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Atos De

Violência
A PESTE BUBÔNICA

I
APRESENTADOR – Triste, olhar perdido na paisagem, esse homem já não
sabe o que fazer da sua vida. (Ao homem) Posso ajudar?

HOMEM – Ninguém pode me ajudar.

APRESENTADOR – O que aconteceu? Morte na família?

HOMEM – Antes fosse.

JORNALEIRO – Peste bubônica! Peste bubônica na África do Norte. Centenas


de pessoas já morreram! Peste bubônica!

HOMEM – Foi isso o que aconteceu. Sou o responsável. A culpa é minha.


Minha!

CORO – Competir, competir é preciso


Para a vida ter valor
Tudo o mais não importa,
Saiam da frente homens fracos
Porque serão atropelados.
Por aqueles mais hábeis e fortes
Cujo único objetivo é competir.
Competir até morrer!

HOMEM – Ouvi isso a minha vida inteira!

PROFESSOR (A) – (Discursando) Formandos, hoje é um grande dia. Um belo


futuro vos espera! Acreditem em vosso talento, afiem vossa inteligência.
Administrar é tudo nesse mundo desorganizado. A vitória é tudo para vos, que
ides conquistar o mundo, enfrentando tempestades, desafios, invejas. Nada
deverá desvia-los do caminho justo. Dois únicos! Sois homens do vosso tempo.
Destemidos, corajosos, sem medo dos inimigos que farão o impossível para
impedir que alcancem o topo da montanha. Vitória! Vitória ainda e sempre.

ALUNOS – Ave César! Vitória, vitória ainda e sempre!

II
MULHER – Conseguiu o emprego?

HOMEM – Sim. Vamos comemorar. Hoje é um grande dia.

MULHER – Querido, estou tão feliz. Seu esforço valeu a pena.


HOMEM – Vou administrar o setor de exportação de carne. Centenas de
operários estarão sob minhas ordens. Uma oportunidade de ouro, que não
deixarei escapar.

MULHER – Poderemos mudar para um bairro melhor. Meu sonho é os Jardins!

HOMEM – Primeiro: um carro novo. Vermelho, reluzente, de causar inveja.

MULHER – Vou adorar andar num carro vermelho. Minha família nem vai
acreditar.

HOMEM – Vamos brindar! (Bebem) Ao sucesso!

MULHER – Ao sucesso!

CORO – Competir, competir é preciso


Para a vida ter valor.

III
APRESENTADOR – Um dia ele foi chamado para uma reunião. Foi ali que tudo
começou.

PATRÃO 1 – O senhor se deu bem no setor de exportação. Parabéns!

PATRÃO 2 – Vamos direto ao assunto. Não podemos perder tempo.

PATRÃO 1 – Ok, Ok, bem... (Pigarreia), nós confiamos no senhor e...

PATRÃO 2 – Deixe que eu falo. É o seguinte: a carne bovina anda muito cara.
Nossas exportações caíram. Precisamos de uma solução.

HOMEM – Solução?

CORO – (Como um sussurro) Solução

PATRÃO 1 – Bem... O senhor é inteligente, combativo...

PATRÃO 2 – Deixe que eu falo. Resumo: precisamos exportar carne mais


barata. Entendeu?

HOMEM – Claro, precisamos baratear os custos.

TODOS – Aplausos.

PATRÃO 1 – Bravo! É isso!

PATRÃO 2 – O senhor deve conseguir carne que custe menos, bem menos...

PATRÃO 1 – Aquela gente come qualquer coisa!


HOMEM – Mas onde conseguir carne que custe menos e de qualidade. O
mercado está inflacionado.

PATRÕES – Por isso o chamamos! A solução esta em suas mãos.

HOMEM – Mas qual carne? Onde encontrar?

PATRÕES – Isso é o problema seu! Esqueça a qualidade. Basta que seja


carne. Aquela gente come qualquer coisa!

IV
MULHER – Você está bem?

HOMEM – Tenho que achar uma solução. (Enquanto anda vai repetindo a frase)

CORO – (Como um sussurro) Solução.

MULHER – Querido, o que aconteceu? Assim você me assusta.

HOMEM – Posso perder meu emprego.

MULHER – Impossível. Não brinque. Temos dívidas: mal começamos a pagar


o apartamento; O carro vermelho custou uma fortuna (eu disse pra você
comprar um mais barato!); já demos entrada para comprar a casa na praia; os
vestidos que mandei confeccionar com a Madame Rosita vão custar uma
pequena fortuna. Planejamos viajar para Miami; o aniversário... Perder o
emprego! Uma loucura!

HOMEM – Cala a boca, pelo amor de Deus! Assim não consigo pensar. Fecha
a matraca.

MULHER – (Chorando) Você nunca falou comigo assim antes.

HOMEM – Tenho que achar uma solução.

CORO – Competir, competir é preciso


Para a vida ter valor.

HOMEM – (Grita) Achei! Achei a solução!

PATRÕES – Aquela gente come qualquer coisa.

APRESENTADOR – É... Ele tinha encontrado a solução!

HOMEM – Achei! Achei a solução!

PATRÕES – Eureka! E qual é?

HOMEM – Rato. Podemos exportar carne de rato.


PATRÃO 1 – Bravo!

TODOS – (Aplausos)

PATRÃO 2 – Perfeito!

PATRÃO 1 – Isso merece um brinde!

PATRÃO 2 – Um aumento de salário!

PATRÕES – Salvamos a pátria. Ave César!

HOMEM – Carne de rato, bem preparada, enlatada com rigor, com gosto de
camarão, para ninguém botar defeito!

PATRÕES E HOMEM – Rato, rato é a grande solução.


Rato, rato é a grande solução.
Dos grandes, de carne macia.
Suave como licor de cacau.
Saborosa como um
perú. Que venham os
ratos!

HOMEM – (Grita) Ainda tenho o meu emprego.

(Entram os caçadores de ratos. Vão abatendo milhares deles)

CAÇADORES – Vem cá ratinho


Ratinho do coração.
Se tu te pego,
Arranco o seu rabão,
E arrebento com prazer
Seu cabeção.
Vem cá ratinho
Ratinho do coração!

PATRÕES – Vitória. Exportamos a carne. Recebemos felicitações por tamanha


iguaria. E eles querem mais. Muito mais!

HOMEM – Ainda tenho o meu emprego!

(África. Tambores. Um multidão come carne e vai morrendo como moscas. Uns
sobre os outros, gemem, estertoram, antes de morrer.)

CORO – (Barulho de insetos.)

VI
JORNALEIRO – Peste bubônica! Peste bubônica! Carne contaminada mata
centenas de pessoas. Peste bubônica!
PATRÃO 1 – Que culpa temos nós?

PATRÃO 2 – Era um homem de confiança.

PATRÃO 1 – Jamais pensamos que aquilo fosse... Carne... Carne de rato!

PATRÕES – Que nojo! Pobres criaturas! (Ajoelham e rezam)

JUIZ – Essa corte de justiça não vê razão para uma condenação. Esses
senhores sempre contribuíram para o desenvolvimento da nação, empregando
milhares de operários, usando a mais avançada tecnologia para a melhores de
seus produtos. Foram enganados pela sua boa fé num indivíduo, esses sim,
inescrupuloso, vil, ganancioso, que para garantir o seu emprego, não hesitou
em mandar carne de rato para os nossos pobres irmãos da África do Norte.
(Bate o martelo) Sessão encerrada!

MULHER – (Aos jornalistas) Já dei entrada no pedido de separação. Jamais


conseguiria continuar vivendo ao lado desse... Desse crápula. (Chora)

CORO – Matança de ratos é condenada pelos ambientalistas!

JORNALEIRO – Peste bubônica! Peste...

HOMEM – Chega! Chega! Eu sou culpado. O único culpado!

APRESENTADOR – E lá vai nosso homem correndo na multidão, as pessoas


se afastando com medo ao vê-lo gritar como louco que é culpado. Culpado!
Culpado!

AS DOMÉSTICAS
DASDÔ – Tu demorou.

GILZI – (Bem cansada) Subi a pé, o élevador ta enguiçado. Vinti andares estou
morta.

DASDÔ – Tu é nova, mulher. Imagine, eu. Quarentona e cheia de varizes.

GILZI – Oh, lasqueira será que to fincando doenti? (Olhando para o público)

DASDÔ – Doente nada. Deixa de besteira. Não da pra ficar doente. Isola. (bate
na madeira 3 vezes)Tu fez o que te pedi?

GILZI – (Passa um pacote) Fiz sim, ta tudo aqui, vô tomar um banho. (Sai
tirando o sapato e vai para a cochia)

DASDÔ – (Enquanto examina o pacote) Não temos água. Só amanhã cedo.

GILZI – Oxxi, to toda suada. (Volta com um pano secando o pescoço)


DASDÔ – Mas só tem porcaria aqui dentro, Gilzi. Sua patroa é mais pobre que
a gente. Não tinha nada melhor, não?

GILZI – Olha direito. Tem coisa de valor ai dentro. (Apontando)

DASDÔ – Só tem um colar. Feio! Acho que não vale nada.

GILZI – (Puxa o colar da mão de Dasdô e vai para a frente do palco falando
como se estivesse se gabando) Isso é coisa de genti fina. São perolas. Dona
Edite só usa quando vai a algum lugar granfino. Prá mostrar para as amigas.
Se orgulha dizendo que é um colar que tem cem anos!

DASDÔ – Cem anos?!

GILZI – Vou cortar o fio. A gente dividi as bolinhas. (Pega a tesoura e corta o
fio)

DASDÔ – Boa idéia! Cem anos, quem diria.

GILZI – Vai ver dá pra fazer um colar prá mim e oto prá tu.(Enquanto corta o fio)

DASDÔ – (Enquanto conta) Chamar atenção dos outros? Temos que passar
prá frente. Dinheiro, dinheiro para as passagens. A gente nunca mais volta.

GILZI – Só isso? Tu contou direito?(Apontando, grosseira, brava)

DASDÔ – Que é isso, menina? Acha que estou te roubando?

GILZI – Deixa ver com quantas tu ficou. Mostra.

DASDÔ – Não gosto de ser chamada de ladrona.

GILZI – Então, mostra?

DASDÔ – Alguma vez te roubei, mexi nas suas coisas, deu falta de algo. Fala,
fala sua merdinha.

GILZI – Deixa de conversa, Dasdô. Quero ver com quantas bolinhas tu ficou. É
só mostrar.

DASDÔ – Não vou mostrar coisa nenhuma. Acredite em mim, sou sua miga ou
não? Minha palavra basta.

GILZI – Não confio em ninguém.

DASDÔ – Fui eu que te dei a idéia. Por tu, nunca faria nada. Cagando de medo
daquela vagabunda gorda, mimando os filhos dela como se fosse seus, dando
o rabo sem ganhar um tostão extra. Tu devia cuspir na comida deles, deixar os
meninos morrerem de fome, cortar o pau daquele, trouxa. Tu não fez nada. Só
obedecendo, obedecendo.
GILZI – (Gritando) Mostre o que tu roubou, sua puta velha. Senão te uro com
essa tesoura.

DASDÔ – Vai matar a pessoa errada.

GILZI – Cala a boca! Ladra! Ladra!

DASDÔ – Não vou mostrar nada, sua burra. Enfia a tesoura, enfia!

GILZI – (Avança, a outra não se defende, enfia a tesoura na

barriga) DASDÔ – (Cai e abre a mão, de onde caem as bolinhas).

GILZI – (Contando) Tem dozi. Dozi. Ela contou certo. (Grita) Dasdô! Tu não
mentiu. Não roubou. (Pegando a cabeça de Dasdô) Ele é todo seu! Todo!
Fique com ele. É seu primeiro colar de pérolas, Dasdô. O primeiro! (Chora
muito até mesmo após o termino da fala fica chorando encima do corpo da
amiga)

JANTAR
(Judite com a vassoura na mão, limpa a cozinha cantando e dançando. Ao
mesmo tempo cuida das panelas que estão no fogão, experimentando,
acrescentando mais água, mais sal, mais algum tempero etc... Entra dona
Margô.)

MARGÔ – Judite, o que é isso, pelo amor de Deus! Não vá deixar queimar a
comida, por favor! Seria um horror!

JUDITE – Não, dona Margô, pode deixa; Credo, onde já se viu!

MARGÔ – Ora, você desleixada como é, seria bem capaz de estragar todo o
meu jantar. Só de pensar, já me sobe o sangue à cabeça. Que horror! Ainda
mais hoje, que vêm o Ronaldinho Dantas, o Miguel Azinabre, a Lúcia Mesquita,
a Rovena Junqueira... Nem quero imaginar o que o meu marido diria se
sentisse algum gosto estranho na vitela. Pelo amor de Deus, Judite, basta de
problemas que eu já tenho, não complique ainda mais a minha vida, por favor!

JUDITE – Não, dona Margô, pode deixa, não se preocupa não, (tímida) Vô fazê
tudo certinho. (Sem graça, apanha o lixo no chão com a pazinha e o coloca na
lixeira) Longe de mim dá mais problema pra senhora. Já chega os que a
senhora tem, num é verdade? (Ri. Dona Margô fica séria, quase triste. Ela para
de rir e continua a arrumar o lixo. Em seguida, torna a cuidar da comida).

MARGÔ – (Grita) Ahhh!! O que é isso, meu Deus!? Não ponha essa mão perto
da vitela! Quantas vezes preciso te dizer para lavar bem as mãoes depois de
recolher o lixo. Isso é um crime. Se a Lúcia Mesquita visse uma coisa assim
cairia dura. Que horror!
JUDITE – Não tem nada não, dona Margô. (Sem graça) Esse lixo ai é limpo...
(Lavando a mão e enxugando no avental) Sabe como é né? As veis a gente
esquece, né? Não leva a mal, não, dona Margô, a gente ta tão acostumado
com essas coisas, que as veis escapa, né?

MARGÔ – (Com cara de choro) Mas... Judite...

JUDITE – (Riso encorajador) Num esquenta não, dona Margô, a comida hoje
vai fica de arrasá. Pode deixa por minha conta.

MARGÔ – Espero, minha filha, espero mesmo. (Olha absorta os móveis


enquanto Judite trabalha a toda velocidade) Ai, meus Deus, estou tão
preocupada!

JUDITE – (Trabalhando com rapidez) Num se preocupa não, dona Margô! A


vida é assim mesmo...

MARGÔ – Ai, Judite, se você soubesse o que é minha vida... Tenho de cuidar
de tudo sozinha, absolutamente sozinha. O Teixeira, você já conhece, não quer
saber de nada, deixa tudo por minha conta, e ai de mim se sair algo errado.
(Suspirando) Isso às vezes me deixa tão arrasada, tão insegura...

JUDITE – (Sem parar de trabalhar) Num esquenta não, dona Margô. Tem que
tê força (Lavando um prato) Pra aguentar essa vida. (Enxugando-o) A senhora
vê só: eu, meu marido e meus fio lá no barrado...

MARGÔ – É, Judite às vezes tenho vontade de sumir... de tomar uma avião


para a Europa, largar tudo nas mãos do Teixeira e não voltar nunca mais
(Irritada) Ele que se vire! Só para ele aprender (Imagina e começa a rir, fica
séria novamente.) Mas não tenho coragem... Me sinto tão frágil, tão carente,
tão vulnerável... Não sei... Mas deixe estar... (Com firmeza) O meu dia chegará!

JUDITE – (Fritando os temperos) É craro, dona Margô. Tem que tê Fé! O


mundo é assim mesmo, a Sra. Vê, né? (Mexendo os temperos.) Eu, meu
marido e os meus fios lá no barrado...

MARGÔ – Ai Judite, quem dera que você tivesse razão. Me dá um copo


d’água! Para pessoas como você é tudo tão simples, tudo tão fácil, tudo tão
espontâneo, a vida flui tão naturalmente... Não sei... Ainda ontem, o meu
analista me disse para confiar mais em mim mesma, dar razão ao meu
verdadeiro Eu... Mas para mim é tão fácil e acabo sofrendo tanto...

JUDITE – (Picando a batata e a cenoura) Precisa tê calma, dona Margô! As


coisas se resolve. O ruim mesmo é a doença... O resto... O que num pode é
esquentá a cabeça. A sra. Vê, né? Eu, meu marido e meus fios la no barrado
tamo praticamente passando...

MARGÔ – É que você tem uma outra maneira de encarar a vida. Quem dera
eu fosse como você! Para você, parece que nada tem mistério! É tudo tão
claro! É...
Enfim! Já são seis horas... (Um pouco agitada) Sirva primeiro os camarões com
o molho de vinho chanté e só depois a vitela e as batatas da Índia com creme
de aspargos. Deixe as lagostas para o final, quero fazer uma surpresa (Sorri)...
Faça o arranjo de frutas no centro da mesa. (Sorri imaginando a cena) a
sobremesa pode deixar que a empregada da Carona Muniz vai trazer.
Capriche, Judite: esse jantar é muito importante para mim!

JUDITE – (Colando uma enorme bandeja no forno) Pode deixa, dona Margô,
até agora (sorri) eu nunca falei com a senhora, né?

MARGÔ – Bem, tenho mais o que fazer... (Vira-se para sair)

JUDITE – Ah! Dona Margô.... Eu queria pedi um favô pra senhora... Sabe como
é, né? (Ligando o forno). As veis, a gente fica apertado, né? (Sorri). Num
consegue pagá as conta da venda...

MARGÔ – Não estou entendendo...

JUDITE – Não, sabe como é, num tô querendo abusá da sra sei que a senhora
tá cheia de preocupação, mas pe que o Sidni, o meu marido, tá desempregado
já fais seis meis, e agente tá sem paga o aluguel, conta de luz, essas coisa...
(Apanhando algo na geladeira)

MARGÔ – Por favor, Judite, seja clara. Você sabe que não gosto de meias
palavras.

JUDITE – Pois é, né? Dona Margô. A senhora sabe como é... Tá fartando tudo
pra gente... Ai eu pensei que a senhora talvez pudesse, se não fizé farta, né?
Me aumentá um pouquinho...

MARGÔ – Mais um adiantamento?

JUDITE – É que eu, meu marido e meus fio lá no barraco...

MARGÔ – Pelo amor de Deus, Judite, não me complique a vida. Justamente


agora com todos esses problemas.

JUDITE – (Batendo algo no liquidificador). Eu sei, dona Margô... Mais é que eu,
meu marido e os meus fio lá no barraco...

MARGÔ – Vamos com calma, Judite. Tudo se resolve! É só uma questão de


tempo. Eu só não posso te dar tudo. Entenda! Eu mesma não tenho nada. No
meu nome mesmo pe só esta casa e o automóvel, mais nadam entendeu?
Mais nada!

JUDITE – (Cortando cebolas). Não, dona Margô, eu sei. Num leva a mal, não...
Mais nois tudo la no barraco tamo vivendo cum qui Deus dá...
MARGÔ – Esta bem, Judite. Me dê uma trégua. Combinado? Para que eu
possa respirar e organizar melhor a minha vida. Uma coisa de cada vez, senão
enlouqueço. Do jeito que as coisas estão, ainda acabo fazendo uma besteira.

JUDITE – (Abrindo uma lata). Calma, dona Margô! Eu só tava querendo...

MARGÔ – Só quero que você não deixe queimar a vitela, pelo amor de Deus!
Seria o fim!

JUDITE – (Colocando a lata no lixo e amarrando o saquinho). Pode deixa,


dona Margô, esse jantá vai sê o maió sucesso! (Sorri)

MARGÔ – Ah, Judite, você é ótima!!! (Sorri)

FUGA PARA O EXTERIOR


Música heavy metal. Rapaz cabeludo dança acompanhando a música. Uma
estante repleta de CDs, aparelhos e caixas de som. Uma caixa de som à
esquerda do palco.

MÃE – (Grita fora do palco) Pelo amor de Deus! Abaixe esse volume! (Moça
dança e toca uma guitarra imaginária).

MÃE – (Entrando) Nice, pelo amor de Deus, abaixa o volume! Esse barulho me
deixa nervosa. (Vai até a estante, procura o botão correto e abaixa o volume)
Puxa vida, até que enfim! (Aliviada)

NICE – Porra mãe, lá vem você de novo. Tô a fim de curtir um som! Qual é?

MÃE – (Terna) Nice, já são duas horas da tarde. Você acordou as onze e esta
ouvindo música até agora, Nice. Não tomou café, nem almoçou. E a sua saúde,
menina?

NICE – Nada a ver mãe! A Hora que eu tiver com fome, eu como. Pô, você fica
me tratando como criança. Qual é?! Tô a fim de ter a minha vida, curtir o meu
som, me deixa!

MÃE – Não é bem assim, Nice! Nem à escola você está indo...

NICE – (Cortando-a) Como não?! Não faltei nenhum dia esta semana!

MÃE – Não minta Nice! Estive lá e falei com a diretora.

NICE – Que papo é esse? Você sabe que eu não gosto que você vá lá!

MÃE – Mas eu sou a sua mãe, Nice! Fico preocupada de ver você assim, neste
estado, sem ter o que fazer...

NICE – Como não?! Eu não estudei inglês ontem? Vai dizer que não viu
também?
MÃE – Você ficou traduzindo essas músicas horríveis, mais nada! (Pausa;
Compreensiva) Eu sei que você esta sentindo minha filha, mas você já tem
vinte anos, você não acha melhor terminar o 2° grau, entrar num cursinho,
depois quem sabe, até mesmo numa faculdade, senão você não vai ter
profissão nenhuma. Já pensou? Você precisa ganhar o seu próprio dinheiro...

NICE – (Cortando-a) Nada a ver! Lá vem você com esse papo de dinheiro de
novo! Por quê? O papai não esta querendo mais me dar grana?

MÃE – Mas minha filha, você precisa trabalhar! Todo mundo precisa trabalhar,
senão o país não progride. Não seja assim, Nice! (Sofrendo) Ah! Nice! Você me
preocupa tanto! Não sei mais o que fazer. Você pensa que eu não sofro com
tudo isso? O seu pai não quer nem saber; Larga tudo na minha mão. (Chorosa)
Eu é que tenho que ir atrás de você na escola, na casa de seus amiguinhos...

NICE – Ah! Não acredito! Não vai dizer que anda me seguindo também? Qual
é! Sai dessa, mãe! Não tem nada a ver! Fico puta com isso! Eu estou na minha,
entendeu? É só aporrinhação na minha orelha, pô! Tô de saco cheio!

MÃE – E como você acha que uma mãe se sente ao ver a sua filha metida...
(hesita) Com droga, heim? (Grita) Heim?

NICE – (Irônica) Mamãe, você esta alucinada! Sai dessa!

MÃE – Não minta para mim, Nice!

NICE– Você é louca! Que absurdo! Isso é viagem sua!

MÃE – Eu vou mostrar para o seu pai, Nice!

NICE – (Surpresa) Mostrar o quê?

MÃE – (Tira do bolso um imenso cigarro) Isso aqui!!!

NICE – (Arranca da mão dela) Onde você achou isso? Que porra é essa Vai
ficar revistando as minhas coisas agora é? Quantas vezes já te falei que não
gosto que mexa nas minhas coisas?! (Vai até a estante e aumenta o som do
gravador)

MÃE – (Abaixando o som) Nice, me escuta!

NICE – Escutar o quê? Você só fala abobrinha!

MÃE – Não fale assim com a sua mãe, Nice! (Cambaleando) Sempre dei tudo
o que você quis! Sempre escondi de seu pai todas as besteiras que você
andou fazendo, mas agora não dá ais para aceitar. Você tem que entender
Nice! A vida não é assim. E para completar mais essa! Minha filha, uma
drogada! (Chora) Ai, meu Deus! (Autoritária) Mas amanhã cedo, nós vamos
juntas ao consultório do Dr. Felipe. Vou marcar uma consulta para você agora
mesmo.
NICE – (Violenta) Dr. Felipe, porra nenhuma!

MÃE – Nice, que horror! Isso é jeito de falar com a sua mãe. Você quer o quê,
afinal de contas, quer me matar? Quer me deixar doente? (Mais terna) Nice,
nós gostamos tanto de você. Não faça isso conosco. (Abraça-a) Minha filha,
escute a sua mãe. Conta tudo pra mamãe, conta! Porque você esta se
destruindo assim? Por que esse desânimo com a vida, minha filha?

NICE – É o seguinte: Tô afim de sair fora!

MÃE – O quê? (Chora)

NICE – Sei la, o Camilinho esta a fim de ir para os Estados Unidos. De repente
eu vou nessa também.

MÃE – Mas... Mas fazer o quê lá, minha filha?

NICE – Sei lá! Tô muito a fim de viajar em música. Eu tive pensando e acho
que o meu negócio é música mesmo.

MÃE – Você não acha melhor fazer uma faculdade primeiro, Nice? Pense bem:
Você não sabe fazer nada, nem falar inglês...

NICE – (Cortando-o) Nada a ver! A gente estando lá aprende rapidinho. Já


andei vendo uns lances aí, de repente a coisa rola numa boa. O Camilinho...

MÃE – O Camilinho é outro também! Tenho certeza que ele também esta
metido nisso! É o cúmulo! A hora que os pais dele souberem, no mínimo vão
mandar interna-lo... Mas, pelo amor de Deus, Nice, nunca mais se aproxime
das drogas, por favor! Drogas, nunca mais! Você promete?

NICE – Tá limpo! Foi bobeira minha. Vacilei. (Suave) Mas e aí? Dá pra rolar a
grana da passagem e da estadia? O resto eu me viro numa boa. Tem uma
figura lá que é amiga do Camilinho e vai dar a maior força pra gente.

MÃE – Mas você vai ficar onde, Nice? Qual o endereço? A cidade? Eu preciso
saber. Não é bem assim, Nice.

NICE – Isso não tem nada a ver. É uma cidade lá nos Estados Unidos. O cara
é gente fina. Não vai ter grilo não! Tá tudo em cima!

MÃE – E você vai parar outra vez de estudar? O seu pai me mata! Pelo amor
de Deus, Nice, você precisa pensar no seu futuro, no dia de amanhã. Você vai
viver de quê? (Terna) A vida não é assim, Nice! Tira pelo menos o diploma do
2º grau. Já é alguma coisa! Só falta um ano e meio. Depois você decide o que
fazer da sua vida. Se vai fazer um cursinho ou quem sabe mesmo ir para os
Estados Unidos. O que você, heim, minha filha? Não seria melhor?
NICE – Velho é foda mesmo! Aqui tá por fora, mãe! Estou precisando sair,
sacar outros lances. Aqui as coisas não rolam; É só encheção de saco! Pô,
você é muito cabeça dura! Não entende nada!

MÃE – Nice, fique! Já pensou se todo brasileiro pensasse assim? Em sair do


país? Já imaginou as consequências disso, Nice? Eu vou falar com o seu pai.
Vamos ver se a gente dá um jeito nisso, esta bem? Podemos comprar uma
aparelhagem nova pra você. Colocá-la na casa de praia, você pode ir para lá
todo final de semana e ensaiar. O que você acha? Não é uma boa idéia? (Foco
nas duas à esquerda)

NICE – Tipo assim... De repente pode até ser uma boa...

MÃE – Fique minha filha! Aqui é melhor que os Estados Unidos. Nós temos
tudo aqui. Vamos, fique e mostre os seus talentos aqui mesmo! Fique, Nice!

NICE – (Indecisa) Sei lá! Vamos ver... (Arrota alto. Congelam)

INFLAMAÇÃO I
APRESENTADOR – O nome: Dalva. Profissão: Doméstica. Trabalha do outro
lado da cidade. Fazendo frio ou sol, ela trabalha. Naquele dia, chegou em casa
sentindo-se diferente.

FILHA 1 – Tudo bem mãe?

FILHA 2 – Algum problema na casa da Dona Margô?

MÃE – Não é nada. Canseira. É isso.

FILHA 1 – Fala a verdade, mãe.

FILHA 2 – A senhora está muito pálida.

MÃE – Dor. Estou sentindo uma dor aqui (aponta a bochecha). Começou
devagarzinho. Agora, está começando a aumentar. Vou tomar um comprimido.
Amanhã já estou bem.

FILHA 1 – (Observando) Parece um pouco inchado.

FILHA 2 – Vou preparar água, vinagre e sal.

MÃE – Não se incomode. Amanhã, já estarei melhor.

APRESENTADOR – No dia seguinte, saiu para trabalhar. E então...


MÃE – (Na rua) Deus me proteja! A dor aumentou. Dói muito. Não consigo
andar direito. Tudo embaralhado na minha frente. Alguém me ajuda, que a dor
vai me matar.

TRANSEUNTE 1 – O que aconteceu?

TRANSEUNTE 2 – Ela está passando mal.

TRANSEUNTE 3 – Vai ver está de estômago vazio!

TRANSEUNTE 4 – Chamem a ambulância!

MÃE – (Se recuperando) Nada de ambulância. Já estou melhor. Foi uma


tontura. Uma tontura passageira. Passou. Tenho que ir trabalhar. Já estou
atrasada. Dona Margô não vai gostar. Hoje é dia de feira.

DONA MARGÔ – (Entrando) Tudo, tudo bem. Vê se amanhã sai mais cedo de
casa. A lista da feira está sobre a mesa. (Olhando melhor). Que é isso no seu
rosto? Parece inchado.

MÃE – Inchado? Que nada! É impressão da senhora. Estou bem. Nunca me


senti melhor. Deixa eu ir andando senão me atraso mais.

II
APRESENTADOR – Depois de passar a noite gemendo, baixinho para não
assustar as filhas, no dia seguinte ela tentou, mas não conseguiu sair da cama.

FILHA 1 – Mãe levanta. A senhora vai se atrasar de novo.

FILHA 2 – Dona Margô não vai gostar.

FILHA 1 – Ela manda a senhora embora.

FILHA 2 – Isso não pode acontecer, mãe. Não pode.

FILHA 1 – Estou desempregada.

FILHA 2 – E eu não posso trabalhar.

FILHA 1 – As portas estão fechadas.

FILHA 2 – Por mais que se bata,

FILHA 1 – Elas continuam fechadas.

FILHA 2 – Mãe, tenha coragem,

FILHA 1 – E levanta da cama.

FILHA 2 – Pois quem cedo madruga,


TODOS – Deus ajuda!

MÃE – Estou querendo levantar, filhas. A dor rouba todas as minhas forças. Me
ajudem.

FILHAS – (Ajudam a mãe a se levantar, a se vestir etc.) Assim, mãe. Coragem!


Um pouco mais de esforço. Assim. Isso.

MÃE – Meu rosto parece inchado, enorme. Maior que todo meu corpo.

FILHA 1 – Bobagem, mãe.

FILHA 2 – É impressão. Tá tudo bem!

APRESENTADOR – Há duras penas ela saiu de casa. Andava lenta, quase


parando. Ao passar por uma vitrine ela soltou um grito: Seu rosto estava
enorme e desfigurado.

MÃE – Não posso ir trabalhar assim. Tenho que procurar ajuda (cai).

TRANSEUNTE 1 – Uma ambulância. Chamem uma ambulância.

III (No Hospital)


MÉDICO – Isso não é nada. É só uma inflamação. Tome este remédio. Assim
que a dor passar, procure um dentista. É coisa à toa!

MÃE – Mas doutor, meu rosto está enorme. E preciso trabalhar. Desse jeito
não dá.

MÉDICO – Olha aqui, minha senhora! Deixaram a senhora entrar primeiro por
que parecia urgente. Mas não é, entendeu? Tem gente morrendo na fila. Aqui
está a receita e passar bem. Enfermeira, o próximo!

DONA MARGÔ – (Entrando) Se ela não vier hoje, está despedida. Despedida!

BALCONISTA – O remédio custa cem reais!

MÃE – Cem reais!

DENTISTA – Arrancar o seu dente? Nesse estado? A senhora enlouqueceu.


Quer me comprometer, é isso?

MÃE – Meu rosto... Meu rosto não para de inchar. Dói tanto, tanto, que tenho
vontade de me atirar debaixo de um ônibus!

DENTISTA – A senhora enlouqueceu. Saia daqui ou chamo a polícia.

TRANSEUNTE 1 – Olha o rosto daquela mulher!

TRANSEUNTE 2 – Enorme, ela não consegue andar direito.


TRANSEUNTE 3 – Vamos nos afastar. Pode ser doença contagiosa.

TODOS – Doença contagiosa? Ugh!

FILHA 1 – Estamos perdidas!

FILHA 2 – De nada adiantou nossas rezas.

FILHA 1 – Estamos sem eira nem beira,

FILHA 2 – Seremos despejadas em breve.

FILHA 1 – (Horror) E olhando bem pra senhora,

FILHA 2 – Já não reconhecemos aquela que nos

criou FILHA 1 – Nossa mãe se transformou...

FILHA 2 – Numa enorme cabeça

FILHA 1 – Onde nada mais parece existir.

MÃE – (Balbuciando) Filhas! Filhas!

IV
APRESENTADOR – Lá está ela! Sozinha! Abandonada! Do alto da colina, ela
contempla a cidade.

MÃE – Meu nome é Dalva, nome de estrela que minha mãe me deu. Pra ter
sorte na vida. Que sorte? A dor é tão forte que já não sinto anda. Ela faz parte
de mim. Sempre esteve comigo. Quem se importa? Milhares de luzes lá
embaixo, pessoas correndo de um lado para o outro, os ônibus freando no
asfalto esburacado. Ninguém me vê! Já não existo. Só um rosto enorme,
dolorido, que não para de crescer. Quem se importa?

TRANSEUNTE 1 – Aquela mulher caiu!

TRANSEUNTE 2 – Vamos ajuda-la!

TRANSEUNTE 3 – Deixa pra lá. Temos que pegar o trem. Nesse lugar só dá
gente bêbada. Esses vagabundos não querem saber nada de trabalhar. Só
encher a cara!

TRANSEUNTE 1 – Depressa, então. Só faltava a gente perder o trem!


A PROFESSORA
EMÍLIA – Eles ainda não sabem. Espero que me encontrem logo. Como
Chove! Gostaria que estivesse fazendo sol. Tudo seria melhor. Ninguém se
resfriaria. Deixariam os guarda-chuvas em casa. Eles só atrapalham. Terei
muitas flores? Tão bonitas e tão caras! Estarei bem acompanhada, se
lembrarão de mim depois?

ALUNA – Nunca vamos esquece-la professora. Quando a senhora dava aula,


todos se modificavam, rindo, aprendendo.

EMÍLIA – Fico feliz, em ouvir isso! Tantos e tantos anos dando aulas. Me
lembro dos rostos. Tristes, alegres, carrancudos, querendo aprender.
Pequenos, frágeis como uma haste de flor.

ALUNO 1 – E os passeios? Nós adorávamos os passeios. A senhora nos levou


até o mar. Verde, imenso, o horizonte infinito.

EMÍLIA – Tive tanto medo aquele dia! Que loucura você vai fazer Emília, me
diziam. O mar é um perigo!

ALUNA – Minha mãe ficou preocupada. Cuidado filha, o mar é fundo e o que
ele engole, não devolve mais.

EMÍLIA – Mas tudo correu tão bem! Me senti tão jovem, o coração leve, o
crepúsculo sombreando a praia e nós muito quietos olhando o sol
desaparecendo, até ficar só um enorme clarão avermelhado no horizonte.

ALUNO 1 – Nunca mais voltamos.

ALUNA – Nem uma foto foi tirada!

ALUNA 2 – (Entrando) Vim me despedir, dona Emília. Trouxe essas flores.

EMÍLIA – Então você já sabe?

ALUNA 2 – Fui embora muito antes da senhora. Lembra?

EMÍLIA – Que tola que sou! Como poderia esquecer. Ou melhor, eu quis
esquecer, mas não consegui. Nunca conseguiria.

ALUNA – Ela caiu em frente ao muro da escola!

ALUNO 1 – Uma bala perdida!

ALUNA – A senhora gritou!

ALUNA 2 – Segurou minha cabeça. Mas eu já havia partido!

EMÍLIA – Então, vamos nos encontrar muitas vezes, não é?


ALUNO 1 – A senhora vai deixar a escola?

ALUNA – Nos abandonar.

EMÍLIA – Trinta anos lecionando. Correndo de um lado para outro, apressada,


os ônibus sempre lotados, a bolsa repleta de cadernos para corrigir. As ruas
feias, esburacadas, a pipa indiferente no céu azul. Crianças magras, mulheres
envelhecidas. Meu coração foi adoecendo.

ALUNO 1 – Haviam as festas!

ALUNA – O bairro inteiro se reunia. Música, churrasco. Todos dançavam!

ALUNA 2 – Eu tocava desajeitada a flauta.

EMÍLIA – O som era bonito. Embelezava a tarde. Meu coração adoecido


pulsava alegre, intimado. Ah! As festas..

ALUNA – Para onde a senhora vai?

EMÍLIA – Não sei, querida. É um mistério.

ALUNO 1 – Quem irá substituí-la?

ALUNA – Quem alegrará nossas aulas?

EMÍLIA – Estou me sentindo, calma, tranquila. Como nunca antes! Meu


coração não bate mais, sabiam? Sossegou. Um pássaro adormecido dentro do
peito. Agora, é hora de voltarem para casa. Antes que escureça. Adeus!

ALUNA – (Beija-a) Seu rosto está frio!

ALUNO 1 – Jamais a esqueceremos!

EMÍLIA – Adeus meus queridos! Quando estiverem tristes, desanimados,


lembrem-se daquele crepúsculo. Haviam muitas sombras, mas o clarão
avermelhado ainda insistia em iluminar as nuvens.

ALUNOS – Adeus! (Saem)

ALUNA 2 – (Pegando a mão da professora) Para mim, sua mão está quente e
amiga!

EMÍLIA – Então segure bem forte. Assim, me sentirei mais reconfortada e Feliz!
O EXERCÍCIO DA JUSTIÇA
Com palco às escuras, abre-se o pano; Ouve-se uma voz que, de dentro, grita
por Zezé. Este entra com decisão, respondendo, e é recebido no meio do palco
por um foco de luz. Uma rajada de metralhadora derruba-o. Zezé cai
espetacularmente, segurando o estômago.

VOZ DE ELEUTERIO – (Fora do palco) Zezé! Zezé!

ZEZÉ – (Entrando) Aqui, aqui! (É recebido pelas balas da metralhadora e cai


golpeado por elas) Mãe! Mãe! Eles me pegaram! (Pausa) Puxa, me pegaram
direitinho... Nem a oração... Nem as promessas... Nada me valeu... Mãe...
(Grita) Mãe! Estou com medo! (Chora) Mae, estou com medo de morrer!
(Pausa) Que calor no estomago... Mae, se ao menos você viesse... Me
ajudava, me salvava... Mae... Mae!

MARIA – (Entrando ao fundo, com passos leves e rápidos) Que foi, meu filho?

ZEZÉ – Mae, você veio... (Pega-lhe a mão) Segura a minha mão, não deixa eu
ir... Se você segurar com forca, a morte não me leva... Segura com forca, mãe!

MARIA – (Com serenidade) Estou segurando, meu filho.

ZEZÉ – Eles me encontraram, mãe. Não adiantou me esconder... Foi traição,


me denunciaram...

MARIA – Não fale muito, meu filho. Tem fé.

ZEZÉ – Eu tinha. Eu tinha, mas eles não ajudam. Me quebraram os dentes, me


massacraram... ate tísico eu fiquei.

MARIA – Deus e maior...

ZEZÉ – Por que ele não me salva?

MARIA – (Deixando-lhe a mão, com algum ressentimento) A gente não sabe.


Isso e serviço de humano. (Pausa). Onde esta aquele homem?

ZEZÉ – Qual?

MARIA – Aquele que sempre te defendia.

ZEZÉ – O advogado? Nem sei. Diz que está metido numa enrascada. (Pausa).
Está tão escuro... Eu precisava de um médico...

MARIA – Isso não é mais coisa de médico... Onde você disse que aquele
homem estava?

ZEZÉ – O doutor Leonardo?


MARIA – Ele.

ZEZÉ – Por aí. Não sei onde. Mas se pudesse andar, achava ele.

MARIA – (Aproximando-se e tomando-lhe a mão). Achava mesmo?

ZEZÉ – Achava, mãe. Sei todos os caminhos dele.

MARIA – (Levantando-o e ajudando-o com as mãos). Então anda. (Zezé se


levanta, meio maravilhado. Mexe o próprio corpo, mas sem largar a mão da
mulher. Fica em pé, estático).

MARIA – Pode andar, meu filho.

ZEZÉ – Posso, mãe?

MARIA – Pode.

ZEZÉ – Mas eu...

MARIA – Vai. Se precisar de mim, chama. (Vai sair, detém-se quando Zezé a
chama.)

ZEZÉ – Mae, qual será o melhor lugar? Não posso andar muito por ai, a policia
esta me procurando.

MARIA – Esse e teu trabalho.

ZEZÉ – (Olhando). As ruas parecem que não estão mais no mesmo lugar. Isso
ainda e a minha terra, mãe?

MARIA – Isso onde você esta e a Terra.

ZEZÉ – Eu tinha amigos. Ainda tenho?

MARIA – Não, agora não tem mais. Você só tem um pouco de tempo.
(Olhando para trás). Eu também tenho pouco tempo. Sou uma mulher pobre, e
nem que não fosse pobre, sou uma mulher.

ZEZÉ – As pernas não ajudam, mãe! E o pulmão... Me da um auxilio!

MARIA – Anda dois passos e chama por ele. Quem sabe ele ouve... (Sai
silenciosamente).

ZEZÉ – (De costas para ela) Mae... mãe! (Sente-se sozinho) Dois passos...
(Caminha. Olha para os lados, a princípio com medo.) Doutor Leonardo...
Doutor Leonardo... Doutor Leonardo! Doutor, me ajude! Preciso do senhor!
Tenho dinheiro, posso pagar o serviço! Doutor Leonardo, por favor!
(Desesperado) Ele não pode me escutar... Doutor Leonardo!

(Ilumina-se a direita alta, onde Leonardo Amor dialoga com a justiça invisível).
LEONARDO – (Para baixo) Cala a boca, estupido! Eu aqui as voltas com a
Justiça e você me aborrecendo com as suas lamurias! (Para o alto) Hein?
Como, excelência?

ZEZÉ – (Aproximando-se) Doutor, quem sabe eu até podia ajudar o senhor...


Já ajudei uma vez, no caso da Hilda, não foi?

LEONARDO – Ajudou, ajudou, mas isso foi há muito tempo. E de qualquer


modo, agora estou ocupado. Diabos! Nem escuto direito as perguntas! (Com
voz humilde) como, excelência? (Pausa) Se me deixarem livre, eu trago a
mulher. Já disse que trago. É só me deixarem sair daqui. (Pausa) Aquilo foi
confusão da Imprensa. Eu não tinha dito nada. A imprensa sempre confunde
tudo. Foram cavar e não encontraram nada. Claro, não havia ninguém morto!
Ninguém morreu nessa história, excelência! Posso garantir. Ninguém morreu!
Me dêem liberdade e eu trago a moça, aqui.

ZEZÉ – Doutor...

LEORNARDO – Excelência, eu posso poupar o tempo da justiça... Posso


ajudar... É só me deixarem sair... Vou ser discreto, me escondo, não dou pasto
aos jornais... Em sete dias eu trago a mulher viva e sã...

ZEZÉ – Doutor Leonardo, é só um “habeas corpus”. Eu tenho dinheiro, eu


pago! Senão, eles me matam de pancada, doutor! Já estou ruim do peito, já
perdi meus dentes. Ontem, no morro do cão mataram um guarda. Vão dizer
que fui eu, doutor! Tudo que acontece eles dizem que fui eu. Querem me
acabar, doutor!

LEONARDO – Silêncio! Excelência, eu prometo... (Pausa) Os cheques? Foi ela


que assinou. Prova que não esta morta. Eu era procurador, administrador, tinha
a confiança dela... Jóias, não. Nunca recebi jóias dela, tenho a minha
dignidade. (Pausa) São sete dias, excelência, uma semana...

ZEZÉ – Doutor...

LEONARDO – Vai prô diabo!

(Apaga-se a luz da D., cortando a fala. Sozinho no meio da cena, Zezé


permanece iluminado. Depois, estende as mãos para os lados, procurando
apoio. Sente o silêncio. Pausa).

ZEZÉ – Um barulho de remagem! Por favor, um barulho de árvore! Isto é


silêncio de morto! Silêncio de terra por cima! Sozinho que nem um morto. Nem
ates de nascer se estava tão sozinho. Sozinho que nem uma faca antes de ser
cravada. Que nem um grito de agonizante. Nem um bicho pra agradar. Nem
um cachorro. Nem uma planta... Minha mãe, que diferente. Sem chalé, sem
cabelo branco. Não tem mais o cheiro da minha casa. Nenhum lugar tem mais
esse cheiro. Por isso que eu não paro em parte nenhuma. Por isso que eles me
espancam. Não
tenho casa nem endereço. Fujo pra tudo, pra qualquer lugar. Não me lembro
de ter visto nenhum rico criminoso. Criminoso de como a gente era. De como a
jornal diz: “Perigoso facínora. Delinquente desalmado. Malandro. Bandido.”
Eles tem um mistério. Tem crimes bonitos. Um crime que escorrega pela folha
de jornal e no outro dia virou suicídio de operário. Nosso crime é encardido,
cheira mal e sempre acaba em prisão da pior. Rico é fraco e só cabe em sala
especial, com fumo de cigarro subindo pro céu. O clima bom tem preço, a praia
boa cerca. Minas! O ar da montanha foi loteado e o ar do morro ainda não cura
o peito... Isso é silencio de morto! Silencio de enterrado! Fim de carreira...
Delinquente desalmado... Tocaia da policia... Cerco no morro... Morto... Crivado
de balas... Zezé morto... Metralhado na estrada... Metralhado na estrada!
Metralhado na estrada! Metralhado na estrada...

(Luz na E., onde esta Helena, que entremeia suas falas com as dele)

HELENA – Zezé... Zezé...

ZEZÉ – (Chorando) Metralhando na estrada... Morto... Na estrada...

HELENA – Zezé... A gente não ia se casar?

ZEZÉ – (Levantando a cabeça) Helena... Meu bem...

HELENA – Estou te esperando...

ZEZÉ – Helena meu bem...

HELENA – Você demorou...

ZEZÉ – Escondido... Andei procurando advogado. Preciso acertar minha


situação... Estou fugindo, isso não pode durar muito...

HELENA – Achou ele?

ZEZÉ – Achei, mas não quer me ajudar. Esta metido numa encrenca...

HELENA – A gente da jeito em outro...

ZEZÉ – Difícil. Que nem ele é difícil. Homem esperto. Consegue tudo.

HELENA – Mas esta encrencado.

ZEZÉ – Pegaram ele numa. Me espantei, sujeito fino.

HELENA – Ele acaba saindo. Deve ter muito dinheiro.

ZEZÉ – Diz que matou uma mulher...

HELENA – Zezé.... Fala que me ama...

ZEZÉ – Te Amo...
HELENA – Você falou porque eu pedi...

ZEZÉ – (Rindo). Mas eu te amo sempre, mesmo sem você pedir....Vou te amar
até sem você querer...

HELENA – Zezé, se a gente conseguisse...

ZEZÉ – Vai conseguir, meu bem... A gente consegue tudo. Eu sou um cara de
sorte, sempre fui. (Tira um papel do bolso) Olha aqui minha oração de fechar o
corpo: “Cinco minutos de Santo Antônio”...

HELENA – (Rindo). Tem um buraco, Zezé...

ZEZÉ – (Guardando) Velhice...É de tanto ler, de tanto andar no bolso. Mas


fecha
o corpo que nem armadura! (Abraçando-a) A gente vai se casar, Helena,
direito, como faz todo mundo! Você vai ver, eu prometo!

VOZ DE MARIA – (Vinda de fora) Zezé! Meu filho! Foge! Foge, meu filho, que
eles vêem chegando! Foge, menino!

ZEZÉ – (Desorientado). Por onde? Mãe, me mostra! Por onde? Por onde?

VOZ DE MARIA – Por aqui!... Por aqui!... Por aqui!.. .(A voz vai desaparecendo)

(Apaga-se a luz sobre Zezé e acende-se a da D. alta, rapidamente, onde está


Leonardo).

LEONARDO – Sete dias, excelência! Nem um minuto mais! (Desce do


praticável) Sete dias! Trago a mulher sem falta! Poupo o dinheiro e o tempo da
justiça! Sete dias! (Apaga-se a luz da D. alta. Leonardo continua
encaminhando- se para o centro) Sete dias.... Uma semana inteira! Verinha,
um pacote de dinheiro... Preciso de um tipo esperto pra me ajudar... Esperto e
necessitado. Preciso do Zezé.... Onde será que aquele cara de meteu?...

ZEZÉ – (Surgindo da esquerda, num salto, ofegante) Doutor, estão atrás de


mim!

LEONARDO – (Olhando para os lados). Calma. Seguro no meu braço. Deixa


essa cara de culpado. Sossego. Ponha ar de gente respeitável. (Dão alguns
passos para frente). Tudo bem?

ZEZÉ – (Respirando). Com o senhor é fácil, doutor. Eu ando tonto, cansado.

LEONARDO – Então descansa. Preciso de você.

ZEZÉ – Pode dizer.

LEONARDO – Primeiro vamos cuidar da minha situação. Depois da sua.

ZEZÉ – Eu estou fugindo, doutor! Não tenho prazo!


LEONARDO – Bom, mas se você for preso eu te solto. E se eu for preso?

ZEZÉ – (Amargo). Meu caso não é mais de prisão, doutor.

LEONARDO – Ânimo, rapaz. Tenha coragem, como eu! Olha aqui, pega esse
envelope e vai entregar no endereço que está marcado. Não anda a pé, toma
carro. Olha o dinheiro. Dorme num hotel. Amanhã, me encontra às cinco horas
da manhã, na estrada do Iraú, logo depois da ponte. Chegando lá alguém, se
esconde. Eu te chamo pelo nome, só eu sei que você está lá.

ZEZÉ – As cinco horas?

LEONARDO – Você vai ter que me entregar um pacote que vão te dar nesse
endereço. Cuidado com ele! Durma em lugar que não pede documentos.
Depressa, vai, homem!

ZEZÉ – Tudo isso não vai dar confusão, doutor?

LEONARDO – Não! Amanhã a gente conversa com calma. Agora tenho que ir
encontrar a Verinha

ZEZÉ – Estrada do Iraú?

LEONARDO – Depois da ponte, às cinco da manhã. Te chamo pelo nome. Não


vai faltar!

ZEZÉ – Não tem perigo, doutor. (Leonardo sai, Zezé permanece em cena,
repetindo). Não tem perigo... Coragem.... Não tem perigo Não faça essa cara
de culpado... não tem perigo... amanhã... (Assustado, como se falasse a
alguém). Não tenho documentos! Dinheiro sim... (Cai sobre as mãos e fica
deitado) Mãe, tudo isso será seguro?

MARIA – (Sentada). Eu só posso te dar a oportunidade, Zezé, não a certeza.


Se eu pudesse.... Você teria tido leite, calor, saúde, férias na praia, escola, bom
trabalho. Uma roupa mais grossa nos dias de frio, uma roupa quente que desse
vontade de viver. De bom trato eu só te dei carinho e conselho, mas conselho
não vinga no frio... bom exemplo se desmancha na privação, a gente não
consegue escutar nem ver...

ZEZÉ – Mas você podia tudo, mãe!

MARIA – (Pondo a cabeça de Zezé no colo). Sua casa diminuiu, sua rua
encurtou. Os velhos se abaixaram, o jardim encolheu. Não foi? Minha força é
pequena. Só valia por você. Não posso te dizer sim nem não. Dorme, meu
filho. Sono e amor ainda não custam nada.

Dorme como um rico


que fecha os seus olhos;
os homens são iguais
só adormecidos ou mortos.
Dorme como um rei
que adormece em seu quarto;
os homens são iguais
só de olhos fechados.
Descansa o teu corpo
que desde a nascença
já era diferente
das outras crianças.
Que não nasceu igual
e nem nasceu livre:
nasceu com sua fome
que jamais sacia.
Dorme, meu menino,
como uma criança;
quem te ver dormindo
deitado de bruços
verá tua cabeça
tão menosprezada,
teu corpo franzino
mal alimentado,
tuas mãos abertas
que não possuíram nada.
E de teu, na figura
de fragilidade,
de só teu, o sono
que não custou nada.
Dorme, desolado,
dorme, desmentido.
Do teu corpo marcado
brotarão três tiros!
Ou então, quinze moedas
para quinze mendigos
tentarem, como os ricos,
subornar o destino.

(Apaga-se a luz que incidia sobre Zezé e Maria, acende-se uma sobre
Leonardo e Verinha.)

LEONARDO – (Abraçando a moça). Custou, hem, Verinha?

VERINHA – Custou o que, meu amor?

LEONARDO – Custou pra gente se encontrar, ué. Fiquei dez dias engaiolado
por causa daquela encrenca.
VERINHA – Esqueça. Agora passou. Você vai mesmo procurar a tal mulher?

LEONARDO – Só se eu fosse minhoca pra andar debaixo da terra. Vou, mas é


sumir daqui. Com um bom dinheiro no bolso e você do lado. Você vem comigo,
boneca?

VERINHA – Mas como é que a gente sai? Você acha que a polícia...

LEONARDO – Freta-se um avião. Um avião para o sul. Passou a fronteira, e


tudo começa de novo. Depois, isso de polícia... (Faz um gesto de pouco caso.)
Precisava é de uma papelada que está com o Zezé.

VERINHA – Logo com o Zezé?

LEONARDO – Marquei um encontro com ele amanhã, na estrada, do Iraú.


Pego os documentos, e vamos direto para o campo. De lá, o avião e prrrr. (Faz
um gesto com a mão, para significar o vôo) Liberdade, menina! Liberdade,
dinheiro e... Você... (Tenta iniciar uma cena de amor, quando batem na porta,
com força)

VERINHA – (Ofendida). Que é isso? Toquem a campainha ao menos, não?

LEONARDO – (Assustado). Que é que foi?

VERINHA – Vou ver.

LEONARDO – Não abra a porta!

VERINHA – Tenho que abrir pra ver, não tenho?

LEONARDO – Já disse pra não abrir! Aposto que querem me sangrar!

VERINHA – Quem está ai?

VOZ DO ELEUTERIO – (de fora). Sou eu, dona Vera, o Eleutério!

VERINHA – Quem?

LEONARDO – Pronto, sabia. É "tira". Diga que eu não estou.

VERINHA – O.. O doutor Leonardo não está aqui...

VOZ DO ELEUTERIO – Eu não perguntei se estava... agora estou até achando


que está mesmo... A senhora não quer abrir a porta?

LEONARDO – (Nervoso). Dê o fora, Eleutério. Você não tem nada contra mim.
Estou dentro do meu prazo. Não sou um coitado qualquer, você não me pega
com a sua conversa.

ELEUTERIO – Não estou querendo pegar ninguém, doutor. Estou aqui pra
trocar idéias...
LEONARDO – Conheço as suas idéias. Que é que você quer?

ELEUTERIO – Ah, doutor...

LEONARDO – Fala logo. Quanto?

ELEUTERIO – Ora, doutor...

LEONARDO – Quanto?

ELEUTERIO – A gente podia fazer um negócio...

LEONARDO – Que negócio?

ELEUTERIO – Soube que o Zezé andou procurando o senhor...

LEONARDO – (Aliviado). Ah, é ele que vocês querem?

ELEUTERIO – Se pudesse.

(Leonardo está indeciso entre contar ou não)

VERINHA – (Baixo) E a tal papelada?

LEONARDO – (Idem). Posso passar sem ela.

VERINHA – Não tem perigo se acharem?

LEONARDO – Não... não tem meu nome...

ELEUTERIO – Como é, doutor?

LEONARDO – Está bom.... Escuta bem... (Hesita ainda) As cinco horas da


manhã... Você encontra o homem na estrada do Iraú... Na curva grande,
depois da ponte... Chame pelo nome, se não ele não aparece... E veja lá se
não me suja...

ELEUTERIO – Tem certeza disso tudo, doutor?

LEONARDO – Tenho, estou lhe dizendo. E agora suma!

ELEUTERIO – Até, doutor. Obrigado e... Boa viagem!

(A luz se apaga. Aparece Zezé no meio da cena, sozinho.)

ZEZÉ – Tudo certo. Que bonita manhã que vai ficar! Parece feita de vidro. Se a
gente não for delicado quebra. Até os passarinhos cantam quebradiço. Na hora
que vier o sol, entrego o recado e vou ficar livre! Tudo vai ter seu jeito. Helena,
a vida, minha mãe.... Afinal, sou moço! Doença também tem cura; liberdade e
bom trato, comida de casa, carinho, sossego. A vida de todo o dia é remédio.
Volto pra Minas. Lá tem ar bom, de terra conhecida... Trabalho de relojoeiro.
Delicado. Consertar o tempo…. É tarde! Ele está demorando.... Vou ver a luz
mudar e voltar como ontem, Helena, queria você aqui pra ver comigo. Assim a
gente via mais, tudo aberto, tudo tão sem fim... melhor morrer do que ficar
fechado outra vez. Mas ele vem.... Já vem vindo... um carro.... Deve ser ele...
se esconde, Zezé sendo ele, ele te chama.

(Se esconde. Pausa. Silencio)

ELEUTERIO – Zezé... Zezé!

ZEZÉ – (Saindo do esconderijo). Aqui, aqui!

(É recebido com uma rajada de metralhadora, como no início. Todos os


movimentos se repetem, e também as primeiras falas.)

ZEZÉ – Mãe! Mãe! Eles me pegaram! Puxa, me pegaram direitinho! Mae! (Cai)

MARIA – (Entrando). Estou aqui, meu filho.

ZEZÉ – Que pena, mãe. Tanta coisa que eu ia fazer...

MARIA – Descansa, Zezé.

ZEZÉ – Fala pra Helena.

MARIA – Deixa que eu falo.

ZEZÉ – Estava tão bonito.

MARIA – Eu sei.

ZEZÉ – (Deitado, de costas). Tinha passarinho. Como em Minas... A gente ia


pra lá... Vê, mãe tem andorinhas passando...

MARIA – Está amanhecendo...

ZEZÉ – Você ainda pode me salvar, mãe?

MARIA – Escuta... (Olha o céu)

ZEZÉ – Que é?

MARIA – Avião. Lá.... Vem vindo...

ZEZÉ – É mesmo.... Vai prô lado do sul... Vai embora... (morrendo). Você
ainda.... Pode... Mãe?

MARIA – (Olhando para o avião com ódio). Agora eles te mataram, meu filho.

ZEZÉ – (Que não ouviu). Você pode sim, você sempre.... Pode... (morre)
MARIA – (Olhando para o alto) E do teu corpo marcado brotarão três tiros....Ou
então três moedas para três mendigos tentarem, como os ricos, subornar o
destino...

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