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Violência
A PESTE BUBÔNICA
I
APRESENTADOR – Triste, olhar perdido na paisagem, esse homem já não
sabe o que fazer da sua vida. (Ao homem) Posso ajudar?
II
MULHER – Conseguiu o emprego?
MULHER – Vou adorar andar num carro vermelho. Minha família nem vai
acreditar.
MULHER – Ao sucesso!
III
APRESENTADOR – Um dia ele foi chamado para uma reunião. Foi ali que tudo
começou.
PATRÃO 2 – Deixe que eu falo. É o seguinte: a carne bovina anda muito cara.
Nossas exportações caíram. Precisamos de uma solução.
HOMEM – Solução?
TODOS – Aplausos.
PATRÃO 2 – O senhor deve conseguir carne que custe menos, bem menos...
IV
MULHER – Você está bem?
HOMEM – Tenho que achar uma solução. (Enquanto anda vai repetindo a frase)
HOMEM – Cala a boca, pelo amor de Deus! Assim não consigo pensar. Fecha
a matraca.
TODOS – (Aplausos)
PATRÃO 2 – Perfeito!
HOMEM – Carne de rato, bem preparada, enlatada com rigor, com gosto de
camarão, para ninguém botar defeito!
(África. Tambores. Um multidão come carne e vai morrendo como moscas. Uns
sobre os outros, gemem, estertoram, antes de morrer.)
VI
JORNALEIRO – Peste bubônica! Peste bubônica! Carne contaminada mata
centenas de pessoas. Peste bubônica!
PATRÃO 1 – Que culpa temos nós?
JUIZ – Essa corte de justiça não vê razão para uma condenação. Esses
senhores sempre contribuíram para o desenvolvimento da nação, empregando
milhares de operários, usando a mais avançada tecnologia para a melhores de
seus produtos. Foram enganados pela sua boa fé num indivíduo, esses sim,
inescrupuloso, vil, ganancioso, que para garantir o seu emprego, não hesitou
em mandar carne de rato para os nossos pobres irmãos da África do Norte.
(Bate o martelo) Sessão encerrada!
AS DOMÉSTICAS
DASDÔ – Tu demorou.
GILZI – (Bem cansada) Subi a pé, o élevador ta enguiçado. Vinti andares estou
morta.
GILZI – Oh, lasqueira será que to fincando doenti? (Olhando para o público)
DASDÔ – Doente nada. Deixa de besteira. Não da pra ficar doente. Isola. (bate
na madeira 3 vezes)Tu fez o que te pedi?
GILZI – (Passa um pacote) Fiz sim, ta tudo aqui, vô tomar um banho. (Sai
tirando o sapato e vai para a cochia)
GILZI – (Puxa o colar da mão de Dasdô e vai para a frente do palco falando
como se estivesse se gabando) Isso é coisa de genti fina. São perolas. Dona
Edite só usa quando vai a algum lugar granfino. Prá mostrar para as amigas.
Se orgulha dizendo que é um colar que tem cem anos!
GILZI – Vou cortar o fio. A gente dividi as bolinhas. (Pega a tesoura e corta o
fio)
GILZI – Vai ver dá pra fazer um colar prá mim e oto prá tu.(Enquanto corta o fio)
DASDÔ – (Enquanto conta) Chamar atenção dos outros? Temos que passar
prá frente. Dinheiro, dinheiro para as passagens. A gente nunca mais volta.
DASDÔ – Alguma vez te roubei, mexi nas suas coisas, deu falta de algo. Fala,
fala sua merdinha.
GILZI – Deixa de conversa, Dasdô. Quero ver com quantas bolinhas tu ficou. É
só mostrar.
DASDÔ – Não vou mostrar coisa nenhuma. Acredite em mim, sou sua miga ou
não? Minha palavra basta.
DASDÔ – Fui eu que te dei a idéia. Por tu, nunca faria nada. Cagando de medo
daquela vagabunda gorda, mimando os filhos dela como se fosse seus, dando
o rabo sem ganhar um tostão extra. Tu devia cuspir na comida deles, deixar os
meninos morrerem de fome, cortar o pau daquele, trouxa. Tu não fez nada. Só
obedecendo, obedecendo.
GILZI – (Gritando) Mostre o que tu roubou, sua puta velha. Senão te uro com
essa tesoura.
DASDÔ – Não vou mostrar nada, sua burra. Enfia a tesoura, enfia!
GILZI – (Contando) Tem dozi. Dozi. Ela contou certo. (Grita) Dasdô! Tu não
mentiu. Não roubou. (Pegando a cabeça de Dasdô) Ele é todo seu! Todo!
Fique com ele. É seu primeiro colar de pérolas, Dasdô. O primeiro! (Chora
muito até mesmo após o termino da fala fica chorando encima do corpo da
amiga)
JANTAR
(Judite com a vassoura na mão, limpa a cozinha cantando e dançando. Ao
mesmo tempo cuida das panelas que estão no fogão, experimentando,
acrescentando mais água, mais sal, mais algum tempero etc... Entra dona
Margô.)
MARGÔ – Judite, o que é isso, pelo amor de Deus! Não vá deixar queimar a
comida, por favor! Seria um horror!
MARGÔ – Ora, você desleixada como é, seria bem capaz de estragar todo o
meu jantar. Só de pensar, já me sobe o sangue à cabeça. Que horror! Ainda
mais hoje, que vêm o Ronaldinho Dantas, o Miguel Azinabre, a Lúcia Mesquita,
a Rovena Junqueira... Nem quero imaginar o que o meu marido diria se
sentisse algum gosto estranho na vitela. Pelo amor de Deus, Judite, basta de
problemas que eu já tenho, não complique ainda mais a minha vida, por favor!
JUDITE – Não, dona Margô, pode deixa, não se preocupa não, (tímida) Vô fazê
tudo certinho. (Sem graça, apanha o lixo no chão com a pazinha e o coloca na
lixeira) Longe de mim dá mais problema pra senhora. Já chega os que a
senhora tem, num é verdade? (Ri. Dona Margô fica séria, quase triste. Ela para
de rir e continua a arrumar o lixo. Em seguida, torna a cuidar da comida).
MARGÔ – (Grita) Ahhh!! O que é isso, meu Deus!? Não ponha essa mão perto
da vitela! Quantas vezes preciso te dizer para lavar bem as mãoes depois de
recolher o lixo. Isso é um crime. Se a Lúcia Mesquita visse uma coisa assim
cairia dura. Que horror!
JUDITE – Não tem nada não, dona Margô. (Sem graça) Esse lixo ai é limpo...
(Lavando a mão e enxugando no avental) Sabe como é né? As veis a gente
esquece, né? Não leva a mal, não, dona Margô, a gente ta tão acostumado
com essas coisas, que as veis escapa, né?
JUDITE – (Riso encorajador) Num esquenta não, dona Margô, a comida hoje
vai fica de arrasá. Pode deixa por minha conta.
MARGÔ – Ai, Judite, se você soubesse o que é minha vida... Tenho de cuidar
de tudo sozinha, absolutamente sozinha. O Teixeira, você já conhece, não quer
saber de nada, deixa tudo por minha conta, e ai de mim se sair algo errado.
(Suspirando) Isso às vezes me deixa tão arrasada, tão insegura...
JUDITE – (Sem parar de trabalhar) Num esquenta não, dona Margô. Tem que
tê força (Lavando um prato) Pra aguentar essa vida. (Enxugando-o) A senhora
vê só: eu, meu marido e meus fio lá no barrado...
MARGÔ – É que você tem uma outra maneira de encarar a vida. Quem dera
eu fosse como você! Para você, parece que nada tem mistério! É tudo tão
claro! É...
Enfim! Já são seis horas... (Um pouco agitada) Sirva primeiro os camarões com
o molho de vinho chanté e só depois a vitela e as batatas da Índia com creme
de aspargos. Deixe as lagostas para o final, quero fazer uma surpresa (Sorri)...
Faça o arranjo de frutas no centro da mesa. (Sorri imaginando a cena) a
sobremesa pode deixar que a empregada da Carona Muniz vai trazer.
Capriche, Judite: esse jantar é muito importante para mim!
JUDITE – (Colando uma enorme bandeja no forno) Pode deixa, dona Margô,
até agora (sorri) eu nunca falei com a senhora, né?
JUDITE – Ah! Dona Margô.... Eu queria pedi um favô pra senhora... Sabe como
é, né? (Ligando o forno). As veis, a gente fica apertado, né? (Sorri). Num
consegue pagá as conta da venda...
JUDITE – Não, sabe como é, num tô querendo abusá da sra sei que a senhora
tá cheia de preocupação, mas pe que o Sidni, o meu marido, tá desempregado
já fais seis meis, e agente tá sem paga o aluguel, conta de luz, essas coisa...
(Apanhando algo na geladeira)
MARGÔ – Por favor, Judite, seja clara. Você sabe que não gosto de meias
palavras.
JUDITE – Pois é, né? Dona Margô. A senhora sabe como é... Tá fartando tudo
pra gente... Ai eu pensei que a senhora talvez pudesse, se não fizé farta, né?
Me aumentá um pouquinho...
JUDITE – (Batendo algo no liquidificador). Eu sei, dona Margô... Mais é que eu,
meu marido e os meus fio lá no barraco...
JUDITE – (Cortando cebolas). Não, dona Margô, eu sei. Num leva a mal, não...
Mais nois tudo la no barraco tamo vivendo cum qui Deus dá...
MARGÔ – Esta bem, Judite. Me dê uma trégua. Combinado? Para que eu
possa respirar e organizar melhor a minha vida. Uma coisa de cada vez, senão
enlouqueço. Do jeito que as coisas estão, ainda acabo fazendo uma besteira.
MARGÔ – Só quero que você não deixe queimar a vitela, pelo amor de Deus!
Seria o fim!
MÃE – (Grita fora do palco) Pelo amor de Deus! Abaixe esse volume! (Moça
dança e toca uma guitarra imaginária).
MÃE – (Entrando) Nice, pelo amor de Deus, abaixa o volume! Esse barulho me
deixa nervosa. (Vai até a estante, procura o botão correto e abaixa o volume)
Puxa vida, até que enfim! (Aliviada)
NICE – Porra mãe, lá vem você de novo. Tô a fim de curtir um som! Qual é?
MÃE – (Terna) Nice, já são duas horas da tarde. Você acordou as onze e esta
ouvindo música até agora, Nice. Não tomou café, nem almoçou. E a sua saúde,
menina?
NICE – Nada a ver mãe! A Hora que eu tiver com fome, eu como. Pô, você fica
me tratando como criança. Qual é?! Tô a fim de ter a minha vida, curtir o meu
som, me deixa!
MÃE – Não é bem assim, Nice! Nem à escola você está indo...
NICE – (Cortando-a) Como não?! Não faltei nenhum dia esta semana!
NICE – Que papo é esse? Você sabe que eu não gosto que você vá lá!
MÃE – Mas eu sou a sua mãe, Nice! Fico preocupada de ver você assim, neste
estado, sem ter o que fazer...
NICE – Como não?! Eu não estudei inglês ontem? Vai dizer que não viu
também?
MÃE – Você ficou traduzindo essas músicas horríveis, mais nada! (Pausa;
Compreensiva) Eu sei que você esta sentindo minha filha, mas você já tem
vinte anos, você não acha melhor terminar o 2° grau, entrar num cursinho,
depois quem sabe, até mesmo numa faculdade, senão você não vai ter
profissão nenhuma. Já pensou? Você precisa ganhar o seu próprio dinheiro...
NICE – (Cortando-a) Nada a ver! Lá vem você com esse papo de dinheiro de
novo! Por quê? O papai não esta querendo mais me dar grana?
MÃE – Mas minha filha, você precisa trabalhar! Todo mundo precisa trabalhar,
senão o país não progride. Não seja assim, Nice! (Sofrendo) Ah! Nice! Você me
preocupa tanto! Não sei mais o que fazer. Você pensa que eu não sofro com
tudo isso? O seu pai não quer nem saber; Larga tudo na minha mão. (Chorosa)
Eu é que tenho que ir atrás de você na escola, na casa de seus amiguinhos...
NICE – Ah! Não acredito! Não vai dizer que anda me seguindo também? Qual
é! Sai dessa, mãe! Não tem nada a ver! Fico puta com isso! Eu estou na minha,
entendeu? É só aporrinhação na minha orelha, pô! Tô de saco cheio!
MÃE – E como você acha que uma mãe se sente ao ver a sua filha metida...
(hesita) Com droga, heim? (Grita) Heim?
NICE – (Arranca da mão dela) Onde você achou isso? Que porra é essa Vai
ficar revistando as minhas coisas agora é? Quantas vezes já te falei que não
gosto que mexa nas minhas coisas?! (Vai até a estante e aumenta o som do
gravador)
MÃE – Não fale assim com a sua mãe, Nice! (Cambaleando) Sempre dei tudo
o que você quis! Sempre escondi de seu pai todas as besteiras que você
andou fazendo, mas agora não dá ais para aceitar. Você tem que entender
Nice! A vida não é assim. E para completar mais essa! Minha filha, uma
drogada! (Chora) Ai, meu Deus! (Autoritária) Mas amanhã cedo, nós vamos
juntas ao consultório do Dr. Felipe. Vou marcar uma consulta para você agora
mesmo.
NICE – (Violenta) Dr. Felipe, porra nenhuma!
MÃE – Nice, que horror! Isso é jeito de falar com a sua mãe. Você quer o quê,
afinal de contas, quer me matar? Quer me deixar doente? (Mais terna) Nice,
nós gostamos tanto de você. Não faça isso conosco. (Abraça-a) Minha filha,
escute a sua mãe. Conta tudo pra mamãe, conta! Porque você esta se
destruindo assim? Por que esse desânimo com a vida, minha filha?
NICE – Sei la, o Camilinho esta a fim de ir para os Estados Unidos. De repente
eu vou nessa também.
NICE – Sei lá! Tô muito a fim de viajar em música. Eu tive pensando e acho
que o meu negócio é música mesmo.
MÃE – Você não acha melhor fazer uma faculdade primeiro, Nice? Pense bem:
Você não sabe fazer nada, nem falar inglês...
MÃE – O Camilinho é outro também! Tenho certeza que ele também esta
metido nisso! É o cúmulo! A hora que os pais dele souberem, no mínimo vão
mandar interna-lo... Mas, pelo amor de Deus, Nice, nunca mais se aproxime
das drogas, por favor! Drogas, nunca mais! Você promete?
NICE – Tá limpo! Foi bobeira minha. Vacilei. (Suave) Mas e aí? Dá pra rolar a
grana da passagem e da estadia? O resto eu me viro numa boa. Tem uma
figura lá que é amiga do Camilinho e vai dar a maior força pra gente.
MÃE – Mas você vai ficar onde, Nice? Qual o endereço? A cidade? Eu preciso
saber. Não é bem assim, Nice.
NICE – Isso não tem nada a ver. É uma cidade lá nos Estados Unidos. O cara
é gente fina. Não vai ter grilo não! Tá tudo em cima!
MÃE – E você vai parar outra vez de estudar? O seu pai me mata! Pelo amor
de Deus, Nice, você precisa pensar no seu futuro, no dia de amanhã. Você vai
viver de quê? (Terna) A vida não é assim, Nice! Tira pelo menos o diploma do
2º grau. Já é alguma coisa! Só falta um ano e meio. Depois você decide o que
fazer da sua vida. Se vai fazer um cursinho ou quem sabe mesmo ir para os
Estados Unidos. O que você, heim, minha filha? Não seria melhor?
NICE – Velho é foda mesmo! Aqui tá por fora, mãe! Estou precisando sair,
sacar outros lances. Aqui as coisas não rolam; É só encheção de saco! Pô,
você é muito cabeça dura! Não entende nada!
MÃE – Fique minha filha! Aqui é melhor que os Estados Unidos. Nós temos
tudo aqui. Vamos, fique e mostre os seus talentos aqui mesmo! Fique, Nice!
INFLAMAÇÃO I
APRESENTADOR – O nome: Dalva. Profissão: Doméstica. Trabalha do outro
lado da cidade. Fazendo frio ou sol, ela trabalha. Naquele dia, chegou em casa
sentindo-se diferente.
MÃE – Dor. Estou sentindo uma dor aqui (aponta a bochecha). Começou
devagarzinho. Agora, está começando a aumentar. Vou tomar um comprimido.
Amanhã já estou bem.
DONA MARGÔ – (Entrando) Tudo, tudo bem. Vê se amanhã sai mais cedo de
casa. A lista da feira está sobre a mesa. (Olhando melhor). Que é isso no seu
rosto? Parece inchado.
II
APRESENTADOR – Depois de passar a noite gemendo, baixinho para não
assustar as filhas, no dia seguinte ela tentou, mas não conseguiu sair da cama.
MÃE – Estou querendo levantar, filhas. A dor rouba todas as minhas forças. Me
ajudem.
MÃE – Meu rosto parece inchado, enorme. Maior que todo meu corpo.
MÃE – Não posso ir trabalhar assim. Tenho que procurar ajuda (cai).
MÃE – Mas doutor, meu rosto está enorme. E preciso trabalhar. Desse jeito
não dá.
MÉDICO – Olha aqui, minha senhora! Deixaram a senhora entrar primeiro por
que parecia urgente. Mas não é, entendeu? Tem gente morrendo na fila. Aqui
está a receita e passar bem. Enfermeira, o próximo!
DONA MARGÔ – (Entrando) Se ela não vier hoje, está despedida. Despedida!
MÃE – Meu rosto... Meu rosto não para de inchar. Dói tanto, tanto, que tenho
vontade de me atirar debaixo de um ônibus!
IV
APRESENTADOR – Lá está ela! Sozinha! Abandonada! Do alto da colina, ela
contempla a cidade.
MÃE – Meu nome é Dalva, nome de estrela que minha mãe me deu. Pra ter
sorte na vida. Que sorte? A dor é tão forte que já não sinto anda. Ela faz parte
de mim. Sempre esteve comigo. Quem se importa? Milhares de luzes lá
embaixo, pessoas correndo de um lado para o outro, os ônibus freando no
asfalto esburacado. Ninguém me vê! Já não existo. Só um rosto enorme,
dolorido, que não para de crescer. Quem se importa?
TRANSEUNTE 3 – Deixa pra lá. Temos que pegar o trem. Nesse lugar só dá
gente bêbada. Esses vagabundos não querem saber nada de trabalhar. Só
encher a cara!
EMÍLIA – Fico feliz, em ouvir isso! Tantos e tantos anos dando aulas. Me
lembro dos rostos. Tristes, alegres, carrancudos, querendo aprender.
Pequenos, frágeis como uma haste de flor.
EMÍLIA – Tive tanto medo aquele dia! Que loucura você vai fazer Emília, me
diziam. O mar é um perigo!
ALUNA – Minha mãe ficou preocupada. Cuidado filha, o mar é fundo e o que
ele engole, não devolve mais.
EMÍLIA – Mas tudo correu tão bem! Me senti tão jovem, o coração leve, o
crepúsculo sombreando a praia e nós muito quietos olhando o sol
desaparecendo, até ficar só um enorme clarão avermelhado no horizonte.
EMÍLIA – Que tola que sou! Como poderia esquecer. Ou melhor, eu quis
esquecer, mas não consegui. Nunca conseguiria.
ALUNA 2 – (Pegando a mão da professora) Para mim, sua mão está quente e
amiga!
EMÍLIA – Então segure bem forte. Assim, me sentirei mais reconfortada e Feliz!
O EXERCÍCIO DA JUSTIÇA
Com palco às escuras, abre-se o pano; Ouve-se uma voz que, de dentro, grita
por Zezé. Este entra com decisão, respondendo, e é recebido no meio do palco
por um foco de luz. Uma rajada de metralhadora derruba-o. Zezé cai
espetacularmente, segurando o estômago.
MARIA – (Entrando ao fundo, com passos leves e rápidos) Que foi, meu filho?
ZEZÉ – Mae, você veio... (Pega-lhe a mão) Segura a minha mão, não deixa eu
ir... Se você segurar com forca, a morte não me leva... Segura com forca, mãe!
ZEZÉ – Qual?
ZEZÉ – O advogado? Nem sei. Diz que está metido numa enrascada. (Pausa).
Está tão escuro... Eu precisava de um médico...
MARIA – Isso não é mais coisa de médico... Onde você disse que aquele
homem estava?
ZEZÉ – Por aí. Não sei onde. Mas se pudesse andar, achava ele.
MARIA – Pode.
MARIA – Vai. Se precisar de mim, chama. (Vai sair, detém-se quando Zezé a
chama.)
ZEZÉ – Mae, qual será o melhor lugar? Não posso andar muito por ai, a policia
esta me procurando.
ZEZÉ – (Olhando). As ruas parecem que não estão mais no mesmo lugar. Isso
ainda e a minha terra, mãe?
MARIA – Não, agora não tem mais. Você só tem um pouco de tempo.
(Olhando para trás). Eu também tenho pouco tempo. Sou uma mulher pobre, e
nem que não fosse pobre, sou uma mulher.
MARIA – Anda dois passos e chama por ele. Quem sabe ele ouve... (Sai
silenciosamente).
ZEZÉ – (De costas para ela) Mae... mãe! (Sente-se sozinho) Dois passos...
(Caminha. Olha para os lados, a princípio com medo.) Doutor Leonardo...
Doutor Leonardo... Doutor Leonardo! Doutor, me ajude! Preciso do senhor!
Tenho dinheiro, posso pagar o serviço! Doutor Leonardo, por favor!
(Desesperado) Ele não pode me escutar... Doutor Leonardo!
(Ilumina-se a direita alta, onde Leonardo Amor dialoga com a justiça invisível).
LEONARDO – (Para baixo) Cala a boca, estupido! Eu aqui as voltas com a
Justiça e você me aborrecendo com as suas lamurias! (Para o alto) Hein?
Como, excelência?
ZEZÉ – Doutor...
ZEZÉ – Doutor...
(Luz na E., onde esta Helena, que entremeia suas falas com as dele)
ZEZÉ – Achei, mas não quer me ajudar. Esta metido numa encrenca...
ZEZÉ – Difícil. Que nem ele é difícil. Homem esperto. Consegue tudo.
ZEZÉ – Te Amo...
HELENA – Você falou porque eu pedi...
ZEZÉ – (Rindo). Mas eu te amo sempre, mesmo sem você pedir....Vou te amar
até sem você querer...
ZEZÉ – Vai conseguir, meu bem... A gente consegue tudo. Eu sou um cara de
sorte, sempre fui. (Tira um papel do bolso) Olha aqui minha oração de fechar o
corpo: “Cinco minutos de Santo Antônio”...
VOZ DE MARIA – (Vinda de fora) Zezé! Meu filho! Foge! Foge, meu filho, que
eles vêem chegando! Foge, menino!
ZEZÉ – (Desorientado). Por onde? Mãe, me mostra! Por onde? Por onde?
VOZ DE MARIA – Por aqui!... Por aqui!... Por aqui!.. .(A voz vai desaparecendo)
LEONARDO – Ânimo, rapaz. Tenha coragem, como eu! Olha aqui, pega esse
envelope e vai entregar no endereço que está marcado. Não anda a pé, toma
carro. Olha o dinheiro. Dorme num hotel. Amanhã, me encontra às cinco horas
da manhã, na estrada do Iraú, logo depois da ponte. Chegando lá alguém, se
esconde. Eu te chamo pelo nome, só eu sei que você está lá.
LEONARDO – Você vai ter que me entregar um pacote que vão te dar nesse
endereço. Cuidado com ele! Durma em lugar que não pede documentos.
Depressa, vai, homem!
LEONARDO – Não! Amanhã a gente conversa com calma. Agora tenho que ir
encontrar a Verinha
ZEZÉ – Não tem perigo, doutor. (Leonardo sai, Zezé permanece em cena,
repetindo). Não tem perigo... Coragem.... Não tem perigo Não faça essa cara
de culpado... não tem perigo... amanhã... (Assustado, como se falasse a
alguém). Não tenho documentos! Dinheiro sim... (Cai sobre as mãos e fica
deitado) Mãe, tudo isso será seguro?
MARIA – (Pondo a cabeça de Zezé no colo). Sua casa diminuiu, sua rua
encurtou. Os velhos se abaixaram, o jardim encolheu. Não foi? Minha força é
pequena. Só valia por você. Não posso te dizer sim nem não. Dorme, meu
filho. Sono e amor ainda não custam nada.
(Apaga-se a luz que incidia sobre Zezé e Maria, acende-se uma sobre
Leonardo e Verinha.)
LEONARDO – Custou pra gente se encontrar, ué. Fiquei dez dias engaiolado
por causa daquela encrenca.
VERINHA – Esqueça. Agora passou. Você vai mesmo procurar a tal mulher?
VERINHA – Mas como é que a gente sai? Você acha que a polícia...
VERINHA – Quem?
LEONARDO – (Nervoso). Dê o fora, Eleutério. Você não tem nada contra mim.
Estou dentro do meu prazo. Não sou um coitado qualquer, você não me pega
com a sua conversa.
ELEUTERIO – Não estou querendo pegar ninguém, doutor. Estou aqui pra
trocar idéias...
LEONARDO – Conheço as suas idéias. Que é que você quer?
LEONARDO – Quanto?
ELEUTERIO – Se pudesse.
ZEZÉ – Tudo certo. Que bonita manhã que vai ficar! Parece feita de vidro. Se a
gente não for delicado quebra. Até os passarinhos cantam quebradiço. Na hora
que vier o sol, entrego o recado e vou ficar livre! Tudo vai ter seu jeito. Helena,
a vida, minha mãe.... Afinal, sou moço! Doença também tem cura; liberdade e
bom trato, comida de casa, carinho, sossego. A vida de todo o dia é remédio.
Volto pra Minas. Lá tem ar bom, de terra conhecida... Trabalho de relojoeiro.
Delicado. Consertar o tempo…. É tarde! Ele está demorando.... Vou ver a luz
mudar e voltar como ontem, Helena, queria você aqui pra ver comigo. Assim a
gente via mais, tudo aberto, tudo tão sem fim... melhor morrer do que ficar
fechado outra vez. Mas ele vem.... Já vem vindo... um carro.... Deve ser ele...
se esconde, Zezé sendo ele, ele te chama.
ZEZÉ – Mãe! Mãe! Eles me pegaram! Puxa, me pegaram direitinho! Mae! (Cai)
MARIA – Eu sei.
ZEZÉ – Que é?
ZEZÉ – É mesmo.... Vai prô lado do sul... Vai embora... (morrendo). Você
ainda.... Pode... Mãe?
MARIA – (Olhando para o avião com ódio). Agora eles te mataram, meu filho.
ZEZÉ – (Que não ouviu). Você pode sim, você sempre.... Pode... (morre)
MARIA – (Olhando para o alto) E do teu corpo marcado brotarão três tiros....Ou
então três moedas para três mendigos tentarem, como os ricos, subornar o
destino...