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ALCEU LOURENÇO DE SOUZA JUNIOR

A SANTA CEIA COMO MEIO DE GRAÇA

São Paulo
2007
2

ALCEU LOURENÇO DE SOUZA JUNIOR

A SANTA CEIA COMO MEIO DE GRAÇA

Tese apresentada ao Presbitério de Pirituba como


requisito parcial para obtenção de Licenciatura em
Teologia.

Orientador: Prof. Ms. Rev. Wilson Santana Silva

São Paulo
2007
3

DEDICATÓRIA

À Fátima, minha esposa, com amor e gratidão, por ter sido, em todo o tempo,
tudo aquilo que me falta, e por sonhar meus sonhos comigo. Aos meus filhos Pedro
Henrique, Íris e Gabriel – manifestações físicas da graça divina sobre minha vida –
pela amorosa paciência.
4

AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Ms. Rev. Wilson Santana, pela orientação neste trabalho, e por
orientar meu olhar em direção à riqueza da nossa Tradição Reformada,
especialmente sua Sacramentologia.

Ao Prof. Dr. Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa, não somente por ensinar
a Teologia Reformada, mas por representar a erudição reformada diante de seus
alunos, entre os quais ainda me conto.

Ao Rev. Ms. Albert Carvalho, meu tutor eclesiástico, pelo incentivo,


intercessão, e pelo exemplo de paixão pelo Reino.

À Direção, Corpo Docente, funcionários e colegas alunos do Seminário


Teológico Presbiteriano “Rev. José Manoel da Conceição”, instrumento que Deus
tem usado para conceder incontáveis bênçãos a mim e à minha família.

Ao Presbitério de Pirituba, por acreditar na minha vocação pastoral e investir


na minha formação ministerial.

Ao nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus, sem o qual nada disto seria
possível, e nem teria sentido algum.
5

Cremos que no santíssimo Sacramento da ceia, com as figuras


corporais do pão e do vinho, as almas fiéis são realmente e de
fato alimentadas com a própria substância do nosso Senhor
Jesus, como nossos corpos são alimentados de alimentos, e
assim não queremos dizer que o pão e o vinho sejam
transformados ou transubstanciados no corpo e sangue dele,
porque o pão continua em sua natureza e substância,
semelhantemente o vinho, e não há mudança ou alteração.

Distinguimos, todavia, esse pão e vinho do outro pão que é


dedicado ao uso comum, sendo que este nos é um sinal
sacramental, sob o qual a verdade é infalivelmente recebida.

O sinal, pois, nem nos dá a verdade, nem a coisa significada;


mas Nosso Senhor Jesus Cristo, por seu poder, virtude e
bondade, alimenta e preserva nossas almas, e as faz
participantes da sua carne, e de seu sangue, e de todos os
seus benefícios.

Confissão de Fé de Guanabara, § 5
6

RESUMO

Na literatura do Novo Testamento, a Ceia do Senhor é apresentada como


uma ordenança de Jesus Cristo para sua igreja, como uma celebração de sua morte
em favor de seu povo. Nesta celebração a igreja deve reconhecer-se na presença
do próprio Salvador, e receber dele a vida eterna que sua carne e sangue concedem
a quem nele crê. Tendo este Sacramento recebido interpretações obscuras durante
a Patrística e a Idade Média, a Reforma procurou esclarecer seu significado a partir
dos textos bíblicos. Entretanto, podem-se divisar pelo menos três linhas de
interpretação entre os Reformadores: A “Consubstanciação” de Lutero, o “Idealismo”
de Zwínglio, e a “Presença Espiritual” de Calvino. Historicamente, a perspectiva
calvinista tem, por vezes, sido explicada em termos “zuinglianos”, gerando confusão
doutrinária e depreciação da Ceia como meio de graça. O presente trabalho visa a
recuperar o ensino de Calvino acerca da Ceia do Senhor como meio de graça,
apresentando seus distintivos e base bíblica. Para obter um quadro mais amplo,
inicia com um estudo exegético dos textos neotestamentários pertinentes à doutrina
eucarística e um panorama do desenvolvimento histórico da Eucaristia,
especialmente no que concerne à presença de Cristo no Sacramento, que além de
ser fundamental para se estabelecer a eficácia do Sacramento, é também o ponto
de maior divergência na interpretação da Ceia entre as diferentes tradições cristãs.

Palavras-chaves: Ceia do Senhor. Meios de Graça. Sacramentos. Teologia


Reformada. João Calvino.
7

ABSTRACT

In the New Testament literature, the Lord’s Supper is presented as an


ordinance of Jesus Christ to his church, as well a celebration of his death in favor of
his people. In this celebration, the church should acknowledge itself in the presence
of the Savior himself, receiving from him the eternal life that his flesh and blood grant
to whoever has faith in him. Since this sacrament had received obscure
interpretations during Patristic and Middle Ages, the Reformation tried to find its
meaning going back to the biblical texts. However, we can remark at least three
interpretation schools among the Reformers: “Consubstanciation” of Luther, the
“Idealism” of Zwingli, and the “Spiritual Presence” of Calvin. Historically, the Calvinist
perspective has often, been explained in “zwinglian” terms, causing doctrinaire
confusion and depreciation of the Supper as Means of Grace. The present work
seeks to recover the teaching of Calvin concerning the Lord’s Supper as Means of
Grace, presenting their distinctive features and biblical foundation. Also, to obtain a
wider picture, it brings initially an exegetical study in the New Testament texts
regarding the Eucharistic doctrine and a panorama of the historical development of
the sacrament, especially in what concerns to Christ's presence in the sacrament
what, besides being fundamental to establish the effectiveness of the sacrament, is
the point of larger divergence in the interpretation of the Supper among the different
Christian traditions as well.

Key-words: Lord’s Supper, Means of Grace. Sacraments. Reformed Theology. John


Calvin.
8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10
1 A ORIGEM NEOTESTAMENTÁRIA DA CEIA DO SENHOR ................................. 13
1.1 OS EVANGELHOS SINÓPTICOS ................................................................... 13
1.2 O ENSINO DE PAULO .................................................................................... 16
1.3 O QUARTO EVANGELHO .............................................................................. 19
1.4 CONCLUSÕES PRELIMINARES .................................................................... 22
2 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA DOUTRINA DA CEIA .............................. 24
2.1 A PATRÍSTICA ................................................................................................ 24
2.1.1 Os Primeiros Testemunhos ....................................................................... 25
2.1.2 O Conceito Agostiniano ............................................................................. 26
2.1.3 O Realismo Ganha Espaço ....................................................................... 28
2.2 A ESCOLÁSTICA ............................................................................................ 29
2.2.1 A Transubstanciação................................................................................. 29
2.2.1 A Sistematização Tomista ......................................................................... 30
3 A REFORMA PROTESTANTE E A PRESENÇA DE CRISTO NA CEIA................ 34
3.1 A POLÊMICA ANTICATÓLICA ........................................................................ 34
3.2 A “CONSUBSTANCIAÇÃO” LUTERANA ........................................................ 36
3.3 O “IDEALISMO” ZUINGLIANO ........................................................................ 39
3.4 A “PRESENÇA ESPIRITUAL” CALVINISTA .................................................... 43
3.4.1 Uma Posição Intermediária ....................................................................... 43
3.4.2 Temor Diante do Mistério .......................................................................... 45
3.4.3 Comunhão Verdadeira e Milagrosa ........................................................... 47
3.5 AS CONFISSÕES REFORMADAS ................................................................. 50
3.5.1 A Confissão Gaulesa (1559) ..................................................................... 50
3.5.2 A Confissão Escocesa (1560) ................................................................... 51
3.5.3 A Confissão Belga (1561) ......................................................................... 51
3.5.4 Catecismo de Heidelberg (1563) ............................................................... 52
9

3.5.5 A Segunda Confissão Helvética (1566)..................................................... 52


3.5.6 Os símbolos de Westminster (1647) ......................................................... 53
3.6 CONCLUSÕES PRELIMINARES .................................................................... 54
3.7 DESENVOLVIMENTOS PÓS-REFORMA ....................................................... 56
3.6.1 A Teologia Protestante Contemporânea ................................................... 57
3.6.2 A Teologia Católica Romana Contemporânea .......................................... 59
3.6.3 Conclusões Preliminares ........................................................................... 63
4 A GRAÇA MEDIADA PELA CEIA .......................................................................... 64
4.1 A MEDIAÇÃO DA GRAÇA ............................................................................... 64
4.1.1 A Necessidade de Revelação Mediada: Soli Deo Gloria ........................... 65
4.1.2 A Recepção da Ceia do Senhor: Sola Fide ............................................... 69
4.2 A OPERAÇÃO DA GRAÇA ............................................................................. 73
4.2.1 A Nutrição Espiritual na Ceia: Solus Christus ........................................... 73
4.2.2 A Eficácia da Ceia: Sola Scriptura............................................................. 76
4.3 CONCLUSÕES PRELIMINARES .................................................................... 79
5 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 84
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 87
10

INTRODUÇÃO

Pela época da Reforma Protestante, o Sacramento da Ceia do Senhor havia


se tornado em ocasião, se bem que não a causa, de grandes e perigosas
superstições; e, durante a Reforma, de cismas. Isto se deve não somente às
divergências mais ou menos sutis na interpretação dos textos que instituem e
ensinam sobre a Ceia; mas, principalmente pela importância que a Ceia tem no culto
cristão. Esta consciência era tão fortemente arraigada nos corações dos fiéis que
eles estavam dispostos a morrer por isso.

A história de nosso país nos dá um heróico exemplo disto. No dia 10 de


março de 1557 um grupo de colonos e pastores reformados, enviados pelo próprio
João Calvino, realizou o primeiro culto protestante do Brasil e possivelmente do
Novo Mundo. No domingo, 21 de março, houve a primeira celebração da Santa Ceia.
Mas logo surgiram desavenças teológicas entre os calvinistas e o comandante da
colônia, Villegaignon, influenciado por um ex-dominicano – mormente em relação ao
Sacramento eucarístico. Ele os aprisionou, e apresentou-lhes uma série de questões
teológicas, exigindo uma resposta por escrito dentro de doze horas. Esses leigos
redigiram um notável documento, conhecido como Confissão de Fé de Guanabara
(cujo artigo quinto, que trata da Ceia do Senhor, é citado parcialmente na epígrafe
que abre este trabalho), que finalmente custou as suas vidas, pois diante da recusa
dos calvinistas em abjurar as suas convicções, Villegaignon condenou-os à morte
por estrangulamento e lançou-os ao mar.1

Entretanto, em nossos dias pouco se tem falado sobre este ato central da
adoração da igreja. Infelizmente, isto não se deve a uma concordância geral quanto

1
Vd. CRESPIN, J., A tragédia de Guanabara. O início das divergências deveu-se claramente à forma
de administração da Ceia, e seu significado (cf. p. 34-38).
11

aos modos e significados da Ceia, mas a uma simples negligência. Parece que a
Ceia já não ocupa um lugar de proeminência no evangelicalismo brasileiro.

Para a maioria das igrejas evangélicas a Ceia não alimenta as almas fiéis
nem nos faz participantes de seus benefícios, mas é, primariamente, um momento
de contrição, em que os membros são levados a meditar na crucificação de Cristo, e
a lamentar seus pecados. Na maioria dos casos, é um meio de manifestar a
comunhão com os irmãos.2 Pior que isso, numa das maiores denominações do país,
a Ceia já tornou-se “primariamente (embora não exclusivamente) um meio de se
alcançar saúde, cura e benefícios materiais”, pois afirma-se que, na Ceia, “Cristo
confere a sua própria saúde física ao que participa do pão pela fé”; ali admite-se à
Ceia “todos quantos se façam presentes na igreja no momento da celebração, sejam
evangélicos ou não. O convite a católicos e espíritas é feito abertamente”, 3 tornando
este momento sublime numa peça de proselitismo puro e simples. Uma outra
conhecida denominação pentecostal, por outro lado, restringe a comunhão aos
membros somente, e sustenta que os elementos consagrados tornam-se carne e
sangue de Cristo, proibindo seus obreiros de jogar fora as sobras, que devem ser
lançadas em “rio de águas correntes”.4

O presente trabalho visa a recuperar na Bíblia e na tradição teológica cristã, e


especialmente reformada, o significado da Ceia, entendida como um meio de graça
e, portanto, essencial para que o povo de Deus desfrute de uma vida espiritual
saudável. O trabalho utilizará o modelo determinado para apresentação, citações e
referências das normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). 5

Na primeira parte, numa abordagem bíblico-teológica, trataremos da origem


neotestamentária da Ceia; abstraindo, a partir dos textos que fazem referência ao
Sacramento, qual era o ensino apostólico acerca da Ceia do Senhor.

2
Vd. KLEIN, C. J., Os sacramentos na tradição reformada, onde o autor apresenta uma pesquisa
sobre a teologia sacramental em diversas denominações evangélicas no Brasil (cap. 6, pp.
319-343).
3
Cf. RELATÓRIO da Comissão Permanente de Doutrina da IPB sobre a Igreja Universal do Reino de
Deus. Disponível em http://www.cacp.org.br/movimentos/artigo.aspx?lng=PT-
BR&article=812&menu=12&submenu=7>. Acesso em: 24/08/2007.
4
Esta publicação reúne resoluções da diretoria da Igreja Pentecostal Deus é Amor; a participação na
Ceia é exclusiva aos membros da denominação, e ainda assim, desde que portando o cartão
do dízimo em dia.
5
NBR’s 14724/2002, 10520/2002, e 6023/2002. Disponível em
<http://www.abnt.org.br/default.asp?resolucao=800X600>. Acesso em 20/08/2007.
12

Na segunda parte, histórico-teológica, o desenvolvimento da doutrina


concernente a este Sacramento será exposto, pontuando sua observância na igreja
dos pais apostólicos e o surgimento da interpretação materialista e aristotélica na
Idade Média, adotada oficialmente pela Igreja Católica Romana. Também serão
explicadas as três perspectivas defendidas durante a Reforma Protestante do século
16, e seus herdeiros teológicos, conforme encontrados nas confissões reformadas
posteriores. Finalmente, abordaremos algumas tendências percebidas entre escolas
contemporâneas de teologia.

Na terceira parte, partindo da perspectiva reformada, abordaremos a atuação


de Deus por meio de sinais visíveis, e procuraremos compreender que ação da
graça ocorre por meio deles; para isto, recorreremos principalmente a uma
exposição do pensamento eucarístico de João Calvino, a partir de seus próprios
escritos, já que ele é o grande articulador da perspectiva reformada que entende os
Sacramentos como “meios de graça”.

Concluiremos apontando a necessidade de se restabelecer a doutrina


reformada sobre a Ceia do Senhor como meio de graça no protestantismo brasileiro,
e sugerindo implicações para a prática eucarística dos arraiais presbiterianos.
13

1 A ORIGEM NEOTESTAMENTÁRIA DA CEIA DO SENHOR

O relato neotestamentário da instituição da Ceia encontra-se narrado por


cada um dos evangelhos sinópticos, além de uma menção do apóstolo Paulo,
provavelmente feita antes do registro dos evangelistas.6 Cada relato apresenta
detalhes característicos, e muitos estudiosos têm tentado identificar qual o relato
mais antigo e exato.7 De um modo geral, Paulo e os evangelistas relatam que Jesus,
nos momentos que antecederam sua prisão, reuniu-se com seus doze discípulos
mais íntimos e, durante uma refeição vespertina,8 partiu e distribuiu entre eles o pão,
acompanhado de um cálice de vinho; são unânimes ainda em que esta refeição
ocorreu no contexto da festa da Páscoa judaica.9 Posteriormente, o relato de Lucas
em Atos dos Apóstolos deixa claro que a celebração da Ceia era parte essencial do
culto cristão primitivo.

1.1 OS EVANGELHOS SINÓPTICOS

A Páscoa era a principal festa religiosa do judaísmo, na qual os judeus


reviviam os eventos de sua libertação do Egito, quando o anjo “Destruidor”, vendo a
marca do sangue do cordeiro imolado nas portas das casas dos israelitas, passara
adiante. Esta refeição com o cordeiro ocorria no primeiro dia de uma semana em
que os judeus também se abstinham de fermento (que simbolizava o pecado),

6
Cf. Mt 26.26-30; Mc 14.22-26 e Lc 22.14-20; 1Co 11.23-26. Salvo indicação, todas as referências a
textos bíblicos serão feitas conforme a tradução Almeida Revista e Atualizada (ARA), 2ª edição,
da Sociedade Bíblica do Brasil (SBB).
7
Para uma harmonia das informações dos relatos sinópticos e joaninos quanto à cronologia da última
ceia, veja HENDRIKSEN, W., Marcos, p. 696-699, 722.
8
Cf. Mt 26.20 e Mc 14.17; 1Co 11.23.
9
Cf. Mt 26.2,17-19; Mc 14.1,12,14,16; Lc 22.1,7,8,11,13,15. JEREMIAS, J., The eucharistic words of
Jesus, p. 14-37, apresenta 11 razões para identificar a última ceia com a refeição pascal,
contra os críticos que questionam a fidedignidade do relato evangélico.
14

comendo apenas pães asmos durante sete dias. 10 Lucas informa que Cristo instituiu
a ceia cristã com as palavras: “Fazei isto em memória de mim”, 11 indicando
claramente uma substituição do cordeiro pascal que simbolizava salvação e
livramento para o povo de Israel ano após ano. Os evangelhos sinópticos registram
que Jesus partiu e distribuiu o pão aos discípulos para que o comessem, afirmando
“Isto é o meu corpo”;12 igualmente, ao passar entre eles o cálice de vinho, Jesus
afirma “Isto é o meu sangue”.13 Notemos que “sangue derramado” é um semitismo
para morte violenta,14 numa antecipação de sua crucificação na manhã seguinte. O
relato de Lucas traz ainda uma harmonização das palavras referentes ao pão com
aquelas acerca do cálice – o corpo é “oferecido por vós”. Obviamente, Cristo está
pretendendo acrescentar outros significados àquela refeição pascal – não mais
relacionando-a ao evento passado da libertação do Egito, mas ao evento de sua
morte na cruz, no qual seu sangue seria “derramado em favor” de seu povo.
Conforme afirma Hendriksen,

Creio na nas citações há aspas, não?

“Ao ligar tão estreitamente a Páscoa com a Ceia do Senhor, Jesus também
deixou claro que o que era essencial na primeira não havia sido perdido na
segunda. Ambas apontavam para ele, o único e suficiente sacrifício pelos
pecados do seu povo. A Páscoa apontava para isso, no futuro; a Ceia do
Senhor aponta para o mesmo sacrifício, feito no passado”.15

Obviamente, o contexto histórico indica que os discípulos presentes não


entenderam mais que um significado simbólico nas palavras de Jesus, pois tanto a
Páscoa judaica era um evento carregado de simbolismo para o judeu, quanto o
corpo físico de Jesus estava ali presente.16 Numa refeição religiosa, como a Páscoa,

10
Cf. Êx 12.1-20; os três evangelistas fazem referência ao "primeiro dia da Festa dos Pães Asmos"
ao relatarem a ceia. Para uma breve descrição de comemoração da Páscoa da época, vd.
HIGGINS, A. J. B. The Lord's Supper in the New Testament, p. 45-47; JEREMIAS, J., The
eucharistic words of Jesus, p. 58-59 e HENDRIKSEN, W., Lucas, p. 559-560.
11
Cf. Lc 22.19.
12
Cf. Mt 26.26; Mc 14.22; Lc 22.19. HURTADO, L. W., Marcos, p. 254, lembra que Jesus falava
aramaico, isto é, ele provavelmente utilizou um termo que significa tanto por “corpo” quanto
“pessoa”, o que equivaleria a “Isto sou eu”.
13
Cf. Mt 26.28; Mc 14.24.
14
HURTADO, L. W., Marcos, p. 251, 255; cp. Gn 4.10-11; 9.6; Dt 19.10; 2Re 21.16; Sl 106.38, etc.
15
HENDRIKSEN, W., Marcos, p. 722 e Lucas, v. 2, p. 563; HURTADO, L. W., Marcos, p. 249. Cf. Mt
26.28; Mc 14.24; Lc 22.20.
16
HENDRIKSEN, W., Marcos, p. 723-724 e Mateus, v. 2, p. 573-574; HURTADO, L. W., Marcos, p.
250. JEREMIAS, J., The eucharistic words of Jesus, p. 31, argumenta que, a partir de Ex 12.26-
27, a interpretação dos elementos da Ceia era uma parte fixa do próprio ritual da Páscoa
15

o pai de família dizia a oração de ações de graças e distribuía os elementos; cada


comensal tinha-se feito participante da ação de graças com seu “amém”, e agora,
cada um se fazia participante da bênção ao comer e beber. Mas, considerando que
compartilhar uma refeição era estabelecer um relacionamento íntimo com a outra
pessoa, e que, além disto, Jesus identificou-se com os elementos que ofereceu à
mesa, após abençoá-los, e conectou o pão partido e o vinho à sua morte
substitutiva, o significado era de que ao comer e beber eles seriam feitos
participantes dos efeitos abençoadores de sua morte expiatória.17

As palavras de instituição também fazem referência à aliança instaurada pelo


sangue de Cristo.18 De um modo muito específico, Jesus parece referir-se às
celebrações de alianças no Antigo Testamento, nas quais o sacrifício de animais era
parte essencial, a fim de selar o pacto entre as partes. É especialmente relevante a
narrativa do estabelecimento da aliança entre Javé e Israel após a entrega e leitura
das tábuas da lei, à qual o povo responde afirmativamente; Moisés, então, asperge o
sangue dos animais sacrificados sobre o altar e sobre o povo, dizendo: “Eis aqui o
sangue da aliança que o Senhor fez convosco a respeito de todas estas palavras”.
Em seguida, Moisés, Arão, Nadabe, Abiu e os setenta anciãos têm uma visão de
Deus, e comem e bebem ali.19 Mas a aliança inaugurada na Ceia é uma aliança que
se distingue por ser “nova”,20 pois provê a “remissão dos pecados”.21 Jesus está se
referindo claramente à grande profecia do capítulo 31 de Jeremias, onde Deus
promete firmar uma “nova aliança” com seu povo, superior àquela feita no Sinai;
nesta aliança, está previsto o perdão dos pecados.22

judaica; Jeremias traz uma exposição bem documentada das interpretações acerca do pão
comido na Páscoa (p. 31-36).
17
LADD, G. E., Teologia do Novo Testamento, p. 251; JEREMIAS, J., The eucharistic words of Jesus,
p. 154; Jeremias acrescenta (p. 154-159) vasta referência bíblica e extra-bíblica para
comprovar que o conceito de comunicação de dons espirituais por meio de comer e beber era
bastante familiar à mentalidade oriental dos discípulos.
18
Cf. Mt 26.28; Mc 14.24; Lc 22.20.
19
Cf. Ex 24.1-11; Tb. Gn 15.7-18. Vd. HURTADO, Larry W., Marcos, p. 254.
20
Cf. Lc 22.20. Muitos manuscritos não trazem a qualificação "nova" para aliança em Mt 26.28 e Mc
14.24, que pode ter sido inserida posteriormente a partir do texto de Lucas. Contudo, como
nota MORRIS, L., Teologia do Novo Testamento, p. 162, "mesmo se não a incluírmos, ela está
implícita; qualquer 'aliança' que Jesus fizesse naquele momento teria de ser nova".
21
Cf. Mt 26.28.
22
Cf. Jr 31,31-34. Vd. MORRIS, L., Teologia do Novo Testamento, p. 162; LADD, G. E., Teologia do
Novo Testamento, p. 250.
16

Além desta relação com o contexto de aliança, na dispensação do Antigo


Testamento, a remissão dos pecados era obtida por meio de do sacrifício animal. Os
sacerdotes imolavam o animal trazido, aspergiam seu sangue sobre o altar e
queimavam suas partes sobre o altar; mas, nos casos de ofertas pelo pecado e pela
culpa, as sacerdotes comiam a carne do sacrifício diante do Senhor. 23 Com suas
palavras, Jesus apontou aos seus discípulos o significado da ceia como comunhão
em seu sacrifício.24

Finalmente, o relato sinóptico acrescenta uma referência de Jesus ao reino de


Deus, onde afirma que irá compartilhar do vinho com os seus novamente, símbolo
da reunião gloriosa que ocorrerá no Reino escatológico dos céus. Esta afirmação
ganha status de promessa solene no relato de Marcos, com a fórmula “Em verdade
25
vos digo”. Ainda que posteriormente Jesus afirmasse sua presença com os
discípulos todos os dias, a verdade é que “a vida que vivera com os discípulos
estava no fim. Não haveria mais convívio familiar com eles até que o reino viesse”. 26
Mas, conforme lembra Hendriksen,27 o sentido não é de um tristonho “está tudo
acabado”; mas, sim, de antecipação da comunhão gloriosamente renovada e plena
que somente haverá no reino eterno.

1.2 O ENSINO DE PAULO

Na sua primeira carta aos Coríntios, Paulo cita literalmente a recomendação


de Cristo para que os discípulos repetissem a celebração da Ceia até que retornasse
a eles – “em memória de mim”, dissera ele.28 Como concorda a maioria dos
estudiosos, esta epístola foi escrita antes dos evangelhos, sendo o relato mais
antigo que nos chegou da instituição da Ceia do Senhor. Aliás, Paulo estabelece a
autoridade de seu ensino concernente à Ceia afirmando que o recebeu “do Senhor”.
Pelo fato de que ele cita com bastante fidelidade as palavras conforme o relato de

23
Cf. Lv 6.1-7.18.
24
Cf. WALLACE, R. S.. "Ceia do Senhor", para outras nuances. In: ENCICLOPÉDIA histórico-
teológica da igreja cristã. Walter A. ELWELL (Ed.), v. 1, p. 263-4.
25
HENDRIKSEN, W., Marcos, p. 727; HURTADO, L. W., Marcos, p. 255-256. Cf. Mc 14.25; Lc 22.18;
Mt 26.29, “reino de meu Pai”.
26
MORRIS, L., Lucas, p. 287; cf. Mt 28.20.
27
HENDRIKSEN, W., Lucas, v. 2, p. 562.
28
1Co 11. 24-26; cf. Lc 22. 19; KISTEMAKER, S.,1 Coríntios, p. 546-553, discute os detalhes
diferentes nos relatos da instituição.
17

Lucas,29 podemos concluir que o apóstolo não está dizendo que lhe foi dada uma
revelação direta do Cristo ressurreto, mas que a tradição oral que ele repassava às
suas igrejas tinha sua origem diretamente na íntegra das palavras do próprio Senhor
Jesus.30

Aparentemente, um dos problemas centrais na igreja dos coríntios, o


divisionismo, havia contaminado a forma com que eles celebravam a Ceia do
Senhor; Paulo, então, usa a simbolismo da comunhão “do único pão” que é partido
para ilustrar a unidade da igreja. Entretanto, a força da exortação está no fato de que
a comunhão do pão é também a comunhão do corpo de Cristo. 31 Ladd está correto
ao admitir que isto mostra que, para Paulo, “o comer e beber envolvem mais do que
a memória de um evento passado; pois também representam a participação no
corpo e no sangue de Cristo”.32 Para o apóstolo, a Ceia do Senhor é mediadora da
comunhão com Cristo no mesmo sentido que o altar, no Antigo Testamento, era o
mediador da comunhão com Deus”. 33 É mais que mera repetição das palavras e
gestos de Cristo, a ponto de os coríntios serem exortados a ver nas enfermidades e
mortes que enlutaram a comunidade um sinal precursor do juízo divino sobre si:

A união ao Senhor, na Ceia, é pois uma realidade de ordem religiosa duma


importância primordial. Aí temos um contato real, físico mesmo, poder-se-ia
dizer, com o corpo e o sangue do Senhor; e unimo-nos pessoalmente a ele
como os hebreus se uniam a Deus em seus sacrifícios; como o Deus do
Antigo Testamento, nosso Senhor exige nossa fidelidade absoluta,
chegando a castigar-nos se abusarmos de seu dom.34

29
HIGGINS, A. J. B. The Lord's Supper in the New Testament, p. 26-37, avalia criticamente frase-a-
frase os relatos de Marcos e de Paulo, e conclui que remetem à mesma tradição, conquanto a
formulação difira, provavelmente por acomodação à fórmula litúrgica da Ceia em uso na igreja
primitiva.
30
LADD, G. E., Teologia do Novo Testamento, p. 540; BRUCE, F. F., Paulo, O Apóstolo da Graça, p.
246; KISTEMAKER, S.,1 Coríntios, p. 546-547; RIDERBOS, H., A teologia do apóstolo Paulo,
p. 466; HIGGINS, A. J. B. The Lord's Supper in the New Testament, p. 25-26, traz uma lista de
eruditos de ambas as posições. Uma defesa da interpretação de revelação direta está em
MORRIS, L., 1 Coríntios, p. 128. Ridderbos (p. 20-23) também traz um panorama da
abordagem da História das Religiões, especialmente quanto à relação entre as religiões de
mistério e o ensino paulino acerca dos sacramentos, e conclui que tais ligações mostraram-se
"ilusórias" (p. 22).
31
Cf. 1Co 10.16-17;
32
LADD, G. E., Teologia do Novo Testamento, p. 731; cf. 1Co 10.16.
33
LADD, G. E., Teologia do Novo Testamento, p. 731; cf. 1Co 10.18-21.
34
CERFAUX, L., O cristão na teologia de Paulo, p. 346-347; cf. 1Co 11.27-32.
18

Mesmo ao tratar do julgamento que alguém pode atrair sobre si ao participar


“indignamente” da Ceia, Paulo deixa claro que Deus não quer destruir sua igreja,
mas trazê-la de volta ao seu caminho: “somos disciplinados pelo Senhor”, afirma ele.
Portanto, é necessário enfatizar que não há em Paulo qualquer idéia de operação
mágica ou independente dos Sacramentos:

Aqui, mais uma vez, a bênção e a maldição não são dadas


automaticamente com os elementos e nem se encontram unidas neles de
maneira igualmente essencial, mas é o próprio Senhor vivo que, também na
comida e na bebida de sua mesa, trata a Igreja de acordo com sua vontade
redentora e cheia de graça.35

Ele questiona os coríntios acerca do resultado da participação no “cálice da


bênção” e do “pão que partimos”, afirmando que por eles os cristãos recebem
comunhão do sangue e do corpo de Cristo. Conforme o uso paulino da expressão
“sangue de Cristo”, podemos entender que, para Paulo, participar do “cálice da
bênção” é receber a bênção da comunhão na morte expiatória e redentora de
Cristo.36 Como expõe Ridderbos, tanto ao falar da mesa do Senhor em relação à
mesa dos deuses, quanto ao preservar as palavras da instituição (com a referência à
noite em que Jesus foi traído, a expressão “dado por vós” em relação ao corpo),
Paulo ressalta o aspecto sacrificial da Ceia, presente nos evangelhos:

Trata-se do comer e beber do sacrifício na refeição sacrificial. [...] O que é


válido de um modo geral para a refeição sacrificial, pode ser dito
particularmente da Ceia [...]. A participação na refeição sacrificial não é uma
participação ativa no to sacrificial, mas sim, a apropriação que ocorre por
meio da refeição do ato sacrificial, ao comer e beber da victima (aquilo que
foi sacrificado).37

Em outras palavras, Paulo não está apenas preocupado com o testemunho de


irmãos que estivessem participando dos sacrifícios aos ídolos; mas, o problema era
que “esse comer e beber, tanto numa mesa quanto na outra, é irreconciliável, pois

35
RIDERBOS, H., A teologia do apóstolo Paulo, p. 476.
36
Cf. JEREMIAS, J., The eucharistic words of Jesus, p. 159; vd. Rm 3.25; 5.9; Ef 1.7; 2.13; Cl 1.20.
37
RIDERBOS, H., A teologia do apóstolo Paulo, p. 467.
19

em ambas se está participando de uma refeição sacrificial, significando assim


comunhão com os demônios e com o Senhor, respectivamente”.38

Entretanto, não devemos entender que há uma operação mágica dos


elementos. Ao invés disto, Paulo deixa claro que é “a mão punidora do Senhor” que
julga e disciplina os que bebem o cálice do Senhor indignamente. 39 O pão e o cálice
não efetuam a presença de Cristo à mesa, “mas justamente o contrário, a presença
de Cristo como Senhor de sua mesa, efetua por meio do pão e do vinho, a
comunhão com seu corpo e seu sangue, a participação em seu sacrifício” 40 – ou,
quando necessário, a disciplina.

Como resume Wallace,

É pela fé somente que Cristo é recebido no coração na Ceia [...]. Ele não
está presente à disposição da igreja, para ser dado e recebido
automaticamente, na mera realização de um ritual. Mesmo assim, ele está
presente, de conformidade com sua promessa, para a fé que busca e adora.
Ele também está presente de tal maneira que, embora os incautos e
descrentes não possam recebê-lo, não deixam de comer e beber juízo para
si mesmos (1Co 11.27).41

Ao corrigir os abusos existentes naquela igreja, especialmente quanto à Ceia,


Paulo deu o primeiro passo para a separação definitiva da celebração eucarística
específica daquela refeição comunitária denominada “do amor”, que inicialmente a
antecedia.42

1.3 O QUARTO EVANGELHO

No evangelho de João não temos o relato da instituição da Ceia narrado


objetivamente. Na verdade ele não menciona nenhum dos Sacramentos, mas sua
omissão a respeito da Ceia causa maior estranheza, pois seu relato dos eventos da

38
RIDERBOS, H., A teologia do apóstolo Paulo, p. 468 (cf. p. 420); tb. MORRIS, L., 1 Coríntios, p.
118 e CERFAUX, L., Cristo na teologia de Paulo, p. 108.
39
MORRIS, L., 1 Coríntios, p. 132; HIGGINS, A. J. B. The Lord's Supper in the New Testament, p. 67;
cf. 1Co 11.27, 32.
40
RIDERBOS, H., A teologia do apóstolo Paulo, p. 469.
41
WALLACE, R. S.. "Ceia do Senhor", in: Enciclopédia histórico-teológica, v. 1, p. 264.
42
Cf. abaixo, p. 24 e BERKHOF, L., História das doutrinas cristãs, p. 225.
20

última refeição é o mais extenso dos quatro evangelhos; ele menciona estarem eles
à mesa, comendo a ceia da Páscoa, fala do traidor sendo denunciado e da saída ao
Jardim – e é o único a descrever o longo discurso de consolo proferido por Jesus
aos seus discípulos.43 Mas, em momento algum parece recordar da instituição da
Ceia no contexto daquela Páscoa. Tanto pelas semelhanças presentes nos relatos,
quanto pelo exame do contexto, não há fundamento para presumirmos que se trata
de duas ceias diferentes;44 porém, não temos como saber por que João não incluiu a
cena memorável da instituição da Ceia em sua narrativa dos últimos momentos de
vida de Jesus.45

Entretanto, no capítulo sexto do quarto evangelho, Cristo se apresenta como


“o pão vivo que desceu do céu”, acrescentando: “quem comer a minha carne e beber
o meu sangue, permanece em mim e eu nele”. É óbvio no contexto do capítulo sexto
que Jesus não está na cena da instituição, numa refeição íntima com seus discípulos
mais próximos – pelo contrário, naquele momento está diante de um grupo de
46
judeus hostis ao seu ensino. Também é impossível aplicar ao Sacramento a
afirmação de Jesus de que “se não comerdes a carne do Filho do Homem e não
beberdes o seu sangue, não tendes vida em vós mesmos”. 47 Além disso, conforme
este evangelista, o mesmo discurso de Jesus enfatiza a fé nele e a atuação do
Espírito.48 Ou seja, João parece desvincular o comer e beber da carne e sangue de
Jesus do rito sacramental.49 Porém, muitos estudiosos têm percebido uma estreita
relação deste discurso de Jesus com o significado da Ceia que ele mesmo instituiria
para seus discípulos.

43
Cf. Jo 13.1 – 18.1.
44
Vd. HENDRIKSEN, W., João, p. 595-604, onde o comentarista apresenta uma harmonização
convincente dos relatos sinópticos e joanino; e p. 818-821 para refutar a tese de que João
apresenta a última ceia ocorrendo um dia antes da Páscoa (cf. Jo 18.28). Tb. JEREMIAS, J.,
The eucharistic words of Jesus, p. 54-57, que defende a harmonia nas narrativas, mas explica
18.28 afirmando que a tradição que João relata reflete a identificação entre a morte de Jesus e
do cordeiro pascal no imaginário da igreja primitiva, ao mostrar Jesus sendo morto na quinta,
dia em que o cordeiro era preparado.
45
Porém, cf. JEREMIAS, J., The eucharistic words of Jesus, p. 72-87, que argumenta que esta
omissão de João se deve ao desejo da igreja primitiva de guardar o rito da Eucaristia de
profanação pelos incrédulos, mantendo-o em segredo, aberto apenas aos batizados.
46
Cf. Jo 6.32-59.
47
MORRIS, L., Teologia do Novo Testamento, p. 323, 344; cf. Jo 6.53.
48
Cf. Jo 6:35-36,40,47, 63
49
Vd. LADD, G. E., Teologia do Novo Testamento, p. 411, que conclui que João "não é um
sacramentalista", pelo contrário, está combatendo "perspectivas mágico-sacramentais" que
haviam surgido na igreja. MORRIS, L., Teologia do Novo Testamento, p. 343-345, aponta a
diferença entre "comer a carne" em João e "comer o corpo", a linguagem comum da Ceia; ele
também discorda da interpretação sacramentalista do capítulo sexto, mas concorda em que
21

Primeiramente, devemos notar que, embora ali Jesus estivesse tratando com
oponentes que nada entenderam e nem deveriam compreender coisa alguma
acerca do Sacramento, o evangelista está escrevendo para um outro público,
composto de crentes que provavelmente já conheciam a vida do Senhor por meio
dos sinópticos.50 Na verdade, o evangelista “pressupõe” em seus leitores um
conhecimento “da vida e do pensamento da igreja”, sua pregação e Sacramentos. 51
C. H. Dodd, erudito do Novo Testamento, afirma: “o atento leitor cristão não pode
deixar de perceber a referência ao Sacramento da Eucaristia”; 52 Dodd inclusive
sugere que a referência à Páscoa no início da seção onde se narra o discurso sobre
o “pão da vida” (juntamente com a menção à traição de Judas no término) é uma
referência velada à última Ceia, que visa a “dar uma indicação do significado da
Eucaristia na narrativa que se segue”.53

Para seus interlocutores judeus, as palavras de Cristo causaram repulsa, quer


eles as interpretaram literalmente quer figuradamente, pois Jesus parecia-lhes
sugerir um ato de canibalismo. 54 Entretanto, para a comunidade para quem João
escreve, a linguagem de Jesus era claramente simbólica, referindo-se ao ato
sacrificial voluntário para o qual ele havia descido do céu, e pelo qual ele daria a
vida eterna a todo aquele que crer; Jesus estava apontando diretamente para sua
crucificação, na qual daria sua carne “pela vida do mundo”, portanto, a linguagem é
tão sacrificial quanto no relato sinóptico da instituição.55 Para tais leitores, não seria
necessário narrar a instituição da Ceia, mas sim aprofundar seu significado
soteriológico – e, principalmente, cristológico. Comentando o capítulo sexto de João,
F. F. Bruce conclui que,

João "ensina sobre as realidades espirituais para a qual [os sacramentos] apontam".
50
Segundo Irineu (c. 100-165), João havia escrito seu evangelho para remover os erros que Cerinto
espalhara na igreja, negando a natureza divina de Jesus e a encarnação do Filho; ele não
deseja apenas recontar a história que seus leitores já conheciam, mas selecionar aquilo que os
ajudaria a permanecer crendo que “Jesus é o Cristo, o Filho de Deus”; vd. HENDRIKSEN, W.,
João, p. 49-55, que avalia que esta é a melhor explicação para os distintivos e o material
adicional do quarto evangelho.
51
DODD, C. H., A interpretação do quarto evangelho, p. 21. Entretanto, Dodd defende (p. 24-25) que
João tem em mente principalmente aqueles que nada sabiam acerca do cristianismo, mas que
estavam prontos para seguir o caminho cristão, se este fosse apresentado em termos
relacionáveis à sua experiência religiosa anterior; obviamente, caso esta pessoa ingressasse
na igreja, seria capaz de reler o livro e encontrar muito mais do que na primeira leitura.
52
DODD, C. H., A interpretação do quarto evangelho, p. 440.
53
DODD, C. H., A interpretação do quarto evangelho, p. 434, 497; cf. Jo 6.4 e 71.
54
Vd. BRUCE, F. F., João, p. 143; HENDRIKSEN, W., João, p. 316; cf. Jo 6.52, 60, 66.
55
Vd. Jo 6.33,40-41,47,50-51,54-55. Cf. HENDRIKSEN, W., João, p. 315; BRUCE, F. F., João, p.
143.
22

mesmo não registrando a instituição [da Ceia], neste discurso de Jesus ele
[o evangelista] nos dá elementos que preenchem a Ceia do Senhor com
uma profunda riqueza de significado para o crente. É verdade que o Senhor
neste discurso não está falando diretamente da Ceia, mas ele expõe a
verdade de que a Ceia fala.56

Desta maneira, o evangelista João escreve considerando especificamente as


necessidades de seus leitores originais, por isso preenche o seu ensino quanto à
Ceia do Senhor, sem narrar sua instituição histórica – provavelmente já bem
conhecida e estabelecida – mas registrando, segundo a estrutura literária que
delineia todo o seu evangelho, um discurso de Jesus especialmente elucidativo a
respeito do significado da Ceia para seus crentes. Nas palavras de Higgins,

O ensino deste evangelista é que o Cristo que se fez carne e viveu sobre a
terra é idêntico ao Cristo que está presente na Eucaristia [...] o evangelista
deseja imprimir sobre seus leitores que a presença de Cristo na Eucaristia é
tão real quanto sua presença física era aos apóstolos.57

1.4 CONCLUSÕES PRELIMINARES

A partir do texto bíblico podemos discernir claramente a prática da igreja


primitiva, ancorada na ordem direta de Cristo e preservada na tradição apostólica. A
Ceia do Senhor está diretamente conectada à morte vicária de Jesus, como o
verdadeiro cordeiro pascal que dá sua vida em favor de seu povo, e à centralidade
de sua morte na vida cristã. Sua celebração inclui a oração que roga a bênção divina
sobre os elementos do pão e do vinho, separando-os do uso comum para o
momento de comunhão com o Cristo ressurreto e participação em seu sacrifício por
nós. Inclui o partir do pão e a distribuição dos elementos entre os crentes, que
comem e bebem, recebendo-os em ações de graças.

A observância deste Sacramento pela igreja correspondeu à intenção de

56
BRUCE, F. F., João, p. 146; Ênfase acrescentada.
57
HIGGINS, A. J. B., The Lord's Supper in the New Testament, p. 77; tradução minha. Não
precisamos concordar com Higgins quando afirma que a esperança de Jesus de seu retorno
23

Jesus de substituir a comemoração anual da gênese do povo de Israel na Páscoa,


pela celebração da gênese da igreja em seu sacrifício vicário, enquanto ele não
retorna a ela, para consumar sua obra; a diferença era que o centro da nova
celebração seria a pessoa do próprio Jesus Cristo.

Assim, a Ceia do Senhor carrega um significado passado, de lembrança da


morte de Cristo e uma expectação da perfeita comunhão com Cristo na vinda do
Reino, comunhão que é antecipada a cada celebração pela experiência da viva
presença do Cristo ressuscitado. Há um empobrecimento no significado pretendido
por Jesus para a Ceia quando qualquer destes elementos é negligenciado.58

iminente foi frustrada.


58
HIGGINS, A. J. B., The Lord's Supper in the New Testament, p. 54-55.
24

2 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA DOUTRINA DA CEIA

2.1 A PATRÍSTICA

A igreja primitiva mantinha uma celebração chamada “do amor” ( agapae),


onde cada irmão ou família trazia sua oferta, e todos faziam uma refeição conjunta.
Tinha um aspecto marcadamente religioso, a ponto de não serem admitidos não-
batizados à comunhão. As dádivas eram denominadas de ofertas ( prosforai) e
sacrifícios (qusi,ai) e eram recebidas pelo bispo com ações de graças
(Eucaristia).59

Estas refeições antecediam a celebração da Ceia conforme ensinada pelos


apóstolos; esta proximidade fez com que se aplicassem os termos relacionados a
elas com a própria Ceia. Com o passar do tempo, conforme se enfatizava a
importância da refeição sacramental, sua importância foi diminuindo na vida da
igreja. Assim, por meados do século segundo, já parece haver uma limitação das
ofertas dos fiéis ao pão e o vinho, enquanto a Ceia foi-se reduzindo a um ato
litúrgico, não mais acompanhado de refeição real. Entretanto, o aspecto de que os
crentes traziam dádivas para ofertar com ações de graça diante do Senhor foi sendo
incorporado ao conceito da Ceia, com os elementos do pão e do vinho passando a
ser oferecidos a Deus.

59
BERKHOF, L., Teologia sistemática, p. 595-596, e História das doutrinas cristãs, p. 225. Esta
celebração provavelmente está relacionada com as reuniões e abusos descritos por Paulo em
1 Coríntios 11. 17-34.
25

2.1.1 Os Primeiros Testemunhos

O Didaquê (c. 70-120), antiquíssimo manual de doutrinas e liturgia cristãs, é


uma testemunha da simplicidade original da Ceia; basicamente, o Didaquê
determina as palavras de consagração com ações de graças e, “depois de saciados”
os comungantes, uma oração de agradecimento – com a ressalva de que nenhum
não-batizado tivesse acesso à mesa do Senhor.60

Inácio de Antioquia (c. 67-110), na sua epístola à Esmirna, adverte a fugir das
heresias; os hereges são identificados como aqueles que “se afastam da Eucaristia
e da oração, porque não professam que a Eucaristia é a carne de nosso Salvador
Jesus Cristo, que sofreu por nossos pecados e que, na sua bondade, o Pai
ressuscitou”.61 Inácio usava uma linguagem evangélica rebuscada, como
“refugiando-me no evangelho como na carne de Cristo”, “partindo o mesmo pão, que
é remédio da imortalidade, antídoto para não morrer”; por conta disto, não
precisamos interpretar sua definição da Eucaristia como uma afirmação de
transformação dos elementos, mas como denotando o poder espiritual que deveria
ser buscado neles.62

Justino de Roma (c. 100-165), também aborda a Eucaristia em suas


apologias. Ao proibir a participação de quem ainda não seja batizado ou não viva
conforme o ensino de Cristo, fala tanto do aspecto subjetivo com que o recipiente
toma os elementos, quanto duma operação divina semelhante à própria encarnação:

Pois não tomamos essas coisas como pão comum ou bebida ordinária, mas
da maneira como Jesus Cristo, nosso Salvador, feito carne por força do
Verbo de Deus, teve carne e sangue por nossa salvação, assim nos
ensinou que, por virtude da oração ao verbo que procede de Deus, o
alimento sobre o qual foi dita a ação de graças – alimento com o qual, por
transformação, se nutrem nosso sangue e nossa carne – é a carne e o
63
sangue daquele mesmo Jesus encarnado.

60
Cf. Didaquê, em: PADRES apostólicos (Patrística, v. 1), R. FRANGIOTTI (Ed.), p.353, 354.
61
INÁCIO de Antioquia, “Aos esmirniotas”, 6, 7. Em: PADRES apostólicos (Patrística, v. 1), R.
FRANGIOTTI (Ed.), p. 117.
62
Cf. GONZALEZ, J. L., Uma história do pensamento cristão, v. 1, p. 77-78.Vd. INÁCIO de Antioquia,
“Aos filadelfienses”, 5 e “Aos efésios”, 20, in: PADRES apostólicos (Patrística, v. 1), R.
FRANGIOTTI (Ed.), p. 111, 89.
63
JUSTINO de Roma, Patrística, v. 3, R. FRANGIOTTI (Ed.), p. 82.
26

Irineu de Lião (c. 130-202), escrevendo contra as heresias de seu tempo,


menciona a Eucaristia de modo bastante direto. Ele denuncia que os hereges que
não reconhecem Jesus como o Filho do Criador não poderão obter a certeza de que
o pão e o vinho sobre os quais foram dadas graças são o corpo e o sangue de
Cristo; por outro lado, os fiéis já têm esta certeza, e assim recebem não somente o
pão comum, mas a Eucaristia, “feita de dois elementos, o terreno e o celeste”. 64
Defendendo a doutrina da ressurreição da carne contra um conceito dualístico entre
espírito e matéria, ele argumenta com o exemplo da Eucaristia, onde a matéria e o
poder espiritual de Deus atuam juntos:

Se, portanto, o cálice que foi misturado e o pão que foi produzido recebem a
Palavra de Deus e se tornam a Eucaristia, isto é, o sangue e o corpo de
Cristo, e se por eles cresce e se fortifica a substância da nossa carne, como
podem pretender que a carne seja incapaz de receber o dom de Deus, que
consiste na vida eterna, quando ela é alimentada pelo sangue e pelo corpo
de Cristo, e é membro deste corpo?65

Apesar das discrepâncias quanto aos detalhes da celebração (se o pão devia
ser com ou sem fermento, por exemplo), a Ceia era observada por toda a igreja, o
que certamente testemunha de sua instituição diretamente pelos apóstolos,
conforme o ensino de Cristo; “não há dúvida de que ela é o centro da adoração
cristã, embora ainda não encontremos uma discussão sistemática mais clara sobre a
natureza da presença de Cristo, nem a qualquer poder atribuído às palavras da
instituição em si mesmas”. 66 No quarto e quinto séculos ainda não há qualquer
tentativa de elaborar uma teologia dos Sacramentos; a maioria dos autores deste
período parece relacionar de algum modo a Ceia ao sacrifício que Cristo ofereceu ao
Pai – porém, não devemos pretender encontrar precisão na linguagem teológica
daqueles primeiros crentes. Há realismo e simbolismo quando falam do pão e do
vinho como carne e sangue de Cristo.

2.1.2 O Conceito Agostiniano

Agostinho, bispo de Hipona (354-430) é o teólogo que marca a transição para

64
IRINEU de Lião, Contra as heresias, IV.18,4-5. Patrística, v. 4, R. FRANGIOTTI (Ed.), p. 423-424.
65
IRINEU de Lião, Contra as heresias, V.2,3. Patrística, v. 4, R. FRANGIOTTI (Ed.), p. 522.
66
GONZALEZ, J. L., Uma história do pensamento cristão, v. 1, p. 94.
27

o período medieval. Sua teoria sacramental carrega a mesma fluidez que


caracterizara os teólogos pré-nicenos, e que somente terminaria com a sistemática
de definições e classificações próprio da escolástica.67 Agostinho utiliza o linguajar
das Escrituras, e usa expressões ambíguas para se referir à Eucaristia, por isso é
possível encontrá-lo entre as autoridades citadas por defensores de compreensões
realistas e simbolistas da Ceia.

Ao comentar o Salmo 98, ele alegoriza a expressão “Prostrai-vos diante do


escabelo de seus pés”, interpretando-a como se referindo ao corpo de Cristo, feito
da carne de Maria, que era feita do pó da terra; daí, deduz que o salmo nos ordena
adorar a carne de Cristo, isto é, o pão da Eucaristia. Entretanto, acrescenta: “Apesar
de necessariamente ser celebrado de modo visível, importa entendê-lo
invisivelmente.”68

Em outros momentos, porém, fazia clara distinção entre o sinal visível e aquilo
que ele significava, e parecia ensinar um recebimento espiritual do corpo de Cristo
na Ceia.69 Por exemplo, ao interpretar a declaração de Jesus quanto a comer sua
carne e beber seu sangue, ele afirma que esta é uma “expressão simbólica que nos
prescreve comungar da paixão do Senhor e guardar, no mais profundo de nós
próprios, doce e salutar lembrança de sua carne crucificada e coberta de chagas por
nós”.70 Obviamente esta é uma descrição bastante espiritualizada, e até mesmo
memorialista da Ceia do Senhor. Por outro lado, ele se referia constantemente ao
pão e ao vinho como carne e sangue de Cristo, e à Eucaristia como “o mistério
[sacramentum ] de seu corpo e de seu sangue”.71

A avaliação do historiador da igreja Justo Gonzalez parece-nos a mais


sensata:

67
GONZALEZ, J. L., Uma história do pensamento cristão, v. 2, p. 49. Para uma defesa católica de
presença real na doutrina eucarística de Agostinho, vd. PORTALIÉ, E., A guide to the thought
of Saint Augustine, p. 247-260, que conclui erroneamente que não há apoio em Agostinho para
a doutrina protestante, pois a considera apenas na perspectiva memorialista, isto é, zuingliana
(vd. abaixo). Para uma defesa reformada da presença real em Agostinho, vd. CALVINO, J., As
institutas, v. 4, capítulos 14, 17 e 18.
68
AGOSTINHO de Hipona. Comentário aos Salmos, (98.9), Patrística; v. 9/2, p. 1157.
69
Vd. BERKHOF, L., História das doutrinas cristãs, p. 226.
70
AGOSTINHO de Hipona. A doutrina cristã, III, 16.24, Patrística; v. 17, p. 172.
71
Vd. p. exp., AGOSTINHO de Hipona. Comentário aos Salmos, (3.1; 33.6), Patrística; v. 9/1, p. 31,
426.
28

É melhor dizer que duas tendências opostas estão em luta em Agostinho: o


realismo eucarístico que estava se tornando mais e mais geral, e o
espiritualismo neoplatônico, que anteriormente havia levado Orígenes e
outros a interpretar a Eucaristia em termos espiritualizados. Outra
possibilidade seria dizer que Agostinho acredita que a pessoa que participa
da comunhão realmente recebe o corpo e o sangue de Cristo, não no
sentido de recebe-los fisicamente, mas, ao contrário, no sentido que, ao
alimentar-se dos elementos do pão e do vinho, a pessoa se torna
72
participante do corpo e do sangue de Cristo.

A teologia de Agostinho teve uma influência duradoura na igreja. Mas, a


ambigüidade de seu ensino eucarístico impediu que sua posição lograsse
proeminência; pelo contrário, como veremos abaixo, houve uma clara tendência em
favor de uma presença real do corpo físico – o mesmo concebido no ventre da
virgem – nos elementos.

2.1.3 O Realismo Ganha Espaço

O conceito da Ceia como sacrificial foi se desenvolvendo desde Cipriano (?-


258), e se definindo com Gregório, o Grande (c. 540-604). O Patriarca de
Constantinopla João Crisóstomo (347-407), por exemplo, explorava em seus
disputados sermões implicações bastante realistas da presença de Cristo na Ceia.
Ele fala de fincar os dentes na carne de Cristo, identifica o vinho com o sangue que
verteu do seu lado traspassado na cruz, e o pão com o corpo açoitado e crucificado.
Mais especificamente, ao explicar o mistério eucarístico em termos de transformação
dos elementos, Crisóstomo se coloca ao lado de Cirilo de Alexandria (c. 370-442),
Teodoro de Mopsuéstia (c. 350-428), entre muitos outros.73

No início da Idade Média a questão dos elementos da Eucaristia ainda não


havia sido resolvida: na teologia a doutrina simbolista mais agostiniana ainda
encontrava adeptos; mas, na prática litúrgica dos fiéis, a noção esboçada desde
Ambrósio de Milão (340-397) de que os elementos se convertiam no corpo de
Jesus74 tinha mais apelo popular. Nesta época, a tendência entre os teólogos
passou a ser: partir da afirmação da presença material do corpo e sangue do Cristo

72
GONZALEZ, J. L., Uma história do pensamento cristão, v. 2, p. 51. Vd. tb. KELLY, J. N. D.,
Doutrinas centrais da fé cristã, p. 339-342, que defende que Agostinho não questionou o
realismo preponderante de sua época, mas elaborou uma doutrina “radicalmente realista” e
“francamente espiritualizante”.
73
Cf. KELLY, J. N. D., Doutrinas centrais da fé cristã, p. 339-342
74
Vd. BETZ, J., “Eucaristia”, in: Dicionário de teologia, v. 2, p. 140.
29

ressurreto, procedendo-se então às tentativas de se explicar como a carne e o


sangue de Cristo podiam estar presentes. Esta visão materialista da Ceia se
desenvolveria paulatinamente durante a escolástica até o conceito de
transubstanciação, que seria ratificado no Concílio de Trento, em 1215.

2.2 A ESCOLÁSTICA

2.2.1 A Transubstanciação

Em 818 Pascásio Radberto (c. 790-865) publicou um tratado “Sobre o corpo e


o sangue do Senhor”, onde propunha que os elementos da Eucaristia literalmente se
transformavam no próprio corpo que nasceu de Maria, mediante um milagre não
perceptível aos sentidos; houve polêmica com outros teólogos, como o monge
Ratramno de Corbie (c. 800-868), que defendia a Ceia segundo o simbolismo
agostiniano.75

Cerca de 230 anos depois, o conceito materialista de Radberto suscitaria


ainda outra controvérsia, com Berengário de Tours (c. 998-1088), que defendia uma
interpretação idealista. Berengário, entretanto, seria combatido por teólogos de sua
época, como Lanfranco de Pávia (1005-1089), e finalmente condenado formalmente
por Roma em 1059;76 ali, foi obrigado a fazer uma declaração eucarística
extremamente materialista, ainda que não tivesse mudado sua consciência. 77

Os teólogos da escolástica ensinavam que Cristo obteve mérito suficiente


para compensar os pecados de todos os homens de todos os tempos, e este mérito
é transferido aos fiéis através dos Sacramentos. Assim, atribuíam maior significado
aos Sacramentos como agentes da graça que entendiam como aquelas operações
divinas que infundem na natureza humana uma capacidade sobrenatural para se
praticar a justiça e alcançar mérito diante de Deus. Neste modelo soteriológico a

75
HÄGGLUND, B., História da teologia, p. 131-3; BETZ, J., “Eucaristia”, in: Dicionário de teologia, v.
2, p. 140; BERKHOF, L., História das doutrinas cristãs. São Paulo: PES, 1992, p. 226.
76
GONZALEZ, J. L., Uma história do pensamento cristão, v. 2, p. 144-150, traz uma exposição e uma
análise da controvérsia.
77
BETTENSON, H., Documentos da igreja cristã, p. 239, transcreve parte da declaração: "o pão e o
vinho postos no altar são [...] o verdadeiro corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo e
estes são sensivelmente tocados e rompidos pelas mãos dos sacerdotes e esmagados pelos
dentes dos crentes, não só sacramental, mas realmente". Berengário seria novamente forçado
30

Ceia ocupa uma posição de destaque.

2.2.1 A Sistematização Tomista

Já para Tomás de Aquino (1225-1274) os Sacramentos não são


simplesmente veículos da graça, mas realmente causam a comunicação da graça. 78
A teologia eucarística de Aquino requer maiores explicações, pois influenciaria toda
a concepção sacramental posterior. Aquino foi aluno de Alberto Magno (1193-
1280),79 importante teólogo dominicano da Universidade de Paris; Alberto estudou e
divulgou as obras de Aristóteles (384-322 a.C.), que estavam sendo redescobertas
por meio de comentários por estudiosos islâmicos, como Averrois (1126-1198).80 Em
suas obras de lógica, Aristóteles estabeleceu 10 categorias para analisar a
realidade: substância, quantidade, qualidade, relação, posição, paixão, lugar, tempo,
hábito, ação. A substância é a essência da sua natureza, enquanto seus acidentes
são suas qualidades externas, perceptíveis. Mas, enquanto o filósofo grego aplicava
tais distinções na relação entre forma e matéria, Aquino a usou para a existência. 81

Há um consenso entre os estudiosos de que Aquino foi o grande responsável


por uma síntese entre o pensamento cristão e o aristotelismo; 82 percebe-se esta
síntese de um modo especial em sua doutrina eucarística – tanto pela forma de
argumentação quanto pelos conceitos defendidos:

Alguns afirmaram que a substância do pão e do vinho permanecem neste


Sacramento depois da consagração. Mas isto é uma posição insustentável,
pois em primeiro lugar destrói a realidade deste Sacramento, que exige que
no Sacramento esteja o verdadeiro corpo de Cristo, que aí não estava antes
da consagração. Ora, uma coisa não pode estar num lugar onde não estava
antes senão por mudança de posição ou por conversão de uma coisa em
outra; assim, o fogo começa a arder numa casa ou porque é levado para lá
ou porque é acendido. É claro que o corpo de Cristo não passa a estar no
Sacramento por mudança de posição... Portanto, o corpo de Cristo passa a
estar no Sacramento por meio da conversão da substância do pão em seu
corpo. Ora, aquilo que é mudado em outra coisa não permanece depois da

a uma confissão materialista em 1079, por persistir em ensinar o conceito idealista.


78
HÄGGLUND, B., História da teologia, 1989, p. 163.
79
Vd. CLOUSE, R. G., "Alberto Magno", in: Enciclopédia histórico-teológica, v. 1, p. 35.
80
Vd. VAN ENGEN, J., "Averrois", in: Enciclopédia histórico-teológica, v. 1, p. 139.
81
Vd. GEISLER, N. L., "Tomás de Aquino", in: Enciclopédia histórico-teológica, v. 3, p. 541; SPROUL,
R. C., Filosofia para iniciantes, p. 45-48.
82
Vd. LOTZ, J. B., “Tomismo”, in: Dicionário de teologia, Heinrich FRIES (Ed.), v. 5, p. 331.
31

mudança...83

Note-se que não há recurso à autoridade das Escrituras. Conforme apontado


acima, Aquino parte da afirmação da presença material, “exigida” pelo Sacramento –
e argumenta logicamente pela transubstanciação. Aquino está ciente de que as
categorias formais de Aristóteles não davam subsídio para desvincular a substância
dos acidentes; mas, neste ponto recorre ao poder divino, capaz não somente
daquela conversão formal “que se realiza segundo as leis da natureza”. “Deus” –
afirma ele – “que é a causa primeira da substância e dos acidentes, é capaz de, pelo
seu infinito poder, guardar os acidentes em existência mesmo depois de removida a
substância pela qual eram conservados em existência como por sua causa
própria.”84

Para fazer justiça ao filósofo grego, o teólogo R. C.Sproul nos faz lembrar de
que,

Apesar de a linguagem de Aristóteles ser usada para formulá-la, a doutrina


da transubstanciação representa um distanciamento total de sua filosofia.
Aristóteles aceitava a distinção entre a substância de uma entidade e seus
acidentes, mas jamais a separação deles (como exige a transubstanciação).
Ele afirmava que os acidentes de uma coisa são gerados por sua
substância ou fluem dela. [...] A presença de bolotas sinaliza a presença de
um carvalho, e não de um elefante, porque a substância de um elefante não
produz os acidentes das bolotas.85

Assim, recorrendo às categorias da filosofia aristotélica de um modo que


Aristóteles dificilmente teria se permitido,86 os teólogos da alta escolástica passaram
a distinguir nos elementos sacramentais a substância das qualidades; desta forma
puderam justificar sua interpretação literal das palavras de Jesus na instituição (“isto
é o meu corpo”), afirmando que a hóstia havia sido mudada (quanto à substância)
em carne de Cristo; ao mesmo tempo escapavam da objeção do homem comum de

83
AQUINO, T., Suma teológica, v. 3, questão 75. Citado em BETTENSON, H., Documentos da igreja
cristã, p. 240.
84
AQUINO, T., Suma teológica, v. 3, questão 77. Citado em BETTENSON, H., Documentos da igreja
cristã, p. 242-243. Vd. SPROUL, R. C., Filosofia para iniciantes, p. 48: “É claro que a Igreja
Católica compreendeu a filosofia de Aristóteles nesse ponto e entendeu que um milagre era
necessário para transcender a relação natural entre substância e acidentes.”
85
SPROUL, R. C., Filosofia para iniciantes, p. 47-48.
32

que a hóstia ainda tinha cheiro, sabor e aparência (acidentes) de hóstia. Note que,
como lembra Sproul, na verdade este evento exige um milagre duplo: “Por um lado,
você tem a substância do corpo e do sangue de Cristo presentes sem os acidentes
do corpo e sangue de Cristo. Por outro lado, você tem os acidentes do pão e do
vinho sem a substância do pão e do vinho. 87

Conforme foi oficialmente recebida e ensinada pela igreja medieval, a


transubstanciação foi recebendo elaborações e acumulando implicações sutis.
Osterhaven resume as principais:

1) a concomitância, isto é, tanto o corpo quanto o sangue de Cristo estão


em cada elemento; daí, quando o cálice é recusado aos leigos, o Cristo
inteiro, corpo e sangue, é recebido no pão isoladamente; 2) a consagração,
isto é, o ensino de que o momento sublime na Eucaristia não é a comunhão
com Cristo mas a transformação dos elementos, pela consagração, no
próprio corpo e sangue de Cristo, ato este que é realizado exclusivamente
pelo sacerdote; 3) visto haver a presença real de Cristo na Ceia – o corpo, o
sangue, a alma e a divindade – um sacrifício é oferecido a Deus; 4) o
sacrifício oferecido é propiciatório; 5) os elementos consagrados, ou a
hóstia, podem ser reservados para uso posterior; 6) os elementos assim
reservados devem ser venerados como o Cristo vivo.88

A transubstanciação também se apresentou como base filosófica e doutrinária


para inúmeras práticas supersticiosas na população não-instruída. Timothy George
dá um panorama da prática popular religiosa decorrente deste ensino na Idade
Média:

As missas eram oferecidas em casamentos e funerais, para proteção contra


doenças ou mau tempo e, nas áreas rurais, até mesmo para o parto seguro
das vacas, ovelhas e éguas. Nas igrejas maiores e nas catedrais, inúmeros
altares foram erigidos, freqüentemente em capelas laterais pagas por
famílias abastadas, onde tais missas podiam ser rezadas muitas vezes ao
dia. [...] Para os reformadores, essa prática parecia ser outro esforço inútil
por comprar a graça de Deus.89

86
Cf. MONDIN, B., Curso de Filosofia, 1981. v. 1. p. 81-3.
87
SPROUL, R. C., Filosofia para iniciantes, p. 47, ênfase do autor. Vd. BROMILEY, G. W.,
"Transubstanciação", in: Enciclopédia histórico-teológica, v. 3, p. 571.
88
OSTERHAVEN, M. E., "Ceia do Senhor, conceitos da", in: Enciclopédia histórico-teológica, v. 1, p.
267. Ênfase acrescentada.
89
GEORGE, T., Teologia dos reformadores, p. 145.
33

Sendo o próprio corpo físico de Cristo, a graça presente nos elementos opera
soberana e independentemente da fé do recipiente ou da dignidade do ministrante
(ex opere operato). Foi esta visão que prevaleceu na Igreja Católica desde sua
oficialização em Latrão (1215).90 O Concílio de Trento (1545-1563) foi convocado
mais para uma reação polêmica aos reformadores do que para uma tentativa de
revisão doutrinária.91 Roma preferiu permanecer surda aos protestos, mantendo que
os Sacramentos causam graça, e mantendo a presença real física de Cristo na Ceia.

90
BERKHOF, L., Teologia sistemática, p. 596.
91
PIGGIN, F. S., "O Concílio de Trento", in: Enciclopédia histórico-teológica, v. 1, p. 313.
34

3 A REFORMA PROTESTANTE E A PRESENÇA DE CRISTO NA CEIA

3.1 A POLÊMICA ANTICATÓLICA

Entre os reformadores do século 16 era grande a consciência da necessidade


de refutar os erros da igreja romana, dos quais estavam tentando livrar as mentes
dos fiéis; por isso dedicaram consideráveis esforços no combate aos Sacramentos
que o romanismo havia acumulado no decorrer dos anos. “No entendimento
reformado, Crisma, Penitência, Ordem, Unção dos Enfermos e Casamento não
foram instituições de Jesus, não desfrutam de caráter perpétuo, nem estão
estritamente ligados ao evangelho como a Ceia e o Batismo estão. Portanto, a
Reforma não aceitou essas cerimônias como Sacramentos.” 92 Porém, em nenhum
outro ponto os reformadores foram mais claros ou mais contundentes do que quanto
à celebração da Ceia; eles denunciaram o ensino romano sobre a missa como
crassa heresia, superstição pagã e deturpação da Palavra de Deus.

Tanto Lutero quanto Zwínglio e Calvino reconheceram que a missa estava no


centro da religiosidade de sua época, e buscaram uma reformulação. Todos os
reformadores rejeitavam o seu caráter clerical, defendendo que o povo, e não
somente os sacerdotes, deveriam participar da mesa da comunhão; também
insistiam juntos em que os dois elementos deveriam ser distribuídos. Rejeitavam o
ensino de que a missa repetia ou atualizava o sacrifício de Cristo diante de Deus,
pelas mãos do sacerdote. Afirmavam unânimes que as palavras de consagração
deveriam ser ditas no vernáculo, tanto para que a fé dos recipientes fosse avivada
pela Palavra de Deus, quanto para acabar com o ambiente místico que se criava na
consagração. E, como raiz de todos estes enganos, combatiam conjuntamente a

92
LIMA, L. A., Razão da esperança, p. 498.
35

transubstanciação.93 A Confissão de Fé de Westminster (XXIX.VI) ainda refletia esta


atitude polêmica ao declarar que

A doutrina geralmente chamada transubstanciação, que ensina a mudança


da substância do pão e do vinho na substância do corpo e do sangue de
Cristo, mediante a consagração de um sacerdote ou por qualquer outro
meio, é contrária, não só às Escrituras, mas também ao senso comum e à
razão, destrói a natureza do Sacramento e tem sido a causa de muitas
superstições e até de crassa idolatria.

Porém, em razão desta ênfase polêmica, extremamente necessária pelas


circunstâncias históricas que os reformadores enfrentavam, alguém poderia concluir
que este Sacramento não recebe importância na tradição protestante. Mas esta seria
uma conclusão errada. Na verdade, os reformadores insistiram em que a verdadeira
significância da Ceia havia sido ofuscada e empanada pelas superstições correntes.
Quanto a este ponto, Calvino, que dedica dois capítulos de suas Institutas da
Religião Cristã à Ceia – sendo que mais da metade do tempo para atacar os erros
romanistas –, exaspera-se:

Com estas e invenções semelhantes, Satanás tentou, como se trevas


fossem derramadas, ofuscar e destruir a Sacra Ceia de Cristo, a fim de que
pelo menos sua pureza não se retivesse na Igreja. Mas, a culminância da
horrenda abominação foi quando Satanás produziu um sinal, pelo qual não
só fosse a Ceia Sagrada obscurecida e pervertida, mas inteiramente
apagada e abolida, até que se desvanecesse e fosse tirada da memória dos
homens, a saber, quando o erro pestilentíssimo cegou quase todo o mundo,
para que se cresse ser a missa sacrifício e oferta com o fim de se obter a
remissão de pecados.

Pouco importa em que sentido entenderam isto no princípio, e como o


ensinaram os doutores escolásticos [...] já que não passam de vãs sutilezas,
que não servem senão para encobrir o fulgor da Ceia.94

Os reformadores, unanimemente, clamaram por um retorno ao conceito


neotestamentário dos Sacramentos. Mais especificamente, eles ensinaram que é a
Palavra que consagra os elementos e dá sentido ao Sacramento; e que, portanto, se

93
GEORGE, T., Teologia dos reformadores, p. 147.
94
CALVINO, J., As institutas, v. 4, p. 401 (IV, xviii,1). Às citações da versão de 1560 das “Institutas da
Religião Cristã”, obra magna de Calvino, seguirá a referência ao volume, capítulo e artigo, entre
parênteses.
36

não há a Palavra explanadora e designadora, há apenas um sem-número de


elementos terrenos, que em si mesmos são vazios e sem significado. 95 Obviamente,
esta crítica se aplicava àquelas cerimônias sancionadas pelo papado como
sacramentais, e rejeitadas pelos reformadores; para estes, por mais que os homens
encontrassem analogias espirituais em tais elementos terrenos, sem a Palavra
faltava-lhes a autoridade divina.

Tendo abordado a questão nos aspectos em que os reformadores


concordavam entre si em oposição à tradição católica medieval, nos será necessária
ainda uma explanação dos diferentes conceitos protestantes que se levantaram
acerca da Ceia o Senhor como meio de graça, nos detendo no conceito calvinista, e
em como ele se distingue dos demais.

3.2 A “CONSUBSTANCIAÇÃO” LUTERANA

Na Reforma Protestante, Martinho Lutero (1483-1546) sustentou que a vida


litúrgica da igreja havia se deteriorado completamente pela negligência com a
pregação da Palavra. Na sua obra polêmica “O cativeiro babilônico da igreja”, ele
descreve como ganhou ousadia para confrontar o sistema solidamente defendido
pela igreja de sua época:

... seria muito mais plausível e traria consigo muito menos milagres
redundantes, se se afirmasse que não só os acidentes, mas também a
realidade do pão e do vinho permanecem neste Sacramento do altar – se a
igreja não tivesse decidido diversamente! Depois, quando compreendi que
era essa igreja que decidiu assim, a saber, a igreja tomista, isto é,
aristotélica, tornei-me mais ousado. [...] A transubstanciação deve ser
encarada como invenção humana, visto que não está baseada nem na
Escritura, nem em raciocínio sadio...96

Para ele, a eficácia do Sacramento reside na Palavra da promessa divina, não


na ação humana. Entretanto, Lutero manteve a necessidade da presença real de
Cristo, isto é, que o corpo e o sangue de Cristo são recebidos com e sob os
elementos externos – doutrina que seus seguidores definiram como

95
Cf. BERKOUWER, G. C., The sacraments, p. 46.
96
LUTERO, M., O cativeiro babilônico da igreja, citado em BETTENSON, H., Documentos da igreja
37

consubstanciação.97 Numa passagem de seu Catecismo maior (1529), justifica-se


assim:

A Palavra tem de fazer do elemento um Sacramento. Caso contrário,


permanece simples elemento. Agora acontece que não se trata de palavra e
ordenação de um príncipe ou imperador, mas da palavra e ordenação da
excelsa Majestade, diante da qual todas as criaturas devem cair de joelhos
e dizer sim, que a coisa é como ele diz, e aceitá-la com todo a reverência,
temor e humildade.98

E acrescenta que ainda que “cem mil demônios, juntamente com todos os
entusiastas, se adiantassem dizendo: 'Como pode pão e vinho ser o corpo e sangue
de Cristo?'“, os crentes deveriam permanecer firmes nesta verdade. 99 Percebe-se
que Lutero manteve a presença material do corpo de Cristo na Ceia, ainda que
rejeitasse as intrincadas construções filosóficas que lhe davam sustentação desde a
escolástica. Para manter tal posição, Lutero teve de recorrer à comunicação da
natureza divina de Cristo à humana, e afirmar a ubiqüidade 100 do corpo físico do
Jesus glorificado, o que significa que seu corpo físico participa da onipresença de
sua natureza divina, podendo, portanto, estar em toda parte.

Por que não poderia Cristo confinar seu corpo dentro da substância do pão,
tal como dentro dos acidentes? Fogo e ferro são duas substâncias; contudo,
no ferro em brasa estão misturados de tal modo que qualquer parte é ao
mesmo tempo ferro e fogo. O que impede que o glorioso corpo de Cristo
esteja em qualquer parte da substância do pão?101

As palavras de Filipe Melanchton (1497 - 1560), na sua defesa diante do rei


dos artigos da Confissão de Augsburgo contra o ataque católico, ecoam com clareza
o conceito luterano de consubstanciação: “Confessamos crer que na Ceia do Senhor
o corpo e o sangue de Cristo estão presentes verdadeira e substancialmente, sendo
oferecidos verdadeiramente com os elementos visíveis, pão e vinho, aos que

cristã, p. 299.
97
HÄGGLUND, B., História da teologia, p. 203-5.
98
LUTERO, M., Os catecismos. Porto Alegre: Concordia, 1983, p. 487.
99
LUTERO, M., Os catecismos, p. 487.
100
Ubiqüidade é a propriedade ou estado de onipresença – no caso, referindo-se à natureza humana
de Cristo.
101
LUTERO, M., Os catecismos. Porto Alegre: Concórdia, 1983, p. 487.
38

recebem o Sacramento.”102

Com sua teologia centralizada na doutrina da “fé somente”, Lutero rejeitou a


idéia romanista da operação independente dos Sacramentos. Entretanto, insistia na
objetividade do dom divino presente no Sacramento: independentemente de suas
condições espirituais, todos comiam o corpo de Cristo no pão – mas, os incrédulos
que comungavam recebiam apenas juízo para si mesmos, pois os benefícios da
Ceia devem ser recebidos pela fé.103

Além dos papistas, Lutero teve ainda de combater com os chamados


“radicais” ou “entusiastas”, dentre os quais Andreas Carlstadt (1486-1541) e Thomas
Münzer (1489-1525); e, num certo sentido, Zwínglio, cujo conceito quanto à Ceia
Lutero considerava espiritualizado, ou seja, apenas simbólico. Obviamente, Lutero
admitia que os elementos eram símbolos. Mas era inflexível em manter que a
realidade anunciada pelas palavras de Jesus acompanhavam o símbolo. 104

Em 1529 houve um colóquio em Marburgo, realizado numa tentativa de


diminuir a distância entre os reformadores, especialmente porque o catolicismo
estava recuperando as forças em algumas regiões. Lutero participou das reuniões
com certa restrição, pois acreditava que as diferenças em relação ao reformador
suíço eram irreconciliáveis – principalmente quanto à presença de Cristo na Ceia. De
fato, quatorze dos quinze pontos doutrinários discutidos alcançaram concordância;
mas, nenhum acordo foi possível quando à Ceia na ocasião, e a controvérsia
manteve-se. Timothy George descreve a reunião em que Lutero e Zwínglio
defrontaram-se:

Lutero entrou na sala antes e, sem que ninguém percebesse, escreveu em


giz as palavras “Hoc est corpus meum” [“Isto é meu corpo”] na mesa em
frente a seu assento. Então, cobriu a inscrição com um pano de cetim. No

102
MELANCHTON, F., Apologia da Confissão de Augsburgo, p. 96.
103
GEORGE, T., Teologia dos reformadores, 1994, p. 155-156. Cf. o mesmo ensino por
MELANCHTON, F., Apologia da Confissão de Augsburgo, p. 134: "Assim, ensinamos nós que
no uso dos sacramentos deve aceder-se a fé que creia estas promessas e receba as coisas
prometidas, que são oferecidas no sacramento [...] Entretanto, de que valeriam esses milagres
e promessas ao incrédulo?"
104
Paulo e os sinópticos registram "Isto é o meu corpo...", e não "isto simboliza..."; Lutero não
aceitava qualquer interpretação que não fizesse jus a estas palavras (cf. Mt 26.26,28; Mc
14.22,24; Lc 22.19; 1Co 11.24). HODGE, C., Teologia sistemática, p. 1509, n.250, traz um
interessante arrazoado quanto às possibilidades de interpretação literal ou metonímica deste
texto.
39

decorrer do debate, aconteceu o seguinte diálogo:


(Zwínglio): Seria uma vergonha crer em tão importante doutrina, ensiná-la e
defendê-la, e ainda assim ser incapaz ou ter má vontade de citar uma única
passagem das Escrituras que a provasse.
(Lutero, tirando a cobertura da inscrição na mesa): Este é meu corpo! Aqui
está nossa passagem das Escrituras. Você ainda não a tirou de nós, como
tenta fazer; não precisamos de nenhuma outra. Meus caríssimos senhores,
visto que as palavras de meu Senhor Jesus Cristo estão aqui, “Hoc est
corpus meum”, não posso verdadeiramente ignorá-las, mas devo confessar
e acreditar que o corpo de Cristo encontra-se lá.105

A disputa entre os dois reformadores nunca logrou o tão desejado acordo. As


diferenças existiam e eram importantes para ambos. Mas podemos suspeitar de que
houve muita má vontade de um para com o outro; como ilustração disto, o
historiador da Igreja W. P. Stephens informa que tanto os luteranos quanto os
reformados zuinglianos usavam o termo “sacramentariano” para designar o partido
oponente.106

3.3 O “IDEALISMO” ZUINGLIANO

Ulrich Zwínglio (1484-1531) tinha uma perspectiva mais racionalista da


teologia; para ele, “a Ceia do Senhor era, primariamente, uma ocasião quando eram
lembrados os benefícios comprados pela morte de Cristo”. 107 O conceito zwingliano
da Ceia se concentra no testemunho daqueles que participam da mesa, de que
também participam de um mesmo corpo, ou seja, da Igreja; a Ceia deveria ser
considerada como um memorial e um testemunho externo da igreja acerca da
salvação que Deus lhe conferiu.108

Zwínglio “rejeitou antecipadamente qualquer possibilidade de considerar os


sinais como um veículo pelo qual o corpo de Cristo possa ser comungado”. 109 Os
Sacramentos são analogias que se apresentam aos sentidos, para auxiliar a
fraqueza da nossa fé. Nos Sacramentos, Deus, em sua bondade, “condescende em
apresentar, até mesmo aos nossos sentidos, certas formas obscuras de coisas

105
GEORGE, T., Teologia dos reformadores, 1994, p. 150.
106
STEPHENS, W. P., Zwingli, p. 82.
107
NOLL, M. A., "Zuínglio, Ulrich", in: Enciclopédia histórico-teológica, v. 3, p. 656.
108
Cf. LEITH, J. H., A tradição reformada, p. 39.
109
GERRISH, B. A., "A ceia do Senhor nas confissões reformadas". In: GRANDES temas da tradição
40

internas e espirituais, que são denominadas pelo mesmo nome das próprias coisas
pela razão de que são Sacramentos e representações das coisas reais”.110 Mas não
devemos confundir as representações atuais com aquelas realidades que
representam, ocorridas no passado, na obra consumada de Cristo; pois, “porque os
Sacramentos significam coisas reais, que real e naturalmente ocorreram em certo
tempo, eu digo que representam tais coisas”.111

Muitos estudiosos da reforma de Zurique atribuem estas particularidades da


Ceia em Zwínglio à sua formação humanista e platônica, que contrastava espírito e
matéria. Em 1531, referindo-se obviamente ao batismo e à ceia, respectivamente,
ele escreveu a um rei cristão que “a divindade nunca conferiu às coisas criadas o
poder que nós atribuímos a elas” de “remover pecados ou conferir graça a nós”. 112
Para ele, a vida espiritual não podia ser tocada por meios externos, mas é “resultado
da ação direta de Deus ou do Espírito”,113 que sopra onde quer. Na Dieta de
Augsburgo, em 1530, expôs sua fé ao Imperador Carlos V:

Eu creio, de fato, eu sei, que os Sacramentos estão tão distantes de conferir


graça que eles sequer comunicam ou dispensam-na. Neste assunto,
poderosíssimo Imperador, posso parecer-te muito ousado. Mas minha
opinião está firme. Pois, como a graça vem ou é dada pelo Espírito Divino,
então este dom pertence somente ao Espírito. Portanto, um canal ou veículo
não é necessário ao Espírito, pois ele mesmo e a virtude e energia pela qual
todas as coisas são carregadas, e não tem necessidade de ser carregado;
nem lemos nas Sagradas Escrituras que coisas perceptíveis, como o são os
Sacramentos, carregam certamente consigo o Espírito, mas se coisas
perceptíveis alguma vez já foram carregaram com o Espírito, foi o Espírito, e
não as coisas perceptíveis que o carregaram.114

Parecia-lhe que a consubstanciação de Lutero negava a soberania de Deus


na salvação, pois a administração e o recebimento da Eucaristia são efetuados por
nós mesmos; também parecia-lhe que levava a uma falsa confiança espiritual,

reformada . D. K. McKIM (Ed.), p. 207.


110
ZWINGLI, U., On providence and other essays, p. 191, tradução minha. Esta definição é de um
tratado de 1530 sobre a providência divina, que era um desenvolvimento de um sermão
pregado no Colóquio de Marburgo.
111
ZWINGLI, U., On providence and other essays, p. 240, tradução minha; STEPHENS, W. P.
Zwingli, p. 81.
112
ZWINGLI, U., On providence and other essays, p. 241, tradução minha.
113
HÄGGLUND, B. História da teologia, p. 220; Vd. tb. KLEIN, C. J., Os sacramentos na tradição
reformada, p. 44-46; STEPHENS, W. P., Zwingli, p. 58-60.
114
ZWINGLI, U., On providence and other essays, p. 46, tradução minha.
41

substituindo a fé em Deus somente pela fé no Sacramento – o que o reformador


suíço via como óbvia idolatria, pois dava a glória devida a Deus às coisas criadas. 115
Assim, a ação do Espírito através da matéria dos Sacramentos foi desprezada em
favor de uma atuação imediata sobre o fiel por causa de pressupostos filosóficos e
teológicos.116

Por outro lado, também é verdade que Zwínglio foi mais radical que Lutero na
adesão ao sola scriptura da Reforma; como afirma Klein, “enquanto Martinho Lutero
procurava eliminar do culto e da disciplina eclesiástica o que lhe parecia contrário às
Escrituras, Zwínglio pretendia manter na Igreja apenas as doutrinas e práticas que
se encontravam explicitamente na Bíblia”.117

Zwínglio não se contentava com argumentações lógicas, mas desejava


depender das Escrituras, como se percebe numa homilia em que expõe a fé cristã,
onde, partindo de 1 Coríntios 15.16, ele afirma a identidade do corpo de Cristo com
os corpos humanos em geral; depois, ataca a posição de Lutero, pois o corpo de
Cristo “não pode estar em todo lugar senão em virtude de ser infinito [...]. E se é
finito, não está em todo lugar”.118 Em seguida, se desculpa por ter cedido às
demandas da “argumentação filosófica”, voltando-se ao “inexpugnável testemunho
das Escrituras”, comentando Marcos 16.19, Mateus 28.20, João 16.28, 17.11, Atos
1.11, e argumentando contra a ubiqüidade do corpo de Cristo. Para isto, Zwínglio
estabeleceu um princípio hermenêutico baseado na alloiosis, um recurso retórico
onde se nomeia uma natureza e se entende a outra. Por exemplo, desafiava Lutero
a explicar se devemos entender a afirmação de Jesus de que já existia antes de
Abraão (cf. Jo 8.58) como referindo-se somente à sua divindade ou também ao seu
corpo físico.

Baseando-se em Hebreus, afirmava contra a igreja romana que o sacrifício de


Cristo era único e suficiente; e contra Lutero, que a Ceia deveria ser entendida
apenas como um memorial deste sacrifício, conforme as próprias palavras de
instituição ditas por Jesus. Demonstrou que em João 6 comer a carne de Cristo é
crer nele, e beber seu sangue é crer que morreu em nosso lugar; assim, a carne de

115
STEPHENS, W. P., Zwingli, p. 76,110.
116
Cf. STEPHENS, W. P., Zwingli, p. 61,65-66.
117
KLEIN, C. J., Os sacramentos na tradição reformada, p. 38.
118
ZWINGLI, U., On providence and other essays, p. 250-252, tradução minha.
42

Cristo alimenta a alma por ser morta por nós, não engolida por nós. 119 Foi como
intérprete da Bíblia que ele demonstrou que a expressão “Isto é o meu corpo”, tão
cara a Lutero, deve ser entendida metaforicamente, como “isto significa meu
corpo”.120 Assim, Zwínglio rejeitou a comunicação de atributos da natureza divina ao
corpo humano de Cristo, necessária à visão luterana.121

É verdade que, em certas ocasiões, Zwínglio utilizou linguagem sacramental


para referir-se à Ceia, como “alimento da alma”, por exemplo. Seu ensino parece
oscilar. Ele dizia crer que “Cristo está verdadeiramente na Ceia” e afirmava que não
é a Ceia do Senhor “a menos que Cristo esteja ali”; mas, em seguida, sustentava
estas afirmações apontando a promessa de Jesus de que sempre estaria onde quer
que sua igreja se reunisse (Mt 18.20).122 Ele pôde ambiguamente afirmar que

Comer o corpo de Cristo espiritualmente é nada mais que confiar com


espírito e coração na misericórdia e bondade de Deus por meio de Cristo,
isto é, estar certo com fé inabalável de que Deus nos dará o perdão por
nossos pecados e a alegria da bem-aventurança eterna por causa de seu
Filho...123

Em outro ponto, denomina esta confiança em Cristo acompanhada da


participação na Ceia de “comer sacramentalmente”:

Eu sustento, portanto, que o corpo de Cristo não é comido na Ceia do modo


carnal e cru que eles [os católicos] dizem, mas eu acredito que o corpo real
de Cristo é comido na Ceia sacramentalmente e espiritualmente pelos
religiosos, piedosos e puros de mente...124

Ou seja, a participação na Ceia tem um significado real, pois é um ato do crente que
se une à fé que ele já tem, e que expressa externamente o recebimento espiritual
dos dons para a salvação. Seu valor está naquilo que representa ou significa. 125

119
STEPHENS, W. P., Zwingli, 1992, p. 97-8.
120
KLEIN, C. J., Os sacramentos na tradição reformada, p. 59; Klein apresenta ainda (pp. 53-64) a
interpretação de Zuínglio para diversas passagens acerca da Ceia, tomada de uma obra do
reformador de 1526.
121
Cf. STEPHENS, W. P., Zwingli, p. 58: "Esta aguda distinção entre as naturezas [de Cristo] é uma
das razões por debaixo das diferenças de Zuínglio e Lutero no entendimento da Ceia do
Senhor."
122
ZWINGLI, U., On providence and other essays, p. 285.
123
ZWINGLI, U., On providence and other essays, p. 252, tradução minha.
124
ZWINGLI, U., On providence and other essays, p. 286, , tradução minha; cf. p. 252 e 253.
125
Numa passagem memorável escrita a um rei cristão, onde lista sete "virtudes dos sacramentos",
Zuínglio usa como analogia o anel que este rei dera à sua rainha: ela não o valorizava por ser
43

Como notou W. Grudem, a respeito da teologia de Zwínglio, “podemos dizer que não
é tanto o Sacramento que traz Cristo ao comungante, quanto que a fé do fiel é que
traz Cristo ao Sacramento”.126

3.4 A “PRESENÇA ESPIRITUAL” CALVINISTA127

O outro conceito fundamental sobre a Ceia entre os reformadores


encontramos em João Calvino (1509-1564); ele reiterou as críticas violentas de
Lutero e Zwínglio já haviam desferido contra os desvios da missa romana em
relação ao padrão neotestamentário da Eucaristia, especialmente o dogma da
transubstanciação.

Em 1540 Calvino escreveu um “Breve tratado sobre a Ceia do Senhor”, onde


apresentava num tom irenista, na última seção, um prospecto das disputas entre os
reformadores. Em favor de Lutero, reconhecia a dificuldade de explanar assuntos tão
elevados sem impropriedade de linguagem; admitia ainda o mérito de Zwínglio de
rejeitar todo o realismo romano, que gerara tanta idolatria e superstição. Calvino
afirma que ambos são servos de Deus, mas sugere que houve falha de ambas as
partes em não se aplicarem em esclarecer melhor suas posições, nem se disporem
a escutar o que o partido adversário dizia. Ele, então, propõe que as igrejas
protestantes se unam em torno de uma concórdia: “Nós todos confessamos com
uma boca, que ao receber o Sacramento em fé, de acordo com a ordenança do
Senhor, somos verdadeiramente feitos participantes da própria substância do corpo
e sangue de Jesus Cristo”. E acrescenta: “Como isto ocorre, alguns deduzirão
melhor e explicarão mais claramente do que outros”.128

3.4.1 Uma Posição Intermediária

Apesar da disposição à comunhão, Calvino não concordou com o conceito de


ubiqüidade do corpo de Cristo, fundamental para a teologia da Ceia luterana, pois
afirmava que o corpo de Jesus tem as limitações da natureza humana. Se Cristo foi

de ouro, mas por ser um símbolo de seu real marido. Cf. ZWINGLI, U., On providence and
other essays, p. 257.
126
GRUDEM, W. A., Introducing christian doctrine, p. 354.
127
Para efeito de clareza, utilizo aqui a denominação "calvinista" ao invés de "reformado", já que a
tratamos em oposição aos conceitos de dois outros reformadores.
44

feito semelhante a nós em sua encarnação, então compartilha da natureza física do


corpo humano. “De que natureza é nossa carne? Porventura não é ela uma carne
que consta de sua dimensão definida, que se restringe a um lugar, que é tocada,
que é contemplada?” E, tendo se ausentado deste mundo e se posicionado à destra
do Pai, no céu, definitivamente não pode estar agora corporalmente na Ceia, pois
localiza-se no céu até seu retorno em glória.129 Não que Calvino interpretasse “céu”
materialmente: “Não devemos concluir que ele habita entre os corpos e multidões de
estrelas. O céu denota uma região mais elevada do que todas as esferas, a qual foi
destinada ao Filho de Deus após sua ressurreição.”130

Para Calvino, a ubiqüidade negava a distinção entre as naturezas do


Redentor, e produzia um “ente intermédio, que não seria Deus nem homem!” 131 No
37º artigo da Confissão de fé que escreveu para a igreja huguenote, afirma que o
corpo ressurreto de Cristo mudou sua condição, de modo a não mais estar sujeito à
enfermidade produzida pelo pecado; mas manteve sua substância humana
corpórea.132

Contra o argumento luterano baseado na promessa de Jesus de que estaria


com os discípulos todos os dias, e onde quer que se ajuntassem, opôs o curioso
raciocínio de que, se quisessem interpretar isto fisicamente, afirmando que seu
corpo tem de estar em toda a parte, então não teriam razão para polemizarem
acerca das palavras de instituição, a ponto de incluírem seu corpo sob o pão, pois a
ubiqüidade implicaria que também o temos fora da Ceia, isto é, em todo lugar e
momento igualmente.133 Calvino lembra o ensino de Paulo de que na sua vinda
Cristo conformará nosso corpo ao seu próprio, e argumentando pelo absurdo, deduz
que a doutrina luterana implica que cada um de nós terá um corpo invisível e infinito.

Contudo, Calvino de forma alguma concordava com um simbolismo puro

128
CALVIN, J., Short treatise on Lord’s Supper, in Tracts and treatises, v. 2, p. 195-197.
129
CALVINO, J., As institutas, v. 4, p. 368, 371 (IV.xvii.24,27).
130
CALVINO, J., Efésios, p. 117. CLOWNEY, E. P., A igreja, p. 272, afirmando que Calvino forçou
“um problema desnecessário sobre a distância do corpo físico de Cristo para o nosso” – parece
sugerir que o reformador interpretava o céu como um lugar físico no espaço celestial.
Entretanto, Calvino apenas reconhece a limitação de nossa linguagem para “falar do Reino de
Deus exceto segundo nosso próprio modo”, enquanto afirma que Cristo está posto fora de
“toda a estrutura do mundo visível”, ou seja, “para além deste mundo criado”.
131
CALVINO, J., As institutas, v. 4, p. 375, 377 (IV.xvii.29,30).
132
CALVIN, J., Confession of faith in name of the Reformed Churchs of France, in Tracts and
treatises, v. 2, p. 160.
45

(como de Zwínglio), mas sustentava que realmente se participava do corpo e sangue


de Cristo na Ceia. No Catecismo de Genebra, a resposta à pergunta se na Ceia nós
comemos o corpo e o sangue do Senhor, é dada com clareza pelo discípulo:

Assim eu entendo. Pois conforme nossa inteira confiança para salvação


depende dele, para que a obediência que ele rendeu ao Pai seja imputada a
nós como se fosse mesmo nossa, é necessário que ele seja possuído por
nós; pois o único meio que ele comunica suas bênçãos a nós é por fazer-se
nosso. 134

Calvino não somente entendia que comungamos realmente com o corpo e


sangue de Cristo, mas entendia que isto era necessariamente assim para a nossa
salvação. Ele rejeita a resposta que simplesmente aponta a fé, como se para sermos
redimidos bastasse uma percepção de Cristo “apenas pela inteligência e
imaginação”.135 Por isso, adverte contra os idealistas: “Para eles, comer é apenas
crer; e eu digo que, ao crermos, comemos a carne de Cristo, porque pela fé ele se
faz nosso, e essa mastigação é fruto e efeito da fé.” 136 Contudo, engana-se quem
julgue que esta é apenas uma questão de palavras. A disputa refere-se a nada
menos que o modo pelo qual tomamos posse da vida que Cristo conquistou para
seu povo.

Sua solução é que a presença de Cristo na Ceia não é física, mas espiritual.
Hermisten Costa nota corretamente que “a compreensão bíblica de Calvino a
respeito da Ceia, envolve uma síntese do pensamento de Lutero e de Zwínglio,
conseguindo combinar de forma adequada o 'espiritualismo' de Zwínglio com o
'realismo' de Lutero sem, contudo, limitar-se à perspectiva de ambos”.137

3.4.2 Temor Diante do Mistério

Pelo fato de o reformador enfatizar simultaneamente que o corpo e o sangue


não são recebidos fisicamente, e que há um recebimento real pelos fiéis, o teólogo

133
CALVINO, J., As institutas, v. 4, p.(IV.xvii.30).
134
CALVIN, J., Catechism of the church of Geneva, in Tracts and treatises, v. 2, p. 89, tradução
minha.
135
CALVINO, J., As institutas, v. 4, p. 352 (IV.xvii.11).
136
CALVINO, J., As institutas, v. 4, p. 347 (IV.xvii.5).
137
COSTA, H. M. P., Raízes da teologia contemporânea, p. 182.
46

reformado Louis Berkhof denominou este “um ponto obscuro” e “dúbio” na exposição
de Calvino138 – mas o caso não é bem este. O próprio Calvino, ao expor com
humildade o assunto ao leitor, adianta seu sentimento de inadequação para explicar
a presença de Cristo com palavras:

Não vejo como [tão grande mistério] possa ser suficientemente


compreendido com a mente, e de bom grado o confesso, para que ninguém
meça sua sublimidade pela mesquinha medida de minha pobreza de
expressão. [...] Mas, ainda que a mente possa pensar mais do que a língua
possa exprimir, contudo também aquela é vencida e posta por terra pela
139
magnitude do assunto.

Na verdade, para o reformador, o argumento final é a piedade que se curva


ante a Palavra de Deus, sem especulações nem resistência altiva:

Com efeito, se alguém me interrogar quanto ao modo como isso se


processa, não me envergonhará confessar que é um segredo por demais
sublime para que possa ou ser compreendido por meu entendimento, ou ser
explicado por minhas palavras; e, para dize-lo mais abertamente,
experimento mais do que posso entender. Portanto, sem controvérsia, aqui
abraço a verdade de Deus na qual é possível descansar seguro. Ele
proclama que sua carne é o alimento de minha alma; que seu sangue é a
bebida desta. Para ser nutrida por tais alimentos, lhe ofereço minha alma.
Manda-me tomar sua Sacra Ceia sob os símbolos do pão e do vinho; comer
e beber seu corpo e sangue: não duvido que também ele verdadeiramente
os propicie e eu os receba.140

Porém, de maneira nenhuma devemos concluir destas palavras que o grande


sistematizador da teologia reformada deixou tema tão importante sem sua aguda
reflexão. Na verdade, procura abordá-lo por todos os ângulos, discorrendo sobre os
muitos benefícios que estão compreendidos na Ceia, conforme ele a vê. Entretanto,
três pontos merecem ênfase: Há uma didática do Pai; há uma participação real em
Cristo; há uma atuação poderosa do Espírito.

138
BERKHOF, L., Teologia sistemática, p. 603; Berkhof parece estar seguindo Bavinck, cf. citação em
BERKOUWER, G. C., The sacraments, p. 231.
139
CALVINO, J., As institutas, v. 4, p. 349 (IV.xvii.7).
140
CALVINO, J., As institutas, v. 4, p. 379 (IV.xvii.32).
47

3.4.3 Comunhão Verdadeira e Milagrosa

Primeiramente, ele ressalta o aspecto didático da Ceia, em que Deus


misericordiosamente vem em auxílio da pequenez de nossa fé, como que reforçando
em nossa mente por meio dos sentidos físicos, a segurança que devemos ter em
suas promessas de nos vivificar por meio de seu Filho. Ao expor sobre a Ceia no
Catecismo de Genebra, Calvino repete várias vezes os verbos “ensinar”,
“assegurar”, “testificar”.141 A Ceia pode ser entendida numa analogia: “Assim,
quando o pão nos é dado como símbolo do corpo de Cristo, imediatamente se deve
imaginar esta similitude: como o pão nutre, sustenta, conserva a vida de nosso
corpo, assim o corpo de Cristo é o alimento único para revigorar e vivificar a
alma.”142

Entretanto, Calvino alerta contra uma interpretação da expressão “comer


espiritualmente” como se denotasse uma ação vazia e imaginária. 143 Pelo contrário,
sempre citando o discurso em que Jesus se identifica como “o pão da vida”,
registrado no sexto capítulo do evangelho segundo João, ele argumenta a seguir
que temos tal vida e nutrição espirituais por participarmos na vida que Cristo
entregou por nós. O reformador entende que a carne, ou seja, a humanidade de
Cristo foi inundada de plenitude de vida pelo Pai, “de sorte que todo aquele com
quem compartilhar de sua carne e sangue usufrua ao mesmo tempo de participação
da vida”;144 e acrescenta: “não vejo como alguém que confia na cruz de Cristo tenha
redenção e justiça, [...] a não ser calcado, acima de tudo, na verdadeira comunhão
do próprio Cristo. Pois esses benefícios não nos adviriam, a menos que antes Cristo
se fizesse nosso”;145 assim, é necessário que, “da substância de sua carne, Cristo
instile vida em nossas almas; aliás, derrame em nós sua própria vida, ainda que a
própria carne de Cristo não entre em nós”.146 Aqui se estabelece a grande diferença
entre Calvino e Zwínglio:

141
Vd. CALVIN, J., Catechism of the church of Geneva, in Tracts and treatises, v. 2, p. 89, tradução
minha.
142
CALVINO, J., As institutas, v. 4, p. 345 (IV.xvii.3).
143
CALVIN, J., The best method of obtaining concord, in Tracts and treatises, v. 2, p. 578.
144
CALVINO, J., As institutas, v. 4, p. 350 (IV.xvii.9).
145
CALVINO, J., As institutas, v. 4, p. 352 (IV.xvii.11).
146
CALVINO, J., As institutas, v. 4, p. 380 (IV.xvii.32).
48

A explicação de alguns é que o corpo de Cristo nos é dado quando somos


feitos partícipes de todos os benefícios que Cristo granjeou para nós em seu
próprio corpo; portanto, quando, pela fé, abraçamos a Cristo, crucificado em
nosso favor e ressurreto dentre os mortos, desta forma chegamos a
participar eficazmente de todos os seus benefícios. [...] Mas eu,
pessoalmente, defendo que tal coisa só é possível depois de obtermos
Cristo mesmo para então participarmos de seus benefícios. E, além do
mais, sustento que ele é obtido, não propriamente quando cremos que ele
foi crucificado em nosso favor, mas quando ele habita em nós, quando,
enfim, nos tornamos unidos numa só substância (se o podemos afirmar
nestes termos) com ele. [...] o que pretendo é mostrar que nossas almas
são alimentadas pela substância de seu corpo, de modo que nos tornamos
verdadeiramente um com ele; ou, o que equivale à mesma coisa, que o
poder gerador de vida da carne de Cristo é derramado em nós pela
147
instrumentalidade do Espírito...

Assim, fechando o quadro, Calvino trata da necessária operação do Espírito


Santo na Ceia, que une nossas almas ao corpo glorificado do Senhor, apesar da
distância que separa terra e céu. A eficácia do Sacramento depende inteiramente de
que o “Mestre interior, que é o Espírito”, acrescente aos elementos sua própria
virtude, capaz de penetrar nossos corações, mover nossos afetos e abrir nossa alma
para ser alimentada pelo corpo de Cristo. Sem a ação do Espírito Santo, “os
Sacramentos nada mais põem nos oferecer à mente do que faz a claridade do sol
aos olhos do cego”, são vazios e inúteis; mas no agir do Espírito, os Sacramentos
“se tornam plenos de eficácia”, robustecem e encorajam a fé. 148

O Senhor nos doa este benefício por meio de seu Espírito: que nos
tornamos com ele um só corpo, espírito e alma. Portanto, o vínculo desta
conjugação é o Espírito de Cristo, de cujo nexo somos ligados e é como, por
assim dizer, o canal pelo qual nos advém tudo quanto o próprio Cristo não
só é, mas inclusive tem.

Por isso, quando fala de nossa participação com Cristo, a Escritura atribui
ao Espírito todo seu poder. [...] somente pela operação do Espírito
149
possuímos Cristo inteiro e o temos permanentemente em nós.

147
CALVINO, J., 1 Coríntios, p. 354.
148
CALVINO, J., As institutas, v. 4, p. 275 (IV.xiv.9).
149
CALVINO, J., As institutas, v. 4, p. 353 (IV.xvii.12); também no Catecismo de genebra: "Mas como
pode ser isto, sendo que o corpo de Cristo está no Céu, e nos somos ainda peregrinos na
terra? Isto ele executa pela secreta e miraculosa agência de seu Espírito, para quem não é
difícil unir coisas de outra sorte afastados por um distante espaço." Em Tracts and treatises, v.
2, p. 91, tradução minha. Cf. Confissão de fé de Westminster, cap. VIII, seção IV, afirmando
que Cristo “ao terceiro dia ressuscitou dos mortos com o mesmo corpo com que tinha
padecido; com esse corpo subiu ao céu, onde está sentado à destra do Pai, fazendo
intercessão”. Ênfases acrescentadas.
49

É interessante notar que tanto romanistas quanto luteranos acusavam Calvino


de assumir uma posição racionalista, que condicionava o poder de Deus aos
ditames da razão humana e do senso comum. Ele defende-se: “Eles nos acusam de
medir o poder de Deus pela nossa própria capacidade, segundo a maneira dos
filósofos, enquanto que nossa filosofia é receber em simplicidade o que a Escritura
nos mostra.”150 Seu argumento é exatamente que seu sistema está fundamentado
completamente na ação sobrenatural do Espírito Santo:

Sustentamos que Cristo desce até nós, tanto pelo símbolo exterior, quanto
pelo seu Espírito, para vivificar verdadeiramente nossas almas com a
substância de sua carne e de seu sangue. [...] Nada está mais além da
natureza do que tomarem as almas vida espiritual e celeste de uma carne
que recebeu da terra sua origem, e que foi sujeita à morte. Não existe nada
mais incrível do que afirmar que coisas esparsas e separadas por todo o
espaço de céu e terra sejam não só reunidas, mas até mesmo sejam
unidas, em tão grande distância de lugares, para que as almas recebam
alimento da carne de Cristo.151

Note a preocupação de Calvino em manter a autoridade da Palavra de Deus:


Se é dito que Jesus foi assunto aos céus e ali permanece à destra de Deus, então
ninguém deve procurar seu corpo nos elementos da Ceia. Se é dito que somos
vivificados com sua vida por meio de sua carne, então comamos. Se é dito que nos
elementos do pão e do vinho temos participação nele, então certamente o
Sacramento nos comunica esta participação. “Pois, a menos que alguém queira
acusar Deus de ser enganador, nunca ouse dizer que ele propôs um símbolo sem
valor. Portanto, se pela fração do pão o Senhor representa verdadeiramente a
participação de seu corpo, está mui longe de qualquer dúvida que aí se depare e
exiba o que é verdadeiro.”152

150
CALVIN, J., "Confession of faith in name of the Reformed Churches of France", em Tracts and
treatises, v. 2, p. 161, tradução minha. Calvino escreveu esta confissão de fé em 1562, já com
sua saúde bastante comprometida, em defesa dos protestantes franceses que haviam sido
perseguidos pelo Duque de Guise e estavam sendo pressionados a adotar a Confissão de
Augsburgo.
151
CALVINO, J., As institutas, v. 4, p. 367-68 (IV.xvii.24).
152
CALVINO, J., As institutas, v. 4, p. 352 (IV.xvii.10).
50

3.5 AS CONFISSÕES REFORMADAS

Como exposto, a centralidade do debate sobre a natureza da Ceia do Senhor


durante os dias da reforma protestante não se devia ao espírito contencioso dos
reformadores, mas ao fato de que consideravam a matéria da máxima importância
para a vida da igreja e dos fiéis, uma verdade que não poderia ser obscurecida,
conforme Calvino afirma sobre a presença de Cristo, que

se mostra aqui com tanta virtude e eficácia, que não somente trará às
nossas almas uma indubitável confiança na vida eterna, senão que também
nos dá a certeza e segurança da imortalidade de nossa carne, que já
começa a ser vivificada pela carne imortal de Cristo, e em certa maneira lhe
comunica sua imortalidade. Os que com sua exagerada maneira de falar
vão mais além disto, não fazem outra coisa senão obscurecer a verdade,
que em si mesma é tão simples e evidente.153

De fato, a posição calvinista sobre a Ceia ganhou preponderância, e acabou


influenciando as principais confissões e catecismos protestantes daquela época.
Mesmo as afirmações dúbias encontradas vez ou outra, devem ser entendidas à luz
da controvérsia com a posição católica, como uma preocupação dos redatores de
rejeitar claramente o conceito de mastigação oral do corpo de Cristo. Com uma
rápida análise de trechos destes documentos, poderemos ver uma uniformidade do
pensamento reformado, quanto à Ceia do Senhor.

3.5.1 A Confissão Gaulesa (1559)


Conhecida posteriormente por Confissão de La Rochelle, por ter sido revisada
e reafirmada pelo Sínodo Nacional de 1571, reunido na cidade de mesmo nome,
mas tendo sido redigida inicialmente por Calvino e seu discípulo Antoine De
Chandieu (1534-1591) para ser adotada pelo Sínodo Geral de Paris, afirma:

Cremos, assim como foi dito, que tanto na Ceia quanto no batismo Deus
nos concede de fato aquilo que nos promete, e assim nós unimos aos sinais
a verdadeira posse e gozo daquilo que nos é apresentado. Desta forma,
todos aqueles que trazem à mesa sagrada de Cristo a fé pura, como um
vaso, recebem verdadeiramente o que os sinais testificam: que o corpo e o
sangue de Jesus Cristo alimentam a alma assim como o pão e o vinho

153
CALVINO, J., As institutas, v. 4, p. 379 (IV.xvii.32).
51

alimentam o corpo.154

Com terminologia e conceitos distintamente calvinistas, fala da Ceia como


“testemunho da unidade que temos com Jesus Cristo” e dos benefícios da sua
morte; porém, destaca que não é uma operação psicológica, “pela imaginação ou
pelo pensamento”, mas que é a “virtude secreta e incompreensível de seu Espírito”
que nos alimenta na Ceia.155

3.5.2 A Confissão Escocesa (1560)


A Confissão Escocesa diz que “na Ceia corretamente usada, Cristo se une de
tal modo a nós, que se torna verdadeiro alimento e sustento de nossas almas”; e
conclui,

sem nenhuma dúvida, que os fiéis, mediante o uso reto da mesa do Senhor,
comem o corpo e bebem o sangue de Jesus Cristo, que permanece neles e
eles nele; eles, até, se tornam carne da sua carne e osso dos seus ossos de
maneira tal que, como a Divindade eterna deu à carne de Jesus Cristo vida
e imortalidade, assim também o comer e o beber da carne e do sangue de
Jesus Cristo dá-nos as mesmas prerrogativas.156

Note-se a expressão de certeza (“sem nenhuma dúvida”) quanto ao recebimento dos


bens espirituais juntamente com os elementos físicos, e a referência quase
apologética ao texto de Efésios 5.30.

3.5.3 A Confissão Belga (1561)


A Confissão Belga, recebida como padrão doutrinário pelas Igrejas
Reformadas na Holanda, confirma que a Ceia serve para “alimentar e sustentar
aqueles que Ele já regenerou e incorporou à sua família, que é a sua igreja”. Assim,
“não nos enganamos dizendo que o que comemos e bebemos é o próprio corpo
natural e o próprio sangue de Cristo”; pois na Ceia, de um modo além da nossa
compreensão,

154
Em CRESPIN, J., A tragédia de Guanabara, p. 93.
155
Em CRESPIN, J., A tragédia de Guanabara, p. 93.
156
Em THE creeds of christendom. Philip SCHAFF (Ed.), v. 3, p. 467, 469, tradução minha.
52

Cristo nos faz participar de si mesmo com todas as suas riquezas e dons e
nos deixa usufruir tanto de si mesmo como dos méritos de seu sofrimento e
morte, alimentando, fortalecendo e consolando nossa pobre alma desolada
quando comemos de seu corpo, e a reanimando e renovando quando
bebemos do seu sangue. 157

3.5.4 Catecismo de Heidelberg (1563)


De grande importância é a resposta que o Catecismo de Heidelberg dá à
pergunta 75, sobre os benefícios participados através da Ceia:

Cristo me ordenou, assim como a todos os fiéis, comer do pão partido e


beber do cálice, em sua memória, acrescentando estas promessas:
Primeiro, que o seu corpo foi sacrificado e partido na cruz por mim, e o seu
sangue derramado por mim, tão certamente como vejo com os meus olhos
que o pão do Senhor é partido para mim e o cálice me é dado; e mais, que
ele alimenta a minha alma para a vida eterna com seu corpo crucificado e o
seu sangue derramado, de modo tão real como recebo das mãos do
ministro e como com a minha boca o pão e bebo do cálice do Senhor, como
sinais seguros do corpo e do sangue de Cristo.158

Há alguma ambigüidade nesta resposta, podendo ser entendida como


idealista (como apenas “sinais” visíveis da promessa feita). A resposta seguinte
também começa nestes termos, relacionando “comer e beber” a “aceitar com um
coração crente” o perdão por meio da morte de Cristo; mas não é só isso: significa
também “tornar-se mais e mais unido ao seu corpo sagrado, por meio do Espírito
Santo”, apesar de seu corpo estar no céu. Portanto, este Catecismo vai além do
conceito zwingliano; ecoa ainda o pensamento de Calvino (conforme citado acima)
ao relacionar o Sacramento a um mandamento e a uma promessa de Cristo.

3.5.5 A Segunda Confissão Helvética (1566)


A Segunda Confissão Helvética, obra de Heinrich Bullinger, apresenta um
resumo maduro da Teologia Reformada, sob influência de Calvino.159 No capítulo 21,
tratando da Ceia, fala de sua instituição por Cristo, e afirma que nela a redenção é
mantida “em viva lembrança”, e “se renova”. Os fiéis recebem o que é dado pelo
ministro do Senhor, “ao mesmo tempo, pela obra de Cristo por meio do Espírito

157
HARMONIA das Confissões Reformadas. J. R. BEEKE; S. B. FERGUSON (Eds.), p. 216-220.
158
HARMONIA das Confissões Reformadas. J. R. BEEKE; S. B. FERGUSON (Eds.), p. 216-218.
159
HARMONIA das Confissões Reformadas. J. R. BEEKE; S. B. FERGUSON (Eds.), p. xi.
53

Santo, interiormente eles recebem também a carne e o sangue do Senhor e dele se


alimentam para a vida eterna”. Em seguida, rejeita-se o “comer carnal” católico
romano; destaca-se então o “comer espiritual”, isto é, o recebimento de Cristo pela
fé, e o “comer sacramental” à Mesa do Senhor, que aviva, desenvolve e revigora a
fé.160

3.5.6 Os símbolos de Westminster (1647)


“A Confissão de Fé produzida pelos teólogos de Westminster foi, sem dúvida
alguma, um dos documentos mais influentes do período pós-Reforma da Igreja
Cristã”.161 Mais amadurecidos, e já um tanto distantes das controvérsias com os
papistas, ainda assim os símbolos de fé oriundos da Assembléia de Westminster
fazem coro com as confissões anteriores. A grande Confissão lista no capítulo 29,
artigo 1º, os benefícios da participação da Ceia: 1) lembrar perpetuamente o
sacrifício da morte de Cristo; 2) selar aos verdadeiros crentes os benefícios
provenientes desse sacrifício para o seu nutrimento espiritual e crescimento; 3) ser
um vínculo e penhor da sua comunhão com Ele; 4) ser um vínculo e penhor da sua
comunhão de uns com os outros.162

Note-se que a participação na Ceia tem um efeito que excede a influência


psicológica sobre os fiéis (isto é, incentivando-os a se mostrarem mais unidos a
Deus ou aos irmãos); ela é chamada de selo – no sentido de aplicar ao sujeito os
benefícios espirituais – e de penhor – ou seja, garantia ou prova – desta realidade,
em conexão direta com a morte sacrificial de Cristo. A. A. Hodge comenta
apropriadamente este artigo da Confissão, ao afirmar que “recebemos o símbolo
com a boca física; recebemos a carne e o sangue simbolizados pela fé, contudo de
forma real”.163

O Breve Catecismo responde à pergunta 96 que na Ceia do Senhor “se


anuncia a sua morte, e aqueles que participam dignamente tornam-se, não de uma
maneira corporal e carnal, mas pela fé, participantes do seu corpo e do seu sangue,
com todas as suas bênçãos para o seu alimento espiritual e crescimento em

160
HARMONIA das Confissões Reformadas. J. R. BEEKE; S. B. FERGUSON (Eds.), p. 218-222.
161
HARMONIA das Confissões Reformadas. J. R. BEEKE; S. B. FERGUSON (Eds.), p. xiii.
162
HARMONIA das Confissões Reformadas. J. R. BEEKE; S. B. FERGUSON (Eds.), p. 217-219.
163
HODGE, A. A., A confissão de fé de Westminster comentada, p. 477-9, citando a seguir João 6.54
e 55.
54

graça”;164 sublinha, portanto, uma atuação sacramental objetiva: Não diz que
aqueles que participam “sentem-se participantes das bênçãos”; mas, que “aqueles
que participam... tornam-se... participantes das bênçãos”.

Na resposta à pergunta 168 o Catecismo Maior ajunta ainda que aqueles que
dignamente participam “alimentam-se do corpo e do sangue de Cristo para sua
nutrição espiritual e crescimento em graça; têm a sua união e comunhão com ele
confirmadas; testemunham e renovam a sua gratidão e consagração a Deus e o seu
mútuo amor, como membros do mesmo corpo místico”. Vê-se um equilíbrio entre os
efeitos objetivos e subjetivos da Ceia. Na resposta 170 enfatiza a realidade desta
alimentação, onde os fiéis “recebem e aplicam a si o Cristo crucificado e todos os
benefícios da sua morte”, e recomenda na 172 que, sendo este Sacramento
“ordenado para o conforto até dos cristãos fracos e que estão em dúvida”, a pessoa
que está fraca na fé deve lamentar a sua incredulidade e esforçar-se para ter suas
dúvidas dissipadas; e assim fazendo, “pode e deve chegar-se à Ceia do Senhor para
ficar mais fortalecida.”165 O conceito de verdadeira nutrição espiritual através do
Sacramento brilha indubitavelmente.

Há alguma razão em Gerrish, quando afirma que, conquanto todos os


documentos reformados sejam eminentemente calvinistas na sua percepção da Ceia
como comunhão real com o Cristo crucificado, alguns deles expressam que isto
ocorre simultaneamente ao recebimento do Sacramento, e não por meio dele.166
Mas do extrato acima podemos verificar consistentemente a insistência na operação
ativa do Espírito Santo no Sacramento, na necessidade subjetiva de fé
(“dignamente”), na nutrição espiritual eficaz na Ceia, na reafirmação da união mística
com Cristo no Sacramento.

3.6 CONCLUSÕES PRELIMINARES

Vimos as divergentes posições protestantes quanto à Ceia. À primeira vista,


pode parecer que a consubstanciação luterana não difere muito da
transubstanciação católica. Entretanto, há uma diferença que devemos notar entre

164
VAN HORN, L. T., Estudos no breve catecismo de Westminster, p. 175.
165
HARMONIA das Confissões Reformadas. J. R. BEEKE; S. B. FERGUSON (Eds.), p. 217-221.
55

luteranos e católicos: o sacerdote católico pode, ao final da missa, recolher “os


pedaços de Deus” que sobraram, guardá-los num vaso no altar, e curvar-se ou
ajoelhar-se diante dele – a transformação é permanente. Os luteranos restringem o
efeito miraculoso da presença corpórea à duração do serviço, podendo dispensar às
sobras tratamento comum como pão. Na teologia luterana, o recurso não é feito à
filosofia aristotélica, como no catolicismo tomista; mas, antes, à cristologia de Lutero,
que permitia uma comunicação de atributos divinos à humanidade de Cristo – além
da insistente interpretação literalista que deu às palavras de Jesus na instituição da
Ceia.

Zwínglio lutou para preservar a importância da Ceia na Igreja Protestante,


mas procurou despi-la de todo o misticismo medieval, que tinha feito da Ceia uma
obra da Igreja em favor de seus membros; entretanto, terminou por privá-la também
de sua virtude bíblica, tornando-a uma obra do indivíduo. Realmente não seria
próprio afirmar da Ceia na perspectiva simbolista que ela seja um meio de graça;
pois, na verdade, ela se torna numa obra humana, onde a igreja é que relembra e
proclama. Por estranho que possa parecer, podemos concordar com Gerrish que,
num certo sentido, a posição de Zwínglio está mais distante de Calvino do que a
luterana.167 Para Zwínglio, o símbolo, por ser símbolo, não traz a realidade de forma
alguma; para Lutero (e aqui Calvino concordaria plenamente), o símbolo, justamente
por ser símbolo, confere a realidade representada – pois o símbolo foi instituído por
Deus, que não pode nos mentir.

O conceito zwingliano não faz justiça às solenes afirmações da Escritura,


especialmente ao discurso de Jesus registrado no capítulo sexto de João. Apesar de
não referir-se diretamente à instituição da Ceia (Cristo sequer se dirigia ali aos seus
discípulos), as realidades nele anunciadas estão em direta conexão com a Ceia, e
não se harmonizam com o simbolismo de Zwínglio. Além disto, dificilmente se
justificaria a asserção de Paulo de que quem participa da Ceia sem discernir o
corpo, “come e bebe juízo para si” se a Ceia se tratasse somente um memorial, um
momento a mais de testemunho cristão.

166
GERRISH, B. A., "A ceia do Senhor nas confissões reformadas". In: GRANDES temas, p.216.
167
GERRISH, B. A., "A ceia do Senhor nas confissões reformadas". In: GRANDES temas, p. 209.
56

Segundo Calvino, a Ceia não está vinculada tão somente com o passado, ou
seja, com o Cristo crucificado por nós – como na visão de Zwínglio; nem tampouco
deve ser entendido em termos de um presente sacrifício de Cristo, como no
romanismo. Ele entende a atuação sacramental em termos da união mística do
crente com Cristo, de forma que o corpo do Senhor permanece no céu, mas o crente
realmente (mas não fisicamente) recebe e desfruta pela mediação do Espírito Santo
da pessoa completa do Redentor e dos benefícios que ele conquistou por sua obra
salvífica. Longe de ser "um ponto obscuro", a concepção calvinista é "um ponto de
fé".

Quanto às confissões protestantes, apesar de alguma variação nos termos


descritivos da atuação da graça na Ceia, podemos sumariá-las conforme as palavras
do teólogo presbiteriano Charles Hodge:

Segundo os padrões da Igreja reformada: a Ceia do Senhor é uma santa


ordenança instituída por Cristo como um memorial de sua morte, no qual,
sob os símbolos de pão e vinho, seu corpo quebrado e seu sangue
derramado para a remissão de pecados são representados e, pelo poder do
Espírito Santo, selados e aplicados aos crentes; por esse meio sua união
com Cristo e sua mútua comunhão são expostas e confirmadas, sua fé
fortalecida e sua alma é nutrida para a vida eterna.168

3.7 DESENVOLVIMENTOS PÓS-REFORMA

Após o estabelecimento da Reforma Protestante surgiram muitos sistemas


filosóficos, que por sua vez influenciariam outros tantos sistemas teológicos. Está
fora do escopo deste analisar cada uma destas teologias; procuraremos apenas
apontar como algumas se expressaram em relação à Ceia do Senhor.

A chegada do Iluminismo169 levou o pensamento cristão a buscar uma


“religião natural”, de natureza racionalista, que negava os aspectos sobrenaturais do
cristianismo histórico, eliminando a necessidade de verdades reveladas e dogmas; a

168
HODGE, C., Teologia sistemática, p. 1500. O teólogo de Princeton enfatiza os pontos em que as
posições zuingliana e calvinista concordam, tanto em seus escritos originais quanto no
Consenso Tigurino.
169
COSTA, H. M. P., Raízes da teologia contemporânea, p. 293-315, aponta as áreas de influência
57

nova religiosidade, denominada “deísmo”, era bastante positivista na sua perspectiva


da natureza humana, e era predominantemente ética. Tudo devia se conformar com
a luz da razão; tudo devia ser analisado empiricamente, a partir do mundo natural. 170

Como seria de se esperar, este domínio do racionalismo em boa parte dos


círculos teológicos a partir do século 17 também afetou o entendimento da Ceia do
Senhor. Houve uma tendência ao idealismo, que se espalhou por várias tradições
protestantes – tomando impulso em grande medida com os conceitos racionalistas
que se levantaram. Segundo Berkhof, os socinianos171 reconheciam a Ceia do
Senhor como um rito de observância permanente na igreja, mas lhe atribuíam
meramente eficiência como influência moral sobre os recipientes.

Significa que eles entendiam que os meios de graça operam somente


através de persuasão moral, e não os associavam de modo algum com
nenhuma operação mística do Espírito Santo. De fato, davam mais ênfase
ao que o homem faz com os meios de graça do que ao que Deus realiza por
meio deles, enquanto falavam deles como simples insígnias da profissão de
fé e (quanto aos Sacramentos) como memoriais. Os Arminianos do século
dezessete e os racionalistas do século dezoito compartilhavam este
conceito.172

3.6.1 A Teologia Protestante Contemporânea

Foi o filosofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) quem demonstrou que a


ambição deísta de uma religião da razão havia falhado. Ele afirmou que não
podemos conhecer coisa alguma que exceda ou ultrapasse os limites da percepção
e comprovação empírica. Luterano, Kant foi o grande responsável pela elaboração
filosófica da moralidade como ponto central da religião.173 Para ele, portanto, a idéia
de “uma intervenção sobrenatural em favor de nossa capacidade moral deficiente” é

do Iluminismo na teologia.
170
GRENZ, S. J.; OLSON, R. E., A teologia do século 20, p. 21-23; tb. KLEIN, C. J., Os sacramentos
na tradição reformada, p. 157-162.
171
Movimento unitarista surgido na Polônia, liderado pelo teólogo italiano Fausto Socino (1539-1604),
que repudiava todos os dogmas e passagens de conteúdo sobrenatural, que, segundo
postulava, não se harmonizavam com as luzes da razão.
172
BERKHOF, L., Teologia sistemática, p. 560. Arminianos são os adeptos do modelo doutrinário
criado pelo teólogo e ministro da Igreja Reformada Holandesa Jacob Arminius (1560-1609),
que rejeitava a doutrina da eleição em favor do livre-arbítrio humano; ensinava uma religião de
cunho moralista e racionalista.
173
GRENZ, S. J.; OLSON, R. E., A teologia do século 20, p. 28, 32-34.
58

irreconciliável com a razão e impossível de ser demonstrada – além disso, tal


conceito de um “meio de graça” é social e moralmente contraproducente, servindo
apenas para forjar falsas ilusões de uma piedade passiva. 174 Desta forma, a
perspectiva da Ceia como uma festa memorial de valor simbólico para o fiel, cujo
efeito seria de uma influência moral, veio a predominar no protestantismo pós-
Reforma do final do século 18.

No século 20, o teólogo suíço Karl Barth (1886-1968) encabeçou a reação


contra o naturalismo teológico imposto pelo liberalismo, enfatizando a
transcendência de Deus e sua Revelação na pessoa de Jesus Cristo.175 Mas a Igreja
não pode transmitir a Revelação ocorrida na história de uma maneira imediata, por
isso recorre ao testemunho dos apóstolos e profetas, como intermediários desta
Revelação. Este testemunho secundário da Igreja ocorre por meio tanto da pregação
quanto dos Sacramentos, que Barth tinha em alta conta como os dois atos da igreja
que tanto se referem quanto reafirmam o evento anterior de Revelação, isto é,
Cristo: “O sacramento remete ao ato da Revelação, o qual Deus realizou. A Sagrada
Escritura remete à qualidade da Revelação. É inútil opor Sacramento à pregação.
Não podem ser separados, posto que são os dois aspectos de uma mesma
realidade.”176

Outro que se levantou contra o cristianismo naturalista do século 19 foi Emil


Brunner (1889-1966). Ainda que nutrindo desavenças teológicas com seu
contemporâneo Barth, este teólogo suíço pertence ao mesmo movimento teológico,
genericamente denominado de “neo-ortodoxia” ou “teologia dialética”.177 Segundo
ele, foi exatamente o monopólio clerical dos Sacramentos, especialmente da
Eucaristia, que levou a evkklhsi,a (assembléia, congregação) descrita no Novo
Testamento a uma corrupção de sua essência, deixando de ser uma comunidade de
amor centrada na adoração a Deus para ser a “igreja”, uma instituição hierarquizada,
centrada em torno da administração dos Sacramentos. 178

Apesar desta visão original e negativa do papel histórico dos Sacramentos na

174
KANT, I., A religião dentro dos limites da simples razão, p. 180-181.
175
cf. GRENZ, S. J.; OLSON, R. E., A teologia do século 20, p. 84.
176
BARTH, K., Proclamação do Evangelho, p. 27; cf. GRENZ, S. J.; OLSON, R. E., A teologia do
século 20, p. 82-83.
177
Cf. GRENZ, S. J.; OLSON, R. E., A teologia do século 20, p. 91-93.
178
BRUNER, E., O equívoco sobre a igreja, p. 81-90.
59

igreja, Brunner os apreciava por comunicarem o Evangelho numa linguagem visível,


e por fazerem esta comunicação especificamente no contexto comunal.179 Porém,
mais importante que isto, é que a comunidade cristã não celebra a Ceia para
meramente relembrar algo que aconteceu no passado, “mas também na certeza de
que, o que aconteceu outrora está sendo repetido agora”; e de que o próprio Senhor
deste modo se manifesta e edifica a comunidade, sendo o indivíduo incorporado ao
corpo, “apropriando-se dos benefícios salvadores da morte de Jesus”. Assim, para
Brunner, “a última Ceia, como celebrada pela comunidade, não é simplesmente um
símbolo, uma representação simbólica da paixão e morte expiatória de Cristo; ela é
uma parte essencial deste ato salvador em si.180

Paul Tillich (1886-1965) é um dos mais influentes teólogos do século 20.


Formulou um sistema filosófico e teológico que via Deus como o "poder de ser", ou
seja, a base da existência de tudo;181 portanto, para Tillich, "sacramento" é tudo por
meio do qual a Presença Espiritual é experimentada, pois todo o universo participa
essencialmente da realidade última que lhe dá existência – ainda que Tillich admita
uma categoria à parte para aqueles símbolos que a Comunidade Espiritual relaciona
a história da salvação.182 É neste sentido que devemos entender sua afirmação de
que os elementos da Ceia "apontam para a presença do poder salvador divino na
base natural de toda vida espiritual".183 Para Tillich Jesus foi um homem comum,
cuja consciência de finitude o levou a superar a separação entre Deus e a
humanidade;184 portanto, este "poder salvador" na Ceia significa uma apropriação
desta mesma consciência e conseqüente restauração da unidade original com Deus.

3.6.2 A Teologia Católica Romana Contemporânea

Como já vimos, as doutrinas sobre a operação independente da graça e da

179
BRUNER, E., O equívoco sobre a igreja, p. 74-75.
180
BRUNER, E., O equívoco sobre a igreja, p. 76. Brunner se afasta totalmente dos efeitos cognitivos
e psicológicos que a concepção idealista da Ceia implica, pois na sua teologia a Revelação
nunca é um conhecimento sobre Cristo, mas um encontro pessoal com ele. Vd. GRENZ, S. J.;
OLSON, R. E., A teologia do século 20, p. 95-98.
181
Cf. GRENZ, S. J.; OLSON, R. E., A teologia do século 20, p. 148-154. Esta perspectiva ontológica
denomina-se Panenteísmo.
182
Cf. McKELWAY, A. J., The systematic theology of Paul Tillich, 199; vd. TILLICH, P., The protestant
era, p. 110-112. No caso da ceia, a palavra humana participa da Palavra divina, o pão e o vinho
daquele poder que sustenta o ser humano; cf. TILLICH, P., The protestant era, p. 98.
183
TILLICH, P., The protestant era, p. 96-98, tradução minha.
184
Cf. GRENZ, S. J.; OLSON, R. E., A teologia do século 20, p. 152-154
60

adoração à hóstia são decorrências lógicas da premissa não bíblica da


transubstanciação. Apesar da turbulência causada pela Reforma Protestante na
igreja romana, o Concílio de Trento deu atenção especial aos Sacramentos,
reiterando-os em número de sete, reafirmando a transubstanciação, além de sua
validade e operação independente de fatores externos (como fé do recipiente, por
exemplo); e condenou veementemente o ensino protestante: “se alguém disser que
pelos ditos Sacramentos da Nova Lei a graça não é conferida pelo próprio ato
executado, mas que a fé somente na divina promessa basta para obtenção da
graça: seja anátema”.

De fato, até hoje, quando um sacerdote católico repete as palavras “isto é o


meu corpo...”, o pão e o vinho tornam-se o corpo e o sangue reais de Cristo, e há
uma real continuação do sacrifício de Cristo a seu Pai, desta vez pelas mãos do
sacerdote.185 Na avaliação do teólogo evangélico David Wells, no Concílio Vaticano
II (1962-1965) a questão da presença real foi tratada de forma ambígua; “a ênfase
se elevou do ato externo de participação na administração do Sacramento pelos fiéis
para sua atitude interna de fé em relação àquele que se oferece a si mesmo no
Sacramento”.186 Entretanto, um catecismo católico do final do século 20 reitera: “No
santíssimo Sacramento da Eucaristia estão contidos verdadeiramente, realmente, e
substancialmente o Corpo e o Sangue juntamente com a alma e a divindade de
Nosso Senhor Jesus Cristo e, por conseguinte, o Cristo todo”. 187

O teólogo católico Edward Schillebeeckx (1914-), que foi advertido reiteradas


vezes pela Congregação para a Doutrina da Fé nos anos 80 – então guiada pelo
Cardeal Joseph Raztinger, hoje Papa Bento XVI – vai além de uma simples
mudança de ênfase. Segundo Wells, o belga afirma que na Eucaristia a mudança
não ocorre na substância do pão e do vinho, mas em seu significado, pois por meio
da igreja passam a significar a presença real de cristo dando-se a si mesmo a
nós.188

185
Não podemos deixar de notar que há certa ironia em que aqueles que se arrogam ser sucessores
no sacerdócio de Cristo terminem por diminuir a obra sacerdotal dele, que agora tem de ser
constantemente atualizada por seus supostos sucessores.
186
WELLS, D. F. Recent Roman catholic theology. In: TENSIONS in contemporary theology. S. N.
GUNDRY e A. F. JOHNSON (Eds.), p. 315, tradução minha.
187
CATECISMO da igreja católica, 1993, p. 329. Ênfase acrescentada.
188
WELLS, David F. Recent Roman catholic theology. In: TENSIONS in contemporary theology. S. N.
GUNDRY e A. F. JOHNSON (Eds.), p. 317.
61

Semelhantemente, o suíço Hans Küng (1928-), cassado como teólogo


católico pelo Vaticano na década de 80 por suas posições polêmicas, aproxima-se
bastante da teologia dialética neo-ortodoxa, ao expor acerca da Eucaristia.189 Ele
afirma que na Ceia Cristo se faz presente de um modo particular, “não pelo poder do
pão e do vinho, mas da Palavra que é proclamada”; esta presença não se refere a
“objetos sagrados efetivos em si mesmos” num “processo físico milagroso”, mas a
um encontro de Jesus Cristo com o fiel. 190 Ele também rejeita a operação
independente:

Certamente pão e vinho são símbolos, mas são símbolos plenos de


realidade. Eles são sinais, mas sinais efetivos, contendo o que representam.
Mas deveríamos ir ao extremo oposto e tentar compreende-los num sentido
completamente material e realista? [...] O que Cristo oferece é sua
realidade, ele próprio. Mas por esta mesma razão seu dom não é uma
“coisa” controlável, um objeto mágico, ou um dom autônomo bem
independente do doador.191

Apesar destas vozes ousadas, devemos buscar a posição contemporânea da


Igreja Católica Romana em seus documentos oficiais. Os dois últimos pontífices
romanos demonstraram preocupação com a matéria, manifestada em documentos
que reiteraram a declaração tradicional romana. O Papa João Paulo II publicou a
carta encíclica Ecclesia De Eucharistia em 17 de Abril de 2003, e em 22 de fevereiro
de 2007, o Papa Bento XVI publicou a exortação apostólica Sacramentum
Caritatis.192 Tomados em conjunto, ambos reafirmam a “presença de Cristo nas
hóstias consagradas que se conservam após a Missa – presença essa que perdura
enquanto subsistirem as espécies do pão do vinho” – e recomendam que se
incentive a adoração da hóstia como um “prolongamento visível da celebração
eucarística, a qual, em si mesma, é o maior ato de adoração da Igreja”; falam da
“conversão substancial do pão e do vinho no seu corpo e no seu sangue” como a
operação daquele princípio de “mudança radical” escatológica, que transformará a
criação; a transformação dos elementos se dá pelo poder do Espírito, “invocado pelo

189
Vd. GRENZ, S. J.; OLSON, R. E., A teologia do século 20, p. 306-310, sobre os atritos entre Küng
e o Vaticano e sua admiração pelo barthianismo, e p. 318-322 sobre sua apropriação da
dialética de Hegel.
190
KÜNG, Hans. The church, p. 287-289, tradução minha.
191
KÜNG, Hans. The church, p. 287, tradução minha.
192
Disponíveis no site do Vaticano: http://www.vatican.va/holy_father/.
62

celebrante sobre os dons do pão e do vinho colocados sobre o altar”.

Em sua encíclica, o Papa João Paulo II confirma a natureza da Eucaristia


citando as declarações de Trento quanto à conversão de “toda a substância do pão
na substância do corpo de Cristo nosso Senhor, e de toda a substância do vinho na
substância do seu sangue é a vida divina”; adiante, citando o Papa Paulo VI,
assegura que, apesar da incapacidade humana de compreender tal mistério, “o pão
e o vinho deixaram de existir depois da consagração, de modo que a partir desse
momento são o corpo e o sangue adoráveis do Senhor Jesus que estão realmente
presentes diante de nós sob as espécies sacramentais do pão e do vinho”.

Quanto à graça recebida na Eucaristia, o Bento XVI afirma que o Espírito


Santo comunica a própria vida divina ao crente:

No pão e no vinho, sob cujas aparências Cristo Se nos dá na ceia pascal


(Lc 22.14-20; 1Co 11.23-26), é toda a vida divina que nos alcança e se
comunica a nós na forma do Sacramento: Deus é comunhão perfeita de
amor entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Já na criação, o homem fora
chamado a partilhar, em certa medida, o sopro vital de Deus (Gn 2.7). Mas,
é em Cristo morto e ressuscitado e na efusão do Espírito Santo, dado sem
medida (Jo 3.34), que nos tornamos participantes da intimidade divina.
Assim Jesus Cristo, que “pelo Espírito eterno Se ofereceu a Deus como
vítima sem mancha” (Hb 9.14), no dom eucarístico comunica-nos a própria
vida divina.193

João Paulo II, partindo do conceito romano da atualização do sacrifício vicário


de Cristo, acrescenta que na Eucaristia recebe-se a graça da reconciliação obtida
por Cristo no passado:

A Igreja vive continuamente do sacrifício redentor, e tem acesso a ele não


só através duma lembrança cheia de fé, mas também com um contacto
actual, porque este sacrifício volta a estar presente, perpetuando-se,
sacramentalmente, em cada comunidade que o oferece pela mão do
ministro consagrado. Deste modo, a Eucaristia aplica aos homens de hoje a
reconciliação obtida de uma vez para sempre por Cristo para humanidade
de todos os tempos.194

193
Disponível em
http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/apost_exhortations/documents/hf_ben-
xvi_exh_20070222_sacramentum-
caritatis_po.html#EUCARISTIA,_MISTÉRIO_ACREDITADO_. Acesso em: 2/10/2007. Ênfase
acrescentada.
194
Disponível em http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/encyclicals/documents/hf_jp-
63

Reafirma-se, assim, a doutrina definida pelo Concílio de Trento como


transubstanciação, juntamente com suas implicações, como a natureza sacrificial da
Eucaristia e a adoração da hóstia, por exemplo.

3.6.3 Conclusões Preliminares

Ainda que nosso panorama dos desenvolvimentos pós-Reforma da doutrina


da Ceia do Senhor tenha sido bastante superficial, podemos afirmar que o
significado deste sacramento para a igreja permanece assentado em uma das três
interpretações que se rivalizaram na época da Reforma.

As tendências teológicas racionalistas do iluminismo reduziram o Sacramento


da Ceia a uma tradição eclesiástica vazia de poder, e encontraram no idealismo
zuingliano seu aliado, ainda que de uma forma que certamente o próprio reformador
de Zurique não concordaria. Na reação neo-ortodoxa do século 20 a Ceia recuperou
em parte seu lugar na igreja; entretanto, o equilíbrio bíblico de Calvino não foi
recobrado, pois o conteúdo cognitivo apresentado pela Ceia aos olhos do fiel foi
menosprezado em favor da influência existencialista daquele movimento teológico,
que o levou a uma ênfase na presença espiritual de Cristo, entendida como um
“encontro” interpessoal. No neo-liberalismo de Tillich, considerando suas
concepções não ortodoxas de Deus, da Criação, de Jesus Cristo, do pecado e da
salvação, a Ceia é transfigurada a um ponto em que dificilmente se pode concordar
com sua asserção de que está apresentando o conceito "protestante" – tanto menos
reformado.

Por outro lado, o catolicismo conseguiu manter suas posições inalteradas nos
últimos cinco séculos – o que não impediu que teólogos católicos pressionassem em
direção a uma interpretação mais espiritualizada, ou até existencialista, da
Eucaristia. Mas, graças à centralização do ensino no Vaticano, estas vozes
dissonantes permanecem à margem da teologia católica oficial.

ii_enc_20030417_eccl-de-euch_po.html. Acesso em: 2/10/2007. Ênfase acrescentada.


64

4 A GRAÇA MEDIADA PELA CEIA

Como se pôde notar, nossa discussão sobre as diferentes perspectivas que


se levantaram na Reforma Protestante acerca da Ceia do Senhor partiu da oposição
dos reformadores aos desvios que a doutrina eucarística romana havia acumulado
desde a Idade Média. Detivemo-nos naquilo em que os sistemas teológicos
protestantes se diferenciaram na interpretação do Sacramento da Mesa do Senhor.

Entretanto, duas questões não foram tratadas ainda, a saber: 1) Qual a


necessidade de que a graça seja mediada? 2) Qual graça é mediada pela Ceia do
Senhor? Nesta seção, procuraremos responder a estas duas perguntas. Nossa
abordagem será direcionada claramente pela perspectiva calvinista, ainda que,
quando necessário, façamos menção e comparação com as demais perspectivas
cristãs.

4.1 A MEDIAÇÃO DA GRAÇA

A primeira questão importante é se há alguma necessidade de que a graça


divina venha a nós mediada. Posto de outra forma, desejamos verificar por que Deus
faz uso de sinais, isto é, do pão e do vinho, para nos conferir determinados dons. Os
manuais de dogmática cristã normalmente não se detêm nesta questão. L. Berkhof,
autor de um das mais conhecidos manuais teológicos, de linha reformada, afirma
com clareza a mediação da graça; entretanto, em nenhum momento propõe uma
justificativa dos meios de graça.195 Outro é o batista W. Grudem, que parte da

195
Vd. BERKHOF, L., Teologia sistemática, p. 557-561; p. ex.: “tem-lhe [ao Espírito] parecido bem
submeter-se ao uso de certos meios para a comunicação da graça divina”; “os sacramentos
podem ser considerados como meio de graça, isto é, como canais objetivos que Cristo instituiu
na Igreja, e aos quais ele se prende normalmente para a comunicação de sua graça”; “Deus é
Deus de ordem que, na operação de sua graça, emprega ordinariamente os meios que ele
65

descrição bastante vaga de todos os meios que o Espírito Santo “lança mão” para
conceder “vários tipos de bênçãos ao cristãos”. 196

Nesta inquirição tomaremos principalmente o pensamento teológico de João


Calvino como guia para aprofundar nossa compreensão bíblica da Ceia do Senhor
como meio de graça.197

4.1.1 A Necessidade de Revelação Mediada: Soli Deo Gloria

Na perspectiva de Calvino, o conhecimento de Deus precede todo


conhecimento198 – por isso iniciaremos tratando do conhecimento de Deus que é
revelado ao homem. De acordo com Calvino, “a natureza divina é infinitamente
exaltada acima da compreensão de nosso entendimento”; 199 comentando a glória de
Javé que Ezequiel viu, ele explica que o profeta jamais poderia suportar tal
esplendor:

A glória de Deus foi contemplada pelo profeta de tal modo que Deus não
apareceu como ele realmente é, mas tanto quanto pode ser contemplado
pelo homem mortal. [...] Devemos sustentar, então, que todas as vezes que
os profetas e santos patriarcas viram Deus, eles viram como uma
semelhança ou aspecto da glória de Deus, mas não a própria glória, pois
não estavam ajustados a ela; pois isto seria medir com o palmo de nossas
mãos uma centena de milhares de céus, e terras, e mundos. Pois Deus é
infinito; e quando os céus dos céus não podem contê-lo, como poderiam
nossas mentes compreende-lo? Mas, ainda que Deus nunca tenha
aparecido em sua imensurável glória, e nunca se manifestado como ele
realmente existe, ainda assim devemos sustentar que ele apareceu de tal
modo a não deixar dúvida nas mentes e conhecimento de seus servos de
200
que eles tinham visto Deus.

mesmo ordenou. [...] na comunicação de sua graça, lhe aprouve obrigar-se [...] ao uso destes
meios. Ênfase acrescentada.
196
GRUDEM, W. A., Teologia sistemática, p. 801-802; Grudem chega a uma lista de onze “meios de
graça”, que inclui evangelização e oferta, por exemplo.
197
Devo grandemente esta divisão à obra de pesquisa de R. S. Wallace sobre a doutrina da Palavra e
dos sacramentos nos escritos de Calvino: Calvin’s doctrine of the Word and sacrament, Grand
Rapids: Eerdmans, 1957.
198
É notável o fato que desde 1536 até 1559 o tópico de abertura das Institutas sempre é “O
conhecimento de Deus” – sendo, talvez, o único que nunca mudou de lugar no transcorrer das
cinco edições latinas da obra. Cf. quadro comparativo das mudanças e adições de material no
“Prefácio à 2ª edição” em CALVINO, J., Institutas, v. 1, p. 16.
199
CALVINO, J., O livro dos Salmos, v. 3, p. 351.
200
CALVIN, J., Commentaries on the prophet Ezekiel, p. 106 (Calvin’s commentaries, v. 11).
Tradução minha
66

Portanto, temos que na comunicação entre o Deus santíssimo e a criatura


humana é necessário que Deus mesmo tome a iniciativa, adaptando sua
manifestação à capacidade humana. Calvino avalia que “o embotamento dos
homens é tão profundo, que não perceberiam a presença de Deus a não ser que a
tivessem em sua mente através de sinais externos”.201

Para o povo de Deus sob ambas as Alianças, os Sacramentos funcionam


como meios externos por meio dos quais Cristo revela mais vividamente sua
presença e poder no meio de sua igreja. Certamente que a habitação e o poder de
Cristo são garantidos pela Escritura;

mas como nossa fé é fraca e pequena, a menos que seja sustentada de


todos os lados e seja mantida de todos os modos, é imediatamente
sacudida, balança, vacila e mesmo cambaleia. E, de fato, por sua imensa
indulgência, o misericordioso Senhor aqui de tal modo se acomoda à nossa
capacidade, que sendo nós como animais que sempre rastejam no solo,
sempre fixos nas coisas carnais, sem pensar em nada que seja espiritual,
aliás, nem podendo sequer concebê-lo, não desdenha atrair-nos a ele com
estes elementos terrenos...202

Desta forma, em razão da incredulidade que persiste em nós, Deus


usualmente une sua Palavra ouvida a um sinal concreto ao qual a fé possa se
apegar.203 É como se Deus com um véu encobrisse sua glória, porém permitindo
que um fecho de sua luz seja transmitido ao fiel:204

É por esta razão, portanto, que onde quer que leiamos sobre Deus
aparecendo aos homens e estando presente com homens no Antigo
Testamento nós sempre percebemos que algo que não Deus é que
aparece, como um sinal de que Deus está ali. Este sinal ou símbolo da
presença de Deus captura a atenção do adorador e obscurece a glória
daquele que está procurando se revelar por meio dele.205

201
CALVINO, J., O livro dos Salmos, v. 3, p. 545.
202
CALVINO, J. As institutas, v. 4, p. 269 (IV.xiv.3).
203
Cf. WALLACE, R. S., Calvin’s doctrine of the Word and sacrament, p. 72. Conseqüentemente, não
há virtude no sacramento divorciado da Palavra que o interpreta, isto é, confere-lhe significado.
Cf. CALVINO, J., Efésios, p. 171: “Se a Palavra é suprimida, toda a virtude dos sacramentos
fica perdida.”
204
WALLACE, R. S., Calvin’s doctrine of the Word and sacrament, p. 4.
205
WALLACE, R. S., Calvin’s doctrine of the Word and sacrament, p. 5, tradução minha. Cf. p. ex.,
CALVINO, J., O livro dos Salmos, v. 3, p. 329 (“a arca do concerto era um símbolo de sua
presença”), p. 545 (“símbolo visível da coluna de nuvem por meio da qual Deus dignou-se
testificar em todos os tempos que sua presença estaria sempre com seu povo, segundo o
67

Os antigos, portanto, receberam a revelação divina por meio de sinais diversos,


como a árvore da vida, o arco-íris, a serpente de bronze, mas a substância era a
mesma que nós recebemos, pois “eles gozavam dos mesmos benefícios que
desfrutamos hoje. A Igreja de Deus subsistia em seu seio, como é o caso hoje. Eles
tinham os mesmos Sacramentos a testemunhar-lhes da graça de Deus”.206 Portanto,
“o pacto de todos os ancestrais em nada difere do nosso em substância e na própria
realidade, o qual, em última instância, é um e o mesmo. Varia-lhes, no entanto, a
forma da dispensação.”207

Deve ficar claro que Calvino mantém que tal revelação mediada é verdadeira
em si mesma, ainda que se apresente sob sinais terrenos; por exemplo, quando
falara a Moisés por meio da sarça ardente, “Deus lhe mostrara apenas um tênue
sinal de sua presença, e [Moisés] esteve longe de vê-lo tal como ele é”.208 Assim,
“onde Deus dá um sinal, ali ele próprio vem para estar presente com os homens”. 209

Calvino reconhecia que a eficácia dos sinais na Nova Aliança é


imediatamente mais rica e mais abundante que no passado. 210 De todo modo,
frisava que a experiência do povo de Deus os fez tão seguros da promessa e
garantia de sua presença com o sinal, que eles, de fato, se expressaram transferindo
o nome do próprio Senhor para o sinal de sua presença:

Não só se transfere o nome do superior para o inferior, como também, em


contraposição, se atribui à coisa representada o nome do sinal visível, como
quando se diz haver Deus aparecido a Moisés na sarça [Êx 3.2]; que a arca
da aliança é denominada Deus e face de Deus [Sl 42.2;84.7]; e a pomba, o
Espírito Santo [Mt 3.16; Mc 1.10; Lc 3.22]. Ora, ainda que em essência o
símbolo difira da coisa representada, visto que esta é espiritual e celeste,
aquele corpóreo e visível, no entanto, como não apenas figura a coisa a que
está dedicada, como se fosse simples e mera representação, senão que
verdadeira e realmente a representa, como o nome não lhe conviria por

emprego que ele fez dos sinais temporais”), p. 283 (“Deus, é verdade, não lhes era face a face
visível; mas o trovão era uma evidente indicação de sua secreta presença entre eles”); v. 1, p.
533 (“Deus exibiu-se a seus santos na arca do concerto, e por meio delalhes deu certo penhor
de socorro imediato [...]. seu povo antigo, que era rude e ainda em sua infância, seria elevado a
ele por meio de elementos terrenos”).
206
CALVINO, J., 1 Coríntios, p. 289; cf. BERKHOF, L., Teologia sistemática, p. 571.
207
CALVINO, J. As institutas, v. 2, p. 187 (II.x.2).
208
CALVINO, J., Hebreus, p. 334.
209
WALLACE, R. S., Calvin’s doctrine of the Word and sacrament, p. 75, tradução minha.
210
Vd. CALVINO, J., 1 Coríntios, p. 292-293. Cf. WALLACE, R. S., Calvin’s doctrine of the Word and
sacrament, p. 39.
68

direito?211

Conforme conclui Wallace,

Em tal ação sacramental, uma união tem lugar entre o elemento divino – o
Espírito ou ação de Deus – e a atividade humana, de modo que o evento
todo é efetivo em conduzir a mesma graça retratada em sua forma exterior.
Aquilo, portanto, que Deus representa nos Sacramentos, ele realmente traz
por intermédio de sua agência.212

A Confissão de Westminster (XXVII.2) concorda, afirmando que “Em todo o


Sacramento há uma relação espiritual ou união sacramental entre o sinal e a coisa
significada, e por isso os nomes e efeitos de um são atribuídos ao outro”. Podemos
entender que a razão desta estreiteza de ligação, que a Confissão denomina “união
sacramental”, está na própria ação auto-reveladora de Deus, que toma um elemento
terreno e o une à sua atividade. No caso específico da Ceia, os crentes
verdadeiramente recebem o mesmo corpo que nasceu de Maria e o mesmo sangue
que foi derramado no Calvário; “Cristo e todos os seus benefícios nos são
concedidos quando a boca vazia da fé recebe a coisa significada à medida que a
boca vazia da carne recebe o pão e o vinho.”213

Entretanto, esta identidade entre ação divina e elemento terreno não deve nos
impedir de distinguir a fonte da eficácia dos sinais, isto é, Deus, que os instituiu.
Calvino persiste em evitar a simples afirmação da objetividade do Sacramento, tanto
quanto sua mera subjetividade; sua exposição sempre fundamenta firmemente na
atuação divina a conjunção entre o sinal e o significado. No Catecismo de Genebra
pergunta-se por que se atribui ao Sacramento aquela função de aplicar as
promessas divinas às nossas mentes; a resposta:

Mover e afetar o coração, iluminar a mente, firmar a consciência segura e

211
CALVINO, J. As institutas, v. 4, p. 363 (IV.xvii.21); cf. CALVINO, J., 1 Coríntios, p. 295 e
WALLACE, R. S., Calvin’s doctrine of the Word and sacrament, p. 75-76.
212
WALLACE, R. S., Calvin’s doctrine of the Word and sacrament, p. 159, tradução minha; cf.
BERKHOF, L., Teologia sistemática, p. 571.
213
HORTON, M., Um caminho melhor, p. 137. Vd. tb. Maravilhosa graça, p. 201-206, onde Horton
critica o evangelicalismo contemporâneo por inventar os novos sacramentos, como
experiências de consagração após um apelo ou durante um acampamento.
69

tranqüila, verdadeiramente pertence ao Espírito somente; tanto que deve


ser considerada como obra inteiramente sua, e ser atribuído a ele somente,
para que nenhum outro tenha o louvor; mas isto não impede Deus de
empregar os Sacramentos como instrumentos secundários, e utilizá-los no
uso que ele julgar apropriado, sem subtrair em nenhum aspecto da
instrumentalidade do Espírito.214

Assim, por um lado ele rejeitava a noção de que o Sacramento apenas


sinaliza uma ação imediata do Espírito Santo no crente; e, por outro, nega aquela
conjunção automática, que despersonaliza o Sacramento, como que separando os
benefícios da morte de Cristo da pessoa de Cristo, supondo ser possível receber
aqueles sem que se receba este.215

Como podemos ver, é impossível definir a doutrina reformada da Ceia do


Senhor como “simbólica”, se com isto se quer afirmar que o Sacramento tem
somente um valor ilustrativo de uma verdade espiritual, representando diante do
olhar fiel uma realidade que não está, de fato, ligada ao elemento. Acontece que
tanto católicos quanto luteranos têm interpretado em tais termos zuinglianos a
doutrina segundo Calvino.216 Mas os reformados não se referem a símbolos vazios
estabelecidos pela igreja, senão a símbolos instituídos por Cristo e a seu poder em
(e sobre) tais símbolos, que já não podem ser considerados à parte daquele que os
instituiu. Na doutrina reformada não se reconhece um contraste entre símbolo e
realidade. Na verdade, exclui-se qualquer “simbolização”, pois o “selar” de que fala a
Confissão é ato de Cristo, conectando o sinal terreno com a graça celeste, e não
uma ação psicológica do recipiente, uma mera abstração da mente e dos afetos
religiosos.217

4.1.2 A Recepção da Ceia do Senhor: Sola Fide

Diante das afirmativas ousadas da doutrina reformada quanto à eficácia dos


Sacramentos como meios objetivos de graça, devemos examinar qual relação se

214
CALVIN, J., Catechism of the church of Geneva, in Tracts and treatises, v. 2, p. 84, tradução
minha.
215
Cf. BERKOUWER, G. C., The sacraments, p. 87 e 240.
216
Vd. exposição e refutação de alguns argumentos luteranos e católicos em BERKOUWER, G. C.,
The sacraments, cap. 10.
217
BERKOUWER, G. C., The sacraments, p. 216-217; cf. Confissão de Fé de Westminster, cap.
XXIX.I, e Romanos 4.11, onde Paulo ensina que Abraão recebeu a circuncisão como selo da
justiça da fé que teve quando ainda incircunciso.
70

estabelece entre o Sacramento e a fé daquele que o recebe, posto que um dos


distintivos da Reforma Protestante foi a afirmação de que no relacionamento entre
Deus e os homens não havia lugar para a justificação por obras, senão que a Fé
Somente era aceitável diante de Deus.

O catolicismo romano ensinava que a operação dos Sacramentos não


dependia das circunstâncias do recipiente ou do administrante, por isso acusou os
protestantes de que a dependência da fé que tanto defendiam representava uma
aniquilação da eficácia dos Sacramentos, que passavam a depender, não da
vontade graciosa de Deus, mas da piedade dos homens. Há certa ironia aqui, já que
os reformadores foram unânimes em acusar o sistema sacramental católico de
substituir a graça divina pelas obras humanas. Mas a acusação contra o
protestantismo se deve a uma má compreensão do que vem a ser fé: ao contrário do
conceito católico de fé como a preparação para receber a graça de Deus, o conceito
protestante de fé deve ser compreendido em direta conexão com seu conteúdo e
com aquilo para o que ela aponta, pois a fé protestante é o completo descanso na
graça de Deus – uma completa exclusão de todo mérito humano. 218 A Confissão de
Westminster, no capítulo 14, que trata da “fé salvífica”, sustenta esta mesma
perspectiva: “A graça da fé, pela qual os eleitos são habilitados a crer para a
salvação das suas almas, é a obra que o Espírito de Cristo faz nos corações
deles...”; e, abaixo, “os principais atos de fé salvadora são - aceitar e receber a
Cristo e firmar-se só nele para a justificação, santificação e vida eterna, isto em
virtude do pacto da graça”. O comentário de A. A. Hodge sobre a natureza da fé
ensinada na Confissão parece apropriado: “A fé não é uma mera convicção
intelectual acerca da veracidade das verdades reveladas nas escrituras, senão que
inclui um amplexo sincero e um assentimento confiante de Cristo, sua obra meritória
e suas graciosas promessas.”219 De maneira mais poética, Calvino descreve a fé
como sendo “o laço da nossa união com Cristo, que nos eleva para cima, e lança
sua âncora no céu”.220

Somente a partir desta compreensão protestante da fé poderemos relacionar


a fé e a eficácia dos Sacramentos. Ambos devem ser mantidos sem contradição, de

218
BERKOUWER, G. C., The sacraments, p. 72-74.
219
Vd. HODGE, A. A. A confissão de fé de Westminster comentada, p. 281. Ênfase acrescentada.
220
CALVIN, J., The best method of obtaining concord, in Tracts and treatises, v. 2, p. 579, tradução
71

modo que a virtude do Sacramento seja incondicional, residindo unicamente no


poder de Deus; e que o benefício que provém da participação nele seja recebido
exclusivamente pelos fiéis, isto é, os que têm fé. A fim de manter esta virtude
incondicional, o Catolicismo Romano ensina uma operação mecânica independente
do Sacramento, o que implica que os infiéis também recebem a carne de Cristo no
Sacramento; os luteranos afirmam que os infiéis também participam do corpo e
sangue de Cristo, mas acrescentam que sem fé não desfrutam de nenhum benefício
disto. Porém, os reformados insistem na necessidade de fé, pois a virtude
sacramental tem sua fonte em Deus,221 que age e se relaciona com os crentes, isto
é, com os que têm fé, por meio destes sinais. O corpo de Cristo crucificado é
igualmente oferecido a todos quantos participam da Ceia; porém, enquanto os fiéis o
recebem avidamente, os ímpios que participarem indignamente o rejeitam. Por esta
razão sua participação é ofensiva, pois rejeitam em sua incredulidade a fonte de vida
eterna que se lhes apresenta diante dos olhos. 222

Os teólogos de Westminster entenderam que os que são “indignos de gozar


comunhão com o Senhor, são também indignos da sua mesa”; por isto admitiram
que, “ainda que os ignorantes e os ímpios recebam os elementos visíveis deste
sacramento, não recebem a coisa por eles significada”. 223 Hodge comenta esta
artigo de maneira extremamente pastoral:

Este [o incrédulo], pois, ao receber o sinal externo com sua boca, embora
deixe de receber a graça interna em sua alma, só agrava sua própria
condenação e endurece seu próprio coração pelo ato. Portanto, todos
quantos são reconhecidamente incrédulos, e cuja descrença se manifesta,
quer por sua ignorância, quer por sua impiedade, devem ser impedidos,
tanto por sua própria causa como por causa de Cristo, de aproximar-se da
Mesa do Senhor até que sejam capazes de fazer pública e confiável
profissão de sua fé.224

A necessidade de fé para a recepção e comunhão com Cristo não pretende


diminuir a realidade de sua presença no Sacramento, mas apontar a natureza desta

minha.
221
BERKHOF, L. Teologia sistemática, p. 605.
222
CALVINO, J. As institutas, v. 4, p. 381 (IV.xvii.33); cf. CALVIN, J., Confession of faith in the name
of the reformed Churches of France, in Tracts and treatises, v. 2, p. 158-159; BERKOUWER, G.
C., The sacraments, p. 250-258.
223
HARMONIA das Confissões Reformadas. J. R. BEEKE; S. B. FERGUSON (Eds.), p. 221.
72

presença, pois na atual dispensação da igreja, entre a ascensão e a segunda vinda,


os crentes vivem pela fé, não pela vista: As realidades do Reino de Deus já estão
presentes, mas ainda não em sua manifestação plena; já comungamos com o
Senhor em sua mesa, mas ainda não chegamos naquele dia em que beberemos o
fruto da videira, novo, com ele, no Reino de seu Pai.225

Esta perspectiva da história da redenção também é útil para compreendermos


um outro aspecto da relação entre a fé e a eficácia do Sacramento: se a fé é
necessária para a recepção das realidades significadas na Ceia, seria a Mesa do
Senhor reservada apenas para aqueles crentes perfeitos e maduros? Calvino afirma
que a perfeição sob a qual labutamos na presente estágio da história da redenção
não nos impede de participar. Pelo contrário, esta nossa imperfeição nos convida à
Mesa do Salvador; pois, “se fôssemos perfeitos, a Ceia já não seria de nenhuma
utilidade para nós. Ela deve ser um socorro para ajudar nossa fraqueza, e suporte
para nossa imperfeição".226 "Que um homem seja o aquele de mais fraca fé que já
viveu – ainda assim, uma coisa é certa. Ele participa no corpo e sangue de Cristo, se
ele crê, porque a promessa de Cristo é para todo crente". 227 Em seu “Breve tratado
acerca da ceia do Senhor”, Calvino dedica o 30º parágrafo àqueles que se
consideram indignos; sem desejar forçar consciências fracas, o reformador exorta-os
a batalharem contra todos os obstáculos que o diabo lance no caminho, e não se
excluam de tão grande benefício, nem das graças que se lhe seguem. 228

Obviamente, estes sinais instituídos por divina soberania são de grande


significado para aqueles que têm fé, pois é esta mesma fé que se agarra firmemente
aos sinais e à promessa. Nesta relação conciliamos objetividade e subjetividade no
Sacramento, ao reconhecermos que tanto a eficácia do Sacramento quanto nossa fé
na promessa de Deus por ele mediada, são dons milagrosos do Espírito Santo em
nossos corações.229

224
HODGE, A. A., A confissão de fé de Westminster comentada, p. 487.
225
Cf. Mt 26.29; Mc 14.25 e Lc 22.18; tb. 1Co 11.26, "até que ele venha".
226
CALVIN, J., Catechism of the church of Geneva, in Tracts and treatises, v. 2, p. 92, tradução
minha.
227
WILLIAMSON, G. I., The Heidelberg catechism, p. 130, tradução minha.
228
CALVIN, J., Short treatise on Lord’s Supper, in Tracts and treatises, v. 2, p. 180-181.
229
BERKOUWER, G. C., The sacraments, p. 78.
73

Pois a atuação de Deus difere da objetividade das coisas neste mundo, e a


fé é algo diferente do que uma disposição subjetiva que pode ser
investigada quanto à sua presença ou ausência. Este é o porquê de Calvino
poder escrever que, à parte da fé, o Sacramento não é nada, senão ruína
certa para a igreja. Isto não é subjetivação do Sacramento, mas uma
referência ao mistério do Sacramento, que somente pode ser compreendido
no caminho da crença, e que neste caminho apresenta seu poder pleno.230

4.2 A OPERAÇÃO DA GRAÇA

Se a doutrina reformada acerca da Ceia do Senhor garante ser ela um meio


que Deus efetivamente usa para derramar sua graça na igreja, devemos ainda
averiguar qual graça é assim derramada. Ou seja: Qual a bênção decorrente da
recepção dos elementos da Ceia pelos fiéis? E o protestante naturalmente
conceberá uma outra questão decorrente desta, pois se já temos a Palavra, por que
precisamos da Ceia para receber tal bênção?

4.2.1 A Nutrição Espiritual na Ceia: Solus Christus

É provável que haja unanimidade entre os teólogos quanto aos aspectos


subjetivos da Ceia do Senhor, isto é, naquilo que se refere aos efeitos de sua
participação no cristão. Alistando alguns aspectos presentes na participação da
Ceia, Wayne Grudem destaca: proclamamos a morte de Cristo e a nossa
participação em sua morte; aprendemos e experimentamos que Cristo alimenta
nossa alma; somos assegurados do amor de Cristo e das bênçãos da salvação. 231
De modo semelhante, Berkhof explica que o participante recebe na Ceia um penhor
visível daquela realidade significada nela, de modo que a alma fica assegurada de
ser objeto do amor de Deus, das promessas do evangelho e das bênçãos da
salvação que Cristo comprou com sua morte. 232 Porém, ao tentar tratar da graça
específica que a Ceia confere ao participante, Grudem não consegue ser muito
específico:

Nossa expectativa é que ele [Cristo] esteja presente, de alguma forma, na

230
BERKOUWER, G. C., The sacraments, p. 89,235, tradução minha.
231
GRUDEM, W. A., Teologia sistemática, p. 836-837.
232
BERKHOF, L. Teologia sistemática, p. 600-601.
74

Ceia do Senhor. [...] De que maneira, então, Cristo está presente? Com
certeza há uma presença simbólica de Cristo, mas essa é também uma
presença espiritual genuína e há uma bênção espiritual genuína nessa
cerimônia.233

Já Berkhof parece querer ir além do subjetivo, ao afirmar que a Ceia é


também “a graça de uma comunhão cada vez mais íntima com Cristo, de nutrição e
vivificação espiritual, e de uma crescente segurança da salvação.”234

Na verdade, “nutrição” parece ser um conceito-chave para o efeito da Ceia


entre os reformados, desde o Catecismo de Genebra, onde se afirma que a despeito
de ser a fé um pré-requisito para a participação na Ceia, é necessário que esta fé
seja nutrida, fortalecida e desenvolvida, pois não é suficiente que tal fé apenas
comece em nós.235 Assim também Michael Horton, que descreve a Ceia como
“graça sustentadora” para nossos corações fracos, “uma graça que restaura a
confiança do crente” na promessa de justificação do evangelho; “uma lembrança
escolhida por Deus de que somos sempre e em toda a parte, pessoas perdoadas”.
Mais do que um lembrete reconfortante,

[a Ceia] é o alimento real do próprio Cristo que ofereceu seu corpo e sangue
para alimento espiritual. Àqueles fatigados por uma semana dura em casa
ou no escritório ou àqueles cujas consciências nunca os deixam esquecer
um pecado cometido durante a semana, o Sacramento da Santa Ceia existe
para comunicar Cristo e seus perdão. 236

O brasileiro Leandro Lima segue Horton de perto: “A Ceia do Senhor é um


instrumento de graça porque nos sustenta e renova as nossas forças espirituais. [...]
Por meio dela, o Senhor nos alimenta espiritualmente, pois oferece o seu corpo e
sangue como um alimento espiritual. A Ceia do Senhor é a garantia de que somos
um povo continuamente perdoado e alimentado.”237 O Catecismo de Heidelberg

233
GRUDEM, W. A., Teologia sistemática, p. 842. Ênfase acrescentada.
234
BERKHOF, L. Teologia sistemática, p. 604.
235
CALVIN, J., Catechism of the church of Geneva, in Tracts and treatises, v. 2, p. 85.
236
HORTON, M., Maravilhosa graça, p. 215-216.
237
LIMA, L. A., Razão da esperança, 506.
75

(pergunta 75) sugere que a Ceia é o meio pelo qual o fiel é assegurado de sua
participação no sacrifício de Cristo na cruz, juntamente com seus benefícios.238

No entanto, a doutrina reformada insiste em definir os efeitos da participação


na Ceia de maneira ainda mais objetiva. Mesmo quando se fala de recebimento dos
benefícios da obra salvífica de Cristo pode ocorrer uma simplificação, pois estes
efeitos não podem ser considerados e usufruídos separadamente da pessoa do
Salvador; os Reformados insistem nisto, porque sem a presença real de Cristo na
Ceia, não podemos ter a presença real dos frutos de sua morte vicária. 239 Os efeitos
da participação na Ceia são descritos objetivamente porque ela foi designada não
somente para significar, mas “para efetuar nossa comunhão com Cristo, em sua
pessoa, em seus ofícios e em seus preciosos frutos”.240

Como vimos, Calvino descrevia o efeito da Ceia como sendo “a redenção, a


justiça, a santificação e a vida eterna, e todos e quaisquer outros benefícios que
Cristo nos confere”; e isto não por mero esforço de imaginação, mas porque na Ceia
recebemos a comunhão, isto é, participação do próprio Cristo entregue por nós.241
Como afirma o teólogo reformado holandês Hermann Bavinck, os Sacramentos
servem para fortalecimento da fé porque possuem “toda a Aliança da Graça e seus
benefícios, isto é, possuem o próprio Cristo como seu conteúdo”.242 Nas palavras do
presbiteriano E. P. Clowney,

A Santa Ceia retrata nosso recebimento da vida de Cristo e a forma como


nós nos alimentamos dele. [...] O ensino de nosso Senhor deixa claro que
ele nos dá vida não somente por aquilo que ele faz por nós, mas por estar
unido a nós. Ele é a videira, e nós somos os ramos. Nós nos alimentamos
dele, extraímos dele nossa vida, e essa relação vital aparece quando
243
comemos e bebemos a Ceia do Senhor.

É preciso reconhecer que a união do cristão com seu Senhor não é


estabelecida na Ceia. Na verdade, esta “união mística” deve preceder logicamente a

238
Cf. HARMONIA das Confissões Reformadas. J. R. BEEKE; S. B. FERGUSON (Eds.), p. 216.
239
Cf. BERKOUWER, G. C., The sacraments, p. 240.
240
HODGE, A. A., A confissão de fé de Westminster comentada, p. 479.
241
CALVINO, J., As institutas, v. 4, p. 352 (IV.xvii.11).
242
BAVINCK, H., Teologia sistemática, p. 593; esta obra é a tradução de um compêndio teológico
popular feito por Bavinck, cuja obra-prima, Gereformeerde dogmatiek [Dogmática reformada]
tem cerca de três mil páginas distribuídas em quatro volumes. Ênfase acrescentada.
76

regeneração, a fé e a justificação, pois esta união estava contemplada no conselho


da redenção, no qual Deus vê todo o seu povo unido com seu Mediador desde a
eternidade; acontece que esta união idealizada na eternidade tem de ser aplicada ao
eleito, e esta aplicação é efetivada pelo Espírito Santo.244 É nesse sentido de
aplicação que devemos entender o conceito de selo, nos símbolos reformados;245 ou
seja, o Sacramento faz a aplicação pessoal à consciência do crente de que ele
mesmo, pessoalmente, é o objeto daquelas bênçãos às quais o Sacramento faz
referência direta.246 Como vimos acima, é a nossa fraqueza e a sublimidade divina
que tornam necessária a utilização de meios de graça pelo Espírito, meios que ele
mesmo escolhe e autoriza na sua igreja.

Posto diretamente, o que os reformados estão afirmando é que a Ceia é o


meio ordinário escolhido por Jesus Cristo para que seu Espírito alimente a
comunhão de seu povo com sua carne e seu sangue, fontes da vida espiritual que
seu Espírito aplica nos crentes.247

4.2.2 A Eficácia da Ceia: Sola Scriptura

Quando os Sacramentos são denominados meios de graça, estamos


afirmando que são instrumentos estabelecidos pelo próprio Deus para a atuação do
seu Santo Espírito na sua santa igreja. Segundo expõe Berkhof, o Sacramento “não
é em si mesmo uma causa ou fonte de graça, mas apenas um instrumento nas mãos
de Deus”.248

Notemos que a nutrição espiritual de que todos os crentes necessitam é feita


primordialmente pela Palavra de Deus.249 Os Sacramentos não possuem poder para
conceder uma graça especial que não possa ser dada pela Palavra; e, na verdade, a

243
CLOWNEY, E. P., A igreja, p. 269.
244
Vd. BERKHOF, L., Teologia sistemática, p. 413-418; HORTON, M., A face de Deus, p. 135-136.
245
Compare, por exemplo, a Confissão de Fé, XXIX.1 (“para selar, aos verdadeiros crentes, todos os
benefícios provenientes desse sacrifício”) com o Catecismo Maior, P. 170 (“os que dignamente
participam... recebem e aplicam a si o Cristo crucificado e todos os benefícios da sua morte”).
Cf. HARMONIA das Confissões Reformadas. J. R. BEEKE; S. B. FERGUSON (Eds.), p. 217 e
219.
246
Vd. BERKHOF, L. Teologia sistemática, p. 600-601, onde trata-se das “coisas seladas na Ceia do
Senhor”.
247
Cf. CALVINO, J., As institutas, v. 4, p. 353 (IV.xvii.12).
248
BERKHOF, L. Teologia sistemática, p. 604-605.
249
Cf. CALVIN, J., Catechism of the church of Geneva, in Tracts and treatises, v. 2, p. 90: "Nós
obtemos esta comunhão pela ceia somente? De fato, não. Pois pelo evangelho também, como
77

graça recebida no Sacramento não difere, em espécie, da que os crentes recebem


pela instrumentalidade da Palavra.250 Esta afirmação é importante em razão dos
abusos a que o sacramentalismo pode conduzir; mas não significa que o
Sacramento seja dispensável em favor da Palavra somente:

Que fique entendido que os Sacramentos nada acrescentam à Palavra de


Deus. Não há nada contido nos Sacramentos que não esteja contido na
Palavra. Quando a igreja administra os Sacramentos, proclama visivelmente
o mesmíssimo Evangelho que proclama audivelmente na sua pregação. [...]
Mas isso não é sugerir que os Sacramentos são carentes de dignidade. Ao
contrário, isso significa que eles compartilham da mesma alta dignidade que
251
a Palavra de Deus.

Na verdade, se não há Palavra que elucide e designe, há apenas uma


multiplicidade de elementos terrenos que em si mesmos são sem significado, pois a
natureza do Sacramento é apontar para a Palavra que o acompanha e lhe confere o
significado designado por Cristo; pode-se encontrar boas analogias em elementos
terrenos, mas carecerão totalmente de autoridade divina se não há a Palavra para
instituí-los e garanti-los.252 O Sacramento deriva sua eficácia da pregação clara da
Palavra, e sem esta não pode sequer ser chamado por tal nome. 253

Por sua vez, a Palavra é confirmada em nossos corações pelos Sacramentos,


pelos quais, dada a nossa obtusidade, podemos contemplar mais claramente do que
na Palavra, a benevolência e amor que Deus nos tem. 254 Ao tratar da relação entre
Sacramento e Palavra, Calvino apresenta ambos como perfeitos e ambos como
necessários, e aponta que o correto foco da necessidade de ambos está em nós:

Não é tanto para confirmar sua sacrossanta Palavra, quanto para confirmar-
nos nela. Porque a verdade de Deus é por si mesma suficientemente sólida,
firme e certa; e de nenhum lado pode receber maior confirmação que de si
mesma. Mas como nossa fé é pequena e débil, num momento vacila e cai
se não for amparada por todas as partes e sustentada por todos os
meios.255

Paulo declara, Cristo é comunicado a nós".


250
BAVINCK, H., Teologia sistemática, p. 59; BERKHOF, L. Teologia sistemática, p. 604-605.
251
KUIPER, R. B., The glorious body of Christ, p. 202, tradução minha.
252
Cf. BERKOUWER, G. C., The sacraments, p. 46.
253
CALVIN, J., Short treatise on Lord’s Supper, in Tracts and treatises, v. 2, p. 191.
254
CALVINO, Institutas, v. 4, p. 272 (IV. xiv. 6); Calvino denomina os Sacramentos de “pedagogos”.
255
CALVINO, Institutas, v. 4, p. 269 (IV. xiv. 3).
78

Por isso, o conhecido desejo de Calvino, de que a Ceia do Senhor constasse


regularmente do culto dominical em Genebra.256 Era sua convicção que a Igreja
Primitiva celebrava a Ceia em suas reuniões regulares, e que, portanto, todos os
fiéis deveriam receber o Sacramento semanalmente; esta insistência está
firmemente ligada à sua percepção da importância vital que tinha para a vida
espiritual da igreja. Calvino foi voto vencido nesta questão, pois os magistrados
entenderam que a Ceia deveria ser ministrada apenas quatro vezes por ano.
Entretanto, se Calvino terminou por concordar com o culto realizado sem o
Sacramento, ele nunca teria concordado com os Sacramentos sem que houvesse a
pregação e o ensino. Conforme explica Leith,

As palavras pronunciadas na pregação e no ensino eram necessárias para


a inteligibilidade do culto e, particularmente, dos Sacramentos. [...] Para a
teologia reformada, os Sacramentos sempre ocorrem no contexto da
proclamação e do ensino, e sua eficácia última depende da obra do Espírito
Santo. Calvino sustentava que o pão e o vinho se tornavam, sob o poder do
Espírito Santo, instrumentos para a manifestação da presença real de Jesus
Cristo e para a comunhão do crente com o Senhor ressuscitado.257

Assim, nem a Ceia do Senhor é inferior à Palavra, nem pode subsistir sem
ela. E de modo algum a participação na Ceia será desnecessária ou inútil, pois o
Sacramento aumenta a eficiência da Palavra sobre nós e, portanto, aumenta a
porção da graça que recebemos. 258 Mas vale repetirmos que este “aumento da
eficiência” da Palavra não se dá por alguma deficiência objetiva da Escritura, mas
por uma deficiência subjetiva, ou seja, no sujeito que recebe a nutrição da Palavra –
ou, no dizer de Calvino citado acima, pela debilidade e pequenez de nossa fé.

Disto tudo fica muito claro que a administração do Sacramento da Ceia do


Senhor confirma e sela, ou seja, aplica no coração a Palavra da promessa; como
selos o pão e o vinho são anexados à divina promessa de salvação para autenticá-la

256
LEITH, John H.. A tradição reformada, p. 296; COSTA, H. M. P., Raízes da teologia
contemporânea, p. 186-7.
257
LEITH, J. H. A tradição reformada, p. 302. Vd. COSTA, H. M. P., Raízes da teologia
contemporânea, p. 187: “Se por um lado Calvino conviveu com a separação entre a Palavra e a
Ceia, não admitia o sacramento sem a Palavra...”.
258
BERKHOF, L. Teologia sistemática, p. 604.
79

àqueles que participam da nova aliança no sangue de Cristo.259 Portanto, o


Sacramento pressupõe que o recipiente já é salvo, já é habitado pelo Espírito, já
recebe a Palavra e já tem fé.260 Concluindo, Sacramento e Palavra não concorrem
nem se opõem entre si, mas acompanham um ao outro para a edificação da Igreja.

4.3 CONCLUSÕES PRELIMINARES

Por meio do testemunho dos teólogos reformados, especialmente de Calvino,


pudemos perceber que o Deus santíssimo toma a iniciativa na comunicação com
sua criatura humana, e faz isto adaptando sua manifestação à nossa incapacidade
ontológica, como seres finitos que somos, e à nossa incapacidade moral, como
seres corrompidos que o pecado nos tornou. Esta adaptação graciosa se dá por
meio de sinais externos, que capturam a mente humana e transmitem a revelação
divina com veracidade e propriedade. No caso da Ceia do Senhor, os sinais do pão
e do cálice nos comunicam o próprio coração do Evangelho, conforme as palavras
da instituição indicam: “Isto é o meu corpo oferecido por vós... Este é o cálice da
nova aliança no meu sangue derramado em favor de vós”.261

Esta comunicação é feita pelo Espírito Santo, capaz de unir os crentes ao


objeto de sua fé, o Cristo ressurreto nos céus. Nesta operação espiritual, o Espírito
Santo aplica as promessas evangélicas que constam na Palavra de Deus ao
coração do fiel, por meio dos sinais que as representam aos sentidos, propiciando à
fé vacilante maior firmeza. Assim, os que crêem na promessa, recebem não
somente os elementos exteriores, mas, conforme o texto da Confissão de
Westminster (XXIX.7), “também recebem, interiormente, pela fé, o Cristo crucificado
e todos os benefícios da sua morte, e dele se alimentam, não carnal ou
corporalmente, mas rela, verdadeira e espiritualmente”.262

Devemos considerar a Ceia como uma parte valiosa e necessária na


peregrinação cristã, sem a qual a vida cristã pode facilmente tornar-se inerte e

259
Cf. KUIPER, R. B., The glorious body of Christ, p. 203; tb. CALVINO, Institutas, v. 4, p. 269 (IV. xiv.
3), afirma que o sacramento é “associado como que um apêndice” à promessa.
260
BERKOUWER, G. C., The sacraments, p. 45.
261
Cf. Lc 22.19,20.
262
Cf. HARMONIA das Confissões Reformadas. J. R. BEEKE; S. B. FERGUSON (Eds.), p. 221.
80

improdutiva. É uma pintura viva e bem delineada do próprio evangelho,263 e


certamente possui o poder para nos nutrir, prometido pelo Deus infalível. Na
verdade, “se fosse possível uma perfeição na fé, o Sacramento se tornaria
supérfluo”, nos lembra Shelton.264 Entretanto, longe estamos da perfeição. Parece
que alguns, procurando refutar a afirmação católico-romana da necessidade dos
Sacramentos para a salvação, acabam por perder este ponto, se não na teoria, e na
prática terminam agindo como se eles fossem, de fato, desnecessários.

De nossas considerações podemos concluir que abster-se arbitrariamente do


Sacramento é sinal certo de arrogância espiritual, é desprezar Cristo, desdenhar de
sua graça, apagar o Espírito.265 Entretanto, a negligência na participação da Mesa
do Senhor é freqüentemente observada nas igrejas; esta falta deveria ser vista com
mais seriedade, pois, como nota Van Horn, a negligência aos sinais e selos no
Antigo Testamento era considerada violação pactual.266 Os Sacramentos não são
imprescindíveis à salvação. Mas, conforme arrazoa Calvino, Deus não ordena coisas
vãs e inúteis; e se temos uma ordem de Deus para fazermos uso deles, por certo há
em nós uma correspondente necessidade de usá-los.267

Outra importante implicação desta exposição se refere ao afastamento da


comunhão da Ceia daqueles que estão sob disciplina eclesiástica. No Código de
Disciplina da Igreja Presbiteriana do Brasil (CD/IPB), o art. 9 preceitua os três tipos
de penalidades que os Concílios da igreja podem aplicar aos faltosos:

a) Admoestação, que consiste em chamar à ordem o culpado, verbalmente


ou por escrito, de modo reservado, exortando-o a corrigir-se; b)
Afastamento, que em referência aos membros da Igreja, consiste em serem
impedidos de comunhão; em referência, porém, aos oficiais consiste em
serem impedidos do exercício do seu ofício e, se for o caso, da comunhão
da Igreja. O afastamento deve dar-se quando o crédito da religião, a honra
de Cristo e o bem do faltoso o exigem, mesmo depois de ter dado satisfação

263
Cf. SHELTON, R. M. "A teologia da Ceia do Senhor na perspectiva da tradição reformada". In:
Grandes temas, p. 226.
264
SHELTON, R. M. "A teologia da Ceia do Senhor na perspectiva da tradição reformada". In:
Grandes temas, p. 227.
265
CALVIN, J., Catechism of the church of Geneva, in Tracts and treatises, v. 2, p. 85. Esta afirmação
não se refere a quem não tenha acesso ao sacramento por razões alheias à sua disposição
espiritual.
266
VAN HORN, Leonard T. Estudos no Breve Catecismo de Westminster, p. 168, comentando a
referência ao "novo pacto", na resposta à pergunta 92. Não se refere, cf. acima (n. 246), à
omissão involuntária.
267
Cf. citações em WALLACE, R. S., Calvin’s doctrine of the Word and sacrament, p. 239-241.
81

ao tribunal. Aplica-se por tempo indeterminado, até o faltoso dar prova do


seu arrependimento, ou até que a sua conduta mostre a necessidade de lhe
ser imposta outra pena mais severa; c) Exclusão, que consiste em eliminar
o faltoso da comunhão da Igreja. Esta pena só pode ser imposta quando o
faltoso se mostra incorrigível e contumaz; d) Deposição é a destituição de
ministro, presbítero ou diácono de seu ofício.268

Interessa-nos especialmente a pena de Afastamento (b), na qual o membro


da igreja faltoso é impedido de participar da Ceia do Senhor. Acontece que, segundo
o art. 2 do próprio CD/IPB, “Toda disciplina visa edificar o povo de Deus, corrigir
escândalos, erros ou faltas, promover a honra de Deus, a glória de Nosso Senhor
Jesus Cristo e o próprio bem dos culpados”.269 A questão que obviamente se levanta
é como alguém pode ser beneficiado ao ser afastado da comunhão da Ceia,
instituída justamente para edificar o povo de Deus e trazer benefícios espirituais aos
crentes? A explicação remete-nos à Confissão de fé de Westminster (XXIX.8), que
trata da participação dos ímpios nos elementos da Ceia, afirmando que não devem
ser admitidos à Mesa do Senhor e que dela não participam sem grande pecado – e
por conseguinte, remete-nos às advertências do apóstolo Paulo para que ninguém
participe da Ceia “indignamente”, sob pena de comer e beber juízo para si
mesmo.270

Ocorre que a Confissão anexa textos-prova que, conjuntamente, se referem a


impenitentes, ou seja, homens de fora da igreja (Mt 7.6) ou mais propriamente
àqueles que se recusam a mudar seu procedimento ímpio (2Co 6.14-16; 1Co 5.6-
7,13; 2Ts 3.6,14,15).271 Com esta interpretação conferem as palavras finais do citado
artigo da Confissão: “Os ignorantes e os ímpios [...] não podem, sem grande pecado
contra Cristo, participar desses santos mistérios [a Ceia], nem a eles serem
admitidos enquanto permanecerem nesse estado.272 O Diretório de Culto de
Westminster igualmente preceitua acerca da celebração da Ceia, que o ministro
deve advertir aos

268
Manual presbiteriano, 15.ed., p. 70.
269
Manual presbiteriano, 15.ed., p. 67. Grifos meus.
270
Cf. 1Co 11.27-29; cp. PL/IPB, art. 14: “O Conselho deve cuidar de que os membros professos da
Igreja não se ausentem da Mesa do Senhor e velar para que não participem dela os que se
encontrarem sob disciplina.”
271
No caso da carta aos Tessalonicenses, isto fica bastante claro: “Caso alguém não preste
obediência à nossa palavra dada por esta epístola, notai-o; nem vos associeis com ele, para
que fique envergonhado. Todavia, não o considereis por inimigo, mas adverti-o como irmão.”
272
Cf. HARMONIA das Confissões Reformadas. J. R. BEEKE; S. B. FERGUSON (Eds.), p. 221.
82

ignorantes, escandalosos, profanos, ou que vivem em algum pecado ou


ofensa a sem que tenham disso conhecimento ou consciência, para que
não ousem ir à essa Mesa santa, mostrando-lhes que aquele que come e
bebe indignamente come e bebe juízo sobre si. E por outro lado, ele deve
de modo especial convidar e incentivar todos os que labutam sob o
sentimento do peso de seus pecados, e temor da ira, e desejem alcançar
um maior progresso na Graça do que por enquanto podem atingir, que
venham à Mesa do Senhor, assegurando-lhes, no mesmo Nome, de que
receberão descanso, refrigério e força para sua alma fraca e cansada.”.273

Deste modo, se por um lado há a advertência aos indignos, por outro vemos
claramente que os que fraquejam em sua luta contra o pecado não são incluídos
entre aqueles, e têm acesso livre e incentivado à comunhão. O Manual Litúrgico,
editado pela Igreja Presbiteriana do Brasil segue no mesmo compasso, advertindo
“aqueles que, por suas vidas escandalosas, ou por sua ignorância das verdades
fundamentais do Cristianismo, mostram não pertencer ao povo de Cristo”, e
convidando os que “se acham arrependidos de seus pecados, que desejam, com a
ajuda de Deus, viver santamente”.274

Portanto, devemos entender a prescrição do Código de Disciplina de que “o


afastamento deve dar-se quando o crédito da religião, a honra de Cristo e o bem do
faltoso o exigem, mesmo depois de ter dado satisfação ao tribunal”, não como uma
licença para a vulgarização do afastamento da comunhão, como se todo membro
disciplinado devesse imediatamente ser barrado da Mesa da Graça. Pelo contrário,
segundo o Código de Disciplina, somente em dois casos se deve aplicar o
afastamento: 1) O impenitente, que, depois da exortação pastoral permaneceu no
erro e recusou arrepender-se de seu pecado, dando mostras, assim, de “não
pertencer ao povo de Cristo”; neste caso, visa-se inclusive “o próprio bem dos
culpados”, impedindo-os de receberem maior juízo de Deus por participarem
indignamente de sua Mesa. 2) O pecado público, caso em que há necessidade de
uma satisfação igualmente pública, para “promover a honra de Deus, a glória de
Nosso Senhor Jesus Cristo”; é em virtude deste caso quer se acrescenta a pena de
afastamento “mesmo depois de [o faltoso] ter dado satisfação ao tribunal”.

Contudo, em vista de nosso estudo até aqui, cabe uma advertência: a prática

273
DIRETÓRIO de culto de Westminster, p. 48.
274
MANUAL litúrgico, p. 31.
83

de afastar o fiel arrependido da comunhão labora contra a doutrina eucarística que


confessamos. Conforme vimos nos símbolos reformados e em Calvino, a Ceia é
instituída exatamente para nossa fraqueza e corrupção. “Aliás,” afirma o reformador,
“o que se exige não é fé perfeita ou arrependimento perfeito”; pelo contrário: “se,
humilhando-se ante a consciência de sua própria miséria, você recorre à graça de
Cristo, e descansa nela, esteja certo de que é um convidado digno de aproximar-se
da Mesa [...] ainda que em outros aspectos você não esteja como deveria”.275
Tampouco Paulo estava exigindo perfeição dos membros da igreja coríntia, porém,
exigia deles o auto-exame; tendo feito-o, que comungassem. 276 Isto é bastante
diferente de afastar o arrependido, mesmo porque todo arrependimento genuíno
ocorre num contexto de contrição procedente de um auto-exame à luz da Escritura.

Considerando que o texto do Código de Disciplina fala da aplicação desta


pena mesmo depois de o faltoso ter dado satisfação ao tribunal, muitos Conselhos
afastam o faltoso da Mesa mesmo estando convicto de que houve arrependimento
genuíno. Mas o próprio Código determina sua aplicação “até o faltoso dar prova do
seu arrependimento, ou até que a sua conduta mostre a necessidade de lhe ser
imposta outra pena mais severa”. Portanto, se o Conselho – com sua experiência,
discernimento espiritual e sensibilidade, e por outro lado, com suas limitações para
avaliar a sinceridade do coração – concluir satisfatoriamente que aquele irmão em
falta se arrependeu genuinamente, devem convidá-lo a participar alegremente do
banquete da graça, até mesmo como remédio para sua fraqueza.

É importante que o rebanho seja ensinado acerca destas implicações, pois


um costume indiscriminado de disciplinar afastando da comunhão pode conduzir: 1)
à banalização da disciplina e da Ceia igualmente; 2) ao fortalecimento do conceito
memorialista, onde a Ceia é ação da igreja, testemunhando do Salvador; 3) a um
conceito meritório da Ceia, pois somente “os melhores crentes” poderão participar
dela. Conforme procuramos demonstrar acima, o ensino reformado se opõe a tal uso
e conceito sobre a Ceia.

275
CALVINO, J.. 1 Coríntios, p. 364; grifos meus. Cf. Institutas, v. 4, p. 392 (IV. xvii. 41): “Ora, se está
em jogo que por nós busquemos nossa dignidade, ai de nós! Só nos resta desespero e ruína
mortal! Ainda que nos empenhemos com todas as nossas forças, jamais teremos qualquer
outro proveito, senão ser ainda mais indignos, quanto mais nos preocupamos em conseguir tal
dignidade.”
276
1 Co 11.26-29. Cf. KISTEMAKER, S., 1 Coríntios, p. 556-558; MORRIS, L., 1 Coríntios, p. 131.
84

5 CONCLUSÃO

A perspectiva memorial defendida por Zwínglio parece prevalecer na maioria


das igrejas evangélicas hoje. Assim, a Ceia está limitada a um símbolo da morte do
Senhor, a uma exortação à gratidão, a uma reafirmação de unidade, a uma
sensação de sua presença.277 Entretanto, esta é uma redução do conceito bíblico e
reformado da Ceia do Senhor. Vimos o quanto Calvino diferia desta posição
memorialista ou simbolista do Sacramento; igualmente os grandes documentos
reformados, que seguiram o reformador de Genebra nesta questão. Mais importante
do que isto, pudemos perceber ainda que a compreensão idealista ensinada por
Zwínglio não faz jus ao ensino bíblico sobre os meios de Graça, nem ao ensino
neotestamentário acerca da Ceia.

Sendo os benefícios do Sacramento recebidos pela fé na promessa da


Palavra, segue-se que quem não conhece a promessa, não recebe o benefício, ou
pelo menos não o pode receber em sua plenitude. Por isto mesmo, o conceito
memorialista priva o corpo de Cristo da nutrição que lhe é devida e de direito. E esta
é a situação em boa parte das igrejas evangélicas brasileiras, e o povo de Deus ali
congregado certamente sofre as conseqüências espirituais disto. Ao invés do
recebimento do próprio Senhor crucificado e ressuscitado, que se oferece a si
mesmo no pão partido e no vinho vertido, a Ceia tem se convertido num mero
exercício devocional, num momento litúrgico apropriado para contrição.

Falando acerca da visão dos Sacramentos que as igrejas evangélicas têm


ensinado, o teólogo reformado Michael Horton apresenta seu próprio testemunho,
afirmando que aprendeu desde pequeno que o significado da Ceia e do batismo era

277
Cf. HAYES, Ed. A igreja. São Paulo: Hagnos, 2002, p. 131 onde o autor afirmar que na Ceia
"fazemos uma corajosa afirmação ao mundo de que somos um em Cristo"; Ceia mais
antropocêntrica, impossível.
85

definido pela emoção ou piedade que essas ações evocavam, e não pelas dádivas
celestiais que Deus concedendo por esses meios; e que participar da Ceia
significava: “Eu lembro o quanto Jesus sofreu e o quanto eu deveria, portanto, fazer
por ele”.278 Isto é uma tremenda redução do ensino bíblico, e certamente não é o
ensino dos reformadores.

No período da Reforma Protestante, os reformadores insistiram na


necessidade de um correto ensino sobre a Ceia, acompanhado de sua correta
administração; esta questão foi tão importante que impediu uma maior aproximação
entre as confissões reformadas da época. Em nosso contexto, muitas coisas são
diferentes. Mas as promessas de Deus, bem assim como as necessidades
espirituais do povo de Deus, permanecem as mesmas, de forma que a igreja
Reformada tem a responsabilidade de ensinar o verdadeiro sentido e valor do
Sacramento da Ceia do Senhor. Portanto, se observamos que há uma má
compreensão mais ou menos generalizada na igreja sobre a Mesa do Senhor, isto
certamente se deve a um mau ensino igualmente generalizado sobre o Sacramento
da Ceia do Senhor. Segundo Berkouwer, somente quem percebe o profundo
significado da instituição da Ceia pelo Senhor entenderá que a linguagem
sacramental “não é uma fraseologia sem significado nem exagerada, mas indica a
conjunção entre o comer do pão e o beber o vinho com fé, e a bênção e eficácia do
sofrimento e da morte reconciliadores de Cristo”.279

Não se deve esperar nenhuma mágica aqui. A eficácia do Sacramento


dependerá da correta ministração da Palavra; a Palavra é que produz a fé
necessária para recebê-lo, e é ela que contém as promessas do Senhor de que nos
apropriamos ao participarmos da Ceia.

Devemos tomar seriamente a convocação feita por Horton aos reformados de


seu contexto norte-americano:

Hoje, quando tantas pessoas anseiam por sinais de Deus, por sentimentos
de sua presença, por símbolos de aceitação de Deus a despeito da
fraqueza da fé e da desobediência humanas, como podemos esconder
tamanho testemunho divino dos pecadores crentes e arrependidos? Ali, na

278
HORTON, M., A face de Deus, p. 147.
279
BERKOUWER, G. C., The sacraments, p. 217, tradução minha.
86

mesa do Senhor, o Santo, cuja mera voz envia terror aos ossos de Israel, se
reveste de humildade, da mesma maneira como fez há dois mil anos
atrás.280

Obviamente, nosso dever começa em casa, pastoreando nossas ovelhas na


sã doutrina. O conceito memorialista tem uma aparência de racionalidade e
simplicidade, além de ser antitético ao ensino realista do catolicismo romano; talvez
isto explique sua fácil disseminação entre o povo presbiteriano brasileiro. Ainda,
talvez pela semelhança superficial que guarda com o conceito calvinista, tem
recebido a tolerância de muitos pastores. Mas dada a importância da Ceia (análoga
à importância vital do alimento físico para nosso corpo), creio que devemos
combater sem demora este erro com a Palavra da Verdade, demonstrando pelas
Escrituras a riqueza da nutrição espiritual que Cristo nos propõe à sua Mesa, onde
ele se doa inteiramente a nós. A Ceia deve voltar a ser vista pelo rebanho como um
meio de graça, isto é, como um instrumento do Espírito Santo para nos unir ao corpo
ressurreto de Cristo, fonte de nossa vida espiritual e de nossa santificação.

Porém, tendo já cuidado dos de casa, nossa responsabilidade se estende


também às ovelhas de Cristo que estão em outros arraiais, mas que podem ser
alcançadas através da influência salutar de boa literatura doutrinária, que vise não à
polêmica, mas à edificação do corpo de Cristo. Tenhamos também nisto, o exemplo
de Calvino, sendo incansáveis na defesa da verdade e da igreja de Deus.

280
HORTON, M., Um caminho melhor, p. 141. Ênfase acrescentada.
87

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGOSTINHO de Hipona. A doutrina cristã : manual de exegese e formação cristã.


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