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REPRESENTAÇÃO

Variações de um conceito
Comitê Científico

Ary Baddini Tavares


Andrés Falcone
Alessandro Octaviani
Daniel Arruda Nascimento
Eduardo Saad-Diniz
Francisco Rômulo Monte Ferreira
Isabel Lousada
Jorge Miranda de Almeida
Marcelo Martins Bueno
Miguel Polaino-Orts
Maurício Cardoso
Maria J. Binetti
Michelle Vasconcelos Oliveira do Nascimento
Paulo Roberto Monteiro Araújo
Patricio Sabadini
Rodrigo Santos de Oliveira
Sandra Caponi
Sandro Luiz Bazzanella
Tiago Almeida
Saly Wellausen
MARTA NUNES DA COSTA

REPRESENTAÇÃO

Variações de um conceito

1ª edição

LiberArs
São Paulo – 2020
Representação: variações de um conceito

© 2020, Editora LiberArs Ltda.

Direitos de edição reservados à


Editora LiberArs Ltda

ISBN 978-65-86123-46-3

Editores
Fransmar Costa Lima
Lauro Fabiano de Souza Carvalho

Revisão técnica
Cesar Lima

Editoração e capa
Editora LiberArs
Nathalie Chiari de Paula

Imagem da capa
Marta Nunes da Costa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP

R425 Representação: variações de um conceito / organizado por Marta Nunes da


Costa. - São Paulo, SP : Liber Ars, 2020.
152 p. : il. ; 16cm x 23cm.

Inclui bibliografia e índice.


ISBN: 978-65-86123-46-3

1. Filosofia política. 2. Conceito. I. Costa, Marta Nunes da. II. Título.

CDD 320.01
2020-1148 CDU 321.01

Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410

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Editora LiberArs Ltda


www.liberars.com.br
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SUMÁRIO

Introdução
MARTA NUNES DA COSTA ............................................................................... 7

O problema da representação político jurídica


em sua origem: Thomas Hobbes e a fundação da
República Parlamentar Inglesa
JOÃO GABRIEL DA SILVA PINTO FILHO ..................................................... 13

A “vontade do povo” e a
autoridade da representação
DARIO CASTIGLIONE .......................................................................................... 29

Representação com e Sem Povo –


o ambivalente caso brasileiro
MARTA NUNES DA COSTA ............................................................................... 51

Os tribunais também representam: “Legitimidade pela


Constituição”, Representação e os Tribunais
ALESSANDRO FERRARA .................................................................................. 85

Democracia como compromisso:


Uma alternativa à oposição entre democracia
epistêmica e democracia agonística
GUSTAVO HESSMANN DALAQUA ................................................................. 101

Instituições: entre simpatia e estima


ESTER MARIA DREHER HEUSER .................................................................. 121

Um breve comentário sobre


o conceito de trabalho no jovem Hegel (1802-1803)
RICARDO PEREIRA DE MELO ......................................................................... 137
INTRODUÇÃO

MARTA NUNES DA COSTA

A teoria democrática tem visto uma expansão considerável nas últimas


décadas, o que é compreensível. A partir das ondas de democratização dos anos
1970 e 1980, em que inúmeros países e seus povos se libertavam nos grilhões
autoritários ou ditatoriais, a democracia se tornou quase hegemónica no mundo,
tendo-se efetivamente tornado regra no mundo ocidental. Digo quase
hegemónica porque, apesar dessa expansão clara e visível do ponto de vista de
regime e governo político, não é claro que esse entendimento consiga abarcar
as conceituações mais profundas, que imaginam a democracia como ‘modo de
vida’ (na esteira de Dewey) ou que consideram que a democracia é sempre
radical, assente na real participação e engajamento de seus membros. O ‘ser
membro’ de uma democracia não significa, para estes, apenas uma pertença
passiva em que direitos formais são assegurados; o ‘ser membro’ aponta para
uma disposição real e prática de cidadania, isto é, de participação e construção
do comum. Esta distinção óbvia entre democracia, entendida como forma de
governo, e democracia, entendida como modo de vida, e portanto, englobando
os aspectos sociais, culturais e da própria construção da subjetividade, tem
ficado progressivamente mais clara à medida que conflitos internos e
específicos a cada democracia nacional se enraízam e parecem cada vez mais
difíceis de resolver – basta pensar nos processos múltiplos de contestação do
próprio sentido de democracia, através do apelo a questões socioeconômicas,
distributivas, assim como a questões mais profundas acerca da relação entre
justiça e igualdade, entre tantas outras variáveis.
Uma forma de abordar estes conflitos, ou avaliar o nível de sucesso de
cada democracia (como quer que o queiramos entender) reside em introduzir
como parte da nossa reflexão o conceito de representação política. Desde
Thomas Hobbes o conceito e teoria da representação se tornou essencial para

7
pensar a construção do Estado-Nação e, com ele, do Povo e seus conceitos
correlatos. O conceito de representação tornou-se aquele a partir do qual se
pensa, se imagina e se projeta a ideia de governo e seus sistemas de práticas.
Durante séculos a questão era exatamente essa: identificar, caracterizar,
delimitar os princípios e formas do governo representativo de modo a articular
os dois polos da existência política: o polo da civitas, commonwealth, respublica,
e o polo do povo. No centro de ambas, a experiência de associação política que,
de forma natural ou convencional, se afirmara como necessária à experiência e
vida humanas. Uma associação que, como Rousseau alertara em Do Contrato
Social, se diferenciava da mera experiência de agregação, esta última sempre
precária e temporária.
Nas últimas décadas, porém, a teoria democrática ganhou estatuto
independente face a outras teorias políticas de governo e, no centro dela,
observamos o deslocamento da preocupação com a definição e caracterização
da representação política para a definição e caracterização da representação
política democrática. Com efeito, a primeira não garante a segunda.
O problema de definir e caracterizar o que torna a representação
política democrática já seria suficientemente complexo por si só; porém, a este
problema, pensado a partir da perspectiva interna do Estado-Nação, somos
forçados a adicionar uma camada suplementar e igualmente pesada, a saber a
camada das relações entre Estados, dada a reconfiguração trazida pela
globalização cada vez mais acelerada dos últimos quarenta anos. Dito de forma
simples, o problema não é só identificar as condições necessárias que tornam a
representação política nacional democrática, e portanto, caracterizar o tipo de
relação representativa entre representantes e representados a nível interno
mas também é preciso dar conta de outras formas de configuração da relação
representativa, a nível transnacional e supranacional, que afetam diretamente o
modo de funcionamento interno mas que, pela sua natureza e especificidade,
não se sujeitam à dinâmica da reciprocidade implicada e exigida na primeira. É
esta assimetria – entre nações e agentes e/ou interesses supranacionais/
globais – que obriga a uma reavaliação e redefinição das teorias democráticas
existentes. O conceito de representação torna-se essencial nesta tarefa.
O objetivo deste livro é oferecer alguns olhares sobre a complexidade
do conceito e práticas de representação política.
O primeiro capitulo intitulado “O problema da representação politico
jurídica em sua origem: Thomas Hobbes e a fundação da República Parlamentar
Inglesa”, começa por oferecer uma reflexão sobre a origem da teoria da
representação politico-jurídica de Hobbes. Aqui, Joao Gabriel da Silva Pinto
Filho reconstrói a argumentação hobbesiana, mostrando como o autor, ao
inserir o conceito de representação, desloca o problema da legitimidade do

8
poder politico para a questão dos fundamentos do Estado. Com efeito, é em
Hobbes que encontramos a primeira grande sistematização de conceitos que ate
hoje permanecem centrais para pensar a politica democrática contemporânea:
representação, vontade, autorização, legitimidade, entre outros. Se a proposta
hobbesiana constitui, em si mesma, uma redefinição do nosso imaginário
coletivo, ela foi sem dúvida aquela que, a partir de uma conceptualização da
relação estreita entre representação e autorização, permitiu a consolidação de
uma leitura em que o Soberano, na medida em que é Pessoa unificadora das
vontades, é o representante por excelência, não podendo por isso ser destituído.
Cabe não esquecer que a preocupação de Hobbes era oferecer uma nova grelha
conceitual capaz de evitar, a qualquer custo, a guerra civil.
A contribuição de Dario Castiglione intitulada “A ‘vontade do povo’e a
autoridade da representação”, visa dar corpo a uma série de intuições e
questionamentos atuais a partir da constatação de que o conceito de populismo
vem ganhado cada vez mais espaço teórico mas também mais espaço real,
político, com impacto direto nas democracias contemporâneas. No segundo
capítulo, Castiglione busca compreender e elucidar os modos que o conceito de
representação política desempenhou nos processos simultâneos de constituição
e manutenção da autoridade do Estado unitária e do exercício do poder misto.
Sendo o conceito de soberania popular constitutivo do nosso imaginário
coletivo democrático, urge compreender de que forma a ‘vontade do povo’
permanece essencial para a formação da unidade política. Para explorar este
desafio Castiglione estabelece uma distinção entre ‘linguagem do público’ e
‘linguagem do povo’, a partir da qual reavalia os limites dos mitos democráticos
(a saber, o mito da ‘presença’ e o mito da Vontade Geral) e sugere uma atitude
mais positiva ao evocar o povo na democracia. Com efeito, para Castiglione o
desafio atual consiste em explicar, por um lado, como a esfera pública integra e
legitima o sistema representativo como um todo e, por outro lado, como existe
uma distinção analítica entre público e povo que deve ser contemplada na forma
como imaginamos uma respublica hoje, ou, dito por outras palavras, de que
modo as reconfigurações nos meios de comunicação e produção de
conhecimento devem ser entendidas e mantidas e/ou transformadas no sentido
em que a representação política contenha em si o compromisso com a inclusão
e empoderamento democráticos.
No terceiro capítulo, intitulado “Representação com e sem Povo – o
ambivalente caso brasileiro” Marta Nunes da Costa começa por olhar para as
camadas do conceito de representação. A partir de um diálogo com Yves
Sintomer a autora reconstrói os sentidos de representação, nomeadamente, a
identity representation e embodiment representation. Tendo como contraponto
os sentidos apontados por Sintomer, Nunes da Costa caracteriza a especificidade

9
do desafio diante de nós quando tentamos transpor uma conceptualização
teórica europeia ou anglo-saxónica para o Brasil. Com efeito, todo o capítulo
tenta capturar e traduzir a intuição de que pensar o que seria uma
representação política democrática no Brasil exige uma abordagem mais ampla,
quer do ponto de vista do processo de constituição do Estado-Nação enquanto
respublica, quer do ponto de vista das transformações recentes trazidas pela
expansão compulsiva das tecnologias de comunicação que obrigam,
necessariamente, a repensar o conjunto de categorias tradicionais a partir do
qual as próprias teorias políticas se edificam. De seguida, Nunes da Costa
desenvolve a hipótese de que assistimos hoje a um processo de construção de
um ‘Novo’ Brasil, reconstruindo o percurso político dos últimos anos,
começando pela análise fenomenológica das Jornadas de Junho de 2013 que
considera ser o ponto de ruptura com o paradigma previamente dado. Por
último, a autora olha para a relação entre Jair Bolsonaro e o projeto do ‘Novo’
Brasil, analisando os mecanismos de reconfiguração do ‘Povo’ (e o papel das
redes sociais e WhatsApp) e os modos pelos quais estes abrem a possibilidade
para a redefinição da relação representativa democrática.
No quarto capítulo intitulado “Os tribunais também representam.
‘Legitimidade pela Constituição’, Representação e os Tribunais” Alessandro
Ferrara cumpre a tarefa de repensar a representação e o papel da revisão
judicial no processo democrático. A partir de um horizonte neo-rawlsiano,
Ferrara explora a relação entre o paradigma do liberalismo político e as
implicações do princípio liberal de legitimação. Esta questão é urgente na
medida em que a partir dela se torna explícito o embate entre, por um lado, o
eleitorado e, por outro lado, o Povo. Claramente, o Povo abrange todos os
cidadãos da república - não só os cidadãos presentes, mas também os passados
e os das gerações futuras. Isso significa que existe uma relação fundamental, co-
existensiva e co-originária entre Povo e Constituição. Neste sentido, cabe a
Suprema Corte proteger os interesses do Povo tal como inscritos na carta
magna. Dito por outras palavras, o Povo é constituinte, enquanto o eleitorado é
apenas constituído, e portanto, temporário, passageiro, limitado a esfera do
presente. Depressa nos deparamos com uma outra tensão, a saber, a tensão
entre o “autor"da constituição (e portanto, o Povo), a geração presente,
desdobrada em eleitorado e outros segmentos da população, e o “intérprete” da
Constituição. É natural que a geração presente queira deixar a sua marca na
interpretação constitucional, porém, o argumento da maioria não é suficiente
para salvaguardar os princípios fundadores e essenciais da constituição
democrática. Com efeito, existe sempre o perigo de que a geração presente
desfigure a constituição, caso absolutise a sua condição presente e suspenda
seus compromissos para com as outras gerações. Ora, cabe à Suprema Corte ser

10
o intérprete da vontade do Povo devendo, acima de tudo, prezar para que as
regras do jogo democrático sejam mantidas e reforçadas. Neste sentido, Ferrara
defende que os tribunais também representam, apesar de poderem veicular uma
impressão de assimetria com a incorporação presente da “vontade do Povo”.
Mais do que isso, o tribunal constitucional é uma instituição definida pelo
mandato de representar o Povo, estendendo-se para lá da instanciação presente
(eleitorado) e abarcando todos os cidadãos livres e iguais, compreendendo
passado, presente e futuro.
No quinto capítulo intitulado “Democracia como compromisso: uma
alternativa a oposição entre democracia epistémica e democracia agonística”,
Gustavo Hessmann Dalaqua contesta a dicotomia tradicional entre democracia
epistémica e democracia agonística e defende que a conceptualização de
democracia como compromisso oferece uma alternativa a filosofia política
contemporânea. Com efeito, a partir de um dialogo com John Stuart Mill,
Hessmann Dalaqua mostra que o autor já concebia o dissenso ou conflito como
parte fundamental da politica. A partir desta clarificação Dalaqua mostra como
a leitura de Urbinati é enviesada, já que a dicotomia por ela explorada (entre
democracia epistémica e democracia agonística) culmina numa leitura
redutivista da política. A busca de compromisso, com J. S. Mill bem mostra, não
significa anulação de conflito per se, nem significa que se deva chegar a
compromissos a qualquer custo. Pelo contrário, os compromissos são benéficos
apenas na medida em que refletem e reforçam os princípios fundadores da
democracia, a saber, a liberdade e a igualdade dos cidadãos. Na esteira de Mill,
Morley e Kelsen, Dalaqua mostra como o conceito de compromisso nos permite
pensar fora da dicotomia acima mencionada, sendo capaz de reconhecer os
conflitos e paixões como práticas centrais do processo democrático.
No sexto capítulo, em “Instituições: entre simpatia e estima” Ester
Dreher Heuser pensa o funcionamento das instituições brasileiras a partir da
grelha conceptual de Gilles Deleuze e busca identificar a forma como
compreendemos as instituições (democráticas) e ajuizamos o seu
funcionamento. Assim, explorando a ideia deleuziana de que a justiça é o
“artifício do mundo da moral”que promove a extensão da simpatia ao ponto de
estimar alguém, sem precisar ter simpatia por ele/a, Heuser reconstrói a
perspectiva deleuziana no que diz respeito a relação entre moral, política e
direito.
No último capítulo intitulado “Um breve comentário sobre o conceito
de trabalho no jovem Hegel (1802-1803) Ricardo Pereira de Melo mostra como
o conceito de trabalho aparece nos primeiros escritos de Hegel como um
problema típico da economia política de Adam Smith. Esta conceptualização

11
será determinante na forma como até hoje imaginamos as possibilidades
humanas relacionadas à atividade do trabalho.
Convidamos o leitor a pensar conosco e a delinear novas estratégias que
permitam fazer da representação política uma representação democrática.

Marta Nunes da Costa


Campo Grande, 19 de Maio de 2020

12
O PROBLEMA DA REPRESENTAÇÃO
POLÍTICO JURÍDICA EM SUA ORIGEM:
THOMAS HOBBES E A FUNDAÇÃO DA
REPÚBLICA PARLAMENTAR INGLESA.

JOÃO GABRIEL DA SILVA PINTO FILHO1

“The world is a stage,


And all men and women are merely actors.
They have their entrances and exits,
And every man, in his time, plays many roles.”
William Shakespeare” 2.

A Representação político jurídica é um dos grandes desafios enfrentados


pela filosofia política desde sua origem no inicio da modernidade até a atualidade.
Segundo Hanna Pitkin, quem primeiro ofereceu um relato sistemático de seu
significado foi o filósofo inglês Thomas Hobbes 3 . A proposta hobbesiana é uma
resposta a diversas questões que fervilharam em seu tempo no entorno de um dos
eventos políticos mais significativos da era moderna, a guerra civil inglesa.
Neste artigo, analisamos a teoria da representação de Hobbes associada ao
contexto de seu surgimento. Dividimos nossa análise em três momentos. No
primeiro, apresentamos alguns pontos da teoria da representação contida no Levia-
than. No segundo, a associamos ao momento histórico-linguístico de sua elaboração.
No terceiro, identificamos alguns problemas de tal teoria que remanescem até nossos
dias. Fundamentada na relação existente entre a teoria da representação de Hobbes e
o contexto histórico-linguístico de seu surgimento, nossa hipótese é que alguns pon-
tos da problemática enfrentada pela representação político jurídica na atualidade
existem desde sua origem no cerne da maior obra de Hobbes.

1
Doutorando em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Minas Gerais. Email:
joaogabrielfilosofia@hotmail.com
2
SHAKESPEARE, W. As You Like It . Act II-Scene VII.
3
“Hobbes is the only major political theorist who gives a fully developed, systematic account of its mean-
ing; other theorists’ views must be garnered from casual remarks or read between the lines”. PITKIN,
Hanna. The Concept of Representation (1967). p. 4.

13
1 – A teoria da representação de Thomas Hobbes

O conceito representação, inexistente nos primeiros textos políticos


hobbesianos, The Elements of Law Natural and Politic de 1640 e De Cive de 1642, é a
maior inovação apresentada no Leviathan de 16514. Hobbes inicia o capítulo XVI de tal
obra remetendo a palavra pessoa às máscaras do teatro da antiguidade, o
 (prósopon) dos gregos e a persona dos romanos, termo que, segundo ele, foi
transferido dos palcos para os representantes nos tribunais. De acordo com o filósofo:

“Uma pessoa é aquela cujas palavras ou ações são consideradas, quer


como suas próprias, quer como representando as palavras ou ações de
outro, ou de qualquer outra coisa a que sejam atribuídas, seja com ver-
dade ou por ficção. Quando elas são consideradas como suas próprias ele
se chama uma pessoa natural. Quando são consideradas como represen-
tando as palavras e ações de outro, chama-se pessoa fictícia ou artificial”
5.

Assim como no teatro, o ator é aquele que representa as palavras e/ou as ações
de um autor. A pessoa natural é autor e ator ao mesmo tempo, e a pessoa artificial o
ator representante de um autor, de um representado. Não há identificação plena da
pessoa com o representado ou com o representante. Ela é junção em implicação
dupla, que aponta para os dois lados e replica o representado no representante.
Pessoa, portanto, é o conceito que possibilita a Hobbes elaborar sua teoria da
representação, onde convergem as vontades do soberano e dos súditos. A pessoa
representativa permite que o humano hobbesiano, indivíduo individualista por
natureza, portador de uma volubilidade natural, faça perdurar previsão de constância
da sua vontade no tempo através de seu representante. A representação viabilizada
pela personificação cria um vínculo político jurídico onde a vontade sinalizada ontem
seja mantida hoje e no futuro, com a garantia de reciprocidade, algo determinante
para a manutenção da estabilidade do corpo político6. Ela propicia, segundo Yves

4
Apesar da amplitude que a representação possui na obra de Hobbes, neste artigo focaremos apenas seu
registro político jurídico. O trabalho de Mónica Vieira é indicado para o aprofundamento nas diversas
nuances do conceito. “My interest lies, therefore, not simply in Hobbes's explicit use of the word 'repre-
sentation', but in the ways he conceptualizes and employs some of the main, developments of the concept
- traversing the domains of the pictorial, the theatrical, the judicial, the political and the theological - to
develop his political theory, under one broad, overarching view of representation that covers all of these
fundamentally affiliated uses.” BRITO VIEIRA, M. The elements of representation in Hobbes: aesthetics,
theatre, law, and theology in the construction of Hobbes’s theory of the state. (2009). p. 8.
5
HOBBES, T. Leviathan, XVI. p. 96.
6 “Hobbes obviously sees personation, like ratiocination, as an enormous benefit conferred by lan-

guage. By virtue of being able to personate, human beings achieve a way of predicting one another,
which is not merely rooted in their ability to read minds. They can underwrite mutual reliance by
using words and actions, not just as a reporter's indications of their judgment and will, but as a

14
Charles Zarka, que a grande cacofonia de uma multidão atuante em monólogos des-
conexos se torne uma unidade que fundamenta o mesmo texto de uma única peça
teatral7.
De acordo com Hobbes, o que a instaura a relação representante/ representado
é a autorização. O ator/representante age por autoridade concedida pelo autor/repre-
sentado em um pacto/contrato que funda tanto uma instância soberana de poder como
a unidade política e jurídica do Estado Civil. Segundo o filósofo inglês:

“... de modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: Autorizo
e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a
esta assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu
direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito
isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim
civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em
termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo
do Deus Imortal, nossa paz e defesa”8.

Autorizar é, portanto, um ato jurídico linguístico contratual que vincula a von-


tade do autor/representado a do ator/representante9. No ‘momento’ do pacto/contrato
e da representação/ autorização que advém do experimento mental do estado de na-
tureza10 onde “o homem é o lobo do homem”11, o Estado Civil irrompe e ocorre a
concretização da dimensão simbólica do frontispício original do Leviathan, onde di-
versos humanos compõem um gigantesco corpo artificial encaixados como peças de
uma máquina colossal. Segundo Hobbes “os pactos e convenções mediante os quais
as partes deste Corpo Civil foram criadas, reunidas e unificadas assemelham-se se
àquele Fiat, ao Façamos o homem proferido por Deus na criação” 12. Nesse ‘mo-

guarantor's warranty or assurance.” PETIT, P. Made with Words: Hobbes on language, mind, and pol-
itics (2008) p. 59.
7
“L’institution de l’Etat a donc pour fonction de rendre possible le spectacle en imposant un texte unique”.
ZARKA.Y. Hobbes et la pensée politique moderne (1995) p. 212.
8
HOBBES, T. Leviathan. Cap. XVII. p. 105.
9
“Hobbes recognizes two aspects of authority, on what it means to own an action. He defines it as the
right to perform the action, but apparently regards it equally as responsibility for the actions (as if one had
one it oneself).” PITKIN, H. The Concept of Representation (1967). p. 19.
10
Evitamos usar hipótesis (ὑπόθεσις) porque uma afirmação conceitual a ser comprovada ou negada não
é dispositivo comum ao método hobbesiano. “O experimento mental que configura o Estado de natureza
consiste na resposta a algumas perguntas.” SOARES, L. A invenção do sujeito universal: Hobbes e a
politica como experiência dramática de sentido. (1995). p. 213.
11
Esta frase frequentemente associada à filosofia de Hobbes, utilizada por ele para descrever o estado de
natureza pela primeira vez no De Cive, obra anterior ao Levitahan, é de uma comédia de Plauto: “Lupus
est homo homini, nom homo, quom qualis sit non nouit.” PLAVTI. Asinaria. Comoediae. At. II (1946).
p.14.
12
HOBBES, T. Leviathan. Introdução. p. 5.

15
mento’, a vontade de todos se transubstancia na mesma vontade e se corporifica ori-
ginando o Estado, deus mortal, e sua alma, a soberania absoluta, uma instância de
poder una13.
Para compreendermos tal ‘momento’ destaco um trecho de passagem citada
anteriormente: “é como se cada homem dissesse a cada homem”. Vários membros
de frase como este onde o autor se utiliza do Pretérito Imperfeito do Subjuntivo nos
remetem ao “Leia-te a ti mesmo”14, solicitação feita aos leitores na introdução do
Leviathan para que verifiquem se não encontram em si próprios aquilo que está sendo
descrito15. Diferentemente de um relato sobre um “momento” histórico, ou de uma
hipótese que pode ou não ter ocorrido, o que Hobbes nos oferece é a descrição de um
pactua/contratar/representar/autorizar que todo humano leitor de si mesmo pode cal-
cular como necessário, após verificar sua condição de indivíduo individualista capaz
de matar violentamente ou ser morto na ausência de um poder forte o suficiente para
manter a todos em segurança. Defendemos que ‘momento’ da autorização não ficou
no passado. Ele está no presente de todo leitor do Leviathan que concorda com sua
necessidade
Reforça nossa tese o fato de ser praticamente impossível que em um único
instante da história os humanos tenham sido todos afetados pelas mesmas paixões e
pelos mesmos cálculos da razão, e criado juntos um artifício para buscar a paz. Tal
‘momento’ histórico requer tantos pré-requisitos que gera ao paradoxo da
necessidade de um contrato anterior ao contrato 16 . Quando perguntamos se uma
comunicação racional organizada deve preceder o pacto, ou se o que deve ocorrer é
o inverso, ficamos aprisionados em um circulo vicioso que inviabiliza a irrupção da
linguagem17. A descrição de Hobbes, que converge na representação/autorização,
está mais próxima de um experimento mental proposto ao leitor que busca justificar

13
“Ainsi l'autorisation devient-elle la légitimation qui supporte le procès de representation, et qui relaye
la source a ses signes. Si l'on considère de nouveau le paradigme initial, on comprend comment l'image
tentait de traduire, par une incorporation organiciste, cette solidarité qui unit les individus au représentant.
S'incorporer les individus, en effet, veut dire créer une relation bipolaire infrangible”. JAUME, L. Hobbes
et l’État representative modern (1986) p. 85.
14
HOBBES, T. Leviathan. Introdução. p. 5.
15
Outro uso importante do Pretérito Imperfeito do Subjuntivo: “Mas mesmo que jamais tivesse havido
um tempo que os indivíduos se encontram numa condição de guerra de todos contra todos...” HOBBES,
T. Leviathan. Cap. XIII. p. 77.
16
"As my interpretation of Hobbes will argue, the chief prerequisites of a social contract cannot arise
unless it has been preceded by the contract which it has to precede." KRAMER, M. Hobbes and the Par-
adoxes of Political Origins (1997) p. 4.
17
“Se incurriría em um círculo vicioso em la forma de la argumentación cuando se disse que, para que
pueda haber uma comunicacion organizada com certa racionalidade, tiene que haber um pacto, pero para
que pueda haber um pacto tiene que haber uma comunidade organizada com certa racionalidad.”
PALACIOS, V. Lenguage y Pacto em Thomas Hobbes (2001) p. 53.

16
a legitimidade do Estado, da soberania, e a adesão obediente do corpo político ao
poder instituído18.
Sem dúvida, o vínculo de obediência dos súditos ao soberano, ponto frágil dos
primeiros textos políticos hobbesianos, ganha uma engenhosa justificação através da
representação no Leviathan. Segundo David Gauthier, a autorização é fonte de obe-
diência, pois se a representação identifica a vontade soberana com a dos súditos, “en-
tão todas as obrigações são auto impostas”19. No estado natural os homens não são
obrigados a nada, mas ao contratar e autorizar se obrigam a obedecer. Como “não se
alcança a segurança somente por pacto, mas principalmente pela adesão a ele”20,
pressupõe-se um cálculo obediente da razão auto interessada de todos os súditos.
Em contrapartida, Jean Hampton afirma que a tese de Gauthier não tem apoio
textual, porque Hobbes não define o que é a autorização. A intérprete entende que a
obrigação de obedecer que advém da transferência de direitos das obras políticas
hobbesianas iniciais é mantida no Leviathan. Ela defende que “a identificação entre
senhor/soberano e escravo/súdito acontece no Do cidadão, nos Elementos da lei e
também no Leviathan”21, pois o verdadeiro intuito do filósofo com a representação
seria encobrir uma relação entre dominador e dominados que é recorrente em todas
as suas obras políticas 22. A representação e a autorização seriam então um grande
engodo.
Acreditamos que Hampton se equivoca duas vezes. Primeiro, se a autorização
é informada pela unificação das vontades na representação, a obrigação de obedecer
não se reduz a uma simples transferência de direitos, pois a relação
representante/representado esclarece o que, e porque se autoriza. Em segundo, nas
duas obras políticas hobbesianas iniciais não há o tratamento da relação entre o
senhor e escravo. Ela será problematizada aproximadamente um século e meio depois
por Hegel23. O que Hobbes apresenta é uma analogia entre servo e súdito em Os
Elementos da lei sem a desenvolver. No De Cive, o autor mantém a associação, e a
relaciona com a primeira ocorrência de seu conceito de liberdade como ausência de
impedimentos físicos. No Leviathan, a analogia entre servo e súdito é praticamente

18
“La ficción es así puramente ideológica. El enunciado que le transporta constituye el sintoma de uma
realidade distinta de aquélla que é efoca. La realidade histórica es la del acto de poder que instaura el poder
absoluto; la realidade que efoca el anunciado es la convención. La circunstancia adicional de que com el
pacto el poder se presente para provecho de todos siendo que su instauración histórica lo es provecho del
poder absoluto, reduplica el caráter ideológico del enunciado que transporta la ficción.” MARÍ, E.
Racionalidad e imaginário social em discurso del orden. In: MARÍ, E. et al. Dercho y Psicoanálisis: teoría
de las ficciones y función dogmática (1987) p. 61.
19
GAUTHIER, D. The Logic of Leviathan: Moral and Political Theory of Thomas Hobbes (1969) p. 40.
20
Ibid. p. 76.
21
HAMPTON, J. Hobbes and the Social Contract Tradition (1995) p. 120.
22 “Gauthier admitted earlier that Hobbes never gives an explicit definition of authorization. So there

seems no reason not to take this passage evidence of what Hobbes really thinks authorization is,
that is, the surrender of rights to the sovereign.” Ibid. p.118.
23
Vide: Phänomenologie des Geistes de G.W.F.Hegel.

17
abandonada, quando o autor afirma que a liberdade civil é tudo aquilo que não é
proibido por lei. O aperfeiçoamento contratual realçado na maior obra hobbesiana
com a representação e autorização evidencia melhor a relação entre aquele(s) que
detêm o poder e aqueles que devem obedecer. Se compreendermos o contrato e a
autorização como uma pergunta sempre renovada aos leitores, não há engodo algum
nesse ponto da filosofia de Hobbes.
Certamente a teoria da representação hobbesiana não se encontra livre de
alguns problemas24. Todavia, não nos parece algo muito prudente a rotular como uma
tentativa de ocultação da dominação sem considerar alguns de seus pormenores.
Nossa aposta é que a forma mais adequada para o aprofundamento na compreensão
sobre a temática em questão é sua análise relacionada ao contexto histórico-linguís-
tico de seu surgimento, inserindo-a no debate de sua época e identificando as questões
que ela visa responder. Cientes dos riscos de diluição dos argumentos da obra no
debate de seu período, e da tentação da busca de elementos históricos que justifiquem
cada procedimento do autor, acreditamos que tal inserção traz à tona elementos teó-
ricos relevantes para a compreensão da proposta do filósofo que permanecem até a
atualidade, ao mesmo tempo que delimita o escopo da capacidade de penetração de
uma obra política em seu próprio tempo, considerando, por exemplo, que a identifi-
cação de pessoas naturais na Londres setecentista excluiria grande parte da popula-
ção25.

24 Hanna Pitkin, em The Concept of Representation, identifica três problemas na teoria hobbesiana
da representação. Destacamos aqui um recorte dos argumentos da intérprete: 1) “The actions of
some persons are authorized not by the one they represent, but by a third party”. 2) “The simplest and
most obvious example of an unauthorized artificial person of this kind is the fraud or swindler. A con-
tract made by an authorized representative obliges the author as if he had signed it himself. They are
persons who, in one way or another, pretend to be authorized by someone else, but in fact are not”. 3)
“Hobbes introduces a further troubling example - that of the stage actor, who is in certain respect like
the swindler, but whose case fits neither the standard author-actor pattern nor either of the variations.
Ordinarily the actor in a play does not claim or even pretend to be authorized representative of anyone.
O segundo dos problemas parece procede porque não há no Leviathan associação entre “artificial
person” e “the fraud or swindler”. Quanto ao terceiro, Hobbes faz alusão ao teatro apenas para
demonstrar como compreende o conceito de persona, mas não se atem em nenhum local na análise
do stage actor. Apenas o primeiro dos problemas parece realmente relevante, mas não atinge o
núcleo duro da teoria hobbesiana. Certo é que Pitkin apresenta uma relevante obra sobre a
representação onde atribui pertinente valor a Hobbes, contestando intérpretes que afirmam que a
questão da representação política aparece pela primeira vez em Considerations on Representative
Government (1861) de John Stuart Mill. Para aprofundamento nos problemas elencados por Pitkin
na teoria da representação de Hobbes vide: NÖTHLING, Vander Schulz. A teoria hobbesiana da
Representação. Pensar-Revista Eletrônica da FAJE v.3 n.1 (2012): 87-100
25 “Nor does Hobbes even treat the class of natural persons as coterminous with that of sane adult

males. In Hobbes's England some 20 per cent of the latter class would have been servants, and serv-
ants according to Hobbes are not to be counted as natural persons, or at least not for a considerable
number of purposes. This exclusion stems from the fact that the civil war law takes lawful families
to be united in 'the Father or Master' as 'one Person Representative'. But to say that a father is a
representative is to say that he has the right to speak and act in the name of his entire family. This is
turn means that, insofar as the father chooses to exercise this right, his household servants (to say
nothing of his wife and children) cannot be counted as natural persons, since they lack the required

18
2 – A teoria da representação hobbesiana e seu contexto histórico-linguístico

Na Inglaterra da época de Hobbes, próximo a metade do século XVII, o rei


Charles I afrontava com constância o Parlamento embasado na defesa do direito di-
vino dos reis, adaptada ao anglicanismo por seu pai, James I, para o enfrentamento
de querelas teóricas com os jesuítas e o Papa. O principal foco do debate que desen-
cadeou a guerra civil nos meados dos setecentos foi o questionamento sobre quem
possuía um fundamento legítimo para o exercício do poder político na Inglaterra: um
monarca que se dizia escolhido por Deus, ou um Parlamento, composto em grande
parte pela Câmara dos Comuns, eleitos pela maioria do povo inglês com direito a
voto. Depois de quase uma década de sangrentas batalhas entre o exército real e os
soldados do Parlamento, com os rumos do conflito praticamente definidos, os parla-
mentares passaram a negociar com o rei sua rendição.
Com medo de que as negociações fossem regredir para uma restauração da
monarquia, uma ala radical do exército parlamentar autodenominada levellers (nive-
ladores) elaborou um documento, Agreement of the People (Acordo do Povo),
exigindo o julgamento e condenação do rei, a universalização do direito a voto, e a
instauração de uma república “democrática” na Inglaterra. Pairou no ar a ameaça de
um levante do exército. Diante da afronta, os parlamentares atenderam a principal
reivindicação dos insubordinados, e o rei foi julgado, condenado e morto. Pouco
depois foi ordenada a prisão dos principais líderes levellers, mantido o direito a voto
vinculado a propriedade, e fundada uma república parlamentar na Inglaterra em 1649,
o mesmo ano em que Hobbes iniciou auto exilado em Paris a escrita do Leviathan.
Ferdinand Tönnies, pesquisador alemão responsável pela reunião da obra
completa e das cartas de Hobbes em Londres entre o final do século XIX e início do
século XX, fornece um minucioso relato do período do exílio hobbesiano em Thomas
Hobbes: Leben und Lehre (Thomas Hobbes: Vida e obra). Amparado pela
correspondência de participantes do exílio francês, Tönnies revela o enorme desgaste
ocorrido entre o filósofo e a corte inglesa durante a guerra civil26. Desde a publicação

capacity to speak an act on their own behalf.” SKINNER, Q. The purely artificial person of the state.
In: SKINNER, Q. Visions of Politics: Hobbes and Civil Science. vol II (2002) p. 192.
26
“Leviathan mir gerandt von London aus, und ich las ihn mit viel Begierde und Ungeduld. Noch war ich
kaum fertig damit, da zeigte mir Sir Charles Cavendish einen Brief, den er gerade erhalten hatte von
Hobbes, worin der Wunsh enthalten war, er möge ihn wissen lassen, was meine Meinung sei von seinen
Buche. Hierauf bat ich, er wolle ihm sagen, ich könne mich nicht genug wunder, dass ein Mann, der eine
so grosse ehrfurcht für das bürgerliche Gouvernement hege, dass er alle Weisheit und selbst die Religion
in einen schlichten Gehorsam und Ergebung darein auflöse, ein Buch publizieren sollte, wofür er nach der
Verfassung eines jedej jetzt in Europa bestehenden Gouvernements, ob es monarchisch Straufen bestraft
werden müsste. Mito dieser Antwort (die Sir Charles Ihm sandte) war er nicht zufrieden, und fand nachher,
da ich zum Könige nach Paris zurückkehrte, dass ich sein Buch sehr stark kritisierte, welches er in einer
wundershönen Abschrift auf Velin dem Könige überreicht hatte; und fand gleicherweise mein Urteil
insoweit bestätigt, dass er wenige Tage, ehe ich hinkan, gezwungen war, heimlich aus Paris zu fliehen, da
die Justiz sich bemüth hatte, ihn zu ergreifen, und bald nachher entkam er nach england, wo er niemals
irgend welche Belästigung fand.” TÖNNIES, Ferdinand. Thomas Hobbes: Leben und Lehre. (1896) p. 43.

19
do De Cive em 1642, as acusações veladas de ateísmo do círculo científico francês
foram gradativamente infectando os monarquistas, até que Hobbes se viu extrema-
mente solitário a enfrentar uma grave doença que quase findou sua vida. Após a morte
do rei Charles I em 1649, ele se viu isolado em uma corte em polvorosa. Recuperado,
e desejoso de voltar para casa, ele escreveu sua obra prima. Poucos dias depois de
pedir a opinião sobre seu novo manuscrito para um velho amigo desde a Universidade
de Oxford, Edward Hyde, Hobbes recebeu a notícia que havia sido expedida em Ver-
salhes uma ordem de prisão o acusando de traição, 27 a principal causa de sua fuga
para uma Londres republicana parlamentar onde lhe foi autorizada a publicação do
Leviathan28.
O debate no qual se insere o maior texto político hobbesiano perpassou toda a
guerra civil inglesa, chamada posteriormente de revolução puritana, que teve como
questão central a disputa pelo melhor regime de governo para ocupar o poder. Na
parte inicial o embate se centrou entre os defensores da monarquia contra os adeptos
do parlamento. Desde o início da década de 1640, panfletos parlamentares já
apresentam problemas representativos vinculados à figura do povo como fonte do
poder político. Em Fuller answer to a treatise by Doctor Ferne escrito em 1642,
Charles Herle defende que o povo “não guarda consigo nenhum poder que não o que
mantém para si na figura do Parlamento”, e também que “o consentimento do povo
forma o Parlamento, que uma vez constituído, não pode mais ser revogado” 29. Em
oposição a Herle, panfletos como o anônimo Touching the fundamental laws de 1643,
descrevem que “o parlamento é composto por atores representantes do povo”, e que
em caso de extrapolação de autoridade e usurpação do poder, é legitimo ao povo o
destituir30.
Na parte final da década de 1640, a disputa se deu entre os parlamentares
defensores de uma república parlamentar contra os levellers defensores de uma
república democrática. O manifesto Agreement of the People de 1647, reunião de

27
John Aubrey, amigo de Hobbes, afirmou posteriormente em sua obra Brief Lives que o filósofos antes
de fugir para Londres entregou uma cópia de seu polêmico livro para aquele que viria a se tronar o rei
Charles II . Ferdinand Tönnies defende que tal fato é improvável e que o historiador em questão é
extremamente parcial. Acreditamos que é bastante difícil que Hobbes tenha conseguido fazer outra cópia
manuscrita às pressas, e bastante improvável que ele tenha conseguido uma audiência com o herdeiro do
trono depois de ter sido acusação de traição.
28 O poeta John Milton, reconhecido mundialmente por seu poema Paradise Lost, foi redator de

diversos panfletos republicanos durante a guerra civil inglesa e defensor da liberdade de imprensa
em obras como a Aeropagitica (1644). Na época da publicação do Leviathan em Londres, ele ocupava
por ironia histórica o cargo de censor de publicações do regime republicano. Nesse mesmo período,
no inicio da década de 1650, ele travava um acirrado debate com os monarquistas na tentativa de
legitimar o tiranicídio do rei Charles I. Seu texto Eikonoklastes de 1649 recebeu a replica Defensio
Regia pro Carolo Primo escrita pelo líder humanista Claudius Salmasius em defesa da monarquia na
França, que Milton treplicou em 1652 com a Defensio pro Populo Anglicano. Vide: LEWALSKI, Bar-
bara. Life of John Milton: A Critical Biography. (2002).
29
MALCOLM, J. (org.) The struggle for sovereignty: Seventeenth-Century English political tracts.
(1999). p.255.
30
Ibid. p. 279

20
reivindicações levellers organizadas em longos debates no vilarejo de Putney nas
cercanias de Londres, onde se concentrava grande parte dos soldados descontentes,
explicita o pomo de discórdia entre os radicais do exército e o Parlamento: a
compreensão da figura do povo. Os parlamentares diziam possuir o direito
irrevogável de representar o povo, seus eleitores seletos detentores de direitos
políticos por possuírem renda mínima fixada e a posse de propriedades. Em
contrapartida, a principal reivindicação do manifesto leveller era a universalização
do direito a voto a todo o povo, todos os adultos do sexo masculino da população,
para a escolha de seus representantes.31 O que os soldados sublevados exigiam, em
verdade, era “o direito de voto e de revolta, com base na dissolução da categoria
política povo que amparava as pretensões absolutistas do parlamento”32.
Apesar de Hobbes nunca citar os argumentos que enfrenta, não é difícil iden-
tificar sua inserção nesse debate por cotejamento. No Leviathan, o autor se utiliza do
conceito povo com destreza. Além de alguns esparsos exemplos históricos ou bíbli-
cos, povo é mencionado em dois diferentes registros, um ‘ontológico’ quando ele
descreve o vir a ser do Estado pela unificação das vontades, e um ‘histórico’, quando
o regime de governo escolhido para ocupar o poder soberano for um governo popular:
a democracia. Quando se referi aos habitantes do Estado de forma geral o filósofo
utiliza corpo político (body politique), e nos demais momentos o termo preferido é
súdito.
Assim como nos primeiros textos políticos hobbesianos, no Leviathan não existe
uma democracia primitiva porque não há um demos constituído independente do Estado.
A elaboração da teoria da representação permite o aperfeiçoamento de argumentos
anteriores com a afirmação que “é a unidade do representante, e não a unidade do
representado que faz que a pessoa seja una”33. Ela veda em definitivo a alegação da
existência de um povo anterior ao Estado e da soberania que possa servir como
justificativa para qualquer direito de resistência, e, principalmente, como justificativa
para a quebra do contrato. Para Hobbes, depois de instituída a soberania e ocupado o
poder soberano, não existe nenhuma justificativa legal que possibilite a remoção do
representante, ou seja, o pacto/contrato uma vez firmado é irrevogável.
Para justificar a resistência, os levellers advogam que a relação entre repre-
sentante/ representado é estabelecida de forma individual, e nunca pode perpassar os
direitos individuais à vida e à liberdade de cada um dos componentes do povo. Caso
isto aconteça, o direito de resistência é legítimo. Hobbes também acredita que “cada
homem confere ao representante comum sua própria autoridade em particular”, e que
existem direitos individuais não transferíveis por contrato. Contudo, ele admite
apenas o direito natural de resistência individual para preservação da vida. Para o

31 SHARP, A. (org.) The English Levellers. Cambridge: Cambridge University Press. 1998.
32
OSTRENSKY, Eunice. Soberania e representação: Hobbes, Parlamentares e Levellers.(2010). p.163.
33
HOBBES, T. Leviathan. Cap. XVI. p.98.

21
filósofo, direito é apenas liberdade de fazer ou omitir, e liberdade é ausência de
impedimentos externos. Com tal mutação de vocabulário, ele relega tudo aquilo a
proteção daquilo que pertence ao indivíduo e que não pode ser transferido por
contrato ao direito de natureza.
Neste ponto percebemos a precariedade de imbricação das vontades de
representante/representado após o ‘momento’ do contrato. Para Hobbes, o ocupante
ou os ocupantes do poder soberano estão acima das leis do Estado e só devem prestar
contas às leis de natureza, que são cálculos da razão acessíveis a todos os humanos
como prescrição da melhor forma de viver coletivamente. Estes cálculos, definidos
por vários intérpretes como uma moralidade hobbesiana, que propiciam aos humanos
a superação do conflito do estado de natureza, são a única baliza para que o
representante elabore a legislação estatal. Caso a vontade de algum(s) componente(s)
do corpo político divirja do soberano originando conflito, há o embate entre o direito
soberano de punir e o direito natural do(s) indivíduo(s) que remete a um
enfrentamento de forças semelhantes ao estado de natureza. Qualquer discordância
com sua vontade do soberano gera o risco da ira do deus mortal e do ‘retorno’ a
condição de natureza.
A questão da resistência na obra de Hobbes possui um interessante adendo no
parágrafo 17 do capítulo XXI com um argumento extremamente dúbio sobre o direito
de resistir coletivo, onde um poder físico (potentia) que conseguir se impor pela força
e originar um Estado por aquisição pode se tornar um poder representante legítimo
(potestas), caso seja capaz de promover a segurança do corpo político34. Tal argu-
mento parece não ter desagradado os parlamentares. Curiosamente, ele também ser-
viria para justificar uma tomada de poder dos levellers caso eles dispusessem de força
para tanto35.
As apropriações e alterações de argumentos parlamentares e levellers restam
evidentes no Leviathan de Hobbes, mas não de forma suficiente para comprovar a tese
de Quentin Skinner de que o principal intuito de sua realização é defender a monarquia.
A consideração da conflituosa estadia de quase uma década do filósofo no exílio francês
junto aos monarquistas ingleses, a acusação de traição pela escrita da obra, e a acolhida
de sua publicação em uma república parlamentar nos fazem desconfiar de tal tese. É bem
verdade que em seu texto mais significativo, Hobbes defende em um pequeno trecho do
capítulo XIX o regime realista como o menos conflituoso, porque as questões relativas
à sucessão do poder atraem menos competidores, e porque um monarca julga os conse-

34
Vide: LIMONGI, M.I. Potentia e potestas no Leviathan de Hobbes. Dois pontos. (2013) pp.143-166.
35
“Hobbes pretendia claramente que o Leviathan ofendesse sensibilidades contemporâneas, anglicanas em
particular; chegou a acrescentar uma “Revisão e conclusão” na qual alinhava explicitamente seu livro com
a recente literatura dos panfletos que defendia na Inglaterra o novo regime com base no fato de sua real
posse do poder. Por que, então Hobbes o escreveu?” TUCK, Richard. Hobbes. (Tradução: Adail Sobral)
São Paulo: Edições Loyola. (2001) p. 46.

22
lhos que o aprazem, concordando sempre consigo, diferentemente da inconstância nu-
mérica das assembleias. Ele também afirma que na monarquia o interesse pessoal seria
o mesmo que o público, enquanto um povo ou assembleia tendem mais para o próprio
bem do que para o interesse comum, um argumento deveras frágil. Nesses trechos é fácil
perceber como Hobbes se afasta de sua pretensa escrita científica e passa a expor apenas
uma suposta preferência pessoal que não afeta em nada o núcleo duro de sua teoria da
representação.
No cerne argumentativo do arcabouço de sua ciência civil aperfeiçoada do Levi-
athan encontramos uma teoria da representação político jurídica que legitima, pela
união das vontades, um poder soberano independente dele ser monárquico, aristocrático,
ou democrático. Como afirma o filósofo, “a diferença entre essas três espécies de go-
verno não reside numa diferença de poder, mas numa espécie de conveniência, isto é, de
capacidade para garantir a paz e segurança, fim para o qual foram instituídas”. Percebe-
mos então que em relação à soberania representativa o número de ocupantes do governo
é mera conveniência, ou seja, a forma de governo é indiferente.
A teoria da representação político-jurídica de Hobbes desloca o problema da
legitimidade do poder político, que anteriormente se encontrava centrada na questão
dos regimes de governo, para a questão dos fundamentos do Estado, ou seja, para a
origem do poder político-jurídico através da unificação das vontades, e coloca o re-
gistro dos fundamentos da soberania e do Estado em primeiro plano, em detrimento
do registro do governo. Na maior obra do filósofo, a grande ameaça do embate pelas
formas de governo, que ele testemunhou levar a Inglaterra à dissolução intestina atra-
vés da guerra civil, é diluída na conveniência do corpo político, onde o que importa
é a solidez da soberania absoluta e do Estado. Diante da pergunta pelo regime mais
conveniente para ocupar o poder na Londres dos meados de 1700 que originou a
guerra pela imposição de um deles, Hobbes responde que o mais importante não é a
forma de governo, mas sim a existência de um Estado Civil com um poder soberano
absoluto e forte o suficiente para manter a todos em segurança36. Não por acaso, o
Estado Civil previsto no Leviathan nunca se efetivou na história, mas a primeira teo-
ria da representação sistematizada da modernidade continua repercutindo até nossos
dias.

36
“O governo republicano que havia executado e sucedido Carlos I estava preocupado com a lealdade da
população, pois tinha bastante consciência de que muitas pessoas acreditavam que suas ações haviam sido
ilegais. Assim, em 1650 ele exigiu que os adultos do sexo masculino assumissem um Compromisso
prometendo aliança ao novo regime. Diversos defensores do Compromisso argumentaram que se um
governo está de fato protegendo você, então você lhe deve obediência. Esta era precisamente a posição de
Hobbes, e seu ensinamento acerca desse ponto incomodou alguns realistas, que o enxergavam como uma
traição aos Stuarts”. SOMERVILLE, J. Ciência elevada e política local. In: SOREL, T. Cambridge
Companion: Hobbes. (2011) p.326.

23
3 – Alguns problemas da representação hobbesiana que persistem até hoje.

Acreditamos que pontos fundamentais da problemática enfrentada pela


representação na atualidade existem desde sua origem no cerne da obra prima de
Hobbes. Diante de diversos destaques possíveis, optamos por enfocar aqui dois
pontos que consideramos mais relevantes. O primeiro deles é a dificuldade da
destituição do representante que se opõe às vontades dos representados. Para Hobbes,
a remoção de um representante é a maior ameaça ao Estado, pois ela é porta de
entrada para a guerra civil. Isto ocorre principalmente porque na filosofia política do
autor inglês ainda não há uma sociedade civil organizada e nem a tripartição dos
poderes para a condução da destituição de um representante, com as descrições de
obras posteriores como as de John Lock e do Barão de Montesquieu.
Apesar da existência das mencionadas instancias de poder em grande parte
das nações democráticas representativas na atualidade, a destituição de um represen-
tante continua sendo traumática. Desde o Leviathan podemos perceber que, se por
um lado a instituição da representação confere unidade política e jurídica ao Estado,
por outro, a ruptura representativa é o ápice da insegurança jurídico política estatal,
isto porque o rompimento da personificação desvela a fragilidade do laço represen-
tativo que sustenta o Estado desde sua fundação. Toda vez que um representante é
removido, a natureza das relações de poder é explicitada e é tornada evidente a pos-
sibilidade do desacordo entre as vontades de quem representa e de quem é represen-
tado. A retirada da persona desmascara a ficção que compõe autor e ator, o que jus-
tifica a preocupação de Hobbes e a escassez dos meios de remoção de representantes
que permanece até a atualidade.
O segundo ponto que destacamos é a relativa limitação dos meios de
manutenção da imbricação das vontades entre representante e representados. Para
Hobbes, o ocupante ou os ocupantes do poder soberano só devem prestar conta às
leis de natureza, e “uma vez que as punições são consequentes com a quebra das leis,
as punições naturais têm de ser naturalmente consequentes com a quebra das leis de
natureza”37. Caso o representante não siga as leis de natureza, sobre ele recairá apenas
punições naturais de ordem moral. No Estado hobbesiano, além de não vincularem
obrigatoriamente a vontade do representante, as leis dependem fortemente de sua
moral.
Nos governos representativos dos dias atuais, para além dos escassos meios
de destituição dos representantes, a eleição por votos continua sendo o grande crivo
onde se manifesta a comunhão ou o desacordo entre as vontades de representantes e
representados. Nos alguns anos que separam uma eleição de outra, a identificação
das vontades dos representados, fica relegada apenas a tramites burocráticos e a moral

37
HOBBES, T. Leviathan, Cap. XXXI. p. 218.

24
do representante. Durante grande parte dos mandatos dos eleitos, os representados
praticamente não tem meios de vincular a vontade do representante.
Em contrapartida, a capacidade de influência do representante na vontade do
representado não parece tão limitada. Desde sua primeira obra política, Hobbes
alertou que “as nossas vontades seguem as nossas opiniões, assim como as nossas
ações seguem as nossas vontades. Nesse sentido, os que dizem que o mundo é
governado pela opinião dizem-no verdadeiramente e apropriadamente”38. Convicto
sobre este ponto, em seu Leviathan ele combateu ferrenhamente argumentos
religiosos que colheu nos púlpitos presbiterianos e puritanos, e orientou em vários
momentos o soberano, sobre a necessidade de se ocupar com a educação dos súditos.
Eunice Ostrensky destaca que:

“A partir da verificação de que as Universidades criam um vocabulário re-


volucionário - condição da ruptura epistêmica com o poder estabelecido
- e são, por consequência, as formadoras de opinião, Hobbes chega à ne-
cessidade de reformar os conteúdos ensinados, de modo que, arrancando
das consciências as sementes da sedição, sirvam aos propósitos da esta-
bilidade política”39.

Nos dias de hoje, além das Universidades que influem na sociedade, existem
poderosos instrumentos de comunicação em massa que afetam diretamente na
vontade dos representados40. Em tal contexto, advém outro uso importantíssimo que
o conceito ‘representação’(vorstellung) possui na filosofia41. Na atualidade, não são
nada escassos os meios (medias) que o(s) representante(s) dispõe(m), apoiado(s) nos
interesses do capital econômico, para gerar ‘representações’ e influir na vontade dos
representados.

Conclusão

Conforme analisamos, a teoria da representação político-jurídica de Hobbes


desloca o problema da legitimidade do poder político, que anteriormente se encon-
trava centrada na questão das formas de governo, para a questão dos fundamentos do
Estado, ou seja, para a origem do poder político-jurídico através da unificação das

38
HOBBES, T. Elementos da Lei. Cap. XII, 6, p. 61.
39
OSTRENSKY, E. A obra politica de Hobbes na Revolução Inglesa de 1640. Dissertação de Mestrado.
Orientação: Renato Janine Ribeiro, USP, 1997. p. 98.
40
“A meta dos diálogos em rede não é a produção de informação nova, mas o feedback. Os aparelhos
elaboram métodos específicos (publimetrias, marketing, pesquisas da opinião, eleições, política, etc.);
para recaptarem o feedback. A “Democracia” no sentido de diálogo produtor de informação que não seja
elitário é possível somente no teatro. Na situação atual, democracia é impossível. A sensação da solidão
da massa é consequência disto. A democracia não está no programa”. FLUSSER, V. Nossa
comunicação. In: FLUSSER, V. Pós-história. (2011) p.78.
41
Vide: KANT, I. Kritik der reinen Vernunft.

25
vontades. Diante disso, percebemos como é frágil a tese de que a maior motivação
do filósofo inglês para a elaboração de sua teoria era defender a monarquia. Quem
procura na maior obra do filósofo inglês a defesa de apenas uma das partes diante do
embate teórico e prático entre monarquistas, parlamentares e levellers de meados do
século XVII, nunca conseguirá comprovar sua tese. Isto porque há na filosofia polí-
tica hobbesiana dois registros, o dos fundamentos do Estado, e o do governo42, onde
o último é reduzido às conveniências do corpo político, enquanto o primeiro é o
grande problema que a representação visa resolver.
Em termos efetivos, Hobbes conseguiu desagradar à maioria de seus contem-
porâneos. O acolhimento das nuances de alguns argumentos parlamentares e levellers
por parte de alguém que passou a primeira metade de sua vida tão próximo da corte
não foi suficiente para angariar qualquer confiança. Depois da Restauração da mo-
narquia inglesa em 1660 diversos defensores do regime baseado no direito divino dos
reis, antes simpatizante das primeiras obras políticas do filósofo, passaram a lhe de-
dicar um ódio mortal, a lhe perseguir devido a suas concessões àquelas teorias trai-
doras, e a exigir sua condenação como herege. Hobbes nunca foi julgado devido a
benevolência do rei Charles II, de quem foi tutor de matemática quando jovem, mas
foi proibido de publicar novamente durante o restante de sua vida. O Estado Civil
como previsto no Leviathan nunca se efetivou na história, mas a teoria da represen-
tação nele contida parece estar longe de ser relegada ao esquecimento.

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HAMPTON, J. Hobbes and the Social Contract Tradition. Cambridge: University Press, 1995.

42
“O Estado é o mesmo independente das formas de governo. Ele se define pela soberania de seu poder
fundado num contrato e legitimado juridicamente. O modo como esta soberania se exerce é outra
questão, uma questão que não diz respeito à forma jurídica do Estado, pensada a partir do contrato que o
institui, mas o exercício da soberania, pensada segundo as circunstancias que podem impedir ou
contribuir para a sua manutenção. Ou seja, uma coisa é conceber a soberania do Estado segundo as
qualidades jurídicas que a definem; outra coisa é concebê-la segundo as qualidades de seu exercício:
uma coisa é o Estado, outra o governo.” LIMONGI, M. I. Hobbes. São Paulo: Jorge Zahar, 2002. p. 54.

26
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28
A “VONTADE DO POVO” E A
AUTORIDADE DA REPRESENTAÇÃO

DARIO CASTIGLIONE1

Introdução

O populismo tem sido uma questão contenciosa e objeto de repetidas


tentativas acadêmicas para definir seu significado e características por várias
décadas. 2 Mais recentemente, voltou à atenção geral e acadêmica, com a
transformação de uma série de movimentos de direita em direção a uma retórica mais
populista na Europa. Falar sobre populismo tornou-se onipresente nos últimos três
anos, desde a eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos, à
votação do Brexit no Reino Unido e à consolidação de partidos nacionalistas e anti-
imigrantes em vários países membros da União Europeia. Apesar da difusão do termo
e da multiplicação de análises sofisticadas e estudos empíricos, é improvável que uma
visão consensual do populismo surja em breve. Muitas vezes, essa proliferação de
estudos e discussões gera mais problemas do que resolve. No entanto, pode haver
alguma razão mais particular para a confusão atual. Como Hamlet diz: "Há mais
coisas no céu e na terra, Horatio, do que foram sonhadas em sua filosofia." Isso
também pode se aplicar ao nosso estudo sobre populismo. Apesar da explosão de
teorias e análises, parece que a realidade, ou pelo menos a fenomenologia, do que
chamamos de partidos e movimentos populistas está se mantendo à frente das pessoas
que os estudam, mudando em sua própria forma e conteúdo e lançando ainda mais
quebra-cabeças e elementos para reflexões.
Pode haver pelo menos dois motivos que tornam tão difícil definir o
populismo. Uma razão é que ainda não está claro, ou pelo menos ainda é contestado,
que tipo de populismo é o objeto de análise. A maneira popular de pensar o populismo

1 Professor de Filosofia Política, University of Exeter, Reino Unido. Tradução de Marta Nunes da Costa
(Professora de Ética e Filosofia Política, Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Brasil)
2
Ionescu, Ghita, e Ernst Gellner, eds. Populism: Its Meanings and National Characteristics. (New York:
Macmillan 1969)

29
é uma ideologia, mais precisamente uma ideologia "fina" em torno de um par de
características centrais que lhe dão algum conteúdo. 3 Mas esta não é uma visão
universal. Outros pensam que a maneira mais apropriada de considerar o populismo
é a "mentalidade" ou o "estilo" da política,4 enfatizando como a política populista é
feita, e não qual é o seu conteúdo ideacional. Se entendi corretamente o argumento
de Jan-Werner Müller,5 o populismo para ele é mais uma concepção característica da
política moderna, em que a insistência na centralidade e na unidade do povo resulta
em uma concepção anti-pluralista da política e da comunidade política. O anti-
pluralismo é um elemento necessário, embora não suficiente, para definir uma posição
como "populista", uma vez que existem outras concepções anti-pluralistas baseadas
na unidade do povo contra seus inimigos dentro e fora, em que este elemento pode ser
apenas um fator subordinado em uma posição ideológica mais complexa. Em resumo,
uma razão para a confusão é que parecemos incertos acerca de quais categorias
precisamos usar para classificar o populismo.
A segunda razão para a indefinição do populismo é que, enquanto as ideologias
políticas, por exemplo, têm uma continuidade diacrônica forte, embora nem sempre
clara ou incontestada, cuja base está na maneira como os agentes políticos
normalmente se identificam com um conjunto de ideias, atitudes, programas e
políticas, que eles consideram típicos dessa ideologia; o mesmo não costuma acontecer
com o populismo, com o qual os agentes políticos raramente se identificam. Além de
alguns casos históricos, o populismo é uma ideologia, posição ou postura mais
freqüentemente atribuída aos agentes políticos por observadores externos ou por seus
críticos e oponentes políticos como um rótulo negativo e depreciativo, do que aquele
que é aceito como parte de sua própria auto-descrição. Curiosamente, isso está
mudando nos últimos anos. Enquanto que no passado alguns dos partidos e
movimentos que os comentaristas e acadêmicos identificaram como populistas
tendiam a suspeitar de tal rótulo, uma vez que muitas vezes tinham claras conotações
críticas e negativas, mais recentemente, alguns líderes desses partidos e movimentos
começaram a adotar essa mesma definição como um símbolo de honra democrática.
Eles tomam o rótulo como prova de que estão "do lado do povo". Nesse aspecto,
parece que esse é um caso em que adversários políticos e acadêmicos contribuíram
para criar um conjunto mínimo de compromissos ideológicos com os quais uma
constelação variada de movimentos e partidos, que tinham apenas uma vaga e limitada

3
Ben. Stanley, “The thin ideology of populism,” Journal of Political Ideologies, 13 (2008): 95–110; Cass
Mudde and C. Rovira Kaltwasser, ‘Populism’, em M. Freeden, L.T. Sargent, e M. Stears (Eds) The Oxford
Handbook of Political Ideologies, (Oxford: Oxford University Press, 2013), pp. 493–512; ver também
Michael Freeden, “After the Brexit referendum: revisiting populism as an ideology,” Journal of Political
Ideologies, 22 (1: 2017): 1-11
4
Marco Tarchi, ‘Populism: ideology, political style, mentality?’, Czech Journal of Political Science, 23
(2016): 95–109; Benjamin Moffitt, The Global Rise of Populism: Performance, Political Style, and Rep-
resentation, (Stanford, Stanford University Press, 2016).
5
Jan-Werner Müller, What is Populism, (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2016).

30
semelhança familiar, agora estão felizes em se identificar. Da perspectiva daqueles
que se opõem ao populismo, esse talvez seja um objetivo próprio clamoroso. Da
perspectiva mais distanciada, embora muitas vezes não menos crítica, dos estudantes
do populismo, isso parece uma conquista rara: não uma definição que reflete a
realidade; mas uma realidade que reflete uma definição.
Será que existe uma saída deste círculo e das ambiguidades do populismo?
Talvez não. Mas, para o propósito deste artigo, eu gostaria de tratar o populismo, ou
pelo menos o neo-populismo das duas últimas três décadas, como uma espécie de
desenvolvimento de linguagem política baseada em algumas idéias-chave, tropos
retóricos e fórmulas estilísticas através das quais vários partidos, líderes e
movimentos articularam uma série de demandas políticas, particularmente no
contexto das democracias modernas ocidentais. Mesmo quando se assemelham a
idéias políticas antigas e familiares, essas demandas preocupam-se principalmente
com os desafios colocados ao modelo do século XX do estado social e constitucional
por novos desafios globais, multiculturais, de comunicação e segurança, e pela crise
de suas instituições representativas, tanto no lado da oferta quanto no lado do
consumo. O ressurgimento, o reacondicionamento e o relativo sucesso de mensagens
xenofóbicas e de mensagens de extrema-direita, que a Europa pensava ter deixado
para trás, só podem ser explicados prestando atenção a esse contexto mais geral. Mais
precisamente, eles podem ser detidos apenas pela compreensão do contexto de
mudança no qual eles são formulados, na medida em que também eles são sintomas
de um mal-estar da nossa sociedade e das instituições democráticas que precisam
simultaneamente de cuidadosa atenção e correção.
Neste artigo, desejo focar apenas uma das idéias, ou tropos retóricos, da
linguagem populista. Indiscutivelmente, aquele em que desejo focar tem um lugar
central no discurso populista. Essa é a idéia de que a “vontade do povo” é o elemento
fundamental e legitimador do governo moderno, e em particular nas democracias
modernas. Em linguagem populista, esse compromisso central é frequentemente
invocado quer para criticar o establishment político (porque eles prevaricam o
governo do povo e abusam de sua vontade); ou, pelas mesmas razões, para rejeitar a
intervenção de instituições não-populares (no sentido de não-majoritárias); ou ainda
para excluir as identidades e os interesses das minorias, porque eles minam a unidade
básica do povo e sua capacidade de querer e de governar como um só. Dessa forma,
algumas das outras características frequentemente associadas ao populismo, como a
sua natureza anti-establishment, anti-mediação e anti-pluralista, podem estar de algum
modo ligados à centralidade do governo do povo. Os neopopulistas modernos estão
usando cada vez mais este argumento para exibir suas credenciais democráticas, em
um mundo onde a teoria dominante da legitimidade política (e particularmente da
legitimidade democrática) é aquela que apela ao povo como autoridade final. Até
mesmo os regimes não-democráticos, desde que tenham um caráter mais secular,

31
geralmente adotam o que pode ser chamado de teoria da legitimidade política de
ascendência: do povo aos governantes. Este foi certamente o caso dos regimes pré-
democráticos, que abandonaram a ideia de que o poder político provém de um domínio
divino ou de modelos paternalistas. Isto aplica-se ainda mais para regimes
democráticos de caráter representativo, uma vez que se costuma dizer que a autoridade
dos representantes deriva do povo, principalmente por meio de eleições, mas não
apenas isso. Para os democratas a questão é esclarecer se alguém pode rejeitar a
centralidade da idéia de soberania popular na democracia (e no domínio político em
geral), ou se é possível demonstrar que a maneira pela qual a linguagem populista e a
retórica populista invocam o governo e a vontade do povo é mal concebida.
A primeira opção é aquela que é normalmente tomada por defensores mais
elitistas da democracia. Segundo eles, a regra do povo é um mito que pode ser
desmentido empiricamente ou, nos poucos casos em que pode ser demonstrado, pode
ser rejeitado tendo em vista seus prováveis efeitos. De acordo com o argumento
empírico, somente as elites podem realmente governar; o surgimento dos partidos de
massa nas democracias modernas mostra que as decisões coletivas dependem, em
última instância, do modo como as elites organizadas fazem prevalecer suas visões, e
até as assembleias democráticas dependem do surgimento de indivíduos ou grupos de
indivíduos capazes de dirigir a sua decisão. O argumento normativo é muito antigo.
Este argumento sugere que quando as pessoas realmente governam, isso resulta na
regra caótica das massas, o que é indesejável em vários sentidos. Diz-se que as pessoas
em geral não têm as capacidades certas, em termos de conhecimento e informação,
para fazer o julgamento correto. Seus pontos de vista podem ser facilmente
influenciados e, portanto, suas decisões carecem de coerência e consistência ao longo
do tempo. Estou simplificando, mas basicamente você pode encontrar esse argumento
em Schumpeter,6 por exemplo, cuja concepção de representação política não se baseia
na ideia de que os cidadãos transferem sua “autoridade” para as assembléias
legislativas ou para o governo, mas, pelo contrário, agem como consumidores, fazendo
escolhas específicas ao selecionar uma elite política que promete criar um conjunto de
políticas e que defende ter uma determinada competência. Na democracia
schumpeteriana os eleitores não transferem sua autoridade como cidadãos (muito
menos podem transferir uma vontade comum: o que seria impossível agregar como
um conjunto de preferências no que se refere a políticas), mas fazem escolhas
enquanto "consumidores políticos". A partir desta perspectiva podemos descartar a
soberania popular e ficamos com um regime político que é, no seu todo, aristocrático
por natureza, embora com algum caráter popular através do processo eleitoral
competitivo.

6
Joseph A. Schumpeter, Capitalism, Socialism and Democracy, (London: Routledge, [1942] 1994).

32
A segunda opção se sai melhor no lado democrático. Esta opção não rejeita
completamente a ideia de que a soberania popular é um mito que cobre uma versão
popular de um regime aristocrático, mas rejeita uma interpretação populista
específica de um regime democrático baseado na ideia de igualdade. A discussão de
Robert Dahl acerca do que ele chama de modelo "populista" de democracia7 tenta
fazer esse tipo de operação. Ele defende que uma ideia populista de democracia (que
ele considera ser uma idéia intransigente de democracia majoritária baseada nas
condições de soberania popular e igualdade política) é, em suas palavras, "um corpo
axiomático de teoria que é, em última análise, quase inútil como guia de ação ”.
Embora sua análise contenha alguns elementos elitistas, sua conclusão é que as
democracias reais existentes (ou o que ele prefere chamar de “poliarquias”) podem
se aproximar de um regime em que a soberania popular e a igualdade política podem
ser “maximizadas… em algumas situações reais, sob certas condições ”. Para Dahl,
tais condições são mais o produto de pré-requisitos sociais e uma separação social do
poder, ao invés de uma república de Madison baseada em freios e contrapesos
constitucionais.
A proposta de Dahl não é a única capaz de contrariar uma interpretação populista da
soberania popular. Uma outra linha de argumentação, implícita na república de
Madison que o autor também analisa, consiste em dizer que a democracia moderna
não depende exclusivamente da soberania popular, mas também de outros elementos,
como por exemplo os direitos constitucionais de liberdade, igualdade e dignidade,8
encarnados e protegidos por uma Carta de Direitos ou outros arranjos e dispositivos
constitucionais. De certa forma, a democracia constitucional moderna pode ser
classificada como um regime político misto onde os elementos democráticos (isto é,
a expressão da soberania popular) se combinam com os aristocráticos (ou seja, os
limites da soberania popular). Esta é uma visão também expressa por Tocqueville em
sua análise da democracia americana e que informa a visão de Bernard Manin do
governo representativo nos tempos modernos.9
No entanto, penso que há um ponto importante a ser feito aqui. Uma das
convicções centrais subjacentes às idéias modernas de política é a rejeição da própria
ideia de governo misto e da visão clássica em que a perfeição no governo é alcançada
pela mistura de diferentes formas dele. As experiências revolucionárias dos séculos
XVII e XVIII desafiaram esse princípio da política clássica. A Guerra Civil Inglesa
convencera Hobbes de que a soberania, e portanto o representante autorizado que
personificava o Estado, não podia ser dividida. Grande parte da retórica política dos
revolucionários americanos de 1760 a 1780 foi dirigida contra o tropo clássico do

7
Robert Dahl A Preface to democratic theory, (Chicago University Press, 1956).
8
Jürgen Habermas, Between Facts and Norms, (Cambridge: Polity Press, 1997).
9
Bernard Manin, The principles of representative Government (Cambridge: Cambridge University Press,
1997).

33
governo misto e de uma constituição equilibrada, que era tão central para a monarquia
inglesa. O próprio Madison falou da federação americana como uma “república não
misturada e extensa”. Da mesma forma, nos debates constitucionais da Revolução
Francesa, a visão de Sieyès, alinhada com as idéias de soberania indivisa de Hobbes,
era que a Assembléia Nacional como um todo representava a nação. É tentador
sugerir que as idéias modernas de política, tal como surgiram das experiências
revolucionárias em formação, repousam sobre a distinção entre a unidade do Estado,
sua soberania, sua legitimidade e seu princípio de autorização, por um lado; e uma
concepção mais mista de governo, através de mecanismos de equilíbrio e divisão de
poder, separação de poderes funcionais, sistemas federais, elementos constitucionais
e afins. Daí se seguiria que a democracia representativa, provavelmente a forma mais
bem-sucedida de governo moderno, é unitária por natureza, quer a interpretemos
como uma forma de governo popular (uma democracia) ou como governo de uma
elite (aristocracia).
A história, claro, é mais complicada do que isso, mas a ideia de representação
política desempenhou um papel nesses dois processos, considerando a autoridade do
Estado como unitária, enquanto o exercício do poder era misto. Se aceitarmos essa
compreensão das ideias modernas de governança democrática, penso que há alguns
aspectos do desafio populista que precisam ser enfrentados mais diretamente pelos
teóricos da democracia. Em outras palavras, é possível levar a sério a força
legitimadora da soberania popular, argumentando ao mesmo tempo que a autoridade
da representação democrática não é a expressão simples e imediata, como os
populistas sustentam, da “vontade do povo”? Na próxima parte deste artigo pretendo
demonstrar como é possível compreender a soberania popular enquanto processo
mais complexo da formação da unidade política, baseada no que eu chamarei de
linguagem do público” em vez de “linguagem do povo”. Nas próximas secções
tentarei mostrar a diferença entre o uso destas duas “linguagens”.
Na conclusão, voltarei ao desafio mencionado acima no que diz respeito a
tomar seriamente a ideia de soberania popular sem usar a “linguagem do povo”. Isto
pode ser feito seguindo duas linhas de argumentação. Uma delas assume uma visão
mais crítica do poder e da legitimidade da soberania popular argumentando em favor
da necessidade de representação entendida como uma política de mediação através
de instituições constituídas. Dito por outras palavras, esta linha de argumentação
questiona a ideia de que a autoridade da representação democrática pode ser traçada
de forma simples e imediata à vontade do povo. A outra linha de argumentação
adopta uma visão mais positiva do poder e do efeito da soberania popular, sugerindo
que a política tem uma capacidade mais constitutiva para criar um sentido de unidade
e de direção, necessário para manter uma comunidade política unida, apesar de suas
diferenças. Este último aspecto do desafio populista é bem captado pela distinção de
Margaret Canovan entre o que ela chama de concepções “pragmáticas” e

34
“redentoras” da política. Como conclusão, discutirei estes temas através de um
diálogo com um livro recente de Albert Weale.10 Mas, neste momento, voltemo-nos
para a análise da “linguagem do povo”.

A “Linguagem (política) do Povo”

Um excelente ponto de partida para discutir o que eu designo por “linguagem


do povo” é o livro The People,11 de Margaret Canovan, onde ela corretamente afirma
que “as ambiguidades correntes de ‘o povo’ são um legado de séculos de uso em
controvérsia política” (p.2.) Embora ostensivamente seja uma introdução do “povo”
como conceito chave, o ensaio de Canovan é uma análise original e sofisticada dos
usos desta ideia na política. Logo no início do ensaio Canovan dá um passo
metodológico que não deve passar despercebido. Ela não se envolve muito com o
conceito de “povo” e seus possíveis significados, mas lida principalmente com “a
linguagem política do 'povo'”. Ao tratar isso como uma linguagem, e não como um
conceito (por mais contestado que seja), podemos tomar consciência imediatamente
do fato de que o problema não é simplesmente que “povo” possa ter significados
diferentes, mas antes que esses significados possam ter usos diferentes, dependendo
do contexto e em relação à constelação específica de outros conceitos (ou
vocabulário, se preferir ) dentro do qual esses significados são implantados. Isso
significa que os elementos normativos associados ao “povo” são o resultado dos usos
particulares que se deseja fazer desse conceito.
Talvez devido ao vínculo óbvio entre definir o povo e a distinção interna
/ externa nos arranjos de uma comunidade política, o questionamento
normativo do "povo" está freqüentemente associado ao problema da
"fronteira". Isto não surpreende, dada a relevância que questões de mobilidade
das pessoas, interdependência econômica, proteção contra riscos assim como a
crescente interdependência funcional de serviços, de disposições legais e de
segurança e de redes culturais têm em nossas sociedades. Tais
desenvolvimentos tornam os membros e as “fronteiras” territoriais uma
questão crucial para a política democrática e, portanto, precisam de soluções
teóricas e práticas, na medida em que a teoria democrática pode fornecer
argumentos e justificativas para uma forma de ação fundamentada em
princípios, coerente e auto-sustentável.
A importância das questões, no entanto, pode obscurecer o fato de que o
questionamento normativo do povo não se resolve, em si mesmo, no problema
da “fronteira”. Quero sugerir que uma idéia mais normativa do povo pode afetar

10
Albert Weale, The Will of the People (Cambridge: Polity Press, 2018), Ch. 2.
11
Margaret Canovan, The People, (Cambridge: Polity Press, 2005).

35
diferentes aspectos de nossa concepção de democracia, e não apenas a de suas
"fronteiras". Tentarei sugerir que a "linguagem política do povo" pode ser usada
para abordar quatro diferentes “problemas” da teoria democrática. Em cada um
dos casos, o que se defende é que "o povo" confere legitimidade a um aspecto
particular da política democrática. Canovan mais uma vez coloca a questão de
forma mais econômica, quando diz que "'o povo' pode aparentemente conferir
legitimidade a fronteiras, constituições, regimes e políticas.”12
Indiscutivelmente, não há uma intenção estritamente classificatória na
passagem de Canovan, e ela não estava tentando defender o que eu quero defen-
der aqui. Porém, da minha parte, gostaria de afirmar que, em termos gerais, a
maneira como definimos o povo tem consequências para cada uma dessas áreas.
Embora existam sobreposições consideráveis na maneira como os processos de
legitimação operam nessas áreas, para que possam existir estratégias justifica-
tivas transversais; no entanto, os problemas de legitimação colocados para cada
uma das áreas são distintos o suficiente para serem considerados separada-
mente.
Para colocar a questão de uma maneira mais sistemática, sugiro
considerar cada uma das quatro áreas identificadas por Canovan (“fronteiras,
constituições, regimes e políticas”) da seguinte maneira:

a) o problema do domínio (ou fronteiras)


b) o problema da autorização (ou soberania)
c) o problema da ontologia política (ou o caráter do vínculo político)
d) o problema da representação (ou tomada de decisão justa)

Em cada um desses níveis, uma definição do povo e do papel que


desempenha ou não deve desempenhar é decisiva para determinar a nossa idéia
de democracia. Em outras palavras, diferentes teorias da democracia podem
subscrever diferentes concepções de povo, o que tem consequências na forma
como concebemos os problemas aqui enumerados.
Direi algo mais acerca de cada um deles, antes de passar para o foco da
minha discussão, que diz respeito principalmente ao terceiro e quarto aspectos.
Este é provavelmente o mais conhecido e o mais discutido aspecto; eu escolhi a
formulação recentemente sugerida por David Miller, 13 pois ela pode capturar
com mais facilidade a maneira como este é simultaneamente um problema de
território e de associação: quem pertence a uma comunidade política (quem são

12 Canovan, People, p. 1.
13 Miller, David, ‘Democracy’s Domain’, Philosophy and Public Affairs, 37 (3: 2009): 201-228.

36
o povo) e como são definidas suas fronteiras ( como sua identidade pode ser
mantida).
O problema da autorização ou soberania diz respeito ao fundamento ou
critério sobre o qual uma comunidade política (ou um "povo") pode reivindicar
autoridade sobre si mesma ou pode ser autogovernada. Embora existam
ligações óbvias entre esse problema e o problema do "domínio", pela maneira
como a "linguagem (política) do povo" foi parcialmente transmutada na
linguagem da "nação", principalmente desde o final do século XVIII; as
manifestações do problema da autorização são mais evidentes nos debates
sobre autodeterminação, federalismo e secessão e na maneira pela qual o poder
constituinte opera ou se manifesta, em vez da questão da filiação, afetação e os
critérios de qualificação para a cidadania, que mais facilmente se subsumem sob
o problema de domínio.
Uma razão pela qual esses dois problemas costumam ser percebidos
como se fundindo um no outro deve-se à maneira pela qual, a partir de uma
perspectiva democrática, eles tendem a definir a questão da soberania popular,
implicando questões de filiação (identificação e coesão) e autoridade (soberania
e autodeterminação). Em seu capítulo sobre "Nós, o Povo Soberano", onde
Canovan discute a união da "linguagem (política) do povo" e da "democracia", a
autora distingue duas questões. Ela formula a primeira questão nestes termos:
“A soberania popular pode ser entendida? Podemos dar sentido a um povo
soberano ...? ” 14 Penso que essa formulação capta bem a maneira como os
problemas de domínio e de autorização foram relacionados ao longo da história
do discurso democrático.
A segunda questão formulada por Canovan é: “A soberania popular pode
ser exercida? (…) Que influência tem [ela] sobre as instituições da democracia
representativa moderna?” Penso que esta questão se refere aos outros dois
problemas que identifiquei. O problema da ontologia política,15 tal como desejo
caracterizá-lo, está principalmente relacionado à natureza do relacionamento
que existe entre o todo e suas partes na sociedade política e, particularmente,
entre o indivíduo e a coletividade (o povo); mas também, como veremos ao
discutir o público, outras entidades tais como o Estado, que são uma expressão
da coletividade em si mesma, mas nem sempre são identificadas com ela.
Embora existam sobreposições importantes entre o problema da ontologia
política e o do domínio da democracia, na medida em que ambos se preocupam

14Canovan, People, p. 94.


15Aqui estou seguindo a formulação do problema de Philip Pettit em sua discussão da ontologia política
de Rawls como uma noção particular do povo e a relação do povo e do estado que, em sua opinião, molda
a maneira como Rawls, nesse caso em particular, pensa normativamente sobre política. Pettit distinguiu
entre três concepções ontológicas diferentes do povo, sobre as quais voltarei abaixo. Philip Pettit, “Rawls’s
Political Ontology,” Politics, Philosophy and Economics, 4(2: 2005): 157-174.

37
com o que une o povo, o elemento que distingue a primeira é que ela se interessa
principalmente pelas propriedades que caracterizam o vínculo político (o
regime democrático) e os mecanismos pelos quais as decisões coletivas têm
força ou validade para os membros da comunidade (nesse sentido, o problema
da ontologia política tende também a se sobrepor ao problema da autorização,
embora seu foco esteja mais no “exercício” de soberania e não em sua “fonte”).
O problema final, o da representação, preocupa-se mais imediatamente
com o exercício do poder democrático, na medida em que envolve a solução do
problema de como dar corpo institucional (e por isso, dar presença) à
coletividade de forma a que a tomada de decisão não é apenas a expressão, de
alguma maneira significativa, da soberania popular; mas também que suas
decisões rastreiam os interesses e o bem-estar da coletividade e, portanto,
podem ser consideradas justas. É esse aspecto particular do exercício da
soberania popular e do governo popular que desejo explorar na próxima seção,
introduzindo a idéia de "público" ao lado do "povo".

Povo e Público

Como já mencionado, o argumento deste artigo diz respeito ao desafio que uma
versão populista da "linguagem do povo" coloca ao governo democrático,
solicitando que este garanta um verdadeiro exercício da soberania popular.
Sugeri que isto implica resolver o problema ontológico, oferecendo uma
explicação acerca de como a associação política age coletivamente; e o problema
da representação, fornecendo formas pelas quais as decisões podem ser
tomadas, de modo a que sejam vistas pelas pessoas como expressão de sua
autonomia e como justas. Não pretendo dar uma resposta sistemática à questão
do exercício da soberania popular neste artigo, mas quero apontar para duas
linhas de argumentação que me parecem valer a pena explorar, a fim de
encontrar uma resposta que seja substancialmente diferente da atual leitura
"populista" do argumento da "vontade do povo". A primeira linha de
argumentação consiste em deslocar a nossa atenção da "linguagem política do
povo" para a "linguagem política do público", um termo que, como veremos de
seguida, se sobrepõe consideravelmente ao “povo”, mas tem uma história
diferente dando origem a diferentes associações e um conjunto de
considerações distinto como fundamento para a tomada de decisões
democrática. A segunda linha de argumentação prende-se mais diretamente à
representação política, um mecanismo inevitável nas democracias modernas, e
verifica se e como é possível que a soberania popular se expresse de alguma
maneira significativa nessas condições.

38
Na linguagem política moderna, o povo não é o único termo com o qual
podemos nos referir à totalidade de uma unidade política. Às vezes outros
termos podem ser usados, embora, é claro, cada um possa ter conotações
diferentes e possa ser mais ou menos apropriado, dependendo do contexto em
que os usamos. Isso ainda se torna mais visível se considerarmos a minha
insistência inicial de que nosso objeto de análise não é tanto o conceito
individual de "povo", mas a "linguagem (política) do povo". Pode haver algo a
ser dito ao tentar ver o que acontece quando nos deslocamos de um conceito
para outro e tentamos perceber se isso produz uma mudança na “linguagem”.
Os possíveis candidatos podem incluir o Demos, cidadãos (cidadania),
comunidade (política) ou sociedade (política), ou sociedade ou associação ou
sindicato, comunidade, política, estado e público. Não tratarei das razões pelas
quais cada um desses termos pode não funcionar, a não ser ocasionalmente,
como um substituto para “povo” no sentido político mais restrito em que
estamos especificamente interessados. Se você jogar o jogo de substituição nos
casos em que é possível fazer isso, poderá perceber, no entanto, como isso pode
ter implicações políticas para a mensagem que desejamos transmitir ou para o
argumento interpretativo ou normativo que desejamos esclarecer. Penso que
isso é particularmente verdade quando tratamos do termo "público", já que
existe uma sobreposição considerável entre os dois termos (também
etimologicamente). Existem muitos casos em que povo e público são
intercambiáveis em nosso discurso político. Eles têm várias semelhanças
estruturais, particularmente no modo como podem ser tomados quer como
entidade coletiva quer de modo mais distributivo; e como ambos podem se
referir a uma comunidade inteira ou a uma parte dela. No entanto, existem
algumas diferenças importantes entre eles, diferenças estas que tendem a
aumentar nos tempos modernos, principalmente devido à forma como o
significado de "público" é definido por sua contraposição ao "privado", algo que
não tem ressonância quando falamos acerca de "povo".
Talvez não seja tão trivial começar pelo início das carreiras políticas
desses dois termos. Vejamos estas duas passagens da República de de Cícero:

A República [res publica] então, diz Scipio, é assunto do povo [res populi];
e o povo não é nenhum grupo de homens, de qualquer forma associado,
mas é a reunião de um número considerável de homens que estão unidos
por acordo comum acerca da lei e direitos e pelo desejo de participar de
vantagens mútuas. A causa original dessa união não é tanto uma fraqueza,
mas um tipo de instinto social natural dos homens. Pois a espécie humana
não é solitária, nem seus membros vivem um itinerário isolado; mas é

39
constituída de modo que, mesmo que possuísse grande riqueza [seria, no
entanto, impelido por sua natureza a viver em grupos sociais ...].16

Ou uma passagem que segue quase imediatamente no diálogo:

Consequentemente, todo povo, que é um número de homens unidos da


maneira que expliquei, todo estado, que é uma organização do povo, toda
comunidade [res publica], que, como eu disse, é assunto do povo [populi
res], precisam ser governadas por algum tipo de conselho (autoridade
deliberativa), para que ele possa durar. Essa autoridade, em primeiro
lugar, deve sempre ser relativa às causas peculiares que originaram a
cidade (estado). Em segundo lugar, deve ser delegado a um único homem,
ou a certas pessoas selecionadas, ou retido pela multidão como um todo.17

Assim, de acordo com Cícero, e de maneira mais geral no pensamento


republicano romano, do qual herdamos “povo” e “público” como termos
políticos, há uma impressionante coincidência entre os termos: “res publica res
populi” - coisas que são públicas são assunto do povo.18 Embora o “povo” tenha
um caráter mais personalizado no contexto das passagens aqui reproduzidas,
esse mesmo caráter é parcialmente evidente em nosso uso do “público” como
substantivo, e não como atributo, nas línguas modernas. 19 Citei as duas
passagens um pouco mais do que eu precisava para enfatizar a coincidência de
significado estabelecida por Cícero, porque elas contêm algumas observações
interessantes acerca do que chamei de problema de ontologia política e de
problema da representação. Essas observações não precisam nos preocupar no
contexto do presente argumento, mas vale a pena notar que, para Cícero, como
ele diz na primeira passagem, uma comunidade política, uma comunidade [res
publica], não é uma assembléia de " homens ”, mas sim uma assembleia de
homens unidos por um acordo sobre a lei e os direitos e associados por um
desejo de vantagem mútua. Enquanto que na segunda passagem, ele observa

16 Cicero The Republic, Book I, xxv, p. 129. Nesta e na seguinte citação, alterei levemente as traduções
fornecidas nesta edição da República de Cícero. Este é o texto original em latim: Est igitur, inquit
Africanus, res publica res populi, populus autem non omnis hominum coetus quoquo modo
congregatus, sed coetus multitudinis iuris consensu et utilitatis communione sociatus. eius autem
prima causa coeundi est non tam inbecillitas quam naturalis quaedam hominum quasi congregatio;
non est enim singulare nec solivagum genus hoc, sed ita generatum ut ne in omnium quidem rerum
affluentia.
17
Cicero The Republic, Book I, xxvi, p. 131. Texto original: Omnis ergo populus, qui est talis coetus
multitudinis qualem eui, omnis civitas, quae est constitutio populi, omnis res publica, quae ut dixi populi
res est, consilio quodam regenda est, ut diuturna sit. id autem consilium primum semper ad eam causam
referendum est quae causa genuit civitatem. (42) deinde aut uni tribuendum est, aut delectis quibusdam,
aut suscipiendum est multitudini atque omnibus.
18 Com efeito, no latim “publicus” é o que pertence ao “populus”, de modo que a afirmação de Cicero é

tautológica.
19 Pelo menos no inglês o uso de “público como nome (principalmente a partir do início do século XVII)

é mais tardio de que o seu uso enquanto atributo (metade do século XVI ou até anterior).

40
que a organização sob uma autoridade comum (seja ela uma pessoa, poucas
pessoas ou toda a “multidão”) é uma condição necessária para que o povo ou a
comunidade política durem no tempo e, como se pode supor, para que seja
considerado um "povo" ou uma "comunidade política".
Neste contexto, não posso me envolver com uma genealogia ou uma
história da linguagem política do "público". Não é isso que me interessa
particularmente aqui. No entanto, é interessante observar que, apesar das
divergências, é possível mapear as duas línguas ao longo da história, pois
podemos verificar que, por exemplo, o ensaio de John Dewey sobre O público e
seus problemas,20 ensaio que discute a democracia política e seu futuro, oferece
um uso notavelmente consistente da idéia de "público" em um sentido bastante
semelhante ao uso que também podemos atribuir ao "povo" quando falamos de
democracia. Em seu ensaio, Dewey usa “público” para se referir a todos os
membros da comunidade política em um sentido organizado ou mais disperso,
e o emprega para apontar para o princípio originário da legitimidade do
governo. Segundo Dewey, e aqui de maneira diferente da de Cícero, a
necessidade de se associar em uma comunidade política organizada não vem de
nosso senso comum de lei e direito, nem de nos reunirmos por razões de
vantagem mútua; mas sim do impulso mais negativo e defensivo que deriva do
fato de termos que lidar com as externalidades das ações e relacionamentos de
outras pessoas: "o público consiste em todos aqueles que são afetados pelas
conseqüências indiretas das transações ...". E, imediatamente depois: “O público,
na medida em que é organizado por meio de funcionários e agências materiais,
para cuidar das conseqüências indiretas extensas e duradouras das transações
entre pessoas é o Populus”.21
Dentro da economia deste artigo, Cícero e Dewey são meramente
instrumentais para enfatizar que é possível reformular algumas das ideias-
chave sobre a natureza da comunidade política e a soberania transmitidas pela
"linguagem do povo" em uma "linguagem do público". Meu argumento adicional
é que isso pode criar uma diferença importante, dadas as diferentes conotações
que o “público” pode trazer para o modo como concebemos o vínculo político.
Obviamente, a referência ao público e não ao povo pode subestimar
consideravelmente o tipo de conotação étnica e outras particularidades que a
“linguagem do povo” traz para a comunidade democrática pela maneira como
povo e nação começaram a estar intimamente ligadas desde o final de o século
XVIII. Mas o termo público não elimina necessariamente outros elementos
culturais (linguagem, por exemplo) que podem ser tecidos na fábrica da

20 John Dewey, The Public and its problems, (Swallow Press, 1954).
21 Ibid., pp. 15-16.

41
comunidade democrática. Aqui, ainda há espaço para discussão e controvérsia
sobre as condições necessárias para a democracia.
No entanto, quero argumentar que uma concepção da comunidade
democrática e da soberania democrática que apela ao "público" e não ao "povo"
pode fazer a diferença. Vamos considerar, por exemplo, o recente argumento de
Philip Pettit sobre três ontologias políticas diferentes da sociedade e como isso,
em suas palavras, "pressupõe uma explicação das relações e da estrutura em
virtude das quais os indivíduos de uma sociedade constituem um povo, uma
nação, e um estado.” 22 Observe que aqui Pettit parece fundir os conceitos de
povo, nação e estado, enquanto eu penso que estes devem ser mantidas
separados, pelo menos analiticamente, mesmo se combinados fornecem o
caráter de uma sociedade. Porém, de fato, a maior parte do argumento de Pettit
está focada na ontologia do povo (democrático). Pettit argumenta que,
historicamente, existem duas tradições principais que disputam a ontologia
política do povo nas democracias. Uma apoia uma concepção “solidária” do povo,
tratando os cidadãos como parte de um corpo político unificado e com
características corporativas que o diferenciam dos cidadãos individuais. Esse
corpo político tem seu próprio conjunto de julgamentos e propósitos distintos
dos dos membros individuais e não redutíveis à sua mera agregação. A outra
tradição apoia uma concepção mais “singularista” e individualista do povo e da
cidadania, onde os indivíduos permanecem separados e simplesmente tentam
encontrar maneiras de agregar seus interesses e preferências, e onde a ideia de
coletividade é fundamentalmente metafórica. A sociedade política, contra a visão
adotada por Cícero, é apenas um espaço onde uma multidão, com julgamentos e
propósitos diferentes, interage de uma maneira que, na democracia, é regulada
por certos princípios e regras particulares, mas onde o povo não pode ter um
"corpo" próprio.
Nenhuma dessas opiniões, nem a reconstrução de Pettit, é
particularmente nova. De acordo com Pettit, no entanto, há uma terceira posição
que ele parece considerar uma novidade, ou, pelo menos, algo que foi sub-
teorizado e até mesmo os que apóiam essa terceira visão, como Rawls, por
exemplo, não teorizam claramente. Sua aparente novidade é destacada pelo fato
de Pettit optar por um neologismo para nomeá-lo. Ele chama isso de “civicidade”
[“civicity”]. Eu permaneço cético quanto à novidade intrínseca dessa visão,
principalmente porque considero as duas visões mais tradicionais descritas por
Pettit como as duas polaridades de um espectro no qual diferentes ontologias
da comunidade democrática tendem a se colocar, de modo que a “civicidade”,
como sugere Pettit, ocupa de fato uma posição central entre as outras duas, mas

22 Pettit, “Rawls’s Political Ontology,” p. 157.

42
essa posição talvez seja mais popular, embora nem sempre totalmente
articulada, do que aquilo que Pettit aceitaria. A questão, no entanto, é
compreender o que caracteriza essa posição. Para Pettit, a “civicidade” não é,
obviamente, um agente corporativo nem a simples soma de indivíduos
separados. Sendo assim, como pode ela alcançar a unidade de propósito e ação,
e que tipo de unidade isso envolve? Pettit caracteriza "civicidade" como
"indivíduos envolvidos em um agrupamento [que] têm certos propósitos em
comum".23 Ele sugere que esses indivíduos tenham "uma agência representativa
em funcionamento", mas não desejam delegar decisões inteiramente a eles. Em
resumo, Pettit sugere que a opinião das pessoas consiste em deliberação
pública. Nos casos em que eles chegam a um acordo, eles constituem um agente
do grupo, que não precisa de um agente representativo real. Porém, sendo
improvável nas condições normais da política, eles só podem oferecer
orientação indireta aos seus representantes, na forma das considerações que
emergem do debate público e que geralmente serão consideradas relevantes
para a interpretação e implementação dos objetivos compartilhados do grupo.
É com base nessas considerações que os agentes representativos terão que agir,
embora “se possa esperar que sejam contestados e talvez demitidos se não
atenderem a ela”. 24 As considerações e as “presunções e avaliações” que se
seguem deles operam como restrições às ações dos representantes e esse
processo de tomada de decisão é o que, segundo Pettit, caracteriza uma
“civicidade”:

Assim como acontece com um agente do grupo, os membros de uma


civicidade se comprometem a debater sobre os propósitos que
supostamente compartilham. Mas, tal como com um mero agregado de
indivíduos, eles não terão como objetivo estabelecer um corpo de
julgamentos comuns sobre os quais agir (...). No entanto, não como estes
... [a civilidade] debaterá com o objetivo de impor uma restrição ao
indivíduo e ao corpo encarregado de agir em seu nome.25

Sem querer entrar no mérito do argumento de Pettit sobre “civicidade”,


podemos assumir com segurança que o que ele está descrevendo tem mais
probabilidade de ser subsumido na forma como nós entendemos o
funcionamento de um público e não tanto como exibição do tipo de
características que podem ser prontamente associadas a um povo. Em outras
palavras, o tipo de processo que Pettit alega caracterizar a ontologia política da
“civicidade” como uma forma de comunidade democrática pode ser mais

23 Ibid., p. 166.
24 Ibid.
25
Ibid., p. 165.

43
facilmente descrito pela linguagem do “público” do que pela do “povo”. A
diferença crucial neste caso, parece ser que a “civicidade” pode ter objetivos
comuns de um tipo geral (pode ter objetivos e razões sobre eles) e, portanto, se
assemelhando a um agente a esse respeito; mas não pode chegar prontamente
a um total acordo e passar a uma ação concertada (não pode ter vontade) e,
assim, mantém as características da multidão. As idéias personalizadas do povo
tendem, ao contrário, a se localizar naturalmente dentro de uma ontologia do
tipo corporativo, e, nesse sentido, a "linguagem política do povo" parece se
encaixar facilmente no pressuposto de que o exercício da soberania popular
implica alguma forma de vontade do povo.
Mas será que a “linguagem do público” política evita necessariamente os
aspectos voluntários da política, fornecendo uma ontologia da política baseada
apenas na razão e não na vontade? A insistência no "público" certamente
sugeriria uma certa inclinação em direção a uma concepção de democracia mais
deliberativa do que baseada em agentes. No entanto, será que isso precisa
necessariamente assumir a forma do que Pettit chama de democracia
“editorial”, onde o poder exercido pela coletividade é um poder principalmente
de controle e contestação, em vez de um tipo de poder mais diretamente ativo?
Não necessariamente, se aceitarmos alguns aspectos da discussão de Henry
Richardson sobre o público na obra Democratic Autonomy.26 A reconstrução de
Richardson da discussão ontológica da comunidade democrática é muito
semelhante à de Pettit, embora ele prefira usar "público" onde Pettit usa "povo".
De fato, o uso que Richardson faz de público está muito próximo de Dewey, na
medida em que ele também tende a deslocar-se ocasionalmente de um para o
outro termo. Como Pettit, no entanto, ele deseja rejeitar uma concepção
orgânica e atomística do “público”.27 E, tal como Pettit, ele sugere que, em última
análise, o público deve coincidir com as condições necessárias para que o
raciocínio democrático ocorra. Para ele, essas condições consistem
principalmente em alguma forma de acordo de fundo entre os cidadãos, para
que a discussão política seja possível; na instituição de um processo político que
garanta a igualdade política; na publicidade necessária para o processo de
formulação de políticas; e certas virtudes cívicas mínimas (de integridade e
magnanimidade) para os participantes aceitarem o resultado das decisões
democráticas. 28 Mas, ao contrário de Pettit, Richardson insiste que em uma
democracia há um papel para a vontade do povo, mesmo que ele rejeite a ideia
de que isso precisa ser descoberto. Em vez disso, ele sugere que o requisito é
que o processo político “convide [os cidadãos] a desempenhar um papel na

26 Henry Richardson, Democratic Autonomy, (Oxford: Oxford University Press, 2002).


27 Ibid., p. 181.
28 Ibid., p. 187-88.

44
decisão conjunta, o que deve ser feito”. 29 Se o processo político puder ser
construído dessa forma, não haverá razão para pensar que as decisões não
refletem o que pode ser tomado como a vontade da coletividade. "Tudo o que é
necessário é - de acordo com Richardson - que os indivíduos participem
suficientemente do processo político para que isso possa contar como
decidindo, juntos, o que deve ser feito."30
Para o propósito deste artigo, o argumento de Richardson não precisa ser
convincente. O que pretendi mostrar aqui é que, quando chegamos à questão do
exercício da soberania popular, a "linguagem do público" pode ser invocada
para complementar ou mesmo suplantar a do povo. Essa linguagem desloca a
ênfase nas condições institucionais (mas subordinadas às condições sociais e de
atitudes concomitantes) que possibilitam ao cidadão exercer sua autonomia,
desempenhando um papel no processo de tomada de decisão coletiva. No
entanto, colocado dessa maneira, é preciso perguntar se as condições da
democracia representativa através das quais o processo de tomada de decisão
ocorre são tais que o que é decidido pode, nas palavras de Richardson, "ser
contado ... como constituindo a vontade do povo". 31 Isto nos leva de volta ao
nosso ponto de partida. É possível oferecer uma versão da soberania popular
que não apele a uma idéia essencialista e imediata de "governo do povo" e
"vontade do povo", como fazem os populistas? Minha sugestão é que devemos
substituir a idéia do público pela do povo na representação democrática.

Conclusões

Espero que minha maneira de distinguir entre a “linguagem do povo” e a


“linguagem do público” seja convincente e que ofereça uma maneira distinta de
estabelecer uma diferença entre os dois. Nas conclusões que se seguem desejo
retornar ao ponto que expus no final do capítulo introdutório, em que afirmei
que é possível defender uma visão da soberania popular que não caia nas
armadilhas de uma leitura populista da “vontade do povo”. Farei isso
recorrendo a um livro recente de Albert Weale, 32 onde ele descreve os dois
"mitos nostálgicos" da democracia. O primeiro é o "mito" da democracia direta,
consubstanciado na experiência histórica da democracia ateniense. Esse mito
consiste na idéia de que o governo democrático exige a "presença" do povo,
como no Pnyx, onde os cidadãos atenienses se reuniram para tomar decisões
coletivas. O segundo mito é o da Vontade Geral de Rousseau, ou da possibilidade

29 Ibid., p. 65.
30 Ibid., p. 66, my emphasis.
31 Ibid., p. 65.
32 Weale, The Will of the People.

45
de haver um consenso unitário da comunidade como um todo, expresso em uma
única vontade coletiva. Embora eu concorde que algumas versões nostálgicas
desses mitos expressem uma visão populista da soberania popular, considero
igualmente que a democracia representativa e constitucional moderna, de modo
a levar a sério a força legitimadora da idéia de soberania popular, precisa
abordar os problemas reais por trás esses mitos, a saber, o problema da
"inclusão democrática" e o problema do "empoderamento democrático".
Começarei com o primeiro mito, aquele da “presença” necessária do povo
no processo de tomada de decisão. Quero ilustrar este ponto com o Referendo
Brexit. Como vocês sabem, três anos se passaram desde o referendo e não há
clareza sobre o que significa Brexit. Theresa May passou a maior parte de seu
mandado (agora vergonhosamente terminado) dizendo que "Brexit significa
Brexit". O que ficou claro é que a decisão de sair da União Europeia é muito mais
complexa e indefinida, mesmo para aqueles que apoiam a opção de
permanecerem. Há muitas maneiras diferentes pelas quais essa separação pode
ocorrer e é difícil dizer o que as pessoas quiseram quando votaram, se
prefeririam um Brexit “leve” ou “duro” (apenas para permanecer no campo das
generalidades), ou como teriam julgado as muitas e particulares consequências
que podem resultar da renúncia do Reino Unido à sua adesão à U.E. Se,
examinando os muitos aspectos práticos, eles teriam aceitado uma série de
compromissos ou reavaliado a decisão por completo. Um referendo como o
Brexit coloca um problema particular, já que esta decisão tem uma dimensão
constitucional com muitas implicações. Por essa mesma razão, recorreu-se ao
referendo em primeiro lugar. Mas o Brexit mostra pelo menos duas coisas. Em
primeiro lugar, que um voto dessa natureza pode dar uma indicação de uma
direção geral (a maioria do eleitorado britânico era claramente a favor de
rescindir sua adesão à U.E.); no entanto, não consegue articular um julgamento
preciso sobre o assunto, o que, porém, é importante para tomar a decisão nos
detalhes, considerando todas as implicações e consequências. Essas razões e
motivações só podem ser discutidas, adivinhadas e “representadas” (tanto no
sentido de serem refletidas e retratadas) pelas pessoas (os representantes
políticos) que têm que tomar as decisões práticas e técnicas relevantes. A
segunda coisa que o Brexit mostra é um argumento apresentado há muitos anos
pelo advogado constitucional alemão, Böckenförde, quando, argumentando
contra formas de democracia plebiscitária e mais direta, sugeriu que o problema
com essas formas de tomada de decisão em sociedades grandes e complexas é
que decisões desse tipo são sempre “resposta a um chamado”. Em outras
palavras, o que importa não é tanto como as pessoas respondem, mas qual é o
chamado ou a pergunta à qual as pessoas respondem. Definir a questão, como
definir a agenda, é uma parte importante da política, e não há como escapar do

46
fato de que aqueles que definem a questão não podem ser as pessoas como um
todo. Não penso que isso exclua formas de participação direta ou referendos da
política democrática, mas antes que isso circunscreve seus efeitos mostrando
que, mesmo em um caso que pareça tão claro, como pedir ao povo que decida
sobre um assunto tão importante, encontramos dificuldades que dificilmente
podem ser resolvidas por uma simples afirmação de que esta é a “vontade do
povo”. O argumento pode ser estendido para além do uso de referendos. Dahl,
por exemplo, tenta mostrar que tanto as eleições como os períodos de eleições
intermediárias são extremamente problemáticos na produção de uma clara
“vontade do povo” ou na capacidade do povo de controlar o governo e a
legislatura. Uma coisa que podemos deduzir, seguindo em parte Lefort e Laclau,
é que existe uma espécie de “espaço vazio” no centro da democracia, onde o
populista coloca a “vontade do povo”. Esse espaço vazio é sempre e
necessariamente o efeito de construções políticas e o alvo da contestação
política. A autoridade do povo pode ser evocada, mas nunca apresentada como
tal, ela necessita de construção e mediação institucionais contínuas.
Tendo dito que o mito da “presença” do povo não nos ajuda, na medida em que
é demasiadamente indeterminada no modo de identificar o sentido preciso no qual o
processo de tomada de decisão das sociedades democráticas reflete o conjunto das
preferências dos cidadãos; pretendo também sugerir que reivindicações por mais
participação direta e envolvimento não devem ser descartadas nem subestimadas na
democracia representativa. Isto porque estas reivindicações são uma expressão do
ideal democrático de “inclusão”. É importante, ao desenhar os nossos sistemas
representativos, prestar atenção às diferentes formas como as relações representativas
e as reivindicações representativas podem articular as demandas daqueles que estão
ou se sentem excluídos ou sem voz. Atenção especial deve ser dada à interação entre
o social e o político na articulação de reivindicações representativas: como, por
exemplo, articular essas reivindicações pode exigir um papel mais ativo dos
representados para que a representação seja inclusiva; ou como os projetos
hegemônicos realizados na representação contribuem para a constituição da
subjetividade política dos cidadãos e para a saída de conflitos democráticos dentro de
uma arena constitucional compartilhada. Embora a subjetividade política dos
representados seja frequentemente moldada pelos representantes e pelas
reivindicações que estes fazem para falar e agir em seu lugar; esse processo é tudo
menos um sistema unidirecional. Além disso, como grande parte da literatura recente
tentou mostrar, representação e participação não estão em oposição direta. Isso ocorre
porque a representação apresenta dois aspectos diferentes e pode ser institucionalizada
de acordo com isso. Um aspecto consiste na exclusão dos cidadãos da tomada de
decisões, transferindo sua função para as elites escolhidas de várias maneiras. No
entanto, a outra consiste no papel que a representação pode desempenhar na inclusão

47
dos cidadãos, tornando-os participantes da política através de diferentes formas, como
a da “politização” ou da inclusão de grupos sociais, o que permite que certas
identidades sociais sejam formadas e assim, representadas na arena política. Embora
o processo de decisão democrática em sociedades complexas não exija, por ser
impossível, a presença direta dos cidadãos, ela deve estar atenta de modo a ser capaz
de fornecer caminhos contínuos e múltiplos para a inclusão nesse processo de tomada
de decisões.
Chego agora à segunda questão, que tem a ver com o mito rousseauniano da
Vontade Geral. O elemento nostálgico deste mito não reside tanto na distinção que
Rousseau faz entre a Vontade de Todos e a Vontade Geral. A primeira, Vontade de
Todos, refletindo a mera agregação das preferências imediatas dos cidadãos ou
eleitores (dependendo do contexto); enquanto que a segunda, Vontade Geral, sendo a
expressão do modo pelo qual os cidadãos ou eleitores tentam decidir a partir da
perspectiva do “bem comum”. Penso que esta distinção nada tem de nostálgica, mas
reflete um dilema importante da teoria democrática. O aspecto nostálgico desse mito
reside mais na maneira pela qual Rousseau, ou outros depois dele, e sobretudo uma
compreensão particularmente populista da Vontade do povo, entendem a formação da
Vontade Geral como um processo natural ou simplesmente como o equivalente à
Vontade de Todos. O verdadeiro problema para a teoria democrática reside no que
Rousseau descreveu como a "transformação" que a natureza humana exige para que o
Contrato Social possa ocorrer. Mas, desejo manter, este nunca é um momento único.
Não deve ser visto como algo extraordinário e sim como algo que faz parte da política
democrática comum.
Por este motivo, considero que devemos adotar uma atitude mais positiva em
relação ao fato de que é ao mesmo tempo impossível, mas necessário, evocar o povo
na democracia. Este processo é importante nas operações da democracia
representativa e constitucional, na medida em que decorre do princípio do
“empoderamento democrático”. Isto é feito ao examinar as diferentes maneiras pelas
quais a representação política pode facilitar ou afetar a capacidade dos cidadãos de
desenvolver sua autonomia de julgamento, necessária para a tomada coletiva de
decisões. Quanto à inclusão democrática, o empoderamento democrático requer uma
concepção de representação política enquanto relação interativa. Esta visão não
considera os interesses / preferências dos representados como pré-formados,
concebendo a representação como um tipo de cinto de transmissão, mas antes
considera as opiniões dos cidadãos como parte de um engajamento contínuo
(deliberativo e participativo) com seus múltiplos canais de representação, bem como
o produto da possibilidade / oportunidade que os cidadãos têm de desenvolver suas
próprias competências e capacidades para influenciar o processo de tomada de
decisão.

48
No entanto, o processo de empoderamento ainda precisa resolver o problema
do caráter unitário da tomada de decisão. Em outras palavras, como passamos da
Vontade de Todos para a Vontade Geral. Embora não exista uma unidade natural do
povo, a política democrática também tem a função não apenas de dar forma e
conteúdo ao governo da comunidade, mas também de constituir a própria
comunidade. Isso só pode ser feito ao proporcionar momentos de mobilização nos
quais a comunidade democrática ou partes dela se reúnem na tentativa de definir (e
construir) alguma idéia do interesse público sobre uma variedade de questões que
dizem respeito à comunidade como um todo. Nas democracias modernas, a formação
do interesse público pode ser considerada de uma maneira mais pluralista do que a
sugerida por Rousseau. Este pluralismo deriva da necessidade de mediação nas
políticas democráticas que eu já mencionei. Essa mediação também está ligada ao
fato de que a relação de representação também pode envolver uma terceira parte: não
apenas o representado e o representante, mas também uma audiência, que precisa
validar o próprio ato de representar. Este terceiro elemento da representação
democrática é particularmente evidente naquilo que Manin chama de "democracia de
audiência", mas já se manifesta nas formas anteriores de democracia representativa e
coloca problemas em termos de legitimidade democrática e da teoria representativa.
Para resolvê-los, podemos precisar realizar duas operações distintas. Uma é mais
analítica, envolvendo uma reavaliação da maneira como o sistema representativo
opera nos estados constitucionais democráticos. O elemento crucial consiste em
explicar como a “esfera pública”, distinta do sistema estritamente político e
institucional, desempenhou um importante papel integrador e legitimador no
funcionamento do sistema representativo (como um todo). Isso de fato introduziu um
terceiro elemento entre representantes e representados pela multiplicação dos
“públicos” aos quais as reivindicações representadas podem ser feitas, e diferentes
critérios de autoridade e validação de acordo com os quais tais reivindicações podem
ser justificadas. O “público”, neste sentido, pode ser distinguido das diferentes
instanciações dos representados (mesmo no sentido de um “povo” mais ou menos
imaginado). Nesse sentido, a soberania popular pode se tornar dependente da
validação do “público”, no sentido de “discurso público” ou “interesse público”.
A forma mais normativa através da qual idéias de um terceiro elemento, ou
“poder independente”, podem ser integradas na representação democrática consiste
em transformar a idéia de “audiência”, como usada por Manin, em uma idéia mais
ativa do “público(s)”. ” o que não deve ser entendido de maneira predominantemente
espectatorial (interpretativa), mas pode ser traduzida em um sentido mais ativo, como
a capacidade das pessoas de se tornarem uma comunidade, para o interesse de todos:
em outros termos , uma respublica - coisas que são públicas, pertencentes à
comunidade política como um todo, mas que podem se tornar dependentes do
escrutínio do público (por meio de algum tipo de escrutínio "independente") como

49
uma manifestação separada, de alguma forma distinta tanto da vontade popular
imediata (governo pelo povo) quanto de sua expressão mediada através de seus
representantes políticos (governo por representação). A principal questão de um
governo pelo “público” é compreender que formas institucionais tais públicos
independentes devem tomar, particularmente nas sociedades contemporâneas, onde
as formas de comunicação e produção de conhecimento mudaram radicalmente ao
longo dos últimos 40 a 50 anos. Mas isso é algo para outra hora.

50
REPRESENTAÇÃO COM E SEM POVO –
O AMBIVALENTE CASO BRASILEIRO

MARTA NUNES DA COSTA1

Existe uma dificuldade intrínseca ao processo de dar sentido aos


fenômenos políticos no Brasil que deriva do abismo entre, por um lado, as
teorias clássicas, liberais, conservadoras, modernas ou contemporâneas a partir
do qual concebemos e imaginamos a política e, por outro lado, a história
específica dos vários estados brasileiros em sua relação sempre tensa com o
projeto de país e de uma União federativa. Com efeito, podemos identificar no
Brasil várias especificidades dificultam qualquer plano de articulação linear
entre teoria e prática. Como diz Sérgio Abranches

A República nasceu sem povo e oligárquica. Saindo do Império, escolheu o


presidencialismo. Olhando para a Revolução Americana, definiu-se
federativa. Mas de outro modo, não como um arranjo institucional que
une o poder local a um poder nacional limitado, e sim como
descentralização, como delegação de poderes às províncias. Por isso,
começou centralizada, todavia descentralizou-se e recentralizou-se.
Submergiu por duas vezes no autoritarismo e reemergiu mais
democrática, porém, mais centralizada. (2018, p.21, meu itálico)

Sérgio Abranches, na obra recente Presidencialismo de Coalizão – Raízes


e Evolução do Modelo Político Brasileiro, identifica o movimento de construção e
manutenção da República brasileira, nas suas várias etapas, desafios, golpes e
contragolpes até aos dias de hoje. A leitura do texto de Abranches permite-nos
compreender os porquês disso e assim, a complexidade do Brasil que se recusa
a ser reduzido a categorias teóricas. Essa recusa representa, porém, um
obstáculo à tarefa de compreender a realidade e traduzi-la de forma clara. Além
disso, essa recusa parece contribuir diretamente para a manutenção de um caos

1 Professora de Ética e Filosofia Política, Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Brasil.

51
de pensamento2 que permite mais facilmente movimentar os corpos e vontades
dos eleitores de acordo com agendas e interesses quase dinásticos, elitistas e
com certeza, oligárquicos. Assim, reconhecendo a urgência de revitalizar e
legitimar o projeto democrático no Brasil é preciso clarificar a natureza das suas
origens dúbias e, de seguida, iluminar as mutações pré-conceituais de maneira
a facilitar o processo de juízo acerca dos meios que promovem ou se afastam
dos fins democráticos. Uma análise do conceito de representação e seu conjunto
de práticas é por isso crucial nesta tarefa.
Este capítulo tem quatro secções. Na primeira seção olho para as camadas
do conceito de representação. A partir de um diálogo com Yves Sintomer
reconstruo os sentidos de representação, nomeadamente, a identity
representation e embodiment representation. Na segunda seção, tendo como
contraponto os sentidos apontados por Sintomer caracterizo a especificidade do
desafio diante de nós quando tentamos transpor uma conceptualização teórica
europeia ou anglo-saxónica para o Brasil. Na terceira secção trabalho com a
hipótese de que assistimos hoje a um processo de construção de um ‘Novo’
Brasil; aqui, reconstruo o percurso político dos últimos anos, começando pela
análise fenomenológica das Jornadas de Junho que considero ser o ponto de
ruptura com o paradigma previamente dado. Por último, na quarta seção olho
para a relação entre Jair Bolsonaro e o projeto do ‘Novo’ Brasil, analisando os
mecanismos de reconfiguração do ‘Povo’ (e o papel das redes sociais e
WhatsApp) e os modos pelos quais estes abrem a possibilidade para a
redefinição da relação representativa democrática.

Introdução

Regressando às origens, gostaria de começar por mencionar um dos


pontos de comparação entre Estados Unidos da América e Brasil onde há clara
divergência e que me parece vital para compreender a realidade ainda hoje. Este
ponto tem a ver com a pré-existência (ou não) de um Povo. A relação entre povo
e constituição do corpo político tem sido analisada por filósofos ao longo da
história. Dizia já Rousseau em O Contrato Social

Antes de examinar o ato pelo qual um povo elege um rei, seria bom
examinar o ato pelo qual um povo é um povo. Porque esse ato, sendo
necessariamente anterior ao outro, constitui o verdadeiro fundamento da
sociedade. (1999, p.19)

2 Emprego esta expressão no sentido de mau pensar, i.e., contrário ao uso da reta razão.

52
Para que exista Civitas é preciso que exista o povo, que se auto-constitui
como tal. Embora possamos postular uma co-originalidade histórica, prática e
hermenêutica, o povo existe (ou passa a existir) a partir do momento em que o
contrato é firmado. A tradição contratualista orienta-nos deste sentido: a vida
política em comum é fruto de uma escolha humana, que visa traduzir, por um
lado, um conjunto de direitos naturais (necessariamente inalienáveis) e, por
outro lado, garanti-los, positivando-os e transformando a responsabilidade
pessoal (quanto mais não seja da própria auto-preservação) a uma co-
responsabilização. O contrato social transforma. Transforma seres humanos em
indivíduos, cidadãos e pessoas. O contrato social inventa o indivíduo como ponto
de partida; ele convida a olhar para si próprio como totalidade, plenitude,
potencial de humanidade, convergência de determinismo natural, teleologia e
moral. O contrato social introduz, de forma absolutamente imanente e secular,
os conceitos de justiça, paz e moral. Todos se tornam questões nossas.
No momento da Revolução Americana havia já uma história. Uma história
de prática e cidadania, uma experiência de construção de um mundo comum
embasado na postulação dos direitos inalienáveis. Além disso, a comunidade
estava pré-estabelecida; os critérios de identificação e comunhão estavam
dados, não só pela partilha de um ADN religioso, puritano comum, mas também
pela partilha de um ADN cultural, teórico, apesar das diferenças e dissensos que
possam ter nela existido. Estados do Norte e Estados do Sul eram movidos, cada
qual, por interesses comuns – os do Norte defendendo pautas mais
progressistas, antiescravagistas e os do Sul defendendo pautas mais
conservadoras para as quais a escravatura era condição sine qua non para
manutenção do status e da produção de riqueza. No Brasil, pelo contrário, não
encontramos identidade de interesses entre os Estados do Norte e os Estados
do Sul. Diz Abranches que

[no] Brasil, não havia similitude socioeconômica nem cultural entre os


estados das duas grandes regiões Sul-Sudeste e Nordeste. As clivagens
ficaram encapsuladas nos estados. Nos Estados Unidos, a ruptura levou a
realinhamentos partidários e a uma guerra civil. No Brasil as guerras civis
e rebeliões ocorreram igualmente, mas ficaram nas fronteiras estaduais,
e as rupturas levaram a mudanças de regime político, por meio de golpes
sem povo.” (2018, p.23, meu itálico)

O povo, os povos, nunca foram alvo nem sujeito das guerras, rebeliões ou
da política. O povo e os povos quase sempre ficaram de fora, excluídos da
política, da esfera da decisão, e incluídos apenas como mão-de-obra barata,

53
facilmente controlável, dócil e submissa. 3 Se nos Estados Unidos se observa,
desde o início, um bipartidarismo que, apesar dos diversos realinhamentos na
história se mantém firme e intocável, no caso brasileiro a República nasceu
‘antipartidária’ (ABRANCHES, 2018, p.24) Os partidos políticos no Brasil
sempre tiveram características de facções regionais, defendendo interesses
localizados espacial e historicamente. A “União” sempre foi uma ficção difícil de
realizar, pois nem o povo existia, nem o Brasil como nação.
De fato, os partidos sempre foram secundários na construção política
brasileira. Como diz Abranches, ‘quando se tratava de tomar posições em
assuntos nacionais, as lideranças preferiam neutralizar o partido.’ (2018, p.27)
Claramente, na Primeira República (1889-1930) estado e partido confundiam-
se, enquanto que na Segunda (1930-1964) e sobretudo na Terceira República
(1988) os partidos começaram a mobilizar-se mais em torno de questões
nacionais, e as questões estaduais dissolveriam as linhas partidárias. Como
resultado temos o fato de que

Partido e interesse oligárquico estadual se confundiam. É exatamente por


isso que a ideia de um Executivo onipotente sempre assustou os
constituintes. [...] Dessa maneira, tem-se um quadro perfeitamente
orgânico, onde um presidente cujo mandato pertence à sociedade e não
ao Legislativo, que representa mais a integração dos votos nacionais [...],
tinha sua ação limitada pelo Legislativo, legítimo representante dos
interesses estaduais, com o Executivo favorecendo a centralização e o
Legislativo, a descentralização. Esse movimento de freio e contrapeso faz
com que a historia política brasileira seja, em boa parte, em todas as
experiências republicanas, a história do conflito entre Legislativo e
Executivo. (ABRANCHES, 2018, pp.27-8)

É este conflito que de acordo com Abranches se torna fundamental na


arquitetônica da política brasileira: por um lado, o Presidente que deveria
representar a nação (em construção), respondendo e dialogando com todos, por
outro lado, o Legislativo que se focava na sua tarefa de representante de
interesses especificamente estaduais e locais. Percebe-se que desde a sua
origem a política brasileira usou mecanismos de representação em sentidos
distintos e não consensuais. É esta dissenção de origem na forma como se
compreende Nação, Povo e Representação que precisa ser esclarecida.

3 Diz José Murilo de Carvalho que “O papel do povo, se não foi de simples espectador, como queria
Eduardo Prado, que o comparou ao carreiro do quadro Independência o morte!, de Pedro Américo, também
não foi decisivo, nem tão importante como na América do Norte ou mesmo na América espanhola. Sua
presença foi maior nas cidades costeiras; no interior, foi quase nula. [...] Por isso, se não se pode dizer que
a independência se fez à revelia do povo, também não seria correto afirmar que ela foi fruto de uma luta
popular pela liberdade.” (2003, pp.27-28)

54
I. As várias camadas do conceito de representação

O ponto de partida na construção política brasileira impede que se façam


generalizações ou comparações rápidas entre países ou, no que nos interessa,
aplicações e decalques de teorias europeias ou anglo-saxónicas nesta realidade.
O conceito de representação permite iluminar as distâncias que existem entre
Brasil, Europa e Estados Unidos da América, distâncias que são conceptuais e
simbólicas.
O desafio desvela-se de forma imediata. Tentarei identificá-lo por pontos,
tomando como ponto de partida um diálogo preliminar com Yves Sintomer e sua
análise do conceito de representação.
Yves Sintomer (2013) aponta sabiamente que o conceito de
representação não pode ser definido de maneira essencialista, já que ele implica,
pela sua própria natureza, uma mudança, uma atualização de status. Sintomer
diz no inicio do seu artigo, a partir de um diálogo com Carlo Ginzburg, que
devemos superar três obstáculos antes de mergulhar no debate acerca da
representação. Em primeiro lugar, o obstáculo da língua utilizada. Por exemplo,
no francês, tal como no português ou nas línguas de origem latina, o conceito de
representação aponta imediatamente para uma dimensão simbólica. A
democracia contemporânea, estando vinculada à ideia de governo
representativo, deve significar ou apontar para o ato de produção da soberania
popular, feito através da representação política, porém não limitado a ela. O
segundo obstáculo é ‘a identificação da representação política com eleições.’
(2013, p. IV) Na linha de Saward4, Sintomer sublinha o facto de que assistimos
hoje a uma ‘pluralização de demandas representativas políticas’ (2013, p. V) O
terceiro obstáculo é ‘reduzir a legitimidade da representação eletiva ao mandato
dado pelos eleitores aos eleitos.’ (idem)
O conceito de representação é denso pois aponta para uma tensão
insuperável entre, por um lado, ‘tornar presente o que está ausente’, e por outro
lado, ‘ser presente’ sem supor ou depender da ausência. Assim, temos uma
dimensão simbólica onde o que está lá tem uma relação com o que não está,
porém existe uma outra que só pelo facto de estar, de se apresentar, de se tornar
presente, preenche a totalidade do sentido. Esta foi sem dúvida uma das
contribuições inegáveis de Hannah Pitkin e a sua obra The Concept of
Representation (1967) para uma discussão contemporânea sobre o tema. Com
efeito, Pitkin demonstra como a dualidade presença-ausência é, em si mesma,
central à constituição do conceito de representação. Neste contexto, também

4 Ver Saward, Michael. The Representative Claim. Oxford: Oxford University Press. 2010.

55
Sintomer afirma, a propósito da evolução do conceito na história, sobretudo no
contexto da idade medieval que

Qualquer representação jurídico-política envolve a produção de imagens


da comunidade sendo representada ao mesmo tempo como performance
do povo no poder diante daqueles que eles supostamente representam.
Não existe representação politica sem a constituição de ‘comunidades
imaginadas’ mas também sem a encenação desta comunidade e também
de representantes políticos. (2013, p. VIII)

Esta afirmação, dialogando em surdina com a obra de Benedict Anderson


Imagined Communities (1998), é importante para realçar uma interpretação
construtivista da representação política. Dito por outras palavras, as
comunidades políticas não são naturais assim como não são naturais os
mecanismos que elas adoptam para subsistir. As comunidades políticas são
produto do trabalho e criação humanas assim como os conceitos a que elas
recorrem para se inventar e reinventar no tempo. Assumindo uma perspectiva
construtivista da política, não é possível nem sequer desejável defender uma
leitura essencialista do conceito de representação (política).
Levanta-se agora uma questão: como se produz esse imaginário capaz de
mobilizar indivíduos de forma a que estes se tornem comunidade, coletividade,
Povo? Sintomer estabelece a distinção analítica entre identity representation e
embodiment representation para mostrar que originalmente a identity
representation implicava um ‘corpo de iguais’. A postulação de uma identidade
entre membros do corpo político e o soberano aparece como condição
necessária à construção do próprio corpo político; ou dito por outras palavras,
a existência afirma-se a partir da postulação da ideia, do simbólico. 5 A teoria
hobbesiana apresentada em Leviathan formula pela primeira vez na história da
filosofia política uma teoria da representação. Em vez de defender a soberania
política apelando a uma teoria do mandato divino, Hobbes justifica-a a partir de
uma teoria da imanência. Diz Sintomer que ‘a sua teoria da soberania propunha
uma síntese original entre a representação por mandato [mandate
representation] e a representação por incorporação [embodiment

5 À luz do debate dentro da Igreja na idade medieval, sobretudo a luta entre a Igreja papal e a crítica de
Lutero, percebe-se a dualidade do conceito: enquanto que a primeira reclamava que o Papa era o
representante autorizado do concelho religioso, representando o universal, Lutero, em 1536 defendia que
as autoridades eclesiásticas não podiam ser a Igreja, nem eram a Igreja, apenas uma imagem da Igreja;
pelo contrário, a Igreja real era a comunidade dos crentes. Quando pensamos na identity representation do
ponto de vista jurídico e político no momento das guerras religiosas no século XVI e depois no processo
de formação do Estado moderno, essa identidade é transposta para a relação monarca-súditos. Quando
Luís XIV afirma “Eu sou o Estado” ele está a tornar visível essa premissa, esse postulado, essa condição
de possibilidade para se pensar a comunidade política. Como afirma Stokke e Selboe “[...]os símbolos
podem ser arbitrários ou naturais [porém...] o que importa para a representação simbólica é a extensão na
qual um povo acredita em um símbolo.” (2009, p.59)

56
representation]’ (Sintomer, 2013, p.XVI) Hobbes inventa o soberano e com ele,
inventa a nação e o indivíduo; a sua teoria cria um novo imaginário político com
o qual a modernidade terá que, a partir de então, dialogar.
A embodiment representation passa por metamorfoses no contexto das
democracias modernas, identificável em três tipos de discursos: a) nas
demandas representativas carismáticas; b) na inversão republicana do discurso
teológico-político e c) na reinterpretação democrática da identity
representation. Porém, o entendimento dominante da democracia
representativa tem sido aquele que pensa a representação como mandate
representation assente na delegação. É contra esta conceituação de
representação que muitas críticas à democracia representativa se rebelam ou
denunciam como insuficiente, não-representativa ou incapaz. Contra este
entendimento nasce a proposta de uma ‘guinada construtivista’, que considera
que as democracias contemporâneas superaram o modelo tradicional de
mandato, devido à reconfiguração geopolítica e ao papel que instituições
supranacionais desempenham no diálogo com soberanias nacionais, mas que
são agora obrigadas a reinventar-se a partir de um horizonte global. Esta
reinvenção não é fácil já que ela confronta dois grandes desafios: o primeiro, de
responder ao perigo dos ‘especialistas’ que tomam decisões sem ter mandato
para isso.6 O segundo desafio tem a ver com a forma como indivíduos e grupos
passam a mobilizar-se criando novas formas e entendimentos de representação.
Estes indivíduos e grupos não coincidem necessariamente com aqueles
formalizados dentro do horizonte da política democrática representativa
tradicional, isto é, suportada pelo entendimento anterior de delegação. Pelo
contrário, eles se destacam pelo papel ativo na construção de objetos de debate
e objetivos a atingir.7 Como diz Warren e Castiglione

A ‘guinada construtivista’ não é apenas uma postura teórica. Ela é uma


resposta motivada por um conjunto de mudanças históricas e políticas
que nós, seguindo Bernard Manin (1997), compreendemos como
conduzindo à metamorfose da ‘democracia partidária’ em ‘democracia de
audiência’. (2019, p.12, minha tradução)

6 A União Europeia é um exemplo claro: Em Bruxelas se decide o futuro de centenas de milhões de


indivíduos, cidadãos de 27 nações, que simplesmente não votaram neles como seus representantes. Os
representantes nacionais, por sua vez, ficam de mãos atadas ou absolutamente dependentes das diretrizes
europeias, sendo obrigados a definir e ajustar a sua agenda de acordo com estas.
7 Stokke e Selboe, no artigo intitulado “Symbolic Representation as Political Practice” afirmam que

“[...] a atenção sobre o construtivismo levanta questões críticas acerca da relação entre discurso e
economia politica e entre estrutura e agência.” (2009,p.60), porém, ambas as relações levantam
problemas na medida em que parecem conduzir a uma subsunção de uma parte sob a outra; os
autores buscam, nesse artigo, desenvolver uma abordagem que situe as práticas sociais, e portanto
a representação simbólica, dentro do contexto da economia politica e relações de poder. Ao fazê-lo,
respondem às limitações das abordagens pós-estruturalistas ou pós-modernas.

57
Se a democracia partidária, pensada num contexto europeu e americano,
refletia uma base ‘social’, isto é, de ‘classe’, tornando possível uma estabilidade
eleitoral e uma tendência automática para que cada individuo se alinhasse com
a classe social à qual pertencia, a partir do momento em que se acentua um
pluralismo social e uma fragmentação nas demandas e interesses devido às
cisões sociais e culturais, o governo representativo tornou-se ‘audience
democracy’. (Manin, 1997, p.218) Esta mudança reacendeu a busca por líderes
carismáticos, tornando a figura do partido político secundária; por outro lado,
conduziu a uma inversão na forma como as prioridades são construídas e
percebidas: neste cenário, a pertença ao partido (enquanto sinónimo de
pertença a classe) deixou de ter tanto peso e passa-se a valorizar mais as pautas
especificas, ou programas e propostas de governo, de cada líder.
Pressente-se que este tipo de abordagem não encontra decalque evidente
no contexto brasileiro. Assim, na próxima secção trabalho com a hipótese de que
a mutação de um modelo de representação política com fundamento partidário
para um modelo de ‘democracia de audiência’ se deu no Brasil sem que o
pressuposto básico de um ‘Povo’ se tivesse consolidado.

II. O desafio brasileiro

No contexto brasileiro, a questão da representação é multifacetada, já que


desde a Primeira República se desenharam relações complexas, até de
intransigência, entre os poderes. Isto é explicado por vários sociólogos e
cientistas políticos. Sérgio Abranches, sociólogo, e Heloisa Starling, historiadora,
mostram como a relação entre Congresso Nacional e Presidência sempre foi de
conflito. Os Estados desenvolviam estratégias de manutenção de poder de
oligarquias, visando anular, ou limitar, o poder de intervenção do Presidente.
Como diz Sérgio Abranches

A estabilidade dos governos da Primeira República assentou-se na


administração, pelo presidente da República, de domínio majoritário das
oligarquias em seus estados. As facções dominantes controlavam os
partidos republicanos estaduais e uniam-se numa coalizão nacional para
eleger o presidente e controlar o Legislativo federal. O presidente, para
ter sucesso, precisava representar esse equilíbrio de forças heterogéneas
entre forças estaduais que tinham em comum, muitas vezes, o fato de que
detinham o poder de mando em seus respetivos estados. [Na segunda
República] o controle oligárquico se sobrepunha aos impulsos nascidos
da diferença de interesses e da heterogeneidade sociológica das facções
estaduais, para garantir uma aparente unidade politica no plano nacional.
O pressuposto dessa estabilidade era a limitação dos poderes presidenciais

58
[...] O presidente era o sindico do condomínio. O Congresso era o guardião
do consenso mediano.” (2018, p.34, meu itálico)

Como veremos adiante, nada na forma como se compreendia e praticava


a representação política tinha indícios ou tendências democráticas – o
presidente era limitado, o povo virtualmente inexistente, e as oligarquias
soberanas. José Murilo de Carvalho afirma que

[do] ponto de vista da representação política, a Primeira República (1889-


1930) não significou grande mudança. Ela introduziu a federação de
acordo com o modelo dos Estados Unidos. Os presidentes dos estados
(antigas províncias) passaram a ser eleitos pela população. A
descentralização tinha o efeito positivo de aproximar o governo da
população via eleição de presidentes de estados e prefeitos. Mas a
aproximação se deu sobretudo com as elites locais. A descentralizou
facilitou a formação de sólidas oligarquias estaduais, apoiadas em
partidos únicos, também estaduais. [...] A primeira República ficou
conhecida como “república dos coronéis”. [...] O coronelismo era a aliança
desses chefes com os presidentes dos estados e desses com o presidente
da República. Nesse paraíso das oligarquias, as práticas eleitorais
fraudulentas não podiam desaparecer. Elas foram aperfeiçoadas.” (2003,
pp.40-41)

Neste sentido torna-se um desafio tentar transpor uma conceptualização


teórica europeia ou anglo-saxónica para o Brasil. Vejamos por pontos.

1. Como vimos acima a partir do diálogo com o texto de Sintomer, a


representação pensada a partir da identidade supõe, como é óbvio, um
‘corpo de iguais’. No contexto brasileiro nunca houve um, mas vários
‘corpos de iguais’, cada corpo referente a cada estado, reflexo da própria
história e migrações. Porém, dentro de cada estado o corpo de iguais é
restrito às oligarquias.
2. O sentido de representação enquanto delegação vive de uma relativa
estabilidade na relação entre representantes e representados. Oligarquias
representadas por oligarcas, dando o nome de ‘democracia’ ou ‘república’ a
esse processo. 8 Neste sentido, o Brasil nunca passou pela experiência de

8
Com efeito, apesar de haver eleições ininterruptas de 1822 a 1930, esse direito político de votar deve ser
interpretado com cautela, baseado num realismo histórico. Que conteúdo poderia ter esse direito, pergunta
Carvalho? O autor afirma: “Não é difícil imaginar a resposta. Os brasileiros tornados cidadãos pela
Constituição eram as mesmas pessoas que tinham vivido os três séculos de colonização nas condições que
já foram descritas. Mais de 85% eram analfabetos, incapazes de ler um jornal, um decreto do governo, um
alvará da justiça, uma postura municipal. Entre os analfabetos incluíam-se muitos dos grandes
proprietários rurais. Mais de 90% da população vivia em áreas rurais, sob o controle ou a influência dos
grandes proprietários. Nas cidades, muitos votantes eram funcionários públicos controlados pelo governo.

59
identificação robusta ou convergência entre Representante e Representado
enquanto Nação ou Povo, pois estes últimos sempre permaneceram
conceitos vazios. Como afirma Carvalho, desde a primeira República se
percebe que não havia qualquer sentimento de pátria, nem identidade,
individual ou coletiva. (2003, p.78) O ‘Brasil’ permanecia uma ‘realidade
abstrata’.9
3. A identidade ‘brasileira’ começa a ser conscientemente construída a partir
da Segunda República, entre os anos de 1930 e 1964, com a criação do
Instituto Superior de Estudos Brasileiros, criado em 1955 e o
desenvolvimento de movimentos nacionalistas, incentivados pelo Estado
Novo. É um período em que, apesar da limitação dos direitos políticos, se
observa um avanço significativo nos direitos sociais, nomeadamente, com a
legislação trabalhista.10
4. A partir do momento em que se entra na Terceira República, com a
Constituição de 1988, observa-se uma guinada não só conceptual e
simbólica mas espacial e física. Os tradicionalmente excluídos – que apesar
da conquista formal do voto ou direitos políticos permaneciam às margens
da política como atividade – foram incluídos, mas essa inclusão em larga
medida foi farsa. Com efeito, do ponto de vista da relação representativa, os
(efetivamente) representados são aqueles que têm profundas afinidades com
os representantes: pode haver uma diferença de grau mas não de qualidade.
A maioria do povo, ou melhor dizendo, o povo que ainda não é povo mas
apenas massas, multidões ou coisas, permanece fora, às margens, da
construção da representação política. Isto sugere que a mera garantia formal
do direito ao voto não é suficiente para tornar o individuo cidadão e assim,
membro do ‘povo’. Ao mesmo tempo, obriga a confrontar a dualidade e
contradição entre, por um lado, a aparente inclusão (formal) e, por outro, a
prática de exclusão, na medida em que a representação política não é
democrática, i.e., ela não inclui – pelo contrário, a representação política
torna-se mecanismo de institucionalização de exclusão sistemática.

[…]A maior parte dos cidadãos do novo país não tinha tido prática do exercício do voto durante a Colônia.
Certamente, não tinha também noção do que fosse um governo representativo, do que significava o ato de
escolher alguém como seu representante político. Apenas pequena parte da população urbana teria noção
aproximada da natureza e do funcionamento das novas instituições. Até mesmo o patriotismo tinha alcance
restrito. Para muitos, ele não ia além do ódio ao português, não era o sentimento de pertencer a uma pátria
comum e soberana. Mas votar, muitos votavam.” (2003, p.32)
9
Não havia sentimento de ‘comunidade de cidadãos’ nem sequer de ‘comunidade humana’. Diz Carvalho:
“O melhor que se podia obter nessas circunstâncias era o paternalismo do governo e dos senhores. O
paternalismo podia minorar sofrimentos individuais mas não podia construir uma autêntica comunidade e
muito menos uma cidadania ativa.” (2003, p.51)
10
Época claramente populista, Vargas construía a imagem de grande benfeitor, lutador e defensor dos
interesses do povo; era conhecido por “pai dos pobres”.

60
5. Como se deveria compreender o embodiment representation no caso
brasileiro? A tendência de reinterpretar a representação por identidade num
contexto democrático deve ser orientada por cautela na medida em que os
efetivamente incluídos refletem a mutação (porém não o desaparecimento)
da lógica oligárquica e coronelista. Assim, o ‘contexto democrático’
desenha-se num horizonte antidemocrático, de contradições, em que o não-
povo, as massas, permanecem fora da experiência e construção da
representação, apesar de estarem dentro do território, do espaço, da terra. 11
6. O caráter contraditório dessa inclusão ficou visível nos últimos anos,
sobretudo a partir das Jornadas de Junho de 2013: a inclusão foi farsa, foi
uma inclusão via promessa de consumo e não de direitos. Com efeito, os
direitos só são efetivamente direitos quando exercidos, quando há uma
prática, caso contrário se limitam meramente a uma formalidade, morta. O
não-povo foi transformado em ‘povo de ficção’, em ‘nome’ sobre o qual os
dirigentes e representantes políticos ‘falam’, na tentativa de dar legitimidade
às suas escolhas e decisões, enquanto estas permanecem particulares,
interesseiras e pequenas. As categorias de Rousseau permitem iluminar o
paradoxo: os representantes, mesmo num cenário em que estes marginais
são transformados em consumidores, são absolutamente incapazes de
identificar a Vontade Geral; em última análise reduzem-se a representantes
das vontades particulares, i.e., das facções.
7. O não-povo torna-se, com o tempo, (semi) consciente das contradições e
paradoxos entre os discursos de (seus pseudo) representantes e sua
realidade. O abismo torna-se visível porque no processo da ‘democracia’ se
dá a descoberta daquilo que Tocqueville nos havia falado em 1830 e que
haveria de transformar todo o cenário político republicano, moderno e
contemporâneo. 12 Que descoberta é essa? A descoberta de que afinal, a
miséria não é natural, logo, ela pode ser mudada, e quando ela não é
mudada, ou superada, ela é responsabilidade dos homens. Considero essa
descoberta – de que há uma igualdade de condições, mesmo que hipotética,
mesmo que ainda não material – absolutamente transformadora. Um povo
que ainda não é um povo e que foi empurrado para sê-lo apenas
ficcionalmente, para agradar a conjetura nacional e internacional no século

11
Foi com grande felicidade que descobri que Louis Couty, biólogo francês que ensinava no Rio de
Janeiro, afirmara em 1881 que “O Brasil não tem povo”. Na sua obra intitulada A escravidão no Brasil
Couty demonstra como não havia qualquer espírito ou prática de cidadania, entendida no sentido literal de
participação na vida comum, republicana. Mais tarde, em 1925 o mesmo diagnóstico foi apresentado pelo
deputado Gilberto Amado. Este diagnóstico permaneceu válido até 1925, independentemente do fato de
já existirem alguns movimentos que apontavam a busca e construção de uma cidadania ativa, como por
exemplo o movimento abolicionista. Ver CARVALHO, 2003, pp.65-6.
12
Faço referência a Democracia na América, de Alexis de Tocqueville, publicado em 1830 e 1835.

61
das democratizações 13 , é subtraído da sua potencialidade de cidadania e
automaticamente reconfigurado para se adaptar ao papel de consumidor –
passivo, obediente, previsível, controlável.
8. Este empurrão que converteu o não-povo em massas de consumidores,
saltando a experiência realmente transformadora da república e da
democracia, a saber, a cidadania, foi agravado com as tendências de
realinhamento mundial em que as democracias de tornam espaços de
‘audiência’, tal como denunciado por Manin. O não-povo é treinado para
consumir, gastando o que não tem, e, por outro lado, para ver, observar
(porém sem refletir) o grande espetáculo ao qual a política se resume.
9. As Jornadas de Junho de 2013 podem ser lidas à luz destes conceitos: as
massas, as multidões, vêm para as ruas reclamar o seu direito de existência
enquanto povo. A objeção evidente que se segue é que os grupos que
ocuparam as ruas, os espaços públicos, não são necessariamente
representativos da população. Aí, observamos a distinção analítica entre
povo e população, compreendendo que a maioria da população nunca foi
tornada povo, já que para que isso pudesse ter acontecido teria sido
necessário uma sincronia e reciprocidade entre os representantes e o
povo/representados. Os representantes não têm deveres perante a população,
apenas perante o povo, porque a população permanece na condição de
espectadora, passiva, acerca da qual se fala, se mede, se contabiliza, sobre a
qual se age, mas que não é, em si mesma, sujeito, no sentido de agência. A
população-sujeito permanece assujeitada, subsumida, dominada. Assim, e
retomando o fio condutor do raciocínio, os grupos não são representativos
de toda a população, mas apenas de alguma, de parte.14 O que está em causa,
porém, não é tanto o fato de que esta aparição denuncie a falta de
representatividade mas antes que esta aparição clama pelo direito de, a partir
daquele momento, representar o que ainda não existe mas quer, ou tem
vontade de existir.
10. Espinosa pode dar uma contribuição esclarecedora neste retrato que aqui
desenho, pois o que quero sublinhar é o movimento de sujeitos dispersos

13
Dialogo em silêncio com Robert Dahl e a sua obra Democracy and its Critics (1971) e On Democracy
(1998/2001). Nesta última obra o autor afirma que “No início do século, os inimigos pré-modernos da
democracia – a monarquia centralizada, a aristocracia hereditária, a oligarquia baseada no sufrágio
limitado e exclusivo – haviam perdido sua legitimidade aos olhos de boa parte da humanidade.” (2001,
p.13) Isto fez com que apesar das diferenças de instanciação, a tendência fosse que a maioria dos regimes
políticos no globo se alinhasse com o modelo democrático.
14
Ver Jacques Rancière e sua obra A Partilha do Sensível (2000/2005). Nesta obra Rancière define partilha
do sensível como “[...] o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um
comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fica portanto,
ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas.” (2005, p.15) Este conceito permite analisar
a erupção das Jornadas de Junho sob outro prisma: as aparições e a forma como os corpos se dispõem
denuncia essa dinâmica de dissenso, intrínseca à democracia.

62
que querem, pela sua ação, tornar-se povo, e a partir daí ter uma nova relação
de representatividade: uma representatividade que vá de encontro às
aspirações e às promessas democráticas ou, dito por outras palavras, uma
relação representativa que se torne democrática.
11. Ora a democracia começa por garantir o direito das aparições e (auto)criação
de sujeitos, isto é, a erupção num espaço comum e a afirmação, através desta
erupção, do seu direito de existir. Os sujeitos têm direito a existir e isso
deriva, simplesmente, do facto de que eles têm o poder de existir. Diz
Espinosa na Ética IIIp6 que “cada coisa, na medida em que é em si mesma,
busca persistir no seu próprio ser” (1992, p.108, minha tradução). A
convergência entre direito e poder remete-nos a uma experiência original de
construção do espaço comum que visa a cooperação e a sobrevivência – dois
elementos fundamentais ainda não garantidos pelo Estado Brasileiro, tal
como ele está posto.15
12. Considero que do ponto de vista dos indivíduos se observa uma mudança na
forma de olhar para si e para o Estado. Na medida em que sempre existiu o
abismo entre Estado/representantes e massas/ (pseudo) povo, o Estado era
visto ou como inimigo ou como fornecedor e garantidor de direitos ou
assistência. Espera-se que o Estado faça e aja e quando ele se ausenta (ou
quando não ocupa os espaços) imediatamente é considerado inimigo. A
forma como a relação tem sido vivida entre povo, massas e Estado confirma,
ou no mínimo suporta esta leitura. O Estado surge no imaginário coletivo
como o ‘outro’ de si, como o outro que se opõe. A comunidade politica
experiencia, desde a sua origem, a fragmentação e a oposição, espelhada nas
várias contradições sociais, culturais e politicas. Falando de forma mais
explícita, a comunidade política permanece na condição anterior, refém do
‘pré’ comunidade. Ela ainda não é comunidade porque ela é constituída por
grupos, facções ou indivíduos que se separam dos outros e rejeitam os
outros como parte de si, ou melhor dizendo, como parte de um ‘todo’ (ou
‘sistema’) ao qual pertencem. Assim, do ponto de vista daqueles que
esperam ou recebem assistência, o Estado é visto como o outro que é
completamente separado de si, como se fosse uma identidade autônoma. Os
vários grupos espelham vários povos, porém povos que não convergem em
Um Povo Brasileiro. Esse “Povo Brasileiro” permanece, por um lado,
incógnito, indecifrável e por outro lado, indesejável, já que a sua
possibilidade representa a aniquilação ou superação dos outros povos, das
diferenças.

15
Isto explica parcialmente porque a pauta de segurança pública se tornou prioritária sobre todas as outras,
inclusive na sua relação com o combate à corrupção.

63
13. Identifico uma mudança na compreensão desta dinâmica. Desde 2013 a
tensão entre os grupos e facções foi exacerbando-se e tomando proporções
gigantescas; o nível de polarização política pode ser interpretado como um
sintoma disso, culminando na oposição entre uma pauta teoricamente
‘progressista’, crítica do discurso nacionalista e estatista e uma pauta
nacionalista, apelando a uma soberania nacional (mesmo que
paradoxalmente clamasse por intervenção estrangeira).16
14. Se a pauta progressista era conhecida e familiar, a nacionalista era
automaticamente associada aos períodos mais sombrios da história do brasil,
sobretudo o período da ditadura militar. Houve uma re-apropriação de
lemas, palavras e conceitos, como ‘Brasil’, ‘Nação’ e ‘Povo’ (lembremos
que o projeto de construção de identidade brasileira começa na Segunda
República apenas) e uma ressignificação dos mesmos, em simultâneo com
o movimento de ocupação de espaços. Teve-se a impressão que aqueles que
haviam permanecido escondidos ou invisíveis, começaram a aparecer,
associando-se ao processo de construção de um discurso que constituísse
efetivamente uma alternativa ao discurso e narrativas dominantes,
tradicionalmente considerados de esquerda e com ligações ao Partido dos
Trabalhadores. Convém observar como se dá essa sobreposição: a)
aparência nos espaços que afirma a existência de pessoas e grupos não
assimiláveis pela lógica dominante; b) criação de um discurso, mesmo que
inicialmente desarticulado, contraditório ou paradoxal; c) construção
progressiva de um imaginário conceitual e pragmático coletivo,
nomeadamente, o imaginário do Povo, Pátria e Nação como algo de
indissociável. Houve uma vontade clara de tomar para si e re-significar estes
conceitos, projetando-os e fazendo deles instrumentos essenciais para a
construção de um futuro comum.
15. Isso representa uma mudança considerável, acentuando o confronto e a
polarização. A partir daquele momento, passando pelo processo de
impeachment da Presidente Dilma Rousseff e culminando nas eleições
presidenciais de 2018, assiste-se à convergência de movimentos e energias de
indivíduos que reclamam o seu reconhecimento enquanto cidadãos, e a tomada
de responsabilidade pelo seu país, pela sua nação. A mudança está exatamente
na consciência de que o Brasil só consegue mudar se os brasileiros orientarem,
ativamente, essa mudança. Isto tem um impacto direto na forma como a relação
representativa passa a ser pensada e desejada.

16
Manifestações ‘Fora Dilma’ e ‘Pro-impeachment’ que pediam intervenção militar e intervenção
americana.

64
III. Movimentos, intenções e resultados: um olhar fenomenológico sobre
as origens do processo de construção de um ‘Novo’ Brasil

1. As Jornadas de Junho como ponto de ruptura

Se as Jornadas de Junho expõem a rejeição ao modo corriqueiro de fazer


e pensar política, inclusive pelo viés da representação, elas também
proporcionaram um espaço de questionamento genuíno acerca do que se espera
e de deseja da relação representativa. O convite à reflexão é, por si só, um convite
e uma prática de pluralismo, já que admite diversas abordagens aos conceitos
de representação e de democracia.
Como já tive a oportunidade de escrever em outro lugar17, interpretei as
Jornadas de Junho como um grito por mais democracia, ou por uma democracia
diferente. A lógica de inclusão formal de cidadãos, de população fragmentada em
indivíduos, cada qual com seus direitos abstratos, revelou-se insustentável e
hipócrita. A inclusão na ficção do processo de construção de Um Povo requer,
como sua condição necessária, a inclusão real nos processos e práticas de
cidadania. O indivíduo foi incluído teoricamente mas na prática permaneceu
marginal: quer por ser mais conveniente a um modelo político que se diz
democrático (inclusivo, universal) mas se limita à representação das oligarquias
quase hereditárias, quer pelas dificuldades e obstáculos concretos à
transformação do mero indivíduo, ser humano, em pessoa e cidadão.18 O cansaço
existencial produzido pela desigualdade estrutural e pelo sentimento de
injustiça levou muitos indivíduos às ruas, buscando alternativas, mesmo se
naquele momento estas ainda não se apresentassem de forma positiva. Essa
erupção gerou uma pluralidade de pautas desordenadas mas que, com o tempo,
se foram organizando. Nesta seção quero propor uma leitura de como essa
transformação e hierarquização de pautas ocorreu, a partir de três conceitos:
desejo, vontade e interesse. Com o conceito de desejo exploro a relação entre
emoção e razão na formulação de pautas, objetivos e estratégias. Com o conceito
de vontade exploro a tensão entre a prioridade da práxis, da ação concreta nas ruas
e, por outro lado, o processo de formação e sustentação de ideias e discursos. Com
o conceito de interesse exploro a relação entre individuo-grupo na revisão de
prioridades e na busca de um consenso que permita orientar a ação.19

17 Ver “Um olhar fenomenológico com intenção política – a propósito das Jornadas de Junho” em
Rodriguez, F. O Junho Brasileiro e seus desdobramentos, Florianópolis: Insular, 2016
18 Clarifico a distinção analítica entre ser humano, pessoa e cidadão em outro artigo. Por “ser humano”

refiro-me à pertença à espécie, enquanto “pessoa” é um conceito especificamente moral e “cidadão” um


conceito político.
19 Busca de consenso (mesmo que relativo) sobre o que não é mais aceitável e o que é desejável e

necessário.

65
a) Desejos

O conceito de desejo é vital para compreender e atribuir sentido à


política. Independentemente da forma como queiramos definir a natureza
humana, seja em tom mais essencialista, como Aristóteles, que entendia o
homem como zoon politikon, seja como Rousseau ou eu própria que a vê como
possibilidade e prática de liberdade, naturalmente indefinível ou redutível, a
política é um traço marcante da espécie. 20 Sem entrar na longa tradição de
debate acerca do que constitui, efetivamente, a política, parto da leitura de
inspiração arendtiana que vê na política a ação conjunta de seres humanos, com
propósitos comuns. Essa ação pode ter várias motivações e origens; ela pode ser
guiada por algo especifico, concreto, bem definido, racionalmente identificável
ou ela pode, por contraste, ser a representação de desejos, inclusive, desejos
fundamentais, i.e., que orientam a vida e luta por sobrevivência dos seres
humanos. Para avançar, precisamos definir, mesmo que provisoriamente,
desejo. Considero o desejo indissociavelmente ligado à prática da existência que,
como a palavra indica, é um estar para fora, o que requer naturalmente um
esforço (conatus) no sentido de Espinosa. Todos os seres humanos se esforçam
para perseverar. O desejo, de acordo com o autor, ‘é o apetite quando dele se
tem consciência’. (E III P9 scholium). O desejo é assim uma espécie de essência,
ele mostra o que há de peculiar e constante na nossa existência.
O desejo é, de acordo com Espinosa, um dos três afetos primários do ser
humano, sendo os outros a alegria e a tristeza, e ele tem um vinculo necessário com
o conceito de potência, no sentido de força à qual outras forças se opõem ou
contrapõem. Como mencionei anteriormente, em Espinosa há uma convergência
entre potência/ força e direito: jus sive potentia. (TP, II, 5) O desejo põe em marcha
as relações entre conceitos e experiências de ser, de ser afetado, de ter afetos, isto
é, de se relacionar de forma mais ou menos intensa com a afecção, de ter mais ou
menos alegria, mais ou menos tristeza. Tendo em vista que todos os afetos derivam
destes, é importante considerar o impacto que eles têm do ponto de vista político.
O meu objetivo será, uma vez esclarecido este ponto, estabelecer uma leitura dos
afetos brasileiros no contexto das Jornadas, de forma a perceber a transição desses
afetos e sua transmutação em pautas definidas.
Como bem aponta Montans Braga (2019), há quatro afetos que são
essenciais para a política: o medo, a esperança, a segurança e o desespero.
Esperança e segurança estão vinculadas à alegria, enquanto medo e desespero
estão vinculados à tristeza. ‘Assim’, diz Montans Braga, ‘os homens experienciam

20 Ver a minha leitura em Os dilemas de Rousseau: natureza humana, política e género em perspectiva,
Ijui: Unijui, 2017.

66
os afetos spes-metus e securitas-desperatio como variações do desejo, para mais ou
para menos, para alegria ou para tristeza, em função das afecções-imagens que têm
do futuro ou do passado e da dúvida, presente ou ausente.’ (2019, p.153)
Relembremo-nos que Hobbes também nos fala da esperança e do medo (de
morte violenta), porém a forma como Hobbes e Espinosa tratam o papel dos
afetos no âmbito da atividade política, sobretudo no que diz respeito ao
entendimento do pacto social, é distinta. Para Hobbes, a condição da superação
do medo é abdicar totalmente do seu direito natural a todas as coisas. A
transferência dos direitos naturais dos indivíduos para um poder comum
significa a transmutação do direito assim como da liberdade, que a partir de
agora será positiva. O soberano, encarnado na figura de um único ou numa
assembleia, cria o Povo via representação. A multidão, vista no seu aspeto
negativo de dispersão, multiplicidade e incoerência dos corpos individuais, é
transformada em Agente e Ator único, uno, representante. Na passagem
emblemática do Leviathan, Hobbes afirma

Uma multidão de homens é transformada em uma pessoa quando é


representada por um só homem ou pessoa, de maneira a que tal seja feito
com o consentimento de cada um dos que constituem essa multidão.
Porque é a unidade do representante, e não a unidade do representado,
que faz que a pessoa seja una. E é o representante o portador da pessoa, e
só de uma pessoa. Esta é a única maneira como é possível entender a
unidade de uma multidão. (Hobbes, 1979, p.98)

Em Espinosa os pressupostos são outros: a multidão não é inimiga da


‘ordem’, contida e disciplinada, nem algo a superar. A multidão expressa de forma
natural o modo como os humanos se movem, como se sentem, como agem. O
direito converge sempre com o poder e o soberano é soberano apenas enquanto
conseguir ter mais poder do que seus súditos reunidos. O poder, que é direito,
permanece como condição fundamental da existência humana, coincidindo com o
modo pelo qual cada individuo manifesta, persegue e atualiza seus desejos.
Que desejos se manifestam nas Jornadas? Desejos comuns mas distintos; desejos
de mais democracia compreendida como desejo por igualdade enquanto
dignidade. Desejo por dignidade significa, traduzindo em pautas, desejo de vida
(tornar o desejo direito e poder de viver e sobreviver, sem medo de morte
violenta); desejo de acesso à concretização de outros desejos, como por exemplo
o desejo a transporte público acessível e de qualidade, o que significa um desejo
de concretizar a liberdade de movimento (com mais alegria e menos tristeza,
com mais rapidez, com menos obstáculos); desejo de saúde pública, ou seja,
desejo de condições consideradas como fundamentais nas democracias
contemporâneas. Sobretudo, interpreto o desejo como recusa de continuar a

67
viver no medo e na margem; no medo da morte, e na margem da ‘política’
enquanto comum. As Jornadas representam elas mesmas uma reivindicação por
ampliação do comum, tornando a questão biológica, da vida, e a questão social,
da sobrevivência, centrais para redefinir política. Os desejos manifestam-se na
ordenação dos corpos e das vontades, culminando na construção de interesses
comuns e pautas.

b) Vontades

Podemos compreender ‘vontade’ como faculdade racional, no sentido


Kantiano; ou como ato de querer, no sentido hobbesiano. Quero trabalhar aqui com
a leitura hobbesiana, já que esta não implica a postulação de uma ordem moral mas
antes nos obriga a permanecer no nível da imanência, da lógica materialista em que
corpos se relacionam e se movem em harmonia ou confronto. Hobbes, tal como
Espinosa, considera que são as paixões que desencadeiam as ações dos corpos; as
paixões são de ordem distinta da razão, por isso elas não são nem podem ser
julgadas como algo superior ou inferior à razão. Podemos dizer em nome da
simplicidade que as paixões são constitutivas dos seres humanos, sendo elas
inclusive, como bem alerta Rousseau no Segundo Discurso, as responsáveis por
desencadear o uso e aperfeiçoamento da razão. 21 As paixões têm uma relação
direta com a liberdade, pois elas desencadeiam a ação, isto é, elas põem os corpos
em movimento. Liberdade, também num sentido hobbesiano, significa ausência de
impedimentos externos: o corpo move-se enquanto não se deparar com outro
corpo que o obrigue a parar, desacelerar ou mudar de rota. Liberdade, neste
sentido, é direito natural, isto é, é poder como em Espinosa. A vontade ‘é o último
apetite na deliberação [...]’ (HOBBES, 1998, p.38); ela é o próprio ato de querer e o
ato representa o fim, isto é, a conclusão da liberdade.
Esta conceptualização de vontade permite explorar a tensão entre a
prioridade da práxis, da ação concreta nas ruas e, por outro lado, o processo de
formação e sustentação de ideias e discursos. Por um lado, assistimos à
materialização de ações, dos movimentos de indivíduos e grupos; por outro
lado, há um nível meta, adoptado pelo observador ou interprete das ações que
projeta constelações de conceitos na realidade para lhes extrair, ou melhor, para
lhes impor um sentido: o que seria o nível da teoria. Os diferentes movimentos
das ruas culminaram em slogans reduzidos, chamativos, que viriam a ser

21 Diz Rousseau: “Não importa o que digam os moralistas, o entendimento humano deve muito às paixões,
as quais, na opinião geral, também lhe devem muito. É pela atividade delas que nossa razão se aperfeiçoa.
Só buscamos conhecer porque desejamos usufruir, e não é possível conceber por que motivo se daria o
trabalho de raciocinar quem não tivesse desejos e temores. As paixões, por sua vez, têm sua origem em
nossas necessidades e seu progresso em nossos conhecimentos, pois só se pode desejar ou temer as coisas
com as ideias que se pode fazer delas ou, então, pelo simples impulso da natureza [...]” (2014, p.57)

68
representativos de desejos a serem transformados em pautas e agendas políticas
específicas. Alguns exemplos são: “Por uma vida sem catracas”, “Se a tarifa não
baixar a cidade vai parar”, “Queremos Educação Padrão Fifa”, entre outros. O
simbolismo da escolha de palavras de ordem é revelador, pois anuncia o
despertar de um (ainda não) Povo que se prepara, consciente ou
inconscientemente, para se tornar Povo, o que implica repensar as condições de
possibilidade da relação representativa. Estes desejos constituirão a fonte para
objetivação de pautas políticas definidas, nomeadamente, a pauta da segurança
pública e da luta contra a corrupção, pautas que serão centrais na eleição
presidencial de 2018. Vontades dispersas, contraditórias, antagónicas, que
lutam pelo seu direito à vida; corpos que se encontram e partilham o mesmo
espaço apesar das diferenças ideológicas que os separam. Neste sentido,
considero que as Jornadas de Junho representam o momento de manifestação
inconformada e inconformável com o estado de coisas, denunciando o abismo
entre as vidas das massas e os (pseudo) representantes. Era preciso redefinir a
relação representativa, mas antes, era preciso que os invisíveis e marginais
passassem a existir politicamente, de forma a se representarem e poderem ser
representados. As Jornadas foram a pré-condição para a existência politica de
facto de muitas pautas e grupos. Nelas se formam embriões políticos que em
pouco tempo viriam a ter papel determinante na redefinição da relação
representativa e isso se deveu à capacidade de alguns de ler, interpretar, no caos
do que estava sendo dito e feito, os gritos das populações.

c) Interesses

As Jornadas deixaram um vácuo no corpo político brasileiro, um vácuo


que teria que ser ocupado com rapidez. Que vácuo é esse? O vácuo da
representação dos invisíveis e marginais que até então haviam sido estratégica
e cirurgicamente manipulados para se adequar ao sistema. Este vácuo brotou de
um fenómeno e prática específica: o uso das redes sociais. A descoberta das
redes coincide com a descoberta de que ‘outros’ existem, sentem, pensam como
‘eu’. Rapidamente se chegou à conclusão que também no Brasil, além dos
exemplos da Primavera Árabe ou do movimento Occupy, as redes poderiam ser
usadas para mobilização em massa.
As Jornadas são o primeiro exemplo da relação entre uso de redes sociais,
mobilização social e intenção política. O uso das redes permitiu organizar
encontros de grupos e massas em torno de pautas específicas, algumas pontuais,
outras estruturais. Observou-se uma organização espacial de corpos, ao mesmo
tempo que as pautas proliferavam e as raízes ou identidades ideológicas se

69
(des)integravam. André Singer fala de um ‘arco-íris ideológico’22, no sentido em
que era possível ver no mesmo espaço físico bandeiras ideológicas radicalmente
distintas.
A experiência das Jornadas revelou aos que participaram o poder de viver,
de se manifestar, de articular, de reivindicar. A experiência das Jornadas revelou
a coincidência entre poder e direito. O direito nasce não do ‘dado’ mas do ‘feito’,
do ‘que se faz’. A política e os políticos tradicionais, presos nas suas respectivas
‘bolhas’, dissociadas da realidade da maioria, foi incapaz de conter o movimento,
e a descoberta do poder no movimento, na liberdade. Isso explica, pelo menos em
parte, os desdobramentos das Jornadas em outras manifestações e movimentos
de rua, mobilizando dezenas, talvez centenas de milhares de pessoas nos anos
subsequentes. Essas mobilizações foram desencadeadas por tentativas de
identificação de interesses coletivos, comuns a todos ou a vários, culminando na
definição de pautas especificas, a saber, a pauta contra a corrupção e a
associação feita entre corrupção e governo petista. Lembremos que a Operação
Lava-Jato havia começado em 2014, representando uma ameaça ao status quo e
ao modo tradicional de fazer política e seu ‘jeitinho brasileiro’. As mobilizações
mostraram que o Povo estava ali para ser ouvido e visto.
Trabalho com a hipótese de que é neste contexto de mobilizações e busca
de pautas mais definidas, com potencial de permitir a convergência entre
indivíduos e grupos de origens distintas, que se assiste à prática de (re)definição
de um Povo. Um ‘Povo’ imaginário, a ficção de um Povo que se quer materializar
e cuja materialização se dá exatamente pela escolha de pautas, slogans, ideias,
valores e projetos. Para que o processo ficasse concluído, permitindo assim
pensar na redefinição da relação representativa no contexto brasileiro, seria
preciso encontrar, construir, inventar, o seu representante e com ele, um novo
modo de fazer e pensar a política. É neste contexto que deve ser analisado a
emergência de Jair Bolsonaro como candidato presidencial e como líder de um
projeto para um ‘Novo Brasil’.

IV. Jair Bolsonaro e o projeto de um ‘Novo Brasil’: do Povo à criação do


líder e representante

O Povo é criação de si mesmo; ninguém faz um Povo; o Povo imagina-se,


desenha-se, redefine-se, atualiza-se, expande ou comprime, inclui ou exclui, de
acordo com aqueles que o movem. Como mostrei num outro artigo, a categoria
de ‘Povo’ é um designador vazio ‘já que designa ninguém e representa um

22Ver Singer, André, “Brasil, junho de 2013: Classes e Ideologias cruzadas” em Novos Estudos, CEBRAP,
São Paulo, n.97, 2013, pp.23-40

70
espaço vazio que convida à sua constante (re)ocupação, [o que] sugere que ele
pode ter simultaneamente efeitos paralisadores ou empoderadores, nos
indivíduos e grupos.’ (COSTA,2018, pp.21-2) Considero que a partir de 2013,
mas sobretudo a partir de 2015, com a contestação escancarada à legitimidade
do governo de Dilma Rousseff apesar de ter ganho com a maioria dos votos, se
observa um ambiente de contestação do significado de democracia, legitimidade
política e claro, representação política democrática. Não entrarei aqui no debate
acerca do processo de Impeachment de Dilma Rousseff; porém, fica claro que ao
tornar vazio o lugar do poder presidencial, mesmo que ocupado fisicamente por
Michel Temer, surge um convite para ocupação desse espaço em outros termos,
sob outras condições. Era preciso decifrar essas mobilizações, esse novo povo
que aparentemente estava aí.23
Jair Messias Bolsonaro, deputado federal desde 1990, sem lealdade ou
vínculo partidário pré-estabelecido, compreendeu a falha dentro do sistema
representativo e dirigiu-se a vários grupos marginais, sem representatividade
efetiva no Congresso Nacional ou no Senado. Nas eleições presidenciais de 2018
Bolsonaro aparecia como o underdog, aquele candidato que não teria condições
de ganhar, por ser extremista na forma como manifesta as suas opiniões,
considerado por muitos como homofóbico, racista, misógino, entre outros. Para
o propósito deste artigo gostaria de concentrar-me no lema sobre o qual a sua
campanha presidencial se construiu, a saber, o versículo 32 do capítulo 8 do
Evangelho de João: “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”, e perceber
de que forma essas palavras representam desafios atraentes para a maioria dos
brasileiros, colocando em marcha uma nova visão de mundo e do Brasil.

1. Verdade: entre a moral como costumes e o projeto de uma democracia


liberal

Bolsonaro afirmou que foi no pós-eleição de 2014 que decidiu preparar-


se para uma eventual campanha presidencial, tomando como seu lema o
versículo 32 do capítulo 8 do Evangelho de João: “conhecereis a verdade e a
verdade vos libertará”. A partir desta inspiração, Bolsonaro percorreu o país de
lés a lés, procurando conhecer a verdade dos vários estados, regiões e
municípios. Ele escutou, observou, viu. No seu primeiro pronunciamento como
Presidente eleito, Bolsonaro disse “Faço de vocês minhas testemunhas de que

23Para aqueles que consideram que nada passou de uma manipulação de grupos de interesses, o mesmo
argumento pode ser feito em relação aos partidos no poder. Além disso, esse mesmo tipo de argumentação
supõe um tipo de paternalismo pouco harmonioso com o espírito democrático já que considera aqueles
que se ‘deixam manipular’ como ‘burros, estúpidos, ignorantes ou não-aptos’ para a vida política – o que
pode ser lido como espírito totalitário ou no mínimo, de ampla tendência autoritária.

71
esse governo será um defensor da Constituição, da democracia e da liberdade.
Isso é uma promessa, não de um partido, não é a palavra vã de um homem, é um
juramento a Deus”. Poder-se-ia perguntar se é válido trazer Deus para a política,
já que a ordem democrática se sustenta no princípio da secularidade e tolerância
religiosa. Porém, Bolsonaro é um reflexo da própria população – embora com
dezenas de credos e orientações, a maioria dos brasileiros (86,8%) se identifica
com a narrativa religiosa cristã, e vê no cristianismo uma fonte de moral.24 O
Brasil é a maior nação católica do mundo, apesar da queda acentuada desde
1970 (91,8%) até 2010 (64,6%) A ascensão dos evangélicos também é
compreensível dado que muitas igrejas ocuparam espaços periféricos onde a
Igreja católica não atuava. A mudança na distribuição espacial das pessoas
mostra que ‘não há espaço vazio’. Se o vazio surge ele é imediatamente ocupado.
A mensagem de Deus foi adaptada ao público receptor. Nesta mensagem a
defesa da família enquanto instituição é fundamental – a Assembleia de Deus,
por exemplo, defende a preservação da família pregando valores morais mais
rígidos. Por outro lado, a Igreja está presente na política, através de alianças com
os partidos. Não adianta dizer ‘é errado’ ou ‘a democracia exige isenção
religiosa’, pois no Brasil isso é prática e já Maquiavel e Rousseau nos alertaram
para o facto de que não adianta ter boas leis se os costumes não estiverem
alinhados. Devemos partir dos costumes, de um retrato fiel da população.
Parece-me que foi isso que Bolsonaro conseguiu primeiro captar e depois
traduzir: um compromisso com valores cristãos (como base de uma ética e
moral), a defesa da instituição da família e a importância de resgatar a
‘verdade’.25
Embora Bolsonaro seja apenas um entre muitos que pensam a política
pelo viés religioso, foi ele que sistematizou e traduziu numa afirmação clara e
simples a necessidade de trazer a verdade para a política. Como entender essa
verdade? A verdade de Deus? Não necessariamente. Por um lado, podemos
construir uma leitura deste resgate da verdade como o outro lado da moeda,
mais precisamente, da luta contra a corrupção e contra a mentira. A verdade
anda de mãos dadas com a transparência, com a imediatez (no sentido de não-
mediação) dos fatos não deturpados. Por outro lado, a verdade é essencial para
a política (democrática) – a democracia exige a verdade como sua condição de
possibilidade. Com efeito, se resgatarmos a leitura que Foucault faz da parresía
e de sua relação íntima com a atividade crítica e a prática democrática,

24 De acordo com dados do IBGE de 2017, 86,8% dos brasileiros são cristãos, de entre os quais 64,6% são
católicos e 22,2% evangélicos. Ver <https://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/o-ibge-e-a-religiao-cristaos-
sao-86-8-do-brasil-catolicos-caem-para-64-6-evangelicos-ja-sao-22-2/>. Acesso a 30 de outubro de 2018.
25 Que papel cumpre a ‘verdade’ aqui? Depreende-se do conceito de verdade uma realidade ontológica ou

apenas um valor performativo? Para o propósito deste artigo tratarei a ‘verdade’ não como remetendo a
uma essência, mas como cumprindo uma função, neste caso, uma função especificamente política.

72
percebemos que o sucesso da democracia depende do equilíbrio entre, por um
lado, a isegoria e, por outro lado, aquele que diz-a-verdade, que tem uma fala-
franca. A parresía, ato de liberdade por excelência, ‘[...] rompe com o construído
e desconstrói o dado, expõe e cria um acontecimento, ela expõe o seu outro, ela
denuncia a injustiça.’ (COSTA, 2017, p.374) Essa parresía não é acessível a todos
ou a qualquer um; é preciso ter coragem, é preciso correr o risco, inclusive o
risco de vida.26
O discurso de Bolsonaro deputado, representante eleito do povo, e
Bolsonaro, candidato presidencial, não mudou; porém, enquanto candidato à
Presidência torna-se claro a articulação entre prioridades políticas, de gestão e
em última análise, de ética. A mensagem de Bolsonaro pode ser interpretada
como um convite a fazer um pacto com a verdade, isto é, com um novo modelo
de gestão e administração pública, por um lado, e um novo modelo de gestão
privada (construção da subjetividade a partir da adopção de valores morais).27
“Só a verdade vos libertará”, afirma Bolsonaro, citando a passagem
bíblica. 28 Hannah Arendt mostrou de forma clara a distinção analítica entre
liberdade e libertação. Parece-me que no caso de Bolsonaro é possível
reconhecer a dinâmica entre os dois conceitos: a libertação, nomeadamente
daquilo que nos afasta da verdade, e com isso de uma ‘sociedade bem ordenada’
e até de uma ‘boa vida’; a liberdade, entendida como condição da democracia
liberal. Com efeito, do ponto de vista humano democrático, do compromisso com
a construção de um mundo comum, a liberdade pode ser definida de várias
maneiras: como ato, como resistência, como presença e aparência aos outros
num espaço público (Arendt), mas também como liberdade física de movimento
(Hobbes), de ir e vir, como poder (Espinosa), como liberdade de decidir e
escolher de forma autónoma, entre outros. A liberdade é com certeza um dos

26 Lembremos que a 7 de setembro de 2018, em plena campanha eleitoral, Bolsonaro foi vítima de um
atentado à sua vida.
27 Poderíamos fazer um paralelo com Foucault e seu conceito de governamentalidade, isto é, Bolsonaro

claramente se propõe a reordenar o campo de probabilidade e do próprio exercício do poder. Trata-se de


‘conduzir condutas’ de outra forma, ‘estruturar o eventual campo de ação dos outros’ sob outro prisma.
Afirma Foucault no texto “O sujeito e o poder” que “[o] exercício do poder consiste em “conduzir
condutas” e em ordenar a probabilidade. O poder, no fundo, é menos da ordem do afrontamento entre dois
adversários, ou do vínculo de um com relação ao outro, do que da ordem do “governo”. Devemos deixar
para este termo a significação bastante ampla que tinha no século XVI. Ele não se referia apenas às
estruturas políticas e à gestão dos Estados; mas designava a maneira de dirigir a conduta dos indivíduos
ou dos grupos: governo das crianças, das almas, das comunidades, das famílias, dos doentes. Ele não
recobria apenas formas instituídas e legitimas de sujeição política ou económica; mas modos de ação mais
ou menos refletidos e calculados, porem todos destinados a agir sobre as possibilidades de ação dos outros
indivíduos. Governar, neste sentido, é estruturar o eventual campo de ação dos outros.” (FOUCAULT,
1995, p. 244, meu itálico).
28 Esta referência tornou-se leitmotiv do próprio governo Bolsonaro, já constituído. Em particular, vale

observar como a questão da verdade orienta o discurso do Ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni.
Para detalhes ver a sua entrevista disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=iRVHDz9jS0Y>.
Acesso a 4 de abril de 2019.

73
conceitos mais complexos e densos, pois reflete um a priori nosso, que é
histórico mas que permite alguma amplitude.
Até à data em que este artigo é escrito, primeiro semestre de 2019,
percebe-se que Bolsonaro promove uma visão de Estado liberal que contraria
qualquer pretensão fascista e autoritária.29 Poderíamos dizer que a crítica que
Bolsonaro faz à democracia liberal visa identificar os meios e condições que
permitam regatar o ideal republicano liberal. É curioso notar que o impulso
brasileiro se diferencia dos impulsos americano, francês ou espanhol. Enquanto
nestes últimos casos a crítica à democracia liberal parece conduzir ao
estrangulamento do liberalismo como ideologia política, o que se torna visível
com o aumento da narrativa e políticas públicas que procuram ‘fechar’ os
Estados e limitar as liberdades individuais em nome da ‘segurança’, no Brasil a
democracia liberal anuncia a sua possibilidade, já que ainda não foi realizada.
Assim, é correto afirmar que Bolsonaro representa a ruptura política no
Brasil, mas ‘ruptura’ deve ser entendido no seguinte sentido: Bolsonaro é o
marco que diferencia os modos como antes se fazia e pensava política e como se
propõe a fazer e pensar política a partir de agora. De um modelo de ‘toma lá dá
cá’, de barganha exclusiva de Brasília e do alto escalão político brasileiro,
chegamos a um modelo em que o Povo ganha novamente existência política
porque tem quem o ouça e veja. Este Povo não é mais abstrato, sem corpo e sem
voz. Ele está nas redes sociais, engajado, partilhando, criando conteúdos,
manifestando seus pontos de vista. Ele está nas ruas, é visto e ouvido. E é este
povo, nas ruas e nas redes que cria Bolsonaro enquanto representante, primeiro
como candidato, depois como presidente.

2. Tornando o Povo real – o uso das redes sociais e do WhatsApp e seu


impacto na redefinição da representação política democrática

Se há um traço que distingue a forma como campanhas eleitorais,


nomeadamente, a campanha de Bolsonaro, é o uso das redes sociais e do
WhatsApp. O próprio Jair Bolsonaro afirma que Carlos Bolsonaro, seu filho, foi
o grande responsável pela gestão de comunicação via redes. Isso sugere que as

29Do ponto de vista político, Bolsonaro coloca a liberdade no centro da sua concepção de
democracia: a democracia liberal, fruto da história que podemos retraçar a Locke e aos ideais dos
pais fundadores americanos. Dentro desta ‘democracia liberal’ podemos ter algumas variações no
entendimento de ‘liberdade’: liberdade física – daí a pauta central da segurança pública, sem a qual
não é possível constituir uma ‘sociedade bem ordenada’; liberdade económica e sua relação com a
propriedade privada (lembremo-nos de Locke que considerava a propriedade como uma
manifestação da liberdade individual); liberdade de pensamento, associação e expressão (como
garantia do pluralismo democrático); liberdade de crenças religiosas (apesar da adopção de uma
grelha cristã para ver e conceber o mundo).

74
redes têm um papel muito mais determinante na (re)organização política do que
anteriormente, inclusive a própria eleição de 2014 onde o uso de WhatsApp
ainda não era generalizado, embora já tivesse sido utilizado pelos candidatos
presidenciais da altura, nomeadamente Dilma Rousseff e Aécio Neves. 30 Com
efeito, o WhatsApp veio redefinir as formas como as pessoas se relacionam e
comunicam entre si, com vantagens sobre outras redes sociais como Facebook,
Twitter ou Instagram.31 O seu sucesso deriva do seu baixíssimo custo (1 dólar
para baixar o aplicativo) e sua facilidade de utilização, podendo enviar e receber
mensagens em diversos formatos sem depender de conexão de internet. No
Brasil o WhatsApp representou uma revolução na comunicação e todas as
revoluções têm suas vantagens e desvantagens, inclusive do ponto de vista
político. Pretendo nesta secção oferecer o meu olhar sobre o impacto do
WhatsApp na forma de criar conteúdos, receber e transmitir informações e
através destes, repensar a prática de associação entre indivíduos (que inclusive
podem ser desconhecidos entre si), mas também, repensar a forma como se
identificam e constroem interesses comuns e, a partir destes, se realinham os
desejos e vontades dos indivíduos. Num segundo momento, desenvolvo o
argumento de que estes realinhamentos podem ser interpretados como
estratégias concretas de constituição de grupos/facções que se querem tornar
povo, mas que para isso precisam criar um representante que efetivamente
represente seus interesses. Mostro que Jair Bolsonaro, candidato e presidente, é
criação do Povo que vê nele sua obra, seu representante e seu servidor público. Esta
criação foi possível porque Bolsonaro não só compreendeu como quis ser o agente
de mudança, começando pela mudança na forma como a relação representativa
havia sido vivida e teorizada no Brasil. A partir de Bolsonaro gera-se uma nova
dinâmica entre líderes políticos, deputados, senadores, e seus representados, e isto
se faz a partir das redes sociais – com divulgação de mensagens quotidianas e
vídeos a partir do Youtube. Passa-se de uma representação pensada como
autorização, para uma representação assente na reciprocidade e resposta, que
passa a tratar os cidadãos não só como ouvintes e audiência passiva, mas também
como agentes com voz e direito de se fazerem ouvir.

30Disponível em <https://techinbrazil.com.br/tudo-sobre-whatsapp-no-brasil>. Acesso a 20 abr. 2019.


Com efeito, o WhatsApp cresceu no Brasil à medida que o uso de smartphones se expandiu; é a partir de
2014 que se dá um crescimento contínuo no uso do aplicativo, colocando-o como aplicativo de smartphone
mais popular no país.
31 Disponível em <https://www.mtitecnologia.com.br/como-o-whatsapp-mudou-a-comunicacao-no-
brasil-e-no-mundo-e-porque-prejudicou-diretamente-as-operadoras-de-telefonia/>. Acesso a 20 abr. 2019.

75
2.1 Caracterizando o potencial democrático das tecnologias

O que seria um ‘potencial democrático das tecnologias’? Uma sugestão de


que as tecnologias têm o potencial de democratizar acesso a informações e,
através deste, ampliar o conhecimento para que os juízos e deliberações
individuais fossem mais coerentes, responsáveis e ‘bem informadas’. Parto de
uma leitura de que a tecnologia não é boa nem má em si mesma; o valor que
atribuamos ao juízo depende do uso que dela se faz; o uso depende do fim ou
finalidade. Assim, qualquer tecnologia pode atualizar um potencial democrático
– no sentido de contribuir para um esclarecimento coletivo e para a própria
formação (ou reformação contínua) da coletividade, do comum; mas também
pode atualizar um potencial anti-democrático ou até totalitário – no sentido de
jogar com as aparências, reduzir o horizonte conceitual e imaginativo e reforçar
tendências ou crenças (não necessariamente verdadeiras) que culminam na
adopção irrefletida de uma narrativa e/ou sistematização de práticas.
Desde as eleições de 2014 observamos a ampliação do uso das redes
sociais e WhatsApp para divulgar conteúdos. Esta ampliação gera uma ruptura
na forma como a ‘notícia’ ou ‘informação’ é percebida e concebida – não é por
acaso que o uso massivo de WhatsApp está diretamente vinculado ao aumento
de ‘boatos’ e que estes ganham o novo rótulo de ‘Fake News’. Não entrarei aqui
na análise deste conceito e seus impactos (nomeadamente a relação entre fake
News e ‘pós-verdade’), porém alerto para a existência desta relação e do impacto
que ela tem na percepção e construção da política. O fato é que a mídia
tradicional deixa de conseguir acompanhar o ritmo dessas ‘notícias’ ou
conteúdos. Os candidatos, líderes de movimentos, pessoas públicas, entre
outros, compreendem o poder literal que o uso dessas tecnologias lhes traz – um
poder de aglutinar, de identificar tendências, de maximizar tendências, de
reorientar corpos, de criar massas e até movimentos.32
No contexto brasileiro, mais do que noutros países, o WhatsApp tem uma
importância significativa e um potencial de uso político muito grande. De acordo
com uma pesquisa conduzida pelo Tactical Tech, o WhatsApp tem um apelo
maior no hemisfério sul do que no hemisfério norte, já que consegue penetrar
nas zonas rurais onde o acesso a internet se dá essencialmente através de
smartphones. 33 De acordo com Brendan Tobin, responsável pela empresa de
software de campanha política Ecanvasser “na América do Sul e na América
Central [...] algumas campanhas acontecem apenas nos grupos de WhatsApp.”.

32 Não farei aqui a análise detalhada desses usos. Sublinho o fato de que este foi um elemento
fundamental para criar e reorientar corpos, movimentos e com isso, novos agentes (pessoas
artificiais) movidas pelo desejo de redefinir – reocupando – o povo.
33 Disponível em <https://ourdataourselves.tacticaltech.org/posts/whatsapp/>. Acesso a 15 maio 2019.

76
(2019, p.2) Nesse mesmo artigo, os autores descrevem porque o WhatsApp se
tornou um instrumento tão poderoso para as campanhas políticas:

• Permite a criação de grupos de até 256 pessoas, gerando amplas


comunidades de contatos próximos;
• As mensagens chegam diretamente ao telefone do usuário, de contatos
conhecidos, e por isso sentidos como ‘pessoais’;
• A imediatez da entrega da mensagem pode criar um sentimento de urgência
acerca de tópicos particulares;
• Pode ser usado para penetrar em comunidades rurais que não têm acesso a
outras plataformas;
• Pode ser usado para dirigir-se a pequenos grupos com mensagens
específicas;
• As mensagens muitas vezes não são contextualizadas ou verificáveis através
de links ou novas histórias;
• Pode permitir que grupos políticos mobilizem seus apoiadores;
• Pode permitir que chamadas de ação imediatas ou diretas se difundam de
modo viral;
• É barato/gratuito;
• A comunicação é encriptada.34

As campanhas usam-no para:

• Espalhar informação legitima acerca das atividades do partido e outros


temas;
• Criar uma aparente “ligação direta” entre políticos e eleitores;
• Dar forma a diálogos políticos;
• Organizar e mobilizar pessoas em torno de questões comuns;
• Espalhar desinformação ou informação difamatória;
• Ser parte de estratégias profissionais de marketing politico.35

É evidente que esta plataforma será usada para chegar a usuários,


consumidores e eleitores; aí entra o marketing político no seu esplendor e suas
estratégias de nivelamento entre participantes/receptores, formação e
reordenação de identidades coletivas, etc. A notícia pode ser transmitida ou
literalmente fabricada, e seus ‘criadores’ sabem que a maioria dos indivíduos
não fará um controle acerca do estatuto da mensagem que recebe, isto é, não irá

34
Disponível em <https://ourdataourselves.tacticaltech.org/posts/whatsapp/>. Acesso a 15 maio 2019.
35 Disponível em <https://ourdataourselves.tacticaltech.org/posts/whatsapp/>. Acesso a 15 maio 2019.

77
confirmar se o conteúdo é verdadeiro ou falso – uns, devido à falta de tempo, ou
falta de vontade; outros, devido ao custo de acesso à internet quando acessado
por outras plataformas. Como dizem os autores

[isso] também limita as hipóteses de verificação da informação acerca dos


factos que chega a essas plataformas por outros meios. Por exemplo, se a
mensagem politica lhes chega através do WhatsApp com um link para
mais informação, eles podem não ter acesso à internet para verificar os
conteúdos da mensagem […] (2019)

No Brasil, 120 milhões de pessoas usam o WhatsApp como principal fonte


de informação. De acordo com André Torreta, o CEO do Ponte Estratégia,
parceiro de Cambridge Analytica, numa entrevista ainda concedida em 2017, o
WhatsApp é a rede com mais influência política e efeito direto nas eleições (ao
contrario por exemplo dos EUA, onde predomina o Facebook e o Twitter).36
Reconhecer o impacto que as tecnologias e redes sociais têm na
democracia, considerada em sentido amplo, gera um conjunto de questões para
as quais as teorias tradicionais não estão preparadas para responder ou são
literalmente incapazes de o fazer por terem sido concebidas num outro a priori
histórico. Porém, é possível continuar fazendo, como o que me proponho aqui,
uma análise mais fenomonológica, contrapondo-a a um horizonte normativo
‘clássico’ – mesmo que incluamos neste ‘clássico’ uma leitura construtivista da
representação política. Assim, considero que mesmo perante os novos desafios
que podem, em última análise, obrigar a uma revisão da legitimidade
democrática, é possível identificar nestas novas constelações sociais e políticas
um movimento de reconfiguração do ‘povo’ e seu ‘representante’.

2.2 Redefinindo a relação representativa democrática

A eleição de 2018 trouxe uma série de novas categorias que ainda não
encontram espaço nas teorias existentes – sejam teorias políticas, teorias
especificamente da democracia, ou até teorias sociais ou éticas. Na medida em
que tecnologias foram usadas para ‘alavancar candidaturas de vários partidos
aos mais diversos cargos’ 37 é pertinente questionar se existe, de fato,
democracia e se ainda podemos usar o termo; porém, mesmo que em última

36 Dayrell. M. and Bagatini, O. "Entrevista: ‘É possível eleger deputados quase 100% pelas redes’, diz
marqueteiro". Interview featured at Estadão Newspaper available at: <http://infograficos.estadao.
com.br/focas/politico-em-construcao/materia/entrevista-e-possivel-eleger-deputados-quase-100-pelas-re
des-diz-marqueteiro>. Acesso em 22 maio 2019.
37 Ver Jucá, Beatriz, “Seis meses depois, pesquisadores (e o TSE) ainda tentam entender o spam político

no WhatsAPP” em <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/03/politica/1556904799_446652.html>.
Acesso em 7 maio 2019.

78
análise a resposta seja negativa – a partir de uma possível constatação de que
muito do que consideramos como ‘atividade política’ é fruto de manipulação de
massa via tecnologias – não me parece útil abdicar nem do conceito – de
democracia – nem do projeto democrático como um todo. Isto significa que
certas categorias – nomeadamente a categoria de representação política
democrática – permanece vital para aqueles que continuam tendo um
compromisso teórico com a democracia. Além disso, embora exista uma parcela,
mesmo que significativa, de manipulação, alavancamento de conteúdos e
reorientação de páginas e sites distorcendo fatos ou, pior, criando ‘fatos
alternativos’ (o que em si é uma contradição lógica, é uma categoria
absolutamente impensável, absurda), ou, em última análise, robôs que ocupam
espaços de ‘pessoas’, não podemos simplesmente reduzir o resultado das
eleições a isso, muito menos o momento pós-eleição e de governo efetivamente
dito.38 O spam político não anula o fato observável de movimentações populares
que se orientam de acordo com finalidades específicas – a finalidade de
reinventar ou criar o ‘povo’ e com ele o ‘representante’.
Contra todas as expectativas e contra todas as narrativas veiculadas pela
mídia tradicional, que afirmava a impossibilidade quase lógica de Bolsonaro
vencer, e apesar de ter sido uma campanha baseada em calúnias, difamação e
associações extremistas (exemplo da associação entre Bolsonaro, fascismo,
nazismo), além de uma proliferação de estratégias que visavam apenas
multiplicar o medo, Bolsonaro venceu a eleição com quase 58 milhões de votos.
E não foram robôs.
Muitos denunciam a atitude de Bolsonaro como ‘populista’, tendência
identificável no discurso que afirma que ele próprio é um veículo do povo.
Porém, se retornarmos à ideia de que a representação política se torna
democrática quando os representantes ouvem e agem de acordo com as
demandas da população, isto é, quando interiorizam o seu papel de servidor
público, me parece que o adjetivo populista deverá ser compreendido na sua
acepção positiva (isto é, mais democrática) e não negativa (como expressão de
hipotética manipulação). A partir do momento em que Bolsonaro afirma a sua
existência como Presidente da República, um novo ‘Povo’ brasileiro começa a
existir.39

38 Vale lembrar que quando houve denúncias contra a campanha de Bolsonaro de que esses conteúdos e
comentários nas redes sociais eram difundidos por robots, nas manifestações de rua as pessoas brincavam
com isso e diziam “eu sou um robô”.
39 Uma objeção imediata a este juízo consiste em dizer que Bolsonaro, enquanto presidente, governa

apenas para os seus eleitores e não para o ‘povo’, entendido em sentido amplo. A esta objeção respondo
que todos os representantes eleitos, colocam como prioridade as pautas por eles propostas durante a
campanha. Afinal, os eleitores votaram nessas pautas. O representante eleito Presidente da República

79
Parece-se que o conceito de Representante (Presidente) do Povo (e seu
desdobramento na Nação) não remete à concepção hobbesiana de autorização
mas se abre à permanente busca de resposta da população e reforço da
legitimidade democrática em suas decisões. Dito por outras palavras, o
representante só tem poder efetivo enquanto o povo o apoiar – isto tornou-se
muito claro desde o dia 1 de janeiro de 2019 até ao momento em que este artigo
é escrito. Lembremos que, caso aceitemos a descrição avançada por Sérgio
Abranches, citada no início, a organização política brasileira torna o Presidente
da República num mero símbolo e síndico de interesses privatizados pelos
deputados e senadores. Historicamente, o Presidente é sempre refém de um
sistema que não consegue controlar, sobre o qual não tem poder – isso se deve
ao fato, e essa é minha hipótese de trabalho, de que até hoje o ‘Povo’ permaneceu
excluído (por não existir) do cenário. A partir do momento em que o povo passa
a existir materialmente, isto é, mobilizando-se, acompanhando as ações dos
representantes eleitos e fiscalizando, denunciando condutas, o jogo de forças é
progressivamente reequilibrado.
Assim, e para que fique claro, procuro oferecer aqui um tratamento de
Bolsonaro, considerado não apenas como pessoa física ou pessoa artificial
(Presidente) mas sobretudo como fenómeno, evento político, que, na
reconfiguração inevitável que traz dentro da relação representativa amplia as
suas fronteiras (apesar das críticas inevitáveis decorrentes da própria natureza
polémica, dissensual da democracia) e ao fazê-lo, permite a reordenação do Povo
e a realização (mesmo que no sentido de aproximação) da democracia. Para
concluir, queria redefinir os conceitos de representante, representado e
representação política, e por fim, representação política democrática no
contexto atual brasileiro.

1. Ainda observamos uma dicotomia quer na conceituação quer na implicação


prática de ‘Representante’. Por um lado, encontramos a figura do
‘representante’, pensado como autorizado pelo representado a agir em seu
nome. Trata-se de um sentido de autorização onde, embora a reciprocidade
possa existir ela não é necessária, isto é, passado o momento do voto, muitos
representados se ‘esquecem’ ou se ausentam da relação representativa. Este

também foi eleito pelo compromisso com um conjunto de pautas. Essas pautas refletem o entendimento
do bem comum para o país, não apenas para o conjunto de eleitores. Além disso, o nível de saúde de uma
democracia se mede pela tolerância a propostas que, divergindo na forma como estabelecem suas
prioridades de ação, se dão dentro do horizonte democrático que é necessariamente plural. É neste sentido
que a reocupação do Povo deve ser entendida. Nunca há ‘Um Povo’, eterno e imutável. O Povo é
permanentemente reinventado, porém, a sua permanência é garantida não pelos representantes eleitos mas
sim pelas Instituições que medeiam os processos de competição para ocupação dos espaços, físicos e
simbólicos.

80
fenómeno era recorrente na política brasileira - bastava perguntar
aleatoriamente na rua em quem os cidadãos tinham votado que a maioria
não se lembrava, nem do voto para deputado federal, senador, nem sequer
do voto para prefeito e vereador do seu município. O fato do representado
se retirar da relação amplia o poder do representante, já que este não pauta
a sua conduta e propostas apenas em resposta ao seu eleitorado, mas
também inclui interesses próprios, ao ponto de que estes dominem todo o
processo. A função da representação neste sentido privatiza a política no
sentido literal em que elimina a possibilidade do comum e se desenrola no
horizonte dos interesses particulares. Num cenário semelhante, é
compreensível que a corrupção se expanda já que não há expectativa de
controle por parte da população/povo das ações dos representantes, a não
ser em casos pontuais e excepcionais.
2. Num segundo sentido encontramos a figura do ‘representante’, pensado
como delegação de poder com exigências. O representante assume a função
a partir de um horizonte condicional, i.e., não absoluto. Embora o mandato
seja de quatro anos, neste cenário a relação representativa estende-se para lá
do momento do voto e a reciprocidade, mesmo que ainda assimétrica (na
medida em que há um desequilíbrio de forças entre representante e
representado), ganha espaço. Assim, os representados acompanham as
ações e votações dos representantes, exigindo prestação de contas e
justificativas de conduta e decisão.
3. Haveria um terceiro sentido, em que a figura do ‘representante’ é, ou tenta
ser, o mais fiel possível aos desejos, vontades e interesses de seus eleitores.
Este sentido é mais robusto e exigente, pois requer que a relação
representativa se torne mais direta, imanente e comunicativa. É uma relação
que exige continuidade temporal e espacial e que promete superar, dentro
dos limites exequíveis, a distancia imposta pela verticalidade institucional.
Assim, esta é a relação representativa mais democrática, na medida em que
ela se atualiza constantemente à luz das vozes e manifestações concretas dos
representados.
4. Resumidamente, diríamos que embora nos três casos exista relação
representativa, há níveis distintos de quão democrática essa relação é.
Convém esclarecer que o que torna a relação representativa democrática é
o nível de comunicação efetiva entre representante e representados,
traduzida em ações concretas pelo primeiro. Assim, a primeira conceituação
é a menos democrática, enquanto a última é a mais democrática.
5. Uma objeção natural é considerar que na relação representativa é impossível
superar a assimetria da distância institucional. Embora concorde por ser um
fato, considero que as redes sociais cumprem um papel importante na

81
redefinição desta relação. Com efeito, as mobilizações populares via grupos
de WhatsApp (já que este é o meio principal de divulgação e influência
política) podem ser analisadas como indicadores de pressão, resistência ou
apoio popular.
6. Devemos agora olhar sob a perspectiva dos representados (indivíduos) e do
representado (povo). Parece-me que esta distinção entre singular e plural é
relevante. Quando analisamos a perspectiva dos representados, pensamos na
relação representativa que têm com seus representantes mais diretos,
aqueles que receberem seus votos e por isso têm uma obrigação imediata de
se comprometer com as pautas defendidas em campanha eleitoral. Para que
a relação seja democrática, é preciso que os representados (cidadãos) se
mobilizem continuamente e alimentem a comunicação, quer institucional,
quer infra-institucional, via redes sociais e esfera pública em latu sensu.
Porém, ela é democrática no sentido em que se abre para a reciprocidade –
os representados se sentem ouvidos, como se agissem por meio de seus
representantes (deputados, senadores, vereadores) – no entanto, ela dá-se
ainda no horizonte da facção política, da delimitação de setores da
população. Quando consideramos a relação do ponto de vista do Povo
(singular), o seu representante é o Presidente. Quando é democrática esta
relação representativa? Quando as ações do Presidente refletem o
compromisso com um interesse nacional, isto é, um interesse que seja de
todos. O Presidente, neste sentido, deve estar acima dos partidos e da lógica
partidária, mas abaixo dos partidos, na medida em que deve cultivar a
proximidade com os vários segmentos da população. O Representante, na
figura do Presidente, encarna a vontade geral rousseauniana. Com todos os
problemas que este conceito implique, a vontade geral permite compreender
o fenómeno brasileiro atual: um diálogo infra-institucional, por um lado e
uma projeção no futuro de uma Nação – Brasil, e de um Povo, agora agente,
sujeito do seu próprio destino.

Referências

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brasileira, 2003

82
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Urbinati, N. Representative Democracy: principles & genealogy. Chicago: University of Chi-
cago Press, 2006.

83
OS TRIBUNAIS TAMBÉM REPRESENTAM.
“LEGITIMIDADE PELA CONSTITUIÇÃO”,
REPRESENTAÇÃO E OS TRIBUNAIS

ALESSANDRO FERRARA 1

“A tirania da maioria agora é geralmente


incluída entre os males contra os quais a
sociedade precisa estar atenta”, John Stuart
Mill, On Liberty, 1874.

Atualmente, os regimes democráticos enfrentam uma pressão renovada -


perceptível em todo o mundo e freqüentemente descrita como um ressurgimento
populista - proveniente de legislaturas, bem como de administrações, gabinetes,
coalizões governamentais que prometem (e fingem) representar direta e
imediatamente orientações majoritárias. Mesmo quando formalmente incontestadas,
as instituições democráticas operam muitas vezes em um clima alterado de
impaciência popular com freios e contrapesos processuais e com as funções
mediadoras exercidas por partidos políticos e outros órgãos intermediários.
Neste contexto, a tarefa de repensar a representação e o papel da revisão
judicial no processo democrático adquire uma urgência renovada. Este artigo aborda
a questão sob uma perspectiva neo-rawlsiana, visando a elaboração do paradigma do
“liberalismo político” e as implicações do “princípio liberal da legitimação”.
Um dos aspectos paradoxais da situação atual, observável em vários países, é
que a representação eleitoral está sob escrutínio crítico e tem sido criticada por estar
sob a influência oligárquica dos poucos doadores que influenciam as eleições
(Cornell), por serem apanhados no fogo cruzado da representação promissória e
antecipatória, mas ao mesmo tempo as eleições se tornaram um fetiche de

1Professor de Filosofia Política, Universidade de Roma, Tor Vergata, Itália. Tradução de Marta Nunes
da Costa (Professora de Ética e Filosofia Política, Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Brasil)

85
representação. Séculos parecem ter passado desde o livro de Larbi Sadiki, com o subtítulo
Elections Without Democracy, 2 sobre a Primavera Árabe. Agora, o surgimento de
democracias populistas, anti-liberais, plebiscitarias e de oligarquias eletivas de vários
tipos - todas baseadas na redução do “povo” ao eleitorado3 - parece ter resultado na ampla
aceitação do dogma de que apenas autoridades eleitas, estejam elas exercendo funções
legislativas ou executivas, podem representar o soberano popular.
Consequentemente, observamos um ataque duplo à revisão judicial e a função
dos tribunais constitucionais como intérpretes supremos da constituição.
Governantes populistas e autoritários, por um lado, proponentes progressistas e bem-
intencionados do chamado constitucionalismo político convergem em representar os
tribunais constitucionais ou os supremos tribunais como porteiros elitistas que de
alguma forma diminuem ou desviam uma realização desejável da “vontade do povo”
democrática, como expresso em eleições justas.

1. Tribunais constitucionais sob ataque e objeção contra-majoritária

Em vários países, os tribunais constitucionais foram recentemente alvo de


presidentes e primeiros-ministros na tentativa de reduzir sua autonomia em relação
ao executivo. Na Polônia, o presidente Duda e seu partido de Lei e Justiça
conseguiram nomear nove dos nove juízes do tribunal constitucional, depois de
destituir três juízes liberais antes do término de seu mandato. A Constituição de 1997
é assim reinterpretada sob uma luz mais em consonância com o executivo. Na
Hungria, as nomeações para o Tribunal Constitucional pela PM Orban alteraram o
seu equilíbrio interno e a nova lei aprovada em dezembro de 2018 criou um sistema
paralelo de tribunais administrativos sob a supervisão do governo. Na Albânia, o
procedimento prolongado de verificação para a confirmação de juízes resultou em
uma incapacidade prolongada do tribunal constitucional para funcionar. Na Turquia,
Erdogan criticou publicamente o Tribunal Constitucional por sua decisão sobre o
caso Dundar e que desencadeou uma campanha de difamação contra o tribunal e seu
chefe, Zuhtu Arslan, na mídia, mais diretamente influenciado pelo governo.4
No terreno teórico, a literatura sobre a oclusão da autoria democrática por
parte do judiciário é imensa e amplamente coextensiva com a tradição do
“constitucionalismo político”, a maioria dos defensores dos quais discordam da

2
L. Sadiki, Rethinking Arab Democratization: Elections Without Democracy (Oxford: Oxford Univer-
sity Press, 2009).
3
Defendi que a redução do “Povo” ao eleitorado constitui o denominador comum de todas as formas de
populismo. Ver A. Ferrara “Can Political Liberalism Help Us Rescue “the people” from Populism?”, in
Philosophy and Social Criticism, 2018, Vol. 44 (3), pp. 463-477.
4
Ver Orhan Kemal Cengiz, “Turkish Constitutional Court Caught Red-Handed”, in Al-Monitor, disponí-
vel em <https://www.al-monitor.com/pulse/originals/2019/04/turkey-turkish-constitutional-court-
caught-red- handed.html>. Acesso em 4.6.2019.

86
revisão judicial amplamente compreendida e contrapropõem formas diferentes de
realocar essa função no âmbito das assembleias legislativas.5
Poderosos ecos de tal diagnóstico - que revive a famosa "objeção contra-
majoritária" - chegaram à Suprema Corte dos Estados Unidos por ocasião do caso
Obergefell de 2015 sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Os juízes que
apresentaram uma opinião divergente fizeram essa afirmação. O chefe de justiça
Roberts, acompanhado por Justices Scalia e Thomas, dissidentes, argumentou que
“cinco advogados fecharam o debate [democrático] e promulgaram sua própria visão
de casamento como uma questão de direito constitucional. Roubar esta questão do
povo vai, para muitos, lançar uma nuvem sobre o casamento entre pessoas do mesmo
sexo, fazendo uma dramática mudança social que é muito mais difícil de aceitar”.6
Ao chamar a opinião da Corte de “um ato de vontade, não um julgamento legal”, e
um ato que abruptamente “invalida as leis de casamento de mais da metade dos
Estados”, os juízes dissidentes argumentam que a maioria do Tribunal se “apoderou
de uma questão que a Constituição deixa para o povo, num momento em que as
pessoas estão envolvidas em um debate vibrante sobre essa questão. ”Além disso, a
Corte“ responde a essa questão não baseada em princípios neutros de direito
constitucional, mas na própria compreensão do que liberdade é e deve se tornar '”.7
Jeremy Waldron, como os juízes dissidentes de Obergefell, aponta para a
diferença entre derrubar leis de segregação ou anti-miscigenação, em Brown e em
Loving, e derrubar leis que limitam o casamento a casais heterossexuais. Em sua
opinião, embora a eliminação da segregação não tenha mudado o sentido do senso
comum de educação e o casamento inter-racial não tenha mudado o sentido do senso
comum do casamento, o casamento entre pessoas do mesmo sexo muda a natureza
do casamento, como se sabe desde tempos imemoriais.8 No entanto, Waldron não
contesta a substância do julgamento que levou à opinião. Se o Supremo Tribunal
justificadamente revogou os estatutos que infringiam princípios constitucionais,
como Como aconteceu em Loving quando invalidou as leis na Virgínia que
proibiriam o casamento interracial, por que a Corte não estaria justificada em
derrubar estatutos que restringem o acesso ao casamento com base na preferência
sexual? Neste caso, Waldron continua, o cuidado deveria ter sido exercido pelo
Tribunal, a fim de não avançar "muito longe antes de mudar a opinião pública".9 Em
relação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, Waldron sustenta que as opiniões

5
Ver R. Bellamy, Political Constitutionalism. A Republican Defense of the Constitutionality of Democ-
racy (Cambridge: Cambridge University Press, 2007); J. Waldron, Law and Disagreement, (Oxford: Ox-
ford University Press, 1999) e The Dignity of Legislation (Cambridge: Cambridge University Press,
1999).
6
Obergefell v. Hodges, 576 U.S. (2015), Roberts, C.J., dissenting, 2.
7
Ibid., 3.
8
Ibid., 7-8, 16; ver também J. Waldron, “What a Dissenting Opinion Should Have Said in Obergefell v.
Hodges”, <http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2844811>, 17-18.
9
Waldron, “What a Dissenting Opinion Should Have Said in Obergefell v. Hodges”, cit, 9.

87
“são muito profundamente sentidas - de fato, no caso de muitas pessoas, associadas
a visões religiosas profundamente sentidas. O que é necessário para a modificação
dessas opiniões é tempo - acima de tudo, tempo suficiente para níveis variados de
experiência pessoal e convicção ideológica para mudar e degelar atitudes endurecidas
”.10 A cautela é exigida não apenas em consideração à possibilidade de se chegar a“
a resposta errada ”, mas também“ porque, mesmo que o Tribunal consiga o resultado
certo, há um custo para a autodeterminação democrática no processo envolvido ”.11
Uma visão semelhante, porém mais geral, é articulada por Bellamy, quando
ele escreve:

Claro, os tribunais afirmam oferecer um processo justo e imparcial, onde


todos são tratados como iguais. Mas quando se trata de tomar decisões
sobre nossa vida coletiva, elas carecem da imparcialidade e
imparcialidade intrínseca do processo democrático - o de tratar as
opiniões de cada pessoa igualmente. Pois a revisão constitucional do
Judiciário parece ter como premissa uma afirmação injustificada de que
os que estão no banco são mais iguais do que os demais. Dada a sua
liberdade de interpretar a lei de maneiras diversas e inconsistentes, de
acordo com as posições morais e legais que detêm, sem mais autoridade
do que qualquer outro intérprete legal, além do simples fato de estarem
em posição de impor sua opinião, seu governo não pode ser diferente de
arbitrário e, portanto, dominante (Bellamy 2007, 166).

Bellamy e Waldron convergem na tese da usurpação judicial de uma


prerrogativa que só pode pertencer ao legislativo, em representação do povo
soberano. Em termos mais gerais, Bellamy afirma que

Os direitos fazem parte das “circunstâncias da política” em três formas


relacionadas. Primeiro, divergências sobre direitos informam debates
políticos tanto quanto conflitos de interesse. Portanto, não se pode dizer
que um consenso sobre direitos esteja de algum modo fora da política. Em
segundo lugar, esses debates políticos normais se estendem à própria
constituição do político. Portanto, não podemos ver um quadro
constitucional de direitos acordado como algo que oferece a base e os
limites para o processo político ordinário. Terceiro, as visões de direitos
das pessoas são muitas vezes incompatíveis e incomensuráveis e,
portanto, não podem ser simplesmente combinadas em uma única
posição abrangente que supere a própria necessidade de política
”(Bellamy 2007, 25-26).

De uma perspectiva similar, Waldron, depois de ilustrar a importante mudança


introduzida por Obergefell, acrescenta que “esta é uma mudança para as pessoas

10
Ibid., 9.
11
Ibid., 9.

88
fazerem, não para os seus juízes” . 12 Nesta passagem ele está simplesmente
assumindo que a “vontade do povo” - um termo que foi chamado de mito13, mas
continua sendo um pressuposto inevitável de todo discurso democrático - é
representado principalmente pela legislação e não também pelo intérprete judicial da
Constituição.
Às vezes, essa visão é expressa pelos próprios tribunais. Assim foi quando o
Conselho Constitucional francês argumentou que a constitucionalidade do referendo
de 1962 através do qual o Presidente da França foi eleito por voto popular, contestado
como inconstitucional, por De Gaulle não ter seguido o procedimento formal para
convocar um referendo, foi assegurado pelo fato de o tribunal não ter podido rever
medidas “adotadas pelo povo após um referendo, que constitui a expressão direta da
soberania nacional”.14 Subjacente ao pronunciamento do Conseil estava a noção de
que um referendo tem uma natureza de auto-validação, independentemente das
condições sob as quais ele foi convocado.15 Dois aspectos dessa doutrina parecem
duvidosos.
Em primeiro lugar, o cerne do populismo soberanista liberal dos anos 2010
gira precisamente na fusão do “povo” e do atual eleitorado. “O Povo” se estende por
gerações, às vezes séculos, e os atuais cidadãos votantes não “possuem” a
Constituição, embora, claro, eles tenham o direito de deixar sua marca nela. Há uma
diferença entre “possuir” a Constituição pro-tempore, com a prerrogativa de dobrá-
la em qualquer direção, e ter o direito de inscrever nela a sensibilidade de uma
maneira que não desfigura seu espírito e a preserva para as futuras gerações de
cidadãos. Reconhecer esta diferença exige um ato de julgamento, sobre a
constitucionalidade das alterações, que o Conselho Constitucional abdicou. Em
segundo lugar, se imaginarmos cada geração de eleitores para dobrar a Constituição
de acordo com sua sensibilidade dominante, é difícil ver em que sentido a
Constituição manteria qualquer relevância trans-temporal.
Parafraseando Aristóteles, se a vontade dos eleitores reformulasse a
Constituição constantemente e sem filtros reflexivos, não haveria Constituição
alguma, apenas a lei ordinária.16 Pois o objetivo de ter uma constituição - estabelecer
os fundamentos da vida política comunitária, identificar certos direitos chamados
direitos e assegurar que a legislação futura, até que a constituição seja legitimamente

12
Ibid., 18.
13
Albert Weale, The Will of the People: A Modern Myth (Cambridge: Polity Press, 2018).
14
B. Ackerman, Revolutionary Constitutions. Charismatic Leadership and the Rule of Law (Cambridge,
MA: Harvard University Press, 2019), 192.
15
O Conseil Constitutionnel adotou de forma consistente a doutrina de que quando um referendo consti-
tucional acontece, aí o Povo francês exerce soberania e assim a sua vontade não pode ser afastada por um
poder constituído tal como o judiciário. Para uma reconstrução adequada desta doutrina ver R. Albert, M.
Nakashidze e T. Olcay, The Formalist Resistance to Unconstitutional Constitutional Amendments, Has-
tings L. J. 70 (2019), 22.
16
Aristotle, The Politics, traduzido por T. A. Sinclair (1992), 1292a31, 251.

89
alterada, ocorra dentro dessas diretrizes - seria prejudicado se a constituição se
adaptasse a qualquer nova vontade legislativa ordinária modificada.

2. Argumentos contra-contra-majoritários

Nesta seção, contra a crítica da revisão judicial apresentada acima, será


delineada uma defesa “contra-contra-majoritária” de revisão judicial. Essa defesa
será levada a cabo desafiando criticamente três alegações: a) que apenas os
parlamentos representam a vontade do povo; b) que o mais alto intérprete judicial da
constituição deve interpretá-lo à luz da compreensão atual do povo sobre a
constituição; c) que a revisão judicial estabelece uma supremacia antidemocrática do
judiciário.

a) Representando o Povo, representando o eleitorado

Os tribunais constitucionais desempenham uma função representacional, bem


como uma função contra-majoritária.17 A função contra-majoritária precisa de menos
ilustração. Qualquer jogo estruturado que mereça o nome precisa de regras de um
tipo constitutivo. Os constitucionalistas políticos reconhecem prontamente que,
mesmo assumindo uma visão simples da política como regra majoritária não
mediada, ainda assim precisaríamos saber como estabelecer um procedimento de
votação vinculante, regras apropriadas de estabelecimento de pautas e regras para
convocar uma votação. Quando movimentos simbólicos dentro de um jogo violam
regras constitutivas, o jogo é abalado: não se pode mais dizer que está em andamento.
Se você mover o castelo na diagonal, não estará mais jogando xadrez. Se você tocar
a bola intencionalmente com as mãos, não estará mais jogando futebol. Estas regras
constitutivas não estão à disposição dos jogadores enquanto jogam partidas do jogo.
Sua modificação pode ocorrer, é claro, mas sob condições de suspensão dos
respectivos jogos - quando ninguém está jogando, e as regras estão sendo discutidas.
A função de preservar a integridade das regras e interpretá-las quando
necessário é, então, intrinsecamente independente da regra da maioria como exercida
no público dos jogadores em geral e, portanto, contra-majoritária, apesar do órgão
que supervisiona e interpreta as regras - um grupo de árbitros para um tribunal
constitucional – poder decidir por maioria. Na política, as regras do jogo democrático
são especificadas em uma constituição - seja escrita, como na maioria dos países do
mundo, não escrita como no Reino Unido, ou “quase-escrita”, como no caso das
disposições da Tratado de Lisboa da União Europeia.

17
Numa linha de argumentação semelhante ver L. M. Barroso, “Reason Without Vote: The Representative
and Majoritarian Function of Constitutional Courts” (2016), in T. Bustamante, B.G. Fernandes (eds.), De-
mocratizing Constitutional Law (Dordrecht: Springer, 2016), 71-90.

90
Para que o processo democrático ocorra é então crucial que essas regras sejam
interpretadas e aplicadas, porque elas regulam as atividades legislativas e
administrativas das instituições estatais, mas também porque elas são a referência a
partir da qual a legitimidade dessas atividades e as autoridades as executam é
avaliada. O “consentimento dos governados”, um ingrediente crucial persistente da
legitimidade de toda a ordem democrática, não pode ser esperado que abençoe - como
John Rawls convincentemente argumentou - todos os detalhes dos atos legislativos,
administrativos e judiciais que ocorrem numa sociedade complexa atravessada por
um pluralismo razoável. Como eloquentemente afirmou com seu “princípio liberal
de legitimidade”, apenas “fundamentos constitucionais” podem aspirar ao consenso
por parte de cidadãos livres e iguais com base em razões de princípio, e a partir desses
fundamentos tomados como “racionais e razoáveis”, a legitimidade pode, então,
desdobrar-se em todos os exercícios da autoridade legislativa, administrativa e
judicial que se conformam com eles. Essa visão radicalmente inovadora de
legitimidade para as sociedades complexas do século XXI foi apropriadamente
apelidada de “legitimação por constituição” por Frank Michelman.
Para que o jogo democrático assim concebido possa operar, é necessário que
a cadeia de intérpretes das regras - intérpretes colocados em todos os níveis de
autoridade - não seja infinita, circular ou opaca. É necessário postular que deve haver
um intérprete último do significado das disposições constitucionais, encarregado de
descodificar e atualizar o significado de fórmulas como “proteção igual das leis”,
“devido processo (due process”, “liberdade de expressão ”,“ castigo cruel e incomum”.
A função de interpretar as regras - e especialmente a constituição qua regra de
elaboração de regras - é, evidentemente, anti-majoritária e não poderia ser de outro
modo, se quisermos entender os arranjos institucionais como estado de direito
constitucional. A experiência histórica da República de Weimar, uma política
democrática votando reformas suicidas, deixa pouca dúvida a esse respeito. 18 Se a
Constituição fosse interpretada de acordo com a opinião predominante da maioria dos
cidadãos, ela não poderia salvaguardar o corpo político contra a tirania da maioria.
No entanto, os tribunais também exercem uma função representativa. Como
Barroso assinala, no Brasil, na Itália e em muitos outros países, muitas vezes “juízes
e tribunais se tornaram mais representativos de aspirações e demandas sociais do que
instituições políticas tradicionais… vivemos em uma época em que a sociedade se
relaciona mais com seus juízes do que com os seus políticos ” (Barroso, 2016, 78).
Isso é verdade em muitas áreas, incluindo proteção contra discriminação de gênero,
assédio sexual, bioética, legislação trabalhista, proteção ao consumidor, proteção da
privacidade e explicação sobre o fato de que as condições atuais de trabalho, a
crescente complexidade da sociedade e a fragmentação dos blocos tradicionais

18
Fn sobreWeimar

91
sociopolíticos dificultaram a mobilização de movimentos e sujeitos sociais. As ações
judiciais, as ações coletivas e, em geral, os recursos judiciais exigem apenas uma
assinatura e podem ter grande impacto sobre as instituições e empresas privadas.
No entanto, precisamos perguntar: quem é o povo que as instituições de uma
democracia representativa deve representar? Parlamentos e presidentes, nas
variedades parlamentares e presidencialistas da democracia constitucional,
representam a maioria do eleitorado, mas o eleitorado é um poder constituído, não
constituinte.19 É o destinatário de uma pluralidade de atores políticos concorrentes,
como partidos, candidatos, movimentos. Mesmo um populista contemporâneo,
embora não convencido desta afirmação, terá de admitir que o povo co-extensivo ao
eleitorado é apenas uma seção transversal do “Povo” enquanto autor da constituição
e possuidor da soberania. Os italianos, brasileiros, espanhóis, alemães e outros que
vivem atualmente não esgotam a totalidade de todos os italianos, brasileiros,
espanhóis, alemães que viveram e viverão dentro do espaço temporal de seus regimes
democráticos, todos eles com uma começo mais ou menos recente e com uma
perspectiva aberta de persistência. A constituição, ou o conjunto de regras
constitutivas do jogo democrático, não pode, então, estar à disposição inteira e única
de qualquer geração única de cidadãos: é um conjunto de regras que cimenta, que é
compartilhado e que determina como únicos os cidadãos italianos, brasileiros,
alemães, durante todo o passado, presente e futuro de gerações livres e iguais. Essa
compreensão política liberal do constitucionalismo não considera ilegítimo que cada
geração tente deixar sua marca na constituição assim entendida, mas considera
ilegítimo que a maioria de uma geração de cidadãos desfigure a Constituição ao ponto
de dispersar o legado passado, esvaziando-o de qualquer significado, e evitando que
gerações futuras de cidadãos ainda não nascidos se identifiquem com a narrativa
constitucional.
Neste sentido, o mais alto intérprete da Constituição - um Tribunal Supremo
ou um Tribunal Constitucional - “representa” este Povo que putativamente autorizou
a Constituição, bem como suas modificações subsequentes através do procedimento
de emenda. Seu mandato é para interpretar as regras que esse Povo pretendia
estabelecer e os direitos que (como Habermas diria) 20 os cidadãos, de maneira
ficcional mas defensiva, pretendiam conceder reciprocamente um ao outro,
salvaguardando esses direitos de quaisquer possíveis tentativas, presentes ou futuras,
de serem reduzidos. Pois esses direitos - devidamente interpretados - são os direitos
que todos os cidadãos livres e iguais da comunidade, em todos os momentos em que
nascem e vivem, e simplesmente em virtude de serem cidadãos dessa comunidade,
“o direito de ter (direitos)” (Arendt).

19
Ver J. Rawls, Political Liberalism, 231.
20
J. Habermas, “Postscript” (1994) Between Facts and Norms. Contributions to a Discourse Theory of
Law and Democracy (1992), (Cambridge, MA: MIT Press, 1996), 453.

92
Ao desempenhar este papel, é evidente que o Povo representado pelo mais
alto intérprete judicial da constituição pode entrar em tensão com o eleitorado,
entendido como sua própria incorporação presente. Os pronunciamentos do mais alto
tribunal podem restringir a liberdade do eleitorado, em nome dos direitos
estabelecidos na Constituição, a fim de preservar a liberdade dos futuros eleitorados
e do “Povo” como uma entidade entre gerações. A ideia de um alegado “custo para a
autodeterminação democrática” deve ser rejeitada: Se aceitarmos a alegação
interpretativa de que é inconstitucional para os estatutos, por exemplo, estabelecer a
segregação racial ou limitar o que costumava ser chamado de casamento inter-racial,
ou proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo, então, ao reverter esses
estatutos, a Corte atuou como um ramo separado do poder em favor do “Povo”, não
menos do que as legislaturas estaduais. A Corte não é uma expressão do Povo menor
do que instituições legislativas: essa é a essência de uma visão político-liberal da
separação de poderes constituídos.
Pode acontecer de que você, enquanto indivíduo, movimento ou partido
político, dispute legitimamente a conclusão alcançada por um tribunal
constitucional? Você é então submetido à dominação de um pequeno número de
juízes vestidos com togas, os “cinco advogados” referidos pelos dissidentes da
Obergefell? Não precisamos derivar tal conclusão se duas condições forem
satisfeitas: a) o tribunal constitucional permaneceu dentro dos limites de interpretar
a constituição em oposição a transformá-la indevidamente; b) meios praticamente
viáveis estão disponíveis para corrigir a interpretação do tribunal, por meio de
emendas a constituição. Deixei-me desenvolver essas duas condições.

b) A linha vermelha que separa interpretação e transformação

Waldron, Bellamy, Tushnet e todos aqueles que lamentam a oclusão da autoria


democrática nas mãos do judiciário têm razão, não tanto quando se referem à
magnitude da mudança, como se existisse um limiar de inovação acima do qual
apenas as legislaturas estão autorizadas a decidir, mas quando eles implicitamente
levantam o desafio conceitual de dizer e distinguir a interpretação da constituição de
sua transformação. Mesmo os defensores da propriedade democrática da Obergefell,
entre os quais eu me incluo, prontamente reconhecem que os argumentos de anti-
discriminação, que sob a Décima Quarta Emenda levaram a derrubar os estatutos que
proíbem o casamento entre pessoas do mesmo sexo, não poderiam justificar a
revogação dos estatutos que proíbem a poligamia. Como podemos descrever as
diferentes condições legais de sentimentos igualmente fortes e subjetivos de exclusão
do casamento vivenciados por um casal gay e por uma comunidade polígama? A
diferença não pode depender da prontidão do grande público em aceitar a prática em
questão, para não perdermos o caráter constitucional da Constituição.

93
A chave para responder a essa pergunta está em evitar a busca equivocada de
um padrão ou critério conceitual. Talvez a diferença entre “interpretar” e
“transformar” não possa ser captada por um conceito, assim como a diferença entre
uma obra de arte que mal merece o nome e uma que exibe excelência e abre novos
caminhos pode ser capturada conceitualmente. Apesar da impossibilidade de fixá-lo
com um conceito, padrão ou critério, essa diferença certamente existe e exerce uma
força normativa. Ela fundamenta o que nossos julgamentos devem reconhecer, em
vez de refletir a convergência empírica de nossos julgamentos. Assim como a obra
de arte possui a qualidade da exemplaridade - para evitar o termo kantiano de “belo”,
também interno a um paradigma estético específico - e ela produz um sentido de
“promoção da vida” naqueles que entram em contato com ela,21 também assim, a
interpretação que “anima” o texto constitucional e o coloca em contato criativo com
nosso contexto produz uma sensação de promover e enriquecer nossa vida política
em uma sociedade estável e justa de cidadãos livres e iguais, uma sensação de “fazer
o máximo” ( para tomar emprestada a afortunada frase de Dworkin) da nossa tradição
constitucional viva. 22 Julgamentos que falham em “excelência interpretativa” e
sobrepõem objetivos indevidamente transformadores à estrutura constitucional da
política atingem um tom errado, um tom perturbador em vez de “enriquecedor para
a vida”. A solidez do julgamento reflexivo não pode ser demonstrada; é por isso que
em muitos campos não é vinculativo. Na crítica de cinema, você segue seu crítico
favorito e seus julgamentos não são vinculativos para ninguém. Isto não se aplica ao
caso da adjudicação constitucional, que liga todos, começando pelos legisladores que
representam o eleitorado. É por isso que, em vez de sonhar ingenuamente em
conceituar o limite entre interpretação e transformação, uma ordem constitucional
deve procurar sobretudo deixar aberta a possibilidade de correção, quando o sujeito
institucional de julgamento acerca da constituição erra.
Assim, se e somente se Waldron e outros estiverem corretos ao acusar a Corte
de ter “transformado” indevidamente a Constituição, sua alegação de que a Corte,
desse modo, impossibilitou o exercício da soberania democrática pelo povo, tem
substância. Da mesma forma, a alegação de Waldron sobre uma decisão inoportuna
- "muito longe antes de mudar a opinião pública" - pode agora ser reconsiderada como
apontando para um elemento que faltava no julgamento da Corte, a saber, o senso do
timing correto para proferir o julgamento. Alexander Bickel é notoriamente atribuído
à linha de que a Corte deveria ser “100% baseada em princípios 20% do tempo”, 23 o
que significa que “pode derrubar a legislação se for inconsistente com o princípio.
Pode validar ... legislação consistente com o princípio. Ou pode não fazer nenhum

21
I. Kant, Critique of the Power of Judgment (1790). Edição de P. Guyer (Cambridge: Cambridge Univer-
sity Press, 2000), § 23, p. 128.
22
R. Dworkin, Law's Empire (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1986), pp. 228-232.
23
Gerald Gunther, The Subtle Vices of the Passive Virtues, 64 Colum. L. Rev. 1, 3 (1964).

94
dos dois. Pode não fazer nenhum dos dois, e aí reside o segredo de sua capacidade de
se manter na tensão entre princípio e conveniência ”.24
Assim, apesar da coerência interpretativa requerida quando uma questão
contestada é selecionada para decisão, o risco de erro (e consequentemente de oclusão
democrática) está em ação, mas também no julgamento sobre quando selecionar uma
questão para adjudicação. Para dar um exemplo, o Procurador Geral John Mitchell
supostamente apoiou a renovação da Lei dos Direitos de Voto, em 1970, com a linha
de argumentação de que “direito de voto não é uma questão regional”, 25 significando
que não poderia ser deixada para a decisão das maiorias locais. A uniformidade
nacional foi imposta pelo “status constitucional” da questão, não menos do que a
uniformidade nacional na proibição da escravidão foi entendida como não negociável
pelo presidente Lincoln um século antes. A Suprema Corte estava certa em atribuir
ao casamento entre pessoas do mesmo sexo o estatuto de uma questão (juntamente
com votação, segregação, casamento inter-racial) em que “variação regional” não é
admissível, quando até hoje a pena capital é uma questão sobre a qual ninguém gasta
muito tempo imaginando por que a lei não deve variar de acordo com as maiorias
locais? Recorrendo novamente a uma visão de normatividade exemplar baseada no
julgamento26, inclino-me a ver todas as tentativas de compreender a linha que divide
a interpretação e a transformação constitucionais, ou o momento adequado e
inadequado para julgar questões contestadas (segregação, casamento inter-racial,
casamento entre pessoas do mesmo sexo ou pena capital), em termos de alguns
critérios a priori que são problemáticos. Na terminologia de Kant, esses juízos seriam
chamados puramente reflexivos e não determinantes. Podemos refinar ainda mais
esse binário compreendendo-os como “juízos reflexivos orientados”.27 Em suma, os
juízos “puramente reflexivos” são aqueles em que “apenas o particular é dado” e nós
procuramos um princípio que nos permita atribuir um sentido, sem poder derivá-lo
da experiência ou da análise conceitual, no caso do julgamento constitucional - como
em muitas outras práticas humanas - a busca é “orientada” na medida em que é guiada
por princípios jurídicos gerais, fundamentos constitucionais, precedentes, entre
outros fatores. Esses fatores guiam nosso julgamento sem “ditar” ou determinar seu
resultado final. Reconhecemos a excelência no julgamento - em áreas amplas como

24
A. Bickel, The Least Dangerous Branch. The Supreme Court at the Bar of Politics (1962), 2a edição,
New Haven and London, Yale University Press, 1986, p. 69. Ver também M. Tushnet, “The Jurisprudence
of Constitutional Regimes: Alexander Bickel and Cass Sunstein”, em K. D. Ward and C. Castillo (eds.),
The Judiciary and American Democracy. Alexander Bickel, the Countermajoritarian Difficulty, and Con-
temporary Constitutional Theory, Albany, NY, SUNY Press, 2005, p. 26.
25
Citado em B. Ackerman, The Civil Rights Revolution, (Cambridge, MA: Harvard University Press,
2014), 166.
26
Ver A. Ferrara, The Force of the Example. Explorations in the Paradigm of Judgment (New York: Co-
lumbia University Press, 2008), 16-61.
27
Sobre “juízos reflexivos orientados”, ver A. Ferrara, Justice and Judgment. The Rise and the Prospect
of the Judgment Model in Contemporary Political Philosophy (London: Sage, 1999), 193-194.

95
liderança política, historiografia, ensino e orientação, crítica literária e artística e, é
claro, adjudicação constitucional - sem conseguir reificar essas fronteiras.
Se o julgamento pronunciando-se sobre se a fronteira que separa a
interpretação da transformação foi ou não ultrapassada não for capaz de conduzir a
um veredicto final suscetível de demonstração, como no caso de um silogismo, então,
apesar de um tribunal constitucional sempre alegar que o seu pronunciamento está
devidamente dentro os limites da interpretação, seu pronunciamento adjudicativo,
muitas vezes, será objeto de contestação. Então, o melhor remédio para minimizar o
risco de oclusão judicial da vontade democrática é preservar a abertura e a viabilidade
de estratégias para o povo corrigir o pronunciamento do intérprete supremo de sua
vontade constitucional. Isso leva à segunda condição.

c) Corrigindo o intérprete mais alto. O autor e o interprete da constituição


em conversação.

Os casos de adjudicação constitucional mostraram-se insuficientes, seja em


termos substantivos (por exemplo, a enunciação de novos direitos que o “Povo” não
vê como fundamentada em sua vontade) ou no timing arbitrário de eliminar a
“variação local” - por que é que o casamento entre pessoas do mesmo sexo, foi
julgado pela Suprema Corte como não sendo uma questão de “variação regional”, e
a pena capital ainda é? - só podem ser remediados e corrigidos através de um
exercício da vontade do povo. Isso pode acontecer nas formas canonicamente
estabelecidas pela constituição ou através de formas não convencionais. Mas se o
equilíbrio original - por um lado, o mais alto intérprete a quem é confiada a tarefa de
dizer “o que a constituição diz”, por outro lado, o Povo qua autor da escrita
constitucional pode corrigir essa interpretação alterando a Constituição - foi alterado
por circunstâncias históricas, que fizeram com que o autor incorresse em dificuldades
ao fazer ouvir sua voz, um novo equilíbrio deve ser encontrado. Para permanecer com
o caso dos Estados Unidos, se o procedimento formal do Artigo Cinco se tornar
impraticável, que possíveis substitutos poderiam evitar a oclusão de autoria?
No caso dos Estados Unidos, durante os séculos XX e XXI o mecanismo
formal para emendar a constituição tornou-se proibitivamente difícil para o “Povo”
operar, como documentado por Ackerman em seu livro The Civil Rights Revolution.28
Essa alteração do quadro constitucional produz uma nova situação na qual a mera
falta de um procedimento de emenda, em resposta a um pronunciamento da Suprema
Corte, é menos indicativa da aceitação do que costumava ser até o New Deal. Tal
observação não invalida minha resposta, mas certamente levanta um sério problema:
a saber, dada a acessibilidade cada vez mais impermeável do procedimento de

28
Ver B. Ackerman, The Civil Rights Revolution, cit., 40-41.

96
emenda formal, que possíveis substitutos poderiam no futuro evitar a oclusão da
autoria por causa de uma supremacia judicial temporária? O equilíbrio foi alterado,
quer por processos históricos (por exemplo, o fato de que a Presidência passou a ter
um papel constitucional proeminente, a aceleração do tempo, etc.) que não podem
ser abordados aqui, quer o poder do mais alto intérprete judicial da Constituição que
foi conseqüentemente aprimorado, aguardando por um reequilíbrio. Essa discussão
está totalmente em aberto e pode ser a próxima na agenda em andamento para
repensar o paradigma do liberalismo político.
A formulação paradigmática de Rawls para evitar a supremacia judicial, em
Liberalismo Político - “a constituição não é o que a Corte diz ser. Em vez disso, é o
que as pessoas, agindo constitucionalmente através dos outros ramos, eventualmente
permitem que a Corte diga que é ”29 - precisa ser expandido de uma maneira que
possa permitir diferentes gradativos na escala de casos ideais até casos não-ideais.
Uma tentativa sugestão é a de entender que a relação entre o Povo e a Corte é como
a de um autor - o autor de um texto normativo chamado “a Constituição” - e seu
intérprete que está envolvido em uma conversa acerca do significado e das
implicações desse texto. Quando confrontado com interpretações, o autor a) pode
tacitamente aceitar a interpretação oferecida, b) pode disputá-la, levantando
reivindicações legais em áreas vizinhas que abordam a questão podendo por isso
conduzir a uma versão qualificada, protegida ou de alguma forma modificada da
interpretação anterior ou c) pode rejeitar completamente a interpretação e modificar,
qua autor, a constituição de tal maneira que a sentença rejeitada se torne impossível
ou pelo menos seja esvaziada pela nova versão da escrita constitucional.
O único problema é que "o Povo" é uma construção necessária da mente,
disputada entre os partidos rivais, e os elementos incorporados realmente existentes
são apenas os juízes e o eleitorado. Assim, a noção de que o autor da constituição
tacitamente aceita a interpretação oferecida pelo intérprete significa, na verdade, que
nenhum segmento da arena política se dirige ao eleitorado ou se mobiliza na esfera
pública Habermasiana para se opor ao pronunciamento.
A segunda possibilidade é mais complicada: dizer que o autor da constituição
contesta aspectos ou implicações da interpretação prestada pela Corte, na verdade
significa que segmentos da cidadania atualmente viva se mobilizam como sujeitos
legais, individualmente ou com o impulso de grupos, a fim de trazer novos casos
constitucionais para a atenção do intérprete - como por exemplo quando em uma
conversa novos aspectos de um tópico são trazidos à consideração. Concretamente,
processos judiciais são iniciados e, na esfera pública chama-se cada vez mais a
atenção para os aspectos relevantes contestados do pronunciamento da Corte - quer
por profissionais, políticos representando segmentos do eleitorado, quer por grupos

29
Rawls, Political Liberalism, 237.

97
de defesa, atores da mídia ou cidadãos interessados. No decorrer dessa conversa legal,
em opiniões ou pronunciamentos subseqüentes, a Corte, enquanto intérprete, pode ou
não prestar atenção às insinuações de que, igualmente em nome do “Povo”, esses
atores estão tentando pressioná-lo, guiando a conversa de volta ao primeiro caso,
como descrito acima, ou ao terceiro caso, ainda a ser descrito.
No terceiro caso paradigmático, o intérprete oferece uma interpretação do
roteiro constitucional, que o autor não considera aceitável e deseja refutar. Aqui, a
conversa legal tem um curso diferente. Setores da cidadania, que são o único
subconjunto do "Povo" dotado de agência, acham pouco promissor limitar sua
oposição ao ajuizamento de novos processos de significância constitucional na
esperança de que o litígio constitucional gere uma opinião diferente do intérprete.
Eles querem agora vincular o intérprete, obrigar a Corte a atender ao próprio senso
do autor do que sua escrita constitucional pretende estabelecer acerca de um
determinado assunto. Neste caso, os cidadãos e setores do eleitorado e seus
representantes podem querer ativar os procedimentos formais - nas várias formas que
assumem em cada regime constitucional - para alterar a Constituição de tal maneira
que a substância normativa desejada seja mais inequivocamente declarada nas
disposições emendadas.
Se considerarmos esse processo do ponto de vista da filosofia política, três
aspectos são importantes para compreender como ele pode contrabalançar tanto uma
possível "oclusão judicial da vontade democrática" quanto uma visão populista do
atual eleitorado, veiculada através de referendo constitucional, como a incorporação
direta do “Povo”. Esses três aspectos estão bem destacados no trabalho de Ackerman,
Habermas e Rawls.
A partir do trabalho de Ackerman sobre a história constitucional dos EUA e
sobre as “constituições revolucionárias” aprendemos, de duas maneiras diferentes, a
importância da temporalidade inscrita na conversa jurídica entre o autor e o intérprete
da constituição. Autor e intérprete são distintos em um aspecto crucial. Enquanto o
mais alto intérprete da constituição é demasiado existente - um determinado número
de juízes vestidos com togas - o autor da constituição é uma construção para a qual
vários poderes constituídos (o executivo, o legislativo, o eleitorado) propõem versões
alternativas. O tempo é crucial porque estamos lidando com um “julgamento
reflexivo orientado” profundamente complexo acerca de uma questão constitucional,
não havendo atalhos determinantes à mão, e exigir um prazo estendido para que
emendas constitucionais sejam aprovadas e entrem em vigor pode colocar ambições
efêmeras, sobre a parte dos eleitorados mobilizados que votam nos referendos, para
o teste de reflexão para além do cálculo partidário. “O Povo” é totalidade da
cidadania, e o partidarismo nas questões constitucionais é autocontraditório, embora
de modo algum ausente.

98
A partir do trabalho de Habermas acerca da esfera pública, aprendemos que a
qualidade do intercâmbio comunicativo entre tribunais constitucionais, segmentos do
eleitorado que defendem uma compreensão diferente do “Povo” e outros poderes
constituídos, é fundamental. Um julgamento reflexivo orientado e ponderado sobre o
que o autor da constituição pretendia ou agora pretende considerar
constitucionalmente vinculativo não pode emergir, a não ser que - não importa o quão
temporalmente demorada e politicamente impossível seja dirigir essa troca dialógica
- os atores se movam em um espaço de razões onde uma disposição para atingir o
que é justo, no sentido de igualmente bom para todos, seja compartilhada entre os
participantes.
A partir do trabalho mais tardio de Rawls aprendemos que a noção normativa
que pode ser compartilhada em comum pelo autor da constituição, seu intérprete
institucional e o segmento vivo da cidadania atuando como eleitorado é a noção de
“razoabilidade”, enquanto a referência orientadora de “razão pública”, mas sobretudo
aquela versão normativamente mais exigente, a saber, a ideia de algo ser “mais
razoável para nós”. Este predicado - várias “concepções políticas de justiça”,
plataformas politicas, ou versões de uma disposição constitucional, podem ser
razoáveis, mas apenas uma é “a mais razoável para nós ” - é o ponto de discórdia
entre as partes institucionais que pretendem melhor representar "o Povo". O maior
confronto, no terceiro caso da conversação entre o intérprete e autor da constituição,
é entre o intérprete e algum outro poder constituído - seja o legislativo ou o eleitorado
ou ambos, dependendo das disposições formais para emenda - que pretende oferecer
a única versão da “vontade do Povo” mais razoável para nós.30

Conclusão

Para concluir, os tribunais também representam. Os tribunais constitucionais


representam "o Povo", qua autor entre gerações da constituição, do qual o atual
eleitorado é apenas o segmento vivo, o único dotado de agência política direta.
Enquanto os ramos legislativo e executivo do poder, parlamentos e presidentes ou
primeiros-ministros, representam continuamente o eleitorado, a principal tarefa de
um tribunal constitucional é garantir que a voz das gerações passadas e as
reivindicações das futuras gerações de cidadãos não sejam silenciadas por aqueles
duas gerações de cidadãos possuidores de agência e franquia. Isto não é para excluir
o fato de que os funcionários eleitos e partidos também possam representar "o Povo".
Os parlamentos e presidentes ou primeiros-ministros podem representar “o Povo” nas
ocasiões em que, de acordo com as disposições formais de emendar sua constituição,
têm o direito de propor ou de fato promulgar emendas à constituição. Além disso, as

30
Acerca do sentido de “mais”, ver A. Ferrara, The Force of the Example, cit.

99
partes podem representar "o Povo" nas ocasiões em que advogam tais emendas, ou
até mesmo em momentos de política normal se elaborarem e implementarem
plataformas que se flexionam, a partir do ângulo específico da concepção abrangente
do partido e dentro dos limites da razão pública, os “valores políticos” embutidos nos
valores constitucionais essenciais e, portanto, distintivos não de um setor do
eleitorado, uma classe, um grupo de cidadãos, mas do “Povo” como um todo. No
entanto, enquanto esses atores, institucionais ou “partidários”, podem ou não optar
por representar “o Povo” e, em qualquer caso, não podendo ser responsabilizados por
representar o eleitorado ou apenas segmentos dele, um tribunal constitucional é uma
instituição definida pelo mandato de representar “o Povo” e não apenas o eleitorado.
Ninguém mais tem esse mandato.

100
DEMOCRACIA COMO COMPROMISSO:
UMA ALTERNATIVA À OPOSIÇÃO ENTRE
DEMOCRACIA EPISTÊMICA E
DEMOCRACIA AGONÍSTICA

GUSTAVO HESSMANN DALAQUA1

1. Introdução

A oposição entre democracia agonística e democracia epistêmica marca


presença em parte significativa de teoria democrática contemporânea. Seriam os
conflitos passionais, como afirmam os agonistas, o domínio primordial da
democracia? Ou seria a democracia melhor compreendida como uma busca por um
consenso razoável, uma deliberação entre interlocutores racionais que visam
descobrir a verdade? Tal abordagem dicotômica orienta parte considerável da teoria
democrática atual e é adotada por importantes teóricas e teóricos, tais quais Luis
Felipe Miguel, Chantal Mouffe e Nadia Urbinati.2 Após reconstruir brevemente seus

1
Professor no Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Paraná. Este artigo resulta de uma tese
de doutorado que foi orientada por Alberto Ribeiro G. de Barros, coorientada por Maria Isabel Limongi e
examinada por Cicero Araújo, Nadia Urbinati e Silvana de Souza Ramos (cf. Dalaqua, 2019). O autor
agradece esses professores pelos comentários feitos e também os participantes da conferência “Compromise
and Representation”, realizada na Universidade de Copenhague, na qual uma versão preliminar do trabalho
foi apresentada em 2017. Uma versão em inglês do artigo, intitulada “Democracy as compromise: An
alternative to the agonistic vs. epistemic divide”, foi publicada na revista Kriterion em 2019.
2
Cabe notar que o que ora se designa de “democracia epistêmica” e “democracia agonística” abrangem
teóricos cujos argumentos diferem entre si. Longe de pretender oferecer um retrato nuançado da variedade
de teorias epistêmicas e agonísticas da democracia, nossa intenção é tão somente reconstruir a oposição
entre a democracia epistêmica e a agonística tal qual Miguel, Mouffe e Urbinati a compreendem. Sobre as
diferenças existentes entre os autores que pesquisam a democracia epistêmica, cf. Hélène Landemore
(2017). Sobre os diferentes modos nos quais pode-se conceber a democracia agonística, ver Thomas
Fossen (2008), Lois McNay (2014), Paulina Tambakaki (2015), Mark Wenman (2013) e Ed Wingenbach
(2011). O termo “agonístico” vem do grego agon, que pode ser traduzido como luta e disputa, e emprega-
se nesse texto como sinônimo de “conflituoso”. Usaremos a expressão “democracia epistêmica” para
denotar toda teoria que valoriza a deliberação democrática, inter alia, por causa da sua capacidade de
promover o conhecimento e a verdade. Nosso entendimento da democracia epistêmica segue, portanto, o
de David Estlund (2008, p. 108), filósofo para o qual o democrata epistêmico não pressupõe que a

101
argumentos na próxima seção, mostramos nas seções três, quatro e cinco de que modo
a associação entre democracia e compromisso (compromise) feita por John Stuart
Mill, John Morley e Hans Kelsen põe em questão a oposição entre democracia
agonística e democracia epistêmica.

2. A oposição entre democracia epistêmica e democracia agonística em


Miguel, Mouffe e Urbinati

Miguel (2014, p. 77) refere-se à vertente epistêmica da teoria democrática


como “virada consensualista”. Sob a influência de Habermas e Rawls, os filósofos
políticos teriam passado a tematizar a deliberação democrática como um exercício
racional que almeja identificar as “respostas certas” para as questões públicas,
obliterando, pois, o papel constitutivo desempenhado pelos conflitos e paixões na
política (Miguel, 2014, p. 281). De acordo com Miguel (2016, p. 45-6), a visão
epistêmica da democracia propugnada pelo deliberacionismo acaba por instituir
“uma tecnocracia despolitizada” que nega a liberdade dos cidadãos. Dado que o
resultado “correto” está estabelecido já antes de a discussão política começar, os
cidadãos não são livres para decidir que curso de ação deverão tomar. Em vez disso,
veem-se obrigados a aquiescer à “verdade” que sua deliberação racional e imparcial
lhes revela. Semelhante linha de raciocínio tende a substituir a democracia (governo
do demos) pela epistocracia (governo dos sábios). Afinal, “se a questão é encontrar
as respostas certas, um grupo de especialistas certamente se sairá melhor do que a
turba ignorante” (Miguel, 2014, p. 281).
O elogio de Miguel à vertente agonística da democracia e seu repúdio à
democracia epistêmica foram influenciados pelas leituras do autor dos trabalhos de
Mouffe e Urbinati. 3 Com efeito, a dicotomia entre a democracia epistêmica e a
agonística é presente na teoria política de ambas as filósofas. Em The Democratic
Paradox, por exemplo, Mouffe (2000, p. 93) afirma que os democratas epistêmicos
anseiam por “uma solução racional final”, anseio este que a seu ver é “descabido”
quando tratamos de política. Ao focar apenas a razão, os democratas epistêmicos
negam “o papel crucial desempenhado pelas paixões e afetos” na política (Mouffe,
2000, p. 95). O principal defeito deles, segundo a autora, consiste em tentar

democracia seja valiosa apenas por conta de suas propriedades epistêmicas. A oposição entre democracia
epistêmica e democracia agonística que identificamos em Miguel, Mouffe e Urbinati não significa que
inexistem diferenças entre os três autores. A troca de cartas entre Mouffe e Urbinati (2009) traz a lume as
diferenças que distanciam as filosofias de ambas; sobre a diferença de Miguel em relação a Mouffe e
Urbinati, ver infra nota três.
3
Deve-se ter em mente, todavia, que Miguel apropria-se criticamente das teorias de Mouffe e Urbinati.
Embora secunde a crítica que as filósofas levantam contra a democracia epistêmica, Miguel censura ambas
por tentarem conter a expressão do conflito político. Sobre as críticas do autor à Mouffe e à Urbinati, ver,
respectivamente, Miguel (2017, cap. 1) e Miguel (2014, cap. 7).

102
fundamentar a democracia “em uma espécie de acordo racional que abortaria qualquer
possibilidade de contestação” (Mouffe, 2000, p. 92). Assim como Miguel, Mouffe
(2000, p. 65) argumenta que, ao compreender a democracia como uma deliberação
isenta de paixões que visa à “verdade”, os teóricos epistêmicos destituem o povo da
liberdade de contestar decisões políticas. Com isso, eles subtraem o conflito da política
e despolitizam a democracia – i.e., aniquilam “‘o político’ [...] a dimensão de
antagonismo que é inerente às relações humanas” (Mouffe, 2000, p. 101).
O conceito do político invocado por Mouffe descende de Carl Schmitt, uma
referência comum para vários democratas agonísticos contemporâneos. Em verdade,
a condenação de Schmitt à filosofia política de seu tempo guarda semelhanças com
as críticas de Miguel, Mouffe e Urbinati.4 No livro que escreveu sobre a crise da
democracia parlamentar, Schmitt (1985, p. 35) sustenta que defensores liberais da
democracia parlamentar, tal qual J. S. Mill, promoveriam um tipo de “racionalismo”
político que teria por alvo a “verdade” e a “harmonia”. Na visão de Schmitt (1985, p.
49), semelhante racionalismo seria inapropriado na medida em que julga ser possível
colocar “a discussão no lugar da força”.5 De acordo com o filósofo, a tentativa liberal
de “transformar o inimigo [...] em um adversário com quem debatemos” despolitiza
a democracia, pois o modelo racionalista e deliberativo que é concomitante a tal
tentativa asfixia a essência conflituosa do político. O temor de Miguel de que o
liberalismo redunde em uma tecnocracia apolítica e a aversão de Mouffe a uma
democracia despolitizada encontram em Schmitt um ancestral comum.
A insatisfação de Miguel e Mouffe com a democracia epistêmica é
compartilhada por Urbinati. Em uma série de cartas abertas que trocou com Mouffe,
Urbinati estabelece que “a democracia deliberativa [epistêmica] é o resultado de um
projeto racionalista que almeja eliminar o antagonismo político” (Mouffe e Urbinati,
2009, p. 807-8). 6 Urbinati concorda com Mouffe: os democratas epistêmicos

4
Daqui não se segue, é claro, que Miguel, Mouffe e Urbinati sejam discípulos de Schmitt, haja vista os
três lançarem críticas ao filósofo alemão. Pode-se dizer que Miguel, Mouffe e Urbinati apoiam-se em
Schmitt na medida em que este oferece uma crítica contundente às tendências racionalistas do liberalismo.
Sobre as diferenças entre Miguel e Schmitt, vide Miguel (2017, cap. 1). No que diz respeito às críticas de
Urbinati e Mouffe a Schmitt, cf. Mouffe e Urbinati (2009).
5
Para uma reformulação anterior dessa crítica, cf. James Fitzjames Stephen ([1874] 1993, p. 20-1). A
respeito da crítica schmittiana ao liberalismo, ver John P. McCormick (1997). Como explicaremos na
próxima seção – e como o próprio McCormick (1997, p. 172) aponta –, a leitura que Schmitt faz de Mill
é imprecisa.
6
Acrescentamos a palavra “epistêmica” porque, assim como Miguel e Mouffe, Urbinati via de regra
emprega os adjetivos “deliberativo” e “epistêmico” de modo indiscriminado quando critica a vertente
deliberativa da democracia. De acordo com ela, a democracia epistêmica “é um desenvolvimento [que
emerge] no interior da teoria da democracia deliberativa” (Urbinati, 2014, p. 93). Portanto, ao criticar a
democracia epistêmica, Urbinati inevitavelmente se distancia do deliberacionismo, pois, de acordo com a
definição dela, a democracia epistêmica é um campo teórico que pertence à democracia deliberativa. Esse
ponto é digno de nota porque a ênfase da filósofa no procedimentalismo poderia sugerir que ela fosse uma
adepta do deliberacionismo habermasiano. Entretanto, conforme observa Dario Castiglione, dado o modo
como Urbinati enfatiza o conflito político, semelhante identificação não procede (cf. Castiglione apud
Accetti et al., 2016, p. 219 e Urbinati, 2006, p. 29).

103
“despolitizam a democracia” porque querem “dar mais espaço aos experts” e
implementar “uma deliberação apolítica” desprovida de paixões e conflitos (Mouffe
e Urbinati, 2009, p. 808). Esta crítica foi reforçada em um livro recente da autora,
Democracy Disfigured: Opinion, Truth, and the People. Nele, Urbinati (2014, p. 91)
acusa “a transformação epistêmica do discurso político na teoria deliberativa da
democracia” de desfigurar a democracia. A versão desfigurada da democracia que
este desenvolvimento recente do deliberacionismo provocou corresponde ao que
Urbinati (2014, p. 81) chama de “democracia apolítica”.
A rigor, a democracia apolítica sequer merece ser considerada democrática,
haja vista ela “neutralizar” o componente básico da democracia: “a disputa”
(Urbinati, 2014, p. 81). Ao reduzir a democracia a uma interação imparcial de
argumentos entre interlocutores “razoáveis” que desejam alcançar “uma verdade
objetiva e desapaixonada”, os deliberacionistas tornam a política “inóspita à
contestação e à liberdade” (Urbinati, 2014, p. 123, 99). A verdade, tal qual Urbinati
(2014, p. 105) a compreende, carrega dentro de si um elemento de coerção; um
“cientista [...] capitula perante a verdade”. Segundo a descrição de Urbinati (2014), a
verdade não é algo que construímos ativamente. Antes, é algo perante o qual não
podemos senão “aquiescer” (Urbinati, 2014, p. 105). No lugar da tecnocracia
despolitizada promovida pela democracia epistêmica, Urbinati propõe uma teoria
democrática que é verdadeiramente política, pois reconhece os conflitos e paixões
como componentes fundamentais da democracia.
Esta análise de sobrevoo dos trabalhos de Miguel, Mouffe e Urbinati põe em
relevo uma tese comum que subjaz a oposição que eles postulam entre a democracia
agonística e a epistêmica, a saber, a tese de que caracterizar a democracia como uma
busca deliberativa pela verdade necessariamente implica negar o papel que os
conflitos e paixões exercem na política. A ideia de que alguém poderia atribuir
propriedades epistêmicas à deliberação democrática e, ao mesmo tempo, reconhecer
a função primacial dos conflitos e paixões na política jamais é aventada por Miguel,
Mouffe e Urbinati. Tal ausência expõe uma limitação do pensamento deles, haja vista
as dimensões epistêmica e agonística da democracia serem compatíveis. Para
verificar como esta compatibilidade é possível, examinemos a caracterização da
democracia como compromisso feita por Mill, Morley e Kelsen.

3. Democracia e compromisso em Mill

Um dos requisitos mais indispensáveis na conduta política, especialmente


no que diz respeito à gestão de instituições livres, é [...] a prontidão para
o compromisso, uma disposição para conceder algo aos oponentes e para
moldar boas medidas de modo a ser o menos ofensivo possível às pessoas
com visões opostas. Deste hábito salutar, o mútuo dar e receber (como se

104
tem chamado) entre as duas Casas é uma escola permanente; útil assim
mesmo agora, e sua utilidade provavelmente sentir-se-á com mais força
em uma constituição democrática da Legislatura (CW XIX, p. 514).7

Em Considerações sobre o governo representativo, Mill afirma que o


compromisso é condição para o bom funcionamento de uma democracia
representativa. Mais que uma forma de governo, a democracia para Mill envolve um
tipo específico de “modo de vida” no qual os cidadãos estão dispostos a escrutinar
suas opiniões e crenças (Frías, 2006, p. 80). Tal disposição vai ao encontro do
reconhecimento do caráter falível de toda opinião humana. Afinal, assumir a
infalibilidade de uma opinião implica que qualquer coisa que a oponha seja
necessariamente errada e, portanto, indigna de apreço.
O estilo de vida crítico que Mill associa com a democracia advém de sua
compreensão sociológica do regime democrático. Influenciado pela “Oração fúnebre
de Péricles”, Mill entende que a democracia relaciona-se de maneira íntima com a
diversidade social (CW XI, p. 319). Conforme destaca Péricles em sua oração
fúnebre, a democracia constitui não apenas uma forma de governo, mas também uma
forma de sociedade na qual a singularidade de cada cidadão é respeitada e valorizada
(Tucídides, 1982, p. 109ss). Daí que Mill opusesse a democracia à China oitocentista,
tida por ele como uma sociedade autoritária que procurava violentamente expurgar
toda manifestação de diferença individual e de conflito no afã de obter uma
homogeneidade social total. 8 A democracia é o regime no qual o conflito e a
pluralidade humana são motivo de celebração, não de vergonha.
O compromisso é indispensável à democracia na medida em que fomenta uma
abordagem não-dogmática na política. “O hábito e a prática […] do compromisso”
levam ao reconhecimento da “discordância entre princípios e práticas como o estado
não apenas natural como desejável” da política (CW XX, p. 331). O compromisso é
conducente a um ethos democrático porque acostuma as pessoas ao desacordo e ao
conflito. Se por “consenso” se entende uma unanimidade completa a partir da qual se

7
Seguindo prática padrão dos comentadores de Mill, sempre que citar a edição dos Collected Works of
John Stuart Mill, usarei a abreviação CW, enumerando, em seguida, o volume e a página (ex: CW VII, p.
313 equivalerá a Collected Works, volume VII, página 313). A descrição milliana do compromisso como
um ato mútuo de dar e receber evoca o célebre encômio que Edmund Burke (1987, p. 126) fizera ao
compromisso: “Todo governo, assim como todo benefício e usufruto humanos, e como toda virtude e ato
prudente, funda-se no compromisso e na troca. Balançamos inconveniências; damos e recebemos;
remitimos alguns direitos de modo a poder usufruir de outros”.
8
Para uma análise da leitura que Mill faz da China e do conluio entre sua filosofia e o imperialismo
britânico, ver Jennifer Pitts (2005, cap. 5). Sobre o modo como a ideia do despotismo oriental consolidou-
se na filosofia moderna e chegou até Mill, cf. Franco Venturi (1960).

105
suprime todo desacordo, pode-se dizer então que a democracia para Mill é o regime
do compromisso, não do consenso.9
O compromisso diferencia-se do consenso na medida em que sempre deixa
um resíduo de insatisfação. De uma perspectiva meramente particular, o
compromisso não é a melhor opção a se tomar, haja vista ele exigir o sacrifício de
parte de uma demanda inicial, de modo a acomodar demandas diferentes (Gutmann
e Thompson, 2012, p. 10). Todavia, de uma perspectiva política, o compromisso não
precisa ser visto como uma opção inferior a um consenso unânime. Diferente do
consenso, o compromisso permite que os representantes incorporem nas decisões
legislativas a pluralidade de visões esposadas pelos cidadãos e, portanto, promove o
ideal democrático de que cada cidadão deve ter igual poder de influência nos assuntos
públicos (Rostbøll, 2017, p. 619-21).
O elogio de Mill ao compromisso relaciona-se à sua crítica da democracia
majoritária. Um regime no qual a regra da maioria é o único critério para a
promulgação das políticas públicas falsifica a democracia porque, na prática, destitui
as minorias de poder político (CW XIX, p. 448). A defesa milliana do “espírito do
compromisso” reporta-se a sua compreensão da democracia como regime que,
embora use a regra da maioria, por esta não se define (CW XIX, p. 344). 10 A
caracterização da democracia como compromisso feita pelo filósofo indica que um
regime no qual a maioria consegue governar sem contrapesos não deve ser visto como
democrático. Em vez de significar o governo da maioria sobre todos os demais, a
democracia deve ser identificada como “o governo de todo o povo por todo o povo
[the government of the whole people by the whole people]” (CW XIX, p. 448). A
prática do compromisso satisfaz a demanda normativa da democracia compreendia
como governo de todo o povo na medida em que confere poder político tanto a grupos
majoritários quanto a grupos minoritários.
Visto que sempre deixam um resíduo de insatisfação, os compromissos são
inevitavelmente temporários. Eles negam a ideia de que haja uma resposta final para

9
A distinção entre compromisso e consenso não é incomum entre os que pesquisam a relação entre
democracia e compromisso (Ankersmit, 2002, cap. 5 e Bellamy, 1999, cap. 4). Ao afirmar que o
compromisso difere do consenso porque, diferente deste, ele não impede a manifestação do conflito
político, os pensadores políticos reforçam uma conotação negativa que, na língua inglesa, acabou sendo
incorporada ao horizonte semântico do termo consensus. Conforme destaca Raymond Williams (1983, p.
77), na língua inglesa, consensus passou a ser usado “para descrever a evasão deliberada de conflitos de
princípio [na política]”. Não obstante, é fato que o termo “consenso” pode ser usado sem necessariamente
evocar tal conotação negativa. No Dizionario di politica, por exemplo, o termo consenso é descrito
positivamente como um acordo político que pode assumir diferentes graus (Sani, 1983). Nesse sentido, as
decisões políticas nunca são totalmente consensuais, mas sim mais ou menos consensuais. Compreendido
na acepção fornecida no Dizionario di politica, o termo “consenso” é capaz de incorporar a prática do
compromisso. Apesar de reconhecer esta possibilidade, neste artigo, seguiremos a distinção feita por
Ankersmit e Bellamy entre “compromisso” e “consenso”, compreendendo por este um tipo de
unanimidade que tende a elidir o conflito político.
10
Sobre a diferença entre a democracia como compromisso e a regra da maioria, ver Bellamy (2018, p.
318). A respeito da diferença entre regra da maioria e democracia, cf. Bobbio (2003, p. 261-85).

106
as questões políticas e reconhecem que as decisões públicas devem estar abertas à
contestação. A preferência de Mill pelo compromisso relaciona-se à sua concepção
construtivista da representação.11 De acordo com o filósofo, o trabalho da representação
política não é o de apenas reproduzir identidades e ideias pré-dadas como o de
construí-las por meio da prática do compromisso. Daí a recusa do autor do mandato
imperativo, proposta política que via de regra reforça a concepção da representação
como espelhamento de um objeto pré-dado.
Para grande parte dos que defendem o mandato imperativo, o papel do
representante é o de apenas espelhar e refletir as visões dos representados, que já se
encontram formadas antes de o processo representativo iniciar. Mill considerava o
mandato imperativo deletério na medida em que ele congela as preferências políticas
e obstrui a prática do compromisso. A deliberação democrática requer que os
debatedores cultivem uma postura não-dogmática e se reconheçam como seres
falíveis. Para preservar seu caráter dialógico, a deliberação não pode se comportar
como uma sucessão de monólogos que não se comunicam porque suas posições estão
formadas de antemão. Quem participa da deliberação democrática deve estar disposto
a levar em conta as posições de outrem e, se necessário, a alterar suas premissas
iniciais. Os representantes não têm como prever todas as opiniões que serão expostas
na assembleia. Não por outro motivo, seria insensato proibi-los de transformar suas
posições. Em suma, Mill desaprova os mandatos imperativos na medida em que eles
negam a noção da deliberação democrática como um espaço de (re)formulação de
novas práticas e ideias.12 Em uma democracia representativa, a função da assembleia
legislativa consiste em “ser a um só tempo o Comitê de Acusações da nação e seu
Congresso de Opiniões; uma arena em que não apenas a opinião geral da nação, mas
de toda parte dela [...] possa se produzir em plena luz” (CW XIX, p. 432, grifo nosso).
A representação política tem poder construtivo porque o combate na assembleia entre
perspectivas divergentes tende a gerar a promulgação de compromissos que
produzem novas ideias e crenças, que, por sua vez, mudam o modo como os cidadãos
pensam e se compreendem.
A concepção da representação política que emerge da democracia como
compromisso nega a ideia de que a sociedade seja um agregado de átomos
dissociados. Outrossim, refuta a tese de que os cidadãos sejam seres isolados dotados
de preferências pré-dadas e imutáveis e, ademais, destaca o fato de que os cidadãos

11
Sobre o construtivismo representativo milliano, ver Dalaqua (2018). Seguindo Lisa Disch (2015, p. 490),
empregamos o termo “construtivista” para evocar “a ideia de que os atos de representação não apenas se
referem ao representado de maneira direta como também trabalham para constituí-lo”. Semelhante uso do
termo deve-se também a Pierre Rosanvallon (1998, p. 231), que emprega a palavra constructive para
designar o poder que a representação tem para construir novas identidades políticas. Para uma versão
anterior do argumento, cf. Rosanvallon (1985, p. 56).
12
Contudo, no caso de governos representativos que não são democráticos, Mill julgava ser aceitável o
uso do mandato imperativo (CW XIX, p. 508).

107
(trans)formam suas preferências e identidades coletivamente. As ideias que os
representantes eleitos expressam via de regra advêm de uma união prévia de
indivíduos e, inversamente, sua expressão dentro da assembleia tende a promover o
ajuntamento de outros cidadãos, seja em apoio ou oposição a elas. Em última
instância, tanto o representante quanto o representado possuem o poder de construir
a identidade política um do outro.
De acordo com Mill, quem está habituado ao compromisso não tarda a
perceber que toda cristalização de uma determinada coalização de forças políticas é
nociva, haja vista todo arranjo de poder desfavorecer um grupo de cidadãos que se
beneficiaria acaso o compromisso estabelecido fosse alterado. Ao passo que o
compromisso deve ser visto como um resultado previsível da deliberação
democrática, a existência de unanimidade total deve, de acordo com Mill, ser vista
com desconfiança (Ten, 1980, p. 71). Na democracia, a unanimidade total indica a
existência de opressão. A pressuposição de Mill é a de que cidadãos democráticos
que vivem sob “uma atmosfera de liberdade” inevitavelmente terão ideias políticas
conflitantes (CW XVIII, p. 267). O conflito é um traço inerradicável da democracia.
Uma das melhores maneiras de lidar com ele, na visão de Mill, reside na prática do
compromisso.
Para entender como a prática do compromisso lida melhor com o conflito do
que a prática do consenso, vale a pena rememorar a crítica de Mouffe à democracia
epistêmica. Segundo a filósofa, o anseio dos democratas epistêmicos por um
“consenso sem exclusão” é inapropriado, pois afirmar que uma decisão política foi
feita mediante consenso absoluto não raramente serve para disfarçar que, em verdade,
algumas pessoas não concordaram com o resultado final do processo deliberativo
(Mouffe, 2000, p. 48). A crítica de Mouffe, todavia, não se aplica ao compromisso.
Efetivar um compromisso implica reconhecer que algumas visões foram de fato
excluídas e que, portanto, a decisão tomada não satisfez algumas demandas.
Não surpreende, pois, que Mill defina o compromisso como “a arte de
sacrificar o não-essencial a fim de preservar o essencial” (CW I, p. 87). O
compromisso resulta de um sacrifício. Ele tem, por assim dizer, um exterior
constitutivo, uma série de demandas rivais que cedo ou tarde o desestabilizarão e
provocarão a criação de um novo compromisso. Visto que torna a exclusão visível,
uma política baseada no compromisso favorece e incita a contestação das políticas
públicas existentes e da ordem hegemônica que representam. Longe de querer
eliminar o desacordo, o “espírito do compromisso” recomendado por Mill considera
o conflito uma fonte valiosa de criatividade política em uma democracia (CW XIX,
p. 344). O compromisso é um acordo que valoriza o desacordo, uma acomodação de
visões que não elimina o conflito.
A filosofia milliana do compromisso mostra que a principal acusação contra
a democracia epistêmica levantada por Miguel, Mouffe e Urbinati não se aplica a sua

108
teoria democrática. Como a própria Urbinati (2002, p. 82) reconhece, Mill oferece
um “modelo agonístico” de democracia que difere do modelo epistêmico da
“democracia deliberativa” que ela tanto critica. Diferente desta, a democracia
agonística para Urbinati (2002, p. 82) não concebe a deliberação política “como um
processo de raciocínio público que, eventualmente, produz um resultado
‘verdadeiro’”. Deparamo-nos, aqui, com uma primeira versão da dicotomia
democracia epistêmica vs. democracia agonística que Urbinati (2014) elabora a
contento em Democracy Disfigured: quem concebe a deliberação democrática como
uma troca de argumentos que visa à verdade nega o conflito e força os cidadãos a
“abdicar das paixões que os animam e os impedem de alcançar a verdade” (Urbinati,
2002, p. 82). De acordo com Urbinati, uma vez que Mill reconheceu o papel fulcral
do conflito na política, temos de necessariamente opor sua teoria política ao modelo
epistêmico-deliberativo que ela repudia.
A abordagem dicotômica de Urbinati a leva a negligenciar que, em verdade,
Mill confere um caráter epistêmico à deliberação democrática. Com efeito, nossa tese
é a de que a aliança entre democracia e compromisso feita por Mill, Morley e Kelsen
revela, ao fim e ao cabo, um certo exagero existente na oposição entre democracia
epistêmica e democracia agonística que identificamos nos trabalhos de Miguel,
Mouffe e Urbinati. Uma teoria que enfatiza a dimensão racional e epistêmica da
democracia não está fadada a negligenciar o papel fundamental dos conflitos e
paixões na vida política. Razão e paixão, verdade e conflito, não são necessariamente
antitéticos.13
“A verdade, nos grandes assuntos práticos da vida, é uma questão de conciliar
e combinar opostos [...] e isso tem de ser feito pelo árduo processo de luta entre
combatentes que brigam sob bandeiras hostis” (CW XVIII, p. 253-54). No capítulo
dois de Sobre a liberdade, Mill explica que existem dois tipos de verdade: uma que
exclui objeções e outra que se desenvolve a partir de objeções. O primeiro tipo de
verdade reporta-se à matemática e é imutável. O segundo, em contrapartida, está
sempre mudando e pertence ao campo político. Na política, “as doutrinas
conflitantes, em vez de uma ser verdadeira e outra falsa, [geralmente] compartilham
a verdade entre si” (CW XVIII, p. 252).14 Na filosofia política de Mill, a democracia
agonística e a epistêmica caminham lado a lado.
O que Mill chama de “verdade política” não configura um critério extra-
político que predetermina os resultados da deliberação democrática (CW XIX, p.
418). De acordo com o filósofo, “apenas através da diversidade de opinião é que [...]

13
A explicação de como o compromisso põe em questão a dicotomia razão vs. emoção é apresentada na
seção seguinte. Nesta seção, limitamo-nos a mostrar como o conceito do compromisso refuta a oposição
entre verdade e conflito.
14
O acréscimo do termo “geralmente” serve para evitar a impressão de que Mill pensava que esta situação
fosse sempre válida. De acordo com o filósofo, nem toda visão política era igualmente válida (cf. infra
nota dezesseis).

109
há chance de um jogo justo [fair play] entre todos os lados da verdade” (CW XVIII,
p. 254). Multifacetada, a verdade política está como que espalhada entre os cidadãos
e é apenas ao deliberarmos e realizarmos um compromisso entre nossas visões e as
de outrem que conseguimos construir a verdade. A concepção de Mill da deliberação
pública e parlamentar baseia-se em “uma teoria do conhecimento perspectivista”
(Habermas, 2014, p. 314). Conhecer a verdade de qualquer fenômeno político exige
que se leve em conta as várias perspectivas sob as quais tal fenômeno se deixa
apreender. Conforme observam James Conant (2006, p. 51) e Linda Zerilli (2016, p.
268), o característico das epistemologias perspectivistas reside no íntimo liame que
tecem entre objetividade e subjetividade: apenas ao coligir e contrastar diferentes
perspectivas (subjetivas) por meio de debate público é que podemos construir
conhecimento (objetivo). Visto que tratam de temas pertinentes a todos, a aquisição
completa de conhecimento sobre assuntos políticos exige que se leve em conta as
várias perspectivas por meio das quais eles são vivenciados. A democracia epistêmica
torna-se, assim, uma justificação para a inclusão democrática: se uma sociedade
almeja implementar decisões políticas corretas e verdadeiras, o debate público deve
estar igualmente aberto a todos.
Uma das vantagens que, segundo Mill, decorrem da deliberação democrática
é a produção de políticas públicas que são mais corretas ou verdadeiras na medida
em que respondem de maneira mais eficiente aos problemas coletivos.15 O processo
de combinação e balanço entre perspectivas rivais sobre a resolução dos problemas
políticos é peça-chave do compromisso. Todo compromisso, Mill escreve em
Auguste Comte and Positivism, deve oferecer um “meio-termo [juste milieu]” entre
argumentos conflitantes (CW X, p. 263-64). Esse meio-termo equivale, justamente,
àquilo que em outras obras Mill chama de “verdade política” (CW XIX, p. 418). O
compromisso – prática democrática que se alimenta do conflito e é impensável na
ausência deste – é um mecanismo para a construção de verdades políticas.
Antes de deixar de lado a teoria milliana do compromisso, deve-se observar
que Mill não julga todos os tipos de compromisso desejáveis. Conforme anotado
antes, o elogio do compromisso feito pelo filósofo descende de sua defesa da
democracia; os compromissos são benéficos na medida em que promovem a
democracia. Um “democrata convicto” como Mill nunca aceitaria um compromisso
que desrespeitasse os dois princípios basilares da democracia: a liberdade e a
igualdade de todos os cidadãos e cidadãs (CW I, p. 66 e cf. Thompson, 2007, p. 192-

15
Endossamos, aqui, a concepção pragmatista da verdade (presente no segundo capítulo de Sobre a
liberdade de Mill e no livro On Compromise de Morley), segundo a qual a verdade corresponde às
asserções que têm se provado, ao longo do tempo, mais eficientes na resolução de problemas coletivos.
Como comenta Richard Rorty (2007, p. 34), a teoria pragmatista da verdade que Mill associa com o
compromisso político é capaz de fortalecer “nossa devoção à democracia”. Para uma análise da relação da
democracia milliana com o pragmatismo, ver Dalaqua (2017).

110
93).16 Como veremos na próxima seção, o mesmo se diz de Morley, que também
apoiava o compromisso por considerá-lo conducente a um ethos democrático.

4. Democracia e compromisso em Morley

Publicado originalmente em 1874, On Compromise é um livro que se dedica


a analisar a centralidade do compromisso para a democracia moderna. Eis uma
primeira diferença com relação a Mill, que nunca escreveu um livro inteiro sobre o
tema do compromisso. A reconstrução do modo como Morley compreendia o termo
“compromise” não demanda a justaposição de várias passagens espalhadas em
diferentes livros. Um exame dos principais argumentos de On Compromise é
suficiente para se obter uma explanação adequada da teoria do compromisso de
Morley.
Morley (1898, p. 1) inicia o livro definindo o compromisso como “a prática
das várias artes [arts] de acomodação”. Não apenas sua definição, como também o
modo como associa o compromisso à “verdade” e o opõe ao “fanatismo”, revelam
desde o começo a filiação intelectual de Morley (1898, p. 4) a Mill.17 Morley (1898,
p. 4) reserva o termo “fanático” a qualquer um que “danifica boas causas por meio
da recusa de uma concessão pontual e inofensiva, atiçando com isso preconceitos que
um modo de apresentação mais sábio de sua opinião teria evitado”. Nesta passagem,
Morley alude à prática argumentativa da “aparagem [trimming]”, prática esta que
para Mill – não menos do que para acadêmicos contemporâneos como Gutmann e
Thompson (2012, p. 10) – é inerente ao compromisso (CW XXVI, p. 370).
A “aparagem” de uma posição política delicada torna o compromisso possível
por meio da minimização estratégica da oposição. Considere-se, como exemplo, a
performance política de Mill durante os debates parlamentares que precederam a
aprovação da Reform Act de 1867, responsável pela expansão da franquia eleitoral na
Inglaterra para mais de 35% da população dos homens adultos (Kahan, 2003, p. 122).
Mill sabia que o apoio do Partido Conservador, que à época contava com a maioria

16
O desgosto de Mill com relação a compromissos que desrespeitam o princípio da igualdade, por
exemplo, tornou-se evidente com sua rejeição à conduta do governador Eyre à Revolta de Morant Bay
(Miller, 2005). Mill se recusou a fazer um compromisso no que dizia respeito à proposta, apoiada por
vários grupos políticos na Inglaterra vitoriana, de que Eyre não deveria ser indiciado por sua resposta
brutalmente desproporcional à Revolta dos jamaicanos. Tal proposta afigurava-se completamente errada
a Mill porque não lidava de maneira adequada com a crise política decorrente da atitude de Eyre.
Parafraseando Avishail Margalit (2010, p. 10), podemos dizer que um compromisso que justificava o
tratamento desumano que Eyre reservara aos jamaicanos não seria senão “um compromisso político
podre”.
17
De fato, a última seção do livro de Morley é inteiramente dedicada à filosofia política de Mill, autor que
é citado mais de doze vezes em On Compromise. Segundo John Wyon Burrow (1988, p. 22), as
semelhanças entre as teorias de ambos revela que Morley era “discípulo de Mill”. Sobre a influência de
Mill no pensamento de Morley, ver também J. F. Stephen ([1874] 1993, p. 229) e Morley (1877, p. 239-
52).

111
na casa legislativa, era necessário para a aprovação da reforma eleitoral. Tendo isto
em mente, afirmou, em um de seus discursos parlamentares, que o Reform Act não
seria senão um corolário “da teoria [da representação] de classe, que, como todos
sabemos, é a visão conservadora da constituição” (CW XXVIII, p. 61). Visto
constituir uma classe, o proletariado tinha direito a eleger seus próprios
representantes.
Astuciosamente, Mill invocou a teoria de representação de classes dos
conservadores para defender a expansão do sufrágio. Ele insistiu que o aspecto
democrático da medida não era o que estava em questão, e repreendeu um
parlamentar de sua base que defendeu a reforma alegando que a mesma era boa
porque promovia a democracia. Naquele contexto, dado o temor que os políticos
conservadores tinham da democracia, justificar a reforma eleitoral por meio da
democracia era uma má estratégia. A fim de evitar o despertar de preconceitos
antidemocráticos, Mill enfatizara que a reforma era uma questão que remetia à
representação de classes, não à democracia (CW XXVIII, p. 61). Mill apoiava a
expansão do sufrágio, pois sabia que, quanto maior o eleitorado, tanto mais
democrática seria a Inglaterra. No entanto, por motivos pragmáticos, estava disposto
a fazer um compromisso e, portanto, concordou em temporariamente deixar de
afirmar o valor da democracia.18
Ao evitar oposição desnecessária, o compromisso de Mill favoreceu a
aprovação da reforma eleitoral e aumentou o caráter democrático das instituições
representativas inglesas. Conforme explica Morley, identificar o compromisso como
um componente fundamental da política

significa […] que nunca devemos pressionar nossas ideias até seus pontos
lógicos mais remotos sem referi-las às condições nas quais as aplicamos.
[...] O sucesso na política, como em toda outra arte [art], obviamente, exige
[...] conhecimento do material com o qual temos de lidar e também da
concessão necessária às qualidades do material (Morley, 1989, p. 229).

O compromisso enfatiza o caráter retórico da argumentação. Uma prova


retórica deve ser apresentada de uma maneira contextual e contingente porque, visto
ter a persuasão como objetivo, deve sempre levar em conta a audiência específica a
que se dirige, o “material” com o qual tem de lidar (Morley, 1898, p. 229). O material
do qual Morley (1898, p. 71) fala compõe-se de uma mistura de “razão, afeto e
vontade”. Quem considera o compromisso componente vital da democracia sabe que
os afetos e paixões desempenham um papel central na deliberação democrática.
Sozinha, a razão é insuficiente para mover a vontade. Quando o objetivo em questão

18
Poder-se-ia alegar que a estratégia de Mill foi bem-sucedida, pois o discurso do filósofo em prol da
reforma eleitoral foi popular entre os políticos conservadores e fundamental para persuadi-los a aprovar a
proposta (Carlisle, 1999, p. 159).

112
é persuadir alguém a tomar uma decisão e seguir um determinado curso de ação, a
mobilização das paixões é necessária.19
Ao afirmar que a efetivação de um compromisso exige cativar a paixão dos
cidadãos, Morley não sugere que a razão é irrelevante na política. Um compromisso
exitoso precisa apelar tanto à razão quanto à emoção. O compromisso põe em questão
a dicotomia paixão vs. razão na medida em que mostra que, para ser aceita por um
grupo de pessoas, uma proposta política deve “atiçar o amor deles pela verdade”
(Morley, 1898, p. 69). Em um debate democrático permeado de conflito, convencer
a maioria a aceitar uma proposta só acontece se seu proponente consegue fazê-la
sentir que a proposta é verdadeira – vale dizer, que ela responde de maneira mais ou
menos satisfatória um anseio coletivo. Longe de ser puramente racional, a verdade
política é, segundo Morley, um objeto de investimento passional.
Como podemos ver, o conceito de verdade marca forte presença em On
Compromise. O hábito do compromisso, Morley (1898, p. 18) sustenta, emerge “de
um sentido profundo da natureza relativa e provisória da verdade”. O compromisso
requer largar mão da ideia de que a política é o domínio da verdade absoluta: “Os
discípulos do relativo se permitem realizar um compromisso. Os discípulos do
absoluto jamais” (Morley, 1898, p. 56). Influenciado por Mill, Morley (1898, p. 80)
declara que a verdade política encontra-se dispersa entre os cidadãos e que o
compromisso é uma tentativa de juntar toda “partícula da verdade”.
O fanatismo vai contra a prática do compromisso porque “a fé em nossa
infalibilidade vincula-se necessariamente à intolerância”, e o compromisso pode
apenas funcionar de maneira apropriada com tolerância (Morley, 1898, p. 242). Na
esteira de Mill, Morley (1898, p. 87) alega que o compromisso produz “efeitos sobre
a mente e o caráter da pessoa que o realiza”. Quem está acostumado a efetuar
compromissos admite que suas crenças são falíveis e, portanto, está disposto a
examinar criticamente suas opiniões (Morley, 1898, p. 132). Ele aceita objeções às
suas crenças porque tem ciência de que desafiá-las é uma maneira de auferir sua
veracidade. Como a última seção de On Compromise deixa claro, a discussão
agonística “é o único meio seguro de preservar a fresquidão da verdade na mente dos
homens e a vitalidade da sua influência sobre as condutas e motivações deles”
(Morley, 1898, p. 272). Para preservar nossa apreensão vivaz e passional da verdade
política, o balanço de posições conflitantes realizado pela prática do compromisso é
necessário.20
Na política, a combinação entre diferentes “elementos da verdade” propiciada
pelo compromisso está fadada a ser provisória porque, conforme mudam os
problemas públicos, mudam as verdades políticas (Morley, 1898, p. 75). De acordo

19
Semelhante raciocínio remonta a David Hume (1992, p. 413-18), filósofo cujos trabalhos Morley leu.
20
Morley, aqui, reconstrói (e subscreve) a tese milliana de que uma apreensão vivaz da verdade requer
conflito (CW XVIII, p. 247-48).

113
com Morley (1898, p. 232), um compromisso é ruim quando sua “realização [é vista]
como definitiva”. Os compromissos são nocivos quando petrificam uma dada
constelação hegemônica de poder, de modo a inibir contestações e avanços posteriores
(Morley, 1898, p. 230-31). Como diria Mill, um compromisso que atravanca o
progresso da humanidade nunca deve ser aceito (Thompson, 2007, p. 177).
Para Mill, não menos do que para Morley, os cidadãos podem se desenvolver
apenas quando contam com poder para criticar as normas e crenças que organizam
suas vidas. Um compromisso que faz os cidadãos “absterem-se da crítica” e apenas
reforça o statu quo é nocivo, pois atrofia o desenvolvimento dos cidadãos. A prática
do compromisso, em contrapartida, é benéfica quando encoraja a crítica pública e
imbui nos cidadãos a percepção de que todos eles são igualmente falíveis. Na medida
em que apregoa que todos podemos estar igualmente errados, o falibilismo
epistemológico presente na teoria do compromisso de Mill e Morley justifica a
necessidade da deliberação democrática. Visto nenhum de nós encontrar-se em posse
de uma verdade absoluta, todos devemos examinar e, se necessário, realizar um
compromisso entre nossas visões e as de outrem. Como argumenta-se na próxima
seção, tanto a democracia quanto o compromisso manifestam que fundamentos
transcendentais inexistem na política.

5. Democracia e compromisso em Kelsen

Publicado em 1929, o livro de Kelsen Essência e valor da democracia


corrobora o laço, costurado por Mill e Morley, entre compromisso e democracia:

De fato, todo o procedimento parlamentar, com sua técnica dialético-


contraditória, baseada em discursos e réplicas, em argumentos e contra-
argumentos, tende a chegar a um compromisso. [...] Todo o procedimento
parlamentar tende a criar um meio-termo entre os interesses opostos,
uma resultante das forças sociais de sentido contrário. [...] E, se o
característico do procedimento dialético-contraditório do parlamento
tem algum sentido profundo, esse sentido só poderá ser o de transformar,
de qualquer modo, a tese e a antítese dos interesses políticos numa
síntese. Mas isso pode significar apenas uma coisa: não [...] uma verdade
absoluta, um valor absoluto superior aos interesses dos grupos, mas um
compromisso (Kelsen, 2000, p. 70-1)

Um dos objetivos da democracia representativa para Kelsen é o de valer-se do


conflito social de maneira produtiva. Em vez de visar um consenso definitivo ou uma
verdade absoluta superior, a democracia representativa reconhece o conflito político
como “inevitável” e busca institucionalizar sua expressão por meio da representação
proporcional de grupos políticos antagônicos (Kelsen, 2000, p. 41). Como Mill,

114
Kelsen pensava que a assembleia representativa deve ser “o lugar onde as opiniões
que dividem o público em grandes temas de interesse nacional se encontram em uma
arena comum e entram em batalha” (CW XIX, p. 348). Para garantir a continuação
do conflito no processo legislativo, tanto Mill quanto Kelsen advogavam em prol de
um esquema de representação proporcional dos diferentes grupos políticos (cf. CW
XIX, p. 452 e Kelsen, 2013, p. 72).
Para Kelsen, não menos do que para Mill, uma democracia representativa sem
representação proporcional pode facilmente degringolar em tirania da maioria. Para
que a democracia consiga satisfazer a demanda normativa de promover o
autogoverno de todos os cidadãos, as decisões políticas devem basear-se em
compromissos feitos entre os vários grupos que compõem o demos. Uma política
baseada no compromisso alia as vertentes deliberativa e agonística da democracia,
pois possibilita que os conflitos existentes desenrolem-se discursivamente. Ela
permite que diferentes grupos políticos manifestam suas paixões contrárias dentro
das instituições políticas, ao mesmo tempo em que os compele a deliberar e a firmar
acordos provisórios (i.e., compromissos).
Assim como Mill e Morley, Kelsen afirma que compromisso e democracia
imbricam-se mutuamente porque ambos pressupõem uma abordagem política não-
dogmática:

Quem considera inacessíveis ao conhecimento humano a verdade


absoluta e os valores absolutos não deve considerar possível apenas a
própria opinião, mas também a opinião alheia. Por isso, o relativismo é a
concepção do mundo suposta pela ideia democrática. [...] a política da
democracia se tornará uma política do compromisso, assim como nada
caracteriza melhor a filosofia relativista [que decorre da concepção da
democracia como compromisso] do que a sua tendência a um balanço
entre dois pontos de vistas opostos (Kelsen, 2000, p. 105-6).

Kelsen entende que o compromisso e a democracia são, respectivamente, a


prática e o regime políticos que emanam do relativismo – vale dizer, do falibilismo.21
Na democracia, os cidadãos tendem a reconhecer o caráter relativo e falível que toda
perspectiva individual está fadada a ter. Por isso mesmo, entendem que as decisões
públicas “devem resultar de um compromisso entre interesses opostos” (Kelsen,
2013, p. 40).
Como destacamos antes, os filósofos que vinculam a democracia ao
compromisso reconhecem os conflitos e paixões como impulsos fundamentais da
existência política. Contudo, na contramão do que prega a oposição entre a
democracia epistêmica e a agonística, tal reconhecimento não é incompatível com

21
Seguindo Lars Vinx (2007, p. 136-37), identificamos o relativismo de Kelsen com o falibilismo de Mill.
Para uma interpretação diferente, ver Sandrine Baume (2017, p. 86).

115
uma valorização da relevância política da deliberação racional. Isto é verdade não
apenas nos casos de Mill e Morley, mas também no de Kelsen. Com efeito, seria
impreciso afirmar que a teoria kelseniana do compromisso difere da milliana porque,
diferente desta, não atribui propriedades epistêmicas à deliberação política. No
mesmo capítulo em que explica que a democracia e o compromisso pressupõem o
relativismo, Kelsen esclarece que o reconhecimento do caráter parcial e relativo da
cognição humana não exige insular a política da verdade tout court:

A crença na existência da verdade absoluta e de valores absolutos


constitui as bases de uma concepção metafisica e, em especial, místico-
religiosa do mundo. Mas a negação desse princípio, a opinião de que o
conhecimento humano só tem acesso a verdades relativas, a valores
relativos, e, por conseguinte, qualquer verdade e qualquer valor – assim
como o indivíduo que os descobre – devem estar prontos para [...] deixar
lugar a outros valores e outras verdades. [...] aqueles que se apoiam
apenas na verdade terrestre [...] podem justificar o uso inevitável da
coerção [...] de tal modo que mesmo a minoria [...] possa tornar-se maioria
a qualquer momento. Este é o sentido exato do sistema político que
denominamos democracia (Kelsen, 2000, p. 105-7).22

Na teoria democrática kelseniana, a recusa da verdade absoluta não divorcia


política e verdade. Kelsen afirma que, contanto que não se arroguem o título de
absolutas, asserções com pretensão de verdade podem ser mobilizadas na deliberação
democrática. A verdade “relativa” ou “terrestre” pode servir de justificativa para
políticas públicas em uma democracia porque, ao contrário da verdade absoluta, a
verdade relativa é conducente ao compromisso (Kelsen, 2000, p. 105). Como Kelsen
(2000, p. 134) explica na seção final de O problema do parlamentarismo, o
relativismo filosófico – doutrina que, negando a existência de uma Verdade absoluta,
imutável e sempiterna, declara que a verdade é um artifício plural resultante de
compromissos feitos por agentes políticos – corresponde justamente ao
“parlamentarismo democrático”. Sendo assim, emenda o filósofo, Schmitt
interpretou de maneira equivocada o parlamentarismo democrático quando, em seu
livro sobre a crise da democracia parlamentar, estabeleceu que a deliberação
parlamentar visava à “verdade absoluta” (Kelsen, 2000, p. 133). Quando deliberam
em uma democracia parlamentar, os representantes eleitos têm como alvo construir
uma verdade relativa e provisória, um compromisso capaz de lidar com o(s)
problema(s) político(s) em questão de maneira mais ou menos satisfatória.23

22
Ver também “Foundations of democracy”, texto no qual Kelsen (1955, p. 16) escreve que “o relativismo
filosófico [...] reconhece apenas a verdade relativa”. Nesse trecho, fica claro que o relativismo nega apenas
a verdade absoluta, e não a verdade tout court.
23
Em consonância com a interpretação de Kelsen avançada por Urbinati e Accetti (2013, p. 8), poder-se-
ia especular que, sempre que a política torna-se domínio da verdade, a autonomia política esvanece porque

116
O relativismo kelseniano não deve, em suma, ser lido como uma tentativa
de separar democracia e verdade. Como Vinx (2007, p. 134-35) aponta em Hans
Kelsen’s Pure Theory of Law, “uma compreensão adequada da relação entre
democracia e relativismo [...] não leva à conclusão de que asserções morais com
pretensão de verdade devam ser barradas da política”. Afirmar a relatividade dos
valores humanos e das asserções com pretensão de verdade na política não é a mesma
coisa que querer excluí-los da política (Kelsen, 1955, p. 96). Quando nega que a
deliberação política deva almejar a verdade absoluta, Kelsen não aparta verdade e
política, pois afirma que a verdade relativa permanece no horizonte da democracia.
Ainda que os cidadãos jamais possam atingir uma verdade absoluta que rumaria sua
deliberação a uma objetividade pura e imutável, a busca por verdades relativas lhes
continua sendo uma preocupação relevante.

6. Conclusão

Este capítulo argumentou que a associação entre democracia e compromisso


feita por Mill, Morley e Kelsen indica que a oposição entre a democracia agonística
e a epistêmica – endossada por teóricas e teóricos importantes como Miguel, Mouffe
e Urbinati – deve ser recebida com um grão de sal. O que a conceptualização da
democracia como compromisso feita por Mill, Morley e Kelsen tem a ensinar para
os filósofos e teóricos políticos contemporâneos é que o modelo epistêmico da
democracia como uma troca de argumentos racionais que visa construir a verdade é
capaz de incorporar os conflitos e as paixões como componentes fulcrais do processo
democrático. O conceito de compromisso elaborado pelos três filósofos, em suma,
oferece uma alternativa à oposição entre democracia epistêmica e democracia
agonística presente em parte da teoria democrática contemporânea.

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estabelecer suas próprias leis porque a decisão que alcançarão apenas segue um padrão imutável de
verdade que os antecede e independe da vontade política deles. O que semelhante objeção perde de vista,
todavia, é que esta concepção platônica de Verdade – a qual, é claro, o filósofo tcheco se opunha – não
constituía para Kelsen o único modo possível de se conceber a verdade. O conceito de verdade pode ser
reinterpretado de modo a tornar-se compatível com a autonomia política, e é justamente isso o que Kelsen
(2000, p. 105) faz quando apresenta sua ideia de “verdade relativa”.

117
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120
INSTITUIÇÕES:
ENTRE SIMPATIA E ESTIMA

ESTER MARIA DREHER HEUSER1

No Brasil, a partir de 2016, quando deflagrado o processo de impeach-


ment da presidenta Dilma Rousseff, se tornou corrente, de um lado, o questio-
namento acerca do funcionamento das instituições brasileiras, de outro, a afir-
mação de que, sim, as instituições brasileiras funcionam normalmente, sobre-
tudo porque temos uma democracia consolidada. Em uma rápida pesquisa no
Google, encontramos uma série de variações afirmativas a respeito, algumas
com ressalvas especialmente dirigidas ao Executivo e ao Legislativo e poucas
relativas ao Ministério Público, à Justiça e à Polícia Federal, que, até as primeiras
publicações do The Intercept2, de junho de 2019, com reportagens produzidas a
partir do vazamento de “conversas secretas” da Operação Lava Jato, eram con-
sideradas, saudavelmente, pujantes. Em agosto de 2018, a então presidenta do
STF, Carmen Lúcia3, em palestra, afirmou:

As instituições democráticas no Brasil estão funcionando. Estão funcio-


nando com deficiências, sempre haverá deficiências. Talvez as nossas
neste momento sejam muito maiores, e a sociedade brasileira esperava
que cada um de nós, especialmente nós, servidores públicos, já tivésse-
mos sido capazes de superar e oferecer um Brasil muito melhor [.] Atual-
mente, o Ministério Público e o Poder Judiciário ‘têm cara’ e não são mais
desconhecidos. O Supremo Tribunal Federal é muito mais importante do
que seus ministros. O Poder Judiciário é muito mais importante do que
cada um dos seus juízes. E o Ministério Público é muito mais importante
do que cada um de seus promotores e procuradores.

1
UNIOESTE/PR
2 Conf. <https://theintercept.com/2019/06/09/editorial-chats-telegram-lava-jato-moro/>. Acesso em: 13
ago. 2019.
3 Conf. <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/carmen-diz-que-instituicoes-democraticas-

estao-funcionando-com-deficiencias/>. Acesso em: 26 jun. 2019.

121
Em outubro de 2018, antes do segundo turno das eleições presidenciais,
após a declaração de Eduardo Bolsonaro4, filho do então candidato Jair Messias
Bolsonaro, sobre o fechamento do STF com um cabo e um soldado, a presidenta
do TSE, Rosa Weber5 afirmou:

“as instituições estão funcionando normalmente. Juiz algum no Brasil se


deixa abalar por qualquer manifestação que possa ser compreendida
como inadequada”. Pouco antes de passar a faixa presidencial, em 10 de
dezembro, o presidente Michel Temer6 afirmou que “as instituições bra-
sileiras estão funcionando regularmente”. Cada uma dessas afirmações,
certamente, carrega em si pressupostos não ditos, especialmente a res-
peito dos sentidos do “funcionando” e do “normalmente”. Não estão cla-
ros os critérios utilizados para tais afirmações. A filosofia pode contribuir
expressivamente para a sua determinação. Propomos que o critério de
justiça seja o elemento decisivo para determinar se as instituições estão
ou não funcionando bem. Deleuze, pelo modo que lê a teoria humiana dos
artifícios, pode ajudar nessa determinação.

***

Antes de se voltar para a Filosofia, Deleuze se interessou pelo Direito


(DELEUZE, 1992; 2001b). Em Biografias cruzadas (DOSSE, 2010), nos é revelado
que seu primeiro livro, Empirismo e subjetividade: ensaio sobre a natureza
humana segundo Hume (2001a), foi escrito por causa do Direito. Para Negri, em
Conversações (DELEUZE, 1992) ele diz que seu interesse pelo Direito se volta às
criações coletivas, mais do que às representações; para ele, nas instituições, há
um movimento distinto das leis e dos contratos. Para pensar a primazia das
instituições é a Hume que ele recorre, uma vez que considera a sua concepção
positiva de instituição e de Direito muito interessante. Empirismo e subjetividade
(2001a), “Instintos e instituições” (2006) e “Cursos sobre Hume (1957-1958)”
(2018) são nossas fontes primárias para pensar sua perspectiva acerca das
instituições, a qual está, sobretudo, produzida a partir da teoria do artifício
criada por Hume.

4 Conf. <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/basta-um-soldado-e-um-cabo-para-fechar-stf-
disse-filho-de-bolsonaro-em-video.shtml>. Acesso em: 26 jun. 2019.
5 Conf. <https://oglobo.globo.com/brasil/juiz-algum-no-brasil-se-deixa-abalar-diz-rosa-weber-sobre-vi

deo-de-filho-de-bolsonaro-23173943>. Acesso em: 26 jun. 2019.


6
Conf. <https://veja.abril.com.br/politica/instituicoes-brasileiras-estao-funcionando-regularmente-diz-te
mer-em-video/>. Acesso em: 26 jun. 2019. Em 2016, há poucos meses como presidente da República, de
forma mais reticente quanto ao funcionamento regular das instituições, Temer reconheceu a instabilidade
delas: “Como nós não temos instituições muito sólidas, qualquer fatozinho – me permita a expressão – abala as
instituições” (<http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/11/pais-nao-tem-instituicoes-muito-solidas-e-as
susta-investidor-diz-temer.html>. Acesso em: 13 ago. 2019).

122
Crítico aos contratualistas, Hume recusa a ideia de direitos naturais. Para
ele, direitos sempre implicam uma sociedade civil (DELEUZE, 2001a, p. 42). O
estado natural é um estado de falta, de necessidade – fora do social, portanto,
está o negativo. O social, por sua vez, é positivo, criador, inventivo.

A lei é uma limitação dos empreendimentos e das ações, e retém da soci-


edade um aspecto tão somente negativo. A falha das teorias contratuais é
apresentar uma sociedade cuja essência é a lei, que só tem como objeto
garantir certos direitos naturais preexistentes e que não tem outra ori-
gem a não ser o contrato: o positivo é posto fora do social; o social é posto
em outro lado, no negativo, na limitação, na alienação. Toda a crítica que
Hume faz do estado de natureza, dos direitos naturais e do contrato equi-
vale a mostrar que é preciso reverter o problema (DELEUZE, 2001a, p.
42).

Tal reversão se dá do seguinte modo: o homem entra em sociedade


porque não tem direitos preexistentes, porque lhe é útil estar nela, pois é onde
ele inventa “meios originais de satisfação” de suas tendências (2006, p. 30).
Útil em dois sentidos, ao menos: 1) porque é na sociedade que o homem
realiza a sua natureza, que é inventar7 – para Hume, “o homem é uma espécie
inventiva” (DELEUZE, 2018, p. 154), ele inventa artifícios, cria convenções; e 2)
porque esse viver em sociedade também está na convenção situada na base da
instituição, do sistema cultural, onde o homem satisfaz suas necessidades, suas
tendências naturais. As instituições são meios sociais que, além de satisfazerem
as tendências, promovem a inteligência, uma vez que esta é mais social do que
individual. Toda instituição dá à inteligência possibilidades de prever e de
projetar, o que possibilita a produção de saberes que contribuem para a
realização da natureza humana, a saber: inventar paixões que ultrapassam seus
limites naturais, aquilo que Hume chama de artifícios, cuja invenção só é
possível entre os homens, não individualmente (2006, p. 31; 2018, p. 154).
Enquanto a instituição é um “modelo positivo de ação”, um “sistema
organizado de meios” criado pelo humano para a sua satisfação, as leis que
sustentam a perspectiva contratualista limitam as ações egoístas do homem, a
fim de que os supostos direitos naturais preexistentes à sociedade civil sejam
assegurados. Para Deleuze, a crítica humiana às teorias do contrato é que elas
nos apresentam uma “imagem abstrata e falsa da sociedade” e definem a socie-
dade de “maneira apenas negativa”, uma vez que são apresentadas como “um
conjunto de limitações de egoísmos e interesses, em vez de compreendê-la como

7“Inventar é distinguir poderes, é constituir totalidades funcionais, totalidades que tampouco estão dadas
na natureza” (DELEUZE, 2001a, p. 94).

123
um sistema positivo de empreendimentos inventados” (DELEUZE, 2001a, p. 33-
34).
Na perspectiva humiana, a lei incide sobre as instituições que garantem a
vida dos homens em sociedade, o que, para Deleuze, define critérios políticos
que distinguem tirania e democracia, a saber: “a tirania é um regime onde há
muitas leis e poucas instituições; a democracia é um regime onde há muitas ins-
tituições e muito poucas leis” (2006, p. 30). Se trata de uma mudança de lógica:
enquanto, para os contratualistas, as conexões se dão entre direitos e a lei, para
Hume os nexos estão entre necessidades e instituições sociais8 (das quais deri-
vam o Estado – e dele o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, que não são tra-
tados por Deleuze em Empirismo e subjetividade – nós é que expandimos o tra-
tamento que ele faz das instituições sociais para as instituições governamentais
que constituem o Estado), como a tendência de sexualidade, que se satisfaz no
casamento, a avidez na propriedade, a urgência da fome na reivindicação de ter
pão (2001a, p. 43; 2006, p. 29, 31).
Também o sentido de sociedade se altera com Hume, uma vez que ele não
define a paixão egoísta como preponderante do homem, a qual, segundo os con-
tratualistas, é limitada pela lei na sociedade civil. Natural é a generosidade do
homem com o seu clã, com seus amigos e com sua comunidade. Ele toma partido
de sua família e de seus próximos porque o que se sobressai, naturalmente, no
humano é, primeiro, a simpatia e não o egoísmo (DELEUZE, 2001a, p. 32). Por
simpatia o homem é naturalmente parcial, em relação àqueles que ele preza.
Hume reconhece, contudo, que a simpatia, assim como o egoísmo, no caso
dos contratualistas, se opõe à sociedade, justamente por seu caráter particular
e parcial: “simpatia dos pais entre si, simpatia dos pais pela sua progenitura”.
Em sua origem, a sociedade é uma reunião de famílias, cada uma com suas
parcialidades e a natural exclusão daqueles que não são partícipes dela (2001a,
p. 34). Ocorre, entretanto, que a simpatia contém algo que o egoísmo não tem: é
possível compor, integrar simpatias particulares em uma totalidade positiva e
inventar empreendimentos capazes de criar um mundo comum que só pode ser
constituído pela moral.
Algo raro, na filosofia de Deleuze, acontece: o encontro com Hume o leva
a elogiar a moral. Mas isso se dá porque ela tem um sentido muito diverso

8 “Que uma tendência se satisfaça em uma instituição é um fato. Falamos aqui de instituições
propriamente sociais, e não de instituições governamentais. No casamento, a sexualidade se satisfaz;
na propriedade, a avidez. A instituição, modelo de ações, é um modelo prefigurado de satisfação
possível. Só não se pode concluir disso que a instituição se explique pela tendência. Sistema de meios,
diz Hume, mas esses meios são oblíquos, indiretos; eles não satisfazem a tendência sem coagi-la ao
mesmo tempo. Tem-se uma forma de casamento, um regime de propriedade. Por que tal regime e
tal forma? Mil outros são possíveis, e que se encontram em outras épocas, em outros países”
(DELEUZE, 2001a, p. 43-44).

124
daquele que marca grande parte de sua filosofia: a moral como aquilo que
remete à existência de valores transcendentes orientados pela oposição entre
Bem e Mal, base do sistema de julgamento. Aqui, a moral não é sinônimo de jul-
gamento de Deus – no sentido desenvolvido por Deleuze em “Para dar um fim
ao juízo”, de Crítica e clínica (1997) –, ela é responsável pela extensão dos senti-
mentos particulares; o seu problema é “fazer com que a simpatia ultrapasse a
parcialidade para que o homem seja moral – artificialmente” (DELEUZE, 2018,
p. 154 [grifos do autor]). Cabe à moral quebrar a lógica da natureza e produzir
no humano a consideração ampliada: dar à simpatia um caráter em geral não
referente ao seu interesse pessoal, mas à humanidade. Trata-se de, artificial-
mente, inventar a moral para que ela amplie a simpatia que temos por nossos
familiares e amigos e transformá-la em “estima”, questão de justiça que “com-
bate o interesse privado” (2018, p. 155). A estima é o fundo da justiça, resultante
da integralidade das simpatias (DELEUZE, 2001a, p. 35).
Em suma, ao ganhar extensão, a simpatia se transforma no sentimento de
estima que não tem novos fins, sua parcialidade é superada e uma inversão de
valores ocorre: “o mais longínquo [a ordem social] é valorizado contra os
pendores”, cujo sentido é “dar primazia ao mais próximo” (2018, p. 158; p. 148).
A justiça, por isso, só se efetiva quando seus envolvidos agem por estima e não
por simpatia, quando o mais longínquo está em primeiro plano e o particular em
último, pois, nas palavras de Hume: “Em suas decisões, a justiça nunca olha se
os objetos são ou não adaptados a pessoas particulares; mas ela se conduz por
visões mais amplas” (HUME [Tr., p. 678. Cf. Tr. p. 620 apud DELEUZE, 2001a, p.
64). Portanto, em um juízo “não se olha a quem julga!”.
Se trata de uma mudança de percepção semelhante àquela que Deleuze
usa para responder, no Abecedário (2001b, G [gauche]), o que é ser e não ser de
esquerda, referente ao endereço postal – o que não se refere a um governo, mas
a ações de governos, nem a partidos, pois se trata de ser “simpatizante” de tal
ou tal partido, o que, humianamente falando, é excludente, limitativo, afinal, um
partido é parte, portanto, não tem em vista a humanidade, ainda que, é verdade,
haja partidos mais e menos includentes. Então, se poderia dizer que há partidos
com programas orientados pela simpatia e outros por estima.
Na lógica do endereço postal proposta, parece fazer sentido dizer que,
para Deleuze, quem não é de esquerda opera por simpatia e egoísmo: parte de
si próprio, de sua família, e depois expande para a rua onde mora e seus
vizinhos, posteriormente percebe a cidade, o país, os países e cada vez mais
longe, mas sempre com vistas a criar estratégias para que os seus privilégios
perdurem. Aqueles que estão distantes da sua percepção, aqueles com quem não
simpatiza, devem manter-se, assim, distantes, para que a situação confortável
perdure o máximo de tempo possível.

125
Por sua vez, quem é de esquerda, no sentido determinado por Deleuze,
parece operar por estima, uma vez que o mais valorizado é o longínquo, o con-
torno mais distante: primeiro o mundo, depois o continente, o seu país e só en-
tão a rua e eu. Primeiro, olha-se para o horizonte e sabe-se que a injustiça da
fome e da violência contra pobres, negros, índios e outras minorias, por exem-
plo, não pode durar, porque é intolerável do ponto de vista da humanidade. Por
meio do sentimento de estima, opera-se, pela valorização da regra geral, que,
sem jamais indicar pessoas particulares e nomear proprietários (DELEUZE,
2001a, p. 46), põe em primeiro lugar a “posição de um interesse geral”, depois a
“posição do interesse de outrem” qualquer, mesmo que distante, estranho, dife-
rente, desigual e na “posição do consentimento de outrem” (DELEUZE, 2018, p.
158). Dar determinação à regra geral com a qual o mais longínquo é valorizado
exige, porém, a criação de outras regras gerais, que “devem se estender ao con-
junto da sociedade e não podem se curvar, nem por malevolência, nem por favor”
(HUME apud DELEUZE, 2001a, p. 46-47 [os grifos são nossos]), o que é feito pela
teoria do Direito.

***

O desafio propriamente moral e social, na interpretação de Deleuze com


Hume, é compor as parcialidades, as simpatias, em um todo mais ou menos har-
mônico, orientado pela estima, a fim de criar uma sociedade regida por um sis-
tema invariável, regulado institucionalmente (DELEUZE, 2001a, p. 35). Por-
tanto, moral, do ponto de vista positivo, para Deleuze, assim como para Hume, é
um problema de organização da sociedade civil, não um problema de limitação
nem de intromissão na vida familiar acerca da educação das crianças – das cores
que elas devem vestir, por exemplo –, mas dos adultos no âmbito social e estatal.
Assim concebida, a moral se confunde com a política: “a consciência moral é a
consciência política: a verdadeira moral é a política, como o verdadeiro mora-
lista é o legislador”9 (2001a, p. 36).
Desse modo, moral, política e Direito alinham-se, estão em pressuposição
recíproca e são a base das formações culturais, do frívolo mundo objetivo do
artifício. Constituem o sistema artificial de conduta capaz de liberar a restrição

9 Nos Cursos sobre Hume, Deleuze afirma: “Se a moral é alguma coisa séria, ela é o Direito. Pois não
se trata de mudar a natureza humana, mas de instaurar condições objetivas tais que os lados maus
da natureza não possam triunfar” (DELEUZE, 2018, p. 156). Algo aproximado ele já havia publicado
cinco anos antes em Empirismo e subjetividade, mas referindo não o Direito e sim a Filosofia política:
“Reencontramos aqui o princípio de toda filosofia política séria. A verdadeira moral não se dirige às
crianças na família, mas aos adultos no Estado. Ela não consiste em mudar a natureza humana, mas
em inventar condições artificiais objetivas tais que os maus aspectos dessa natureza não possam
triunfar” (2001a, p. 48).

126
das parcialidades produzidas pela simpatia, o que é vantajoso para a sociedade
e naturalmente acatado pelos indivíduos, uma vez que ele satisfaz,
obliquamente, indiretamente, portanto, as tendências. Assim, é natural que o
homem invente artifícios, pois a cultura é o meio que a natureza encontra para
atingir seus fins (DELEUZE, 2001a, p. 41). Eis o sentido da afirmação de Deleuze
em seu curso sobre Hume: “tudo está na natureza, mas nem tudo é natureza”
(2018, p. 123 [grifos do autor]).
O mais difícil nesse sistema artificial, entretanto, é “desviar a
parcialidade, obliquar” (DELEUZE, 2001a, p. 29), para que as condições de
coexistência sejam garantidas, a começar pelo respeito à integridade de cada um
e à propriedade. Há que se inventar modos de “obliquar” a simpatia e
transformá-la em estima. Para isso, a espécie inventiva da natureza criou uma
virtude artificial: a justiça. Hume (apud DELEUZE, 2001a, p. 46) justifica que,
“em razão de sua universalidade e de sua inflexibilidade absoluta”, as leis da
justiça não podem ser oriundas da natureza “nem ser criações diretas de uma
inclinação e de um motivo naturais”, portanto, as leis da justiça não podem ser
elaboradas a partir da simpatia, que nos é natural.
Hume e Deleuze confirmam, assim, o caráter estritamente artificial da
justiça e das leis, evidenciando que o senso de justiça não é natural, mas
artificial, produzido socialmente (DELEUZE, 2001a, p. 40). Contudo, a justiça e
as leis cumprem um princípio da própria natureza: “A justiça não é um princípio
da natureza, é uma regra, uma lei de construção [artificial, portanto], cujo papel
é organizar em um todo os elementos, os princípios da própria natureza” (DE-
LEUZE, 2001a, p. 36).
Em suma, a justiça é propriamente “o artifício do mundo da moral” que
promove a extensão da simpatia ao ponto de “estimar alguém sem ter
atualmente simpatia por ele” (DELEUZE, 2018, p. 123, 153). Nessa perspectiva,
a justiça não é restritiva, não limita as paixões, mas as amplia, dilata-as em
direção ao interesse do todo; o que ela coage é o movimento parcial das paixões,
corrigindo uma limitação da natureza (DELEUZE, 2001a, p. 40).

***

Posta a perspectiva deleuziana da lógica da constituição da teoria do ar-


tifício de Hume, podemos agora nos ocupar da questão “como funcionam a mo-
ral, a política e o Direito com vistas a inventar condições artificiais objetivas, de
tal modo que os maus aspectos da natureza humana não triunfem?”. Ou: “como
compor as parcialidades, as simpatias, em um todo mais ou menos harmônico,
pela estima, com vistas a criar uma sociedade regida por um sistema invariá-
vel?”. Ou: “como fazer justiça?”.

127
Tudo o que é prático – a moral, a política e o Direito – se orienta pelo as-
sociacionismo10: “O Direito, todo ele, é associacionista. O que pedimos a um ár-
bitro, a um juiz, é que aplique a associação de ideias, que diga com quem, com o
que a coisa está em relação no espírito de um observador em geral” (DELEUZE,
2001a, p. 60). Para responder ao que fazem o Direito e um juiz e, por extensão,
um legislador, ou alguém que ocupa um posto no executivo, no uso legítimo do
cargo, é preciso explicitar o associacionismo tal como pensado por Hume. Em
seu projeto de fazer uma ciência do homem, Hume é movido pela questão: “como
o espírito devém uma natureza humana?” (DELEUZE, 2001a, p. 12 [grifos do au-
tor]).
Antes de qualquer coisa, cada um de nós é um espírito dado; uma coleção
de ideias que não são mais do que impressões do dado; um conjunto de coisas
chamado imaginação, sem sistematização alguma; imaginação que ainda precisa
devir uma faculdade, porque antes disso ela é um lugar não fixado, que necessita
localização. Nessa condição, a imaginação tem uma única atividade “que carece
de constância e uniformidade”: puro delírio, fantasia. Delírio que reúne ideias ao
acaso e, ao percorrer o universo, é capaz de ligar a ideia de asa com a ideia de
cavalo, a ideia de fogo com a ideia de réptil e fazer seres monstruosos como ca-
valos alados e dragões de fogo.
Ainda não se é, porém, uma natureza humana. Para tanto, é preciso cons-
tranger “a imaginação e a fantasia que recusa deixar-se constranger” (DELEUZE,
2018, p. 125). Esse constrangimento se dá por leis, por regras que garantem a
constância e a uniformidade da imaginação. Tais leis são os princípios de asso-
ciação: semelhança, contiguidade e causalidade, cujo sentido e função é nos fa-
zer “passar de uma ideia a outra” e estabelecer “relações entre as ideias das re-
lações”, o que implica “buscar o que é universal e constante, uma natureza hu-
mana”. A universalidade e a constância não estão, portanto, nas ideias, que nada
mais são do que a representação de impressões, puro dado, mas “na maneira de
passar de uma ideia a outra – segundo certas regras, passo a certas ideias” (DE-
LEUZE, 2018, p. 124).
A associação é, então, distinta da imaginação, ela a afeta e faz com que
cumpra um papel: o de generalizar as ideias. Por seus princípios de
contiguidade, semelhança e causalidade 11 a “associação ultrapassa a
imaginação”, a torna uniforme em qualquer tempo e lugar (DELEUZE, 2001a, p.
14) realizando uma dupla ação: “selecionam certas ideias de sensação” e
produzem na imaginação uma “impressão de reflexão” a partir da ideia

10 “De fato, o associacionismo é somente a teoria de tudo o que é prático, é a teoria da ação, da moral, do
direito” (DELEUZE, 2001a, p. 149).
11 “Parece que cada um deles dirige-se a um aspecto particular do espírito: a contiguidade, aos sentidos; a

causalidade, ao tempo; e a semelhança, à imaginação” (DELEUZE, 2001a, p. 113).

128
complexa (DELEUZE, 2018, p. 127). Por exemplo: “pelo princípio de semelhança,
dou um mesmo nome a vários objetos: esse nome desperta em mim uma ideia
particular e, junto a essa ideia, a impressão de um poder, de uma virtualidade:
poder-se-ia, portanto, substituir qualquer outra ideia à qual o mesmo nome
conviria” (DELEUZE, 2018, p. 129). É o princípio de semelhança que permite que
uma ideia desperte na imaginação uma ideia semelhante a ela e a ponha em
contiguidade com outra. O mesmo se dá com os corpos: “Quando colocamos
corpos em ordem, nunca deixamos de posicionar contíguos uns aos outros
aqueles que se assemelham ou que, pelo menos, sejam vistos sob pontos de vista
correspondentes”.
Segundo Hume, fazemos isso “porque experimentamos uma satisfação
em unir a relação de contiguidade à de semelhança, ou a semelhança das
situações à semelhança das qualidades” (HUME apud DELEUZE, 2001a, p. 17).
Dentre os três princípios de associação, contudo, a causalidade tem um
privilégio basilar. Além de produzir uma relação, como a semelhança e a
contiguidade fazem, a causalidade produz também uma inferência a partir da
experiência da repetição dos casos semelhantes. Pela causalidade
ultrapassamos o dado, inferimos, cremos, passamos “à ideia de uma coisa que
nunca foi dada”, dizemos mais do que aquilo que foi dado, é o que nos permite
dizer “sempre”, “todas as vezes que” (DELEUZE, 2001a, p. 132). Em suma, as
relações que estabelecemos são efeitos dos princípios de associação que dão
constância ao espírito, tornando natural a passagem de uma ideia a outra.
Embora a imaginação seja coagida pelos princípios de associação que lhe
dão fixidez, uniformidade e universalidade, ela os utiliza para ultrapassar os
seus limites, ao ponto de, frente à coerência das mudanças produzidas pelos
princípios, fingir mais coerência ainda12. A imaginação passa a admitir a existên-
cia contínua dos corpos, apesar da descontinuidade de suas aparições, o que leva
a criar a ficção da identidade dos objetos, a qual “não concerne a tal ou qual ob-
jeto, mas sim ao sistema, o mundo criado pelas nossas percepções”. A partir daí,
a “fantasia pode doravante dizer: o princípio dos sentidos sou eu”13. Na crença
na existência desse suposto EU, cria-se a identidade pessoal e, apesar do fluxo
variável de impressões que experimentamos, cremos na “invariabilidade de

12 Para ilustrar isso, Deleuze dá o seguinte exemplo em seu curso é: “Ouço um ruído de porta, e um
carteiro surge diante de mim entregando-me uma carta de um amigo distante. Sou forçado a supor
que a porta, a escada, o oceano que me separa do amigo, continuaram a existir, mesmo que eu não
os percebesse. Quer dizer, a partir de um grau de regularidade, infiro um mais elevado grau. Confiro
aos objetos mais coerência do que aquela que observo em minhas percepções [,] afirmo a existência
do outro mesmo quando não o percebo” (DELEUZE, 2018, p. 141).
13 Há uma clara ressonância entre este primeiro livro de Deleuze e sua tese, Diferença e repetição, no que

diz respeito a pensar a identidade como secundária, como um efeito da diferença, da variação, que é
primeira.

129
uma coleção variável” (DELEUZE, 2018, p. 139). A ficção se torna, assim, princí-
pio de nossa existência e da existência do mundo.
Além dos princípios de associação, há ainda os princípios da paixão, que
se manifestam nos sentimentos estéticos, moral e jurídico (DELEUZE, 2018, p.
148). Tais princípios podem ser apresentados sob a forma geral de um “princí-
pio de utilidade”, o que nos faz perseguir um alvo, uma intenção, e organizar
meios com vistas a um fim (DELEUZE, 2001a, p. 110). Princípios da paixão “são
aqueles que escolhem as impressões de prazer e dor” (DELEUZE, 2001a, p. 128).
As paixões são divididas em diretas, que nascem imediatamente do bem e do
mal, da dor e do prazer (organizadas em dois grupos: orgulho e humildade –
“quando a emoção agradável ou desagradável produz a ideia do eu”; e amor e
ódio – “quando ela produz a ideia de uma outra pessoa”); e indiretas, cuja pro-
cedência é a mesma das anteriores – o bem e o mal, a dor e o prazer –, mas são
compostas por outras qualidades.
Para tanto, é preciso que uma relação de ideias se junte a um conjunto de
impressões (alegria, tristeza, esperança, medo, desejo, aversão, vontade):
“quando o bem e o mal são certos, há alegria ou tristeza; quando são incertos, há
esperança ou temor; quando são apenas considerados, há desejo ou aversão;
quando dependem de nós, há vontade” (DELEUZE, 2001a, p. 133). O problema
das paixões é que elas nos tornam parciais: “gostamos do que é contíguo, seme-
lhante, causa (o vizinho, o irmão, o pai)”. Em poucas palavras, são as paixões que
nos fazem agir por simpatia. O desafio é estender as paixões, “chegar a estimar
ou censurar uma ação ultrapassando a parcialidade da paixão” (DELEUZE, 2018,
p. 145).
Se, de um lado, os princípios de associação explicam que as ideias se as-
sociam, dão conta do pensamento em geral, de “hábitos do pensamento, das no-
ções cotidianas do bom senso, das ideias correntes, dos complexos de ideias que
respondem às necessidades mais gerais e mais constantes, e que são comuns a to-
dos os espíritos assim como a todas as línguas (DELEUZE, 2001a, p. 115 [grifos
do autor]), de outro, os princípios da paixão asseguram a singularidade do caso,
dão precisão às circunstâncias, pois explicam que tal ideia e não outra “esteja
associada a tal outra ideia em tal momento”. Como parte imprescindível de uma
casuística, os princípios da paixão também são universais e constantes, “defi-
nem leis onde as circunstâncias desempenham apenas o papel de variáveis”
(DELEUZE, 2001a, p. 117).
Em nossa leitura, quando Deleuze afirma que o Direito é associacionista,
além de ter que aplicar os princípios de associação para fixar as ideias e dar um
mínimo de constância e uniformidade às relações estabelecidas, se trata de apli-
car também os princípios da paixão para dar sentido prático aos arranjos das

130
ideias, bem como determinar as circunstâncias do caso. Tanto no que diz res-
peito ao Direito, quanto à moral e à política, os princípios da paixão são artifícios
inventados para que a vida em sociedade seja possível. No campo da ação, que é
o da moral, da política e do Direito, as circunstâncias são sempre determinadas
pela afetividade, uma vez que são elas as “variáveis que definem nossas paixões,
nossos interesses”.
Assim como um conjunto de circunstâncias singulariza “um sujeito, pois
representa um estado de suas paixões e de suas necessidades, uma repartição
de seus interesses, uma distribuição de suas crenças e de suas vivacidades” (DE-
LEUZE, 2001a, p. 116), também o Direito, para Deleuze, inventa “as condições
para a vida em comunidade e a criação de modelos institucionais de atividade, o
que deve estar associado a um trabalho de casuística, à capacidade de especifi-
cação em casos particulares, detalhando a topologia social” (BECKER, 2018, p.
157). Tal casuística será pensada por Deleuze a partir da noção de jurisprudên-
cia que inventa, a qual está bastante distante da jurisprudência que conhecemos
no Brasil. Para o objetivo desta exposição – que se propõe a determinar critérios
de avaliação para dizer se as instituições governamentais brasileiras estão fun-
cionando “normalmente” ou não – já temos elementos suficientes para concluir.

***

Quando trata de casos e suas circunstâncias referentes ao Judiciário, De-


leuze tece severas críticas ao trabalho dos juízes, sobretudo nos casos de arbí-
trio judicial que promovem, o que hoje conhecemos por “instabilidade jurídica”,
ainda que defenda uma perspectiva curiosa de jurisprudência não produzida pe-
los juízes, mas pelos “usuários” das instituições. Com a ajuda de José Rodrigo
Rodriguez, em Como decidem as cortes? (2013), podemos trazer tal perspectiva
crítica para o caso brasileiro, e veremos que ela faz eco a algumas análises refe-
rentes ao “ativismo jurídico” de juízes e ministros que agem de maneira perso-
nalista: “em função de uma argumentação não sistemática, fundada na autori-
dade dos juízes e dos tribunais” ao decidirem casos concretos a partir da reflexão
abstrata do Direito, tendendo a naturalizar os conceitos que utilizam, apresen-
tam-nos “como a única solução possível para o problema que os ocupa com a
utilização de argumentos de autoridade e erudição histórica para justificar sua
posição”. Afirma Rodriguez que, “também nesse caso, eles tendem a deixar de
demonstrar analiticamente a correção de sua posição perante a esfera pública”,
uma vez que estão mais preocupados com “o resultado do julgamento do que
com a reconstrução argumentativa de seus fundamentos e do fundamento dos
casos anteriores” (2013, p. 7 e 8 [grifos do autor]).

131
É preciso, porém, ressalvar que a perspectiva política e ética da filoso-
fia de Deleuze almeja ampliar as liberdades para garantir a existência e a inven-
ção de multiplicidades de modos de vida que divergem dos padrões, inclusive,
previstos em leis. Por essa razão, a ideia de Direito e de jurisprudência do autor
não pode ser assimilada àquela das instituições jurídicas das pseudodemocra-
cias em que vivemos. Eis um perigoso uso ilegítimo da noção: compreender que
a criação do Direito se dá por jurisprudência e que tal poder cabe aos juízes.
Especialmente se forem usos feitos por juízes que sentenciam por simpatia e
não por estima, tendo em vista não o longínquo, a humanidade, mas os seus pró-
ximos ou os seus interesses políticos particulares, bem como deliberam sobre a
singularidade do caso, orientados por paixões não estendidas que acabam por
incidir na parcialidade e na inconstância do próprio Direito.
Atualmente, ao menos academicamente, é corrente a interpretação de
que as instituições governamentais do Estado sejam independentes e tal inde-
pendência é central para a promoção e aferição de valores democráticos, tais
como a liberdade e a igualdade, o que só pode ser alcançado por meio da valori-
zação do respeito à ordem constitucional, pela proteção da liberdade e repulsa
ao arbítrio (BRASIL, STF, 2008). No que toca ao Judiciário, cabe a aplicação da
lei ao caso concreto, mas não se trata de qualquer aplicação. Não uma aplicação
arbitrária, abusiva, fundamentada em frágeis ilações ou convicções pessoais,
para posterior fundamentação/justificação legal de suas convicções. Está ve-
dada aos magistrados a realização de relações a partir de causas estranhas, as-
sociar ideias sem constituir um complexo de ideias associadas que atenda às ne-
cessidades comuns aos espíritos e às línguas, como requer o associacionismo. Se
isso ocorre, ficam fragilizadas as instituições, aquilo que atende nossas tendên-
cias, justamente o “lastro” de nossa vida em sociedade.
Ministros do STF, por certo, sabem disso. Vejamos o caso do julgamento14
da ação de uma desembargadora do Mato Grosso do Sul que, no uso de seu cargo,
tirou seu filho do cárcere com um mandado de prisão ainda em vigência: para o
relator do processo, a desembargadora extrapolou o razoável. O filho dela foi
preso em flagrante por porte ilegal de arma. Em suas palavras: “Essa mãe coin-
cidentemente era desembargadora e ela deixou confundir o cargo com o deses-
pero da mãe. E ela extrapolou. Sob o ângulo institucional, ela se deixou levar pelo
instinto materno”. Ao apresentar seu voto, outro ministro diferenciou clara-
mente simpatia de estima: “É impossível não ser solidário a essa mãe e a essa
senhora. Como mãe e pessoa, ela está perdoada. Porém, como agente do Poder
Judiciário, esses fatos não comportam análise em mandado de segurança”.

14Conf. <https://www.conjur.com.br/2018-dez-18/stf-julga-desembargadora-buscou-filho-prisao-carro-
oficial>. Acesso em: 26 jun. 2019.

132
Nem sempre, contudo, juízes e ministros têm agido em suas funções com
tal clareza e distinção. Não é preciso se demorar em casos do Judiciário brasi-
leiro em que a simpatia tem sido determinante; eles estão escandalosa e cansa-
tivamente presentes em nossos dias. O que nos leva a concluir que, nesses casos,
a justiça não está presente nessa instituição. Portanto, o Judiciário brasileiro não
está funcionando “normalmente”, uma vez que são públicas suas atuações mo-
vidas pela simpatia. E o Legislativo e o Executivo brasileiros têm atuado por sim-
patia ou por estima?
O IBAM – Instituto Brasileiro de Administração Municipal –, na sexta
edição do livro O Vereador e a Câmara Municipal (2016), preceitua que as
atribuições de um vereador são: promover o bem comum e apresentar
comportamento democrático. No exercício da função política, ao vereador,
individualmente, e à Câmara, coletivamente, cabe-lhes voltarem-se para a
“realização do bem comum, que se opõe ao egoísmo, aos interesses particulares,
às ações que beneficiam apenas uns poucos em detrimento da maioria. Age
contra o bem comum o político ou o administrador que atua em defesa de seus
próprios interesses ou dos interesses de seus parentes e amigos”15. No entanto,
em pesquisa recente realizada em torno da atuação de vereadores de municípios
brasileiros, para o cientista político e professor Dr. Jairo Nicolau (UFRJ), “o que
alimenta a vida política em pequenas cidades não são grandes debates
ideológicos nacionais, pelo menos nas Câmaras Municipais [.] a divisão se faz
por questões como preferências pessoais, futebol, famílias, alguns conceitos que
remetem à Primeira República”16.
Parece que, em certa medida, isso se expande para o Legislativo nacional.
Basta vermos alguns dados referentes aos pronunciamentos de deputados na
sessão de votação pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 18 de
abril de 2016:

O G1 contabilizou 58 menções a Deus nas falas de 50 deputados federais


(quase 10% da Casa). O próprio presidente da Câmara, Eduardo Cunha
(PMDB-RJ), o evocou ao dar o seu “sim”. “Que Deus tenha misericórdia
desta Nação”, afirmou. [.] A palavra ‘família’ também foi bastante profe-
rida assim que teve início a votação (mais de 110 vezes). Os filhos foram
utilizados como justificativa para o voto por 72 parlamentares, que tam-
bém fizeram homenagens a pais, esposas e netos. O deputado Marcelo Ál-
varo Antônio (PR-MG) chegou a voltar ao microfone, quatro deputados

15 O IBAM atualiza o livro que edita há vários anos e se destina a contribuir com os que lidam, direta
ou indiretamente, com o Poder Legislativo municipal, em:
http://www.ibam.org.br/media/arquivos/estudos/vereador6ed2016.pdf. Acesso em: 26 jun. 2019.
16 Conf. <https://epoca.globo.com/politica/noticia/2018/06/vida-politica-em-jataizinho-cidade-onde-todo

s-os-vereadores-sao-de-legendas-diferentes.html>. Acesso em: 26 jun. 2019.

133
após sua fala, para dizer que havia esquecido de “mandar um abraço” para
o filho17.

No primeiro quadrimestre da legislatura iniciada em 2019, da Câmara


dos Deputados, foram concedidos passaportes diplomáticos a pelo menos 404
filhos e cônjuges de deputados, sendo que apenas 144 deputados têm o direito
de requerê-los. De acordo com a presidência da Casa e o Itamaraty, não há
irregularidades na emissão desse documento, que garante privilégios em
viagem ao exterior18. Se, de fato, porém, não há irregularidades, tal declaração
sugere que a própria regra foi determinada por simpatia e não por estima.
Um último exemplo recente é o caso do atual Executivo nacional.
Certamente encontraremos outros de mandatos anteriores, mas este é “a bola
da vez”. Depois de ter premiado dois de seus filhos, por duas vezes em um mês,
com medalhas de alta honraria nacional 19 , o presidente indicou o seu filho
deputado federal para embaixador brasileiro nos Estados Unidos, sendo que,
desde a redemocratização do país, quem sempre ocupou o mais alto cargo da
Embaixada em Washington foi um diplomata de carreira, formação que o
indicado não possui. Os motivos alegados são muitos, nenhum deles, porém, se
mostra orientado pelo critério da estima. Ao contrário, a lógica do clã, orientada
pela simpatia, impera nas declarações públicas do presidente, a mais
surpreendente, do ponto de vista do que apresentamos aqui, é a respeito da
proximidade que sua família tem com a família Trump20, o atual presidente dos
EUA, que também teria cogitado nomear um de seus filhos para ser embaixador
americano no Brasil21 – o que foi negado por seu filho22.
Não sabemos como as demais instituições envolvidas atuarão frente a
tal indicação. Cabe ao Senado, responsável pela escolha, e ao STF, que julgará os
prováveis mandados de segurança contra a nomeação, caso ocorra, tornarem
público o critério utilizado para decidir. Paremos por aqui. Se o critério para que
nossas instituições funcionem “normalmente” for a justiça, a qual deve estar ori-

17 Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/processo-de-impeachment-de-dilma/noticia/2016/04/


deus-filhos-veja-os-termos-mais-citados-na-votacao-do-impeachment.html>. Acesso em: 26 jun. 2019.
18 Conf. <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/05/07/camara-concede-passaporte-dip

lomatico-a-404-filhos-e-conjuges-de-deputados.htm>. Acesso em: 26 jun. 2019.


19 Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-condecora-os-filhos-eduardo-flavio-pela-

segunda-vez-em-menos-de-um-mes-23682462>. Acesso em: 26 jun. 2019.


20 Conf. <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2019/08/05/bolsonaro-indicado-

para-embaixada-tem-que-ser-filho-de-alguem-por-que-nao-meu.htm>. Acesso em: 13 ago. 2019.


21 Conf. <https://oglobo.globo.com/mundo/trump-cogita-nomear-filho-eric-embaixador-no-brasil-em-

troca-com-eduardo-23802257>. Acesso em: 13 ago. 2019.


22 Conf. <https://oglobo.globo.com/mundo/filho-de-trump-nega-hipotese-de-assumir-embaixada-em-

brasilia-23817005>. Acesso em: 13 ago. 2019.

134
entada pela estima, quando o mais longínquo está em primeiro plano e o parti-
cular em último, podemos concluir que nossas instituições governamentais não
estão funcionando.

Referências

BECKER, Rafael Cataneo. Natureza e Direito em Gilles Deleuze. O problema da forma nos
seus primeiros escritos. (Tese de Doutorado em Direito PUC/RJ). 2018.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Discurso proferido pelo Ministro Celso de Mello,
em nome do Supremo Tribunal Federal, na solenidade de posse do ministro Gilmar Mendes,
na Presidência da Suprema Corte do Brasil, em 23/04/2008. Disponível em: <http://bibli
otecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/download/41536/40884>. Acesso em: 13
ago. 2019.
DELEUZE, Gilles. Conversações, 1972 – 1990. Tradução: Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro:
Editora 34, 1992.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Tradução: Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34,
1997.
DELEUZE, Gilles. Empirismo e subjetividade: ensaio sobre a natureza humana segundo
Hume. Tradução: Luiz Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2001a.
DELEUZE, Gilles. O abecedário de Gilles Deleuze. Vídeo. Editado no Brasil pelo Ministério
de Educação, “TV Escola”, 2001b.
DELEUZE, Gilles. A ilha deserta: e outros textos. Edição preparada por David Lapoujade.
Organização da edição brasileira e revisão técnica Luiz B. L. Orlandi. São Paulo:
Iluminuras, 2006.
DELEUZE, Gilles. Curso sobre Hume (1957-1958). In. Cartas e outros textos. Tradução:
Luiz Orlandi. São Paulo: n-1 edições, 2018.
DOSSE, François. Gilles Deleuze e Félix Guattari: biografia cruzada. Tradução: Fátima
Murad. Porto Alegre: Artmed, 2010.
HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Tradução: Déborah Danowski. São Paulo:
Unesp, 2000.
IBAM - Instituto Brasileiro de Administração Municipal. O Vereador e a Câmara Munici-
pal, 2006. Disponível em: <http://www.ibam.org.br/media/arquivos/estudos/verea-
dor6ed2016.pdf>. Acesso em: 26 jun. 2019.
RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes? Para uma crítica do direito
(Brasileiro). Rio de Janeiro: FGV, 2013.

135
UM BREVE COMENTÁRIO SOBRE
O CONCEITO DE TRABALHO NO JOVEM HEGEL
(1802-1803)

RICARDO PEREIRA DE MELO1

As transformações da modernidade operaram, significativamente, na


sociabilidade do homem com o advento do capitalismo e provocaram profundas
mudanças na forma de agir e pensar do homem moderno na Europa a partir dos
séculos XVII e XVIII. A difusão do progresso técnico, a expansão do trabalho livre
e assalariado, Reforma Protestante, Revolução Francesa e o desenvolvimento da
economia industrial-comercial constituíram o resultado político e social dos
acontecimentos da história universal. Esses acontecimentos, do ponto de vista
do indivíduo, significaram, segundo Drummond, uma nova fase do capitalismo
em que:

[...] o indivíduo ganha este direito através do qual o burguês adquire


personalidade livre ao exercer o estado permanente de autonomia do
interesse individual. Nenhuma sociedade antiga ou medieval teve
organização socioeconômica sem a tutela do poder político ou religioso,
ou de ambos, e, por isso, jamais instituíra uma sociedade civil
propriamente dita enquanto momento social do interesse privado
adquirido pelo burguês na Modernidade (DRUMMOND, 2006, p. 421).

É neste contexto que o tema trabalho percorre toda a obra hegeliana2.


O indivíduo livre que vende sua força de trabalho no mercado para obter em
troca um salário na forma de dinheiro e desta comprar produtos para suprir as

1
Professor do Mestrado Profissional em Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-
mail: ricardo.melo@ufms.br - Orcid: <https://orcid.org/0000-0002-4234-0471?lang=pt>
2 Sobre as mudanças sócio-históricas do período vivido por Hegel, ver Lowith (2014), Taylor (2014),

Lukacs (2018), Marcuse (1969) e Beckenkamp (2009).

137
suas vontades: essa é a marca da oikonomia moderna. Todo o processo depende
que o trabalhador se encontre livre no mercado e, por meio do seu trabalho,
realize as suas necessidades. Na Modernidade, o homem torna-se social e
político a partir do trabalho.
Desde a juventude de Hegel, passando pela Fenomenologia do Espírito
até a Filosofia do Direito, o trabalho é o alicerce da formação social (Bildung) do
indivíduo e a transformação da realidade (Das Negativ). Em um sentido mais
amplo, o trabalho é a mediação necessária que faz emergir uma sociedade mais
justa e igual. O indivíduo que trabalha realiza uma atividade prática e teórica, ao
fazer do mundo sua imagem e afinidade3, tanto do ponto de vista técnico quanto
do ponto de vista humanitário e civilizatório.
Assim, partiremos dos escritos hegelianos da juventude para buscar
compreender melhor a mediação possível do agir do trabalho. Seguindo os pas-
sos de interpretação de Schäfer (2012), no caso, citando o filósofo Adolfo Sán-
chez Vázquez, em seu livro Filosofia da Práxis, o autor indica três momentos na
obra juvenil de Hegel que aparece os primeiros desenvolvimentos do conceito
de trabalho anteriores à Fenomenologia do Espírito: 1º) Fragmento de sistema
de 1800; 2º) O sistema da vida ética de 1802-1803 e; 3º) nos cursos da
Realphilosophie de 1803/1804 e 1805/18064.
Ao tratar sobre os estudos do jovem Hegel sobre o trabalho, destaco
aqui dois textos escritos por volta de 1802-1803: o primeiro, publicado no
Kritisches Journal der Philosophie, em dois fascículos (1802 e 1803), com o título
Sobre as maneiras científicas de tratar o direito natural publicado em novembro
de 1802. O segundo texto não foi escrito para publicação, mas trazendo pela
primeira vez, uma apresentação do desenvolvimento do sistema da eticidade e
ficou conhecido na história do pensamento hegeliano como System der
Sittlichkeit, ou simplesmente, conforme a tradução portuguesa do livro como
Sistema da vida ética (BECKENKAMP, 1998)5.

3 Para Lowith, Hegel via que “o trabalho não é uma atividade econômica particular, diferente por exemplo
do ócio ou do jogo, mas o modo fundamental pelo qual o homem produz sua vida e então configura o
mundo” (2014. p. 289).
4 Ver também o importante livro O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista de György

Lukács traduzido recentemente no Brasil. Na mesma linha de pesquisa, consultar Lowith (2014, p. 290) e
Beckenkamp (2009, p. 11-41).
5 Segundo Beckenkamp (1998, s/n), o título de System der Sittlichkeit não foi dado por Hegel, “remonta à

biografia de Rosenkranz (1844), o primeiro a mencionar o texto”. Nesse mesmo artigo, Beckenkamp traz
a trajetória de tradução e divulgação desse texto de Hegel: “Tem-se depois a história das edições, sendo a
primeira de 1893, sob os cuidados de G. Mollat, uma edição parcial do texto. Em 1913, G. Lasson
apresentou uma edição completa do mesmo, em G. W. F. Hegel, Schriften zur Politik und
Rechtsphilosophie, pela editora Felix Meiner, a qual lançou em 1967 uma edição em separado do texto
estabelecido por Lasson, com o título de System der Sittlichkeit. Finalmente, a edição crítica aparece em
GW 5. Merece menção ainda a edição do texto preparada por G. Göhler e lançada em 1974, em G. W. F.
Hegel, Frühe politische Systeme, onde se encontra já um apanhado de textos constitutivos da história de

138
É nesse último escrito de 1802-1803 que Hegel incorpora a economia
política de Adam Smith em seu sistema, especialmente o momento da divisão do
trabalho 6 , já exaustivamente analisada em A riqueza das nações. Não é de
estranhar que Hegel vai buscar nos economistas ingleses a chave para pensar a
sociedade moderna, pois todo o problema epistemológico de pensar a
organização da pólis é refletir sobre a questão do trabalho. Não resta dúvida que
os conceitos de trabalho, produção e consumo, Hegel herdou dos economistas
clássicos ingleses, como Steuart, Fergunson, Hume, Smith e Ricardo e elevou
esse conceito, em momentos diferentes em sua obra, ao nível da filosofia.
Para esse trabalho, iremos abordar o fragmento conhecido como O
sistema da vida ética de 1802-1803, que tem como objetivo discutir a
importância do pensamento hegeliano sobre as questões relativas ao conceito
de trabalho. Nesse artigo, apesar de um breve comentário, vou procurar
mostrar, utilizando-me de diversas referências, como o conceito de trabalho
aparece nos primeiros escritos de Hegel como um problema típico da economia
política de Adam Smith.

II

Adam Smith, expoente da economia política clássica inglesa, procurou


fazer uma análise econômica da sociedade com o objetivo de explicar a divisão
social do trabalho, a formação dos preços e a origem da riqueza. Em A riqueza
das nações publicada em 1776, Smith abre a sua obra magna colocando como
ponto central a divisão do trabalho e o papel que essa divisão exerce sobre a
economia. Nota-se que já no primeiro parágrafo, ele indaga:

O maior aprimoramento das forças produtivas do trabalho, e a maior


parte da habilidade, destreza e bom senso com os quais o trabalho é em
toda parte dirigido ou executado, parecem ter sido resultados da divisão
do trabalho (SMITH, 1983, p. 41, grifos RPM).

Na análise de Smith sobre o capitalismo, foi a divisão do trabalho que


transformou uma atividade geral (trabalho para subsistência) em atividade es-

sua recepção. Por fim, tem-se o problema de sua datação, sendo hoje consenso seguir a sugestão de H.
Kimmerle, que coloca sua redação no semestre de outono/inverno de 1802 para 1803, portanto logo em
seguida ao artigo sobre o direito natural”. Consultar também Beckenkamp (2009, p. 205-206).
6 Para Lukacs (2018, p. 435) a grande virada do pensamento de Hegel em relação ao idealismo alemão foi

exatamente o exame filosófico das categorias econômicas, principalmente a concepção de trabalho


analisada por Adam Smith. Também Waszek (2011, p. 67): “Gostaria de dizer disto, em outros termos,
que a retomada e a discussão por Hegel da economia política desempenharam uma função fundadora na
elaboração de sua concepção de modernidade, e no reconhecimento de que lhe é constitutivo”.

139
pecífica (a fabricação de alfinetes). A forma como a fabricação de alfinete é exe-
cutada no capitalismo, mostra não somente como o trabalho se constitui dentro
de uma indústria específica, mas como a divisão do trabalho está dividida em
uma série de setores, que por sua vez, a maior parte constitui um “ofício especial”.
Os operários conseguirão ser mais produtivos, não porque são mais
hábeis ou treinados para o uso das máquinas, mas simplesmente “em virtude de
uma adequada divisão do trabalho e combinação de suas diferentes operações”
(SMITH, 1983, p. 42). Quando o operário trabalha sozinho, no exemplo citado
por Smith, ele produziria, mesmo que habilidoso e treinado no ofício, no máximo
20 alfinetes por dia. Agora, aplicando a divisão do trabalho, dividindo cada etapa
na confecção do produto, no final do processo cada operário trabalhando no
setor fabril conseguirá produzir cerca de 4.800 alfinetes. Dessa forma, a experi-
ência mostra à teoria de Smith (“vi uma pequena manufatura”) a superioridade
da divisão das atividades no interior da indústria e, consequentemente, uma
maior produtividade.
A divisão do trabalho não é obra do acaso, mas ela é consequência
necessária das faculdades humanas. Dessa forma, na teoria de Smith, a divisão
do trabalho é a extensão da natureza humana e a riqueza de um país é fruto do
próprio trabalho. A divisão do trabalho e, consequentemente, a extensão do
mercado ampliam as necessidades individuais, mas ao mesmo tempo,
aprisionam o homem ao mercado.
Para Smith, a natureza humana é movida para permuta ou troca de
objetos no mercado e, com isso, percebe-se toda a manobra de Smith em mostrar
a naturalização das relações de troca como um processo “lento e gradual” da
evolução humana, pois para ele, a troca é presente e permanente na natureza
humana.
Hegel percebe na juventude, seguindo os passos de Smith, a conexão
dialética dos aspectos da divisão do trabalho e a história socialmente
progressiva da humanidade. Como ressalta Lukacs (2019, p. 445), Hegel é “um
pensador demasiadamente sério e honesto” teve uma visão abrangente sobre a
evolução do capitalismo, assim como o Smith (e também David Ricardo) e,
percebeu o caráter progressista do desenvolvimento da técnica, da divisão
social do trabalho, assim como, a desumanização do trabalhador assalariado.
No Sistema da vida ética, Hegel expõe as categorias econômicas apoia-
das nas concepções de Schelling e agrupadas em forma de tríades e assumem,
no sistema filosófico, os famosos silogismos hegelianos. A primeira parte da
obra, Hegel inicia com a tríade necessidade-trabalho-fruição e, a partir dessa
análise, progredir para a questão da posse do produto do trabalho.
Contudo, essa recepção da obra de Smith no System der Sittlichkeit é até
hoje bastante controvérsia. No importante estudo de Waszek (1988) sobre as

140
referências de pesquisa sobre a economia política7, principalmente consultando
o Katalog de estudos do filósofo alemão, indicam que Hegel teve uma importante
orientação sobre as investigações dos trabalhos de Smith, Say, Ricardo e Steuart
no período de Iena (1801-1807). Entretanto, segundo as teses de Waszek
(1988), Hegel não teve um conhecimento aprofundado de Say e Ricardo, pois
não se encontram nos textos citações ou comentários diretos das obras de am-
bos os autores. Provavelmente, o conhecimento que obtinha da atualização da
nova ciência era por meio de revista de divulgação científica8. Segundo Ramón:

Hegel era, un ávido lector de revistas y periódicos y de que tomando, tan


sólo la base del Edhinburg Review, el Morning Chronicle y el Jenaische
Allgemeine Literatur-Zeitung, revistas académicas seguidas por Hegel,
tendríamos que considerar que el filósofo alemán, en efecto, podría haber
estado en contacto con artículos, reseñas y panfletos de o sobre Smith,
Ricardo, Say, Malthus, Torrens, Rau entre otros, de un modo tal que podría
haber extraído elementos generales de reflexión, y hasta conceptos
analíticos de esas fuentes secundarias y de divulgación, antes bien que de
los tratados sistemáticos mismos de los autores (RAMÓN, 2018, p. 16).

Mesmo na obra smithiana, Hegel limitou-se aos primeiros capítulos de


A riqueza das nações, como a divisão do trabalho (capítulo I), a origem da pro-
pensão humana para a troca (capítulo II), a extensão do mercado (capítulo III),
a origem do dinheiro (capítulo IV) e a tese do valor de troca, preço e dinheiro
(capítulo V). “Tudo o que Hegel diz sobre trabalho abstrato, troca, valor e di-
nheiro se encontra nestes capítulos iniciais da obra de Smith” (BECKENKAMP,
2009, p. 245). Hegel não consegue dar conta da tese fundamental da economia
política: a teoria do valor-trabalho. Segundo Beckenkamp:

A análise econômica de Hegel não chega, portanto, a incorporar uma série


de desenvolvimentos essenciais de A. Smith, sendo apressada a tese de
que se encontra à altura da teoria econômica deste. O aspecto mais
importante ignorado por Hegel é certamente o da oposição entre capital

7 Segundo as pesquisas terminológicas de Waszek (2011, p. 59-61), o termo “economia política”


(politische Ökonomie), assim como “economia nacional” (Nationalökonomie) são utilizados amplamente
nas obras de Hegel que denotam um conhecimento avançado dos novos termos da ciência da riqueza,
apesar que é usual na obra hegeliana outros termos advindos do “cameralismo”, tais como, Staatsökonomie
e Staatswirtschaft. Para Waszek (2011, p. 63), em relação ao “cameralismo”, é importante destacar que
“Hegel toma suas distâncias em relação a esta tradição; e que, nesta tomada de distância por relação à
tradição cameralista, os autores escoceses que nós temos nomeados lhe foram de grande ajuda”.
8 Nessa mesma direção, Lukacs afirma que “Hegel não escreveu nenhuma economia específica como parte

concluída de seu sistema filosófico; suas concepções econômicas sempre constituem apenas parte de sua
filosofia da sociedade” (2018, p. 431) e, “[...] Hegel é um partidário de Adam Smith no campo econômico.
Isso obviamente não significa que ele estaria no nível de Smith ao tratar de todos os problemas importantes
da economia” (2018, p. 436); “Não havia naquela época na Alemanha uma realidade econômica do
capitalismo, cuja observação autônoma e cuja pesquisa autônoma tivessem dado a Hegel a possibilidade
de formular um juízo crítico a Smith” (2018, p. 449).

141
e o trabalho, claramente descrito por Smith, um tópico que viria a
constituir o âmago da crítica da economia política de Marx, o qual não
pode, por conseguinte, ser posto neste sentido na linha de continuidade
com Hegel, mesmo sendo inegável que a incorporação do momento
econômico ao sistema filosófico hegeliano é uma fato decisivo para que a
geração de Marx dê maior atenção a este aspecto (BECKENKAMP, 2009,
p. 246)

Nos capítulos seguintes de A riqueza das nações, Smith irá defender a


ideia de que o valor é a quantidade de trabalho contido na mercadoria é “exata-
mente igual à quantidade de trabalho que essa riqueza lhes dá condições de
comprar ou comandar” (SMITH, 1983, p. 63). Essa afirmação está presente em
dois parágrafos do capítulo V e mostra um Smith confuso em qual seria o verda-
deiro valor das mercadorias e qual é a sua real determinação quantitativa. En-
tão, para Smith, o valor (valor de troca) é medido pela quantidade de trabalho
contido na mercadoria ou é a capacidade de comandar outros trabalhos? Qual é
a determinação quantitativa do valor de troca? Essa dualidade estará presente
no restante de A riqueza das nações, principalmente nas partes dos fatores que
compõem o preço da mercadoria (salário, lucro e renda da terra). Mais tarde,
essas duas concepções de valor darão origem à duas escolas de economia polí-
tica: de um lado, a escola de interpretação do valor-trabalho (contido) de Ri-
cardo e; do outro lado do debate, a escola utilitarista do valor de mercado de Say
(comandado).
Para Waszek (2011, p. 61), é surpreendente que os nomes de Say e
Ricardo, cujas as interpretações da teoria do valor-trabalho de Smith são tão
díspares, Hegel os integre no mesmo patamar de análise na Filosofia do Direito
e, é ainda mais surpreendente, segundo Waszek, que o economista mais
influente na Inglaterra pós-Smith, David Ricardo, não seja tratado ou nomeado
em sua obra, como uma parte específica do desenvolvimento da ciência da
economia. Ainda para Waszek (2011, p. 63), “Hegel teve conhecimento até o fim
de sua vida, por intermédio do círculo de seus discípulos (Carové e Gans, por
exemplo), das ideias econômicas e sociais mais recentes vindas da França;
aquelas de Saint-Simon e de Fourier”. Mesmo assim, encontra-se muito pouco
de uma análise mais detalhada da discussão sobre economia política.
Apesar dos elogios de diversos autores contemporâneos, inclusive de
Marx, Hegel pouco avançou no argumento das análises econômicas (valor,
dinheiro, acumulação, capital), fixando-se quase que exclusivamente aos
aspectos do trabalho. Em parte, isso se explica por que, segundo Waszek (2011,
p. 57), Hegel nunca considerou a economia política como parte do Sistema
Filosófico, apesar que desde a juventude tratou de problemas de economia. Isso
não impediu de fazer importantes análises sobre o pensamento de Smith e seus

142
contemporâneos. Contudo, deve-se reconhecer os importantes avanços sobre a
questão da apropriação do trabalho, principalmente da obra smithiana, que em
diversos momentos, Hegel mostra o problema da alienação econômica da
sociedade moderna.
Para Hegel em Iena (1801-1807), a economia política constitui uma
totalidade orgânica, que correspondem a um emaranhado infinito de
necessidades (Bedürfnisse) entrelaçados por um sistema de dependências
recíprocas. Esse sistema é o lado da existência real de um povo (Volk) 9 ,
constituído pelas necessidades físicas, mediado pelo trabalho, das pessoas
concretas. Essa análise feita por Hegel em 1802-3, antecipa alguns pontos que
ele irá tratar duas décadas mais tarde na Filosofia do Direito, principalmente a
ideia de “perda da eticidade” na sociedade civil-burguesa (bürgerliche
Gesellschaft)10. Contudo, para Drummond:

Hegel considera a Economia Política uma ciência especializada para


racionalizar o sistema de carência que prevalece no momento da
sociedade civil. Não a considera, pois, Teoria Social, visto que isto fugiria
ao restrito limite de uma administração localizada das carências, além de
fundar um falso princípio de liberdade – a liberdade de mercado – para
confinar aí as possibilidades de organização humana. Tal princípio de
uma ciência especializada como a Economia Política inviabilizaria, para
Hegel, o exercício da Ética e da Política e, consequentemente, o núcleo que
as efetiva: a liberdade concreta (Drummond, 2006, p. 433).

No comentário do texto de Iena, Beckenkamp apresenta a economia de


Hegel da seguinte forma:

A esfera da economia política apresenta tão-somente os extremos da


correlação em que a totalidade se põe na contraposição, necessidade
contra necessidade, posse contra posse e, em geral, determinidade contra
determinidade. E mesmo nos extremos da correlação em que está posta a
totalidade Hegel identifica um sistema, norteando-se para tanto pelas
investigações dos economistas (Steuart, Smith) (BECKENKAMP, 2009, p.
220).

Em síntese, a origem da economia política é a ação racional do homem


diante da Natureza mediada pelo trabalho. Somente pelo trabalho, ação racional
humana satisfaz seu apetite individual e, ao mesmo tempo, transforma a
Natureza. Essa mudança é a “externalização” da Ideia, um télos, a concreticidade

9 Segundo Beckenkamp (2009, p. 219), “Hegel traduz por Volk (povo) o conceito central do pensamento
político grego, a saber, polis”.
10 O termo a bürgerliche Gesellschaft é “a expressão alemã comummente adoptada (sic) na literatura local

da época para designar o mundo urbano, na verdade tipicamente burguês, das classes mercantis e
industriais, por contraposição ao mundo agrário” (ALVES, 2004, p. 141).

143
da Razão no mundo. O enigma da economia política clássica é mostrar,
cientificamente, como pela ação do trabalho com terminada técnica produtiva
(progresso técnico), a Natureza é transformada em “coisa”
(mercadoria/produto) e, como essas coisas são apropriadas pelo conjunto da
sociedade política. Para Lima Vaz:

A natureza começa a aparecer como pólo da relação do trabalho, e a


"tragédia no ético" ("Sistema da vida ética", 1802) surge da oposição
entre a satisfação das necessidades (liberdade como arbítrio) e a
totalidade ética, oposição que começa a ser superada com a
universalização do trabalho livre e a nova oposição entre o homem
privado (bourgeois) e o cidadão (LIMA VAZ, 1980, p. 23).

O evento da Revolução Francesa em 1789, que despertou grande


interesse em Hegel desde a sua juventude, vai significar na Filosofia do Direito
de 1821 o advento da sociedade civil-burguesa (bürgerliche Gesellschaft)
simbolizado na ideia de indivíduo livre e a superação do patrimonialismo do
sistema feudal. O princípio da personalidade de direito é a ascensão da sociedade
civil-burguesa (bürgerliche Gesellschaft) e o reconhecimento dos direitos
individuais no convívio social de pessoas concretas em um mundo para além dos
princípios da esfera familiar11. O reconhecimento na sociedade não é o prolonga-
mento da economia familiar (oikos-pólis), mas é o espaço autônomo das vontades
livres no qual todos os seus contratantes se reconhecem enquanto personalidades
jurídicas portadores de direitos no mercado. Pode-se dizer que o mercado é o lócus
ético-político do indivíduo livre e, nesse sentido, Hegel mostra o interesse em com-
preender os elos da economia política de Smith, Say e Ricardo12.

III

A Modernidade é o resultado de um longo processo histórico de


individuação e atomização do homem perante à natureza e aos seus
semelhantes. Esse processo destruiu os vínculos diretos e naturais com a vida

11 Na análise de Drummond sobre a fenômeno da sociedade civil-burguesa na Europa no final do século


XVIII e início do século XIX: “O primeiro fundamento da sociedade civil é o fim particular que a pessoa
concreta expressa para si no momento de convívio social. Neste momento, a pessoa concreta é um ser de
carência que conjuga necessidade externa e vontade arbitrária. Mas o convívio impõe um meio universal,
a exemplo do Estado, para manter a inexorável relação social entre pessoas concreta, por força das suas
necessidades recíprocas, segundo regras comuns de convivência” (Drummond, 2006, p. 426).
12 Segundo Beckenkamp (1998) “o Sistema da eticidade retoma a determinação aristotélica do agir

humano em vista de um bem que satisfaz uma necessidade ou carência”. Para Lima Vaz existe “[...] um
esforço [de Hegel] para conciliar a concepção aristotélica da "vida política", expressão de uma
anterioridade de natureza da comunidade política com relação aos indivíduos, e a recente descoberta da
Economia política moderna e do individualismo da sociedade do trabalho livre” (LIMA VAZ, 1980, p.
22). Na última parte desse artigo, discutiremos melhor sobre essa mediação do trabalho.

144
comunitária e transformou os seus membros ausentes de uma “comunidade
orgânica”. De um modo geral, a filosofia política de Hegel procurou entender
essa separação entre homem e a “comunidade orgânica”, entre a adequação dos
ideais da pólis antiga grega, a recepção crítica do direito natural de Hobbes a
Rousseau e a economia política liberal.
A sociedade moderna constitui-se dentro dos pilares representados
pela propriedade privada, o direito e o Estado constitucional, o que permitirá a
passagem dos vínculos naturais para vínculos formais-institucionais. Para
Hegel, essa sociedade moderna representa o momento da “cisão” (En-
tzweiung)13 ou da “perda da eticidade” ou “perda da substancialidade”, pois o
homem tem uma carência provocada pelo divórcio entre ele e a Natureza.
Na modernidade, essa separação provocou um abismo entre sujeito e
objeto, teórico e prático, manual e intelectual e privado e público. Dentre essas
cisões, a principal se encontra na concepção do trabalho.
Ao produzir a cultura, ação e resultado do trabalho14, o homem vai de si
para si mesmo, num movimento que é, ao mesmo tempo, interiorização e
formação de si como sujeito consciente e educado e, exteriorização – objetivação
de si15. Hegel reconhece a cisão social que acontece no momento da eticidade
representada na modernidade. Assim, para ele, o trabalho é a chave da
superação dessa cisão (Entzweiung), ou pelo menos, a mediação necessária para
a organização da comunidade humana. Conforme Antunes:

É pelo trabalho – pode-se-ia sintetizar e generalizar, não sem drasticidade


– que o desejo se transforma em vontade, que a Natureza se transforma
em cultura, que o entendimento se transforma em razão, que a família se
transforma em Estado, que o saber imediato se mediatiza em filosofia, que
a Fenomenologia se ergue à Lógica (ANTUNES, 1996, p. 394).

Essa é a nova realidade da sociedade moderna que Hegel observa e


analisa, isto é, uma sociedade fundada nos princípios do egoísmo e sem uma
ligação orgânica entre os indivíduos, uma “cisão”. A “pessoa concreta” (Die

13 Na análise de Hegel, o termo “cisão” (Entzweiung) caracteriza-se como o momento lógico e histórico
da modernidade. Como bem afirma Pires (2006, p. 449-450), o termo “cisão” não está preso apenas a
realidade social, mas também é o desenvolvimento próprio da Ideia.
14 Como bem afirma Antunes (1976, p. 394-395), Hegel deixa poucas análises sobre essa difícil relação

entre essas “duas culturas” (ação e formação) do trabalho, limitando-se apenas a expor o problema
importante para o mundo contemporâneo. Essa dicotomia será avaliada mais tarde por Max e a longa
tradição marxista e hegeliana do trabalho, dentre eles Marcuse, Lukacs e Habermas. Deixaremos para outra
ocasião uma análise mais detida sobre as diferentes abordagens da recepção hegeliano do trabalho nesses
autores contemporâneos.
15 Segundo Jarczyk: “[...] o conceito só ele mesmo sob a espécie do trabalho que produz no mundo, assim

como o trabalho concreto só tem sentido humano re-enraizado no movimento da ideia; ou melhor, tanto
do lado da interioridade quanto do lado da exterioridade, há uma articulação do interior e do exterior”
(JARCZYK, 1984, p. 116).

145
konkrete Person) está em busca da sua satisfação individual e dos seus interesses
particulares, onde todos os indivíduos que compõem essa sociedade buscam as
mesmas coisas, mas não chegam a construir um vínculo automático entre eles.
Dessa forma, o homem é carente devido a separação entre ele mesmo e
a Natureza e os seus apetites são mediados pelo trabalho social quando consume
o objeto, intermediados pelo mercado. A consciência desejante quer consumir o
objeto, isto é, na oposição entre sujeito consciente e objeto definem o trabalho
como meio que unifica e permanece em ambos (indivíduo e coisa), logo o traba-
lho é ele próprio uma coisa, ativa por meio do desejo e passivo em relação a ele,
concomitantemente ativo em relação ao objeto.
Todos os desejos e satisfações do homem são mediados pelo trabalho
social e quando os objetos são consumidos, essa carência é saciada – um gozo. O
trabalho e a economia não se reduzem a extensão da família, assim como se ima-
ginava no pensamento antigo. Agora, o mercado é o lócus da autonomia da rea-
lização das atividades laborais dos indivíduos livres. As condições sócio-históri-
cas permitiram a atomização dos indivíduos no mercado e, por meio dele, o elo
de ligação das diferentes necessidades.
O mercado ou a troca de mercadorias torna-se o “universal” meramente
aparente das relações no “sistema de necessidades”. Para Pires, o mercado não
é uma representação da totalidade ética, pois as dependências recíprocas não
derivam da autorreflexão da liberdade, mas simplesmente da satisfação dos
seus membros. Nesse sentido, tem uma contradição entre a necessidade e
liberdade que Pires afirma que:

Os dois “extremos” – a geração das necessidades particulares e a resposta


universal a essas necessidades no mecanismo anónimo do mercado – não
chegam contudo a refletir-se um no outro. O nó do particular e do
universal é aleatório e extrínseco. A sua condição é o próprio mercado”
(PIRES, 2006, p. 452).

Assim, para Hegel, o trabalho é o vínculo natural que liga o homem a


natureza, uma relação prática do sujeito com o objeto, uma atividade puramente
negativa. O trabalho é exatamente um agir negativo sobre o objeto. Na
modernidade capitalista, esse processo consiste na objetivação cada vez maior
do sujeito que trabalha no objeto trabalhado.
É na atividade mediada pelo trabalho que o homem realiza (reconcilia)
mutuamente na sociedade, isto é, Eu e o Outro, sujeito e objeto. Para Bourgeois
(2004, p. 75) a “[...] universalização, a unificação da vida interindividual dos
homens – economia, direito, reconhecimento mútuo multiforme – é ela mesma
inteiramente produzida pelas exigências do trabalho”. A partir do trabalho o
homem produz aquilo que deseja, mas também produz para outrem. As

146
consciências querem reconhecer e serem reconhecidas, de modo que possam
conviver na certeza da verdade de si mesmas. Ambos então buscam o
reconhecimento dos seus desejos no mercado.
O trabalho permite a interação social entre os entes comunitário, que
pode se dá no momento do mercado ou no momento da produção. Este processo
tem como contrapartida necessária a vida em sociedade (uma sociedade do
mercado). Concomitantemente a esta sociabilidade, o trabalho funciona
também como um momento da reciprocidade entre homens, uma passagem do
particular desejante ao universal (pela astúcia da razão ou a mão invisível do
mercado).

IV

Ao refletir acerca do trabalho, a filosofia sempre teve que explicar as


formas de trabalho na história da humanidade desde a Antiguidade Clássica aos
seus dias atuais. Na Grécia Antiga, o trabalho era visto como uma relação de
inferioridade ou aprisionamento, enquanto na Idade Média, com o advento do
cristianismo, surge a ideia de punição ou castigo, no qual o trabalho realizado
pelo homem é a sentença dada por Deus pela quebra da confiança e pelo pecado
original16.
Na Política de Aristóteles, o trabalho é analisado de forma pejorativa,
pois na tradição grega, trabalhar denotava conservar-se ao mundo da satisfação
das necessidades naturais e, além disso, significava que o homem que trabalhava
não poderia ser livre e, dessa forma, não poderia participar das discussões da
pólis. Na Grécia antiga, a vida pública era frequentada apenas por homens ver-
dadeiramente livre, aqueles que alcançaram, de certa forma, a libertação árdua
do trabalho.
É essa a visão herdada por Hegel sobre o trabalho, ou seja, uma visão
profundamente depreciativa da atividade do homem na physis. Para Hegel, as
filosofias anteriores não conseguiram dar uma resposta definitiva e satisfatória
na dicotomia entre indivíduo e comunidade tal qual o mundo antigo conseguiu.
Na filosofia alemã permaneceu – desde Kant, Fichte e Schelling – um dualismo
radical entre sujeito e objeto e os seus sistemas filosóficos procuraram explicar
a realidade entre a cisão do homem e a natureza. Como superar a liberdade
individual e a liberdade política? Assim, a filosofia do idealismo alemão voltou-
se profundamente à análise do “belo” mundo da pólis grega17.

16Ver Lowith (2014, p. 288-289) e TAYLOR (2014, especialmente a parte I).


17Para Santos (1993, p. 13-14), a discussão sobre a autoprodução do homem pelo trabalho é desenvolvida
na filosofia moderna desde Descartes e atingindo seu ponto máximo na obra de Marx. Contudo, Santos

147
O jovem Hegel de Iena (1801-1807) é um entusiasta do mundo grego,
entretanto, reconheceu que os pressupostos fundamentais presentes na
antiguidade não eram mais os mesmos, dentre eles a realidade do trabalho. No
mundo antigo da pólis grega, o trabalho era um sacrifício (assim como para a
tradição judaico-cristã, no qual o trabalho significa punição, uma negação)
enquanto no mundo moderno, o trabalho é alçado à uma posição ativa.
Em O sistema de vida ética de 1802-1803, Hegel considera o trabalho
como um fenômeno que abarca toda a vida social moderna em todos os seus
aspectos práticos e teóricos. Essa análise da existência coletiva e real dos
homens na vida social não estará presente nos trabalhos futuros do autor,
mesmo no capítulo IV da Fenomenologia do Espírito de 1807 ou na seção
“Sociedade civil” na Filosofia do direito de 1821.
Em Iena, o movimento dialético operado por Hegel é que o trabalho atua
sobre o objeto, pois antes existe um reconhecimento por parte do sujeito das
leis naturais que regem a natureza. É com base no conhecimento prévio do
sujeito que o agir do trabalho no objeto torna-se um Outro, ou utilizando a
terminologia hegeliana, acontece a aniquilação do objeto e, em contrapartida, o
novo objeto recebe uma nova forma, uma objetivação do sujeito no objeto.
Nesse caso, o impulso está relacionado com o particular externo, isto é,
o desejo se manifesta da falta de objeto. O trabalho se faz na significação humana
do desejo natural do homem pelo objeto externo. Para Lukacs, segundo Hegel,
“o homem somente se torna homem quando intercala o trabalho entre seu
desejo e a satisfação deste, somente quando rompe com a imediaticidade
natural” (LUKACS, 2019, p. 438).
O processo acontece com o aniquilamento (consumo) do objeto com a
finalidade de satisfazer o sujeito. Enquanto os animais aniquilam o objeto,
consumindo-o totalmente; os homens procuram repetir frequentemente o ato
de consumir, e os objetos, ao mesmo tempo que são negados, são também
positivados pela produção consciente do homem, “isto é, reconciliadora em uma
visão da existência mundana dos homens” (BOURGEOIS, 2004, p. 79-80) 18.
O trabalho em sua ação é pura negatividade, pois, pelo sujeito, a
natureza é negada e modificada em uma “coisa”. A ação do trabalho consiste
num processo de objetivação do sujeito que transforma o objeto trabalhado.
Nesse processo, o objeto é sempre afirmado como um Ser Outro para o sujeito.

afirma que a exposição sistemática sobre o trabalho começa no idealismo alemão, mais especificamente
com Hegel.
18 Ver também Lowith (2014, p. 290): “Diferente do impulso animal que satisfaz seus desejos

simplesmente ao devorar o objeto e fazê-lo desaparecer, pelo que sempre tem que voltar a ‘começar desde
o início’, sem produzir algo permanente – uma obra –, o trabalho humano espiritual configura algo por
meio do utensílio e através dessa configuração produz um objeto constante, ou seja, em sim mesmo
independente”.

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O sujeito, por sua vez, procura se afirmar enquanto tal perante o objeto. Assim:
“O sujeito que trabalha, que se afirma ele próprio através do desvio assim
forçado do conhecimento do objeto, tende por seu sentido, ontologicamente
falando, a objetivar-se num objeto que trabalha, ele também, ao ser trabalhado”
(BOURGEOIS, 2004, p. 80). Pode-se afirmar que o “trabalho é inscrever a
verdade de um desejo na continuidade do mundo” (JARCZYK, 1984, p. 119).
O trabalho é o consumo onde a aniquilação do objeto não é completa,
isto é, o objeto não é aniquilado enquanto objeto em geral, mas é consumido de
tal forma que um outro objeto é posto em seu lugar no mercado. Dessa forma,
pode-se afirmar, seguindo as pistas de Hegel, que o trabalho é um consumo que
produz um objeto e, em certo sentido, ao mesmo tempo, reproduz a própria
objetividade (sociabilidade humana). Segundo Beckenkamp:

Lá onde a necessidade pode ser satisfeita e a superação negada sem


esforço, porque o objeto se encontra pronto na natureza, dá-se um gozo
puramente sensível, no qual o objeto é totalmente destruído e o sujeito
mantido na indiferença. É a necessidade do esforço ou do trabalho que
permite a diferenciação, na medida em que nele o objeto não é pura e
simplesmente aniquilado, mas transformado (BECKENKAMP, 1998, s/n).

Então, compete a perguntar: o que é o conceito de trabalho na filosofia


do jovem Hegel de Iena? A resposta é categórica: ela é essencialmente
“mediação” (Vermittelung). O trabalho (e também a linguagem19) é a mediação
entre a particularização do universal e a universalização do particular. O
trabalho enquanto mediação é a tentativa de superar a cisão do mundo, a divisão
entre citoyen e bourgeois e a oposição entre ideia e conceito. Na ideia de Antunes
(1976, p. 393), “é pelo trabalho, no sentido mais pleno, em si e para si –, que se
constituem e se exprimem a sociedade civil, a modalidade civil e a simples
moralidade objetiva [...] que se produzem o universal e o social, isto é, a
reciprocidade das necessidades e dos meios de lhes dar satisfação”20.
Dentro desse contexto de análise, Marx no Manuscritos Econômicos-
Filosoficos de 1844, ao analisar a Fenomenologia do Espírito de Hegel,
reconheceu os méritos do filósofo alemão em perceber a importância do
trabalho como chave para compreender a modernidade. Entretanto, segundo
Marx, Hegel apenas conheceu o aspecto espiritual abstrato do trabalho e
deixando de analisar os aspectos propriamente negativos do trabalho.

19 Segundo Jarczyk: ““[...] ‘linguagem’ e ‘trabalho’, são, de modo idêntico, ‘externações’ do espírito,
duplo e único movimento pelo qual o indivíduo toma posse de seu mundo” (JARCZYK, 1984, p. 124-
125).
20 Ver também Bourgeois: “Trabalho é um vínculo, uma relação, e, sob esse aspecto, seu lugar no ser

espiritual que é o homem é a ‘consciencia’” (BOURGEOIS, 2004, p. 77, grifos RPM).

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Segundo Bourgeois (2004, p. 75), Marx não pode analisar os escritos
anteriores à Fenomenologia do Espírito, como por exemplo, o texto O sistema da
vida ética (1802/1803), pois foram textos publicados postumamente. Nessa
obra: “Ele analisa a própria existência do trabalho moderno em sua realidade
social-econômica-política mais concreta, apreciando-a tanto em sua significação
negativa quanto em sua significação positiva”21.
Nesse aspecto, podemos concordar com Marx, que afirma que Hegel re-
lata a partir da Fenomenologia do Espírito, apenas o conceito de trabalho ideal,
espiritual e abstrato. Nas palavras de Bourgeois: “[...] Marx tem razão, ainda que
se engane, com as circunstâncias atenuantes que foram lembradas, ao pensar
que a ‘espiritualização’ do trabalho operada por Hegel viria de sua ignorância do
trabalho concreto, uma ignorância, aliás, que teria sido muito surpreendente,
pois a especulação hegeliana sempre se alimentou do conhecimento mais posi-
tivo de toda experiência humana” (2004, p. 76).
Para finalizar a minha exposição, faz-se necessário uma importante ob-
servação feita por Santos ao tratar sobre o conceito de trabalho em O sistema da
vida ética de Hegel. Segundo Santos: “[...] o homem é o ser que consegue trans-
formar o hábito ético em segunda natureza, ao impor-se pela disciplina do tra-
balho um domínio sobre sua natureza animal, de forma a tornar-se um ser de
cultura22. A educação é o processo de formação de si do sujeito livre” (1993,
p.40).

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DRUMMOND, A. F. Liberdade e economia na filosofia do direito de Hegel. Síntese. Belo
Horizonte, v. 33, p. 413-434, 2006.

21Ver sobre esse aspecto Lowith (2014, p. 296-297).


22“[...] a ‘cultura’ põe um objeto com o qual deve contar, na medida em que ele denota uma certa
permanência, esta última sendo já, como tal, uma resistência ao arbitrário eventual desta consciência”
(JARCZYK, 1984, p. 119).

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