995: 3)
Segundo o missionário R. Buck, a “Igreja Fundamentalista mais
antiga da cidade admirava a firmeza doutrinária e a dedicação ao
trabalho de Deus do Pastor Xavier” (Buck, 2014: 60). A sua presença
como membro da Igreja Evangélica Fundamentalista, em Feira de
Santana foi decisiva para a filiação da referida instituição à Associação
Nacional de Igrejas Batistas Regulares e passou a designar-se Igreja
Batista Fundamentalista. A comunidade adotou as concepções
doutrinárias do fundamentalismo, pleiteando uma maior pureza
evangélica, ética e litúrgica.
A Associação Fundamentalista Evangélica da América Latina
(ALADIC) continuou realizando congressos, com temáticas
escatológicas e conservadoras: Chile (1992), “Vigiai, Cristo está
retornando em breve”; Equador (1995), “Igrejas fiéis evangelizam,
edificam e ficam firmes pela fé”; Guatemala (1999), “Maranatha, o
Senhor está voltando”. Em 2012, aconteceu Campinas, o XXI congresso
da ALADIC e o 18 Congresso Internacional do Concílio Internacional
de Igrejas Cristãs fundados por C. McIntire. Em 2015, aconteceu em
Recife o XXII congresso da ALADIC, com o tema “Vigiar para não cair
no racionalismo, que é muito perigoso” e a presença de delegações dos
EUA e de toda América Latina.
Fundamentalismo e Relações sociopolíticas.
Desde o seu nascedouro, o Movimento Fundamentalista forjou
representações e práticas políticas nos EUA. Ao criticar o modernismo
teológico e o cientificismo da sociedade, os fundamentalistas também
buscavam intervir na ordem social. Consideravam o Evangelho Social e
os sindicatos como diabólicos e um sinal do Anticristo. Lembrando o
episódio do professor de Biologia Scopes que ministrava aulas, seguindo
as teorias do darwinismo e por isso foi advertido em tribunal, Dreher
concluiu que “para o fundamentalismo, a verdade religiosa é pressuposto
para a ação política. Seu alvo é a sociedade perfeita” (Dreher, 2005: 9).
Após a II Guerra Mundial, os fundamentalistas alinharam-se à direita.
McIntyre aderiu à J. McCarthy contra o comunismo e alimentou o
macarthismo entre os evangélicos. No rádio pregava: “ateus, e
comunistas zombavam da Bíblia, desdenharam da vida, escravos do sexo
e filhos dos monstros de olhos verdes” (Armstrong, 2017: 352). O
fundamentalismo se ressignificou: a geração de 1960, incluindo o Pastor
Batista Billy Graham e sua Associação Evangélica, absorveu o
conservadorismo teológico, que desembocaria na década de 1970 na
Nova Direita Cristã e na Maioria Moral, sob a liderança de Jerry
Falwell, que combatia o liberalismo nos EUA. Era o
“neofundamentalismo evangélico” (Martelli, 1995: 10). No Brasil
reavivou o ódio ao comunismo, pois o Protestantismo brasileiro o
identificava como diabólico desde a Revolução Russa, em 1917 e
representavam a Rússia como o reino do terror, mandíbulas do inferno.
“O perigo que ameaçava o mundo era o bolchevismo, o ateísmo e
crimes, semeando a discórdia entre patrões e operários, além de
perseguir as religiões “ (Silva, 2017: 35).
A Confederação Evangélica do Brasil, com o apoio do Conselho
Mundial de Igrejas, fundou o Setor Igreja e Sociedade, em 1955,
proposta ecumênica e voltada para os problemas do País. O grupo era
liderado pelos presbiterianos Richard Shaull, Waldo Cesar e formado
por várias denominações. Realizou quatro conferências nacionais sobre a
responsabilidade social da Igreja (Silva, 2010). Os ecumênicos eram
vistos pelos fundamentalistas como heréticos e comunistas. Reverendo
Sinésio Lyra afirmou: “ a influência comunista está se fazendo em vários
setores da vida nacional. Líderes do Concílio Mundial de Igrejas são
agentes do comunismo, protestantes apóstatas, que vêm ludibriando
igrejas evangélicas” (Correio da Manhã, 1959, ed.20358).
O anticomunismo se confundia com o antiecumenismo entre os
fundamentalistas. Em 1964, frente à Ditadura apoiada oficialmente pela
hierarquia protestante, Reverendo João D. Araújo relatou que no mesmo
dia do golpe, o Reverendo Israel Gueiros, líder fundamentalista, num
programa na Rádio Clube Pernambuco “agradeceu a Deus pelos
militares golpistas e denunciou que, havia uma cátedra de teologia
marxista no Seminário Presbiteriano do Norte, e o professor era João
Dias de Araújo” (Araújo, João Dias. Entrevista concedida à Elizete da
Silva. Feira de Santana, 26 nov., 2013). Gueiros prosseguiu nas
denúncias contra o Reverendo “acusado de incitar os jovens seminaristas
às ideias comunistas”. Delatado, o Reverendo Araújo foi chamado pelo
DEOPS para depor.
A motivação para a delação de Gueiros contra Araújo foi o fato do
mesmo ter escrito o panfleto “O Jovem Cristão e o Jovem Comunista”, o
qual tinha o objetivo de alertar os evangélicos, que o Cristianismo era
completo, não precisava de outras ideologias”. (Araújo, João Dias.
Entrevista concedida à Elizete da Silva. Feira de Santana, 26 nov.,
2013). Os professores ecumênicos foram expulsos dos Seminários
Presbiterianos e destituídos dos presbitérios considerados modernistas, a
exemplo do Presbitério de Salvador (Silva, 2010). Paul Pierson,
professor do Seminário Presbiteriano em Recife, estranhou: “Eu sou do
sul. Pertenço à parte mais conservadora da Virgínia. Fui educado da
maneira mais ortodoxa...Sempre me considerei “sadio na fé”, porém, a
ortodoxia conservadora destes irmãos brasileiros é tal que eu receio por
minha pele ortodoxa” (Pierson, 1974: 98).
A imprensa presbiteriana defendeu a “linha dura como um dos
objetivos eliminar da Igreja Presbiteriana do Brasil aqueles considerados
inimigos do povo de Deus, principalmente ecumenistas e comunistas”
(Villela, 2017: 34). Na ótica dos fundamentalistas batistas, o perigo
vermelho era uma ameaça: “Até em nossas igrejas se produziu a
infiltração. Existia a louca ideia de que era possível embarcar-se no
mesmo barco dos comunistas para construir os mesmos ideais” (O Jornal
Batista, 1964, p.3). Pastor Ebénezer Cavalcante escreveu Os
Missionários Comunistas, reverberando contra a União Cristã dos
Estudantes do Brasil (UCEB). Para os Batistas, estes jovens eram
“missionários comunistas” infiltrados entre os verdadeiros cristãos para
os enganar com promessas de uma sociedade justa. Segundo o
articulista, a UCEB era “mais um órgão muito bem disfarçado do
Comunismo Internacional (...) com os propósitos de arregimentação dos
jovens evangélicos para os fins de comunização do Brasil” (Almeida,
2011: 110).
Pensavam os evangélicos conservadores que os militares de 1964
foram instrumentos divino contra o “perigo vermelho”, que ameaçava a
liberdade religiosa. Em Recife, fizeram um culto em ações de graças a
Deus na Igreja Presbiteriana Fundamentalista, do Reverendo Gueiros.
Em Salvador, Pastor Valdivio Coelho, capelão do exército e pastor da
Igreja Batista Sião, promoveu culto pelo “milagre de Deus ter
preservado o Brasil do comunismo”. O culto realizou-se no teatro Castro
Alves, com a presença de centenas de militares da IV Região Militar e
batistas agradecidos a Deus pelos militares.
O fundamentalismo dos Batistas Regulares também se expressou
politicamente. No contexto da Ditadura de 1964, em Feira de Santana,
um dos motivos da filiação da Igreja Evangélica Unida à Associação das
Igrejas Batistas Regulares foi o conservadorismo político. Conforme Sr.
Antonio Alves da Silva, um cordelista membro da comunidade:
“Apoiado o movimento/Contra a idéia comunista/A igreja muda o nome
Para fundamentalista/Firme na base apostólica/Um novo ideal
conquista” (Silva, 1999).
O evangelicalismo conservador de Billy Graham e suas campanhas
evangelísticas marcaram os protestantes brasileiros no último período
ditatorial no País. Os livros do Pastor Batista estadunidense eram
intensamente divulgados no Brasil. A obra Mundo em Chamas, de 1968
e publicada no Brasil pela Record traz uma mostra do pensamento
neofundamentalista de Graham, no próprio título o mundo em chamas
remete ao fogo apocalíptico que na sua visão tinha uma “explosão
demográfica, cientificismo, iniquidade, imoralidade, novas teologias,
cristianismo sem Deus e o comunismo ateu, que queria dominar o
mundo politicamente “ (Graham, 1968: 248). Os livros de Billy Graham
e seu pensamento conservador evangelical foi tão difundido entre os
Batistas da Convenção Brasileira, que editoriais do Jornal Batista
guardavam extrema similaridade de ideias. Não podemos afirmar quem
copiou quem, porém Graham também escreveu sobre o poder
revolucionário do Evangelho:
Está-se processando em nossos dias uma revolução
silenciosa e sem sangue. Ela não se apresenta com
fanfarras, cobertura jornalística...está transformando o
curso de milhares de vidas...homens de todas as raças e
nacionalidades que encontram a Paz com Deus (Graham,
1968: 78).
Os Batistas organizaram campanhas evangelísticas nas décadas de
1960 e 1970. O marco foi a pregação do Pastor Billy Graham no estádio
do Maracanã, no Rio de Janeiro em 1960, retornou em 1962, com
multidões no estádio de Pacaembu, São Paulo. Em 1965, foi realizada a
Campanha Cristo, a Única Esperança anunciada no ano de 1964 como
revolucionária:
Vai acontecer no Brasil em, 1965, outra revolução. Outra,
mas esta branca, pacífica, sem sangue. Uma revolução
espiritual, de dimensões nunca vistas na História deste
país. Será uma revolução em profundidade. Será uma
revolução de consciências (O Jornal Batista, 1964: 3).
As Campanhas podem ser consideradas enquanto prática política...
serviam para apoiar o governo que estabeleceu o Golpe Militar
(Almeida, 2011: 53). O evangelista Billy Graham retornou ao Brasil em
1974 para mais uma cruzada evangelística, em plena Ditadura militar. O
discurso neofundamentalista do Pastor Batista se concentrou no pecado
pessoal e no moralismo. Em torno de 600 mil pessoas, não apenas
batistas, mas evangélicos de outras denominações ouviram a oração
“Deus abençoe o Brasil” Na ótica individualista do fundamentalismo, a
sociedade se transformará após a conversão de todas as pessoas aos
princípios bíblicos, portanto só o Evangelho salvaria o Brasil, inclusive
do comunismo.
Dentre vários textos que combatiam o comunismo e o Evangelho
Social, o livro do presbiteriano Antenor Santos de Oliveira: “Você
Conhece o Comunismo? Mas Conhece Mesmo”, lançado em 1964,
empolgou os batistas: “obra bastante atual, mormente à face dos
acontecimentos de 31 daquele mesmo mês [março] um alerta sobre os
perigos aos quais o Brasil estava exposto antes da vitoriosa Revolução
de 1º de abril” (O Jornal Batista, 1964). As descrições das práticas dos
comunistas também recorriam a imagens escatológicas e
desqualificadoras, “transcendendo totalmente o terreno político para o
campo específico da religião” (Almeida, 2011: 77). O Protestantismo
brasileiro tem laços espirituais e ideológicos com os “irmãos da Outra
América”. Os EUA, opositor do socialismo e mentor de golpes e
governos militares na América Latina, também eram o “berço do
Evangelho”, a nação evangélica que mandava missionários bem-
intencionados para o País.
Na contemporaneidade, o neofundamentalismo atingiu o
Pentecostalismo e os Neopentecostais. Recentemente, observa-se na
sociedade brasileira uma simbiose entre a Teologia da Prosperidade e
aspectos das doutrinas do conservadorismo evangélico, que por sua vez
também pretendem intervir na política. A retórica neofundamentalista da
politização do religioso pode ser uma das motivações da inserção dos
neopentecostais na política seguindo a Teologia do Domínio. Um
discurso semelhante a Maioria Moral, a agenda da família tradicional,
contra o aborto, o divórcio e pró Israel, como povo eleito.
Ressignificam-se o criacionismo, negando-se a ciência volta-se a ideia
de escolarizar as crianças nos lares para que eles não sofram influências
dos professores materialistas.
A Frente Parlamentar Evangélica, que dá sustentação política ao
Presidente Bolsonaro, quer dominar politicamente o País, típico de
práticas autoritárias, que pensa ter a melhor religião os melhores valores.
Os evangélicos fundamentalistas querem chegar ao poder e exercê-lo
segundo suas doutrinas. Pensam que: “somente através de um tipo de
governo em que a base seja os princípios bíblicos protestantes, será
possível a transformação social almejada. A proposta é de um governo
teocrático” (Dias, 2009: 133).
Na posse o Presidente Bolsonaro recebeu a benção do Pastor
Pentecostal Magno Malta, que concluiu a sua oração, com o seguinte
texto: “O Senhor ungiu a Jair Bolsonaro como um cristão na presidência,
o Brasil acima de todos e Deus acima de Tudo! ” Contraditório num
Estado laico desde a proclamação da República, um desrespeito às
demais religiões do campo religioso brasileiro. Uma cerimônia
evangélica semelhante realizou o Pastor Billy Graham na ocasião da
posse do presidente dos EUA Bill Clinton. O fundamentalismo vem
alimentando o racismo religioso na legitimação do Governo Federal, ao
desqualificar e demonizar as Religiões de Matrizes Africanas.
Protestantes ecumênicos presbiterianos, metodistas, batistas e
luteranos criaram em 2016 um grupo de oposição designado como
Frente Evangélica Pelo Estado de Direito, defendendo a Democracia
contra a cassação do mandato da Presidenta Dilma Roussef e a
instrumentalização política das Igrejas Evangélicas pelo voto de cajado\
neo-cabresto. Desenvolvem atitudes radicalmente opostas aos
fundamentalistas evangélicos.
Considerações Finais.
O Fundamentalismo atingiu diversos grupos protestantes no Brasil
dividindo igrejas e estruturas eclesiásticas. Oficialmente foi minoritário,
porém persistiu como um sinal de ortodoxia e fidelidade aos princípios
bíblicos na maioria das comunidades evangélicas de origem missionária
e pentecostal de forma ressignificada em práticas e discursos,
originalmente, fundamentalistas. Observa-se um avivamento do sagrado,
recriações inovadoras ganham espaço e visibilidade em busca de espaço
político. O avivamento não é um fato isolado, mas acompanha as
mudanças sociopolíticas vigentes num mundo onde os paradigmas, a
racionalidade, as promessas do bem-estar social desmoronaram e os
homens estão a buscar sentido para suas existências em outra direção,
numa dimensão espiritual, que é mais estável. O neofundamentalismo
cumpre, simbolicamente, um relevante papel.
O neofundamentalismo alinhou-se aos setores políticos conservadores
do País defendendo valores tradicionais e o negacionismo científico,
como um retorno anacrônico aos princípios bíblicos. Há um projeto de
poder que se nutre de visões teológicas impositivas, sem levar em
consideração a pluralidade religiosa da sociedade. Se adequa
perfeitamente ao conservadorismo ético e político, quando se opõe ao
Ecumenismo, que leva em conta os problemas sociais e políticos do
mundo e do Brasil.
XII. A Intolerância Religiosa e a sua
Tipificação - Uma Análise de Casos Concretos

Carlos Gustavo Direito


Introdução.
O presente artigo tem como objetivo analisar casos concretos julgados
pelos tribunais brasileiros para definir a tipificação dos crimes de
intolerância religiosa, partindo da premissa que os crimes típicos
previstos nos artigos 208, 211 do Código Penal e 20 da Lei 7.716/89
(com as alterações da Lei 9.459/97) , por si só não representam toda a
realidade dos ilícitos praticados sob o manto da intolerância religiosa.
Não há pretensão de ser exaustiva a análise dos casos dentro de toda
jurisprudência brasileira sobre o tema. Por isso a análise se limita
algumas decisões ilustrativas dos tribunais brasileiros para demonstrar
que o fundamentalismo religioso pode dar ensejo a crimes que
perpassam desde violência doméstica até o crime de homicídio e que
mesmo nos crimes típicos pode-se observar outros crimes correlatos.
Logo a busca de material para pesquisa não pode se limitar aos termos
comuns de liberdade religiosa e intolerância devendo ser a mais ampla
possível e abranger todas as espécies de crimes que podem ter como
motivação o fundamentalismo religioso.
Note-se que nosso Código Penal tipifica dois crimes específicos em
relação a intolerância religiosa, em seus artigos 208 (ultrage a culto e
impedimento ou perturbação de ato a ele relativo) e 212 (vilipêndio a
cadáver), assim como a Lei 7.716/89 em seu artigo 20 estabelece como
crime punido com até três anos de reclusão praticar, induzir ou incitar a
discriminação ou preconceito de raça, etnia, religião ou procedência
nacional.
O que se pretende mostrar é que no agir do fundamentalista podemos
ter outros tipos de crimes de naturezas diversas, tais como homicídio
(art. 121), lesão corporal (art. 129), crime à liberdade individual (art.
146) e crimes contra à honra (arts. 138, 139 e 140) todos do Código
Penal e que por isso é importante identificar os motivos determinantes
de tais crimes para que possamos ter uma real dimensão da correlação
entre crime e fundamentalismo, afastando-nos de pesquisar apenas nos
crimes típicos de preconceito. Além do mais, demonstraremos em breve
análise da jurisprudência a correlação direta entre fundamentalismo
religioso e crime de intolerância religiosa. Isto é, ampliando um pouco o
conceito de fundamentalista para enquadrá-lo naquele que busca impor
sua verdade religiosa – ao invés de limitar tal termo a propagação da
inerrância bíblica, temos que os crimes de intolerância religiosa são
praticados por fundamentalistas. Apesar de que, isso deve ficar claro, ser
fundamentalista por si só não constitui qualquer tipo de crime.
Alguns pontos podem ser levantados como perguntas que se devem
responder para adentrarmos a raiz da intolerância religiosa por conta do
fundamentalismo. Logo, como deve ser investigado e interpretado crime
diverso do preconceito religioso, mas que carrega no seu fundamento a
intolerância religiosa contra a vítima? Qual o papel dos juízes na
interpretação do fundamentalismo religioso como base para a prática de
outros crimes? Existe uma imbricação entre o fundamentalismo religioso
e a intolerância religiosa?
Particularmente em duas situações concretas perante o I Tribunal do
Júri da Capital do Rio de Janeiro tivemos o elemento do
fundamentalismo como um dos fatores objetos das investigações e que
não foram devidamente explorados como elementos tanto de preconceito
investigatório em um dos casos como de fator determinante do crime
como no outro caso.
No primeiro caso houve por parte da defesa do réu acusado de
homicídio qualificado contra os pais adotivos (processo 0150877-
03/2007- RJ) a tentativa de anular o inquérito investigatório sob o
fundamento de que haveria preconceito por parte do delegado cristão em
relação ao réu que professava religião de matriz africana, sobretudo em
relação a determinado “altar” que havia na casa do réu. Tal alegação não
restou devidamente demonstrada para fins de anulação do inquérito em
si e, por força das demais provas constantes, o réu acabou condenado
pelo corpo de jurados pelo crime de homicídio qualificado. Todavia, é
de se chamar a atenção a possibilidade de que uma investigação tenha
como um dos seus fundamentos uma eventual intolerância à religião do
investigado e que essa religião seja erroneamente interpretada como
sendo naturalmente propensa ao cometimento de crimes. Tal fato
dificilmente é agregado a qualquer tipo de pesquisa que tente identificar
no seio do Estado a intolerância religiosa, o que dificulta inclusive uma
pesquisa séria sobre o assunto.
No outro caso, o homicídio foi praticado em razão de uma discussão
ocorrida em um bar/casa noturna sob fundamento de que o autor dos
disparos encontrava-se em legitima defesa putativa, isto é que havia
receio de que a vítima estivesse armada e fosse contra ele atirar por força
dessa discussão. Nesse caso o autor dos disparos e as testemunhas
relataram que a vítima se dizia “possuída” e que isso foi um dos fatores
do início da discussão que acabou por resultar no evento morte (processo
0012163-14/2017 - RJ). Pelos depoimentos se percebeu uma prevenção
contra vítima que alegava que estava “baixando o santo”, enquanto o
autor do disparo se dizia cristão e por isso mesmo intercedeu na
situação.
Em ambos os casos vemos como tema de fundo uma eventual
intolerância religiosa por parte do agente do Estado investigador, na
primeira hipótese e por parte do autor do delito no segundo caso. Ocorre
que nenhum desses dois casos concretos entrarão no cômputo de um
eventual crime de intolerância religiosa e sequer serão objeto de
pesquisa e aprofundamento. Logo a pergunta a que se faz é como
identificar crimes que tem como uma das suas motivações a intolerância
religiosa e como perceber essa imbricação entre o discurso
fundamentalista e o crime de intolerância.
Casos concretos julgados pelos Tribunais brasileiros.
A intolerância, em regra, é fruto de um discurso fundamentalista que
no seio da religião professada afasta a veracidade das demais religiões,
avocando para a sua religião o monopólio da verdade. No final das
contas, busca-se a detenção da verdade. Afirme-se que o termo
fundamentalismo nasce nos movimentos conservadores evangélicos nos
EUA do século XIX. Assim, Cleber A.S. Baleeiro explica que
historicamente o termo fundamentalismo tem origem no protestantismo
estadunidense do final do século XIX e início do século XX e
fundamentalista era aquele que permanecia fiel aos imutáveis princípios
da fé cristã. Podemos ainda identificar a própria questão da chamada
intolerância religiosa no cisma cristão do século XVI no qual teremos a
reforma protestante. Os modernos Estados Democráticos se fundaram
sob o manto da tolerância religiosa.
Nas palavras de Cleber A.S. Baleeiro, “ser fundamentalista, nesse
sentido, era estar ao lado do que seria verdadeiro, puro e justo, em
contraposição às infidelidades, pecaminosidade e ignorância do restante
das pessoas” (2013:17). Ora, o uso do termo se expandiu e hoje pode-se
referir a vários tipos de fundamentalismo, sendo preferível, pois, a
palavra fundamentalismos para definir o fenômeno, como defende o
citado autor. Assim, definimos de forma abrangente situações que tem
em comum a finalidade de restabelecer em sua religião a volta aos
conceitos originários, mas ao mesmo tempo tem diferenças específicas
de acordo com a sua proposta. Podemos falar, então, em
fundamentalismo islâmico, católico, protestante, judaico e até hindu.
Todavia, deve ser ressaltado que a terminologia originária vem do
movimento protestante americano, mas, no meu modo de sentir, não
pode ficar delimitado a ele. O que perceberemos na análise dos casos
separados é que no Brasil os movimentos pentecostais e neopentecostais,
juntamente com os conservadores católicos, incorporaram as ideias
fundamentalistas para, sobretudo, repudiar as religiões de matrizes
africanas, como sendo movimentos pagãos e não religiosos e atribuindo
a sua religião o monopólio da verdade..
É de se destacar que nosso sistema jurídico pertence ao que
denominamos de civil law, isto é o fundamento principal do nosso
Direito é a lei, vide o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil.
Nesse sentido, e com muita mais razão em se tratando de matéria penal,
qualquer questão referente à intolerância religiosa, no campo criminal,
tem que ser precedido de texto normativo que o caracterize como crime
para que assim seja identificado. Note-se que o simples
fundamentalismo por si só não pode ser considerado crime em razão da
liberdade constitucional de credo e crença (art 5º, VI CFRB). Para que
haja crime no exercício de premissas fundamentalistas tem que ocorrer
uma violação direta da norma legal, seja do artigo 208 do Código Penal
ou do artigo 20 da Lei 7716/89. O que nós estamos dizendo aqui é que
mesmo que a intolerância não seja diretamente o crime alvejado
devemos analisar outras espécies de crimes para saber se na sua
substância uma das motivações não foi o preconceito religioso.
Por exemplo, em caso julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo,
um pai foi condenado por agredir sua filha por discordância de sua
crença religiosa. Nesse caminho, mesmo não havendo o cometimento de
um crime específico de intolerância religiosa, a lesão corporal tipificada
penalmente (art. 129 CP) teve como razão de ser a crença religiosa da
vítima o que no meu modo de entender caracteriza uma violação ao
direito de crença e culto. Apesar da ementa da decisão não explorar
muito esse fato, podemos da leitura dela depreender que uma das causas
determinantes do crime foi o preconceito religioso. Talvez tal
fundamento poderia ter sido melhor explicitado na decisão em comento,
inclusive para fins de estatística e cômputo futuro. Veja como ficou
ementada a decisão referida:
Apelação nº 0023951-37.2011.8.26.0196 - Voto: 7.118
(3) - Apelante: Ministério Público do Estado de São Paulo
- Apelado: Daniel Raimundo Origem: 2ª Vara Criminal da
Comarca de Franca Magistrado: Wagner Carvalho Lima -
Violência doméstica Lesão corporal Artigo 129, §9º, do
Código Penal Higidez do quadro probatório Reforma da
sentença absolutória Condenação Necessidade. Violência
doméstica Lesão corporal de natureza leve Agressão da
filha, mediante socos e tapas, pelo genitor, decorrente de
divergência atribuída a crença religiosa Configuração
Exercício regular de direito Reconhecimento
Impossibilidade. Apelo ministerial parcialmente provido,
com extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão
punitiva.
Então, um primeiro ponto que deve ser destacado é que muitas das
vezes os crimes praticados por motivos fundamentalistas podem estar
mascarados por outros crimes tipificados. No caso concreto foi lesão
corporal leve em âmbito doméstico, mas poderia ser até mesmo um
homicídio ou tentativa de homicídio entre estranhos por conta de
divergência religiosa. Daí porque uma pesquisa que queira ser ampla
sobre a investigação dos crimes de conteúdo religioso deve buscar os
motivos dos demais crimes cometidos e para tanto é necessário que o
sistema criminal destaque desde o momento do inquérito o que está por
trás daquele fato-crime. Não há uma diferença ontológica entre o crime
de intolerância e o crime praticado por razões de preconceito religioso,
mesmo que não seja tipificado como um crime de intolerância religiosa
propriamente dito.
Note-se que quando o crime praticado é diretamente tipificado como
intolerância religiosa há destaque na decisão proferida pelo Tribunal.
Podemos, por exemplo, analisar caso julgado ainda pelo Tribunal de São
Paulo no qual na ementa fica devidamente consignado o caráter
imbricado entre o fundamentalismo religioso e o crime de intolerância
religiosa.
APELAÇÃO CRIMINAL Nº238.705.3/– TJSP-
APELANTES MINISTÉRIO PÚBLICO X SÉRGIO
VON HELDER LUIZ – DESEMBARGADOR
RELATOR GERALDO XAVIER (10.11.1999) –
Apelante 1 pretende exasperação das penas e fixação do
regime prisional para o semiaberto – Apelante 2 requer
aplicação do Sursis – artigo 89, da Lei 9099/95, alega
ausência de dolo e requer absolvição - Réu foi condenado
a 2 anos de reclusão pelo delito previsto no artigo 20, da
Lei 7716/89 e a 01 mês e 10 dias de detenção pelo crime
do artigo 208, §único do CP. Painel probatório demonstra
a culpabilidade do réu – manifestação contrária à idolatria
e à adoração de imagens, pregação baseada em
convicções e crenças hauridas de estudos da Bíblia –
ferozes invectivas contra adeptos de outras religiões,
semeadoras de intolerância de ódio, de desprezo, de
discriminação e de preconceito. Atitudes e as palavras do
apelante Sérgio extrapolam os limites da crítica e da
pregação religiosa, resvalam na aversão a outros credos,
no ânimo de atingir a dignidade de seus membros.
Condutas que se projetaram no mundo exterior praticadas
em Programa “Palavra de Vida”, da Rede Record de
Televisão, transmitido ao vivo no dia 12/10/1995, com
audiência de milhares de pessoas, em todo país e capazes
de induzir e incitar os espectadores a sentimentos
discriminatórios e preconceituosos em relação a católicos,
à espíritas e a adeptos de seitas afro-brasileiras. Membros
de outras denominações religiosas sentindo-se
discriminados pelas condutas do réu, chegaram a agredir
fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus e atentar
contra seus templos. Condutas do réu se subsumem aos
três núcleos do tipo em comento. Não só praticou a
discriminação e o preconceito de religião, como ainda
induziu e incitou outros a fazê-los (...).
Em ambos os casos, tanto na lesão corporal doméstica como na
agressão as outras religiões praticadas pelo réu da ação supra citada o
que temos é a mesma razão de agir: o fundamentalismo religioso que
transforma o homem-religioso em um agente de crime seja na esfera
privada contra pessoas da mesma família, seja na esfera pública como
diante de uma enormidade de telespectadores de programa com cunho
religioso como no caso acima visto. A busca pela imposição da sua
verdade religiosa sobre as demais verdades é o elemento próprio do
crime quando há excesso na sua propagação.
Isso fica devidamente percebido quando por exemplo temos a
tipificação de um crime de injúria qualificada. Com efeito, o artigo 140
do Código Penal tipifica o referido crime quando há uma ofensa à
dignidade e o decoro da vítima, o que se está protegendo é a honra
subjetiva do ofendido, sendo certo que o crime é qualificado quando há
o emprego de elementos preconceituosos ou discriminatórios em
relação, dentre outros motivos, à religião. Ora, somente aquele que
considera que sua religião é a detentora da verdade pode pretender
ofender alguém com uma afirmação depreciativa à religião do outro.
Vide o caso julgado pelo Tribunal do Distrito Federal que consignou
situação de ofensa à honra pessoal quando em reunião de condomínio a
agressora faz referência a elementos relacionados à religião da vítima
para ofendê-la.
PENAL. PROCESSO PENAL. CRIMES DE INJÚRIA
QUALIFICADA PELO PRECONCEITO RELIGIOSO E
DE AMEAÇA, PRATICADOS CONTRA PESSOA
IDOSA DURANTE REUNIÃO DE CONDOMÍNIO.
AUTORIA E MATERIALIDADE DEVIDAMENTE
COMPROVADAS PELO CONJUNTO PROBATÓRIO
ENCARTADO NOS AUTOS. VALOR PROBATÓRIO
DA PROVA TESTEMUNHAL. DOSIMETRIA.
1. A prova produzida nos autos demonstra que a apelante
ofendeu a dignidade da vítima, fazendo referência a
elementos relacionados a sua religião, de forma suficiente
para caracterizar o crime de injúria qualificada pelo
preconceito religioso, bem como enunciou expressão que
foi bastante para intimidar a vítima e para configurar o
crime de ameaça.
2. As declarações das testemunhas de Defesa durante a
audiência inaugural e após, no decorrer da audiência de
acareação, são oscilantes, o que reduz a credibilidade dos
depoimentos e frustra o valor da prova testemunhal
produzida pela Defesa como meio probatório, em face das
demais provas dos autos.
3. Assim, não se afigura razoável recusar valor probatório
aos depoimentos prestados pelas testemunhas de
acusação, como elementos de convicção do magistrado do
conhecimento para sustentar a sentença condenatória.
4. Recurso de apelação a que se dá parcial provimento,
para redimensionar a pena privativa de liberdade imposta.
20170710085674APR - (0008157-76.2017.8.07.0007 -
Res. 65 CNJ).
Note-se que nos 3 crimes vistos, lesão corporal, intolerância religiosa
e injuria qualificada, temos o mesmo fundamento que é o desprezo de
um praticante de uma religião por outra religião. A interpretação
restritiva dos conceitos religiosos dá ensejo a uma forma distorcida de
crença, que se foca na disputa entre a sua verdade e a verdade do outro.
Essa disputa quando externada revela uma incompatibilidade do seu
detentor em viver em uma sociedade plural, o que acaba gerando o
cometimento de um crime de ódio.
Conclusão.
Buscamos 3 decisões corriqueiras nos tribunais brasileiros para
demonstrar que o fundamentalismo é elemento subjetivo que constitui o
crime de intolerância religiosa e crimes outros que escondem essa
motivação. Ao invés de buscarmos as grandes questões debatidas pelos
nossos Tribunais Superirores, a ideia aqui é mostrar o tão comum que é
– no dia à dia dos Tribunais – o julgamento de questões que envolvem a
intolerância religiosa em suas demais formas de surgimento na esfera
tipificada penal.
Deveras, em artigo escrito sobre a demonização dos cultos afro-
brasileiros pelos pentecostais, Ricardo Mariano busca em Bobbio os
ensinamentos que asseveram que “o significado histórico predominante
da noção de tolerância se refere ao problema de convivência entre
confissões religiosas diversas, controvérsia suscitada pela ruptura do
cristianismo católico com os cismas protestantes. As leis sobre liberdade
religiosa e a tolerância recíproca entre os diferentes grupos religiosos
são consideradas percussoras à democracia moderna (Habermas, 2003)
(2007:120).
Historicamente as próprias leis penais no Brasil traziam em seu tipo
penal elementos de um conservadorismo católico (fundamentalismo) que
criminaliza outras práticas religiosas, vide o artigo 276 do Código Penal
do Império de 1830 que punia a celebração, propaganda ou culto de
confissão religiosa que não fosse a oficial, que por força do caput do
artigo 5º da Constituição Imperial de 1824 era a religião católica. È
certo, ainda que o Código Penal de 1940, já sob a égide da República,
manteve os delitos de charlatanismo (art. 283) e curandeirismo (art. 284)
sob os quais o aparelho repressor do Estado agia para reprimir sobretudo
a prática das religiões de matrizes africanas (vide artigo de Hédio Silva
Jr. 2007:380). IMesmo durante a República as religiões de matriz
africana foram perseguidas pelo próprio aparelho repressor do Estado, o
que reverbera até os dias atuais.
Com efeito, a atual Constituição da República estabelece que o Brasil
é um Estado laico, assegurando a inviolabilidade da liberdade de
consciência e de crença, o livre exercício de cultos religiosos seguindo,
assim, o pensamento mundial atestado pelo artigo XVII da Declaração
Universal dos Direitos Humanos da ONU. Isto significa dizer, em uma
palavra, que não tolera qualquer tipo de preconceito religioso na vida
civil brasileira, cabendo aos poderes do Estado garantir a convivência
pacífica entre as diversas religiões que são professadas em solo
brasileiro.
Por este motivo, o Poder Judiciário deve ter sensibilidade para
identificar os crimes cometidos em nome de uma radicalização religiosa
que tenta anular o outro para ter a primazia da fé. Ser fundamentalista,
por si só, não fere nosso ordenamento jurídico e nem a ética pessoal,
mas quando esse fundamentalismo se expressa de forma a injuriar,
agredir e menosprezar as demais religiões existentes surge uma conduta
típica que deve ser criminalmente punida. Existe, pois, uma clara
imbricação entre o fundamentalismo e o crime de intolerância religiosa.
Devendo as autoridades públicas ficarem atentas porque este crime pode
vir mascarado com outra conduta delitiva.
A busca de uma sociedade justa e equânime passa necessariamente
pela convivência harmoniosa de todas as formas de religião. A religião é
o retorno ao nosso passado e aos nossos ancestrais, respeitar o caminho
escolhido por cada indivíduo para fazer esse reencontro é o fundamento
da construção de um Estado de Direito.
XIII. O Imaginário Radical Diante dos
Racismos e Fundamentalismos:
Esboço do Cenário Brasileiro
Denominado Evangélico

Alexandre de Carvalho Castro


Elcio Sant’Anna
Os muitos fundamentalismos que existem são profundamente iguais
entre si, embora paradoxalmente o sejam diferenciando-se
permanentemente uns dos outros. Explico: os variados grupos
fundamentalistas têm como irremediável denominador comum o ódio ao
diferente. Assim, tal característica imanente os torna iguais. Cara de um
focinho do outro.
No entanto, como a verdade, para ser verdadeiramente verdadeira,
deve ser exclusivamente minha, a verdade do outro precisa ser mentira,
ainda que ele pense exatamente como eu penso. Desse modo, os
fundamentalismos cristãos, os fundamentalismos judaicos e os
fundamentalismos islâmicos, dentre outros hebetismos, são, ao mesmo
tempo, a mesma coisa e, concomitantemente, coisas distintas entre si.
Tais irônicos e paradoxais prolegômenos têm sua razão de ser porque
problematizam o recorte temático do ensaio deste capítulo e o alcance de
suas conclusões. O foco das considerações aqui apresentadas gira em
torno, principalmente, do que alguém poderia tentar caracterizar como
fundamentalismo cristão-evangélico-reformado-protestante-neo-
pentecostal no Brasil do início do século XXI. Apesar de foco tão
restrito, contudo, muitas questões levantadas provavelmente se aplicam
a outros fundamentalismos, igualmente retrógrados e modernos, de
outros lugares e épocas.
Karen Armstrong marca o final dos anos 1970 como a época em que
os fundamentalistas começaram a reverter o protagonismo histórico do
processo de secularização, a fim de voltarem com a religião para o
centro do palco. Há de se concordar com ela nesse negócio do centro do
palco, mas não é possível esquecer que, há tempos, já vinham vaiando
da plateia e incendiando os camarins. Ela também enfatiza que o termo é
equivocado, mas que não tem jeito. A noção descreve uma tendência que
não pode ser invisibilizada dada sua enorme força de influência nas
sociedades modernas, e a palavra “Fundamentalismo” veio para ficar
principalmente porque “serve para rotular movimentos que, apesar de
suas diferenças, guardam forte semelhança” (Armstrong, 2009).
Assim sendo, no propósito de atenuar a impropriedade do termo, a
argumentação apresentada neste capítulo irá optar pelo uso da noção
“Fundamentalismos” em substituição ao termo no singular. Os
reacionários são simulacros de si mesmos, mas não marcham em fila
única. Se fosse o caso, inclusive, de se aludir a um conceito bíblico para
descrevê-los, seria necessário chamá-los de “legião”, porque são muitos.
Suas práticas discursivas estão nos programas da TV aberta, nas
orações dos rádios, nos cultos das plataformas de streaming, nos
pronunciamentos em câmaras legislativas e no vagar da pregação de
vagão nos subúrbios ferroviários. A constatação é inequívoca: A igreja
evangélica do Brasil — seja lá o que hoje em dia isso signifique —
parece padecer de práticas inquisitoriais atávicas, razão de ser de tantos
ódios sem perdão. Por séculos ecoa a pergunta: quando vier o Filho do
homem, porventura achará fé na terra? Eco, aliás, pertinente diante do
acelerado recrudescimento dos fundamentalismos protestantes.
Contudo, já não pergunto mais para onde vai a estrada, pois como
dizia Milton Nascimento, sei que nada será como antes, amanhã. Agora
falando sério, Meus caros amigos, A gente vai levando. A Marieta
manda um beijo para os seus, um beijo na família e nas crianças, mas o
que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui está... branca. Diretamente da
bílis dos fundamentalistas, o racismo emerge em suas formas
tradicionalmente veladas e a problemática racial sequer é cogitada nas
igrejas, em seus multifacetados desdobramentos, pelos evanjeguélicos
que atribuem necessariamente à cultura africana à pecha de diabólica e
demoníaca. A violência simbólica fundamentalista, outrora restrita a
ataques verbais e assassinatos de ideias, passou a dar lugar às práticas
concretas de intolerância, inclusive com lapidação de crianças adeptas
de religiões afro-brasileiras134. Se nem os fariseus de antanho ousaram
jogar a primeira pedra, o que dizer dos fundamentalistas apedrejadores
de hoje, que primam por chegar de véspera para não perderem lugar na
fila?
Esboço do cenário brasileiro.
A tentativa de analisar o fenômeno tem muitas possibilidades de
entrada. Seria possível, por exemplo, indicar relações de proveniência
histórica que remontam há cerca de um século. Isso porque, o uso
originário do termo “fundamentalismo” tem suas raízes no apagar das
luzes do século XIX, quando foi gradativamente se constituindo um
segmento específico do protestantismo americano que se afastou da
Teologia Liberal e veio a ser, ao longo do século XX, caracterizado
como “fundamentalista”. Nesse contexto estadunidense, convém
lembrar, o quadro foi sendo pintado aos poucos, em função das
Conferências Bíblicas de Niágara (1883-1897) e, principalmente, em
decorrência da publicação de uma pequena coleção de livros sob o título
“The Fundamentals: A Testimony of the Truth” (1909-1915). A
indicação desses registros, neste tópico do capítulo, porém, não
propugna pelo rastreamento de um eventual “marco original”, mas,
muito pelo contrário, busca apenas delinear linhas e contornos da
construção de um cenário que permita uma análise efetiva da conjuntura.
Maiores detalhamentos, diga se de passagem, podem ser encontrados na
bibliografia que avalia o tema, vasta mesmo em língua portuguesa
(Armstrong, 1994; Boff, 2002; Houtart, 2002; Armstrong, 2009).
O caso é que “The Fundamentals”, evidente inspiração para cunhagem
posterior do neologismo em inglês “fundamentalism”, realmente
forneceu alguns aportes de indução ao movimento. Esse conjunto de
uma dúzia de volumes, com dezenas de ensaios, escritos por vários
autores diferentes, foi publicado trimestralmente com tiragem superior a
três milhões de exemplares e distribuídos gratuitamente, uma vez que os
livros contaram com o financiamento de capitalistas do petróleo. A
coleçãozinha popularizou uma série de ideias que apresentava como os
“fundamentos” da fé cristã, com ênfase principal na leitura literal do
texto bíblico.
Tais ações disseminadoras foram tão expressivas que implicaram, em
meio a outras iniciativas, a criação da Associação Mundial dos
Fundamentos Cristãos, em 1919. Tudo isso levou Curtis Lee Laws
(1868-1946) a usar no jornal batista “Watchman-Examiner”, talvez pela
primeira vez, em 1920, o termo “fundamentalismo” para descrever essa
tendência que ganhara corpo nos anos anteriores (McIntire, 1990). Nesse
primeiro momento, o fundamentalismo se caracterizara por ser um
movimento de contra-ofensiva a uma teologia, predominantemente
européia, que lançava mão de um instrumental histórico-crítico para
estudar a Bíblia.
Uma vertente que deve ser ressaltada, no seio desse movimento de
início de século XX, é o que se caracterizou como dispensacionalismo
pré milenista (depois fragmentado em infinitas derivações e
detalhamentos). Em linhas gerais, as ideias de John Nelson Darby
(1800-1882) foram popularizadas nos Estados Unidos pela publicação
da Bíblia de Scofild (1909), na qual Cyrus Ingerson Scofield (1843-
1921) introduziu notas detalhadas sobre as dispensações da história e os
períodos das profecias que supostamente se cumpririam no futuro
milênio de Cristo, conforme leitura literal de textos apocalípticos. Esse
destaque é necessário porque, com o desgaste da agenda
fundamentalista, no contexto dos anos 1940, só esses pré-milenaristas
ainda se denominavam “fundamentalistas” (Armstrong, 2009), tendo os
demais abandonado tais trincheiras lamacentas para arvorarem
designações como “conservadores” ou “evangelicals” (termo que,
registre-se, não consiste exatamente no que é “evangélico” no Brasil)
As influências desse momento inicial dos fundamentalismos no
cenário brasileiro foram muito diminutas. Uma tendência na
historiografia é identificar Alfredo Borges Teixeira, pela publicação de
um livro em 1921 — Maranata — como “inaugurador” do
Fundamentalismo no Brasil (Nogueira, 2002), mas isso parece impróprio
por uma série de motivos. As igrejas protestantes brasileiras somavam
pequeno número e o efeito maior somente seria sentido a partir dos anos
1970, ocasião em que já existiam desenvolvimentos históricos
significativos no interior dos fundamentalismos (Dreher, 2002). A
Segunda Guerra Mundial, o sionismo, o estabelecimento do Estado de
Israel, a Guerra Fria e as disputas no Oriente Médio promoveram
mudanças expressivas, ocorrendo modificações e incorporações no
conceito do ‘fundamentalismo’ original (de fins do século XIX e início
do século XX).
A investida sobre a política em nome da religião, por exemplo, que
não era muito pregnante no início, é um aspecto central nos movimentos
que ganharam novo impulso após a década de 1970. A “Maioria Moral”,
particularmente, braço político da igreja eletrônica de Jerry Falwell, foi
um ícone desse novo momento que conjugou, por um lado, a
participação ativa na primeira campanha de eleição de Ronald Reagan,
e, por outro, a busca pelo efetivo domínio da mídia (Evans, 1991).
Nos anos 1990, novos contornos conduziram a uma situação onde o
fundamentalismo do século XXI se tornou mais distante do movimento
surgido no século XIX, cuja característica básica fora o debate mais
focado em torno da teologia bíblica. Sem dúvida, embora alguns
segmentos ainda guardem essas marcas mais antigas e já enraizadas,
uma boa parte das atuais linhas mestras do movimento são bem
diferentes do momento inicial. O que se vê nos EUA, hoje em dia, é algo
bem distinto. O programa de ação não é mais tirar o ensino do criticismo
bíblico dos currículos dos seminários, mas, sem meio termos, ocupar a
Casa Branca e dar conta da governança do poder econômico no bojo do
complexo industrial militar.
Investigar a atual configuração do fundamentalismo, portanto, implica
superar algumas abordagens que já ficaram para trás, mas sem deixar de
perceber que a serpente troca de pele, mas continua tão peçonhenta
quanto sempre foi. O veneno concentra a mesma toxidade em todo esse
período. O que pode recorrentemente ser acompanhado no dia a dia da
mídia, justamente porque os jornalistas e articulistas evidenciam o
penetrante impacto sócio-histórico do pensamento fundamentalista na
contemporaneidade.
Como há vários estudos sobre a forma como as práticas discursivas
dos fundamentalismos estadunidenses aportaram em terras tupiniquins
(Castro, 2003; Baptista, 2017), basta dizer que os engendramentos
teóricos articulados nos grandes centros passam a figurar em um quadro
de relações absolutamente distinto ao botar o pé na periferia. Em outras
palavras, o que aconteceu lá e então, não possui as mesmas dimensões
dialógicas do que ocorre aqui e agora. Conforme dito algures, o Brasil
não é para principiantes.
O grande problema de configuração do cenário é que, na Terra de
Vera Cruz, uma igreja fundamentalista é meio viúva Porcina: ela é sem
nunca ter sido. O quadro é meio confuso e contraditório. Não existe a
“Igreja Fundamentalista” (apesar de, como exceção que comprova a
regra, existirem gatos pingados que se autodenominam como tais, como
a Presbiteriana Fundamentalista, por exemplo). Por outro lado, grupos
evangélicos das mais diversas procedências — num espectro que vai da
igreja burguesa de elite até a mais lumpemproletária — são de fato
fundamentalistas, ainda que não sejam intitulados como tal e ainda
rejeitem peremptoriamente o termo (Nogueira, 2002).
No interior do ambiente evangélico brasileiro, o fenômeno dos
fundamentalismos tende a ser considerado, pelos próprios líderes e
pastores, como se fosse um dado periférico e exótico dentro do contexto
eclesiástico. Ninguém se acha fundamentalista (nem racista… óbvio). O
que se constata todavia, é que perspectivas fundamentalistas emergem
como principais vozes dentro do protestantismo nacional, pois trata-se
realmente de um pilar estrutural, embora pintado com o verniz do
negacionismo.
Não é o caso, na configuração de um cenário contextual, de
circunscrever a discussão apenas em uma redoma religiosa. Na
experiência brasileira, fundamentalismos religiosos e políticos são
gêmeos xifópagos, principalmente depois das eleições de 1986, que
visavam a Constituinte, quando vários parlamentares evangélicos foram
eleitos. De fato, a Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988) contou
com 33 deputados auto-referidos como evangélicos, praticamente o
dobro de evangélicos até então eleitos para o parlamento nacional.
Esse aspecto foi amplamente reverberado pela mídia, autora do epíteto
“bancada evangélica”, e chegou a ser referido como a grande novidade
da época, pelo então presidente José Sarney (Melo, 2018). Desde a
legislatura de 1946-1951, a presença de protestantes havia chegando ao
máximo de 17 cadeiras (na legislatura de 1983-1987). Particularmente
entre os pentecostais, o crescimento foi ainda mais espantoso pois dentre
os 33 constituintes evangélicos, 18 tinham origem pentecostal, sendo 14
vinculados à Assembleia de Deus (entre 1946 e 1987, apenas 5
mandatos haviam sido exercidos por pentecostais e nas duas legislaturas
anteriores à Constituinte, os assembleianos haviam contado com apenas
um representante).
Desde então, porém, a coisa toda só piorou. Emendas
fundamentalistas superficiais, inicialmente marcadas pela
obrigatoriedade de a Bíblia ficar sobre a Mesa da Assembleia Nacional
Constituinte, deram lugar a uma agenda mais sombria que, no apoio
célere ao fascismo, fez até Jesus subir numa goiabeira.135 Os
fundamentalistas têm tomado para si a condição de atuar nas esferas
políticas do poder público sob a premissa de promover a verdade de uma
fé dita evangélica. A marca característica dessa dinâmica, entretanto, é
um tipo de fisiologismo no qual se aproximam do poder para obter
benefícios para igrejas, na base do “é dando que se recebe”. Desse
modo, a redução da distância entre os recursos públicos e as
necessidades das igrejas também tem tornado a vida no curral eleitoral
cada vez mais tolerável.
Ao longo das últimas décadas, portanto, os fundamentalistas
brasileiros foram capazes de transformar sua expressividade numérica
em poder político (Baptista, 2017). Por conseguinte, componentes
religiosos e políticos passaram a ser indistintos nos fundamentalismos
evangélicos porque, em última forma, representam a consequência
lógica de um pensamento que alega possuir uma resposta para todas as
questões da vida social (Rocha, 2014). A doutrina religiosa e a causa
política, sem maiores dificuldades, se tornam uma e a mesma coisa.
É fácil antever mecanismos de transposição. No âmbito eclesiástico, o
fundamentalista opera uma gestão autoritária e totalitária do sagrado e
do religioso, na qual as relações entre o líder e o rebanho de fiéis são de
dominação-submissão (Oro, 2013). Os fiéis de um grupo
fundamentalista absorvem do discurso reacionário, sem necessidade de
reflexão e por efeito manada, aquilo que precisam obedecer, observar,
praticar, e fazer. Ao migrar para a causa política, o político
fundamentalista tende a repetir a mesma performance, aduzindo
legitimidade, não pela defesa de ideais democráticos, mas pela suposta
autoridade de líder pautado em trechos de um texto sagrado.
Um exemplo de como isso eventualmente desemboca no racismo
pode ser visto no conhecido fato de o pastor de uma igreja
neopentecostal, que inclusive chegou a ser presidente da Comissão de
Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados do
Brasil, ter declarado publicamente que os africanos são descendentes de
um “ancestral amaldiçoado por Noé” e que sobre a África repousam
maldições como o paganismo, misérias, doenças e a fome136.
Os Fundamentalismos e a questão do racismo.
O delineamento da análise irá buscar em Cornelius Castoriadis (1922-
1997) um referencial para elucidar a questão específica do racismo. Esse
teórico grego por anos radicado na França, aliás, prefere o uso da noção
de “elucidar” no intuito de fugir da inclinação a “explicar”, o que
poderia pressupor a intenção e a possibilidade de se dizer a causa
originária de um processo histórico, coisa que ele afirma não ser
possível.
Castoriadis (1991) usa uma expressão interessante — “imaginário
radical” — a fim de elaborar a ideia de alguma coisa que seria a
condição historicamente implicada em qualquer ação transformadora
que incida sobre aspectos sócio-históricos. O social-histórico, nesse viés,
é o resultado da percepção da sociedade como um evento único e,
portanto, inscrito na história. Para conceber a sociedade como evento
histórico, entretanto, há de se considerar que ela possa trazer algo de
novo, sendo essa instância de produção daquilo que ainda não existe o
que é chamada de imaginário radical (Rodrigues, 1998).
Tal imaginário não representa a imagem de alguma coisa, em moldes
psicanalíticos, como uma espécie de representação de uma realidade,
mas alude ao que seria uma condição/possibilidade de se
conceber/construir e fazer surgir alguma coisa que nunca foi instituída
antes. Assim, buscar pautar-se pelo imaginário radical é acreditar na
perspectiva de superação do já dado, do essencializado, do naturalizado,
do instituído.
A proposta é a de pensar a transformação histórica como criação ex-
nihilo — “do nada”. Mas não “desde nada” ou “com nada”. O ponto de
vista é que não há determinação de causa-efeito na eclosão do novo.
Assim sendo, o que se estabelece é a necessidade de se entender o ser
humano como dotado de autonomia (o que fundamentalismos calvinistas
oportunamente negam) e, portanto, mediante a liberdade de escolhas e
arbítrios, capaz de fazer coisas novas, criar e inventar o radicalmente
novo. Castoriadis (1991) rompe com o pensamento grego-ocidental de
que “ser” é “ser algo de determinado” para denunciar abordagens
epistemológicas marcadas pela ilusão de que o mundo estaria organizado
em função de uma dada racionalidade, o que permitiria, se fosse o caso,
alguém descobrir a lógica dessa organização.
Tendo isso em mente, é preciso chamar atenção para o fato de que o
imaginário produzido pelos fundamentalismos é visceralmente não-
radical. Eles não querem saber de nada novo. Qualquer pronunciamento,
qualquer discurso, só pode ser enunciado com a condição sine qua non
de que seja sempre a mesma coisa a ser dita. O elogio se dá pela
circunstância da repetição do já-dito. O “novo” não está naquilo que se
diz, mas, no máximo, no acontecimento do seu retorno, daquilo que se
repete, que ocorre “de novo” (Castro, 2003).
Logo, existem relações estreitas entre imaginário e ideologia. A ação
ideológica se insinua frente ao imaginário pela necessidade de produzir
uma legitimidade socialmente aceitável. É fundamental que as pessoas
percam a consciência de sua criatividade, de seu poder criador, de sua
capacidade instituinte. Utopias precisam ser prescritas e projetos de
mudança exorcizados. A vontade de Deus é o conformismo social.
Por conta disso, alguns autores chegam a indicar a existência de
controvérsias acaloradas no interior das próprias tradições cristãs.
Habermas (1993) é um dos que identificam debates entre as correntes
fundamentalistas e as progressistas, que refletem sobre o desafio
pluralista das sociedades modernas. Disputas essas que justamente giram
em torno de distintas perspectivas de implantação, ou não, de coisas
novas.
Para ele, a tendência que leva a escolher modelos do passado como
padrões da interpretação do futuro parece ser irresistível. Por isso aponta
para o abandono de todas as certezas de uma ideologia que determina à
história uma marcha forçada por caminhos já previstos. Daí sua
constatação: as teorias não são capazes de transformar o mundo. O que
nós necessitamos é de um pouco mais de práticas solidárias. Sem isso,
não chegaremos a lugar algum e a própria ação permanecerá sem
consistência, e sem consequências.
Assim, Habermas (1993) nos apresenta a instigante questão: “deve-se
prosseguir na linha dos ideais tradicionais, tentando construir um
passado futuro, o futuro que o passado tinha projetado, ou ao invés
disso, apreender simplesmente o futuro em categorias do passado, um
futuro passado?”(p.10). Ao responder ao dilema, ele vê o mundo cheio
de ricas e criativas tensões. Não garante o sucesso do agir responsável
diante das diversas possibilidades, mas indica a necessidade de tentar.
Por isso, traz luz às cavernas fundamentalistas, onde a letargia das
sombras abissais insiste em se mover num passado que emudece o
futuro.
Por conseguinte, como sistema de ideias que se referem ao conjunto
da vida social, é possível enquadrar os fundamentalismos brasileiros na
configuração típica de uma ideologia, pois suas proposições se referem à
realidade, não para transformá-la, mas para mistificá-la, como uma
forma de ilusionismo ou prestidigitação que permite ao fundamentalista
evangélico dizer uma coisa e fazer outra, de modo aparentemente
justificável. Destarte, no bê-a-bá fundamentalista, pregar é escamotear.
Seguindo essa pista, este capítulo procura considerar a relação entre
racismo e os fundamentalismos em termos que não são nem
essencializados, nem essencializantes. Mas, ao contrário, condições
passíveis de superação. Sem dúvida nenhuma, há um racismo estrutural
na sociedade brasileira e nos fundamentalismos que nela comparecem.
Mas o que já foi estruturado de um jeito pode sê-lo, em outro momento
histórico, moldado de outra maneira. Aqui não se concebe um racismo
Gabriela: Eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim. De
fato, o que se procura é a tensão inerente inscrita naquilo que é
instituinte e o que é instituído, no que é a história já feita e a história se
fazendo (Castoriadis, 1991), ou seja, o entendimento do que pode
significar o imaginário radical frente ao elemento social-histórico
imbricado nas expressões dos racismos fundamentalistas.
Sob a ótica do imaginário radical, a análise do racismo
fundamentalista nas igrejas evangélicas reformadas, denominadas
também muitas vezes de muitas outras maneiras, não se resume a fechar
o caixão de corpos putrefatos que por aí walkingdead-perambulam sob
alcunha de puritanos, santos, renovados ou o que quer que seja. Urge
indagar por práticas imaginárias que substituam a soberania do Deus da
supremacia branca e introduzam o novo, o inédito, o não-dado, a
novidade, a boa nova.
Castoriadis (1992) analisa especificamente o racismo no texto de uma
conferência realizada em 1987 e depois publicada como capítulo de
livro. Em sua visão, o racismo diz respeito à aparente incapacidade do
sujeito se constituir como si mesmo sem excluir o outro. E mais, da
aparente incapacidade desse mesmo sujeito excluir o outro sem
desvalorizá-lo, o que resulta, em última instância, em decidir odiá-lo.
Nessa linha, vamos pensar no fundamentalista brasileiro. Diante do
outro, diante da alteridade, existem 3 possibilidades de avaliação:
1) Considero o outro como superior, logo me submeto e há uma
relação de dominação;
2) Considero o outro como igual, logo a relação é igualitária ou de
equidade;
3) Considero o outro como inferior, logo o submeto e há uma relação
de dominação.
O fundamentalista brasileiro, partindo da premissa de que é o dono da
verdade, tende a excluir imediatamente a primeira opção, não havendo
sequer espaço para diálogo e troca de ideias; ou pela arrogância de quem
se acha melhor mesmo e não quer perder tempo, ou pelo medo de quem
é inseguro e teme ceder, consumido pelas dúvidas.
A ideia de ver o outro como igual, o que seria a segunda opção, é bem
rara porque se dará apenas na comunhão com outro fundamentalista.
Contudo, trata-se de uma relação sempre em iminente processo de
rompimento, pois bastará uma fagulha de mínima discordância para tudo
se incendiar.
A opção de considerar o outro como inferior, que é eminentemente
racista, acaba por ser a mais frequentada, com consequentes relações de
dominação. Castoriadis (1992), contudo, indaga: Por que essa suposta
inferioridade do outro acaba por se tornar desprezo, ou pior, ódio e
loucura assassina?
Ha situações históricas em que a vida social sofre processos de
deterioração. Há ocasiões, por exemplo, em que a economia não
apresenta resultados esperados e a qualidade de vida se torna decadente,
o que gera desemprego, caos urbano e cada vez mais fome e miséria.
Com isso, a insatisfação das massas tende a crescer. Nesses casos, é
necessário achar um bode expiatório, um grupo social ou étnico a quem
responsabilizar.
Sociedades complexas já têm seus bodes expiatórios definidos
historicamente. Isso tudo simplifica o processo em termos de algo a ser
naturalizado. Os brâmanes indianos têm os seus, os turcos tinham os
armênios, e por aqui herdeiros da Casa Grande ainda ficam brandindo o
chicote para as aldeias e a senzala. A ciência (há racismos científicos), a
tradição dos costumes e a vontade de Deus (olha aí os fundamentalistas)
geralmente dão o aval para que tudo seja, por fim, legitimado.
Os fundamentalistas racistas precisam do outro-diferente para
responsabilizar e culpar. Não pode ser um outro-igualitário, há de ser o
completamente outro. Eu preciso negar o outro, destruir o outro, que, no
final das contas é o culpado por aquilo que eu passo. Estou
desempregado, sem dinheiro, doente, com problemas, passando
necessidades. Meu ressentimento vai crescendo até explodir: A culpa é
do nordestino que recebe bolsa-família, do negro que estuda por cotas,
do LGBT que é pervertido, da feminista que conseguiu espaço na
sociedade, do meu porteiro que comprou uma televisão maior do que a
minha, do filho do pedreiro que conseguiu ser engenheiro. Isso não pode
ficar assim, eles precisam morrer!
Castoriadis (1992) chega a citar Hannah Arendt para dizer que, para
alguns, o intolerável no racismo é o fato de se odiar alguém pelo que
geralmente esse alguém não é absolutamente responsável como, por
exemplo, o lugar onde nasceu ou sua cor da pele. Tal contingência não é,
no entanto, fortuita. O nazista sabe que o judeu será judeu sempre. O
supremacista branco sabe que o negro jamais deixará de ser negro.
Assim, o que dá suporte ao racismo é o fato de se escorar em
características físicas e étnicas, portanto irreversíveis e constantes. Se o
racismo se dirigisse para algo mutável, a pessoa poderia fazer uma
alteração qualquer e deixar de ser alvo ou objeto da ação racista. Mas
assim, o racista perderia o bode expiatório e como iria lidar com o
ressentimento, com aquilo que ele odeia em si mesmo e projeta no
outro?
Por isso, o racismo não quer a conversão dos outros, ele quer a sua
morte. O Jonas bíblico não queria pregar em Nínive para que os ninivitas
não se convertessem (e aí tudo bem acabar na barriga do grande peixe).
O fundamentalista brasileiro não quer a conversão do pecador, porque
ele é predestinado para a perdição, precisa ser perseguido.
Para o racismo, o outro precisa ser inconvertível.
Para não concluir.
O grande desafio, em toda essa discussão de racismos e
fundamentalismos, é o da alteridade. Para Castoriadis (1991), o que
marca a história é a imprevisibilidade. Muitas análises sociais, inclusive
sobre o racismo estrutural, partem da premissa que o mundo já está,
desde sempre, firmado em alicerces inamovíveis. O que o construto do
imaginário radical permite, no entanto, é a perspectiva engajada de que
as pessoas têm diante de si a possibilidade de arrebentar o cadeado do
porvir, porque o futuro não deve ser visto como algo a ser pensado, mas,
principalmente, um horizonte a ser construído.
Não seria adequado ignorar a dificuldade de transformar convicções,
opiniões, estereótipos e preconceitos nos sentidos, significantes e
significados enraizados na sociedade brasileira. Mas na medida em que a
tarefa de interpretar a tecitura social é parte da tentativa de transformá-
la, a perspectiva de elucidar as relações entre racismos e
fundamentalismos deve se inscrever numa dinâmica mais ampla e
consequente de transformação e emancipação. Segundo Castoriadis
(1991), toda elucidação aqui empreendida é interessada, no sentido
efetivo de que a discussão — no fundo, no fundo - não quis apenas dizer
o que é, pela constatação de imbricações entre racismos e
fundamentalismos. O propósito, muito pelo contrário, foi o de indagar o
imaginário radical, pelo convite a se fazer o que não é (ainda...).
134 Em 14 de junho de 2015, uma menina negra de 11 anos foi apedrejada por evangélicos ao deixar
um culto de candomblé na Penha, zona norte do Rio de Janeiro. A ocorrência foi registrada na 38ª
Delegacia de Polícia (Brás de Pina) como lesão corporal e prática de discriminação religiosa. A avó da
menina relatou: “O que chamou a atenção foi que eles começaram a levantar a Bíblia e a chamar todo
mundo de ‘diabo’, e dizer vai para o inferno, Jesus está voltando”. Disponivel em
http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/06/menina-vitima-de-intolerancia-religiosa-diz-que-
vai-ser-dificil-esquecer-pedrada.html; e em https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-
estado/2015/06/16/menina-e-apedrejada-na-saida-de-culto-de-candomble-no-rio.htm.
135 Fundamentalista que respondia pelo Ministério dos Direitos Humanos virou chacota nacional ao
implementar políticas públicas reacionárias e publicizar, em 2018, uma história folclórica de transes.
Disponivel em https://extra.globo.com/noticias/brasil/futura-ministra-damares-alves-diz-ter-visto-jesus-
em-cima-de-pe-de-goiaba-23300585.html.
136 O pastor e deputado federal Marco Feliciano, eleito inicialmente nas eleições parlamentares de
2010, com mais de 200 mil votos, é um exemplo típico de alguém que já foi acusado de racismo,
homofobia, misogenia e, até, infidelidade partidária. O caso contra os negros é apenas um, de longa
lista. Disponivel em https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2011/03/31/deputado-federal-
diz-no-twitter-que-africanos-descendem-de-ancestral-amaldicoado.htm.
Biografia dos Autores

Alexandre de Carvalho Castro é Doutor em Psicologia Social, autor


de pesquisas e estudos sobre práticas discursivas do fundamentalismo.
Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Relações
Étnico-Raciais (PPRER) do Centro Federal de Educação Tecnológica
Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ).
André Leonardo Chevitarese é Professor Titular do Instituto de
História da UFRJ. Leciona e orienta no Programa de Pós-Graduação em
História Comparada do IH-UFRJ e no Programa de Pós-Graduação em
Arqueologia do MN-UFRJ.
Carlos Gustavo Direito é Juiz do I Tribunal do Júri do Rio de
Janeiro. Professor PUC/RJ. Mestre e Doutor em Direito (UGF-
UVA/RJ).
Carlos Ziller Camenietzki é Doutor em Filosofia pela Universidade
de Paris IV – Sorbonne. Professor de História Moderna do Instituto de
História da UFRJ.
Elcio Sant’Anna é Doutor em Ciências Sociais, mestre em Ciências
da Religião, e teólogo, atualmente tem pesquisado as narrativas de
religiosos como linguagem de configuração social. Professor de Bíblia
hebraica e de Religião e cultura da Amazônia na Faculdade Batista
Equatorial – FATEBE, e participa do Grupo de Pesquisa Religião e
Quadrinhos – ARTEMI.
Elizete da Silva é Professora doutora, titular plena da Universidade
Estadual de Feira de Santana. Coordenadora do Centro de Pesquisas da
Religião. Vice coordenadora do GT História das Religiões da ANPUH.
Ivan Dias da Silva é Doutor em Ciência da Religião (2016) pela
Universidade Federal de Juiz de Fora – MG, com estágio doutoral
sanduíche na Baylor University, Texas - EUA (2014-2015), período em
que também foi pesquisador convidado no Southwestern Baptist
Theological Seminary, Texas - EUA; Diretor do Seminário Teológico
Batista Sul Fluminense (Volta Redonda - RJ).
Jefferson Ramalho é doutor em História (UNICAMP), mestre em
Ciência da Religião pela (PUC-SP), licenciado em História pelo Centro
Universitário Assunção (UNIFAI) e bacharel em Teologia pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie. É professor na graduação em
Pedagogia da Faculdade de Osasco e na pós-graduação em Religião e
Cultura do UNIFAI. Realiza desde 2019 seu pós-doutorado em Ciência
da Religião na PUC-SP.
Juliana Batista Cavalcanti Miranda Tavares é Graduada em
História (Licenciatura e Bacharelado). Mestra em História Comparada
(IH/UFRJ) e atualmente faz doutorado na mesma instituição.
Coordenadora do Laboratório de História das Experiências Religiosas
(LHER-IH/UFRJ). Tem experiência em Estudos de Gênero, História das
Religiões (com ênfase em Cristianismo) e História Antiga.
Lair Amaro dos Santos Faria é Doutor pelo Programa de Pós-
Graduação em História Comparada (PPGHC) do Instituto de História
(IH) na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e possui
graduação (bacharelado e licenciatura) em História pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (2007).
Marcio Simão de Vasconcellos é Doutor em teologia sistemático-
pastoral (PUC-RJ); mestre em teologia sistemático-pastoral (PUC-RJ);
especialista em Ciências da Religião (FATERJ); bacharel em Teologia
(STBSB e UMESP). Membro do grupo de pesquisa Moradas (PUC-RJ).
Rodrigo Farias de Sousa é Professor de História da América –
Séculos XIX e XX do Instituto de História da Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é Bacharel em Teologia
(STBSB/RJ-1998) e Ciências Contábeis (UNA/MG–1994); Pós-
Graduado em História da Filosofia (UGF/RJ-2000); Mestre em Ciência
da Religião (UFJF/MG–2015); Doutorando em Ciência da Religião
(UFJF/MG). Pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ). Professor no
Seminário Teológico Batista Carioca e na Pós-Graduação em Ciência da
Religião da FBMG.
Tayná Louise de Maria é graduada em História pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro e mestranda do Programa de Pós-Graduação
em História Comparada - IH/UFRJ, onde desenvolve pesquisa sobre
fundamentalismo religioso. Pesquisadora do Laboratório de História das
Experiências Religiosas (LHER).
Índice Onomástico
A
Arqueologia,11, 62,82, 221
B
Bíblia,15,35, 48,60, 62, 84, 100, 116, 136, 151, 177, 187,199, 212
C
cristão,9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 18, 19, 20, 21, 22, 25, 27, 28, 29, 31, 32, 34, 35, 47, 48, 49, 57, 63,
65, 66, 67, 69, 76, 77, 84, 89, 94, 95, 97, 104, 105, 106, 107, 108, 111, 112, 113, 118, 120, 124, 131,
133, 136, 138, 141, 143, 147, 148, 152, 153, 157, 158, 161, 162, 165, 175, 176, 177, 179, 182, 196,
198, 201, 202, 209, 210
Cristão,33, 109, 181, 195, 212
D
deus,172
Deus,15, 16, 18, 21, 23, 24, 25, 28, 33, 35, 40, 42, 57, 58, 59, 84, 85, 86, 88, 89, 90, 91, 92, 96, 97, 98,
99, 100, 102, 103, 104, 105, 114, 115, 120, 121, 122, 123, 124, 126, 137, 140, 146, 147, 152, 159,
167, 171, 172, 173, 174, 177, 180, 188, 190, 194, 195, 196, 197, 198, 205, 214, 217, 218, 219
E
Estado,18, 23, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 35, 42, 43, 44, 49, 63, 69, 70, 80, 81, 97, 98, 100, 101, 103, 105,
106, 108, 112, 117, 125, 133, 137, 146, 159, 166, 168, 177, 179, 180, 182, 183, 184, 191, 192, 198,
199, 201, 202, 203, 208
Evangelicalismo,7, 12, 150, 155, 156, 157, 158, 159, 160, 162, 163, 196
F
Fundamentalismo,14, 15, 16, 22, 23, 29, 31, 32, 33, 34, 35, 94, 95, 96, 97, 98, 101, 106, 107, 109, 112,
117, 118, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 129, 131, 132, 133, 134, 135, 137, 138, 139, 140,
141, 143, 144, 145, 147, 148, 151, 152, 153, 154, 155, 156, 158, 159, 162, 163, 164, 165, 168, 169,
170, 172, 174, 175, 176, 177, 178, 179, 181, 182, 183, 184, 185, 186, 187, 188, 190, 192, 193, 194,
196, 197, 198, 199, 200, 201, 202, 207, 208, 212, 213, 214, 215, 216, 217, 218, 220
I
Identidade,21, 27, 35, 79, 100, 106, 133, 139, 145, 146, 148, 151, 158, 183, 192
Igreja,19, 22, 23, 24, 25, 26, 28, 30, 32, 35, 49, 50, 51, 62, 67, 68, 70, 74, 76, 81, 84, 85, 86, 97, 103,
107, 108, 109, 112, 117, 119, 120, 123, 125, 126, 130, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 142, 144,
145, 146, 147, 152, 154, 155, 156, 157, 177, 178, 179, 182, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 192, 193,
194, 195, 196, 199, 205, 210, 212, 213, 214, 215, 218
Iluminismo,6, 10, 16, 36, 37, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 81, 84, 139
Intolerância,7, 8, 9, 12, 33, 99, 108, 123, 130, 135, 147, 148, 200, 201, 202, 203, 204, 205, 207, 208,
211
J
Jesus,7, 18, 25, 51, 67, 89, 102, 103, 106, 118, 120, 121, 122, 123, 127, 136, 138, 143, 145, 151, 152,
163, 190, 214
L
Literatura,7, 11, 65, 70, 75, 76, 84, 87, 90, 91, 92, 94, 164, 192
M
Modernidade,6, 19, 20, 24, 27, 29, 62, 63, 81, 83, 84, 85, 86, 94, 95, 96, 101, 111, 121, 129, 134, 139,
145, 151, 156, 169, 172, 175
O
Ortodoxia,7, 15, 95, 97, 107, 110, 117, 119, 120, 121, 123, 125, 134, 172, 187, 191, 195, 199
R
Racismo,12, 27, 198, 210, 215, 217, 218, 219, 220
Resistência,7, 84, 90, 91, 105, 108, 115, 116, 117, 118, 125, 126, 129, 131, 145, 172
S
Scopes,6, 11, 30, 31, 100, 111, 112, 117, 137, 138, 163, 194
T
Teologia,7, 9, 11, 18, 19, 20, 25, 26, 34, 58, 84, 85, 86, 90, 92, 95, 96, 97, 99, 101, 102, 103, 106, 108,
109, 116, 118, 120, 121, 122, 125, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 142, 144, 146, 152, 153, 154, 155,
173, 176, 179, 180, 187, 189, 190, 191, 192, 195, 196, 198
U
Universidade,11, 30, 51, 71, 72, 109, 112, 135, 151, 158
Bibliografia

Documentos:
BALZA, G. Do UOL Notícias, Em São Paulo 31/03/2011
13h37Atualizada em 01/03/2013 17h19 Deputado federal diz no Twitter
que “africanos descendem de ancestral amaldiçoado”...
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2011/03/
31/deputado-federal-diz-no-twitter-que-africanos-descendem-de-
ancestral-amaldico ado.htm. Acessado em 15/01/2020.
BALZA, G. UOL Notícias, Em São Paulo 31/03/2011 13h37Atualizada
em 01/03/2013 17h19 Deputado federal diz no Twitter que “africanos
descendem de ancestral
amaldiçoado”...https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-
noticias/2011/03/ 31/deputado-federal-diz-no-twitter-que-africanos-
descendem-de-ancestral-amaldico ado.htm. Acessado em 15/01/2020.
BALZA, G. UOL Notícias, Em São Paulo 31/03/2011 13h37Atualizada
em 01/03/2013 17h19 Deputado federal diz no Twitter que “africanos
descendem de ancestral
amaldiçoado”...https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-
noticias/2011/03/ 31/deputado-federal-diz-no-twitter-que-africanos-
descendem-de-ancestral-amaldico ado.htm. Acessado em 15/01/2020.
Bíblia. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1999.
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Table of Contents
Capitulo-1
Capitulo-7

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