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A TEMPESTADE

Jackson Pedro Veras1

Furiosamente, ela bateu a porta, olhou para mim com uma expressão de ódio e nojo
assustadora, jogou a sua bolsa no sofá, pôs os óculos escuros em um cantinho da estante,
colocou a garrafa de cerveja, que estava pela metade, sobre a tábua de passar que ainda estava
montada na sala, arrancou a tomada do rádio que cuspia mais estática do que músicas, apontou
o seu dedo indicador em meu rosto, distribuiu de maneira disforme muitos traços de intolerância
a cada milímetro quadrado do seu semblante nervoso, cuspiu em minha estupidez verdades
pontiagudas e afiadas que perfuraram e rasgaram as minhas inúteis intensões de falar e
argumentar qualquer coisa. Absolutamente fora de si, bêbada e com um fascinante cheiro de
cigarro barato misturado ao doce odor do seu suor, ela esbofeteou o meu rosto com uma raiva
descomunal, xingou a minha mãe já falecida e disse que eu era um verme rastejante da pior
espécie.
Assustada com o que acabara de fazer, com a boca semiaberta e com olhos arregalados
para mim, ela colocou a mão na boca, olhou o meu rosto marcado mais pelo descontrole do que
pelo tapa, contemplou atentamente o meu olhar envergonhado e surpreso, colocou as mãos em
sua cabeça, de modo que os dedos delicados, com as unhas grandes e vermelhas, adentraram os
cabelos dourados, deu um giro cambaleante em torno do seu próprio eixo e não disse nada. Uma
das alças da blusinha preta deslizava pelo seu ombro tatuado e, silenciosamente, ela desligou o
seu celular, abriu as janelas, tirou os sapatos, desabotoou a calça jeans, pegou na geladeira uma
outra garrafa de cerveja, sentou-se no sofá, acendeu um cigarro e ficou observando o
firmamento estrelado enquanto ouvia a música alta que vinha de algum lugar feliz da rua.
O batom vermelho pintou de grosseria aquela boca perfeita que eu tanto beijei, e a sua
violência inesperada tingiu de decepção a admiração infinita que eu sempre tive por ela, apesar
de todas as imperfeições, falhas e defeitos.
A fumaça sufocante que poluiu o ar da casa parecia espalhar gargalhadas escandalosas
que assombraram o espectro mais adormecido do meu orgulho, da minha vergonha e da minha
autoestima. O cheiro dela ainda era muito doce, e incontrolável era a minha vontade de deitar-
me em seu colo, ouvir as suas narrativas sobre o cotidiano na empresa que ela montou, fingir
que dormi para indicar que as histórias estavam para lá de enfadonhas e cair na gargalhada
quando ela tentar me acordar com cócegas.

1
Professor de Literatura no Ensino Médio, na Educação Superior, pesquisador, escritor, palestrante e psicanalista.
Lá do quarto, eu ouvia os sons desafinados do seu choro descontrolado misturado com
tosse. O barulho do seu pranto se misturava com os ruídos das garrafas contra a mesinha de
vidro, e eu escutava tudo, como se estivesse na sala. O lugar feliz da rua continuava muito feliz,
pois a música ainda tocava alto e vozes embriagadas e desafinadas cantarolavam e gritavam
refrões sofridos de músicas depressivas.
Deitado em nossa cama, com as janelas abertas, com as cortinas bailarinas e com um
vento frio acariciando piedosamente o meu corpo, eu acabei adormecendo. Não sei quanto
tempo depois, ela se deitou ao meu lado, com cheiro de banho e de civilidade, acariciou os meus
cabelos, passou a sua mão trêmula em minha face inchada, deslizou os dedos pela minha barba,
beijou os meus lábios com delicadeza, repousou a sua cabeça em meu peito, entrelaçou os seus
dedos aos meus e, sem dizer uma única palavra, ela apenas sussurrou em meu ouvido um pedido
de desculpas, chorou baixinho e apertou o meu corpo como se ele tivesse algum poder reparador
de erros e restaurador de sossegos.
O vento ficou ainda mais frio na calada abismal da madrugada, começou a chover forte
e os trovões e os relâmpagos deram ao cenário poético uma trilha sonora e uma iluminação
incidental ainda mais trágica e melancólica.
O que aconteceu naquele quarto, durante a tempestade, foi o óbvio.

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