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FRANCISCO JOSÉ VIEGAS nasceu em 1962.

Professor,
jornalista e editor, foi também diretor das revistas Ler e
Grande Reportagem – e da Casa Fernando Pessoa. De 28
de junho de 2011 a 25 de outubro de 2012 exerceu o cargo
de Secretário de Estado da Cultura do XIX Governo
Constitucional. Colaborou em vários jornais e revistas, e foi
autor de vários programas na rádio (Antena 1) e televisão
(Livro Aberto, Escrita em Dia, Ler para Crer, Primeira
Página, Avenida Brasil, Prazeres, Um Café no Majestic,
Nada de Cultura). Da sua obra destacam-se livros de
poesia (Metade da Vida, O Puro e o Impuro, Se Me
Comovesse o Amor) e os romances Regresso por um Rio,
Morte no Estádio, As Duas Águas do Mar, Um Céu
Demasiado Azul, Um Crime na Exposição, Lourenço
Marques, Longe de Manaus (Grande Prémio de Romance
e Novela da Associação Portuguesa de Escritores 2005) e
O Mar em Casablanca.

Os seus livros estão publicados na Itália, Alemanha, Brasil,


França e República Checa.
O colecionador de erva
Francisco José Viegas

Publicado em Portugal por


Porto Editora, Lda.
Divisão Editorial Literária – Lisboa
E-mail: dellisboa@portoeditora.pt

© 2012, Francisco José Viegas e Porto Editora, Lda.

1.ª edição em papel: março de 2013

Design da capa: © Sofia Barbosa


Imagem da capa: © Subbotina Anna / Shutterstock

Este livro respeita as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.


Entre mi amor y yo han de levantarse
trescientas noches como trescientas
paredes
y el mar será una magia entre
nosotros.

JORGE LUIS BORGES, Fervor de Buenos Aires


1

A PRIMEIRA VEZ QUE ISSO ACONTECERA:8 de abril de 2003. Um céu limpo


e azul, o vento de uma primavera que tardava em atravessar as
baías do mar galego. O homem parou o carro junto do muro, ao lado
da árvore mais alta, diante daquela paisagem de Turner. Jaime
Ramos conhecia Turner através de Rosa, que insistira em fazer
dele, não um homem culto, mas alguém preparado para reconhecer
a beleza das bibliotecas, o tormento das coisas desconhecidas ou a
passagem do tempo, e William Turner fazia parte desse repertório
de nomes: nuvens, carregadas ou suaves, tormentas ou sopros de
cor. E, por vezes, a explosão de um céu limpo e azul. Portanto, o
homem inclinou-se sobre o muro, parecendo debruçar-se para
desfrutar daquele cenário de Turner, e só daí a minutos se há de dar
conta de que não reconhecia nem o mar, nem o céu, nem o
arvoredo de La Guardia, nem o vulto esverdeado de Santa Tecla
com os seus caminhos abertos entre pinheiros que cresceram com
ordem e geometria, ocupando o lugar dos carvalhos antigos que
tinham ardido em verões anteriores.
Outro resumo, para voltar a Turner (Jaime Ramos regressaria a
esta imagem quase no final da reconstituição que teve de fazer para
si próprio e para os seus subordinados): corvos marinhos e um mar
de ondulação descolorida, como se lhe faltasse aguarela — são
cinco e meia da tarde, o sol desaparece aos poucos do outro lado
da montanha. Com o verão, o crepúsculo desloca-se para ocidente,
descerá ainda mais devagar sobre as dunas, embalará os barcos
que, vistos de longe, estão presos a embarcadouros invisíveis. Em
Espanha as árvores crescem com mais tenacidade, a floresta é
mais densa, como se suspeitassem que de um lado e do outro da
fronteira (que era, afinal, um rio ambidextro) havia proteções
diferentes contra a erosão — mesmo que se avance até à foz, à
invasão da terra pelo mar.
Debruçado sobre a água, parece uma estátua — mas há de
mover-se, caminhar, sentar-se no muro onde a luz da tarde termina.
Hão de encontrar-se dois pescadores que tinham reparado naquela
figura imóvel e que descreverão o momento da sua chegada (as
declarações de cada um deles foram recolhidas por Isaltino de
Jesus, num esforço inútil para completar uma história sem princípio,
meio ou fim). Há uma sequência: o Mercedes azul avança entre o
arvoredo, freixos e choupos que acompanham a margem do rio; o
homem sai do carro, deixando a porta aberta, e dirige-se para o
muro de onde se vê toda a foz do Minho; debruça-se sobre a água
do rio, como se procurasse alguma coisa; finalmente, senta-se no
muro, as mãos sobre os joelhos, imóvel como uma estátua. São
cinco e meia da tarde e, àquela hora, a sombra de Santa Tecla — a
montanha dos mistérios — toca a margem portuguesa do rio. O
homem continua imóvel durante meia hora. Não fuma, não faz um
gesto na direção da porta aberta do carro, mal move a cabeça.
Depois, começa a escurecer no dorso da água, anunciando o
crepúsculo. Quando os carros começam a acender os faróis no
termo da estrada de Caminha, finalmente move-se muito devagar,
como se despertasse, retira o telemóvel do bolso do casaco e fala
durante algum tempo com alguém. Talvez dois, três, quatro minutos.
Desliga o telefone, o crepúsculo cai entre as montanhas e vê-se um
bando de estorninhos a afastar-se das dunas, regressando ao
interior da serra, rasando as vinhas que sobem pela encosta. Os
dois pescadores passam por ele e cumprimentam-no. Dirão depois
que notaram um olhar fixo na outra margem do rio, e que murmurou
qualquer coisa. «Boa tarde.» Podia ser. Abotoou o casaco,
caminhou um pouco junto do muro e parou como se se preparasse
para apreciar um cenário que nunca tinha visto antes: a foz; a
ondulação perdida do mar, coroada de espuma; a montanha, como
um vulto escuro e indistinto; o arvoredo que o rodeia.
Não sabia como tinha vindo ali parar. Mais tarde, daí a uns dias,
quando descrever a sensação ao seu médico, dirá que tinha perdido
a memória. Mas naquele momento era só isso: não sabia como
tinha vindo ali parar. Jaime Ramos anotou que nunca fora referido
esse enquadramento de nuvens, tormentas ou sopros de cor, tudo
isso suspenso sobre o céu azul que era uma cúpula de luz sobre a
foz do rio Minho. Talvez fosse só invenção sua, num esforço
involuntário para agradar a Rosa.
2

O PRIMEIRO CADÁVER FOI ENCONTRADO NA MANHÃ DO SEGUNDO DOMINGO DE


MAIO, no interior de um carro abandonado nos limites de um pinhal,
junto de uma estrada secundária. O carro fora incendiado com o
corpo lá dentro: um homem de meia-idade, acima de cinquenta
anos, sentado no lugar do condutor e com as mãos — ou o que
tinham sido as suas mãos — algemadas ao volante. A equipa da
polícia observou no local que o homem não morrera das
queimaduras que lhe deformaram a parte inferior do corpo, nem por
asfixia como consequência do fogo que consumira uma parte do
carro. Antes disso, ele tinha sido alvejado. À vista desarmada havia
seis feridas. Duas na cabeça (frontal e occipital), uma no ombro
esquerdo, uma no peito (à altura do coração) e duas entre as
pernas. Só depois disso teria sido algemado ao volante. Parte das
roupas fora consumida pelas chamas a partir das calças mas,
estranhamente, nem o casaco nem a camisa — branca — arderam
por completo. O cabelo tinha desaparecido. O rosto estava
irreconhecível, e as órbitas dos olhos eram dois buracos vazios e
negros. Havia um depósito de gasolina, de plástico, junto do carro e
em princípio tinha sido usado para ajudar a atear o fogo. Um dos
polícias assinalou o chão do carro, parcialmente devorado pelas
chamas, e outro confirmou que as pernas do morto e o chão tinham
sido regados com gasolina antes de alguém ter acendido um
isqueiro ou um fósforo. O tablier não ardera completamente mas o
limpa-para-brisas quebrara-se em pedaços, e os painéis de
instrumentos tinham derretido com o calor, tal como o teto de
plástico e parte dos bancos dianteiros. O que restava do casaco do
homem (os ombros, a lapela, uma parte do braço esquerdo) estava
coberto de cinza e de manchas de plástico derretido que tinham
caído do teto, e da camisa sobrara o colarinho e um pouco de tecido
à altura do peito, onde havia manchas escuras de sangue.
Tinha também ficado claro que o assassino (ou assassinos, tanto
fazia para já, se bem que fosse difícil apenas uma só pessoa ter
preparado aquele espetáculo) regara a manga direita do casaco e
as mãos da vítima com gasolina — as mãos tinham sido
inteiramente consumidas pelo fogo (eram agora um resto de ossos e
de carne carbonizada) e os ossos continuavam algemados à parte
superior do volante do carro, um Audi A4 preto, cuja pintura estava
ainda visível, à exceção de uma parte do tejadilho, de quase todo o
capô e dos pneus dianteiros, que era provável terem sido
igualmente regados com gasolina. Felizmente tratava-se apenas de
um depósito de dois litros e meio.
O segundo cadáver foi encontrado minutos depois, quando um
dos polícias — uma agente à paisana com o cabelo loiro
parcialmente escondido por um boné de basebol — abriu o porta-
bagagens traseiro: um homem, deitado e dobrado em decúbito
dorsal, as mãos amarradas atrás das costas com uma fita adesiva
prateada. Estava completamente nu, deitado sobre o lado esquerdo
do corpo, voltado para dentro. Tinha uma tatuagem no braço direito
(o único visível) e uma outra nas costas, junto da omoplata direita. A
do braço representava uma cabeça de falcão a duas cores,
vermelho e negro, um desenho provavelmente militar, memória de
uma campanha de guerra; a das costas, uma folha de marijuana
com dez centímetros de extensão. Dois tiros na nuca e um no
parietal direito tinham provocado uma hemorragia que alagara o
tapete cinzento do porta-bagagens. Como a mala do carro não tinha
sido atingida pelas chamas podiam ver-se quer o cabelo negro e
curto, a pele branca, muito pálida, muito branca, quer a fita adesiva
prateada que também servira para amordaçar o homem, que teria
mais de quarenta anos, mas menos de cinquenta, boa constituição
física e cerca de um metro e oitenta. No pulso esquerdo havia outra
tatuagem, uma palavra ou, pelo menos, qualquer coisa escrita com
uma caligrafia oriental. As suas roupas não estavam no porta-
bagagens nem no interior do carro onde, no banco traseiro,
encontraram um taco de golfe e um saco de ginástica preto, que
também não tinham sido tocados pelas chamas. O taco estava
limpo e sem manchas de sangue; dentro do saco havia uma toalha
de banho, uma faca com uma lâmina de 14 centímetros, um estojo
de higiene pessoal com escova de dentes, espuma e lâminas de
barbear, um champô, um corta-unhas, um desodorizante e uma
tablete de Aspirina. Numa das bolsas exteriores do saco de
ginástica a agente de cabelo loiro e boné de basebol encontrou uma
arma, um revólver Beretta de nove milímetros com dez munições no
carregador e uma na câmara. Da outra retirou uma máquina
fotográfica digital de uma polegada de espessura e uma faca
Caribou guardada na sua bainha, com presilhas que poderiam
ajustar-se a um cinto.
Quanto ao pinhal, tratava-se de um quadrado de terra com cerca
de cem metros de comprimento e outro tanto de largura, cercado
por um muro de granito e com um velho portão de madeira pintado
de verde por onde o carro entrara cerca das cinco da manhã. O
médico legista informou que talvez fosse essa a hora a que os dois
homens teriam sido mortos, pelo menos o que se encontrava na
mala, sendo necessário fazer exames mais minuciosos ao corpo
que continuava algemado ao volante. Ele era um homem com ar
cansado e ligeiramente ensonado, baixo, com uma calvície dianteira
incipiente, e estava vestido como se fosse mesmo domingo, com
uma camisa xadrez castanha e amarela debaixo de um blazer de
bombazina verde, uns jeans demasiado novos e sapatos pretos.
Com a tesoura que retirou de uma mala, pousada sobre o chão de
terra, cortou uma pequena extensão da manga esquerda do morto
sentado ao volante para verificar até onde a pele estava queimada.
O corte chegou até ao músculo do antebraço e também aí viu um
falcão tatuado a duas cores, idêntico ao do cadáver que nessa
altura já tinha sido retirado da mala do carro. Era uma pele branca
onde já não havia veias nem reação à pressão dos dedos. Foi nessa
altura que o médico se voltou para o polícia que seguia os seus
movimentos e repetiu que tudo teria acontecido por volta das cinco
horas. Dissera o mesmo depois de fazer o exame prévio ao
segundo morto.
Eram naquele momento dez e meia da manhã. Um domingo de
maio. O médico guardou a tesoura, fechou a mala e acendeu um
cigarro enquanto pontapeava uma pinha velha que sobrara do
outono anterior. Ou de outro qualquer.
3

O TERCEIRO CADÁVER FOI ENCONTRADO NA MARGEM DO RIO AO FIM DA TARDE


DESSE DIA. Era uma mulher jovem e morena, africana, de cabelos
frisados que lhe cobriam todo o rosto. O corpo estava voltado para
baixo, semienterrado no lodo e na lama da margem, sob a ramagem
dos choupos que ainda sobreviviam naquele lugar, recordando que
um rio faz parte da terra e que não é uma dependência do mar.
Havia um arvoredo espesso durante alguns quilómetros antes de
aparecerem as primeiras casas — o modelo era o das habitações
tradicionais de ferroviários durante os anos sessenta, com um
quintal nas traseiras e um jardim minúsculo na parte da frente,
pintadas de branco e com uma chaminé que indicava a existência
da cozinha numa das extremidades e de mais duas ou três
pequenas divisões para a família ideal do operário português desses
anos, acrescentadas de uma casa de banho no exterior, ao fundo do
quintal. Todas essas casas tinham também um tanque de lavar
roupa nas traseiras e uma trepadeira que subia por uma das
paredes laterais até ao telhado. Os arquitetos da empresa de
caminhos de ferro impuseram esse desenho como um selo que
seria depois multiplicado por todo o país, com muros rendilhados e
pintados de cinzento — a cor que mais resistiria ao fumo largado
pelos comboios a vapor de há quarenta ou cinquenta anos —,
gelosias de quadriculado nas janelas, e uma distância razoável até
aos edifícios das estações, mas relativamente perto das oficinas
ferroviárias hoje abandonadas e onde antes havia, pela província
fora, locomotivas sujas para reparar e a paisagem do pequeno
operariado em ambiente rural: óleo sujo, restos de soldadura,
desperdícios e aço — durante a semana; uma horta para alimentar
a família — ao fim de semana.
Agora, que os grandes comboios tinham deixado de circular e
apenas passavam, de tempos a tempos, as pequenas automotoras
regionais diárias, não havia ferroviários para habitar essas casas
abandonadas. Mas foi bastante perto da primeira delas, numa
ladeira que descia para o rio, que encontraram a mulher, com o
rosto voltado para o lodo, coberta de lama e envolta numa nuvem de
mosquitos. As mãos amarradas atrás das costas por uma fita
adesiva prateada. Como se esta imagem o impressionasse por
alguma razão, o médico observou os pulsos da mulher mais de
perto, servindo-se de uma lupa invisível, passando os dedos sobre a
fita, verificando que tinha sido cortada com uma lâmina.
«Trinta anos, africana, já se vê, morta há cerca de, vá lá, umas
dez, onze, doze horas.»
«Dez, onze ou doze?», perguntou o homem que seguia o médico
com um bloco de notas de capa preta.
«Escolha. Gosto de doze horas. Doze horas dá seis da manhã,
salvo erro. Parece-me uma hora razoável.»
«Ficam doze horas.»
«Estou cá para servi-lo.»
«E os ferimentos?»
Estavam ambos de cócoras junto do corpo da mulher, o polícia
tapava o nariz de vez em quando e respirava fundo voltando-se para
o lado, semicerrando os olhos para não ver o corpo.
«Quatro. Dois na nuca, como se vê, aqui estão. Sem orifício de
saída um deles. O outro entrou por aqui, veja bem, e saiu por cima,
aqui mesmo. Terceiro ferimento com bala, aqui, no peito. Este é o
orifício de saída. O tiro veio pela frente.»
O médico voltou-a sem esforço, sujando as luvas brancas de látex
no lodo. Apontou para junto do seio esquerdo:
«Aqui está, terceiro ferimento. Vamos designá-lo como ferimento
número três, o quarto não entendo bem, mas é no pé direito, ali.»
O homem seguiu a direção apontada pelo dedo do médico e
parou no pé direito, perfurado por uma bala que teriam de procurar.
O corpo da mulher estivera no leito do rio e os vestígios de sangue
tinham desaparecido ao longo do dia. Depois de ter sido
fotografada, o médico cortou a fita adesiva prateada que prendia os
pulsos e limpou a lama que lhe envolvia as mãos. Unhas pintadas
de branco, cuidadas, sobre a pele morena, dedos finos, compridos.
«É a mesma fita adesiva, não é?»
«Parece.»
«E os disparos?»
«Não posso garantir. Mas os tiros na nuca são parecidos. Dois
disparos. A única diferença é que, neste caso, não há orifício de
saída para um deles. Pode ter sido uma arma diferente, claro. Mas o
método é exatamente igual.»
«Uma execução. Tiro na nuca.»
«Dois tiros na nuca.»
«Se ela foi morta com os dois tiros na nuca porque é que foi
alvejada pela frente, no peito?»
«Esse podia ter sido antes. Os disparos na nuca podem ter sido
feitos depois. Só podem dizer alguma coisa na Medicina Legal.»
«E o quarto disparo?»
«Um tiro no pé. Opinião à primeira vista, só de olhar: foi feito com
outra arma. Parece. Vão ter de pedir uma perícia a isto tudo, claro.
Mas aposto que foi o primeiro de todos. Um tiro no pé. Imobiliza-se
a vítima, ela fica sem saber o que vai acontecer, digamos assim. Cai
no chão. Fica indefesa. É um clássico, inspetor.»
«Eu tomo nota, doutor. Os disparos na nuca são idênticos ao do
peito?»
«Pela mesma arma? Jurava que sim.»
O homem a quem o médico chamara inspetor levantou-se e ficou
uns instantes a sacudir as pernas, olhando para o rio. Em maio o sol
escondia-se a esta hora atrás das montanhas. Havia uma mistura
de azul e alaranjado sobre as colinas. A única coisa em desacordo
com a paisagem era aquele corpo. O terceiro cadáver do dia,
pensou ele enquanto fechava o bloco de apontamentos em que
tinha escrito muito pouco — apenas a hora a que tinha chegado ao
local, «18h15», e a hora a que o médico legista apareceu, «18h27».
A princípio é difícil ser meticuloso, pensou ele, mas depois é um
hábito, à medida que os cadáveres aparecem e desaparecem.
Geralmente aparecem. Ele tinha passado a idade em que esperava
os cadáveres como um acontecimento extraordinário.
4

«O CORPO DO HOMEM QUE ESTAVA AO VOLANTE, CHEFE, JÁ ESTÁ


IDENTIFICADO. Arkady Tarasov. Tarasov. Estive a treinar meia dúzia de
vezes até conseguir dizer direitinho, com o sotaque certo. Arkady
Tarasov. Natural de, imagine onde, chefe, Murmansk. Estive a ver
onde era Murmansk. Sabe onde é?»
Jaime Ramos olhou-o por cima dos óculos:
«Mar de Barents.»
Isaltino de Jesus assobiou baixinho, acenando com a cabeça:
«Tem um atlas na cabeça.»
«Isaltino, Isaltino. Murmansk era uma base militar naval soviética.
Uma cidade fechada. Submarinos, contratorpedeiros, vasos de
guerra, a glória da pátria dos sovietes escondida no Mar de Barents,
plataforma de abastecimento das tropas aliadas durante a Segunda
Guerra, bombardeada pelos alemães. Havia marinheiros de
Murmansk em todo o lado. A frota de Murmansk aparecia quase
todos os meses na Sputnik ou na Vida Soviética. Era uma grande
realização mundial do socialismo. Mesmo assim, Isaltino, que eu
saiba ninguém é de Murmansk. É uma espécie de deserto gelado e
cheio de lama que nunca gela. Ninguém nasce em Murmansk.»
«O chefe conhece esse sítio?»
«Acho que não.»
«Mesmo assim é como se tivesse um atlas na cabeça.»
«Não é um atlas. É Murmansk. Tudo de memória. E que faz um
cidadão de Murmansk nos pinhais de Vila do Conde?»
«Desde que usa óculos que o chefe está mais distante. Ou
parece.»
«Vejo as coisas mais de longe.»
«Mas são óculos para ler.»
«A leitura é uma tarefa cada vez mais perigosa e arriscada,
Isaltino. Ler é uma ocupação de risco a partir de certa altura. Com a
idade, os olhos não resistem a tantos maus livros. E já não falo do
cérebro.»
«Fica com um ar mais respeitável, chefe.»
«É bem capaz de ser. A oftalmologia é uma ciência nobre. Trata
da promoção social das classes desfavorecidas. Na minha aldeia só
o padre, o merceeiro e uma tia minha tinham óculos. Os outros
limitavam-se a ver mal e julgavam que o mundo era assim,
desfocado ou sujo. Não conheciam a retina, não sabiam o que eram
as cataratas, não tinham termo de comparação, ignoravam a
existência de dioptrias. E nunca poderiam ler Tolstói nem
Turguéniev.»
«O chefe tem uma pancada com russos. Seja como for, continua
com boa memória. Um arquivo que faz sempre jeito.»
«A minha memória é pessoal, Isaltino. Não está ao serviço do
país, não pertence ao Estado. Custou muito a conservar, custou
muito a reter, está cheia de vícios. Não vou usá-la em vão. Depois
de Murmansk há um grande vazio. A minha fronteira é o Mar de
Barents.»
Mas Jaime Ramos nunca estivera diante do Mar de Barents, e
limitava-se a saber vagamente da existência de Willem Barents, o
holandês que no século XVI redescobriu as ilhas Spitzberg, um
arquipélago originalmente chamado Svalbard, enquanto procurava,
seguindo a crença de Plínio — a de que o Mar de Kara, o antigo
Oceanus Scythicus, era composto de água doce —, uma passagem
para a China entre o gelo do Norte e as tempestades permanentes
do mar escuro que ficou com o seu nome. Acabou por morrer em
Novaya Zemlya, junto do Mar de Kara, em 1596, no termo dessa
expedição que nunca se concluiu. A única coisa que Jaime Ramos
conhecia de Novaya Zemlya, a terra dos gansos, era o retrato de
uma mulher, loira, sorridente, alta, com um capacete de aviador
pendurado de uma mão enluvada, de pé sobre o asfalto da pista
cinzenta de Rogachevo (uma espécie de poster da revista Sputnik),
outra das glórias do socialismo. Rogachevo resistia ao imperialismo
em pleno Mar de Barents, tal como Murmansk e, mais ao norte, o
pequeno estreito de Polyarny, e todos eram pontos frios na sua
memória. Frios, exatamente.
Isaltino folheou então o caderno de notas de capa preta,
recitando: Arkady Tarasov, natural de Murmansk, militar reformado
com o posto de coronel do exército, solteiro, cinquenta e sete anos,
chegou a Portugal em 1998 e trabalhou como eletricista durante os
primeiros dois anos. Em 2002 foi apanhado numa operação de
controlo de prostituição num bar de Ermesinde, identificado e mais
nada. É o nosso único registo. Naturalizado português em 2008.
«E do outro russo, há novidades?»
«Menos, mas mais. Ou seja, pelo menos na cabeça do chefe, que
sabe tudo sobre Murmansk.»
«Eu não sei tudo sobre Murmansk, Isaltino.»
«Num raio de cem quilómetros, eu aposto, quase tudo. Ninguém
nesta área é tão russo como o chefe. Mikhail Polianov. Quarenta e
oito anos, imigrante legalizado mas sem profissão conhecida depois
de ter estado quatro anos a trabalhar como vendedor e negociante
de bebidas para bares e discotecas. Proprietário de uma firma já
desativada que se dedicava à importação de produtos alimentares
russos, impostos em ordem, casado, começou a vida em Portugal
em 1998 como operário da construção civil. Na Rússia era
engenheiro do exército, em Portugal vive num apartamento em
Matosinhos. A mulher trabalha no NorteShopping.»
«Imigrantes, redes de prostituição, noite, vinganças da noite. Tens
aí um bom caso para os jornais, Isaltino. Imigrantes do Norte e do
Leste. Uma fanfarra. Já estou a ver como vai ser: Portugal mantém-
se na senda da modernidade, albergando chefes das máfias russa e
ucraniana diante da inoperância das forças policiais, que não
controlam as suas atividades criminosas. É a permeabilidade do
país às máfias e às forças do mal. Escusas de comprar o jornal, é
assim que vai aparecer.»
«A minha filha tem amigas ucranianas. E moldavas. São boas
alunas, limpas, educadas», refletiu Isaltino, batendo com o lápis no
caderninho. «Chefe, os russos são bons imigrantes. Esforçam-se
mais, trabalham mais, são melhores em gramática na escola, são
mais atentos. Imagine, engenheiro. Imagine, coronel do exército.
Muita disciplina. Aquela gente fez de tudo para sobreviver. Até vir
para este fim do mundo.»
«O glorioso Exército Vermelho, barqueiros do Volga, Katyusha,
aquele folclore todo. Tu achas, então, que estes são melhores
imigrantes do que os outros?»
«Os outros?»
«Os pretos, os angolanos, os cabo-verdianos, os marroquinos.»
«Têm mais a ver connosco.»
«De certeza, Isaltino? Achas que um russo tem mais a ver
connosco do que um cabo-verdiano só porque um cabo-verdiano é
preto? Loiros, branquinhos, disciplinados, caladinhos, que esperam
o seu lugar numa fila, trabalhadores, achas que eles têm mais a ver
connosco do que os pretos da Guiné?»
«Os russos, chefe, o chefe é que tem a mania dos russos.»
«Já tive, Isaltino, já tive, mas o meu cirílico era búlgaro, só estive
na Bulgária a receber instruções sobre como instaurar o socialismo
em Famalicão ou Paranhos. Sobraram-me algumas coisas, mas
sem importância.»
«O chefe é uma enciclopédia, não desfazendo.»
«E que faz um cidadão de Murmansk nos pinhais de Vila do
Conde?», repetiu ele.
«Morre-se tão bem em Vila do Conde como na Rússia»,
respondeu Isaltino, juntando os papéis, desiludido.
5

O DIRETOR TINHA UMA VOZ DE BAIXO, PROFUNDA, como se tivesse


acordado há minutos e não pudesse pigarrear. Jaime Ramos
reconhecia as cordas vocais maceradas por anos de tabaco e
álcool, pecados que entretanto foram abandonados, domesticadas
por muitas tentativas de produzir aquele efeito de tranquilidade
aparente. Estava encostado na cadeira, mais do que sentado diante
de um computador em repouso temporário. Depois de uma geração
de políticos transformados em juristas e de juristas transformados
em futuros ministros, a direção da polícia optara por juristas,
simplesmente, fazendo constar a novidade de que as competências
técnicas eram o essencial naquela posição, além de um certo gosto
por romances de espionagem. Conhecera vários e respeitara
alguns, e quase todos eles o convocaram para pedir conselhos que
evitara dar ou para pequenos favores pessoais concedidos por um
veterano na casa, um homem que entrara para a polícia e começara
por baixo, a fazer serviços menores e a prender assaltantes de Rio
Tinto, até entrar para os homicídios por desleixo puro depois de um
curso noturno em que as notas não contavam muito desde que o
essencial fosse mantido, e o essencial era manter um emprego, um
salário, uma idade de reforma — custasse o que custasse. Desde
os anos oitenta que Jaime Ramos se limitara a estar presente nos
corredores do velho edifício que, entretanto, fora abandonado — e
de que ele tinha saudades, como se fosse uma peça do velho
mobiliário de madeira que sobrara do Estado Novo, à medida das
secretárias de mogno e dos armários com portas de vidro fosco em
que guardavam as pastas dos processos em curso. Sobrevivera a
todos os temporais da polícia porque tinha uma secreta habilidade
para recusar tarefas que fossem um teste à sua ambição. Houve um
diretor, no final da década de noventa, que pensou em afastá-lo dos
homicídios sob o pretexto de um «interrogatório ilegal com uso de
meios ilegais», um par de murros a meio de um inquérito, bem
vistas as coisas. Jaime Ramos detestava faquistas, o que ele
atribuía à sua memória de militar, habituado a lidar com armas de
fogo, e à sua repulsa pela frieza crua das facas. O processo foi
avante, mas Ramos era, apesar da idade e da carreira, um
sobrevivente que desconhecia a sua força. Os juristas da casa,
manhosos e solidários com o velho agente, aconselharam o diretor
a optar por um castigo menor, talvez mandá-lo para Lisboa durante
uma temporada como punição, a fim de civilizar aquele homem de
meia-idade que nunca usava gravata, que tratava por tu todos os
funcionários e inspetores, que fumava charuto e colara, por detrás
da sua secretária, o retrato de um Teófilo Cubillas sorridente e
desbotado, gasto pelo tempo. O retrato gigante de Cubillas fora
transportado de gabinete em gabinete (era um poster do Norte
Desportivo, de 1973) até ser consumido nos cantos por várias
camadas de fita adesiva, mas era a imagem que acompanhara o
inspetor Jaime Ramos em todas as etapas da sua vida profissional,
mais do que os diplomas de cursos de especialização ou os
louvores, que guardava nas gavetas como testemunhos de
pequenas indignidades cometidas para salvar a pele e o emprego.
O diretor nunca tinha visto jogar Teófilo Cubillas mas, ao entrar,
quis mostrar reconhecer-lhe a reputação, piscando o olho, cúmplice,
na direção do «peruano voador».
«Cubillas, inspetor?»
«Cubillas, senhor diretor.»
«E porquê?»
«Não há nenhuma razão. Na altura contribuí com vinte escudos
para o clube poder comprar um futebolista estrangeiro que vinha
salvar a pátria. Foi um imigrante de primeira classe, preto e tudo.
Pavão tinha morrido há um mês quando ele chegou a Pedras
Rubras. Cubillas ressuscitou Pavão, bem vistas as coisas.»
O diretor ouviu pacientemente descrições de três golos de Teófilo
Cubillas, minuciosamente comparados com três outros de Bernd
Schuster, e de um passe de Pavão para a cabeça de Oliveira depois
de uma corrida desleal de Rolando sobre o lado esquerdo (há quem
diga que Jaime Ramos preparava estas narrativas para testar a
paciência dos seus interlocutores, tentando desmobilizá-los) e,
passados dez minutos, explicava ainda porque viera falar com
Ramos:
«Uma família antiga, inspetor. Como acontece com quase todas
as boas famílias antigas do Porto, esta também não é do Porto mas
do Minho, sempre a norte do meridiano de Braga, onde
atravessaram todas as revoluções dos últimos duzentos anos
sempre no mesmo lugar: sentados. Sentados num pequeno monte
de dinheiro, que aumentava ou diminuía conforme as revoluções. E
também sentados num nome que variou pouco porque os homens
da família nunca deixaram de ser ricos, nem educados no
estrangeiro ou em Coimbra, nem deixaram de casar com mulheres
que não se importavam de cumprir as suas obrigações para
prolongar a espécie e iam mais a Espanha do que a Lisboa. E
sentados, quase todos, perto de Ponte de Lima ou Arcos de
Valdevez, onde quase nunca aconteceu nada desde há duzentos
anos. Já se sabe, numa família onde nunca acontece nada,
qualquer coisa que acontece é sempre uma espécie de explosão
atómica. É uma maneira de dizer.»
«E ela?»
«Ah, ela. Ela tem vinte e dois e um currículo de respeito. Tinha
feito vinte e dois há dois ou três meses. Eu sou amigo da família,
mas a rapariga é como se não fizesse parte da família para este
efeito. Sabe como é. Aos catorze, aos quinze, nós pensamos que
são crianças. Mas não são. Tem filhos, inspetor?»
Não. Ele disse que não tinha filhos, mas sabia que o outro sabia
que ele não tinha filhos. Limitou-se a acenar com a cabeça. Depois
disse que não.
«Podia, enfim, ter filhos fora do casamento.»
Ele disse que podia ser, mas que não era assim.
«Eu tenho três filhos, inspetor. Duas mulheres e um rapaz. O
rapaz anda por aí. Elas estão arrumadas, digamos assim, uma delas
casou no mês passado com um antigo colega de faculdade, a outra
vive com uma amiga por quem copiava os exames de Matemática.
Em Biologia. Ela estudava Biologia. Conto-lhe isto porque vai sabê-
lo mais tarde e se a minha filha é fufa isso vai ter alguma
importância porque a Béni, a rapariga, é irmã dela, da amiga da
minha filha. Ou seja, eu devo ser considerado sogro dela, se bem
que não saiba se ela é minha nora ou meu genro. Béni tratava-me
por tio, pelo menos até há duas semanas, quando a vi pela última
vez, na véspera, digamos assim, de desaparecer. Ela lá sabia.»
«Béni?»
«Benedita. Hoje, no Porto, já ninguém chama Benedita às filhas,
mas continua a ser um nome muito tradicional, muito considerado
pelas avós, muito do Condado Portucalense, como Constança ou
Agustina, mas de qualquer modo anterior ao cerco do Porto. De
modo que ela ficou Béni, os pais deram-lhe o petit nom para se
desculparem do anacronismo. E é isto: aos trinta anos eu já não
percebo as pessoas, mas admito que existam. No meu tempo
tínhamos trinta anos mais cedo, se me entende. Nessa altura
trabalhávamos, tínhamos filhos, estávamos preparados para
grandes responsabilidades. Ou pequenas.»
Jaime Ramos admirava a resistência do outro, mas reconhecia
nele a linguagem da meia-idade que tinha chegado ao poder, aos
cargos de direção, acompanhada do jargão que se aprendia nos
cursos de atualização e aperfeiçoamento sobre novas formas de
parentalidade e relações de género, revolução na família, novas
identidades, conjugalidades, identidades gays, lésbicas e
bissexuais. Um conjunto muito elogiado de professores, herdados
da fábrica de psicólogos que a polícia contratara só muito depois da
revolução, ensinava quase todas as novidades (novas relações
sociais e identitárias, relacionamento com o poder e a autoridade,
sociedade de informação, comportamento, famílias alternativas, um
homem chora quando quiser, papel e estatuto na família
monoparental) a agentes que vinham da província, de famílias
pobres de Vinhais ou de Arcozelo, de subúrbios operários onde
tinham crescido até à idade de serem desempregados.
Alguns dos agentes subiam nos escalões movidos por esse
combustível modernizador, enfrentando os criminosos com piedade,
sociologia e compreensão. Mas a maior parte deles mantinha a
cabeça em ordem e acumulava falhanços no casamento e
processos disciplinares na sequência do uso de violência
injustificada sobre detidos ou da falta de colaboração com os
psicólogos que tinham assaltado a hierarquia para transformar a
corporação numa instituição civilizada, moderna, democrática — e
com um orçamento tão multicultural que tinha dinheiro para pagar
avenças a psicólogos que detestavam a polícia e achavam que a
autoridade era uma fonte de opressão a questionar diretamente.
É verdade que o crime que estava na ordem do dia era o
económico, e as investigações exigiam mais técnicos de informática
e juristas com mestrados em gestão e contabilidade do que ginastas
dispostos a entrar em bairros abandonados à humidade do inverno
e ao lixo que raramente era recolhido. Jaime Ramos tinha notado
um aumento generalizado de fatos escuros completos nos
corredores do edifício, e de malinhas de computadores portáteis
transportadas ao ombro. Isaltino de Jesus punha-o ao corrente das
novidades e tinha requisitado um laptop permanentemente ligado à
base de dados da polícia, com programas e aplicações de que ele
desconhecia a existência, mas onde se encontravam informações
úteis para os novos tempos, desde tabelas de calorias até listas de
matrículas roubadas a carros amolgados e nomes de maridos que
abusavam da autoridade doméstica.
Jaime Ramos continuava a ser o mesmo inspetor dos homicídios
que os colegas viam — de memória — na série Columbo, mais do
que um líder de investigadores eficazes e vestidos como modelos
de acrílico Cortefiel. Marcava reuniões de trabalho para a hora de
almoço em restaurantes com área de fumadores e de onde não
tinham sido banidos nem a aguardente branca gelada nem os ecrãs
de televisão sem som. Isaltino e José Corsário levavam os
computadores, se fosse necessário, e ele atribuía a despesa a
investigações correntes, certo de que os contribuintes não iriam
notar o desfalque de uma ou duas refeições por mês. Os outros
membros da equipa, escolhidos de entre os que não tinham querido
investigar assuntos fiscais ou banditismo tecnológico eram
periodicamente admitidos nessas reuniões. Olívia, Jacinto, Dulce e
Vasco estavam nesse número e, para todos os efeitos, eram a sua
família mais próxima.
6

OLÍVIA TRATAVA-O POR«PROFESSOR», E ELE DEIXAVA — porque gostava da


antiga rapariga loira que fora guarda-florestal aos dezanove anos,
mãe aos vinte, licenciada em direito aos vinte e seis num curso
noturno e inspetora da polícia desde os vinte e oito, depois de um
divórcio tumultuoso aos vinte e de um ferimento no ombro esquerdo
(a bala entrou pelo ombro e furou a omoplata) há dois anos,
digamos aos trinta e oito. Na altura propuseram-lhe seguir para a
secção de apoio jurídico, oito horas de gabinete e viagens
ocasionais ao tribunal de turno para acompanhar homicidas e
violadores, mas Olívia tinha um filho que já deixara de ser
adolescente, crescera em Vila Praia de Âncora, entre rixas de
pescadores e livros roubados de uma biblioteca Gulbenkian, e não
esquecera nem uma coisa nem outra. Ficou. Jaime Ramos apreciou
o gesto mas tentou pô-la sempre de parte nos inquéritos principais e
Olívia não protestou porque sabia que o chefe estava entre o
número de superiores da velha guarda, machistas, fumadores, mal
vestidos e com colesterol alto e problemas cardíacos. Limitou-se a
fazer o seu trabalho bem feito e a falar pouco, e Jaime Ramos
recordou o dia em que ela se apresentou, bem cedo, diante da sua
secretária desarrumada, cheia de papéis e jornais, e o encarou,
séria e brincando com um cigarro apagado entre os dedos:
«É para o chefe saber, antes de ter problemas comigo. Bati-lhe.
Bati-lhe forte e é provável que ele apresente queixa, e se ele
apresentar queixa quero que o chefe esteja do meu lado, mesmo
sabendo que eu errei.»
«E tu erraste?», perguntou Jaime Ramos, que na altura ainda não
usava óculos.
«Não. Quer dizer, sim. Mas bati-lhe forte, devo ter-lhe partido um
braço. E deixei-lhe uma marca no rosto. Um soco. Olho direito.
Uppercut. Portanto, errei. Mas acho que não.»
Jaime Ramos continuou sentado a olhar para a mulher loira que
vestia um blusão de cabedal castanho e que continuava a brincar
com um cigarro apagado entre os dedos. Um uppercut de Wilfredo
Gómez no combate contra Juan Laporte. Ou de Ruben Olivares
contra Rafael Herrera. E lembrou-se de que esses foram os
combates das derrotas de Bazooka Gómez e de Olivares, nas
décadas de setenta e de oitenta. John Frasier contra Muhammad Ali
também podia entrar na lista, mas nessa altura Ali era ainda Cassius
Clay na sua imaginação.
«Bateste em quem?»
«Nele. No meu ex-marido. Ele apareceu-me outra vez em casa, a
meio da noite. Queria entrar e eu não deixei. Depois queria as
chaves do carro. O carro era a única coisa que sobrou do
casamento. Eu peguei no carro e trouxe-o. Agora ele quer as
chaves do carro. Mas eu não lhas dou.»
«Eu não sou juiz de família.»
Ela corou, pareceu-lhe, envergonhada. Devolveu o cigarro ao
maço e meteu-o na mochila que trazia pendurada ao ombro.
«Desculpe, achei que o chefe podia querer saber. Vou embora.»
«Não vais nada. Eu queria saber o que aconteceu, sou um
coscuvilheiro, sim, mas não sou juiz de família. Ele apresentou
queixa?»
«Não. Quer dizer, ainda não.»
«Bateste-lhe com quê?»
«Com os punhos. E com o pé. Um pontapé.»
«Não usaste nenhuma arma?»
«Não. De certeza, chefe. Com o punho. E um pontapé. Quando
lhe dei o pontapé, um golpe alto, acho que lhe parti o braço. Ele
tentou agarrar-me.»
Jaime Ramos acendeu uma cigarrilha escura e, sem se levantar
da cadeira, recuou e abriu a janela para o fumo sair.
«Fecha a porta e senta-te. Podes fumar, mas só desta vez e
desde que ninguém saiba.»
Olívia sentou-se, acendeu o cigarro e encostou-se para trás. Toda
a gente sabia que Jaime Ramos fumava no seu gabinete, mas
ninguém fazia observações sobre o assunto.
«Assim o chefe já sabe.»
«Ele não vai apresentar queixa. Se apresentar, eu vou lá
esclarecer as coisas.»
«O chefe não sabe. Se calhar eu posso ser uma mulher violenta,
posso divertir-me a maltratar maridos, posso ser um mau exemplo
aqui, posso drogar-me e roubar velhas na igreja de Cedofeita.»
«Não me parece que as velhas de Cedofeita se deixem roubar.»
«Eu talvez fosse capaz.»
«Tu bateste-lhe com dignidade. Usaste os punhos e o pé. Ele não
vai apresentar queixa. Seria uma vergonha para a tribo.»
«Qual tribo?»
«A dos homens que vão a casa das ex-mulheres a meio da noite
e que querem ficar-lhes com os carros.»
«O chefe nunca foi a casa de uma ex-mulher a meio da noite?»
«Só em segredo, Olívia. Só em segredo. Para ver se ela
despejava o lixo, se regava as plantas e se tinha levado o carro à
revisão. E não tive assim tantas ex-mulheres.»
Emília, pensou Jaime Ramos. Ele era viúvo de uma ex-mulher
com quem quase não falara e que não tinha plantas em casa (a vida
política ocupara-lhe o tempo todo, depois a doença tomara-lhe o
corpo mas ela resistira, ignorando-o como uma boa militante
comunista que não acredita nem na vontade de Deus nem na
ciência burguesa), que não produzia lixo e que não tinha carro
(andava de táxi e de autocarro, nessa altura ainda não havia metro).
Ele nunca teria ido a casa de Emília, no Carvalhido, nem a meio do
dia, nem a meio da noite. Nunca teria voltado atrás para refazer
contas, até porque Emília morrera e ele foi convidado a ir ao velório
numa noite de novembro. Deixou sempre que as coisas seguissem
o seu caminho e só ele continuava a regar as plantas da varanda e
a levar um carro velho e sujo à revisão.
«Mentira», disse ele então, mentindo e estendendo um cinzeiro
para Olívia. «Tive várias ex-mulheres, mas não fui a casa de
nenhuma.»
Algumas visitaram-me a meio da noite, mas nunca Emília. Olívia
era uma mulher alta e musculada que nunca lhe despertara a
mínima atenção — ela cumpria o seu trabalho, realizava os seus
inquéritos, preenchia os seus impressos, comparecia às reuniões,
tinha sotaque minhoto e cabelos loiros a cair sobre os ombros, uma
testa alta sobre um rosto redondo, o lábio superior ligeiramente
saliente e vestia como se estivesse sempre preparada para conduzir
uma moto imaginária pela estrada do litoral, recortada frente à luz
do mar como uma figura de papel de lustro, numa espécie
provinciana de Easy Rider. Nessa tarde, e só então, ao final da
tarde, depois de todos terem saído, incluindo Isaltino de Jesus,
Jaime Ramos consultou a ficha pessoal de Maria Olívia Xavier da
Costa, trinta e nove anos, e chegou à conclusão de que ele era um
homem demasiado solitário que não sabia praticamente nada das
pessoas com quem trabalhava, a quem era suposto dar ordens e
que se sentavam diante de secretárias que, por sua vez, ficavam
diante da porta do seu gabinete.
Não sabia quase nada sobre Jacinto Hipólito, nascido em 1967,
numa aldeia perto de Celorico da Beira, de que só tinha ouvido falar
das cerejeiras e do ruído dos carros que passavam numa estrada
esburacada que serpenteava na direção de Vila Franca das Naves,
onde ele descia de um comboio que vinha de Coimbra e de um
curso de direito completado aos poucos. Ou sobre Dulce dos
Santos, nascida no Alentejo, isso ele sabia, porque Isaltino a tratava
por «alentejana», e a tinha ouvido falar de Estremoz e de uma
aldeia onde havia casas brancas, calor, azinheiras, uma família
desaparecida quando ultrapassou a barreira dos quarenta e do
segundo casamento, a que se juntou um segundo divórcio.
Sabia apenas que, na altura em que ela fora transferida para a
unidade do Porto, há oito anos, lhe perguntara como ia a família, lá,
no Alentejo, e ela lhe explicara tudo com uma rapidez desconhecida:
o irmão desaparecera durante dois anos, o pai adoecera, a mãe
sobrevivia ao calor, ao frio e a uma família demasiado solitária.
Durante seis meses, a seguir ao desaparecimento, ela contactara
todas as embaixadas, todas as morgues, todos os hospitais, todas
as esquadras de polícia — a busca começara naquele dia de
novembro em que chovera mais do que o habitual e a porta do
quarto do irmão não se abrira até à hora de almoço, um domingo
frio, alentejano, cinzento e esverdeado. Não apareceu até à noite,
não apareceu no dia seguinte, não apareceu durante uma semana.
Todos os amigos em Estremoz foram contactados e fora decidido
que Fernando tinha desaparecido sem deixar rasto. Não levara
mala, mochila ou os pertences pessoais que ficaram guardados
durante dois anos naquele quarto da casa da aldeia de onde se via
o castelo em ruínas e, mais além, o de Évoramonte, um pico isolado
no meio da planície. Até que, um dia, no meio das informações
desencontradas e dispersas, o consulado em Amesterdão recebeu
um pedido de renovação do passaporte de Fernando e ela foi
informada: havia uma morada, havia um passaporte, havia uma
fotografia de Fernando (ela notara uma cicatriz na base do nariz, à
direita, e o cabelo que mudara de cor, apesar de a fotografia ser a
preto e branco). Naturalmente, a morada era falsa e Fernando
nunca foi encontrado, mas agora ela sabia que estava vivo e que
vivia na Holanda, de onde telefonou uns meses mais tarde — ela e
a mãe estavam no supermercado de Estremoz e também era
domingo, mas um domingo de setembro, ensolarado e morno. Ela
recorda o lugar exato, a prateleira dos cereais e chás. A mãe
atendeu o telemóvel e começou a chorar; ela arrancou-lhe o
telefone e falou com Fernando.
«Tens de voltar. Onde estás?»
«Preciso de dinheiro para voltar, preciso que me compres um
bilhete de avião, Dublin para Lisboa, ou vens buscar-me. Estou
doente.»
«Estou aí amanhã, amanhã de manhã, dá-me a tua morada.»
Partiu no dia seguinte, Dublin pareceu-lhe a cidade mais infeliz do
Hemisfério Norte, e o apartamento não tinha vistas para St.
Stephen’s Green, nem para a Grafton, nem para o Grand Canal,
para o Liffey, para o telhado do Trinity College, nem se ouviam os
carros a passar em O’Connell Street — era longe, muito longe do
centro, num subúrbio de casas velhas de tijolo e jardins
descuidados, onde Fernando estava deitado a maior parte do tempo
com medo da luz do dia, com medo de ser visto e com medo do
passado.
«Problemas com droga», explicou ele.
«Dois anos com problemas por causa da droga?»
«Mais de dois anos. Desde os dezassete.»
E ela deu-se conta de que não conhecia aquele irmão que fugira
de casa há dois anos e meio, de como era estranha a cicatriz no seu
rosto (um golpe de navalha, contou-lhe ele depois), de como estava
magro, de como a sua língua era estranha — e da necessidade
urgente de reparar toda a sua vida, que parecia um instrumento
desafinado e descontrolado. Foi assim que pediu para ser
transferida para outro lugar, uns meses mais tarde, depois de
devolver o irmão a Estremoz e a um fim de verão alentejano com
dias tórridos e noites silenciosas, muito diferente dos quadros da
sua infância, onde havia cegonhas construindo ninhos nas torres de
S. Geraldo, campos de aveia e de trigo, trovoadas repentinas que
vinham de Fronteira, Cano, Sousel, ou apenas da estrada retilínea
que seguia para Elvas e Espanha, debaixo daquele sol branco que
secava a terra todos os anos por esta altura. Tudo o que ela
precisava de esquecer. Tudo o que contara a Jaime Ramos, que a
escutara sentado no parapeito da janela, olhando para os papéis
que Dulce dos Santos não largara enquanto desfiara a história da
sua vida. E Jaime Ramos não precisava de perguntar mais nada,
porque sabia que Dulce dos Santos entregara o irmão ao Alentejo e
às ruínas da família, e que em breve ele desapareceria de novo ou
seria consumido pela droga e pelo pequeno tráfico, e seria preso por
uma brigada pouco tolerante, e o ciclo iria repetir-se daí em diante.
E por isso ela pedira para ser transferida de Évora para o Porto.
Também ignorava a biografia de Vasco Ventura, o mais novo de
todos, portuense de quase todos os bairros onde há problemas com
portuenses, vinte e oito anos, e cuja primeira profissão fora a de
futebolista, extremo esquerdo do Avintes, no intervalo de um curso
de informática que sucedera a dois anos de sargento paraquedista.
E Isaltino e Corsário. Corsário e Isaltino. A dupla que o
acompanhava. Isaltino — o agente Isaltino de Jesus, porque fora
assim que o conhecera, antes de todos os agentes serem
transformados em inspetores, a sua crescente falta de cabelo, as
calças de sarja, as camisas de manga curta, os blazers
impecavelmente limpos, azuis, a família de Valongo (e a infância e
adolescência passadas em Massarelos, antes da emigração para os
subúrbios, onde as casas eram mais baratas e os apartamentos
comunicavam uns com os outros através de paredes finas e
sensíveis à humidade do inverno), a docilidade disfarçada, aquela
fingida submissão que deixava pontos de fuga, a dedicação ao
chefe, os derradeiros hábitos provincianos na cidade que tinha
crescido de mais, a pequena ambição de um emprego seguro e
gratificante, as preocupações com os filhos que tinham entrado na
adolescência sem um exame escolar a obstruir-lhes a biografia,
embora talvez viessem a sucumbir como todos sucumbem, uma
mulher dos arredores de Viana que viera com a sua família de
pescadores para Matosinhos, a forma como atendia os telefonemas
para que eles não passassem para Jaime Ramos.
7

JAIME RAMOS ERA ELE. MAL TINHA BIOGRAFIA. Mal tinha memória. O seu
biógrafo era Isaltino, o homem atento que anotava tudo nos seus
cadernos da Papelaria Emílio Braga, de velho papel almaço, capa
preta e lombada vermelha, com a sua letra de amanuense militar
que, por sua vez, imitava a do pai merceeiro, que morrera com uma
cirrose hepática e seis filhos, dos quais nenhum jogava futebol e
apenas um ficara desempregado e emigrara para o Canadá,
Montreal, de onde nunca a família nunca recebera notícias. Isaltino,
a flor da modéstia, a voz, o sotaque experimentado, a manha, a
astúcia dos provincianos, o homem que reúne todas as informações
ocultas num cérebro funcional e livre de tabaco ou de álcool.
Isaltino, que o tratava por chefe e que o protegia dos outros chefes.
Isaltino, que lhe guardava as chaves do carro, os talões do
estacionamento, o isqueiro de plástico, as faturas de despesas para
a contabilidade da polícia, que arejava o gabinete quando Jaime
Ramos prolongava a noite de trabalho e acendia charutos proibidos
em departamentos públicos. Isaltino, que conduzia amavelmente o
carro de serviço enquanto Jaime Ramos dormitava, ou protestava
contra um trânsito invisível e contra a meteorologia. Isaltino que
subia e descia escadas à sua frente, que era o primeiro a chegar às
cenas de crime, que se ajoelhava ao lado dos cadáveres, que
marcava a geografia de cada homicídio (essa geografia que
implicava a partilha de territórios entre as outras polícias, a Medicina
Legal, os delegados do Procurador, os bombeiros, as famílias, as
testemunhas, os peritos que tinham pressa, os peritos que não se
apressavam, os vizinhos curiosos ou apenas os curiosos que
passavam) e que transformava tudo em relatórios escritos sem erros
ortográficos. Jaime Ramos apreciava irracionalmente este
pormenor, a colocação das vírgulas, as regras de concordância, a
ausência de advérbios de modo, as orações reflexas construídas à
antiga, os itálicos em expressões estrangeiras, geralmente inglesas
— onde aprendeste essa graciosidade de amanuense, Isaltino de
Jesus? —, em dados acumulados numa memória intransigente e
sem mácula. Isaltino, o ajudante implacável e falsamente submisso
(«cabrão do velho», ele escutava-lhe as humilhações vividas em
silêncio), o provinciano que se espantava com a grandeza do mundo
(o modo como admirava, sem invejar, as viagens de Jaime Ramos
— «Isaltino, o mundo não acaba.» «O chefe é a prova disso.»). O
penteado de Isaltino, desviando-se para o lado direito, onde se
notava uma queda prematura de cabelo e que um dia seria ridícula
e ele esconderia com uma madeixa ainda mais ridícula. O modo
como aceitava os reparos, as ironias («É como diz, chefe.»). E o
modo como protestava («O chefe não me dá importância, mas
consegui isto, consegui aquilo.» «És um génio, Isaltino, e não estou
a brincar, não estou a ser irónico, mas costumo poupar nos
elogios.» «Uma vez ou outra eu preciso de um elogio.»). E o modo
como respeitava Rosa, como nunca interferia naquela relação que
Jaime Ramos tantas vezes descuidava entre inquéritos, falhas,
esquecimentos, trabalho em excesso. Isaltino de Jesus, o motorista
fiel que passava pelo Café Nova Sintra todas as manhãs de
segunda-feira e recolhia um Jaime Ramos exausto, silencioso, de
poucas frases, intoxicado pelo segundo café expresso, pela
segunda cigarrilha da manhã, pela leitura dos jornais — e que lhe
falava de futebol, de meteorologia, do preço das coisas comuns (o
pão, a carne, o peixe, os legumes, as ementas dos restaurantes, o
material escolar, a roupa dos filhos, as férias que se aproximam, as
férias que se vão ou foram), das obras nas ruas, da necessidade de
vigiar a saúde e de cumprir as indicações dos médicos. Isaltino,
Isaltino, a sua fidelidade conjugal, a sua falta de sentido de humor, o
seu alfinete de gravata, os seus sapatos engraxados, os almoços de
Páscoa, os hábitos madrugadores. As fotografias da sua mulher,
Vânia, e dos filhos, Gabriel, Alice, Bruno, expostas numa pequena
moldura que nunca saía daquele sítio, ao canto direito da secretária,
ao lado do quarteto de canetas guardadas num copo (preto, azul,
vermelho e verde — exatamente estas cores, que podiam ser
outras, que podiam ser mais originais, azul celeste, azul ultramarino,
violeta, roxo, castanho, sépia, mas que eram exatamente aquelas,
as cores padrão de qualquer burocrata dos anos sessenta), além de
dois lápis Viarco número dois e de uma agenda Condor onde eram
apontados todos os afazeres, todas as ocupações, todos os
encontros, todos os aniversários.
E José Corsário, o cabo-verdiano do Mindelo, o filho do
funcionário colonial dos impostos que morreu feliz por ter garantido
passaporte português depois da independência de Cabo Verde, o
filho da jovem estudante de Santo Antão que se apaixonara pelo
músico que tocava mornas românticas e sedutoras (vestido de
branco como um poeta de antigamente, podia verificar nos retratos
de Eugénio Tavares) e que — depois de enviuvar — regressara à
ilha onde vivera mais de metade da vida, São Vicente, Mindelo, no
primeiro andar de uma casa voltada para o velho largo arejado e
limpo, rente à Câmara Municipal. José Corsário e Fátima, a
namorada angolana, a rapariga de Benguela, os discos de mornas
clássicas, de funaná, de canções ultramarinas como o mar
ultramarino de Cabo Verde, como a chuva tépida numa ilha
desértica, como um vulcão numa ilha vulcânica, como as saudades
da terra. Vinte dias por ano no Mindelo. Presentes embrulhados
para toda a família em Cabo Verde. Uma ventania antes dos
trópicos. E depois, sentado a uma secretária, usando o telefone,
diante do computador, inclinando-se para trás, «eu devia ter
regressado a Cabo Verde, o meu pai foi um traidor à pátria que
hipotecou tudo por um miserável passaporte português, um
passaporte de branco», guardando tudo numa mochila que
arrastava consigo dia e noite, domingos e dias de semana, a
qualquer hora em que estivesse acordado.
«O que guardas nessa mochila suja, Corsário?»
«Lixo, chefe. Nós, os pretos, guardamos tudo o que encontramos,
temos sempre uma camisa guardada para as necessidades, comida
quase estragada, música, papéis, cassetes que já não tocam em
nenhum aparelho, fotocópias de papéis, e os vários bilhetes de
identidade andam sempre connosco porque podemos ter a pouca
sorte de encontrar a polícia.»
O que herdara ele do funcionário colonial cumpridor, do pai que
vestia um fato branco naquele grupo que tocava mornas para as
jovens de Santo Antão, do velho cabo-verdiano do Mindelo que
recitava Eugénio Tavares e ouvia rádio nas noites de domingo? O
que herdara ele do tio que procurara refúgio político em Argel e
acabara depois em Pequim, entre grupos de exilados que
veneravam Mao e que depois lutariam na Guiné, fardados de
coreanos e preparados para o combate contra o colonialismo
português? O que herdara ele dos tios que bebiam grogue nas
tabernas de São Vicente ou de Santiago, ou da Brava, ou de Santo
Antão, e pescavam ao largo das ilhas? O que herdara ele de Jaime
Ramos, a quem detestava os hábitos de fumador, a indisciplina e a
sonolência do verão?
«Eu devia ter regressado a Cabo Verde em vez de andar a caçar
bandidos que não sabem distinguir um preto de um branco.»
«E tu que és, Corsário? Preto ou branco?»
«Essa é a minha maldição, chefe. Estou no meio. Herdei genes
desencontrados de brancos egoístas e de pretos preguiçosos, estou
no meio. Na minha família tanto há alcoólicos pobres como primos
remediados que ajudam à missa numa igrejinha caiada de São
Vicente e cantam com voz de bispo. Há um resto de sangue de
escravo, um resto de comerciantes de atum, um resto de
vendedores de fazenda, de cobradores de impostos e até, para não
parecer mal, de negociantes de escravos. Há de tudo. É a minha
maldição. E a sua sorte.»
O recorte das montanhas de São Vicente recordava-lhe os
vulcões de um planeta deserto, e José Corsário sabia que nunca iria
esquecê-las desde o primeiro dia em que se lembrara delas entre as
neblinas do Porto, entre as brumas da memória, ó pátria de egrégios
avós — maldição de ser português, dizia ele. Também não
esqueceria o seu primo Tchoi, bêbedo, as calças rasgadas, a
camisa branca suja de poeira, escrevendo num muro de Salamansa,
com letras de meio metro de altura, uma mensagem de amor que
nunca compreendera, depois da morte de Luísa, a sua namorada:
«O mundo roubou-me a melhor namorada que havia.» Tchoi tocava
saxofone e violão pelas noites do Mindelo, rua a rua, enlouquecera
desde essa tarde em que o funeral de Luísa percorrera o caminho
entre a igreja matriz e o velho cemitério onde iam ficando
esquecidos todos os antepassados, negros e mestiços, velhos e
novos, mulheres e homens, de São Vicente ou de Santo Antão, os
que tinham sobrevivido à fome, ao vento de leste, ao álcool — ou
tinham sucumbido a todos os males das ilhas. Foram dar com ele,
no dia seguinte, sentado no areão da Lajinha, bebendo grogue velho
e cantando baixinho uma morna triste como todas as mornas que
evocam amores perdidos, amores impossíveis, amores de outrora.
Pediu apenas que o levassem a Salamansa no seu próprio carro,
em cujo porta-bagagens guardara um balde de tinta e um pincel
com que pintaria a sua mensagem estranha e sem assinatura. Dois
anos depois, três anos depois, vários anos depois, José Corsário
voltaria a Salamansa para ler a frase do seu primo bêbedo que
entretanto emigrara para os Estados Unidos e vivia agora perto de
Boston, numa cidade onde abrira um restaurante que prometera
visitar mas que sabia que nunca iria ver, até porque o seu primo era
apenas o seu primo e havia limites para os laços de família. «O
mundo roubou-me a melhor namorada que havia.» Mostrou a frase
a Fátima (fora apresentá-la à mãe e à família), e ela olhou sem
perceber o sentido daquelas palavras pintadas a vermelho-escuro,
vermelho-sangue, num muro branco.
«Isto é o que eu nunca quero escrever de ti», disse-lhe ele, e
Fátima, que continuava sem compreender, apertou-lhe a mão,
segurou-lhe a mão, acariciou-lhe a mão como se entendesse o
mistério de um amor dedicado e condenado à eternidade. Corsário,
que tinha bebido bastante, disse-lhe que iria morrer antes dela,
antes da mãe, antes dos velhos tios de Santo Antão, antes dos
canaviais de Salamansa, como se lhe jurasse um amor mais forte e
mais fundo do que o mar.
«E vais casar com uma angolana porquê?», perguntou-lhe Jaime
Ramos.
«É a primeira africana na nossa família, chefe.»
«E tu não és africano?»
«Não, chefe. Sou cabo-verdiano.»
8

«A BÉNI TRATAVA-ME POR TIO», CONTINUAVA O DIRETOR. «Acho que havia


alguma ironia. Havia, de certeza.»
Jaime Ramos sentado, o diretor de pé voltado para a janela, as
mãos atrás das costas como se estivesse manietado diante da
manhã de primavera, dos telhados cobertos por finas camadas de
musgo verde, dos plátanos das ruas, daquela planície de telhados
que avançava na direção de outros telhados, entre pequenos jardins
diante de vivendas dos anos setenta.
«Há quanto tempo ela desapareceu exatamente?»
«Duas semanas. Quer dizer, doze dias. Os pais e o irmão, que é
quem dirige a casa e as empresas da família, têm a certeza de que
não partiu com nenhum namorado, de que não partiu para longe.
Deixou tudo ou quase tudo. Levou, pelas suas contas, roupa para
dois ou três dias, embora nunca se saiba o que elas vestem, onde
dormem, como dormem, para onde vão.»
«O problema é que ela tem vinte e dois anos. É maior de idade.
Se resolvesse ir para Murmansk, ela podia ir para Murmansk.»
«Onde é Murmansk?»
«No Mar de Barents. No Norte da Rússia. A caminho do Polo
Norte.»
«Sei onde é o Polo Norte», olhou-o o diretor.
«Pois ela podia ter ido para lá. Os pais não podiam impedi-la de
atravessar o Atlântico ou de se casar com um cigano.»
«Porquê um cigano?»
«Ou um monge budista.»
O outro olhou-o como se compreendesse. Um monge budista. O
Tibete, o Dalai Lama. Recolhimento espiritual. Perfeitamente, como
se qualquer uma das opções estivesse prevista na sua cabeça.
«Ela nunca saiu de casa, pelo menos desta maneira. Veja bem. A
rapariga é esperta, mas foi estragada por dois anos e meio
passados na Suíça, numa escola para meninas ricas. Estudou
etiqueta, francês, equitação, economia doméstica, acho que
literatura e, naturalmente, psicologia e puericultura. Uma dessas
escolas privadas para onde os ricos mandam os filhos completar a
educação que não têm. Passou quase dois anos a fazer fotografia,
segundo se diz, a decorar os escritórios da empresa e a vadiar.
Trabalhou num atelier de decoração, aqui no Porto. Os pais são
esse género de ricos. Sem paciência para lhes ensinar etiqueta,
equitação, crochet.»
«E elas aprendem?»
«Acho que não», disse ele, aparentemente com tristeza. «De
modo que ao chegar aos dezoito anos ela entraria numa
universidade e teria um curso. Mas não aconteceu nada disso. Foi
para a Suíça. Voltou. Estava ali. Os pais pensam que não faz
sentido ela ter desaparecido. Acham que alguma coisa lhe
aconteceu.»
«Estão sempre a acontecer coisas. Algumas são mais estranhas,
diretor. Mas nem todas. Uma rapariga de vinte e dois anos não
desaparece, limita-se a ir-se embora. Limita-se a não ser uma
rapariga, se me faço entender. Se não tem trabalho, se não tem
ocupação, é necessário arranjá-la. Eu não trato disso.»
«Peço-lhe ajuda. A não ser que descubra que ela foi para
Murmansk. Murmansk?»
«Murmansk», confirmou Jaime Ramos. «Os homicídios não
costumam tratar de desaparecimentos. Podemos lançar os alertas
de rotina, fazer o roteiro habitual de perguntas.»
«Faça isso, inspetor. Um favor pessoal, é disso que se trata.
Estas coisas acontecem em todas as famílias, mas a família está
verdadeiramente preocupada, disposta a tudo, a contratar pessoas,
o diabo. Terá de falar com o irmão da Béni. Luís. O pai está afastado
de tudo, é uma pena, mas está afastado de tudo. Depois de ter
ficado viúvo, uma depressão. No meio da depressão, um ataque
cardíaco. Depois do ataque cardíaco, outra depressão. A vida
moderna e o Alzheimer. Passa metade da vida sentado a olhar para
o infinito, que ali é muito ao largo, porque vivem num casarão ao pé
do mar. A única coisa que o despertou foi o desaparecimento da
filha. Temos de nos despachar, o irmão da Béni quer recorrer a um
detetive privado, desses que há por aí.»
«Era melhor, no fundo. Nós precisamos de fotografias, de visitar a
família, de falar com algumas pessoas, de incomodar, temos mais
meios mas menos tempo.»
«Exato, temos pouco tempo», o diretor alterando o sentido das
palavras de Jaime Ramos. «Ponha um dos seus homens nisso. Ou
uma mulher. Uma mulher é capaz de entender melhor este assunto.
E um desaparecimento é pior do que um homicídio, no fim de
contas. Um homicídio é um homicídio, um desaparecimento nunca
se sabe. Nem isso nem o casamento com um monge budista,
suponho eu, mas foi o senhor que sugeriu a hipótese. E se for
preciso ir a Murmansk, falaremos.»
9

IRINA TRABALHAVA NUMA LOJA DE ROUPA PORQUE APRENDIA DEPRESSA.


Aprendeu depressa a falar português, com os vizinhos, na escola
noturna, no armazém do supermercado em que trabalhou a arrumar
caixas e até no centro de apoio a emigrantes, onde lhe distribuíam,
a ela e a outros ucranianos, livros com frases muito básicas de
português. Era aqui que Irina encontrava ucranianos, mais do que
nos lugares onde trabalhou até chegar a caixa do supermercado.
Ucranianos, georgianos, tchetchenos, bielorrussos, tajiques e
também lituanos e russos, mulheres das montanhas, mas sobretudo
emigrantes das cidades, diplomados como ela, antiga professora de
Química num liceu de Krasnogorsk, Moscovo, ou como Mikhail,
engenheiro civil do Exército Vermelho, e que era ainda um
rapazinho bonito (apesar de ser bastante mais velho) que ela
conheceu quando entrou para a universidade e, depois, quando
passaram férias em Odessa. Irina gostava de Odessa porque o seu
pai, Vasily, era ucraniano de Odessa e achava um dever amar
Odessa.
Mas depois, entretanto, muitas coisas aconteceram na sua vida e
na vida de Mikhail. «Mundo maravilhoso acabou», dissera Mikhail
em português quando alugaram o pequeno apartamento em
Matosinhos. Ele pensou que Irina estava prestes a chorar de
saudade de Moscovo. Esse mundo maravilhoso acabou, ela que
não tivesse ilusões. O socialismo acabou, o socialismo era um
inverno de merda cheio de neve, com lama nos trilhos dos parques
de Krasnogorsk, onde a relva quase nunca chegava a crescer entre
as estátuas dos heróis da pátria. Esse mundo maravilhoso de casas
que nunca aqueciam, de carros que avariavam, de autocarros que
chegavam tarde, de pessoas que morriam no inverno — tinha
acabado. Mikhail não tinha mais pontes militares para construir na
Geórgia, que já era independente, nem no Cazaquistão, nem na
própria Rússia, nem no Afeganistão, onde estivera três meses e
conhecera Arkady, o seu sócio em negócios que faziam entrar
dinheiro em casa.
E ela também já não era a professora de Química que o pai
sonhara ver a tocar piano na sala de concertos do Teatro Académico
de Odessa, onde a levava em pequena a assistir aos concertos de
fim de ano. Irina guardou os livros de música, as pautas de
Schubert, de Chopin, de Prokofiev e de Mahler. Às vezes sentava-se
à mesa da cozinha, no apartamento de Matosinhos, abria as pautas
e imaginava-se diante do piano, tocando melodias que só ela ouvia.
Ela e o seu pai, embevecido, vestido com o casacão militar
castanho com as seis medalhas bem visíveis, suspirando por uma
lágrima de vodka.
«Uma lágrima de vodka», ele pedia ao fim do jantar. Depois
morreu, Vasily, velho ucraniano, militar sem guerra, reformado, longe
de Odessa, rodeado de recordações que prolongavam outras e que
o levavam por grandes caminhadas ao longo do rio, quando a
primavera chegava a Moscovo com um perfume amargo de bétulas
e anis. Bebeu vodka lágrima a lágrima, noite a noite, ano a ano, e as
olheiras grossas e avermelhadas denunciavam essa tristeza que
tomara conta dos últimos anos daquele ucraniano sem terra e que,
agora, teria de usar passaporte para entrar em Odessa, a cidade
diante do mar, a cidade dos dois portos.
Portanto, Irina tocava para o pai. Por momentos — aqueles
momentos — não era a empregada da loja onde as mulheres ricas
iam comprar blusas de seda, meias, lingerie, vestidos de noite que
nunca cobiçara, acessórios que nunca usaria, sapatos que
custavam o salário de mais de um mês. Nessa altura não era a
ucraniana solitária que arrumava caixas num armazém que cheirava
a peixe salgado, a sabão em pó e a fruta que iria apodrecer em
breve. Não era a mulher de Mikhail nem a filha de Vasily; era
apenas Irina, passeando os dedos por aquele piano imaginário onde
tinham caído migalhas de pão escuro torrado, gotas de chá, um
risco de lápis — um piano verdadeiro que só ela ouvia, ou que só
ela e Vasily ouviriam. Irina também nunca ouvia os aplausos;
limitava-se a tocar, abrindo os braços para acordes mais raros e
contrastes mais chocantes, premindo uma tecla mais
demoradamente, escolhendo uma peça mais popular para terminar
o concerto em grande festa, talvez Beethoven. Aprendera a tocar
algumas peças de Beethoven com a velha professora do Centro de
Artes, onde ia três fins de tarde por semana, verão ou inverno, sem
faltar, sobretudo porque em casa não havia piano, e Natalia
Fiodorova, vestida de azul-escuro e com o cabelo puxado e
repuxado para trás, permitia que ela prolongasse a aula por mais
um quarto de hora, meia hora de vez em quando, deixando-a
sozinha na sala enquanto ia receber outros alunos que nunca
chegariam a dar um concerto sequer, mas a quem incitava a
aprender, aprender mais, aprender sempre, como diziam os
cartazes afixados no corredor.
Mikhail apareceu na sua vida por essa altura, aos dezoito anos,
quando ela namorava com um colega que aprendia a tocar violino.
Nunca ouvira Oleg a tocar violino; apenas registara as queixas
melancólicas de Natalia Fiodorova em relação à inabilidade e falta
de concentração dos alunos que passavam as tardes nos cafés da
Rua Arbat imitando — mas só imitando — a pose dos grandes
artistas de outrora, como se um Tchaikovsky ou um Pushkin
nascessem de uma torrente de boémia tagarela e não do trabalho
duro e esforçado ou da sua grande resistência à dor e à melancolia.
Irina apreciava a melancolia de Oleg, o seu ar desprotegido e os
poemas adolescentes que lhe dedicava, mas sabia que Mikhail
Aleksandrovich, engenheiro militar, levaria a melhor se estivesse
disposto a isso — e estava. Casaram em agosto de 1987, ela com
dezanove anos, ele com vinte e cinco. O verão de Moscovo tinha
dias abafados, noites claríssimas, tépidas, e eles viviam num
apartamento pequeno mas perto do metro, num edifício ocupado
sobretudo por militares reformados com quem Vasily se reunia nos
bancos do pequeno parque vigiado pela estátua de um herói da
União Soviética.
Com o tempo, mas sobretudo desde que chegaram a Portugal,
vindos de França, Irina deixou de gostar de sexo e irritava-a a
insistência de Mikhail, mas compreendia a necessidade e os
pedidos do marido. Casara com Mikhail porque ele lhe parecera um
herói no meio do desastre, um herói vindo da guerra que terminara
no outro extremo do mundo. A princípio, Mikhail queria ter filhos mas
Irina supôs que isso se devia ao seu apetite sexual e não à vontade
de ter uma família para cuidar e para proteger com um emprego, um
apartamento e férias junto do Mar Negro, não muito longe de
Odessa, num hotel onde chegasse o rumor das ondas e alguém
fizesse as camas e arrumasse o quarto. E detetara em Mikhail,
ainda em Moscovo, no meio das dificuldades que chegavam com a
perestroika, uma desistência que a deixara triste mas conformada
com o destino.
O seu pai, Vasily, dizia que ela tinha um «temperamento literário»
porque não só tocava piano mas conhecia os livros de Tolstói, de
Turguéniev ou de Gogol, apesar de serem russos e não ucranianos.
Vasily, o velho Vasily com o seu casacão militar que atravessara
vários e longos invernos, também era Vasily como Vasily Grossman,
e ela tinha lido Vida e Destino. Mikhail não sabia o que era Vida e
Destino nem sabia por que razão o sogro gostava tanto de Odessa
até Irina o ter obrigado a ver O Couraçado Potemkin para lhe
mostrar a grande escadaria que Serguei Eisenstein filmara na
cidade. Depois do casamento viajaram para Odessa e ela mostrou-
lhe o mar, comovida. Ele não ligou muito, e Irina soube que nunca
iria ser feliz com Mikhail. Isso confirmou-se quando Mikhail decidiu
que teriam de emigrar depois de ter sido desmobilizado do exército
e de o seu salário como professora de Química não valer
absolutamente nada. Optaram por França, mas Arkady,
companheiro de Mikhail no Afeganistão, propusera-lhe um negócio
em Portugal, onde um primo montara uma empresa de construção
civil. Ela trabalharia no que calhasse. Antes isso do que outro
inverno sem aquecimento e sem trabalho.
Em Portugal, Irina não se julgava heroína de nenhum escritor,
apenas uma sobrevivente, uma emigrante pobre que não podia
invocar o seu estatuto de professora de Química em Krasnogorsk, a
pequena cidade nos arredores de Moscovo onde alguns
portugueses tinham estudado política e aprendido a traçar os
caminhos da revolução mundial proletária. As suas colegas, no
armazém, enterneciam-se, mas eram pobres e incultas e, por isso,
não compreendiam a crueza absoluta da emigração. Achavam-na
ligeiramente exibicionista porque arranjava o cabelo, pintava as
unhas e tinha uma pele muito branca e lisa. As mulheres condoíam-
se, os homens eram — como sempre — imbecis que se julgavam
predadores diante de uma presa abandonada em Matosinhos e
faziam-lhe propostas obscenas. Mas foi o seu bom aspeto,
juntamente com o seu bom português, sem o sotaque local, que a
salvaram quando conseguiu trabalho numa loja de roupa. A gerente,
uma rapariga morena, alta e de maquilhagem carregada, gostou
dela e um dia convidou-a para almoçar num dos restaurantes do
shopping. Irina contou-lhe parte da sua vida e Raquel, que emigrara
de Trás-os-Montes para o Porto, passou a respeitar mais a antiga
professora de Química de Krasnogorsk. Daí a uns meses eram
confidentes. Daí a uns meses Raquel divorciara-se e Irina passou a
ajudá-la a ordenar parte da sua vida sentimental, servindo-se do
«temperamento literário» que o pai detetara.
«Vou morrer amanhã», dissera-lhe o pai, na cama do hospital
militar, na véspera de morrer. «És uma heroína de Tolstói, mas uma
heroína boa.»
Ela gostava de andar no metro, entre Matosinhos e o centro do
Porto — e de passear a pé pelas ruas desertas de domingo em
redor dos Aliados, que lhe lembravam o seu bairro antigo em
Krasnogorsk e, mais ainda, o empedrado de Odessa, a cidade onde
o pai nascera.
A única coisa que lhe desagradava era a amizade entre Arkady e
Mikhail, mas compreendia que os dois tinham um negócio, e que
não podia interferir naquela relação comercial entre dois emigrantes
russos. Sim, ela sabia, as máfias russas, os bares de prostitutas
onde trabalhavam ucranianas e russas, as redes de imigração
clandestina, os negócios de droga — era provável que Mikhail
estivesse ligado a tudo isso depois de ter deixado de trabalhar nas
obras, mas ela ignorava o assunto, limitava-se a ser a Irina
simpática e dócil, ligeiramente fria, indiferente ao que fazia o seu
marido, que também não lhe contava grande coisa sobre a sua vida.
«Aqui está o dinheiro da renda, aqui está o dinheiro do
supermercado, aqui está o dinheiro da luz, da água, do gás, aqui
está o dinheiro para mandar à família.» Todos os meses Irina
enviava quinhentos euros para a Rússia — à sogra e a uma tia de
Arkady. Ela não tinha mais família, não tinha irmãos, não tinha pais,
não tinha senão uma memória vaga do que fora a destruição da sua
família desde que a mãe morrera quando ela ainda não entrara na
escola.
De resto, e intimamente, achava-se uma espécie de Anna
Karenina porque não amava Mikhail, não gostava do seu
casamento, não gostava da sua vida e temia que o negócio com
Arkady acabasse em tragédia. A única diferença é que, ao contrário
de Anna Karenina, Irina tinha quarenta e dois anos e não alimentava
ilusões sobre um grande amor para a salvar do tédio ou, no seu
caso, da ameaça da pobreza e da tragédia que pressentia em cada
grande ausência de Mikhail: dois ou três dias em Lisboa, uma
semana em África, cinco dias sem qualquer paradeiro, um
telefonema de um lugar longínquo — mas o dinheiro não faltava em
casa, naquelas doses moderadas e adequadas a um casal de
emigrantes russos.
Quando o homem que se identificou como polícia lhe pediu para
acompanhá-lo, «por favor, lamento muito», ela já sabia que só duas
coisas podiam ter acontecido, e que provavelmente tinha acontecido
a mais definitiva das duas. Não propriamente a morte de Mikhail (o
destino de Arkady era-lhe totalmente indiferente), mas o facto de, a
partir de agora, ter toda a vida à sua frente. Pediu apenas para
passar por casa, a fim de mudar de roupa, mas o polícia não
permitiu o desvio. Ele não suspeitava que Irina, depois de
confirmada a tragédia, iria apenas assegurar-se de que o dinheiro
que até aquela manhã fora o dinheiro de Mikhail Aleksandrovich
ficaria bem escondido. Mas duas horas depois ela confirmou-o,
sozinha, devagar, com a minúcia e a curiosidade de uma mulher
inteligente, e ela sabia que era inteligente. Tratava-se de uma
mochila preta guardada no fundo de uma prateleira da despensa
minúscula, entre duas malas velhas que tinham vindo da Rússia, e
por detrás de mercearias acumuladas nos últimos meses, pepinos
em conserva (de marca russa), latas de tomate, pacotes de
bolachas, sacos de arroz. Pela primeira vez, tocou naquela mochila.
Vira-a naquele mesmo sítio há um ano, exatamente um ano. Supôs
que continha o que sabia que estava lá dentro, mas ela era
inteligente o suficiente para não fazer perguntas a Mikhail e para
não a abrir antes de conversar com o marido.
Irina não sabia quanto dinheiro estava guardado naquela mochila
mas contou-o nessa mesma tarde, um domingo de maio quente e
cheio de sol, depois de Raquel a ter dispensado — naturalmente —
de regressar à loja.
Na mesa que às vezes lhe servia de piano imaginário, Irina dispôs
as notas em montes: o das notas de vinte, de cinquenta, de cem e
de duzentos euros (havia apenas cinco de quinhentos e dez de
duzentos). E então, cantarolando em surdina, imaginando bandos
de pássaros flutuando sobre os telhados de Odessa, contou-as uma
a uma até perfazer seiscentos e oitenta e um mil trezentos e quinze
euros. Acendeu um cigarro (raramente fumava, mas guardava um
maço de Marlboro numa das gavetas da cozinha), serviu-se um
vodka da garrafa que retirou do frigorífico e sentou-se diante da
janela, apoiando um braço na mesa, a mão acariciando as notas.
Seiscentos e oitenta e um mil trezentos e quinze euros. Há muito
tempo que não chorava mas, no fundo, Mikhail tinha sido
assassinado, como ela temia que viesse a acontecer. E então
chorou, chorou muito e pensou que os campos da Ucrânia (os
únicos que conhecia, na verdade, naquela planície que acompanha
os últimos quilómetros antes de Odessa — em Portugal só conhecia
os pinhais de Vila do Conde, onde ela e Mikhail tinham passeado e
feito amor) deviam estar verdes e que uma brisa arrastava esse
perfume até Matosinhos, o lugar onde, de repente, ela iria
recomeçar a sua vida. Chorou também por Vasily, o pai que a
aguardaria às portas do céu, para escutar uma peça que ela tocaria
num piano celeste. Chorou pela mãe que mal conhecera — Olga
morreu quando ela tinha cinco anos. Chorou por um namorado que
nunca aprendera a tocar violino. Chorou pelos dias que esteve em
França, antes de vir para Portugal. Chorou pelas semanas em que
dormiu num hotel sujo e pobre nos arredores de Lisboa e onde
ucranianos e russos se amontoavam bebendo cerveja e crianças
dormiam ao colo de mães cansadas. Chorou pelos meses em que,
apesar do seu ar franzino e elegante, arrastava caixas de
mercearias pelo armazém do supermercado. Chorou por não saber
de onde vinha todo aquele dinheiro. Chorou pelas vítimas de Mikhail
e de Arkady, porque ninguém ganha todo aquele dinheiro sem ter
produzido um bom número de vítimas. Chorou por Mikhail,
finalmente, assassinado como ela previu que seria assassinado —
um homem que já não amava há muito, que amou pouco, que
nunca a conhecera realmente, e que agora desprezava. Não podia,
por ele, repetir os belos versos de Anna Akhmatova, a ucraniana
que o seu pai nunca poderia ter lido por motivos políticos, mas que
ela aprendera a ler em Moscovo, durante os primeiros tempos da
perestroika: «Não ri e não cantei: / fiquei o dia inteiro calada. / Mais
do que tudo queria estar contigo / de novo desde o começo.»
Finalmente, distribuiu o dinheiro por três lugares diferentes, nas
três divisões principais da casa — a polícia, quando viesse (e viria,
porque Mikhail devia ter segredos guardados em casa), não iria
descobri-lo. Ou, entretanto, ela ter-lhe-ia dado um destino. No
quarto, descoseu o assento de uma cadeira e, na base, guardou
uma parte do dinheiro; depois voltou a coser o tecido com vagar e
cuidado. Na casa de banho, guardou outra parte (as notas mais
altas) entre as toalhas do armário, bem ao fundo. E na cozinha
escolheu a divisória abaixo do forno, que servia para guardar as
frigideiras, onde colocou a terceira parte, embrulhada num jornal
russo, bem lá ao fundo.
Depois sentou-se de novo à mesa da cozinha, fumou novo cigarro
e anotou, numa folha branca, os números de telefone dos familiares
de Mikhail, bem como os endereços de e-mail. A polícia apreciaria o
gesto, bem como as suas olheiras de jovem viúva a quem o destino
roubara o marido desta forma tão trágica. Não teria de fingir ou de
inventar uma história comovente. Ela era essa história comovente.
Bastava a verdade: ela era uma inocente viúva que desconhecia o
trabalho do marido; trabalhava numa loja onde ganhava oitocentos
euros, cozinhava, fazia compras no supermercado em frente da
paragem do metro, e odiava Arkady. O resto só ela conhecia. Ela e
mais ninguém. Ela era apenas uma mulher de quarenta e dois anos,
professora de Química na sua longínqua terra natal e obrigada a
emigrar para longe, para um país que não apreciava imigrantes e
que desconfiava da concorrência no emprego. Tinha um passaporte,
um bilhete de identidade, uma declaração de impostos e, sobretudo,
um passado intocável, uma família que lhe enviava postais
ilustrados e vizinhos que a cumprimentavam, apesar de ela ser
imigrante. O futuro viria depois, como tinha acontecido sempre na
sua vida.
Mas, para que tudo estivesse no seu lugar, e antes que alguém da
polícia aparecesse à porta, Irina calçou as luvas da cozinha, com
que lavava a loiça e fazia os trabalhos de limpeza ao domingo, e
certificou-se de que a pistola de nove milímetros que Mikhail
guardara nas malas por cima do guarda-fatos, escondida num forro
amarelado e sujo, estava agora na primeira das gavetas da cómoda,
acessível a qualquer inspeção. Estava a partir de agora, ela
colocara-a lá. Um mafioso russo de segunda ordem, descuidado e
arrogante, tem de guardar a sua pistola numa cómoda. Irina
começava a construir uma história, embora ainda não soubesse
onde ela iria levá-la.
10

«O MEU PAI FOI PERDENDO GRADUALMENTE A MEMÓRIA, HÁ OITO OU NOVE


ANOS. Foi envelhecendo. De certa maneira, inspetor, era um sinal
para o repouso do guerreiro. A frase é fácil, mas a sensação é
verdadeira. O meu pai cuidou de toda a família depois de ver como
tudo estava desfeito, em cacos, logo a seguir à revolução, o senhor
deve conhecer a história. Logo depois da revolução.»
«Não conheço a história.»
«Posso contar-lha com tempo, quando quiser. Mas ele foi
perdendo gradualmente a memória, isso é que interessa. De modo
que tive de assumir a gestão das empresas, do escritório e, até,
disto tudo», Luís Ferreira Vasconcelos apontando com a mão para
tudo à sua volta, o jardim que se via da janela, um pouco de mar ao
fundo das sebes, as vinhas que todos os anos aumentavam a área
de cultivo, o pinhal que prolongava o jardim na direção da serra. E
tinha um ar feliz, pareceu achar Jaime Ramos. «As minhas irmãs
não trabalham nas empresas. A Carmo, porque se interessa mais
pela Biologia. A Béni porque não se interessa por nada. Estamos
preocupados com a Béni.»
Ele tinha um ar de cansaço muito natural, a roupa assentava-lhe
como a um personagem de série inglesa de televisão, e a voz não
tinha nenhum sotaque, não pertencia àquele Minho em nenhuma
parte da sua gramática. O próprio casarão parecia transplantado
para aquela paisagem onde nenhum terramoto havia de chegar: um
caminho de terra ladeado de carvalhos, um jardim onde parte das
duas estátuas de granito tinha sido devorada pelo musgo,
trepadeiras que não precisavam da primavera para reverdecer, o
ruído dos pássaros (um incómodo para o inspetor Jaime Ramos,
que, na tradição da polícia, não gostava de pássaros), um carro
estacionado junto de um alpendre que cobria lajes de mais granito
— e Luís Ferreira que o recebia com a afabilidade que os homens
de negócios, segundo a lenda, reservam para o intervalo das suas
campanhas militares.
«Agradeço-lhe o que fizer para descobrir o paradeiro da Béni. A
minha irmã mais nova, como sabe. O meu pai tem sofrido muito. É a
única coisa que o faz sofrer, aliás. Está ali sentado o dia todo, no
terraço, na varanda do quarto, na sala da televisão. É uma pena
num homem com aquelas qualidades, aquela vida toda. Pergunta
pela Béni todos os dias, como se esperasse que um dia ela saia do
quarto e lhe vá levar o jornal ou pedir-lhe a mesada. Os
medicamentos dão-lhe alguma tranquilidade, mas é tudo aparente.
Precisamos da Béni. Eu acredito que a minha irmã está bem, que
resolveu fazer aquilo que todos os adolescentes fazem um dia,
como fugir com um namorado ou ir para um acampamento de
hippies praticar meditação, no meio de uma serra. Mas podia ter
avisado. Repare. A minha mãe morreu há doze anos, a Béni era
uma criança a precisar de atenção. Foi criada por mim, pela minha
irmã e por um colégio suíço onde não aprendeu grande coisa
durante três anos. Um daqueles colégios onde andaram as nossas
primas que hoje têm quarenta e tal anos e onde ensinam a não
perder a virgindade antes do casamento.»
«Não é a nossa especialidade. No fundo, é um pedido pessoal do
nosso diretor. Destaquei a inspetora Olívia para esse trabalho.»
«Todas as informações que tiverem são fundamentais», Olívia
fazendo o seu pequeno número, olhando para Luís Ferreira um
passo atrás de Jaime Ramos, caminhando depois pelos corredores
atrás dos dois homens. Ela fazia isso de propósito, castigando o
machismo do chefe, fingindo-se quase submissa, muito respeitadora
das hierarquias, nunca fazendo as primeiras perguntas, anotando
tudo ou representando aquele papel de comparsa, coadjuvante,
imitando Isaltino de Jesus, o mestre do disfarce, o masoquista de
serviço. Fixava então um ponto invisível em algum lado, numa
parede, num objeto pousado sobre uma mesa — e fingia que estava
a pensar exatamente naquilo. Mas não havia «aquilo». Só o teatro
daquela improvisação a que ela correspondia como uma
participante discreta e cúmplice, caminhando atrás dos dois homens
pelos corredores que desembocaram numa sala de paredes claras,
iluminada pelo sol.
Os advogados têm quase sempre o mesmo tipo de casa, ligando
os livros de direito aos livros de política, a literatura aos livros de
arte, as fotografias de momentos especiais da sua carreira à
celebração de bodas de prata na família, e cobrindo tudo com uma
severidade muito fingida e acanhada. Luís Ferreira ainda não tinha
tomado o poder, pensou Olívia — aquela era a sala de um
advogado, o pai. Fotografias de família, molduras prateadas sobre
as mesas, livros de arte, recordações de duas ou três gerações,
uma pintura de África na parede, ao fundo. E os sapatos de Luís
Ferreira sobre o tapete, acrescentou ela ao seu cenário pessoal,
mudando de personalidade e inventariando uns Oxford clássicos de
Edward Green, modelo Asquith, preparados com duas sobressolas
cosidas à mão para evitar cola, e com atacadores avermelhados,
tingidos, em pelo de camelo.
Olívia pousou a mochila nesse mesmo tapete. Tinha começado
pelos sapatos, mas a dobra das calças do fato de tweed era da
Wilkinson & Sons, seguramente. E olhou para aquele homem bonito
que segurava um isqueiro na mão direita, um Ronson, não um
isqueiro de plástico, nem um isqueiro de prata, um Dupont ou um
Cartier — mas um Ronson, um isqueiro feito para durar, ela
lembrava-se de um romance de John Le Carré em que havia um
Ronson que circulava de Deli para Moscovo e de Moscovo para
Berlim («São feitos para durar, não são?», perguntava George
Smiley), e esse mesmo isqueiro estava agora na mão de Luís
Ferreira como uma espécie de extensão do seu corpo. Olívia
aprendera tudo isto aos poucos, arquivando recortes de revistas,
prestando atenção aos pormenores — e porque um antigo
namorado se julgava inglês.
«O meu pai perdeu a memória de quase tudo», disse ele então.
«Só se lembra da Béni. Pergunta por ela todos os dias.»
«A inspetora Olívia tomará nota de tudo», repete Jaime Ramos
olhando para o Ronson que Luís Ferreira guarda na sua mão direita.
«Eu tenho de fazer dois telefonemas, não incomodo.»
«Como preferir, somos nós que agradecemos.»
Como uma pessoa delicada e de bons princípios, seduzindo um
cliente que entra na sede da empresa. Mais velho e seria um
cavalheiro da indústria, pensa Olívia de novo, como se estivesse a
desenhar as ramificações da empresa, sede na Maia ou em
Famalicão, delegações por todo o Vale do Ave e em Lisboa,
vendedores que vestiam colete e guardavam documentos numa
pasta de pele escura, sorrindo com amabilidade, pensando na
família, protegendo os seus, acendendo o cigarro com um Ronson.
«Podemos ir para o meu escritório, inspetora.»
Tínhamos de ir, pensa ela. Jaime Ramos tinha saído para um
terraço por onde se descia para o jardim.
11

O TERRAÇO ERA UMA GRANDE EXTENSÃO DE TIJOLEIRA VERMELHA limitada


por um muro ocre coberto de trepadeiras que cresciam do outro lado
da parede, vindas do chão — e o velho estava sentado num
cadeirão azul, um jornal sobre os joelhos, um chapéu de palha na
cabeça protegendo-o do sol de maio. Não parecia uma estátua, não
era uma estátua: a mão direita tremia, equilibrada num dos braços
do cadeirão almofadado, e Jaime Ramos notou esse movimento
enquanto descia as escadas de granito e falava com Isaltino de
Jesus ao telemóvel.
«Há quatro ou cinco anos que nenhum deles anda na noite, chefe.
Esses russos já eram homens de negócios, se me faço entender.
Andavam de Audi, já não se davam com os outros russos.»
Isaltino passaria a mão sobre a gravata, ajeitaria o alfinete de
dourado falso que a prendia à camisa, talvez folheasse o caderno
onde escrevia as suas notas, inclinado sobre a secretária.
«Escreves tudo, Isaltino», dissera-lhe um dia.
«Para treinar a memória, chefe. Com a idade, li numa revista,
vamos perdendo algumas faculdades. Escrever as coisas dá-me
mais tranquilidade e serve-me para fazer o teste, ver se me esqueço
das coisas. Por exemplo, listas. Listas de cidades com tê. Tavira,
Torres Novas, Torres Vedras, Toledo, Tampa, Tete, Tenerife, Toronto,
Tabatinga, Trieste, Trujillo, Tashkent, Trinidad, Telavive, Tripoli,
Toulouse, Tijuana, Tóquio ou Tegucigalpa. Não ponho Torre de Dona
Chama porque não é cidade, nem Torre de Moncorvo. Faço esse
exercício. Olhe cidades começadas por éme: Manágua, Manila,
Maputo, por aí fora. Maracaíbo, Melbourne, Marselha, Montalegre,
Monção, Mindelo, Madrid, Manchester.»
«Montalegre e Monção são cidades?»
«São sedes de concelho. Montemor-o-Novo, Montemor-o-Velho,
Miami, Milão e Minsk.»
«Minsk.»
«Bielorrúsia, eu sei. Moscovo, Macapá e Manaus.»
«Isaltino, tu surpreendes-me sempre.»
«O chefe devia tentar este exercício. No seu caso, vinhos
começados por uma letra, charutos desta ou daquela letra.»
«Não arrisco. A minha memória já está cheia de fendas, de
falhas.»
«Não se subestime, chefe.»
Não te subestimes, ainda tens muito para dar a este mundo,
pensou Jaime Ramos com ironia: árvores começadas por cê, rios,
mulheres, autores de romances, tipos de peixe pescados na ria de
Aveiro, jogadores de futebol, a lista era infindável e os testes à sua
memória deixariam de preocupá-lo com este treino.
«Não há maneira de ligá-los a nenhum dos negócios da noite. Às
vezes eram vistos em Matosinhos, num bar onde tinham começado
por distribuir bebidas e por transportar mulheres. Ucranianas,
sobretudo. Coisa de outros tempos. Como se se tivessem retirado
do negócio de repente, há uns cinco anos. Declarações de impostos
também estão fora de hipótese. Não há registos.»
«Eu volto ao fim da tarde», prometeu Jaime Ramos, desligando o
telemóvel, fixando a mão do velho, que tremia sobre o braço do
cadeirão. Aproximou-se devagar do muro, voltando-se de lado para
Henrique Ferreira Vasconcelos, que o observava em silêncio — diria
que se tratava de um sorriso, mas a expressão no rosto do homem
dava a impressão de nunca se ter alterado há muito tempo atrás
daqueles óculos escuros. Como uma estátua vigiando a linha do
mar. Quando ficar definitivamente velho e perder a memória também
serei uma estátua, pensou Jaime Ramos. Uma estátua como esta,
vestida como um velho proprietário rural: calças de bombazina
castanha, camisa de flanela aos quadrados, um casaco de lã, um
lenço no bolso da camisa, um jornal sobre os joelhos, um chapéu de
palha que alguém lhe colocara sobre a cabeça.
«Uma bela tarde», ouviu-se a si mesmo dizer para o homem, em
voz alta.
Henrique Ferreira Vasconcelos não respondeu. Nem uma palavra,
nem um som sequer, um movimento no rosto. Apenas a mão foi
deixando de tremer, como se uma presença invisível a tivesse
imobilizado.
«Temos de aproveitar o sol», Jaime Ramos sentindo-se
desajeitado, incompetente para falar com uma estátua, acenando
ligeiramente para o velho antes de lhe voltar as costas e subir as
escadas que o devolveriam àquela tranquilidade de uma casa de
família onde todas as coisas pareciam estar no seu lugar.
«Veio por causa da minha filha», ouviu então dizer distintamente.
Era uma voz frágil, mas que articulava todas as palavras. «Béni.»
«Vim por causa da Béni.»
«Vão encontrá-la?»
«Suponho que sim. De certeza que sim, vamos encontrá-la.»
«Ela partiu.»
«As pessoas desaparecem, mas vamos encontrá-la, à sua filha.»
«Ela não desapareceu. Partiu.»
«Há alguma diferença?»
«Há. A Béni partiu. Sente-se.»
Uma súbita energia aflorou ao rosto daquele homem que Jaime
Ramos não percebia se estava em condições de falar, como se
tanto esforço físico o esgotasse de um momento para o outro. Olhou
à volta à procura de uma cadeira, e acabou por encontrá-la debaixo
do guarda-sol branco ao fundo do terraço. Depois de ter ido buscá-
la sentou-se em frente do velho.
«Ao meu lado. À minha direita. Oiço mal do ouvido esquerdo.»
Jaime Ramos mudou de posição, sentando-se exatamente ao
lado do cadeirão azul, reparando que, por detrás dos óculos,
Henrique Ferreira Vasconcelos estava de olhos abertos, fixos no
mar. E a mão tinha, em definitivo, deixado de tremer.
«O que lhe disseram lá dentro?»
«Pouca coisa.»
«Não vão dizer muito mais. Não conhecem a irmã. Uma pena.
Desde que a mãe morreu que eles estão condenados a
entenderem-se, mas a Béni está à parte. Foi educada fora, é mais
nova, muito mais nova, uma filha em idade tardia. A minha mulher
quis tê-la apesar de eu saber que ela ia ficar doente. Nenhum
médico mo disse, nenhum. Mas eu sabia. A minha mulher era muito
frágil, a Béni é muito parecida com ela. Também vai ficar doente um
dia.»
«Porque é que disse que ela partiu?»
«Porque foi o que aconteceu. Partiu. Quando as pessoas partem,
despedem-se das que ficam. Ela despediu-se de mim. Não veio ter
comigo aqui para dizer, vou embora, papá. Mas é como se tivesse
dito. Eu conhecia-a mal. Nunca a conheci, aliás.»
«Para onde é que acha que ela foi?»
«Não sei. Ninguém faz ideia. Foi para onde não há negócios de
família, acho eu, para onde não há nada. Ou foi com esse rapaz do
petróleo, que anda aí. Ou com um dos grupos com quem se dá, lá
no Porto. Ou com um namorado qualquer da idade dela.»
«Do petróleo?»
«Uma espécie de engenheiro que trabalha para a família. Há
sempre gente a entrar e a sair. Eu já não tenho a ver com nada do
que se passa na família, sou um objeto que se coloca aqui ou ali
conforme a conveniência. Põem-me ao sol, para não morrer. Ao fim
do dia tiram-me do sol e agasalham-me lá dentro. Quando chove,
põem-me diante da lareira. A Béni também pode ter ido para o
Brasil. De vez em quando as pessoas desta família vão para o
Brasil, fazem-no há dois séculos sem interrupção, ou quando estão
falidas ou quando têm de fugir por motivos políticos. Depois voltam,
com mais dinheiro e um bocadinho dispostas a fazer penitência
pelos pecados cometidos. Mas não aprendem nada, nada. Em
tempos de crise são mais discretas, mais ponderadas, mas que se
pode esperar de uma família que tem de lutar pela sobrevivência
quando o país todo vive de favores?»
As rugas no rosto de Henrique Ferreira Vasconcelos formavam
uma espécie de mapa em relevo — o de um deserto devorado pelo
frio a que ele resistia com tenacidade. Não movia a cabeça, não
movia os braços, apenas a boca e as rugas do rosto:
«Não me ligue. Não ligue ao que eu digo. Trate de encontrar a
minha filha e as graças recebidas serão multiplicadas.»
«As graças?»
«É uma frase feita. Alguém o recompensará, é o que isso quer
dizer.»
12

«NUNCA SE SABE O QUE SABEM DE NÓS, MEU CARO. Lembras-te do


Partido? Havia sempre alguém que sabia tudo de nós. O controleiro
obtinha informações, cruzava-as com outras, cruzava-as de novo
com aquilo que lhe dizíamos, sabia com quem se saía à noite, com
quem se falava sobre a Checoslováquia ou a abertura húngara.»
«Eu nunca falei sobre a Checoslováquia. Era um crente.
Obedecia como um bom militante.»
O outro sorriu e calou-se de repente enquanto retirava o telefone
do bolso. Olhou o aparelho como se quisesse verificar se entretanto
tinha recebido telefonemas ou mensagens, tomando-lhe o peso ao
mesmo tempo na palma da mão. Depois abriu-o, retirou-lhe a
bateria, retirou o chip, colocou tudo no banco, junto dele, e olhou
para Jaime Ramos de frente como se tivesse terminado uma
exibição de acrobacia e esperasse aplausos da plateia.
«Nunca se sabe. O teu telemóvel?»
«Nunca trago o telemóvel quando venho falar contigo.»
«Ninguém precisa de saber que não te interessavas pela
Checoslováquia.»
«Só estive na Bulgária, no Mar Negro. Praga era muito literária. O
Partido não era feito para pessoas sensíveis.»
«A literatura não nos interessava muito, é verdade.»
«Fui só um passageiro de segunda classe.»
«Mas estiveste no comboio», disse o outro, alinhando a carcaça
do telefone, a bateria, a tampa e o chip. «Como acreditávamos no
socialismo, andávamos todos em segunda classe.»
Jaime Ramos sorriu, como se se tivesse lembrado do Mar Negro
e de um comboio que atravessava os campos de milho antes das
falésias:
«Cheguei tarde de mais à questão da Checoslováquia. Quando
entrei para o Partido já se tinha resolvido o problema checo há
quatro ou cinco anos.»
O outro não ligou. Podiam dizer que o problema checo nunca se
resolveu, mas ele limitou-se a apontar para as peças, alinhadas
como se esperassem para ser reunidas numa ordem perfeita:
«Tenho fama de desfazer os Blackberries antes de começar
qualquer conversa. Somos espiões preguiçosos, os portugueses. A
democracia, tu sabes. Tirou-nos energia e mobilidade. Pelo menos
esta democracia. Melhor estar preparado. Imagina tu, a espionagem
sujeita, como eles dizem, a escrutínio parlamentar. Somos uma raça
em extinção, tu, eu, mais vinte ou trinta. Não aguentaríamos
estarmos sujeitos a escrutínio parlamentar.»
«Nunca fui espião», Jaime Ramos batendo com a cigarrilha
apagada na unha do indicador.
«Não. Mas também ninguém conseguia espiar-te naquela altura
em que tinhas importância. Não usavas computador, não usavas
telemóvel, dedicavas-te a crimes sem qualidade, tarefas sem
prestígio. Homicídios, coisas que não convocavam as classes
dirigentes.»
«E também não sabia que faço parte da lista das espécies em
perigo.»
«Fazes, sim. Somos os últimos. Trabalhamos ilegalmente. Somos
escutados. Sabem a marca das nossas camisas, com quem
dormimos, se ressonamos, o que comemos, a que horas fazemos a
barba. Espiamo-nos uns aos outros.»
«E o que lhes dizes?»
«Digo-lhes: sei o que fizeste e o que andaste a fazer. E desfaço o
Blackberry à frente deles. Um dia pedi o telefone a um ministro,
destes que andam aí, e desmontei-lho tal como fiz a este. Agora já
podemos falar, disse-lhe eu. Eu estou a ser escutado?, perguntou
ele. Estamos todos, disse-lhe eu outra vez, estamos todos, desde
que nos levantamos até entrarmos no apartamento da amante e
mesmo daí para a frente, quando dizemos boa noite à mulher que
dorme ao nosso lado, antes de apagarmos o candeeiro e
começarmos a fingir que estamos a dormir. Na altura, ele tinha uma
namorada e um casamento muito estável, ao mesmo tempo, e levou
a coisa a sério. Ficou de boca aberta, olhou para o telemóvel uma,
duas vezes, e eu disse-lhe: agora já é tarde, o senhor fala de mais,
fala com toda a gente, tem três números de telefone. As escutas
que o senhor tem de mim não são nada ao pé das que eu tenho de
si. E pus-lhe um dossier à frente, em cima da mesa. Ele acreditou.
Mostrei-lhe as primeiras páginas, que eram forjadas, invenção pura,
mas ele acreditou mesmo sem ler grande coisa. Eles acreditam
sempre, têm sempre uma biografia para esconder. Nome da mulher,
nome das duas jornalistas com quem tinha partilhado camas em
hotéis de categoria, no estrangeiro, nome de um filho que fumava
erva nos festivais de rock e tinha espatifado um carro do Estado
desviado numa noite de bebedeira, marca das gravatas, marca do
carro, telefone da sogra, telefone do motorista, datas das viagens
para o estrangeiro, agência do banco, whisky preferido, as más
notas na universidade, cópia das despesas de uma certa viagem.
Como se lhe dissesse: em escutas não há rival. Ele acreditou que
eu tinha isso tudo.»
«E tinhas?»
«Tinha. Mas convém deixá-los na dúvida. É um divertimento, um
jogo. Nunca se sabe. Não podes confiar. Como nós não
confiávamos na Checoslováquia.»
«Eu confiava, era um crente.»
«Já me disseste.»
«A minha esperança tem limites», disse Jaime Ramos. «Mas às
vezes sou crente.»
«És um otimista. Nunca perdeste o hábito. Quem é comunista
uma vez é comunista para sempre.»
«Quem é católico uma vez, mesmo que seja por acaso, é católico
para sempre. Estamos condenados a repetir tudo na nossa vida.»
«Tanto me faz. Fui católico há muito tempo.»
«Fui comunista por obrigação.» Ela era demasiado perfeita para
não ser amada, respeitada, admirada. Perfeita. Casei porque ela
tinha um olhar cheio de luzes, fosforescente na escuridão,
atravessando a minha vida como uma espada, deixando-me em
sangue, as veias à mostra, cheio de pecados à vista. Com o tempo,
aquela perfeição transformou-se em rigor, obsessão e frieza. Eu era
um homem das montanhas que tinha redescoberto a morte na
Guiné. Volto sempre a isso, eu sei, volto sempre ao mato, à poeira,
aos pântanos da Guiné, aos areais batidos pelo vento a caminho de
Casamansa, aos soldados bêbedos que, sem saber, tinham
desertado há muito tempo mas que continuavam a combater ou
estavam mortos num descampado. Às vezes, de noite, ainda oiço as
rajadas secas de G3, as hélices dos helicópteros, o ruído dos Fiat
sobrevoando os pântanos, aproximando-se do mar. Depois disso fui
comunista por obrigação, como uma recusa e uma queda pelo
abismo.
«Quem é comunista uma vez é comunista para sempre», voltou o
outro.
«Pode ser. Mas o objetivo da minha vida é simples: não falar do
meu passado», esclareceu Jaime Ramos. «Está acabado,
enterrado, não tenho nostalgia, não guardei fotografias, não tenho
um cartaz do Che pendurado atrás da porta, não guardei os
manuais do materialismo dialético, nada. É esse o meu objetivo.»
«É um bom objetivo.»
«E Luís Ferreira Vasconcelos? Onde para nos teus arquivos?»
«Não está nos meus arquivos, está na minha cabeça. O que é
muito diferente.» Sequeira estava sentado de costas para o
arvoredo que os protegia da estrada que subia na direção da serra,
o que significava que estava de frente, rigorosamente de frente para
o rio. Chegava-se ali por uma estrada de terra que se desviava a
meio de Freixieiro do Soutelo até parar abruptamente diante de um
açude isolado onde de vez em quando havia canoas navegando
suavemente, quase sem ruído, entre a sombra das árvores,
desviando-se de uma pequena ilha a vinte metros do dique. Os
carros tinham ficado no limite da estrada, junto de um canavial que
ganhara terreno na luta contra hortas abandonadas; daí em diante,
caminharam lado a lado, atravessando o dique, que também servia
de ponte e por onde o rio perdia velocidade até chegar ao mar, daí a
dois quilómetros, diluindo-se numa língua de areia.
«É um nome a ter em conta. Diz-se que o pai enlouqueceu, o que
não é verdade, e que aos trinta e dois anos tomou conta das
empresas, ou dos bens da família, uma vez que as coisas andam
misturadas neste caso. Mas o nome completo não é esse, nem
termina em Vasconcelos. São oito nomes, seis apelidos e dois
nomes próprios, uma família interminável desde que terminou a
guerra civil, há duzentos anos. No Porto pensou-se que, nessa
altura, tinham perdido quase tudo. Só tinha sobrado aquele casarão
perto da Rua do Heroísmo, onde regressavam de tempos a tempos
e onde se mantinham calados. Mas não era assim. O grosso da
família vivia no Minho, em Ponte de Lima, nos Arcos, em Ponte da
Barca, ou em Valença. Era uma família que morria em paz, nascia
em paz, reproduzia-se sem turbulência, exilava-se de vez em
quando, mas sobrevivia. Sobreviveu até hoje, há de durar mais
duzentos anos, pelo menos. As nossas famílias vão desaparecer e a
deles vai sobreviver. É uma lei da história.»
«Uma lei da história?»
«Sim. Nós não temos o sentido da sobrevivência, não temos
aquele instinto da sobrevivência, não cuidamos da perpetuação da
espécie. Não nos reproduzimos convenientemente, escolhemos mal
as nossas mulheres e os nossos maridos, apaixonamo-nos pelo
menos uma ou duas vezes na nossa vida. Eles sabem que um
século é uma medida pequena de mais para o tempo que já
duraram, senhor inspetor. O que justifica alguns pequenos deslizes,
mas que os conservam despertos para o essencial. Nós temos
dívidas ao banco ou dificuldade em pagar impostos, porque
gastamos mais do que ganhamos. Eles não precisam de gastar, não
precisam de muito dinheiro. Vestem a roupa de pais para filhos,
contentam-se com pouco, não precisam de mostrar que são ricos.»
Jaime Ramos conhecia a história. Uma música vinha dos pinhais
em redor, de entre os arvoredos que escondiam o rio Âncora. Havia
insetos a rasar a água do rio. A Serra d’Arga ao longe. Um casarão
escondido entre as árvores.
«Ando à procura dessa família.»
«Já sei. Tens andado pelo Minho. Uma família antiga, Ramos,
uma família dessas não é coisa para nós. É preferível contratares
uma bibliotecária conscienciosa e mexeriqueira, que te dê o
essencial: antepassados, solares no Minho e adultérios por ordem
alfabética. Isso vem nos registos, há sempre alguém que se
interessa por genealogia. De vez em quando recorro a um, nos
Açores. Quem era o trisavô de fulano? Ah, um negreiro que
enriqueceu no Brasil e fazia filhos às negras nas plantações de
açúcar. Quem era a amante do conde de tal? Não era uma amante,
era um amante loiro, flamengo, há um retrato dele vestido de veludo
azul num solar perto de Sintra. De resto, nós não damos
informações salvo quando são absolutamente necessárias. Tudo
isto, esta rede de informadores e estudiosos, é caro e temos contas
a prestar ao parlamento, hoje em dia. Respeita os tipos da
genealogia, nunca estejas de más relações com a genealogia.
Inventam-te um avô pederasta ou uma tia que casou com um
carabineiro do Lugo. Hoje em dia, de resto, interessam-nos mais os
negócios imobiliários, pequenos ou grandes, investimentos
financeiros, armas, petróleo, dinheiro sem nome. É disso que vivem
as famílias que não precisam de dinheiro. O trivial.»
«Armas para onde?»
«Guiné Equatorial e Gabão. Daqui para Angola e de lá para onde
for preciso. Armas ligeiras, coisas que vêm do Leste ou do Oeste. À
mistura com petróleo, imobiliário e pequeno tráfico autorizado em
países amigos, desde depósitos em bancos sem dimensão especial
até barcos que mudam de nome conforme as conveniências ou
construção de estradas em países onde não há carros. O conceito
de país amigo tem mudado bastante, ultimamente. A última vez que
vi essa gente reunida foi aqui perto, numa sala cheia de membros
da maçonaria, de engenheiros da banca e de ex-comunistas
reconvertidos. Por esta ordem. E havia um ex-Opus Dei que
também era cavaleiro da Ordem de Malta.»
«Tudo junto?»
«Tudo em santa comunhão. Diretores de empresas, donos de
empresas, financeiros, diretores de bancos com pelouros
simpáticos, gente de partidos, especialistas em comunicação,
jornalistas amigos e amigos que já foram jornalistas. Trocam
números de telefone e fotografias de família, tudo em santíssima
concórdia. Um conclave. Cheio de classes, ordens, hierarquias, mas
um conclave.»
«Um concílio de forças vivas», Jaime Ramos acendendo
finalmente a cigarrilha escura.
«Um concílio», repetiu o outro, confirmando. «Um encontro de
famílias. Todos partilham apelidos, andaram nas mesmas escolas,
passaram férias na mesma praia, conheceram noivas comuns,
maridos comuns, avós que se davam muito, tios que negociaram
bastante.»
«Uma espécie de resumo.»
«O resumo do antigo regime. Um país que produz muito pouco
além de comerciantes, famílias ilustres, apelidos e casas de férias.
O mal português é esse, o incesto. A endogamia. Banqueiros cujas
filhas mais novas casaram com rapazes que dançavam bem nos
anos setenta. Depois, os rapazes envelheceram e casaram com
outras mulheres mais novas e ligeiramente mais tontas, mas
conservaram a marca de origem. Filhos que receberam um apelido
e que mais tarde entraram nos quadros do banco ou voltaram a
casar com uma mulher que leva no nome qualquer coisa como
Companhia Limitada. Sociedade Anónima. A mesma coisa há
duzentos anos. Um avô que foi ministro da República e afilhado de
um ministro da Monarquia. Uma avó que teve um amante diplomata
em Roma. Temos os arquivos cheios de casos assim. Adolescentes
que se conheceram no picadeiro, montando cavalos que também já
são cruzamento entre famílias. Férias em Moledo, passeios no rio
Minho, estadas no Algarve. Não. O Algarve é mais recente, é uma
coisa recente. O Algarve é uma coisa do tempo de depois do ié-ié,
do biquíni autorizado pela família, do tempo do segundo ou do
terceiro divórcio quando a moral deixa de ser a porta de entrada e é
só um corredor, uma passagem, uma genuflexão. Havia tios
poderosos, ministros e subsecretários de Salazar que passavam
férias com um criado ao pé do telefone. Salazar podia telefonar, se
bem que Salazar nunca telefonasse. Sua excelência não gastava
dinheiro em telefonemas — escrevia cartas, não tinha a febre da
velocidade. Mas esta família não usava telefone, falavam olhos nos
olhos, segundo se diz, e detestavam documentos, contratos,
testemunhas, ministros, notários. Tudo em nome da honra e do
passado. Tinham um passado a servir de garantia. Um tio velho foi
escudeiro de um rei enquanto não sofria de gota ou o reumatismo
não o prendeu à cama. Adoro estas famílias, Ramos. Gostava de
ser historiador. De escrever a história das aventuras sexuais do
regime, dos pequenos adultérios, dos pequenos deslizes sem
registo, dos negócios que nunca são contabilizados, dessa gente de
que só sabes metade do nome, porque há sempre um apelido
escondido para ser revelado atrás de uma porta, em circunstâncias
especiais. Diretores de empresas, banqueiros, bispos, padres,
cobradores de impostos, gente dessa.»
«Padres também?»
«E padres.»
«Bispos era melhor.»
«Gente que come salada e é saudável, que tem um selo invisível
colado na testa, a anunciar: faço parte da grande família, um tio foi
governador de Manica e Sofala, um outro fugiu de Lisboa depois de
ter dormido com a amante de um banqueiro e foi nomeado para as
alfândegas de Cabo Verde, outro tem o retrato numa galeria dos
notáveis de uma universidade que já apodreceu. E alguém que veio
da Índia em tempos. Alguém que enriqueceu no Brasil e fez filhos a
mulatas que nunca foram escravas. Fazer a biografia destas
famílias, Ramos, é entrar numa galeria que tem de tudo. Os
melhores retratos, os melhores vícios, saborosos, de invejar. E
depois há as dependências, como eu lhes chamo, negociantes de
vinho do Porto e importadores de máquinas de costura, gente
honesta e trabalhadores incansáveis que conquistaram um lugar
perto do sol. Não ao sol. Não. Porque a luz chama a atenção e esta
gente é discreta, nunca foi vaidosa, as mulheres eram discretas, por
isso limitavam-se a ficar ali. Perto do sol. Mas à maior parte falta um
selo, uma garantia de probidade familiar e administrativa, falta-lhes
uma tia-avó louca que deixou uma fortuna e se divertia a quebrar
loiça da Companhia das Índias ou a seduzir criadas no escuro das
despensas. Eu gosto desta gente, Ramos. Detesto os
deslumbrados, os idiotas que desconhecem o peso da História, que
usam óculos de sol pendurados no bolso do casaco, os que falam
ao telemóvel e apanhamos nos restaurantes a pedir faturas para
depois receberem na caixa da repartição, do ministério ou da
empresa. Famílias, Ramos, eu gosto muito de famílias, gosto muito
de famílias cheias de histórias recentes ou antigas. Quase todas
elas guardam uma tia louca na cave de um casarão isolado. Um
primo tresloucado rouba uma noiva à porta da igreja e foge com ela
de cavalo para Pontevedra. Não há lugar mais triste do que
Pontevedra. Mas eu gosto desta gente. E, depois, quando vês a
coisa de perto, passas a gostar das velhas famílias que nunca
estiveram na ribalta. Há de tudo: velhos advogados e velhos
negociantes de armas, gente que faz dois telefonemas por dia para
que o mundo continue a girar como se diz que acontece desde
Galileu. Estão sentados numa varanda a olhar o jardim. Não têm
medo da morte nem do que há de vir. Não são apanhados em
escutas. Detesto essa gente que apanhamos nas escutas. Têm dois
telefones ligados em permanência, instalamos uma escuta no carro
e no dia seguinte reconstituímos os últimos vinte anos de tráfico de
influência e de segredos das melhores camas do país. Não são
grande coisa, garanto-te. Não têm imaginação.»
«O mundo mudou muito desde Galileu, de facto.»
«Um pouco. Quando éramos novos julgávamos que havia um
caminho para a perfeição. Que, com o tempo, íamos melhorando a
espécie. Éramos arrogantes e sabíamos tudo.»
«A moral comunista», disse Jaime Ramos, antes de se remeter a
um silêncio grave, olhando a ponte sobre o Âncora, os pinhais que
desciam da Serra d’Arga em declives que permaneciam escondidos
pela folhagem dos silvados.
«Eu lembro-me da moral comunista, Ramos», disse o outro. «Não
foder sem recitar os mandamentos, e foder porque era um bem
higiénico e definitivo. Uma das minhas namoradas da época fodia
com dois ou três camaradas que andavam deprimidos e ocupados
com a revolução. Era serviço social puro. Tinha um nome perfeito,
era uma mulher da minha aldeia. Conceição.»
Sequeira olhou para o fundo do rio à procura de Conceição.
Estavam sentados num banco de pedra escondido por dois freixos
que nunca tinham sido aparados e cujos ramos se encostavam a um
muro de granito coberto de musgo, mesmo em pleno verão.
«Que é feito da Conceição?»
«Emigrou. Brasil. Em 1986, para o Rio, com vinte e seis anos,
disposta a tudo mas, sobretudo, disposta a recuperar o tempo
perdido e a esquecer a moral comunista. Farta disto. Em 1985
apaixonou-se por um burguês reacionário que herdou duas fábricas
em Pevidém. Têxteis, um capricho do destino, a miséria do Vale do
Ave, o coração do operariado no limite da área metropolitana,
muitos salários para pagar, uma família para aturar. Sempre a
família atrás. De modo que ele vendeu tudo em dólares e levou-a
para outro mundo onde o capitalismo não era uma ofensa. Isto,
segundo sei, despertou nela instintos terríveis, como o gosto pela
vida e outros pecados desprezíveis. Nunca mais voltou. Aos vinte e
oito anos conheceu o instinto de sobrevivência, sobretudo, mas
também o gosto pelo sexo sem moral nem princípios, segundo se
diz. Transformou-se numa espécie de estrela decadente de uma
família de proprietários convictos e arreliados. Naquela família todos
eram feios. Ela era um exemplo de beleza e de desorganização.
Assim vai o nosso mundo.»
«Falaste com ela entretanto?»
«Sim. Há uns anos, no meio de um trabalho. Vivia no coração de
Ipanema, ainda tinha memória e boas intenções. Tinha feito uma
plástica, convidou-me para um almoço de luxo no restaurante de um
hipódromo. Eu precisava de informações sobre aqueles anos.
Infelizmente, não foi de grande utilidade. A certa altura nenhum de
nós tem grande utilidade. Ela já não era comunista, bem vistas as
coisas, e começava a ganhar sotaque carioca.»
Tão de esquerda que nós éramos, tão justos, tão honestos, tão
preciosos e amáveis — e tão duros, inflexíveis, sábios, resolvidos. O
comunismo dava-nos uma extraordinária força, sobretudo porque a
desconhecíamos. Não gostávamos da sua moral, da sua vida
morigerada, disciplinada, vigiada; as mulheres deploravam o
machismo dos comunistas, a ignorância do povo, os gostos sem
sofisticação — mas havia no proletariado uma grandeza
insuportável. Proletários de todo o mundo, uni-vos. Uni-vos na
misericórdia e na compaixão, no ódio e na força de classe, nas
recordações de um fim de semana à inglesa conquistado por
Churchill, o pesadelo reacionário inglês.
«A moral comunista», repetiu o outro.
«Estou velho para sentimentalismos», murmurou Ramos
enquanto o outro se sentava e começava a contar a sua história.
Jaime Ramos ouvia, como ouvia a folhagem rente à varanda de um
segundo andar, à altura da copa das árvores, e tomava notas soltas.
Não podia confiar apenas na sua memória, esse lugar de traições
que oscilava no tempo e fazia escolhas que o despedaçavam.
Imaginava Béni, imaginava a família de Béni, imaginava Conceição
no Rio de janeiro, a traidora que casou com um traidor que lhe
proporcionava a felicidade e um casamento perfeito, medíocre,
tranquilo, cheio de possibilidades, criados vestidos de paletó branco
que recebiam os convidados e ofereciam martinis e caipirinhas.
Imaginava, sobretudo, à medida que o outro falava, pausadamente,
como se recitasse e recomeçasse sempre do princípio, relembrando
que Béni nascera no Porto, durante o Carnaval de 1989.
13

O PAI, HENRIQUE FERREIRA VASCONCELOS, TINHA ABANDONADO O EXÉRCITO


DEPOIS DE VIR DE ANGOLA, no início de 1975. Para se defender dos
comunistas e intimidar a família, preguiçosa e descuidada, dormia
com duas metralhadoras debaixo da cama e mantinha uma mochila
com roupa e víveres para escapar durante uma fuga inesperada, a
meio da noite, à pressa. Quando saía de casa levava um revólver no
bolso das calças — guardava-o na mesa de cabeceira, junto do
passaporte e de um bloco onde anotara endereços e números de
telefone com códigos que só ele conhecia. Estava preparado para a
contrarrevolução, tinha dois filhos e uma mulher bonita de mais para
aquela cidade escura que detestava e onde o seu destino era o de
procurar emprego em empresas falidas ou trabalhar no escritório de
advogados da família, como um exilado que regressa a um país
estranho depois de uma ausência inexplicável.
A família acolheu-o, no fim de contas. Com a revolução, os dois
tios, advogados na Baixa, tinham perdido clientes que foram viver
para o Brasil ou se limitavam a ficar sem dinheiro para pagar as
contas que foram drasticamente diminuídas. Por isso, precisavam
de um homem como ele, habituado a confrontos e a viver com
necessidade de dinheiro. Ignoravam o resto, ignoravam o passado,
não queriam saber. Sabiam apenas o essencial da sua vida em
Angola, dividido entre a administração militar e a poeira da cidade.
Ignoravam tudo, afinal. Em Luanda, a mulher, grávida, verificava
todas as noites as munições dos dois revólveres guardados no
armário da cozinha; ele sentava-se na varanda de onde se via o
anoitecer na baía e o contraste entre o azul do mar e a terra
alaranjada e suja, cheia de ruínas que se acrescentavam aos trilhos
dos carros militares que subiam e desciam por todas as colinas.
Bebia whisky e fumava dois maços de Kart por dia. Não queria
voltar a Portugal, não queria voltar ao Porto, não queria desfazer-se
do Opel Manta descapotável nem da sombra de uma figueira junto
da qual se refugiava nas tardes de sábado enquanto a mulher,
grávida, recebia as amigas e chorava ou de tédio ou de medo. Mas
as amigas partiram, regressaram a Portugal quando os militares
fizeram saber que era a altura de fazer as malas e de partir sem
ruído nos primeiros aviões de uma ponte aérea que ainda não tinha
começado. E foi naquele cenário que ele decidiu que nunca mais
voltaria a Luanda, que nunca mais voltaria àquela varanda diante da
baía — acabou por regressar a Portugal e ao Porto. Continuou a
dormir com duas metralhadoras debaixo da cama mas já não
escondia os dois revólveres no armário da cozinha; limitava-se a tê-
los à mão.
Os dois tios chamaram-no com solenidade num dia quente de
junho de 1975 e propuseram-lhe sociedade no escritório. Os clientes
habituais tinham debandado, a sua influência nos tribunais tinha
diminuído com a revolução e com o medo. Béni nasceu anos
depois, em fevereiro de 1989. Chamou-se Benedita por causa de
uma tia dos Arcos de Valdevez, rica e tão católica que ainda recebia
os padres das redondezas todos os meses, durante um almoço
ritual, para lhes recordar que o mundo não tinha acabado com
nenhuma das revoluções que entretanto tinham acontecido em
redor daqueles muros cobertos de hera e de roseiras, e daquela
mobília que cheirava a África, a Brasil, a cera e a um perfume que
Jaime Ramos nunca conseguiu identificar porque, apesar de tudo,
ele era um homem deste mundo — e o casarão era uma espécie de
jazigo de família que os temporais iam despedaçando, inverno sobre
inverno. Antes de Béni tinha nascido Luís, e depois de Luís nascera
Carmo, em 1978. Quando Béni nasceu, o pai já tinha passado os
quarenta há algum tempo. Isso incomodava Sequeira:
«Era um pai de segunda geração, digamos. E a Béni tinha
nascido quando já não se esperava que nascesse.»
«Onde é que ele conseguiu as metralhadoras?»
«Comprou-as em Espanha a dois portugueses da Corunha, que
as tinham comprado a um militar do Porto. Uma G3 e uma Uzzi.
Duas Walther de 9mm. Munições, quantas quisesse.»
«Ainda existem?»
«Arcos de Valdevez tem muito arvoredo e os arvoredos servem
para escondermos o que quisermos. A casa de Caminha também é
grande o suficiente, e tem caves, adegas, muros. Mas as armas
hoje não valem nada. Fora de prazo. Devem ser uma questão
sentimental, uma recordação sem perigo para ninguém.»
«Como é que chegaste a ele?»
«Como se chega a um ponto onde nunca se quis chegar. Ele
tomou conta do escritório em 1975, tinha vinte e nove anos. Foi
procurar os antigos clientes que tinham fugido para o Brasil e viviam
em Copacabana ou nas Laranjeiras, perto do consulado. Ou em
Petrópolis, em fazendas escondidas na serra. Prometeu-lhes que
recuperaria fábricas, lugares de posição, investimentos, terrenos,
quintas no Alentejo, empresas ocupadas. Anunciou-lhes que a
revolução estava por um fio e que tinha duas metralhadoras debaixo
da cama, o suficiente para impedir os comunistas de lhes roubarem
outra vez os títulos de propriedade. Pediu percentagens e
participação nas sociedades, porque sabia que eles tinham pouco
ou nenhum dinheiro naquele exílio de Copacabana. Podia ter um
passado de bandoleiro mas era um homem amável e sabia que era
preciso dar-lhes uma palavra de esperança ou fingir que os
compreendia bem, que estava do lado deles. Mas nunca deixou de
ser um homem em fuga. Fugiu de Luanda, fugiu do Porto, fugiu de
onde vinha o ruído das trovoadas, tinha aprendido rápido. Mas
sobretudo reequilibrou o escritório da família. Em dois anos, dois
anos e meio, as coisas voltaram ao que eram.»
«E como chegaram até aqui?»
«Sorte. Copacabana outra vez, onde estavam os que tinham
fugido de Portugal com medo do comunismo e dos militares. Um
pouco de petróleo venezuelano nos anos antes de Chávez, vendido
rapidamente e trocado por imobiliário. Depois, mais petróleo em
doses homeopáticas. E a inteligência de não querer entrar no
negócio do petróleo depois disso. Montar plataformas, fazer
prospeção, mergulhar as sondas, tudo bem. Mas não passar esse
limite, porque os estados corruptos são muito ciosos da sua
propriedade. Fazer o serviço, organizar a segurança, contratar
generais que conhecem outros generais, sobretudo em África. Os
generais têm uma moral própria e não conservam inimigos durante
muito tempo. E eles souberam fazer as coisas: não acumular
riqueza nem títulos de propriedade. Vender no dia seguinte sem
ganhar rios de dinheiro. Apreciar o risco mas saber onde está a
próxima curva na estrada. Copacabana de novo, outra vez, porque o
Brasil é um país fácil para o imobiliário. E, depois, um espírito
completamente fora de moda: a terra onde se nasceu. Nunca
abandonaram o Minho, nunca deixaram de passar férias em
Moledo, nunca trocam de carro salvo se é necessário, continuam a
usar casacos comprados há muito tempo, no inverno usam botas,
no verão têm toldo alugado à época, comem sardinhas em Vila
Praia de Âncora. Luxo, só em casa.»
«Fizeram relatórios sobre isso?»
«Não. Tenho é uma memória fodida, Ramos. Os bancos do lado
de lá da fronteira são tão seguros como os do lado de cá. Os
negócios estão entregues a especialistas que vêm todas as
semanas prestar contas. Uma das filhas desapareceu e é isso que
te inquieta, porque as famílias antigas têm sempre um
conhecimento aqui e ali, e uma filha daquelas não pode
desaparecer sem deixar rasto, sobretudo se tem vinte e dois anos e
uma irmã de trinta e quatro. E um irmão que comanda boa parte dos
negócios aos trinta e oito anos. E um pai que dorme com duas
metralhadoras debaixo da cama.»
«Ainda?»
«Estão descarregadas e não há munições disponíveis. Uma
recordação de juventude, acho eu.»
Sequeira levantou-se e dobrou as costas para trás, como se se
queixasse de um reumatismo de verão, as mãos nos quadris:
«Aos vinte e dois anos ninguém desaparece só por querer
desaparecer. Mas nestas famílias, Ramos, ninguém sabe. Pode ser
genético. Uma bisavó excêntrica, uma tia que se fingia de puta em
Madrid, um avô que queria destruir o santuário de Fátima, tudo pode
acontecer. Há coisas que não nos aparecem nas escutas, como se
sabe. E nós não temos nenhuma indicação que te possa servir. Os
negócios continuam razoáveis, apesar da crise. Bebem champanhe
com alguma frequência, se isso te serve de alguma coisa. Mas sem
exagero. É a casa mais bonita do litoral.»
«A moral comunista serve-te de alguma coisa ainda, acho eu»,
murmurou Jaime Ramos, inclinado sobre o muro de onde o rio
parecia, agora, um espelho iluminado por uma luz escondida do
outro lado da serra. Apenas um reflexo vindo do céu. Insetos
voando sobre a água, pequenos seixos brancos lá no fundo, entre a
areia e os juncos.
«A moral comunista já deixou de levar a grandes descobertas. O
espírito humano é uma incógnita, aprende-se nos cursos rápidos
que nos dão hoje em dia naquelas salas de hotel. Workshops.
Teremos workshops de filosofia, sessões de psicanálise, terapia de
grupo, teologia, religiões orientais, gastronomia, artes de palco.»
«Estamos todos precisados, Sequeira. Atravessámos a montanha
e precisamos de atualização. Estamos velhos», Jaime Ramos
olhando-o fixamente. Sequeira tinha uma pequena cicatriz junto do
olho direito e esse movimento traía-o naquele instante. «Estamos
velhos. Somos de outro tempo. Uma mulher de vinte e dois anos
que desaparece de casa da família não me parece que seja uma
notícia. Nisso tens razão. Aos vinte e dois anos ninguém
desaparece, limita-se a ir à sua vida. Foi o que eu pensei durante
estas duas semanas. Pus a melhor agente da secção em Vigo, a
reconstituir um fim de semana de hotel. Hora a hora, tenho o relato.
Depois disso, nada. A lista de familiares, amigos e gerentes de
bares não me chega. E tu tens qualquer coisa que me pode ajudar.»
Sequeira sorriu de novo, mas era um sorriso sem melancolia nem
bravura; apenas um sorriso que lembrava a ironia de antigamente,
de há anos, quando o mundo apresentava novidades que podiam
guardar-se em segredo. E então falou baixo e pausadamente,
enquanto juntava as peças para reconstruir o telefone com a perícia
de um técnico irrepreensível:
«Estamos velhos e, por isso, gostamos dos vícios dos outros, é
verdade. No retrato de família ela está ligeiramente desfocada,
como se não quisesse fazer parte daquela perfeição. Disseram-me
que tinha uma namorada com quem ia muito de carro a Santa Tecla
ou a La Guardia. Podes encontrá-la com facilidade.»
«E porque é que ela deixou o carro em casa?»
«Há sempre um mistério para resolveres, Ramos», concluiu
Sequeira, já com o telefone no bolso. «E outra coisa. Não que me
faça diferença, mas sempre te ajuda a perceberes como vai o
mundo hoje em dia: troca de telemóvel.»
14

FLORA ERA UMA TOCADORA DE ACORDEÃO E CONCERTINA QUE TINHA CABELO


SOLTO E DESPENTEADO caindo-lhe sobre os ombros, um piercing azul-
claro na orelha direita e estrelas tatuadas, a negro, no antebraço
esquerdo. Não havia nenhuma ideia de equilíbrio nesta distribuição
de adereços. Uma tocadora de acordeão. Jaime Ramos deu com
ela numa noite de chuva e vento tépido numa aldeia de granitos
claros e arvoredos mal desenhados, nos arredores de Caminha.
Primeiro, ficou petrificado com a música de Flora; depois, julgou que
se tratava de um adolescente — os seus jeans tinham nódoas nos
joelhos; a camisa já tinha sido, um dia, totalmente branca; e os
dedos tremiam rente ao teclado de um Dino Baffetti comprado em
segunda mão numa escola de música de Viana do Castelo. Havia
outros pormenores: o cabelo, os dentes irregulares, a voz
impessoal, o anel no polegar, as unhas roídas, o volume da carteira
no bolso de trás, as botas sujas.
Jaime Ramos chegou a Flora depois de percorrer o resto das
suas recordações em Caminha, e de tomar coragem para defrontar
uma geração em que não estava interessado e um caso que nem
sequer existia. Mas não esperava que Flora fosse como era. O seu
rosto de adolescente, com borbulhas na testa alta e sem madeixas
(tinha o cabelo penteado em socalcos, solto, cobrindo-lhe o rosto de
vez em quando) não o surpreendera. Mas a música deixara-o por
momentos sem respirar, imaginando como Béni teria passado por
aquelas tatuagens e como se teria comovido ao escutar o seu
acordeão entre os amieiros que escondiam o rio.
«Quando nos conhecemos, ela disse “pareces uma canção de
Bob Dylan”. Eu não estranhei. Pareço-me com muitas canções. The
girl from the north country. Conhece?»
«Não. Só ouço boleros.»
«Boleros.»
«Mexicanos. Los Panchos. Cuco Sánchez.»
«Eu sei. Eu também toco boleros, mas mais para aquecer os
dedos, percorrer as escalas, deixar as pessoas tranquilas antes de
tocar o que me apetece. Sentimento puro, sentimento fingido, tudo
isso. Estão outra vez na moda. É o eterno retorno.»
Jaime Ramos fingiu compreender, havia sempre lições a receber
em qualquer vila de província, e olhou em volta: estavam num café
que dividiam com mais dois frequentadores que bebiam cerveja em
silêncio enquanto a noite desaparecia entre rajadas de chuva vindas
dos pinhais. A rapariga passou a mão pelo cabelo, impaciente, os
dedos escuros, um sorriso repentino mostrando os dentes
desalinhados, marcados de tabaco:
«Porque é que a polícia quer saber como é que eu a conheci?»
«Queremos saber tudo, é a nossa profissão.»
«Já conheci vícios piores. Aconteceu-lhe alguma coisa?»
«Não sabemos dela. A família não sabe dela.»
«Só isso?»
«Eu sei que é pouco, mas ela nunca tinha desaparecido por tanto
tempo.»
«Hoje em dia as pessoas vão e vêm», Flora acendendo novo
cigarro, gestos de rapaz, batendo com o isqueiro no tampo da mesa.
«Desaparecem sobretudo quando lhes dá na gana, não quando
devem desaparecer. Ela apareceu durante um concerto, uma sexta-
feira à noite, no centro desportivo. Os rapazes de Ponte de Lima
vieram tocar e nós acompanhámos, um acordeão é como um
rastilho molhado em gasolina. E com pólvora no fim. Nunca se toca
só uma vez, nunca se toca só para preencher o programa. Um
acordeão voa, depende de como se toca, mas costuma voar às
sextas à noite. Os velhos, antigamente, tocavam concertina ao
desafio, era uma espécie de rock do Minho. Já ouviu? Os tocadores
de concertina entram em êxtase com facilidade e quase nunca
tocam da mesma maneira. Variam muito, perdem-se, dão notas que
parecem falsas onde esperamos que sigam a pauta, e depois
vemos que tudo isso tinha sentido. De modo que ela apareceu,
sozinha, com a mochila às costas, e escolheu-me.»
«Como é que isso se faz?»
«Escolher-me? É fácil. Quem me escolhe já sabe com o que
conta. Visto-me à rapaz, a princípio estranhavam, mas depois
habituaram-se.»
«O que tocaram nessa noite?»
«Boleros», riu ela. «Mas eu quase nunca toco boleros. Só para
aquecer, para dizer que sei tocar seja o que for. Nem toco canções
do Minho, nem acompanho cantadores. Toco peças completas, e eu
é que escolho as pessoas que me ouvem. Olho para elas. Sei que
estão a olhar para mim, à espera que eu repare nelas. Nunca reparo
nelas. Sei quem está a olhar para mim. Dizem que toco com
sentimento, como se diz aqui. Mas não é bem isso. Toco com
violência. Aprendi com um tio, o melhor gaiteiro de Riba d’Âncora.
Se tivesse aprendido guitarra ele teria sido um grande músico de
blues. Tocava gaita de foles e teve uma concertina de duas fileiras
com afinação em sol-dó-fá à segunda voz. Tocava tanto que morreu
de cirrose. Ele sabia o que era tocar com violência.»
Mas Jaime Ramos não sabia o que era tocar com violência, nem
conhecia o repertório de Flora. Ouvira-a tocar naquele fim de tarde,
e ficara petrificado: a certa altura, ela inclinara a cabeça para o
acordeão, que passara a ser uma extensão do seu corpo, encostado
aos seios pequenos (disfarçados pela camisa que era grande de
mais), à pele muito branca, às madeixas de cabelo escuro e
brilhante que caíam para o instrumento escondendo-lhe o rosto — e
ele percebera que Flora (vira o seu nome num dos folhetos que
encontrou sobre a mesa) improvisava quando queria, arrancando
sorrisos aos outros músicos, que a seguiam pelos caminhos das
florestas, pelos areais junto à foz do Minho, entre canaviais, porque
esses pareciam ser os lugares onde Flora se perdia frequentemente
enquanto tocava, olhando para o céu, para o teto do café, como se
visse as constelações sobre o espelho de água agora varrido pela
chuva, sempre abraçada ao acordeão, inclinada, totalmente
inclinada (um espetáculo que começava apenas pela cabeça
inclinada).
«Sabe? Desta vez fui com ela até Valença. Depois, deixei-a ir
para o Norte. The girl from the north country. Entrou na camioneta e
foi-se embora. Disse-me adeus pela janela, mas já estava a olhar
em frente.»
«Costumavam dormir juntas?»
Jaime Ramos não esperava aquela gargalhada, mas enfrentou-a
como se tivesse dito alguma coisa cómica.
«Não, não era costume, mas de vez em quando acontecia. Na
semana passada embebedámo-nos. Com cerveja, whisky e charros.
Ela queria atravessar a pé a ponte para La Guardia, mas convenci-a
a apanhar a camioneta das sete da manhã, em Valença.»
«Para onde?»
«Vigo.»
«Deixou-te alguma coisa, um papel, um número de telefone?»
«Não. Só uma ferida. Aqui», Flora apontando para o peito, onde
ela imaginava que ficava o coração.
Jaime Ramos não sorriu. Conferiu que o sentimentalismo tinha
chegado às províncias e atingido todos de igual forma, novos e
velhos, homens e mulheres, homossexuais e heterossexuais, mas
sobretudo os solitários que ficam do lado de cá da fronteira, em
Valença.
«Ela ia para Vigo, ou tinha outro destino?»
«Não tinha destino. Eu também não tenho e a vida continua. Ia
para Vigo, disse que tinha de ir para Vigo. Diga-me, a mim, o que há
em Vigo de tão importante?»
«Não faço ideia. Antigamente eu ia lá comprar tabaco.»
«A minha família tinha muitos contrabandistas, mas Vigo era
longe de mais. Oiça», ela inclinando-se para a frente, falando mais
baixo. «Não me foda. Faça as perguntas que quiser fazer-me, mas
tudo rápido. Não me foda. Quero que todos se fodam, e ela
também. Eu sou isto, o que está a ver. Uma rapariga feiinha que às
vezes parece um rapaz, quando corta o cabelo, a fufa oficial da vila.
Toco acordeão e concertina, fumo charros quando me apetece, não
tenho futuro, nem dinheiro, nem emprego, nem boa fama, saí da
escola a meio, li os livros que tinha para ler na biblioteca de
Caminha. Já passei três verões a entreter turistas e a cobrar
moedas. Portanto, faça as perguntas que quiser, mas sempre lhe
digo que ela cheirava bem. Era muito diferente das raparigas daqui,
que têm aquele cheiro que conheço desde miúda, fumo de lareira e
sabonete. Aqui têm a pele seca, o cabelo estragado e cera nos
ouvidos. Ela era um luxo, tinha uma barriguinha lisa, com um
umbigo pequeno, e só a levei até Valença. Encontrámo-nos sempre
de noite, não cheguei a ver-lhe a barriguinha à vontade, nem o
umbigo. Só deu para confirmar. Depois subi até à fortaleza e dormi
um pouco, a ver se um raio caía sobre Tui ou na estrada para Vigo.
Não houve nada disso. Um raio verde, sabe o que isso é? Vi um
filme em que havia um raio verde quando as pessoas se
apaixonavam. Mas eu dormi na fortaleza, um lugar sossegado onde
ninguém vai, foi só isso que aconteceu. Meti-me na camioneta às
dez da manhã e voltei para casa.»
«De que falaram durante a noite? Ou passaram a noite só a
beber, caladas?»
«Passámos a noite a beber. Falámos de pouca coisa.»
«Ela falou da família?»
«Só uma vez. Mas não precisava. Dava para ver que era de uma
família rica, tinha boa roupa, as unhas dos pés pintadas, e só falava
do que queria. Mas era muito nova para mim, senhor polícia. Eu só
tenho sorte com mulheres casadas há bastante tempo. Daquelas
que não têm ilusões.»
Jaime Ramos pediu a conta, pagou e escreveu um número de
telefone num guardanapo do café. Flora ficou sentada, com o
guardanapo numa mão e, com a outra, acariciando a mala onde
guardava o Dino Baffetti vermelho de botões imaculados. Parecia
ser a única coisa imaculada na sua vida.
15

EU CONHEÇO-TE, DISSE JAIME RAMOS. MAS NÃO CONHECIA. O que ele


conhecia eram aproximações, histórias que suspeitava que teriam
acontecido. Mas, de facto, não conhecia. Até agora, quase todas as
investigações encontravam gente da sua idade — e a sua biografia
cruzava-se com as que ia desenhando ao longo de semanas de
trabalho, muitas vezes moroso, muitas vezes desesperante, quase
sempre irrecuperáveis. Mas, desta vez, isso não acontecia: Béni era
uma jovem desconhecida, pertencia a um mundo desconhecido. O
inventário dos seus bens e do que deixara no quarto surpreendia-o
tanto como se tivesse chegado à Lua. Havia apenas um nome, uma
condição, uma suspeita — e, desta vez, não lhe bastava imaginar
como se construíam e desenhavam destinos, como se cruzariam
vidas perdidas: havia, simplesmente, uma vida que ele não
entendia, música que ele não conhecia (Olívia descrevera-lhe o iPod
de Béni, bem como o tipo de pessoa que ouve aquela música),
hábitos que ignorava e o surpreendiam e, sobretudo, um mundo de
que aparentemente não ia gostar (roupa desarrumada, saídas
noturnas até muito para lá da madrugada, falta de leitura, amigos do
facebook, pasta de dentes espalhada no lavatório), onde as coisas
aconteciam com muita rapidez de um dia para o outro, sem a lógica
que até aí atribuía às vidas que podia reconstituir. Sexo, por
exemplo. Na sua idade o sexo já não comandava nenhum desejo —
era o desejo que vivia independentemente de realizar-se, ou não. A
partir de certa altura, Isaltino, a partir de certa altura somos viúvos
de viúvas, somos solitários que vivem com pessoas solitárias,
pessoas simples que ignoram como chegaram até aqui. Lamento
dizer-te as coisas desta maneira, Isaltino, a ti que és crente,
católico, que acreditas na vida eterna e numa vida depois desta, e
achas que somos capazes de coisas bondosas ou que, pelo menos,
há uma recompensa para os bons, para os cordeiros que
sobrevivem às alcateias, para quem acredita no dia seguinte. Eu
não acredito no dia seguinte. Sei que haverá dia seguinte, e uma
semana depois desta — mas limito-me a sobreviver ao dia seguinte
e à semana que há de chegar, e ao medo que está para vir, e às
coisas que acontecem lá fora. É isso, Isaltino, as coisas que
acontecem lá fora.
Mas Isaltino não o ouvia nem Jaime Ramos tinha falado —
limitava-se a olhar para aquela porta envidraçada por onde Olívia
entrara. Ela poisou o capacete sobre a cadeira e manteve-se de pé
como se não houvesse outra forma de fazer um relatório sobre uma
diligência banal.
«Hotel America, chefe.»
«O que se passa no Hotel America?»
«Foi aí que ela dormiu, ou esteve alojada durante quase uma
semana. Quatro noites, cinco dias. É um hotel de Vigo, não
propriamente um hotel familiar mas um hotel onde dormem casais
de passagem pela cidade, famílias de turistas espanhóis ou
franceses, mas poucos portugueses. Ela ficou ali quatro noites,
cinco dias.»
«Sozinha?»
«Sozinha». Olívia acariciando o capacete que ocupava a cadeira
onde Isaltino de Jesus costumava sentar-se nas horas de fim de
tarde.
«E saiu quando?»
«Ontem, ao meio-dia. Hora de saída nos hotéis, mas ligeiramente
antes.» Ela consultou mentalmente um bloco de notas invisível,
como Jaime Ramos sabia que faziam os bons investigadores —
limitando-se a olhar para a janela e, através dos vidros, para o céu
ainda sujo daquela primavera. «Onze e quarenta e dois», disse
então, servindo-se desse arquivo mental.
Jaime Ramos apreciou o gesto, olhou para aquela mulher que
durante quase um ano pairara como uma penumbra na sala a dois
passos do seu gabinete sem que ele tivesse feito mais do que
pronunciar o seu nome, rubricar os seus relatórios, aceitar o pedido
de vinte dias de férias para o verão, mais uma semana entre o Natal
e o Ano Novo.
«Não saiu em nenhum voo de Vigo, não saiu em nenhum voo da
Corunha, não saiu em nenhum voo de Santiago. Há autocarros de
hora a hora para Madrid, Salamanca, Gijón e três por dia para o
Porto. Há barcos que saem para a Irlanda, Madeira, Egito e, salvo
erro, para Marrocos, mas não foi em nenhum deles. E há dezenas
de estradas. E há Vigo. Vigo, hoje em dia, praticamente não acaba.»
«E durante esses dias no Hotel America?
Ela sorriu. Uma pequena e inesperada vitória sobre aquele
homem cansado que fazia perguntas e olhava pela janela enquanto
ela debitava informações.
«Não estamos autorizados a fazer inquéritos em Vigo, chefe.»
«Nem em Vigo, nem em La Guardia, nem no adro da catedral de
Tui. Mas tu fizeste, Olívia.»
«Eu fiz», ela sorrindo de novo, procurando um maço de cigarros
invisível no bolso do blusão.
«Tenente Díaz Gómez. Guardia Civil de Vigo, amigo de um velho
amigo seu.»
«Alberico Núñez, o farol das Rías Baixas, o maior bebedor de
orujo em Corcubión, o bruxo de Finisterra.»
«Isso. Díaz Gómez, parece nome português, nome próprio Álvaro.
Albariño, como dizem os galegos da Guardia Civil.»
«Idade?»
«Quarenta e cinco. Tudo informal, se houver papéis eles seguirão
depois. Cooperação ibérica, boa vizinhança, os teus mortos são os
meus mortos, os teus desaparecidos são os meus desaparecidos.
De qualquer modo, ela esteve três dias sem praticamente sair do
hotel, salvo por períodos de meia hora, uma hora, duas, em que
deve ter ido aos cafés das arcadas, são três, junto da praça ao lado
do hotel. Digamos que à hora das refeições. No quarto dia saiu
durante mais tempo ao fim da tarde, julga a senhora da receção que
foi em passeio até à muralha diante da baía, ou ao centro comercial
de onde se vê o mar, todo o mar branco e azul de Vigo.»
Olívia não disse «todo o mar branco e azul de Vigo». Foi Jaime
Ramos que organizou — na sua cabeça — a imagem de um mar
luminoso como quase nunca era o mar profundo e frio de Vigo,
percorrido pelas ventanias, pela ondulação e pela memória dos
naufrágios que coroavam a história de Finisterra como uma ameaça
da história de toda a Galiza.
«O mar branco e azul de Vigo», disse ele então, encostado à
cadeira. «De modo que ela foi embora?»
«Partiu», Olívia confirmando, a mão pousada no capacete que
tinha assentado sobre a cadeira como mais uma peça de mobiliário
daquele gabinete que cheirava a fumo, à comida que se preparava
nos restaurantes em redor e — notou Jaime Ramos — a um
perfume leve, suave, trazido por aquela mulher que interrompera a
manhã. Reparou nas suas olheiras, reparou no seu cabelo aloirado,
reparou na copa dos plátanos para lá da janela.
«Como achas que ela partiu?»
«De autocarro, chefe, uma vez que não tinha carro. Também
podia ter ido de comboio, mas mais difícil, menos prático. Se ela
estava em fuga.»
«Ela não está em fuga. Ela faz a sua vida.»
Durante mais de meia hora Olívia fez o relatório da sua visita a
Vigo, contou quase tudo — o hotel onde dormiu, os restaurantes
onde comeu («Havia ostras?» «Não havia, chefe, eu não gosto
muito de ostras.» «As ostras de Corcubión e de Ribadeo são obras
de arte, Olívia.» «Pode ser, chefe, mas não estão na minha lista.»
«São puríssimas, frescas, escondidas no meio do mar rochoso, um
fragmento de mar arrancado à escuridão.» «O chefe saberá.» «E há
ouriços do mar, amêijoas fritas, centolo, mexilhões, um oceanário.»
«É o que dizem.»), as praças onde se sentou vendo passar os
estudantes do Politécnico, da Escuela de Lenguas e da
universidade, o modo como conheceu Díaz Gómez, tenente da
Guardia Civil, como chegaram a essa coincidência extravagante de
evocar o nome de Alberico Núñez, a forma como Olívia fotocopiou
as fotografias de Béni e como Béni passou a ser — para a Guardia
Civil — uma foragida.
«E que te disse o Díaz Gómez?»
«Que havia muitas raparigas desaparecidas hoje em dia. Já
sabemos.»
«E porque desaparecem as raparigas, Olívia, porque
desaparecem?»
«Porque a vida é curta e as raparigas querem vivê-la depressa.»
O pai ressona de noite no quarto ao lado. Os irmãos são gente
desconhecida. As mães podem ser ciumentas ou, se não forem
ciumentas, são injustas, impacientes, fazem concorrência. O
namorado é uma parte bandido e uma parte aventureiro — elas
preferem a parte bandido, a que lhes dá sexo, um pouco de droga,
um pouco de ilusão de amor, às vezes até um pouco de amor, uma
saída noturna de moto ou de carro, dinheiro no bar, a promessa de
mais aventuras. Pelo menos costuma ser assim. Deixa-se para trás
a infância, deixa-se para trás a adolescência, os livros ilustrados, a
roupa mais infantil, as férias com os avós. «E parte-se.»
«Tu fugiste de casa, Olívia?»
«Duas vezes, chefe. Uma, por causa do meu namorado da época.
Outra, por causa do meu pai. Com o meu namorado foi uma coisa
rápida, sem grandes consequências. Fomos de moto até Viana do
Castelo, bebemos cerveja, dormimos numa pensão suja, passámos
dois dias a vaguear, a pedir emprego em quintas, em lojas, em
restaurantes, e acabávamos ao fim da tarde a comer pão com
manteiga na praia do Cabedelo. Voltei para casa ao fim de uma
semana.»
«E da segunda vez? Quer dizer, por causa do teu pai.»
«Nunca mais voltei, chefe. Até hoje. Somos quase vizinhos e
passamos o Natal juntos, mas nunca mais voltei. Nem depois do
meu divórcio, como ele esperava. Mas isso foi há muito tempo,
chefe. Lembra-se da inocência, chefe?»
«Não.»
«Era uma espécie de inocência, só. Tínhamos tempo, tínhamos
paciência. Eu não tinha um filho, nessa altura. Foi há dezoito anos,
dezanove, chefe. Muito tempo. Já não tenho isso nos arquivos, já
não conta.»
Olívia levantou-se (ela sentara-se entretanto, quando, no seu
relatório galego, pronunciou pela primeira vez o nome de Alberico
Núñez) e continuava a segurar o capacete debaixo do braço. Era
um capacete negro, liso, imaculado, com viseira escura, e ficava-lhe
bem assim, debaixo do braço, notou Jaime Ramos.
«Segue-lhe o rasto, Olívia, continua a seguir-lhe o rasto.»
«Chefe. Esta rapariga sabe o que anda a fazer, parece-me. Tanto
lhe dá ser encontrada como não, não se esforça muito para
esconder-se. Fica num hotel no centro da cidade velha, sai, bebe
cervejas numa esplanada, apanha um autocarro, não disfarça nada,
ou é como se não disfarçasse porque sabe o que faz. Eu acho que
ela não fugiu nem se esconde. Limita-se a fazer a sua vida, se me
faço entender, a ver televisão no quarto, como uma adolescente
preguiçosa. Pela história que o chefe me contou, ela não fugiu por
causa do pai nem por causa do namorado. Limitou-se a sair de
casa, a ir para Vigo passar uns dias, e agora saiu de Vigo e não
sabemos para onde foi. Se quer a minha opinião, não temos nada a
ver com isso. A família quer encontrá-la, isso é uma coisa. Mas não
desapareceu, limitou-se a sair de casa.»
«É esse o problema, Olívia.»
«Qual problema?»
«O de ela não ter fugido de casa. Daquela casa. Os ricos não
fogem de lado nenhum, não fogem para lado nenhum, o mundo é
todo deles. Não têm casa. É o grande paradoxo da luta de classes
hoje em dia.»
«É capaz», disse Olívia ao abrir a porta para sair. «É capaz de ser
assim.»
Foi então que Jaime Ramos disse aquilo. Eu conheço-te. Mas não
conhecia. Olívia guardava uma penumbra no olhar, uma penumbra
para lá do mar branco e azul de Vigo.
16

JAIME RAMOS MUDAVA FREQUENTEMENTE DE ASSUNTO e isso acontecia


sobretudo durante a tarde, lá mais para o fim do dia, quando o ruído
dos autocarros varria a rua de uma ponta a outra como o anúncio
despropositado do regresso a casa de milhares de funcionários
públicos, empregados do comércio, estudantes de Engenharia,
vendedores ambulantes, cobradores de impostos, polícias
reformados, turistas de ocasião, adolescentes ruidosos,
adolescentes silenciosos, mulheres tristes que tinham acordado de
madrugada, operários de construção civil, toda a gente que
circulava de um lado para o outro e se perdia nas rotas dos
transportes públicos. Então pensava na idade, olhando para o
calendário inanimado sobre a sua secretária ou para o poster de
Teófilo Cubillas que o acompanhava há anos, de gabinete para
gabinete. Nesses anos éramos mais jovens e as tardes terminavam
lentamente: o sol decompunha-se devagar, regressávamos a casa,
pendurávamos o casaco, sentávamo-nos diante da televisão.
Alguma coisa acabou entretanto, alguma coisa que nunca mais
registámos no deve e haver, naquela contabilidade inocente das
nossas vidas.
Jaime Ramos pensou nisto porque o rosto de Irina era
impenetrável, uma espécie de desafio à sua habilidade para
arrancar confissões ou para perceber um caminho no meio dos
becos dos subúrbios.
A mulher sentou-se, as mãos no regaço, os óculos escuros, o
cabelo penteado para trás, preso por um elástico no alto da cabeça,
nem loiro, nem castanho, nem preto — apenas um cabelo de cor
indefinida, mas ele não era especialista em cores, como Rosa, que
decompunha o mundo em espectros amáveis que se distinguiam
com facilidade uns dos outros. Ela dizia que Jaime Ramos não sabia
escolher as cores da sua roupa, mas a verdade é que ele não
variava muito — jeans azuis, T-shirts cinzentas, o blusão habitual,
esta era a sua indumentária que admitia poucas variações, e o seu
dia começava, quase de olhos fechados, por fazer a barba, lavar os
dentes, tomar duche, vestir uma das T-shirts disponíveis, fosse
verão ou inverno, e abastecer o bolso interior do blusão com a caixa
de cigarrilhas, o isqueiro que Rosa lhe oferecera há dez anos, a
velha carteira de pele e as chaves do carro que raramente usava.
Irina tinha os olhos vermelhos por detrás dos óculos escuros e
Jaime Ramos passou sobre o pormenor, concentrando-se nas mãos
da mulher, pousadas sobre o regaço — um gesto de mulher mais
velha, indefesa. Trinta e seis anos, quarenta e seis, vinte e oito.
Não. Quarenta e dois. Cabelo escuro, sem cor precisa, ele
imaginava-a atrás de um balcão de loja de shopping, aguardando
clientes, mastigando pastilha elástica, fumando sob um beiral nas
traseiras, protegida da chuva à hora de almoço.
«O seu marido foi morto por uma arma soviética. Russa e
soviética. Ele dava-se com outros russos?»
«Só com o Arkady. Os outros eram ucranianos, como eu. Em
Lisboa havia mais ucranianos, mais russos, georgianos, até
bielorrussos. Eu não gostava muito de russos. Sou ucraniana.»
Isaltino de Jesus interrogara-a durante duas horas, fizera-lhe
todas as perguntas que vinham nos manuais. Depois, José Corsário
rendera-o e recomeçara, Irina tinha uma voz monocórdica, sem
demasiado sotaque.
«Que homem era o Arkady?», perguntava então Jaime Ramos.
«Que homem, como?»
«Você não gostava do Arkady?»
«Eu não odiava o Arkady.»
«Eu não disse isso. Eu perguntei se gostava do Arkady. Eu acho
que não gostava do Arkady. O Arkady era russo.»
«O Mikhail conheceu o Arkady no exército, acho que depois de
Cabul, e era uma amizade do exército. As amizades do exército não
são coisas para as mulheres entenderem.»
«Porque vieram juntos para Portugal?»
«Nós não viemos juntos para Portugal. O Mikhail e eu estivemos
quase um ano em França. Depois, viemos para Portugal. E foi aqui
que o Mikhail e o Arkady se encontraram. No Porto. Estivemos
quatro meses em Lisboa numa casa de emigrados. Aprendemos
português, eu trabalhei um mês e meio a fazer limpezas num
armazém. Eu era professora de Química e Matemática, lá, na
Rússia. E foi então que o Arkady apareceu, convidando o Mikhail
para trabalhar numa empresa de construção, de obras. Terminavam
obras mal feitas, sobretudo. Faziam reparações em apartamentos,
instalações elétricas, buracos nas paredes, tudo o que fosse
necessário. Os portugueses deixavam muitas coisas a apodrecer,
mal feitas. O Mikhail foi engenheiro no exército. O Arkady chegou a
coronel e foi desmobilizado depois de Cabul, regressou a
Murmansk. Sabe onde é Murmansk?»
«Sabemos», disse Isaltino, antecipando-se a Jaime Ramos. «No
Mar de Barents. O Arkady Tarasov era de Murmansk.»
«Então já vê.»
«O que é que uma coisa tem a ver com a outra?»
«Para si, nada, acho eu. Mas as pessoas de Murmansk têm fama
de serem duras, resistentes, trabalhadoras e cruéis. O Arkady
montou a empresa com outros russos, pagava impostos e ganhava
dinheiro. Ele tinha sido coronel. Mikhail chegara a major. Acho que
para os militares isso era importante, havia uma hierarquia. E o
Mikhail era casado com uma professora de Química. Eu era a
professora de Química que trabalhava no armazém de um
supermercado em Matosinhos. Depois, eles descobriram outro
negócio, o Arkady e o Mikhail. De dia, tratavam de obras, de noite
tratavam de bebidas. Havia mais de vinte bares de russos e
ucranianos no Porto. Iam buscar bebidas a Leixões ou a Lisboa e
distribuíam-nas de noite, e isso dava-lhes mais dinheiro.»
«E a senhora passou a trabalhar no Norteshopping», acrescentou
Isaltino, folheando o bloco.
«Por sorte. Eu falo bem português. Não era fácil ser mais
simpática do que as outras candidatas. Nem ter melhor aspeto. Nem
convencer a dona da loja. Eu era imigrante, precisava de ser melhor,
de ser mais limpa, de atender melhor, de falar melhor português, de
não me queixar.»
Jaime Ramos mantinha o seu mutismo, sentado ao fundo da
mesa, observando Irina. Vendo como ela era esperta. És esperta.
Conseguiste emprego com facilidade. És esperta, o teu marido era
um segundo personagem e tu sabias, além de que és ucraniana e
desconfias dos russos. Não posso fazer quase nada por ti, pensou
ele.
«E o seu marido e esse russo dedicaram-se a outros negócios,
finalmente.» Ramos voltando-se para ela, juntando a posição do
corpo à direção dos seus olhos. «A noite do Porto. Os arredores.
Dois militares que tinham estado em Cabul.»
«O Arkady esteve em Cabul, ele estava na primeira divisão a
entrar no Afeganistão. O Mikhail só esteve lá três meses antes de os
mandarem regressar. Acho que conservaram um certo ódio à
perestroika.»
«Dois militares que tinham estado em Cabul», repetiu Jaime
Ramos. «Conheço a impressão que isso deixa.»
«O Mikhail tinha dezanove anos.»
Jaime Ramos sabia que a primeira etapa da arte do interrogatório
servia para detetar falhas. Depois, e só depois, para reconhecer a
verdade. E, finalmente, para tentar ver quando a luz de um
relâmpago tinha entrado na pequena sala onde a escuridão reinava
como numa ordem irreparável. És esperta, Irina.
«E quando é que percebeu que o seu marido começa a ganhar
mais dinheiro? Bebidas transportadas de Leixões. Noites passadas
fora de casa. Semanas sem dizer nada.»
«Não sei nada sobre o dinheiro do meu marido.»
«Deve ter ganho muito dinheiro, livre de impostos», Isaltino
folheando um bloco onde tinha anotações de outros casos.
«Ele tem muito dinheiro? Eu não sabia. Não sei. Sou filha de um
militar, não faço muitas perguntas. O meu salário é pequeno.
Oitocentos euros e, às vezes, comissões do trabalho aos domingos
e aos feriados. É o salário de uma ucraniana. Ele deixava o dinheiro
para a casa, o dinheiro para a comida, o dinheiro para a roupa, o
dinheiro para mandarmos para a Rússia e para a Ucrânia. O meu
salário era uma brincadeira. Usava-o para mim, guardo-o no banco,
o que sobra. Sou uma imigrante.»
«Mas eles eram homens de negócios.»
«Eu só era casada com o Mikhail.»
«E ele, só era casado consigo?»
«Suponho que sim», Irina olhando Isaltino, mas reparando
naquele homem sem altura, que nunca se levantara, que fumava
uma cigarrilha e só falava de vez em quando. «Ele trabalhava muito.
Não tinha tempo para o casamento. Eu estava em casa quando ele
precisava ou quando ele não precisava. A casa tinha comida, estava
arrumada, e tinha televisão, cama, vodka, e um retrato do santo
preferido da mãe do Mikhail.»
És esperta.
«Era São Vladimir. Vladimir era um santo de Kiev, era ucraniano.»
«O seu marido viajava muito», voltou o outro polícia. Aquele que
parecia um funcionário dos correios, naquela estação de Matosinhos
de onde Irina enviava dinheiro para casa.
«Não sei muito disso. Sou uma esposa ucraniana, trato da casa e
tenho um emprego. Não tenho filhos. Agora não tenho nada.»
«Temos aqui o relatório sobre as viagens que o seu marido fazia
para o estrangeiro. Luanda, Costa do Marfim, Senegal, Itália,
Bulgária, Venezuela, mas não Rússia nem Ucrânia.»
«Não sabia. Julgava que ele ia a Lisboa ou ao Algarve levar
bebidas ou visitar clientes.»
«O seu marido tinha armas?»
«Tinha uma pistola. Está lá em casa. Ele não andava armado,
mas um antigo militar devia gostar de armas. Ele gostava de armas
e de pontes. No exército, era da divisão de engenharia, construía
estradas e pontes.»
Ela olhou Jaime Ramos de frente, como se soubesse escolher os
seus adversários, os seus inimigos e, sobretudo, as ameaças
iminentes — e vira nele uma espécie de tiranete ligeiramente gordo
a quem o cabelo ainda não faltava mas que gostava de dar a ideia
de que sabia mais do que podia dizer. Irina era uma mulher modesta
e ignorante, casada com um gangster de segunda ordem, um
Mikhail que obedecia cegamente ao mau da fita — e o mau da fita
era Arkady Tarasov, um russo de Murmansk que comandava as
operações, controlava o dinheiro e sabia de todos os negócios.
Mikhail era um pobre diabo casado com uma mulher modesta e
ignorante, e disso dependia a sua salvação, dependia a sua
liberdade e, sobretudo, dependia o seu futuro. Aquele homem
atarracado e silencioso que só falava de vez em quando, que fingia
uma inteligência que não possui, ele era a sua ameaça principal.
Irina sorriu-lhe, como se dissesse «eu sou uma pobre ucraniana
viúva e jovem, abandonada por um marido sem categoria, eu sou
uma mulher modesta e ignorante», mas Jaime Ramos (ela não
sabia o nome daquele homem) não lhe devolveu o sorriso, não lhe
devolveu o olhar, como se estivesse a observá-la por dentro e visse
o seu soutien preto, desabotoasse a sua blusa lilás, escura,
seguisse aquele fio de humidade e suor que quase de certeza se
tinha formado no peito, entre os seios. Ele parecia, de alguma
maneira, o funcionário do banco que recebia os quinhentos euros
que ela enviava para Odessa todos os meses, e a olhava para
tentar compreender de onde lhe vinha tanto dinheiro, como podia
uma ucraniana entrar no Barclays e, aos dias quatro de cada mês,
fazer o envio de quinhentos euros para a Ucrânia, mantendo ao
mesmo tempo uma conta onde o salário era depositado todos os
dias trinta e de que sobrava sempre algum dinheiro. Nos primeiros
meses, ele olhava-a por cima dos óculos e ela detetava aquele
brilho maligno de quem sabia, de certeza, que ela era uma
prostituta. Quinhentos euros em notas, mil e quinhentos ou mil e
seiscentos no ordenado mensal, dependendo das comissões. Um
dia Mikhail acompanhou-a ao banco e ela olhou fixamente o
funcionário, ao mesmo tempo que falava russo com o marido. E
nunca mais voltou a perceber a ironia do homem, que vira aquele
casal russo sair do banco de mãos dadas.
Mikhail era bonito mas tinha a pele demasiado branca e o cabelo
muito curto (mantivera-o assim desde que viera do exército). Era
uma beleza demasiado eslava, demasiado russa e demasiado
moscovita. Não era como os homens de Odessa, nem como os
homens portugueses — e, decerto, não era como aquele polícia de
meia-idade que folheava um dossier sentado ao topo da mesa,
indiferente às perguntas que os outros dois polícias multiplicavam
ao fim de duas horas, repetindo-as. Ela estava preparada para todas
aquelas perguntas. Pensara nelas durante a viagem entre
Matosinhos e a sede da polícia, pensara nelas desde a mesa da
morgue, onde identificara o corpo de Mikhail e acenara quando lhe
mostraram o rosto desfigurado de Arkady. Pensara em todas as
perguntas mas não imaginara nenhuma das respostas, como se as
soubesse todas.
E então, finalmente, um dos polícias — o negro, ela notou que
piscara o olho ao outro, o de gravata — fechou o caderno e disse-
lhe:
«Voltaremos a contactá-la. Vou acompanhá-la à porta.»
Ela pôs as mãos sobre a mesa reparando que não tremiam,
porque uma estranha calma tinha descido do céu — como acontecia
naquele pequeno ícone de Odessa em que um raio de luz caía
sobre a cabeça coberta de uma Nossa Senhora melancólica e de
olhos orientais — e a protegera durante o interrogatório.
«Não é um interrogatório», avisara-a o polícia de gravata. «Só
declarações.»
E ela declarara tudo. As amizades suspeitas de Mikhail com
outros russos, ela declarou não conhecer. Os bares da Maia ou de
Ermesinde onde Mikhail era visto de vez em quando, ela declarava
não conhecer. Uma conta bancária de Mikhail onde estavam
depositados oitenta mil euros, aproximadamente, ela declarara não
conhecer. Uma empresa chamada Porto Santo Segurança, ela
declarara não conhecer, apesar de Mikhail e Arkady serem sócios-
gerentes. Era uma mulher modesta e ignorante, e seria assim até ao
fim. Uma mulher ignorada, também. Levantou-se, ajeitou a saia com
ambas as mãos antes de pegar na carteira que tinha ficado sobre a
mesa, e olhou para a porta onde já estava o polícia mulato, abrindo-
a.
Foi então que o polícia calado, aquele que eles trataram por
«chefe» uma ou duas vezes, poisou o dossier sobre a mesa e a
olhou de novo:
«Gosta de Turguéniev, Irina Aleksandreiéva?»
Ah, ela não cairia na armadilha. Ela era uma mulher modesta e
ignorante que tocara piano na adolescência, que se apaixonara em
tempos por um jovem violinista, mas que nunca lera Anna
Akhmatova nem sonhava com os campos à volta de Odessa.
«Só li na escola», disse ela, tentando dar um passo sem tremer,
sem que se notasse que iria tentar não tremer até à porta.
«Eu gosto de Turguéniev. A senhora parece arrancada de um
conto de Turguéniev, uma heroína de outro tempo.»
«Teria de ler mais. Não tenho muito tempo.»
«Eu sei. Mas tem livros de Turguéniev em casa, no móvel da
cozinha. Não no quarto, mas na cozinha, mais à mão. Três livros de
Turguéniev, aliás, além de uma antologia de poesia russa.»
«É uma memória do meu país, seis, sete livros, é tudo o que
tenho. São livros russos.»
«Eu sei, eu sei», disse Jaime Ramos imaginando a bagagem
modesta de um casal de imigrantes a atravessar a Europa com meia
dúzia de dólares no bolso mas com espaço para seis, sete livros,
uma memória do país que deixara para trás.
17

AQUELA SENSAÇÃO VOLTOU. VOLTA DE VEZ EM QUANDO, REPETINDO-SE, SEM


AMARGURA NEM TÉDIO — apenas a sensação habitual quando chega o
momento de observar os dois corpos deitados sobre a mesa, os
russos são muito brancos, um deles tem cabelo escuro, o outro é
demasiado branco, mas aquilo que foi um corpo é apenas um corpo
depositado, e Jaime Ramos olha-o sem a paciência que dedicaria a
um caso passional, procurando uma história revelada numa cicatriz,
numa sujidade suspeita, numa espécie de marca que fica para
aprofundar os riscos sobre a pele, Jaime Ramos não compreende
os segredos sobre a morte, o seu mistério, como se a morte para
um profissional da morte fosse apenas um corpo, e foi então que ele
a ouviu, atrás de si:
«Seis projéteis, senhor inspetor, corpo de militar, tatuagens nos
bíceps, como um herói do Afeganistão, meniscos, uma trapalhadas,
ginástica, muita ginástica, duas balas antigas rasgaram-lhe uma
parte da coxa esquerda.»
«Como sabes que é um herói do Afeganistão?»
«Cabul. Está escrito Cabul aqui.»
«Como sabes? Aprendeste russo?»
«Não. Vi outros corpos exatamente assim, com uma tatuagem a
dizer Cabul, em cirílico. Não me chegaste a ensinar russo.»
«Uma falha indesculpável. Mas sou mau professor, de qualquer
modo.»
«Podias ter fingido que sabias russo», Maria Luísa olhando-o,
mas Jaime Ramos não teve tempo de acrescentar uma frase, ou de
resumir numa frase qualquer recordação sobre o romance entre os
dois, quinze anos atrás, a meio de um verão em que chovera de
mais e ela era apenas uma jovenzinha meticulosa que escrevia
autos sem erros ortográficos. «Eu não tinha dado conta.»
«Mal falo português.»
«Um dia havia uma tatuagem tão grande que tiveram de chamar
alguém para ler aquela pele toda. Tirámos fotografias, claro. Cabul,
Afeganistão, divisão tal, guerra e pátria, mãe pátria, já não me
lembro. Agora estão na moda tatuagens orientais, em japonês,
coreano e chinês. Uma frase em japonês num antebraço, uma
palavra apenas em coreano. Encontrei palavras e frases estranhas.
Um dia, um homem tinha escrito “nariz” no braço, em japonês.
Geralmente aparecem palavras como “paz”, “amizade”, “amor
eterno”, “valente”, mas nada como “esta tatuagem não significa
nada”. Foi na semana passada, um nadador salvador de Esmoriz.
“Esta tatuagem não significa nada” em japonês.»
«Mandas vir tradutores?»
«Às vezes. Geralmente já vêm traduzidas num papel, para que
possamos trabalhar à vontade. Mutilação post mortem. Gente que
tem o pénis tatuado. Os joelhos, o ânus. O que for — o que nos
chega aqui é um resíduo, uma coisa que só serve para análise e
treino dos estudantes de Medicina Legal.»
Jaime Ramos recordava as aulas de Medicina Legal, mas
esforçava-se por ser apenas um visitante acomodado aos dados
que lhe eram fornecidos como no mapa que ele teria de seguir, ou
não, até encontrar a sua própria explicação.
Passava já o tempo em que, como há vinte anos, quinze, por
exemplo, ainda havia um diálogo entre ele e os cadáveres que
supunha estarem à sua guarda. Finais de tarde tépidos ou
enevoados, noites solitárias — ele acreditou, em tempos, que um
cadáver lhe abriria as portas da verdade. Muitas vezes desistira.
Muitas vezes voltara atrás, convencido de que um diálogo com a
morte fora interrompido por uma distração a que não sabia dar o
nome mais conveniente.
«É como os grafitti, meu caro inspetor. A criatividade não tem fim,
sobretudo se for entregue a gente com tempo suficiente para nos
incomodar. Tens novidades?»
Ele poisou a cigarrilha sobre o canto de uma mesa de inox onde o
corpo de um dos russos fora depositado e folheou o relatório que a
médica lhe entregara.
«Está desinfetada», disse ela, apontando para a mesa.
«Imaginei.»
«Tem aí uma dificuldade, senhor inspetor. São seis disparos. Mas
só cinco deles de uma arma. Houve um sexto, na mesma altura,
mas de outra arma porque apanhei munições diferentes. Estão ali
os projéteis, as balas. Cinco mais uma, no caso desse homem mais
velho. Dois disparos, mais um, no homem mais novo, o que estava
no porta-bagagens. Munições diferentes quer-me parecer que
significam armas diferentes.»
«Já falaste para a balística?»
«Tem o seu tempo. Vai demorar uma semana.»
Seis projéteis. Mas só cinco deles foram disparados de uma
Browning HP para liquidar Arkady Tarasov. Mais três disparos para
Mikhail Polianov. Dois projéteis. Falta um. Jaime Ramos faz contas
de cabeça, subtrai balas e acrescenta-as aos corpos abandonados
de Arkady e Mikhail.
Nove por dezanove. Nove milímetros, como gostavam os
militares, preparados para alvos imóveis a vinte ou trinta metros.
«Há muito tempo eu não via munições destas», voltou ela,
enquanto arrumava papéis numa gaveta ao fundo da sala.
«Um clássico.»
«Balística não é comigo. Hoje em dia variam muito as armas do
Porto, há um mercado muito volátil.»
«Parece de museu.»
«Mesmo assim são nove tiros, contados um a um, de que só
temos oito projéteis.»
«Pode ter sido um atirador sentimental, um assassino que leva
sempre uma bala de recordação. Para o seu museu particular.»
«Um assassino sentimental não tenta queimar a vítima.»
Jaime Ramos acenou. Concordava mas sabia que não
concordava. Arkady Tarasov tinha sido alvejado seis vezes ao
volante do carro, só depois fora algemado ao volante e regado com
gasolina. E, mesmo aí concordava e sabia que não concordava
porque o pequeno depósito de gasolina encontrado perto do carro,
na base de um pinheiro, contivera apenas três litros no máximo.
Para incendiar o carro seria necessária mais gasolina distribuída
pelos assentos do carro, à frente e atrás. E também no porta-
bagagens onde fora encontrado Mikhail Polianov. Ele sabia que a
intenção não era a de incendiar o carro ou de queimar os corpos,
pelo menos o de Tarasov.
Reconstituição, disse Jaime Ramos em voz baixa: seis disparos à
queima-roupa, mãos algemadas ao volante, gasolina, um fósforo,
janelas do carro fechadas. Mas nenhuma gasolina no rosto, no
cabelo, no peito — apenas nos pés, nas pernas, nas mãos, no chão
do carro, no banco do lado. Nada de gasolina no banco de trás.
Nenhuma gasolina no porta-bagagens onde Mikhail Polianov já
estava morto, de certeza, porque não havia fumo nos pulmões,
nenhuma sujidade de cinza — apenas três disparos contra um
homem nu e provavelmente indefeso que não sabia que ia ser
morto. Nenhum vestígio de luta, como se alguém lhe dissesse
«despe-te e mete-te no porta bagagens, isto é uma partida entre
amigos, um pequeno castigo, nós não somos mafiosos russos que
decepam as mãos dos adversários ou dos traidores, é só uma
brincadeira, vamos meter-te despido na mala do carro e, depois,
imagina, vamos mandar-te sair a meio da Avenida da Boavista, vais
bater o recorde dos cem metros, russo branquinho, que lindas
tatuagens tens, entra devagar, vamos prender-te os pulsos com fita
adesiva, guardamos as algemas para momentos mais nobres, a
polícia vai gostar de ver um russo branquinho a correr pela avenida
abaixo, ou pela avenida acima, logo de manhã, as mãos atadas com
fita adesiva, entra depressa.» E ele entrou.
E foi então que soou o primeiro disparo, o segundo, o terceiro.
«E tu, russo caladinho, leva agora o teu amigo para casa,
entrega-o à mulher com os nossos cumprimentos.»
E foi então que, de novo, soou um primeiro disparo, e depois mais
cinco.
Uma Browning HP tem catorze munições disponíveis, ainda
restam cinco, uma na câmara, quatro no carregador. Falta a
gasolina, apenas a necessária para dizer que todo o carro podia ter
ardido mas que a ideia era a de deixar o rosto de Arkady Tarasov
intacto, ou quase, só as mãos totalmente queimadas, como se um
bando russo se tivesse encarregado da operação e lhe tivesse
decepado as mãos, num castigo fatal acrescentado às seis balas
alojadas pelo corpo, ou cinco balas mais uma entre as pernas. Mas
quem quer que tenha disparado a Browning não gasta todas as
munições. Há uma bala diferente.
A médica prometeu voltar daí a dois minutos quando o telemóvel
de Jaime Ramos zumbiu no bolso do blusão.
«Não roubes nenhum deles», ela muito séria.
Jaime Ramos conhecia-a há anos, ela fora uma espécie de
iluminação naquele edifício que aprendera a conhecer como a
antecâmara de todas as despedidas, as que o deixavam
melancólico e as que o deixavam na mesma, as que o deixavam
desperto e as que lhe lembravam que havia um preço a pagar por
quase nada e que muitas vezes achou preferível vender a alma se a
alma fosse para ali chamada. Mas isso fora há muito tempo, quando
a alma se podia dispensar temporária ou definitivamente. Agora,
quase dobrados os sessenta, Jaime Ramos sabia que tinha
esquecido muitas coisas, que tinha perdido muito de si, e que — no
fim de contas — não tinha gozado suficientemente a vida.
O zumbido do telefone continuava. Retirou-o do bolso do blusão e
viu que era Isaltino de Jesus. Desperdicei a minha vida com mortos
que não me pertenciam. Fiquei mais velho e mais desapontado.
«Chefe. Encontrámos o carro do russo. Do mais novo.»
«As coisas acontecem quando menos se espera», comentou ele.
«Conheces alguém na balística? Alguém com sentido de humor.»
18

JAIME RAMOS VOLTOU A TER MEDO. UMA SENSAÇÃO NOVA DESDE QUE
ACABARA A GUERRA. Nada, nem a doença, as intempéries, o silêncio a
meio da noite, as palpitações da taquicardia, lhe tinham provocado
medo. A sensação era nova e, a princípio, não tinha medo. É isto o
medo? Mesmo quando — há um ano apenas — estivera internado
num hospital, relegado para o fio da navalha, esmagado por
diagnósticos que nunca entendera (a hipertensão, que não
conhecia, o excesso de trabalho, que não conhecia, o esforço do
coração, coisa que julgava uma metáfora, uma imagem boa para
quem escrevia poemas), não era medo que sentira. Talvez tivesse
sentido a proximidade da morte; mas aprendera a lidar com ela
como uma ausência, um problema sem solução, uma
inevitabilidade, a única inevitabilidade. E, mesmo nessas
circunstâncias, a morte dos outros habituara-o a encará-la como um
degrau no caminho para outra coisa qualquer.
Rosa acompanhara-o nesses dias em que estivera no hospital.
Ele conhecia a doçura da gratidão, sabia que a gratidão faz nascer
qualquer coisa mais forte. Não conhecia o amor, nunca falara de
amor, nunca pronunciara as palavras que vira no cinema, nos livros,
nos outros, porque não gostava de repeti-las; ele estava grato a
Rosa, sorria quando ela entrava no quarto do hospital e lhe trazia
jornais, uma empada de galinha, cartas que tinham chegado à sua
caixa de correio, um disco novo para ele ouvir durante a noite. Por
vezes, ela adormecia no pequeno sofá onde as visitas se sentariam,
ao lado da cama. Ele ficava desperto, olhando-a, reparando como
uma ruga nascera naquele rosto, como novos fios de cabelo branco
tinham aparecido, como as mãos ficavam pendentes sobre o corpo
adormecido. E o tempo passava sem ruído. Depois, um dia, uma
tarde, uma noite, falaram sobre a idade — a idade não é o tempo
que passou; é o tempo que resta. Nem assim sentiu medo. Jaime
Ramos sabia o que era a gratidão. Sabia o que era a insónia, e a
maior parte das suas insónias tinha a ver com o medo e com o
medo da morte, mas nunca confessaria esse deslize ideológico. Ele
também sabia o que era a chuva de verão. O que era a madrugada.
O que era a proximidade da morte, afinal de contas. O que era a
idade. Mas o medo só chegara agora, subitamente, como a
passagem numa estrada deserta a caminho do Norte, entre florestas
ardidas e rios que tinham desaparecido.
Olívia partira há uma semana para Vigo e o resultado tinham sido
duas mensagens no telemóvel. Primeiro: «Cheguei de manhã. Ainda
não tenho notícias.» E depois: «Vou ficar mais um dia. Não há
notícias.» Depois, sim, voltara ao Porto, ao terceiro dia. Entrou no
seu gabinete ao fim da manhã, olheiras profundas, escuras, num
rosto de mulher indiferente, os cabelos presos num rabo de cavalo,
o blusão de motard, a mochila ao ombro como uma extensão do
corpo:
«Ela esteve em Vigo. Mas já não está. Ou então Vigo mudou
muito no último ano.»
Jaime Ramos pedira-lhe para fechar a porta, esperando que se
sentasse. Ela ficou de pé, a mochila descera entretanto do ombro
para o braço, fletindo uma perna, encarando-o como se esperasse
uma reprimenda.
«Eu faço um relatório por escrito.»
«Neste assunto não há relatórios por escrito.»
«Eu fiz tudo.»
«Ela pode ter mesmo saído para outra cidade», Jaime Ramos
como se a consolasse por uma desilusão.
«Pode. Mas devia haver um rasto.»
Olívia sentou-se finalmente, abrindo a mochila, de onde retirou o
seu caderno vermelho:
«Hotel America, cinco noites confirmadas, estive lá. Não deu nas
vistas. Do Hotel America parti para todos cafés, cervejarias e
restaurantes das redondezas. Esplanadas. Ela esteve em duas das
esplanadas da zona velha. Bebeu cerveja numa e café noutra.
Sempre sozinha. No hotel perguntou onde eram os autocarros, esse
é o dado mais importante. E há autocarros para todo o lado, Madrid,
Corunha, Porto, Santiago, Barcelona. E aviões.»
«Porquê aviões?»
«Porque pode ter apanhado um avião. Mas não me parece. Quem
fica no Hotel America não apanha aviões, nem para o Brasil.»
«O Brasil é uma boa hipótese.»
«Tinha de ir a Madrid primeiro. Para o Brasil não há voos de
Santiago, nem de Vigo.»
Jaime Ramos pensava no assunto enquanto uma estrada
imaginária o levava até Valença e de Valença, sem ter dado conta, a
Tui, e de Tui a Vigo por uma estrada conhecida de mais para lhe
conceder surpresas. Ele era capaz de tudo na sua vida pessoal.
Cozinhava nos fins de semana, levava o lixo à rua (e, três vezes ou
quatro por ano, subia ao apartamento de Rosa para recolher o dela),
sabia fazer música com as garrafas de vinho na mesa, abria
garrafas de cerveja com o isqueiro, anotava coisas absurdas num
bloco que perdia ao longo do ano e reencontrava no bolso de umas
calças usadas e velhas, na mochila dos apetrechos da pesca ou no
meio de livros que desistira de ler. Mas agora olhava para aquela
fotografia. Havia uma fotografia, Jaime Ramos não sabia quem
eram as pessoas nem conhecia a cidade, mas um homem e uma
mulher simulavam uma dança diante do fotógrafo, ou dançavam
diante do fotógrafo, as pernas direitas erguidas como se
dançassem, e ambos riam. Só depois soube que a cidade se
chamava Sumbe, e que ficava algures em Angola. Angola era longe
de mais. E Sumbe era mais longe do que imaginava. Era onde
chegava a sua geografia.
19

FOI AO FIM DA TARDE: «VAIS TER DE FAZER UM DAQUELES TRABALHOS,


ISALTINO.»
Isaltino voltou-se para Jaime Ramos e compreendeu que tinham
chegado a um beco sem saída. Só nessas circunstâncias ele
recorria aos seus serviços, aquele trabalho que tinha de ser feito
fora das regras habituais e que, com toda a probabilidade, não
entraria em nenhum relatório oficial nem nas notas que anexariam
aos processos que depois seriam enviados para o tribunal.
«Os russos, chefe, os russos só nos dão problemas.»
«Tu gostas dos russos, Isaltino.»
«Mas o chefe é que os apaparica. Escritores russos, músicos e
comunistas russos.»
«Turguéniev. Tolstói. Dostoievski. O Turguéniev nunca me deu
problemas.»
«Eu gosto dos russos que não nos dão problemas, como gosto
dos portugueses que não nos dão problemas. Mas o pior dos
problemas com os russos é que eles estão habituados a lidar com a
polícia. Onde nós estamos, eles já estiveram, em matéria de polícia,
claro está. O Arkady Tarasov era militar.»
Isaltino pousou o lápis das palavras cruzadas. Era um hábito
diário, logo a seguir ao almoço: as palavras cruzadas do jornal.
Periodicamente queixava-se sobre a qualidade dos problemas, que
tinha baixado, repetindo-se muito, recorrendo às dificuldades
habituais.
«Estão cada vez pior, chefe, cada vez pior. Já não há palavras
cruzadas como antigamente.»
«O mundo está perdido, eu sei. Escreve ao diretor, Isaltino. Ele há
de compreender.»
«Uma carta ao diretor, isso sim. Senhor diretor, as palavras
cruzadas do seu jornal estão a perder qualidade e atribuo isso à
falta de cuidado dos seus colaboradores. Mais ou menos isto,
chefe? Todos iam rir-se, lá no jornal.»
«Diz de outra maneira: e atribuo isso à decadência dos costumes,
à perda de sentido patriótico, à falta de brio dos autores dos
dicionários mas, sobretudo, à decadência dos costumes. Eles
gostam quando se fala da decadência dos costumes. Ficam
preocupados. A decadência dos costumes é um bom tema para
explicar a falta de qualidade das palavras cruzadas. Daí passa-se
para o crime, a corrupção nas altas esferas, a permissividade e
rapidamente se volta para a crise na gramática.»
«A crise é financeira, chefe. Deve ter lido.»
«Mas também está na gramática. Eles gostam disso. Um leitor
anónimo fala na crise da gramática, acrescenta a degenerescência
dos complementos diretos, a falta de cuidado nos adjetivos. Eles
apreciam.»
«Não me sinto bem a escrever “degenerescência”.»
«Escreve “decadência”. Uma coisa deste género: senhor diretor,
tenho assistido com pesar à crescente perda de qualidade dos
problemas de palavras cruzadas do seu jornal. Atribuo isso à
decadência da gramática, ao desinteresse das nossas elites e à
falta de cuidado com a nossa língua, a última flor do Lácio. As
jornalistas casam com filhos de ministros e isso compromete a
independência do quarto poder. Tenho verificado, toma nota,
Isaltino, vai tomando nota, tenho verificado com espanto os nomes
das jornalistas que assinam as reportagens do seu jornal e constato
uma decadência da própria sociedade. Há, inclusive, jornalistas
chamadas Vanessa, o que diz bem da nossa decadência cultural e
cívica. Os leitores têm todo o direito a interrogar-se. Mas não te
esqueças da última flor do Lácio. Eles não sabem o que é a última
flor do Lácio.»
Jaime Ramos parou e iniciou outro dos seus rituais preferidos
diante de Isaltino de Jesus, procurando charutos nas gavetas da
secretária.
«Tomei nota de tudo, chefe. Também me apetecia falar dos erros
na lista de farmácias de serviço.»
«Aproveita, é sempre bom. Farmácias de serviço é um bom
tema.»
«Já não há os horários dos comboios, os resultados da terceira
divisão ou das distritais só aparecem à terça-feira, já não há aquele
quadro com a partida dos navios do porto de Leixões, os preços dos
produtos agrícolas no mercado, há menos anúncios sobre gente
desaparecida. Desapareceu de casa dos seus pais.»
«Já ninguém quer saber.»
«O chefe ri-se de tudo isto.»
«Somos gente inadaptada, Isaltino. Gente de outro mundo. Tu és
dos raros cidadãos que ainda lê os jornais e se interessa pela
partida de navios, pelo horário das marés ou pela necrologia.»
«Os horários das marés ainda vêm no jornal. Mas a necrologia
não tem dignidade nenhuma hoje em dia.»
«É tema de outra carta, vai anotando. A verdade é que morre
cada vez menos gente importante, daquela que tem sete ou oito
nomes para cabeçalho do anúncio. Para isso, eu compro jornais
espanhóis. Têm coluna de tauromaquia e pelo menos duas páginas
de necrologia.»
«O chefe gosta de touradas?»
«Não sei, nunca fui a nenhuma, mas gosto da coluna de
tauromaquia. É uma maneira de me defender dos vegetarianos»,
disse ele, sabendo que era a hora de almoço. «Os jornalistas,
Isaltino, andaram na universidade, fazem parte de um grupo
elevadíssimo de juízes das nossas vidas, sabem o que é melhor
para nós, desde o consumo de legumes até em quem devemos
votar como uma imposição de decência e de bondade. Sabem tudo.
Quem é o melhor ponta de lança do futebol espanhol e para onde
vão os nossos impostos. Sabem tudo. Assustam-me muito.»
«E o trabalho que me vai encomendar, chefe?»
«Esquece os russos, Isaltino. Temos a equipa a deslindar os
russos, e não convém distraí-los. Quero outra coisa. Um trabalho
que só pode ficar entre nós, e que tens de fazer com cuidado.
Dissimulação, Isaltino, dissimulação. É esta a nossa divisa.»
«A quem o diz.»
«Desta vez trata-se de uma dupla dissimulação. Preciso que
acompanhes à distância as operações de um dos nossos. Que te
ponhas no lugar dessa pessoa. Que a sigas, que vejas com quem
ela se encontra, que compares o inquérito que ela está a fazer com
os relatórios que entrega ou com os resumos que me faz.»
Isaltino tamborilou com o lápis no caderno preto da Papelaria
Emílio Braga e abandonou-o ao seu interior, marcando uma página
que nunca seria preenchida. Encostado na cadeira, lançou um olhar
de relance para a porta e verificou que estava fechada:
«O chefe desconfia de alguém?»
«Não. Só preciso de ter uma certeza.»
«E quer dizer-me que certeza precisa de ter?»
«Não me parece, Isaltino. Essa pessoa não faz nada de ilegal ou
de criminoso. Não traiu, não nos enganou, não mentiu. Mas pode
não ter contado tudo.»
«E se não é com os russos, pode saber-se com quem é?»
«Esse caso que nos entregaram à margem dos inquéritos. Um
desaparecimento, tu sabes.»
«Olívia.»
«Olívia.»
«Olívia é a nossa melhor peça. A mais cumpridora, a heroína da
casa, aquela que nunca falha.»
«Por aí começa o meu medo.»
«Conte-me tudo.»
«Tudo não sei contar, mas o essencial é como se segue. Toma
nota.»
«Antes que venha a trovoada, chefe, antes que venha a
trovoada.»
20

COQUEIROS SOBRE A PRAIA DE AREIA AMARELA. NÃO DOURADA, COMO NOS


ROMANCES — amarela, ocre, suja de poeira que vinha das encostas
onde se escondiam aldeias isoladas ao longo da estrada que subia
na direção das roças. E, àquela hora da tarde, alguém que passava
a correr na marginal ladeada de dois passeios esburacados de
velha calçada portuguesa. Miguel dos Santos Póvoa era apenas um
engenheiro magro e desengonçado que chegara há três meses a
São Tomé e tinha medo de trovoadas e de insetos, as duas coisas
que mais havia na ilha: trovoadas de novembro, com relâmpagos
iluminando a linha do mar e o som dos trovões ribombando às
primeiras horas da madrugada ou ao fim do crepúsculo, quando os
poucos candeeiros da avenida se acendiam como luzes de
presença numa aldeia triste; e insetos que vinham com o calor, o
anúncio das tempestades, a noite profunda de África, os cheiros de
podridão e esgoto que nunca deixava de respirar nos arredores da
cidade, em charcos que perduravam de uma chuvada a outra ou
nos recantos das ruas mais escuras.
Mas agora via-os com uma nitidez especial que nunca
experimentara antes. Coqueiros sobre a praia de areia amarela,
debruçados sobre a linha de água que subia na maré cheia e
arrastava lixo, espuma esbranquiçada e restos de cocos que tinham
sido esventrados e abertos a machado. Coqueiros sobre a praia
amarela, pensou de novo, enquanto expirava a derradeira baforada
de fumo — e alguém passava a correr na marginal deserta.
Encostou-se a um dos coqueiros e desenhou argolas de fumo no ar
rarefeito e húmido dos trópicos. E pensou em Cândida, em Dulce,
em Eva, em Idalina, em todas as mulheres que entretanto
conhecera em São Tomé. Dormira com algumas delas. Recordava o
perfume de Eva, que era magra — como ele — e usava o cabelo
curto. O de Dulce, que tinha uma tatuagem minúscula entre o ombro
e a omoplata, uma lagartixa azul que gostava de beijar quando ela o
recebia no alpendre da casa, no Bairro do Rosário, e lhe servia
cerveja. O de Cândida, maduro como um fruto doce a amadurecer
num bosque onde a linha do Equador deixara um rasto de sexo e de
vinho de palma. O de Idalina, o mais perfeito, apesar do nome — o
de uma tia embrulhada num xaile à porta de casa —, que fora a
primeira das suas mulheres portuguesas de São Tomé e o levara de
barco à outra ilha, ao Príncipe, onde finalmente percebera que a sua
vida mudara de repente, sem que ele esperasse tamanha bênção.
Mudara a sua vida de repente e aquelas mulheres não sabiam.
Ainda havia Paula, mas Paula era negra, conheceram-se num baile
de rua, na Praça de Maio, dançaram (ela dançou, ele deixou-se
arrastar através da calçada irregular, um braço em volta da cintura
da rapariga, a mão direita a segurar a cerveja, como faziam os
homens de São Tomé), fumaram liamba, ele tomara pau-em-pé, ela
despiu-o devagar, chamou-lhe «branco maluco», olhou para ele,
magro e moreno, e depois, enquanto corria os cortinados da janela
do quarto de hotel:
«Vamos para a cama e amanhã casas comigo.»
Ele ficou imóvel, surpreendido, à defesa, e ela desatou a rir, a
cabeça para trás:
«Descansa. Eu não caso com um branco.»
E então pareceu-lhe que estava prestes a adormecer, e lutou para
se manter acordado, ativo como um pobre garanhão branco a
defender a honra de uma espécie em vias de extinção, ouvindo a
música que entrava pela porta da varanda, ouvindo a chuva que
caíra de repente (por isso a música interrompera-se durante uns
minutos, enquanto a água escorria pelos telhados), como sempre
acontecia, ouvindo os sussurros e os risos de Paula, que eram
novos na sua vida, ouvindo a cama a ranger porque eles rebolavam
um sobre o outro, e Paula arranhava-o devagar, deixando-lhe sulcos
na carne, entre as omoplatas, e então — tão subitamente como
acontecera no princípio de tudo — deixara de chover e uma paz
estranha tomou conta dele e arrastou-o para longe, para muito
longe, onde não havia infância, nem trovoadas, nem insetos, nem
ruído do mar, e tudo se resumia a Paula, que se levantou para
fechar a janela e ir buscar cigarros, e não havia mais nada. Essa foi
a grande mudança, a de que se apercebera na ilha do Príncipe: não
havia mais nada. Para além disto não havia mais nada. E então
Paula falou em inglês, estranhamente, I’ll take care of you, como se
fosse o princípio de uma canção que ouvira há tempo suficiente
para que apenas servisse de encenação para uma história de amor
que nunca aconteceria. Take care. E ele adormeceu ainda a tempo
de sentir que Paula se afastava da cama e se dirigia para a porta do
quarto, ainda nua. Dormiu dez horas seguidas e só voltaria a vê-la
dois dias depois, na mesma praça onde tinham dançado pela
primeira vez e onde dançaram de novo antes de ela partir para
Luanda.
«O que fazes em Luanda?»
«Não faço nada em Luanda. Faço em São Tomé, em Lisboa, em
Madrid, em Lisboa outra vez, mas nada em Luanda. Luanda é onde
está a minha casa. Trabalho fora de casa.»
«Para o governo?»
«Para quem calha.»
Mas Miguel dos Santos Póvoa era apenas um engenheiro magro
e desengonçado que chegara há três meses a São Tomé, que
arrastava uma mochila castanha para onde quer que fosse e que,
aos quarenta e quatro anos, vivia numa casa ao lado do edifício
tosco da embaixada de Taiwan. Encostara-se a um dos coqueiros
sobre a praia de areia amarela e deixou-se cair devagar,
lentamente, até ficar sentado no chão ligeiramente húmido.
Descalçou-se, acendeu o cigarro que guardava no bolso da camisa
e marcou um número no telemóvel. Ouviu o sinal de chamada e,
segundos depois, uma voz que o fez sentar-se sobre o chão de
areia.
«O meu engenheiro dos trópicos», ouviu dizer.
«Ele mesmo. Ah, doutor, descobri um exemplar único, nunca me
tinha passado pelas mãos uma coisa assim.»
«De que género?»
«Da mais pura. Sativa misturada com Cannabis Indica entre
bananeiras e fruta-pão, a uma altitude média de quinhentos ou
seiscentos metros, com grande humidade. Híbrida. Folhas de seda,
um luxo. A liamba dos príncipes. Não sei quem a plantou, mas é
uma orquestra na minha cabeça.»
«Uma orquestra?»
«Completa. Como numa ópera. Violinos na base, e depois oboés,
trombones, fagotes, violoncelos, tímpanos, harpas. E flautas.»
«Estou a ver.»
«Acho que não», disse Miguel dos Santos Póvoa, sorrindo,
enquanto uma ondulação mais forte lhe chegara aos pés, molhando
as calças e os pés nus, «acho que não consegues ver.»
Do outro lado, ao telefone, pensou, ele não podia ver a mancha
de neblina que descia sobre a cidade polvilhada de pontos
luminosos, amarelados, aqui e ali, enquanto a escuridão dos
trópicos se deixava manchar de humidade.
«Vou daqui a quinze dias.»
«Traz uma amostra», ouviu-o dizer, interrompendo o redemoinho
de memórias. «Mas deixa a orquestra aí.»
21

O REDEMOINHO DE MEMÓRIAS PODIA COMEÇAR COM LUÍS, O COLECIONADOR


DE LIAMBAS. Mas não era apenas o colecionador de liambas — era o
organizador de Cannabis Sativa, o investidor discreto, o empresário
de primeira linha, o antigo camarada de armas, o antigo
companheiro de quarto, aquele mais silencioso sobre o qual não
sabes nada, não conheces o passado, não conheces a família.
Sequer o nome de família. Luís. Luís Ferreira, nome vulgar, como
Cannabis Sativa, marijuana se és quem és, suruma se passaste em
Moçambique, maconha se viveste no Brasil, liamba se te lembras de
Angola. Luís Ferreira é o colecionador de todas elas. De resto, à
distância, é uma casa alta, de granito e mármores gastos,
escadarias, jardins, varandas sobre a copa das árvores. Luís
Ferreira é o colecionador de liamba. Por toda a casa há música que
vem de lugares inesperados, jazz se te sentas na sala de estar de
paredes vermelhas onde um quadro (aprenderás mais tarde o nome
do autor) transforma em pecado toda a luz, harmonias barrocas se
te aproximas de uma estufa onde se servem jantares com
escritores, cineastas, pintores, atores, gente que escreve em jornais
e onde, depois da sobremesa, circulam cigarros perfeitos de erva
tropical. Luís Ferreira é o colecionador de maconha. E há pianos
flutuantes, harmoniosos, se passeias pelos corredores de buxo que
levam aos jardins onde luzes ténues, junto da base das árvores
(uma tília, uma faia, uma araucária gigantesca, olmos, freixos),
iluminam pessoas discretas que surgem de portas inesperadas, de
caminhos que vêm do labirinto de sebes, arbustos altíssimos,
perfumes de flores importadas da Indonésia ou do México e que
aguardam por ti em vasos de argilas claras. Luís Ferreira é o
colecionador de liambas.
Só um dia, mais tarde, meses mais tarde, és admitido em casa —
um jantar em que flutuas como um intruso tolerado, és apresentado,
dizem o teu nome, Miguel dos Santos Póvoa, uma mão no ombro
esquerdo, servem-te uma flûte de champanhe enquanto te sentas
sob um alpendre de onde vês, por uma fenda na sebe que
acompanha o muro, a vasta baía onde o mar é apenas um
pormenor com uma fortaleza quase desfeita pela ondulação de dois
ou três séculos. Só um pormenor entre uma fortaleza que se
esboroa com os anos e o salitre, uma montanha do outro lado da
baía, a copa de eucaliptos que ninguém recorda, pinheiros
altíssimos, dunas que acompanham todo o litoral até à foz de um rio
largo e limpo e azulado. Mas é de noite, dizem o teu nome, Miguel
dos Santos Póvoa, enquanto pessoas sobem a escadaria de
granito, uma preciosidade do século xvii, ladeada de azulejos
restaurados nos últimos trinta anos. E, então, o nome de Luís
Ferreira leva a companhia de mais dois apelidos que reconheces
daqui e dali, da tua memória, dos negócios do petróleo, da banca,
do imobiliário — e da arqueologia dos reis de Portugal,
representados nas paredes da casa (um solar, ouves dizer mais
tarde, a expressão é talvez «um solar de família») onde retratos a
óleo, espalhados pelas salas, nos corredores, nas antecâmaras,
mostram rostos que podiam vir nos livros, e vêm, e podiam ser
reconhecidos, e são.
Luís Ferreira veste uma T-shirt esverdeada, com nódoas e fios
puxados ao acaso, calça havaianas, está despenteado, a barba por
fazer, sorri, sorri sempre. Não é o mesmo Luís Ferreira que te
contratou há seis meses para trabalhar numa empresa de
prospeção de petróleo cujo nome não vem nas listas das maiores
empresas e cuja página na internet é um modelo de discrição.
Nessa altura, nesse dia, Luís Ferreira veste como um cavalheiro
inglês — sempre o conheceste assim, bem vestido, os sapatos
imaculadamente limpos, as camisas Turnbull & Asser feitas à
medida e guardadas em cabides com varetas em prata para
proteger os colarinhos, as gravatas da Casa Marinella cosidas à
mão, os fatos John & Jones ou Poole & Co, o sobretudo Gives &
Hawkes em lã mélton, a escova G. B. Kent & Sons cujas cerdas
naturais são preparadas de acordo com cada tipo de cabelo, os
botões de punho, a coleção de atacadores para sapatos. Tudo isso,
tal como a página da empresa na internet, é um modelo de
discrição. Os ricos não precisam de mostrar nada. Nem a família,
nem os carros, nem o casarão — escondido entre o arvoredo,
invisível para quem passa na estrada.
Nesse fim de tarde ele conhece a irmã de Luís Ferreira: alta,
esguia como um dos olmos do jardim, loira, olhos verdes, cabe num
vestido preto que podia soltar-se só com olhar, e é para ele que
olhas, para o vestido que molda um corpo moreno que também
flutua como tu flutuas enquanto não seguem todos para a mesa de
jantar, uma mesa de doze metros a que se sentam sem ordem nem
lugares marcados enquanto três criados vestidos de branco circulam
transportando travessas, vinhos, copos, empurrando cadeiras,
falando ao ouvido de Luís Ferreira, o colecionador de liambas.
Ensopado de palmito em copos de shot, uma coroa de caril de
legumes rodeada de crepes de lagosta, suavíssimos, camadas
delicadas de atum braseado que se colhem com um garfo de dois
dentes para não ferir a carne avermelhada, vinhos claros, ou
densos, ou quase impercetíveis, ou quase brutais, servidos
permanentemente — e então a irmã de Luís Ferreira, esguia como
um olmo, oferece-te um cigarro, acende-o para ti, aspiras o primeiro
fumo, percebes do que se trata. Há um perfume que passa das tuas
narinas para o ar abafado da estufa onde a mesa de jantar está já
limpa, os pratos recolhidos sem que ninguém tivesse dado conta,
chávenas de café, cinzeiros, copos onde se servem digestivos
discretos, alguém pede champanhe de novo. A liamba é forte e o
odor deixa de ser proibido para passar a ser dominante em toda a
sala cujas paredes são hibiscos, begónias, roseiras, magnólias
anãs, trepadeiras que ferem o teto e escondem o céu estrelado de
julho por entre folhas de palma que vêm do escuro. A irmã de Luís
Ferreira passa a sua mão direita pela tua perna esquerda, aquela
que treme daí a trinta segundos, aguardando que a operação se
repita, e repete, enquanto seguras o cigarro cujo filtro ostenta um V
dourado, e percebes que é o V de Vasconcelos, porque Luís
Ferreira é também Vasconcelos, um dos apelidos que escondera
durante os quatro anos de faculdade, mais os cinco de amizade
tranquila, discreta, fácil, telefonemas aqui e ali, até seres contratado.
Grande dia, o dia do contrato: assinas o papel, uma cláusula de
confidencialidade, um prémio anual, cartão de crédito, telefone,
cartões de visita já impressos (Miguel dos Santos Póvoa, Chief
Researcher — um dia, mais tarde, terias um novo cartão onde
estava escrito Senior Adviser), cartão de milhas — prateado, para já
— da companhia aérea, mas espanta-te a cláusula de
confidencialidade, embora assines.
«És solteiro, convém que continues por mais um ano. Aos trinta e
seis anos és solteiro, esse é um dos pontos a teu favor, o que te dá
disponibilidade para viajar, trabalho sem limite horário e escravidão
quase garantida», Luís Ferreira ri enquanto explica. «A partir de
agora fazes parte de uma família.» Brasil, Indonésia, Gabão,
Nigéria, Angola, Rússia, Argélia, México, Venezuela. Tudo isto será
teu, e ainda o gás natural da Bolívia e as putas da Costa do Marfim
numa viagem de negócios inaugural em que acompanhas um antigo
general que conhece dois ministros e é esperado num aeroporto de
uma cidade no meio da floresta — um Porsche Cayenne preto à
disposição, um motorista branco, refrigerantes nos bancos de trás,
um hotel silencioso onde não chega o ruído da cidade. As putas
virão depois, é uma lição que vais aprendendo. Sobre tudo isso,
uma cláusula de confidencialidade. Os ministros sentam-se nos
sofás, vestem fatos escuros, falam francês, tratam o antigo general
por general, e o general apresenta-te: Miguel dos Santos Póvoa,
Chief Researcher, especialista em prospeção de petróleos, dois
anos e meio em Angola, na Sonangol, um ano na Petrobras, dois
anos numa refinaria, um ano num laboratório americano
desmantelado depois de uma tempestade chegada das Caraíbas ter
destruído a plataforma onde vivia há quase quatro meses com uma
clavícula fraturada e uma coleção de romances de espionagem,
solteiro, natural de Angola, onde nasceu em fevereiro de 1974,
universidade em Lisboa, especialização na Escócia e na Noruega,
onde conheceu pouco mais do que Stavanger. Área: geologia,
petróleos. Melhor nota no liceu: Matemática. Melhor nota na
faculdade: Petrologia Sedimentar. Paixão: tirando outras,
Matemática. Aos vinte e cinco anos, especialização em
petroquímica. Paixão que manteve: Matemática. Além disso: jogos
de estratégia, vida subaquática, mergulho, rock, curiosidades de
geografia (possui vários atlas, mapas, cartas marítimas, uma
coleção de livros de viagem», como notava o relatório entregue a
Luís Ferreira dois meses antes da assinatura do contrato).
Os ministros (um deles usa óculos) sorriem e assinam onde o
general lhes sugere que o façam. Eles fazem, acabam de delimitar
uma área de várias milhas do campo de pesquisa petrolífera e falam
de segurança. No dia seguinte, Miguel dos Santos Póvoa, Chief
Researcher, e o antigo general, irão de Yamoussoukro para Abidjan,
onde ficam alojados no Hotel Intercontinental. Há poltronas de
bambu diante de uma piscina escondida entre palmeiras, bebidas
servidas ao fim da tarde, o general é discreto e estende os mapas à
sua frente numa mesa da varanda e aponta uma área.
«É aqui. Começamos na próxima semana, com uma equipa que
vem do Gabão. Brasileiros. Mas hoje à noite temos dois russos para
jantar.» Miguel dos Santos Póvoa gosta de matemática e de jogos
de estratégia, e sorri, olhando o que restava daquele mar
esbranquiçado e perto do equador. «Você vai depois de amanhã
para Lisboa e volta daqui a duas semanas, instala-se, já tem o seu
contacto, e entrega relatórios diários.» Foi a última vez que viu o
general em funções na empresa. Ouviu falar dele mais tarde, a
propósito de operações de resgate de uma equipa de engenheiros
na Venezuela, ou acerca de uma reforma definitiva e generosa
numa cidade brasileira de que esqueceria o nome porque a cláusula
de confidencialidade incluía a necessidade de manter segredo sobre
os postos de repouso dos guerreiros daquela tribo. Mas nem o
nome lembrava — dizer «general» bastava. Fora o seu primeiro
chefe, aquele que lhe deu ordens diretas numa varanda do hotel de
Abidjan. E fora ele que lhe lembrara esse princípio, as putas vêm
depois. Para memória, era o que bastava.
Às vezes Miguel dos Santos Póvoa tem dificuldade em voltar
atrás, a esse jantar em que Luís Ferreira o abraça pelos ombros,
enquanto estão sentados diante do jardim e o puxa para lhe mostrar
o resto da casa — escadarias de granito, retratos em molduras
vencidas pelo tempo, salões desabitados, um quarto voltado para a
serra, o seu quarto, o escritório repleto de livros, livros, livros, e
aquele anexo ao escritório, uma divisão transformada em sala de
fumo, com humidificadores onde pensa encontrar charutos. Mas em
cada humidificador há marijuanas diferentes, colheitas diferentes,
liambas com origens diversas, catalogadas, anotadas, datadas e —
mesmo no centro da sala — uma máquina, onde em pontos
diferentes se juntam as misturas de tabaco (java, turco, latino) com
Cannabis Sativa, o papel, o filtro e, no fim, um pequeno tapete onde
vão caindo, sucessiva e lentamente, cigarros perfeitos onde o papel
do filtro leva um monograma, a letra V. Luís aproxima-se de um dos
humidificadores, escolhe uma erva picada na palma da mão, junta-
lhe tabaco que retira de uma caixa de madeira, introduz a mistura na
máquina e espera a saída do cigarro. E um brilho no olhar, enquanto
se aproxima da janela aberta sobre o telhado do alpendre onde
estiveram há pouco, apontando o céu claro de julho.
«Esta paisagem, meu engenheiro de eleição, esta paisagem é
uma bênção de Deus, misturada com mar, com o cheiro da resina,
com o fumo de uma erva da Costa Rica. Desde há anos que
coleciono erva, um pouco de cada parte do mundo e tu, meu
engenheiro, vais viajar por todo o mundo. Portanto, em cada parte
do mundo vais procurar as ervas mais raras, da Índia à Bolívia, da
Turquia à Austrália, o que significa fazeres um pouco da minha
felicidade. Serás o meu fornecedor mais precioso, alimentarás um
vício proibido e simples.»
22

AS PUTAS VÊM DEPOIS. Naquela noite em Abidjan, estávamos em 2008,


comeu uma delas em plena pista do aeroporto deserto e escuro. O
mundo mudava devagar, dizia Luís Ferreira, mas ainda assim era
preciso chegar primeiro do que os outros ao lugar onde as coisas
começavam a anunciar uma mudança, sobretudo no caso do
petróleo, do gás natural, das barragens construídas em África. Havia
dois engenheiros russos sentados no outro lado da mesa, camisas
brancas de manga curta e calças de sarja, muito usadas, cabelos
claros, um inglês cheio de sotaque e de erros de gramática. Um
deles usava uma caneta Montblanc no bolso da camisa e tinha os
dentes amarelos, era disso que se recordava. O outro falava pouco
mas era quem tomava as decisões e sussurrava ao telemóvel, em
russo, em frases curtas e sereníssimas, de quinze em quinze
minutos, à medida que o general se lembrava de uma plataforma a
construir, de prospeção, de segurança e de transferências
bancárias. Miguel assistia apenas e, por isso, tinha tempo de
observar os dois russos com quem jantariam na varanda do
Intercontinental. Um deles fora militar e estivera no Afeganistão
como soldado resgatado através das montanhas geladas do
Noroeste, enquanto de Moscovo chegavam ordens de retirar, retirar,
retirar totalmente.
«Pobre Rússia», disse ele.
O general riu:
«Mas agora é rico e dedica-se aos negócios, coronel. Sente falta
dos blindados, da guerra, do cheiro do óleo, da poeira?»
«Não. Sinto falta da Rússia como ela era. E dos homens que
combateram um pouco por todo o lado, no Afeganistão, em África,
na Ásia, na fronteira com a Coreia, no Pacífico. Essa grande Rússia
ardeu», e fez um som estranho, o de uma explosão à distância,
ouvida para lá das grandes planícies geladas da Sibéria, para lá das
montanhas que protegem Alma Ata, enquanto se servia de vodka e
bebia sem retirar os olhos de Miguel.
«E você fez serviço militar?»
«Não. Sou um engenheiro. Um geólogo, para ser mais correto»,
Miguel respondeu depressa de mais.
«Um técnico», esclareceu o general, como se quisesse resumir e
encerrar a conversa.
«Estive em Angola», disse o russo. «Em 1976 e 1977. Saí de
Angola a correr, nessa altura, e só parei em Cabul dois anos depois.
Era uma cidade bonita e cheia de lixo, com cafés ocidentais e gente
que nos odiava. O mundo odeia os russos até certa altura. Depois
vê como nós éramos um mal menor e como era importante haver
uma Rússia forte.»
«Uma União Soviética», sorriu o general.
«Uma Rússia. Tudo era Rússia. Depois de Estaline, tudo era
Rússia. Acabaram-se os georgianos, os ucranianos, os arménios,
toda essa gente. Havia a Rússia porque as pessoas tinham
saudades da Rússia. Nós sempre quisemos um czar, uma família
imperial, um luxo que ultrapassasse o luxo do Ocidente, os retratos
da família real britânica. Era a Rússia. Hoje não há Rússia. Não há
nada. Há ódio aos russos, mas os russos já não podem defender-
se. São uma democracia.»
Ele fez um esgar de repulsa pela palavra «democracia». Ficaram
um instante em silêncio, depois o coronel cantarolou baixinho,
debruçado para os dois portugueses enquanto enchia de novo o seu
copo de vodka, olhando-os sem pudor, como se esperasse que eles
desviassem o olhar, derrotados, mas o general não pestanejou,
fixando aquele par de olhos frios e azuis.
«É casado, coronel?», perguntou então.
O russo riu, um princípio de gargalhada. Levantou o copo,
olhando o general através da bebida branca que equilibrava entre os
dedos, sem oscilar:
«Fui casado. Mas não sei nada da minha mulher há muitos anos.
Vi-a pela última vez em Moscovo. Deixei-lhe tudo o que pude ter na
Rússia. Um BMW, um apartamento, o filho, os discos de ópera, até
as fotografias das campanhas militares, que ela já queimou de
certeza. No apartamento havia uma fotografia emoldurada de um
soldado soviético, fardado de verde, das Spetsnaz, as forças
especiais. Deixei-lha ficar. Era o meu retrato dois meses antes de
entrar em Cabul. E o senhor, general, é casado?»
«Fui. Sou viúvo. Quase todos os portugueses são casados. É um
vício. No meu tempo de militar a sério, quando havia guerra aqui,
em África, nós casávamos antes de partir.»
«Combateu em África?»
«Angola e Guiné.»
«Eu podia tê-lo morto se nos tivéssemos cruzado em Angola.»
O general sorriu, ele sorria raramente e, quando o fazia, usava
apenas um dos cantos da boca, economizando os músculos faciais:
«Não me parece, coronel. Eu saí antes de o senhor chegar a
Angola. Quando o senhor chegou a Angola, a minha guerra já tinha
terminado há algum tempo. Lá, em Portugal, havia uma revolução
que a sua maravilhosa Rússia apoiava. A minha guerra tinha
terminado, tínhamos retirado e tínhamos deixado o caminho aberto
para que os russos fizessem o que tinham a fazer. Portanto, mesmo
que tivesse boa pontaria, e não duvido que a tivesse, as suas balas
não eram para mim.»
«Não duvide. Eu era um bom atirador.»
«Matou muita gente?»
«Em Angola?»
«Em Angola e noutros sítios, já que o senhor é um viajante.»
«Pouca em Angola. No Afeganistão já me parece que houve mais
gente, havia frio, estávamos sozinhos, não havia câmaras de
televisão, era a nossa última guerra, toda a gente sabia que era a
nossa última guerra. Depois fomos mandados para trás, retirar,
retirar, retirar. Perestroika. Lembra-se da perestroika?»
«Nós também fomos mandados para trás, retirar, retirar, retirar.
Deixámos Luanda, deixámos Bissau, deixámos África.»
«Agora voltou, general.»
«Voltamos todos, mais tarde ou mais cedo. Uma colónia é uma
colónia, mesmo se declarar a independência. Do Afeganistão, o
senhor voltou para onde, coronel?»
Miguel dos Santos Póvoa nota esse cuidado extremo nas formas
de tratamento. Coronel, general, coronel, general, dois antigos
militares colocados frente a frente e longe dos seus campos de
batalha, depois de todas as guerras, regressando sãos e salvos até
um alpendre de onde observam os estragos, onde armazenam os
troféus, onde jogam uma partida de xadrez.
«Não voltei. Mandaram-me para Rogachevo. Não conhece. Uma
base militar no Norte da Rússia, a caminho do Polo. Seis meses de
férias em Rogachevo são seis meses de inferno, era uma espécie
de desmobilização forçada. Bebíamos, assistíamos à perestroika
pela televisão, ao fim do comunismo, ao fim de tudo aquilo que
conhecíamos e que tínhamos defendido. Fomos educados para
defender o comunismo. Depois do comunismo veio a Rússia.»
«Finalmente, a Rússia.»
«Não a Rússia. A velha Rússia, pois alguns julgavam que iria
regressar a velha Rússia. Mas não. Era a democracia, e a
democracia não tinha nada a ver com a velha Rússia. Os russos,
general, os russos nada têm a ver com a democracia. Bebem muito,
sonham muito, têm saudades do czar. Ou há czar ou há comunismo.
Ou comunismo com czar. Saúde.»
Ergueu o copo de vodka outra vez. Havia mosquitos vindos do
lago do hotel, uma brisa muito leve que trazia cheiros estranhos, de
fruta estragada e de esgotos longínquos. Foi nessa altura que o
general se voltou para o outro russo e lhe perguntou:
«E o senhor, engenheiro?»
«Ah, Mikhail Aleksandrovich é quase mudo», esclareceu o
coronel, rindo.
Mas ele falou:
«Eu sou engenheiro. Só fui militar de passagem. Engenheiro do
exército. Fazia pontes, levantava muros, construía estradas de
emergência a meio do inverno.»
Tinha retirado a esferográfica Montblanc do bolso da camisa e
rabiscava distraidamente nas folhas de um bloco, fumando Camel
sem filtro. Nessa altura havia Camel sem filtro, mas também havia
aqueles cheiros da noite que irritavam Miguel e o acompanhavam
durante os primeiros tempos de África.
«Filho de russos, russos de Leninegrado, nascido na Geórgia, em
Senaki. O meu pai era militar, um comandante do glorioso Exército
Vermelho. Estive três meses em Cabul, trabalhei na Geórgia até à
separação da Rússia, depois fui para uma das novas repúblicas
explorar petróleo para entregar à Rússia. Azerbaijão. E não tenho
saudades de nenhuma Rússia.»
«Com quarenta e poucos anos não se sente falta de grande coisa,
engenheiro.»
«Não. Não sinto falta da Rússia. Vivo no Porto. A Rússia é uma
confusão, e eu não estou interessado em discutir a história do
comunismo», disse ele afastando a cadeira e fazendo sinal de que
ia à casa de banho.
Mas o general sorria, como se aquele espetáculo de um russo
cansado da Rússia o divertisse, e antes que ele se voltasse na
direção da saída, perguntou:
«E o senhor, engenheiro, o senhor é casado?»
Mikhail Aleksandrovich semicerrou os olhos e apagou o Camel no
cinzeiro que já não era despejado há algum tempo:
«Sou casado com uma mulher russa, é a única coisa que trouxe
comigo da Rússia.»
«E tem filhos?»
«O mundo muda, general. Os russos de hoje já não têm tantos
filhos como os nossos avós. Sobretudo os russos expatriados», e riu
muito alto, como se os russos expatriados o divertissem muito. Mas
era um riso amargo e tão fingido como as paisagens dos quadros
pendurados nas paredes do restaurante — um rio entre montanhas,
uma cascata, uma mulher dançando solitária em cores de aguarela
suave, pastel, desfazendo-se. E o engenheiro russo saiu da sala,
deixando-os em silêncio, o general sorrindo na mesma, o antigo
combatente de Cabul olhando melancolicamente o copo de vodka,
Miguel dos Santos Póvoa tentando adivinhar o que havia por detrás
do sorriso do general.
O mundo mudava devagar, dissera-lhe Luís Ferreira, inclinado
sobre a varanda do solar minhoto, segurando um cigarro de erva e
apontando para o mar. O mundo é feito de pequenos momentos de
glória, feito de pequenos crimes, de ambições ignoradas. Miguel
nunca o esqueceria ao longo dessa noite, depois de o general ter
recolhido ao quarto, atravessando o hall do hotel como se
marchasse diante de uma tribuna de marechais, vigilantes e
austeros, cobertos de medalhas, em continência durante um desfile
militar. Ficou com os russos mais um tempo. Eles tinham requisitado
três mulheres e uma suite, mas as coisas não correram bem para o
coronel, a quem coubera um duo que o abraçara à saída do bar (era
meia-noite e meia), porque daí a pouco expulsou uma delas, aos
berros, pelo corredor fora. Para evitar o pequeno escândalo
previsível, Miguel saiu do seu quarto e acenou à mulher, uma jovem
mulata a quem tinha sido apresentado nas escadas do bar.
«Pauline, je m’apelle Pauline. Bonsoir. Et vous?», ela tinha uns
dentes brancos e tristes.
Miguel não lhe disse o nome, apenas lhe sorriu e desejou boa
sorte em francês, vendo Pauline desaparecer no corredor em que a
voltaria a vê-la daí a pouco; ela estava apenas em roupa interior
quando o coronel a empurrou para o corredor e fechou a porta com
estrondo, gritando em russo. O português acenou, Pauline entrou no
seu quarto e, daí a pouco, vestida com uma T-shirt comprida de
mais, que fazia de vestido, aceitou beber um whisky e fumar
marijuana. Deitaram-se sobre a cama.
«Ele não conseguiu. Não havia maneira de conseguir e ficou
furioso», explicou ela, pele de caramelo, pequena e assustada.
«E a tua amiga?»
«Ficou lá. Ele só não conseguiu comigo.»
«Leva-me a passear, tenho um carro lá em baixo», Miguel
vestindo-se, de pé, de costas para Pauline.
Daí a meia hora estavam junto da pista do aeroporto deitados no
banco de trás do carro, depois no chão de terra, depois sobre o
capô. Um avião começara a mover-se lentamente, lá ao fundo.
Entraram no carro e esperaram que o avião levantasse voo e
passasse mesmo sobre eles. Miguel adormecera sobre o ombro de
Pauline que, entretanto, procurava roubar-lhe a carteira. Mas ele
deixara-a no quarto, previdente e manhoso.
23

SIM, É VERDADE QUE O QUARTO CADÁVER DEMOROU DOIS DIAS A SER


DESCOBERTO mas era previsível que aparecesse da forma como foi
encontrado — já a iniciar a decomposição, como um farrapo
abandonado. Também era uma mulher e o inspetor olhou para mim
e disse-me que era melhor chamar os peritos, um nome que damos
aos comparsas, que é, por seu lado, o nome que damos a uma
equipa que transporta o ácido sulfúrico com que elimina os
cadáveres incómodos sem deixar rasto. Eu costumo dizer isso, mas
não é verdade: nós temos o dever de conservar os cadáveres, de
lhes dar um destino e de explicar o seu aparecimento. Ninguém traz
ácido sulfúrico, ninguém faz desaparecer cadáveres incómodos,
pelo menos na nossa profissão. Na verdade, nós fazemos aparecer
cadáveres. A equipa com que eu trabalho é uma espécie de fábrica
de mortos; não teríamos sentido se não fossem eles; não teríamos
trabalho se as pessoas não se matassem; não existiríamos se não
houvesse cadáveres; finalmente, não seríamos tão odiados se não
houvesse fabricantes de cadáveres. Mas isso é uma explicação de
que toda a gente desconfia. Neste, como em outros casos, suspeito
que é melhor contar as coisas desde o princípio, disse Olívia.
Eu, por exemplo, gosto de ficar em casa uma ou duas noites por
semana, ela acrescentou. Há coisas a arrumar, se bem que o
apartamento seja pequeno — a minha zona preferida é a varanda,
que dá para uma rua silenciosa onde nunca se passa nada.
Precisamente o contrário do resto da minha vida, onde se passam
muitas coisas que não deveriam passar-se. Cultivo plantas banais
na varanda, em vasos que fui comprando ou que me ofereceram;
quando as pessoas não têm paciência para escolher um presente
para me dar (no dia de aniversário, no Natal), oferecem-me um vaso
com plantas que eu depois arranco e substituo por outras. Uma
mulher deve gostar de plantas, de flores, de vasos, de varandas
com plantas e flores. Eu cumpro o papel e comporto-me como uma
mulher que sabe o seu lugar. Mas não sei. Na verdade, a minha
casa (um quarto, outro quarto, uma sala, uma cozinha, uma
varanda, pouco mais) é grande de mais em certas ocasiões,
sobretudo no inverno.
Às vezes durmo na sala, num sofá que deve ter sido herdado de
várias vidas anteriores — é azul, tem contornos de ramagens
brancas, um friso de heras desenhadas a lápis, e caibo nele deitada
e de pernas esticadas. Um metro e sessenta e oito, exatamente um
metro e sessenta e oito, a que correspondem sessenta e seis quilos
vigiados por uma balança que devia ter destruído e que me foi
oferecida por um homem que se julgava meu namorado. Ele era
loiro, magro, andava de bicicleta pelas ruas da cidade ou nos bairros
dos arredores, fazia dieta regularmente e preocupava-se com o meu
bem-estar físico e mental. Isso era muito aborrecido porque o meu
bem-estar físico não tinha nada a ver com o meu bem-estar mental.
A verdade é que ele era um homem bonito de mais, o que veio a
tornar-se muito desagradável com o tempo, como de costume
acontece com os homens muito bonitos. Era uma beleza muito
definida: um rosto muito barbeado, roupas perfeitas, T-shirts que lhe
assentavam bem, camisas brancas, cabelo loiro (eu já tinha dito) e
pele bronzeada. Saí com ele durante vários meses e eu ficava bem
naquele quadro: sempre me achei um pouco desajeitada, um pouco
gorda para os padrões de beleza apresentáveis e não sabia
caminhar — mas ele dava-me confiança e acho que equilibrava a
minha timidez ou a minha falta de jeito. Gostava da forma como
passava a mão pelas minhas costas e a deixava, depois, a brincar
com as omoplatas, como subia para os ombros e, finalmente, como
dormia suavemente, com uma respiração quase inaudível, sem
ressonar, sem se mexer muito ao longo da noite. Fazia um sexo
bom e delicado — e adormecia quase sempre depois de mim, o que
é uma raridade. Mas ele amava-se muito a si próprio. Tive saudades
dele quando, mais tarde, encontrei um namorado que vivia numa
rua pequena perto da Cordoaria, na Rua do Breyner, e que
assobiava canções brejeiras enquanto cozinhava massa. Ele fodia
bem, ensinava-me a foder como uma profissional, descobri o que
eram orgasmos sucessivos e para que serviam as várias partes do
corpo. Tinha um pau duro e muito eficaz, uma espécie de orgulho da
família, e eu gostava disso, mas incomodava-me sentir saudades de
Guilherme, o namorado esteta que continuava a telefonar-me uma
vez por semana, quando o passeio de bicicleta se interrompia à
entrada de Matosinhos ou, do outro lado, junto ao Marégrafo, para
saber como eu estava ou, às vezes, para me relembrar — sem o
dizer — que sexo e despreocupação não eram tudo na vida. Eu
compreendia, mas tinha um passado a respeitar e, nesse passado,
a história com Guilherme fora uma interrupção, um intervalo, um
desvio. Mas ele não sabia.
O problema é que eu gostava muito da minha varanda, que dava
para uma rua onde não se passava nada e onde eu cultivava
plantas de exterior como uma mulher de trinta e oito anos devia
fazer. Era essa a minha idade há exatamente um ano. Ontem fiz
trinta e nove anos e descobri que do pequeno rebento de marijuana,
na varanda, tinha nascido um pequeno braço, o que significava que
daqui a uns seis meses podia colher-se, secar um pouco num
armário do quarto e — com toda a probabilidade — fumar-se. Isso
era um grande marco na minha existência.
Na altura, Guilherme, o namorado esteta, loiro e maníaco no
combate ao excesso de peso (ele recomendava-me saladas frescas
e legumes cozidos em vapor), ficou chocado com a natureza do
meu trabalho. Investigar homicídios não era propriamente uma
tarefa simpática, maravilhosa e perfumada que pudesse apresentar-
se no intervalo de uma das noites de concerto na Casa da Música:
«A minha namorada investiga homicídios.» Na altura não imaginava
que isso faria de mim uma pessoa popular, porque os ricos, as
pessoas que se vestiam para ir a concertos, os que debitavam em
simultâneo nomes de família e genealogias de firmas comerciais,
esses gostariam de conhecer o outro lado e eu estava no outro lado,
naquela fronteira que eles imaginavam mas que só atravessavam às
escondidas. Daí a uns tempos, Guilherme casou com uma
professora de História de Arte de uma universidade dos subúrbios,
mas continuava a telefonar-me ou a enviar-me e-mails. O namorado
semimarginal que me servia mojitos e me fodia sobre a mesa da
cozinha detestava a polícia e achava que todos os polícias podiam
arder no inferno, coisa que eu aceitava, porque sabia o que era o
inferno. Os homens são muito previsíveis. As mulheres são muito
imprevisíveis. O inferno é o que é.
Numa tarde de sábado em que eu estava de folga, Vítor, o
namorado semimarginal, levantou-se da cama — um estrado de
madeira assente sobre o chão e onde o colchão nos abrigava
durante uma noite por semana — e sentou-se à janela a enrolar um
cigarro. Acendeu-o e senti aquele perfume amargo e proibido a
espalhar-se pelo quarto. Eu estava nua e gostava de fumar aquela
liamba mal seca, guardada num frasco do armário da cozinha.
Fumámos os dois, eu tinha enrolado uma toalha à volta do corpo;
tardes de verão, eu pensei. Depois, deitámo-nos e senti uma ereção
boa e saudável a crescer de encontro às minhas pernas. Então, ele
fodia por cinco ou seis minutos assim, deitado sobre mim, abrindo
as minhas pernas, segurando-me pelos tornozelos — até trocarmos
de posição, até passarmos a outra e depois a outra posição, até que
eu me vinha primeiro e ele logo de seguida, como se fosse a atitude
de um cavalheiro que mostrava muito boa educação em todas as
circunstâncias. Daquela vez eu sentei-me sobre ele e cavalguei
durante algum tempo até sentir que a tarde do Porto (estávamos em
junho, e a primeira vaga de calor tinha chegado, partido e
regressado) merecia um orgasmo daqueles, triunfais, ele dizia que
eu gritava mas nunca me dei conta, e desabei, praticamente
desabei sobre ele, esperando que ele gozasse finalmente.
Ficámos assim uns minutos, em silêncio. Ele era meigo nestes
momentos, reacendia o charro ou oferecia-me um cigarro, ia
preparar outro mojito, mas eu nunca sabia se me apetecia prolongar
a ocasião, o momento, o sabor e o cheiro do sexo. E então — acho
que de repente — levantei-me, saí pelo meu lado da cama e disse-
lhe «obrigada».
«Obrigada» disse eu, e saí do quarto para me vestir na casa de
banho, que nunca fora um modelo de limpeza e onde nunca me
sentira muito bem. Eu fazia bem o meu papel e o meu papel era o
de uma mulher burguesa e de trinta e oito anos que gostava de sexo
e de liamba, mas que apreciava uma casa de banho limpa.
Quando voltei ao quarto, já vestida (jeans, T-shirt, ténis amarelos
e mochila ao ombro), ele perguntou:
«Obrigada porquê?»
«Sou uma pessoa bem-educada», eu disse. Mas agora vou-me
embora. Eu não disse «mas agora vou-me embora», mas podia ter
dito. Ele era suficientemente imbecil para não se preocupar com o
assunto.
De facto, Vítor nunca mais me procurou e eu sonhei algumas
vezes com ele. Eram sonhos curtos, sensuais, eróticos e tristes.
Terminavam sempre com a imagem do entardecer da Foz. Eu tinha
trinta e oito anos e podia voltar para Guilherme, que me aguardaria
como ele era de facto: um homem bom, educado, viajado e culto e
que se divorciaria da sua historiadora de arte a fim de preparar o
caminho — que era longo — para a minha felicidade. Mas eu não
merecia. Ele era um homem que precisava de amor, de solidão e de
uma família, tudo em simultâneo, o que era difícil de encontrar nas
doses ideais. Era um homem muito bonito, José Guilherme, que
nunca se zangava e raramente faltava aos seus deveres, que
cuidaria do meu filho sempre que estivesse em casa e que facilitaria
as coisas quando elas estivessem difíceis. Acontece que eu tinha a
minha varanda e, dois anos depois, eu sabia, a pequena plantação
de marijuana, escondida por detrás de duas roseiras e de um tufo
de fetos altos e densos, teria de ser substituída definitivamente. E
não queria perder aquele momento. E depois outra plantação havia
de brotar, multiplicar-se e ser útil. Era o destino de todos. A minha
cabeça podia esperar.
Portanto saí do bairro de Vítor e nunca mais voltei. Apanhei um
táxi (tinha deixado a moto em casa, previdente) e fui para casa
decidida a repensar o meu destino. Até hoje. A varanda recebeu
uma pintura nova no princípio do verão do ano passado. Nuno, o
meu analista, o mais barato da lista que as minhas amigas tinham
reunido, continuava a dizer que eu tinha um problema com o meu
pai. Foi um ano igual ao anterior, que já tinha sido igual ao anterior,
durante o qual eu já tinha saudades de uma série de coisas que não
me tinham ainda acontecido, e se teriam agudizado os problemas
com o meu pai, tanto mais que o meu filho Bruno não me dava
esses problemas porque não vivia com o pai. Foi um ano normal. A
minha carreira ia bem e o meu chefe ouvia-me uma vez por outra, o
que, no seu caso, era uma novidade. As pessoas continuavam a
matar-se com alguma regularidade e, portanto, eu teria sempre
trabalho. Em caso de necessidade, teria sempre pilhas de reserva
para usar nos dois vibradores que tinha comprado numa sexshop de
Madrid, há dois anos, no intervalo de uma investigação.
Também continuava a folgar aos sábados, o que me permitia
arrumar a casa, lavar a roupa, cuidar das plantas na varanda e
almoçar com o meu filho num restaurante do bairro. Aos domingos
trabalhava quase sempre, o que me permitia evitar aquela
melancolia árida e cheirosa dos bairros em redor da minha casa.
Saía de casa de manhã cedo, depois de verificar que Bruno já tinha
chegado e estava a dormir sozinho (o que me deixava tranquila),
tomava o pequeno-almoço na esplanada (três mesas e nove
cadeiras voltadas para os autocarros que passavam) da pastelaria
habitual, em frente de uma igreja cujas portas estavam sempre
abertas para a missa das famílias, e lia o jornal da casa. Chá preto,
uma torrada, uma empada de galinha — era essa a minha dieta
dominical antes de um café com açúcar e dois cigarros.
Então, estava pronta para começar o trabalho e ficava admirada
por não engordar mais do que o habitual entre setembro e maio. O
terceiro cigarro, esse, acendia-o ao volante do carro enquanto
atravessava a cidade, junto da Avenida dos Aliados ou da Rua da
Restauração, dependia, ou só à porta da polícia, quando vinha de
moto. Aos domingos eu queria um céu cinzento e húmido, mas tinha
pouco jeito para a meteorologia. Na verdade, eu tinha pouco jeito
para as coisas evidentes — os movimentos dos astros, a
deslocação das nuvens, o cheiro das primeiras gotas de chuva. Aos
trinta e oito anos isso não é muito importante e parece um exclusivo
de gente sensível e romântica que acha que a natureza da
humanidade não é a de dormir num apartamento no meio de uma
cidade. Mas esse mundo da natureza nunca me entusiasmou o
bastante. Gostava do jardim interior e abandonado do Museu
Soares dos Reis, da luz do Douro aos sábados à tarde, quando
passeava em Massarelos, da planta de marijuana que crescia na
varanda, dos passeios ao longo da Foz, entre velhos que desciam
para apanhar sol e adolescentes que namoravam nas línguas de
areia entre os rochedos. Mais do que isso, eu desconhecia. A minha
natureza era essa.
Não a do meu filho, Bruno, que gostava de passeios pelas serras
e estudava geografia. Ele tinha nascido quando eu tinha dezanove
anos e me considerava preparada para o que era fundamental na
vida de uma mulher: casar, ter dois filhos, assistir à infância deles e,
depois, à adolescência, antes de me entregar ao dever de cuidar de
uma família. O meu pai continuou a alimentar todas as zangas que
podia e a minha mãe decidiu que deviam voltar às origens, a uma
aldeia perto de Vila Praia de Âncora, onde chovia muito, onde havia
hortas, ruas onde o vento espalhava a areia da praia e — que eu me
lembre — montanhas alinhadas no horizonte oposto ao do mar. Daí
chegavam notícias de tios e primos que viviam felizes e cumpriam
os deveres de tios e de primos, como casar, morrer, ter filhos,
adoecer gravemente. Para ser mais exata, as coisas foram assim:
Bruno nasceu em agosto, os meus pais recolheram à aldeia em
janeiro do ano seguinte e eu separei-me do pai de Bruno em maio
porque ele tinha um destino para cumprir e eu era uma mulher chata
e ciumenta. Estava enganada; ele tinha um destino para cumprir
(coisa que eu desconhecia) e eu era, apenas, uma mulher que não
tinha encontrado nenhum destino porque nada no meu passado o
recomendava desde a infância, a adolescência, a primeira fuga de
casa, numa motorizada e com um namorado que nunca tinha ido
além de Viana do Castelo. A gravidez, por outro lado, tinha feito de
mim uma mulher muito amarga e indisponível, com um grande
défice de imaginação para o sexo e um sentimento de perda que me
iria acompanhar por muito tempo. Eu não acho a gravidez uma
coisa nem simpática nem benigna. O corpo fica deformado, a má
disposição transforma-nos em seres caprichosos e difíceis de
contentar, a ideia de transportar um filho empresta-nos uma
arrogância quase religiosa — e, para cúmulo, também nos obriga a
mentir sobre a felicidade que se sente durante essa temporada. Os
homens fazem poemas sobre a gravidez e as famílias enternecem-
se muito com a ideia de terem descendentes. Eu não sou uma
pessoa romântica nem sensível, ao contrário das famílias que ficam
românticas e sensíveis quando nasce uma criança. Bruno nasceu
amado por todos e eu tive de aprender a amá-lo de outra maneira, à
minha maneira, sobretudo depois de ele deixar de ser o centro das
atenções e passar a ser um pessoa ocupada com as suas coisas.
Ao longo destes anos, eu soube pouco dessas coisas. Limitava-me
a imaginá-las, um pouco como se suspeitasse do que estava a
passar-se com ele. O pai de Bruno não tinha nome, como se a
minha memória fosse um bem tão precioso que não se ocupava
com dados desnecessários. Ainda hoje não tem nome.
Com uma vida por fazer, Bruno foi educado pelos meus pais em
Vila Praia de Âncora e eu dava com ele grandes passeios pela
praia, ao fim de semana. Quando soube que ia passar o resto dos
meus anos na polícia, nos finais dos anos noventa, o meu filho tinha
cinco anos e, desde então (só veio viver comigo aos catorze),
chegou aos dezoito sem dificuldade. Nesse dia disse-me que
sempre tinha sabido que eu era como era — e que gostava de uma
mãe como eu era. Eu disse-lhe que lhe tinha ligado pouco e que a
vida nos tinha separado injustamente, além de eu ter escolhido um
pai de que era bom ele não gostar. Ele disse que era verdade mas
que foi isso que nos salvou a ambos; não teve de lutar contra uma
mãe que precisava de fazer a sua vida nem de ser um adolescente
rebelde e com problemas emocionais. Eu voltei a dizer-lhe que me
sentia culpada por não o ter acompanhado como devia. Ele disse
que isso tinha sido bom porque não teve de contar como comprou o
primeiro pacote de preservativos, como curou o primeiro desgosto
de amor e como fumou o primeiro haxixe.
«Já tiveste muitos desgostos de amor?», quis eu saber.
«Não. Dois ou três. Um, de facto.»
«Quem era ela?»
«Tirando a Catarina? Uma colega de liceu. Eu julgava que era
namorado dela e, afinal, não era. Ela andava com um tipo mais
velho.»
Fiquei um tempo calada, estávamos a jantar num restaurante do
bairro onde criados de mesa brasileiros serviam comida italiana feita
por uma cozinheira ucraniana. O serviço era bom, a comida era boa,
podia-se fumar numa pequena varanda que dava para um jardim
interior, Ivã (um brasileiro de Minas que se parecia com um Jack
Nicholson moreno de há muitos anos) fazia caipirinhas com açúcar,
e muitas vezes — sobretudo nas noites de sexta-feira ou de sábado
— podíamos jantar até muito tarde e ficar até ainda mais tarde a
beber essas caipirinhas, e eu só não sabia se gostava mais de
caipirinhas ou de mojitos. Fiquei um tempo calada porque, que eu
me desse conta, só me lembrava de uma Catarina e essa não podia
ter causado um desgosto de amor ao meu filho.
«Qual Catarina?», perguntei então.
Ele riu.
«Catarina», ele bebeu mais um pouco de vinho e piscou-me o
olho. O direito, ainda por cima.
E eu pensei que Catarina tinha a minha idade, frequentava a
minha casa desde há muitos anos e tinha ar de adolescente — mas
não era. Era médica legista. Abria cadáveres, pesava vísceras numa
balança branca, de esmalte, e cosia corpos que depois devolvia a
gavetas mesmo sem lhes conhecer o nome. Também era outras
coisas que eu agora não queria recordar — e eu conhecia parte da
sua vida sexual —, mas era a ela que eu entregava guias para pedir
autópsias, e era a mim que ela recorria para saber pormenores de
balística, lâminas, drogas duras e vida sexual do departamento. O
seu primeiro marido era mais velho, um professor de Direito que
comentava política na televisão, e desaparecera em combate
exatamente a meio da meia-idade; quando ela fez trinta anos,
menos doze do que ele, o professor de Direito trocou-a por uma
jornalista que não sabia gramática nem pintar o cabelo. Nessa
altura, e só nessa altura, para provar que as mulheres precisam de
incentivos e de desafios à altura, Catarina ficou pelo menos dez
anos mais nova e, também nessa altura, pelo menos dez anos mais
inteligente. A minha primeira reação foi de irritação mas daí a pouco
compreendi que se tratava apenas de uma surpresa, que as coisas
são como são e que eu devia ter estado mais atenta quando ela
aceitava dar boleias a Bruno. Eu ia falar com Catarina, sim. Teria
alguma coisa dizer-lhe, se conseguisse ter uma conversa.
«Foi bom com a Catarina?», ouvi-me a perguntar.
«Foi. Muito simpático. Vais ficar zangada com ela?»
«Isso é comigo. Quer dizer, entre mim e ela.»
«Já foi há um ano.»
Reparei nisso. Há um ano. Há um ano ele já era adulto e bebia
vinho para acompanhar a mãe de trinta e oito anos que daí a um
ano — hoje, agora, quase adormecida pela madrugada que termina
— teria trinta e nove e depois quarenta e depois uma crise da idade
madura. Não era um pecado muito grande, mas eu esperava que
tivesse sido vantajoso para ambos ou, pelo menos, só para ele.
Uma mãe é uma mãe, apesar de tudo.
24

CATARINA NÃO RESPONDEU AO MEU TELEFONEMA E O TEMPO PASSOU. Um


dia, dois dias, três dias, uma semana. Entretanto, para ocupar o
tempo, andei de moto e pensei que tinha envelhecido. Aos quarenta
anos ocorre que as mulheres pensem isso. Mas não é verdade. Os
homens mais novos apaixonam-se por mulheres de quarenta anos;
os homens menos novos apaixonam-se por mulheres de cinquenta
anos; eles imaginam, intimamente, que só há vantagens, um certo
desprendimento, uma certa sabedoria, algum cansaço, pouca
paciência para detalhes demorados ou para conversas sobre o
sentido da vida. As regras mandam que os homens conversem
sobre o sentido da vida, a condição humana, o movimento dos
planetas — sobre as mulheres diz-se que querem uma história de
amor. Eu gostava de homens que falavam de futebol, de cozinha e
de filmes antigos; o sentido da vida e a condição humana
interessavam-me pouco. Mas eu tinha quarenta anos e homens
mais novos apaixonavam-se periodicamente por mim, esperando
que eu os ajudasse a encontrar uma vida mais fácil, sem lhes
telefonar ao fim do dia desfeita em lágrimas, sem me atormentar
com dúvidas sobre sexo ou com ciúmes das suas ex-mulheres. Eu
compreendia alguns deles, mesmo aqueles que trabalhavam
comigo, mas tinha ultrapassado aquele limite que nos arrasta para o
sentimento maternal, para a compaixão ou para o apoio domiciliário
a desvalidos sentimentais. Acontece que eu não tinha grande
opinião sobre o meu sentimento maternal, a minha compaixão
esgotava-se com regularidade e, quanto a apoio domiciliário, se se
tratava de um amor de passagem, então preferia usar um hotel à
beira do mar durante um fim de semana sem vigilância nem
horários. Mesmo que ficasse mais caro.
No ginásio, ao pedalar na bicicleta imóvel que servia para
desentorpecer as pernas e bater recordes de permanência, ou ao
caminhar na passadeira, em ritmo acelerado, nunca pensei no
sentido da vida. Nunca teve grande sentido, a vida. Nas máquinas
de musculação, contraindo e distendendo os braços, eu pensava em
mojitos com açúcar mesmo quando via os corpos dos outros
frequentadores, suados e atléticos, procurando saúde,
emagrecimento e silêncio. De tudo isso eu só procurava silêncio,
imagens eróticas que nunca apareciam nem nos sonhos nem na
vida real, elasticidade para os músculos das pernas, e alguma
disciplina que me faltava no resto da vida, aquela para que eu nunca
encontrara muito sentido. Gelo, açúcar, rum, hortelã, gasosa barata.
Pensava nisso o tempo todo.
Também pensava em Bruno subitamente envolvido com Catarina,
no desgosto de Bruno com Catarina, e no meu chefe reparando no
modo como eu pousava o capacete na cadeira em frente à sua
secretária. Já não pensava em Vítor (de vez em quando o pai de
Bruno voltava a ter nome), nem em Guilherme, nem no meu
primeiro marido. Pensava que tinha quarenta anos, que colecionara
vantagens e desperdícios ao longo dos últimos vinte, e que me
sobrava pouco tempo para cumprir tarefas que desleixara e uma
espécie qualquer de felicidade em que as mulheres pensam quando
têm trinta anos, essa idade em que alimentam conversas redondas
depois do sexo, projetos de um casamento redentor, promessas de
uma família feliz. O que me agradava no meu chefe era
precisamente isso: falava pouco, nunca mencionava o seu
casamento e não tinha — sobre a secretária — aquelas fotografias
de três filhos, uma mulher vestida para o almoço de Páscoa, e dois
cães enormes de mais para um apartamento em Campanhã, em
que todos riam e mostravam dentes saudáveis.
Portanto, eu não pensava em coisas em que as mulheres de trinta
anos pensavam (eu já tinha quarenta, bem vistas as coisas), quando
ainda estão a tempo de se transformarem em anjos do lar,
burguesinhas do Carvalhido, e praticam footing no passeio da Foz,
vestidas de azul-claro. Às vezes, mas muito raramente, se bem que
tentasse esquecer o assunto, também pensava nela. Só há pouco
tempo tinha aprendido a fazer isso: pensar nela. E, quando
acontecia, eu tremia de medo e tentava lembrar-me dos meus
deveres de mãe, das minhas obrigações profissionais e, afinal, da
condição humana. Mas as mulheres não pensam na condição
humana, como se sabe; segundo as regras, basta-lhes uma história
de amor. A minha estava a ser particularmente difícil.
25

OLÍVIA SENTADA NUMA ESPLANADA DE VIGO, DEBAIXO DE UM GUARDA-SOL.


Isaltino de Jesus reconstitui a perseguição, reconstitui a perda,
reconstitui o encontro numa praça a caminho do muro de onde se vê
todo o mar, junto do Hotel America. E então compreendeu que
Olívia tinha esperado por ele, que Olívia sabia que estava a ser
vigiada, que Olívia quis ser encontrada por um perseguidor
medíocre e desajeitado que se encosta às paredes e às montras
das lojas enquanto percorre as ruas de Vigo com uma sacola de
plástico na mão. Distração de principiante, deixar-se encurralar
numa praceta por onde toda a gente passava a caminho de
qualquer coisa. Jaime Ramos nunca lhe perdoaria, o cabrão do
velho. Era assim que tratava Jaime Ramos quando o seu chefe
disparatava, dizia coisas sem nexo e se fingia de sonso, cabrão do
velho.
Mas era apenas impressão sua, receio de um descalabro, de uma
falha. Isaltino não se aproxima de Olívia, não se dá por vencido —
uma regra essencial em vigilância, agir como se não estivesse a
fazê-lo e seguir em frente —, limita-se a passar ao largo dirigindo-se
a uma banca de jornais e observando os títulos como um passeante
com tempo disponível. A solução seria ser visto, deixar-se ver por
Olívia e esperar que ela lhe dirigisse a palavra.
«Estou de passagem», ele poderia dizer, mostrando o colarinho
sem gravata. «Vim com a família a Vigo, às compras.»
Antigamente vinham de três em três meses ao Corte Inglés,
quando ainda não havia Corte Inglés em Gaia — regressavam ao
fim do dia, cansados e carregados de roupa barata e utensílios de
cozinha, como se imitassem os pais que, há quarenta anos,
cruzavam a fronteira para comprar refrigerantes e café, bacalhau
salgado nas Astúrias, azeite andaluz, pescada de Vigo, azeitonas
recheadas com pimentos ou anchovas, garrafas de gasosa La
Casera, licor Marie Brizard, brandy Domecq, calças Lois, camisas
de flanela ou arroz em sacos de cinco quilos.
Isaltino compra um jornal, olha por cima do ombro e vê Olívia
sentada na esplanada, indiferente. Segue pela rua fora até dobrar a
esquina e fingir-se perdido entre a pequena multidão de
adolescentes que desce a rua na direção do centro comercial que
domina a baía, um monstro de vidro onde se reflete a luz do final da
manhã. Contorna o quarteirão e regressa à praça onde Olívia
continua sentada na esplanada de cadeiras brancas e guarda-sóis
amarelos, a cabeça deitada para trás, óculos escuros, o capacete
na cadeira ao lado. Deste ponto Isaltino não pode ser visto e retoma
a confiança perdida como perseguidor, vigilante, espião. Só tem de
entrar no pequeno bar com um balcão voltado para a rua — e
esperar. Pede um café.
«Café solo.»
«Con unas gotitas?»
«Con unas gotitas.»
Olívia, ao longe, acende um cigarro. Isaltino sempre achara que
ela escondia qualquer coisa, mas não sabia se essa qualquer coisa
tinha a ver com o que Jaime Ramos queria descobrir. Aquele ar. O
capacete. A moto. As olheiras em certas manhãs. Quarenta anos e
apenas isto: nem filhos (um, ao que ele sabia, criado com os avós),
nem marido, nem carro, nem vida familiar. Quando se juntavam
todos ao almoço, de vez em quando, e falavam das suas vidas,
Olívia participava — também fazia confidências, também pedia vinte
euros emprestados quando se aproximava o final do mês, também
se oferecia para trocar de horário e fazer o turno de um colega. Mas
Isaltino sabia que Jaime Ramos tinha qualquer coisa em mente
quando o mandara vigiá-la, e esse deslize começara logo de manhã
quando Olívia entrou de moto na autoestrada para Viana e seguiu
em frente na direção de Valença, passando a fronteira, cortando as
curvas rente à berma como um vulto negro que ele perseguia à
distância. 130, 140, 150. Olívia gostava de velocidade. 160. Isaltino
acelerando nas descidas porque o carro era velho e recuperava mal,
consultando desnecessariamente o mapa — porque a partir de Tuy
já sabia que Vigo era o destino final, o que lhe colocava o problema
de continuar a segui-la depois de entrar na cidade. Mas ele
confiava, lembrava-se bem de Vigo e de como se atravessava toda
a cidade até chegar ao porto, ou até à estação ferroviária, ou até ao
El Corte Inglés.
O café com aguardente animara-o e obrigara-o a tirar o casaco,
desapertando mais um botão na camisa a que faltava uma gravata
— Olívia tinha despido o blusão e estava agora de T-shirt, ao sol, e
ele acha estranha essa imobilidade, aquela tranquilidade de alguém
que pode estar de férias em Vigo — e que não é a maneira de agir
de uma agente que tem de fazer um trabalho, investigar um
desaparecimento.
«Algo para picar?», pergunta o rapaz, atrás do balcão. «Tortillita,
bocadillo, jamón?»
«Agua con gas. Y otro café. Solo.»
Com o telemóvel podia fotografar Olívia, e mandaria a foto a
Jaime Ramos — mas não teve tempo. Na mesma altura em que lhe
serviram o segundo café e uma garrafa de Mondariz, Olívia olhou
para a esquerda e sorriu. Ele recordaria depois esse sorriso, porque
não soube contá-lo de nenhuma maneira, nem era importante para
o conjunto de factos que tinha de reunir e colocar no seu relatório
oral para Jaime Ramos. Um sorriso esconde-se bem nos relatórios,
mas esse era um sorriso que ele não podia esquecer. E foi então
que a viu, à rapariga: jeans, ténis, um casaco de algodão com
capuz, o cabelo escuro, de pé diante de Olívia, mochila presa ao
ombro direito.
Havia qualquer coisa de estranho naquele encontro, como se
Olívia esperasse a rapariga, que ele reconheceu pelas fotografias
que Jaime Ramos lhe mostrara na semana passada. No fundo,
desde que entrara no bar e começara a vigiá-la por detrás da
parede de vidro, pensara naquela hipótese. Talvez não daquela
forma: a rapariga estendendo a mão para Olívia, Olívia estendendo
a sua, depois sentadas lado a lado, ambas de óculos escuros a
apanhar sol, conversando, sorrindo (não o sorriso de Olívia, aquele
que ainda não sabia explicar), e Isaltino percebendo que, de vez em
quando, as mãos de ambas se tocavam por acidente — mas ele não
acreditava na ideia de acidente em matérias como aquela. Limitou-
se a pedir a conta, a pagar e a esperar enquanto folheava um Faro
de Vigo do dia anterior.
Não foi apenas o sorriso de Olívia que ele não saberia contar,
mesmo depois de o ter compreendido. Uma coisa era compreender
o que estava a acontecer; outra, diferente, era contá-lo a Jaime
Ramos. Também não soube contar a impressão que sentiu quando
Olívia e a rapariga se levantaram, as mochilas ao ombro, e
seguiram até ao fundo da rua, lado a lado. Ele perseguindo-as,
primeiro ao longo da Praza da Constitución, depois atravessando a
rua diante do Hotel Puerta del Sol e do Real Club Náutico,
caminhando sempre, elas discretas como turistas em férias, depois
entrando num emaranhado de ruelas até que a rapariga toma Olívia
pelo braço e a leva ao longo da Pi y Margall, quase saltitando, e
depois por uma travessa que desemboca na Rua Romil, um
conjunto de prédios dos anos setenta misturado com construções
tão feias que deviam ter sido ordenadas pelo Generalíssimo, de
granito sujo e escuro. Quando julgava tê-las perdido, Isaltino vê que
entram num bar, ao lado de uma loja de instrumentos musicais. A
loja chama-se Musical Vigo. O bar chama-se Beni, em letras
brancas sobre um fundo verde-escuro.
26

JAIME RAMOS TINHA UMA PAIXÃO SUAVE PELO ARROZ DE SARDINHAS.Passava


três, quatro, cinco meses à espera do momento ideal para prepará-
lo e poder convidar Ramiro, que, finalmente, tinha deixado de beber
Blue Curaçao. A espera começava em fevereiro, aproximadamente,
inventando desculpas para não esperar pelas sardinhas mais
gordas que ia buscar à Póvoa de Varzim, no final de junho, depois
do São João. Geralmente não deixava que junho chegasse e, como
um fiscal camarário, percorria as bancas dos mercados com uma
fita métrica invisível em busca do tamanho ideal que coubesse no
seu tacho de ferro esmaltado, azul, largo, uma preciosidade que
comprara na feira de Espinho.
Porque não bastavam apenas as sardinhas. Era também uma
conjugação de elementos, de temperaturas e de ingredientes
maduros, despertos para o seu apetite vadio que ninguém
compreendia — nem mesmo Rosa, que descia do segundo andar
preparada para festejar a chegada do arroz de sardinhas como se
se tratasse de uma época fixada no calendário daquele casal que
também ninguém compreendia inteiramente. Mas, no caso do arroz,
eram necessárias cebolas frescas e sumarentas; tomate vermelho e
maduro, já adocicado pelo calor, preparado para se ir desfazendo
com a primeira fervura do refogado; e, além das sardinhas, os
primeiros pimentos de carne fina, de um verde claro inimitável ou
apenas ligeiramente alaranjados, que perfumavam a cozinha depois
de cortados em tiras e lavados com água e vinagre.
Primeiro, cortava as cebolas em rodelas finas, recusando-se a
fazer um picado que iria diluí-las no caldo — ele gostava de
encontrar aquela textura entre as garfadas de arroz avermelhado.
Deixava apenas cozê-las no azeite, procurando que não chegassem
a ficar transparentes, sem fritar, longe da tradição do estrugido
portuense; depois, juntava os tomates sem pele, cortados em
pedaços, que ia esmagando à medida que o fogo muito lento lhes
consumia as formas. E, por um quarto de hora, esperava o
momento de juntar água, uma ou duas folhas de louro, dois dentes
de alho esmagados, enquanto ia limpando as sardinhas,
preparando-as para — quase no fim do cozinhado — serem
cuidadosamente sacrificadas numa cerimónia ritual, mal o arroz
cedesse um pouco à cozedura. Mas, antes, eram lavadas, deixadas
sem vísceras, abertas, separadas das espinhas, perfumadas de
limão, aguardando o momento de serem transformadas em comida.
Quanto aos pimentos, tiradas as sementes, cortados em tiras,
ficavam durante aquela meia hora mergulhados em água com um
pouco de vinagre.
Ramiro sentava-se à mesa. Ele era advogado (depois de ter sido
polícia em homicídios) e àquela hora gostava de discursar sobre os
vinhos que trazia para o jantar, lamentando não ter nascido no lugar
que merecia:
«O meu pai foi habituado a maus vinhos brancos e, até ganhar o
primeiro ordenado da minha vida, sempre pensei que todos
provocavam azia e eram turvos ou não tinham aroma. Ele esteve
oito meses no Batalhão de Caçadores de Bragança e queixou-se
sempre daquele inverno, mas na altura não havia branco de Valle
Pradinhos. Não aproveitou. Na altura, o inverno de Bragança era de
oito meses. E hoje não há branco de Valle Pradinhos suficiente para
bebermos sempre que nos apetece.»
«Vamos beber branco?
«Um homem não é nada sem as suas obsessões.» Esta frase era
repetida por Ramiro em todos os jantares com Jaime Ramos, ao
ultrapassar aquele limite de alcoolemia que era necessário justificar
para prosseguir em frente, e tinha variações sentimentais, utilizadas
de acordo com a circunstância: um homem não é nada sem os seus
pecados, um homem não é nada sem os seus erros, um homem
não é nada sem as suas derrotas, sem os seus medos, sem as
mulheres que traiu, sem os anos que perdeu, sem os apetites que
conservou.
Jaime Ramos juntou o arroz, envolveu os grãos esperando que o
caldo fervilhasse porque esse era o momento de acrescentar os
pimentos que iriam ser absorvidos a pouco e pouco no tacho
tapado. Quando a cozedura estava quase terminada depositou as
nove sardinhas que foram engolidas pelo caldo espesso e polvilhou
o conjunto com alho muito picado. Não mais que dois minutos — o
aroma do peixe aguardava o momento de ser servido para se
espalhar por toda a cozinha e inaugurar a temporada daquele prato
que Jaime Ramos amava como uma recordação de infância,
quando se fazia bola de sardinha de barrica com pimentos
vermelhos e maduros, ou se comiam sardinhas cruas marinadas em
limão e azeite, com salada de azedas colhidas dos muros de xisto
nas encostas dos amendoais.
A primeira garfada foi saudada por Ramiro, que semicerrou os
olhos como se quisesse concentrar-se naquela conjugação de
sardinha, pimento e arroz onde o alho adocicara, e onde não fora
necessário usar sal.
«Em tempos apaixonei-me pela minha própria mulher», disse ele
então. «Cuidava de mim, dava-me Lorenin para dormir, pedia-me
para deixar de fumar, gostava de quando ela ouvia o meu coração a
bater ou quando me mandava inspirar fundo. Inspirar. Expirar. Isso
obrigava-me a sentir o perfume que ela usava, e que eu nunca tinha
conhecido noutra mulher. Somos frágeis, envelhecemos depressa,
depois vem uma idade em que recordamos o perfume de uma
mulher, em que damos uma parte da vida por um arroz de sardinha
ou em que não queremos viver mais.»
Ramos encostou-se na cadeira e reparou melhor em Ramiro,
naquele ex-polícia transformado em advogado e sátiro.
«O que sabes sobre russos?»
«Branquinhos, cabelo curto, ex-militares, calados, cruéis, capazes
de matar por baixo preço. Elas, branquinhas, loiras, parecem
enjoadas, mentem bastante para se proteger, riem pouco, trabalham
bastante, sempre me pareceram cópias de uma tia de Vinhais, muito
católica e resistente ao frio. São matéria de que não me ocupo.»
«Não estou a escrever um romance.»
«E que estivesses. Sobre russos já estão escritos quase tudo,
quase todos os romances. A literatura ocupou-se do assunto
durante muito tempo, aprende-se bastante com ela. Mas desde o
fim do comunismo que perderam pelo menos metade do interesse, o
que é injusto para eles, porque a corrupção disparou e as
temperaturas da Sibéria subiram um pouco, que se saiba», Ramiro
olhando à luz de um candeeiro o copo de vinho que acabara de
servir. Depois fez uma pausa e olhou para Jaime Ramos: «E há as
máfias russas. Tenho bastante disso no tribunal. Clientes, um ou
outro.»
«Bons clientes?»
«Todos os clientes de um advogado são bons. Nós, os
advogados, somos o principal obstáculo ao desenvolvimento do
país: queremos leis, estudamos leis e sabemos como driblar as leis.
O capitalismo endeusa o dinheiro, os advogados endeusam os
clientes. E são também um problema para a moral pública, que não
nos interessa grande coisa, uma vez que a maior parte dos nossos
clientes não é exemplo para ninguém. Os meus clientes desviam
dinheiro público, fogem aos impostos, enganam a família, querem a
morte do cônjuge, ou ficam nervosos e disparam involuntariamente
contra a mulher, o marido ou o amante da mulher.»
«Involuntariamente?»
«Sempre involuntariamente. Já vos deviam ter ensinado isso, lá
na polícia: a bondade natural do ser humano não deve ser posta em
causa. Está sempre em primeiro lugar, mesmo quando vem
manchada de sangue. Ora, a maior parte dos clientes dos
advogados são seres humanos com grande necessidade de afeto,
apoio familiar ou carinho das autoridades. Na maior parte dos casos,
são monges budistas que ainda não descobriram o budismo, mas
estão no caminho para a santidade. Tudo coisas em vias de
desaparecer.»
«E os russos?»
«Tão bons clientes como os angolanos, os espanhóis, os
armazenistas de bacalhau ou os diretores-gerais. Têm uma certa
inclinação para a violência e, se não me engano, tens um caso com
russos.»
«Dois russos.»
«Disseram-me que eram vários.»
«Exagero. Dois bastam.»
«Os russos estão a desaparecer, as oportunidades de negócio
começam a rarear, e a Rússia é um território grande o suficiente
para eles se espalharem, os teus russos. Estranho, até, que eles
tivessem ficado até hoje. A maior parte dos que vieram eram gente
bem formada, imigrantes que tinham ficado pobres mas que tinham
um diploma de Matemática, de Engenharia, de Medicina, o que só
lhes garantiu um lugar à margem. Bem à margem. Lembras-te dos
nossos pretinhos, os da Guiné, e os de Cabo Verde, e os de
Angola? Eram boas almas, desde que ficassem à margem e não
quisessem comprar carros e entrar em restaurantes de luxo. Os
russos, os moldavos, os bielorrussos e os ucranianos também foram
os nossos pretinhos durante algum tempo, trabalhadores e
educados, mas com uma diferença muito grande: eles sabiam que
isto ia acabar. Isto, o país.»
Há mais de vinte anos que Ramiro defendia que o país ia acabar
e que os noruegueses iam envenenar o bacalhau com químicos até
que toda a população aceitasse comer bacalhau fresco, salmão e
arenque, espécies favoritas dos médicos e nutricionistas; Jaime
Ramos desculpava sempre essa parte e acreditava que o bacalhau
salgado continuaria a ser considerado um dos elementos da
soberania nacional.
«Um dia teremos de nos refugiar nas montanhas, armados até
aos dentes, para salgar e secar o nosso bacalhau», ele dizia nessas
alturas, olhando os copos do jantar. «Estou preparado para a
resistência.»
Mas Jaime Ramos estava sobretudo interessado nos russos.
Levantou-se e foi até à estante, de onde retirou um livro, que
mostrou a Ramiro.
«Pushkin, sim. Esquece. O vosso conhecimento dos russos, lá na
polícia, resume-se a uns patifes contratados para estropiar os
compatriotas. Umas rajadas de metralhadora. Um tiro no escuro.
Um tipo a quem partem os joelhos ou que aparece esfaqueado para
aprender a não desobedecer. Mas isso não são as máfias russas,
como sabes. As máfias russas vêm aqui para lavar dinheiro, os
chefes ficam na Rússia, a embalar malas cheias de dinheiro que
hão de servir para construir hotéis e prédios no Algarve ou no Sul de
Espanha. Ninguém quer mandar neste país, Jaime. Nem os russos.
Esses estão interessados em que ninguém mande verdadeiramente,
para que possam fomentar o emprego, o crescimento económico e
a paz social. São os meus clientes, evidentemente. E querem que o
dinheiro se lave e seque ao sol. Esses teus russos não são de
nenhuma máfia. Se queres saber, são cidadãos honrados. Devias
protegê-los. E agora, mortos, devias protegê-los ainda mais. Tinham
o seu emprego, o seu negócio, um ganha-pão modesto que lhes
dava qualquer coisa como um milhão por ano.»
«Bebidas e fornecimento de supermercados russos. Segurança.»
«Ah, isso. Já não há russos suficientes para manter
supermercados só para eles. Queres uma pequena informação,
portanto. Isso vale um arroz de butelo ou uma posta de bacalhau da
Finlândia.»
Ramiro procurou com o olhar a garrafa de Valle Pradinhos — mas
teve preguiça e nem esticou o braço nem pediu a Jaime Ramos que
o servisse de mais vinho. Limitou-se a aceitar que tinha
ultrapassado o seu limite:
«Um homem não é nada sem os seus segredos. Há dois anos fui
a Angola tratar de um negócio. Avião à noite, com um cliente gordo
e analfabeto de São João da Madeira que bebeu Glenfiddich até
chegarmos ao equador. Cheguei a Luanda às sete, tive duas
reuniões de manhã, almoço com um general e uma sesta até ao
jantar. O que é que o meu cliente queria? Vender máquinas de
padaria em Angola. Quando um país começa a organizar-se,
começa pelo pão. Padarias em Luanda, em Benguela, no Lobito, no
Huambo, talvez no Caxito e no Namibe. Pão. Pão fresco, tu
conheces. Daquele pão sem sabor, sem sal e que é o sinal de que a
civilização já se instalou. Ele, esperto, não queria as padarias, como
os tios ou o irmão, que estão na Venezuela, porque isso implica
horários de trabalho, vigilância, distribuição, cinquenta mil chineses
a trabalhar nas obras e contabilidade organizada. Só queria vender
a ideia das padarias porque um país sem pão não vale nada, e em
troca compravam-lhe máquinas, peças, e até farinha. Esperto.»
«Conseguiu?»
«Consigo quase tudo. O meu cliente já tinha vendido máquinas
para a Rússia, outro país que começa a comer pão de má qualidade
depois de ter morrido à míngua durante séculos de pão escuro. Mas
o interessante não foi isso. No hotel, à noite, a meio de um whisky,
havia duas gazelas que já não conseguiam equilibrar-se nos bancos
do bar. Estavam com um russo que as enxotava e que era muito
falador. Antes de tratar do assunto, ele queria falar ainda mais um
pouco, e o meu cliente estava de olho numa das raparigas. É assim
que nascem os grandes negócios: tu tens uma coisa que alguém
quer. Em Angola há de tudo o que um homem como o meu cliente
quer: dinheiro, medo, pau de Cabinda, proteção para quem leva
ainda mais dinheiro. E o russo falou, falou. Era um velho conhecido
de Angola, tinha estado lá em setenta e seis, setenta e sete, saiu
em setenta e sete, voltou há dez anos. Oferecia serviços de
segurança e de logística, sabia disparar e mostrou-lhe uma Yarygin
9mm, dezassete tiros, ao canto do bar. Ou seja, ele já estava
instalado em Luanda, porque uma arma não se transporta como a
escova de dentes. Nasceu ali uma grande amizade, que eu vi de
longe, enquanto as duas raparigas esperavam pelo russo que, oito
meses depois, foi morto em Vila do Conde, segundo sei.»
«O que aconteceu nesses oito meses?»
«O russo tanto podia ser russo como canadiano. Se fosse
canadiano tinha contabilidade e ações na bolsa. Como era russo
tinha o dinheiro guardado no fundo de um poço, na Rússia,
enquanto andava pelo mundo fora a ganhá-lo honestamente,
oferecendo serviços de segurança e cometendo crimes de segunda
ordem. Tinha um problema: falava muito. Eu sou um tipo calado
porque se calhar sou um pouco cobarde e, sexualmente, um voyeur.
Mas ele falava muito porque era tonto. O meu cliente adormeceu e
ele continuava a falar, a falar, a pedir vodka e a dar ordens às
raparigas. Que esperassem. Durante esses oito meses só falei duas
vezes com o meu cliente de São João da Madeira, que entretanto
estava a fornecer máquinas de padaria para Cabinda, onde havia
petróleo, para São Tomé, onde há de haver petróleo, e para o
Gabão, onde já há petróleo. Segundo sei, as máquinas chegaram
em segurança. As raparigas ainda devem estar lá, à espera.»
«Porto Santo, segurança.»
«Um nome que desperta a atenção das autoridades, senhor
inspetor. Gosto de pessoas caladas que pensam rápido. A tua
memória ainda funciona bem.»
«Já não é a mesma coisa. E o outro russo?»
«Estava em Cabinda na altura. O mundo não acaba.»
27

HÁ QUANTOS ANOS FAZIA AQUELE CAMINHO PARA CASA? Há demasiados


anos. Há quantos anos, ao fazer aquele caminho para casa,
pensara se esse fora o destino que escolhera? Há muitos anos,
anos de mais — mas nunca dera crédito à pergunta, porque a
achara despropositada. E, portanto, é como se nunca a tivesse feito.
«Eu não quero complicações», explicara-lhe Isaltino de Jesus,
quando lhe perguntara se estava de bem com a vida. Com outra
pessoa (Rosa, por exemplo) perguntaria se era feliz, se estava feliz;
mas com Isaltino tinha de mudar de dicionário.
«Tu estás de bem com a vida, Isaltino?»
«Eu não quero complicações. Não quero complicações, chefe.
Tenho o que mereço, mais ou menos. Uma família, a minha mulher,
os meus filhos, os meus pais, os meus sogros, uma casa. E não me
queixo. E a saúde, chefe, a saúde. A saúde é o principal.»
«Os portugueses devem queixar-se. Vem no bilhete de
identidade.»
«Pode ser, mas eu não me queixo. Sou de uma raça
desmazelada. Como português, queria eu dizer.»
Jaime Ramos tinha um secretíssimo orgulho naquele homem que
trabalhava consigo há quase quinze anos e que se tornara uma
espécie de extensão de si próprio, respondendo a perguntas que
ainda não tinha feito, fazendo perguntas a que precisava de
responder. Ele salvara-o do pessimismo, o que lhe permitiu
continuar a ser cético como uma espécie de luxo orientado para o
bem e para o mal.
«Até amanhã, Isaltino.»
«Bom descanso, chefe.»
Palavras repetidas, frases repetidas.
«Achas que o mundo vai acabar, Isaltino? Que o governo vai cair?
Que vem aí um terramoto?»
«Mais fácil o mundo acabar do que o governo cair, chefe. Quem ia
cobrar-nos os impostos?»
«Alguém se iria arranjar. Havia de aparecer alguém.»
«Era o que eu dizia.»
Jaime Ramos ficou de pé, parado de costas para a porta de
entrada do prédio, o carro de Isaltino dobrando a esquina, fumando
o resto da cigarrilha. Céu de trovoada, teria de vir uma trovoada.
Maio era o mês das trovoadas, como sabia desde a infância: uma
curva estreita ao fundo da escuridão do vale, onde o Douro corria
mais veloz entre penhascos rarefeitos — e um céu de trovoada visto
entre o gradeamento da varanda, os vasos de flores, a ramagem de
uma figueira, as folhas dos choupos, o ruído dos camiões que
passavam ao longe numa estrada que se arrastava pelas
montanhas, na direção das minas.
«Chefe», começara Isaltino nessa manhã.
Jaime Ramos sabia: observara o pequeno dossier que Isaltino de
Jesus trazia na mão esquerda, o selo discreto dos serviços de
fronteiras em fotocópias mal tiradas e escurecidas, duplicados azuis,
duplicados verdes, papelinhos amarelos colados em outras
fotocópias — e um dos seus cadernos de capa preta marca
Papelarias Emílio Braga (que ele, periodicamente, comprava em
lotes).
«O que o chefe me pediu. De Arkady Tarasov está aqui o registo
de viagens nos últimos dois anos, gentileza das catacumbas do
serviço de estrangeiros. Angola, Angola, Angola, Angola. Brasil,
Venezuela. De Lisboa para Paris, para o Senegal, Dakar. E para
São Tomé. Duas viagens para Moscovo com escala em Zurique. É o
que temos, além de seis multas de estacionamento e uma por
excesso de velocidade. Divirta-se e leia os autos.»
O apartamento de Arkady Tarasov ficava num prédio voltado para
a Via Norte e dos seus andares mais altos via-se o mar ao longe —
um manto cinzento de ondulação diante da geografia quadriculada
de Matosinhos. Dois dias antes, na manhã de segunda-feira, logo a
seguir à descoberta dos corpos dos russos, Jaime Ramos visitara-o
e confirmara, com um olhar em redor, que a vida dos militares
solitários não mudara muito desde há vinte ou trinta anos. As
recordações eram cuidadosamente escolhidas: três fotografias
penduradas numa parede branca, um invólucro de granada sobre
uma mesa, ao lado de um cinzeiro sujo, um tapete muito usado que
Tarasov poderia ter trazido da Rússia — ou comprado depois —, um
livro em cirílico que Jaime Ramos identificara (Julian Semyonov),
vários maços de cigarros russos (Belomorkanal e Sobranie) por abrir
ao lado de alguns Marlboro, e pouco mais. O resto era a reprodução
imaculadamente limpa (e pouco usada) de um catálogo IKEA: dois
sofás diante de um gigantesco aparelho de televisão, cadeiras, uma
mesa, candeeiros, o material de cozinha que parecia ter sido
acabado de estrear. E comida enlatada na despensa, produtos
russos importados (peixe fumado sobretudo), várias latas de cerveja
Baltika, a amostra de um regime alimentar que não passava por
fazer refeições em casa, como provava o frigorífico quase vazio
(iogurtes russos, ovos, frascos de pickles, cerveja, Coca-Cola,
manteiga, água). Tal como o frigorífico, os dois quartos ao fundo do
corredor também estavam vazios. O quarto de Tarasov: a cama
desfeita, um odor a cigarros e a perfume forte, uma passadeira
mecânica e um aparelho de musculação, com pesos, de onde
pendia uma toalha, o armário da roupa com as camisas penduradas
em cabides de uma lavandaria, caixas de sapatos, malas vazias
guardadas debaixo da cama, duas mesas de cabeceira, um tapete
junto da cama e da janela, um par de chinelos de uma marca
desportiva, um par de ténis, um cinzeiro, uma mochila preta — tudo
inspecionado. E, depois, uma varanda deserta onde Jaime Ramos
imaginou que podiam crescer plantas e colocar-se uma cadeira de
repouso voltada a sul; foi lá que acendeu a sua primeira cigarrilha
do dia (fumava cada vez mais tarde, teria de perceber se era a
idade a exigir-lho) enquanto José Corsário, Isaltino e Jacinto abriam
gavetas e deslocavam móveis lá dentro. Mas ele sabia que
poderiam retirar-se: aquele apartamento era apenas uma amostra,
um lugar onde Tarasov dormia alguns dias por mês — notava-se
pelo cheiro, pela arrumação, pela falta de uso da cozinha, pelo
tapete limpo à entrada, pela varanda imaculada. Por isso, quando
Isaltino veio ter com ele e se encostou à porta de vidro, limitou-se a
perguntar:
«Papéis?»
«Nada. Não há passaporte, não há bilhete de identidade, nem
papéis de identificação, nem cartas de bancos. Só contas de luz e
água, em nome de uma mulher que, já vimos, é a senhoria. Os
recibos de aluguer também estão ali. E os da televisão, em nome
dele. O Corsário fica com a lista. O chefe quer dar uma vista de
olhos?»
«Não vale a pena. Traz só as fotografias da sala», disse ele sem
desviar o olhar, como se estivesse a seguir os movimentos invisíveis
dos cargueiros ao largo de Leixões.
Daí a pouco voltou-se para trás e, antes de entrar, olhou-se no
vidro da grande janela. Um homem a envelhecer e a tratar da vida
dos outros, é isso que vês. E um homem ligeiramente gordo, que
devia fazer caminhadas de uma hora diária nos passeios do mar da
Foz. E com cabelo curto e grisalho. E com um gosto excessivo por
T-shirts cinzentas ou azuis que vestia a partir de abril, juntamente
com blusões de tecido de gabardina e calças de ganga que variam
conforme a sua preguiça e falta de originalidade. E sapatos que
usava há três, há cinco, há oito anos. E os braços caídos ao longo
do corpo. E é isso que vês: um homem que podia ser outra coisa
qualquer, mas que é exatamente isto — um homem que se
confunde com toda a gente que desce ou sobe a Avenida dos
Aliados, que se senta à mesa de um café e que não surpreende o
criado quando faz o pedido, que usa um telemóvel cuja tecnologia
arranca sorrisos a José Corsário («Desde que os portugueses
chegaram a Cabo Verde, chefe, desde essa altura já inventaram
outros telefones. Devia experimentar.»), que escreve à mão, que se
olha naquele espelho improvisado — o vidro da varanda de um
apartamento vazio, onde supostamente vive um antigo militar
soviético, um herói de Cabul, um herói de Angola, um resignado de
Rogachevo, um imigrante que percorre a sua via sacra até chegar a
um pinhal nos arredores de Vila do Conde, de onde é retirado já
cadáver.
«Este homem vivia sozinho?», ouviu-se a si próprio a perguntar
para os três homens que abriam e fechavam gavetas e portas de
armários.
Isaltino, Corsário e Jacinto olharam-no com surpresa. Foi o
primeiro que lhe respondeu:
«Não há sinais de mulher. Nem na casa de banho nem na
cozinha.»
«Nem no quarto», acrescentou Corsário, como se quisesse
corrigir o machismo quase deplorável de Isaltino, que confinava uma
mulher inexistente aos domínios do banho e da cozinha.
«Não é uma casa, não é um apartamento», voltou Isaltino. «É um
quarto de hotel.»
«Tragam as fotografias da sala», mandou Jaime Ramos, abrindo
a porta de saída.
28

PARA INVESTIGAR É PRECISO SER PACIENTE. NÃO LER JORNAIS. Não olhar
para o calendário. Resignar-se. Temer os resultados da
investigação, temer voltar a página, temer descobrir que se acertou,
ficar suspenso de uma intuição. Estranha ironia, estranho receio.
Jaime Ramos enfrenta o último dia do mês com a habitual sensação
de perda de mais um mês gasto, mas uma voz qualquer lembra o
essencial: para investigar é necessário ser paciente, esperar ser
tocado pelo deslumbre, uma luz que desce do céu e ilumina os
corredores dos arquivos, as salas noturnas onde os agentes se
reúnem para afastar a insónia e ouvir os autocarros que passam no
cruzamento das ruas mais abaixo.
Ser paciente até que um sinal se transforme no parágrafo que, por
sua vez, se transforma em toda a Sagrada Escritura do seu
trabalho. E que Isaltino de Jesus, ao fim da tarde, se sente com ar
de caso em frente da sua secretária e diga a palavra mágica, o
sinal:
«Chegámos. Chegámos lá, chefe.»
Chegámos. Mas não chegámos a esta hora, ao fim da tarde;
chegámos mais cedo, chegámos às primeiras horas da manhã
quando Jaime Ramos pendurou no cabide o seu blusão molhado da
chuva do último dia do mês de maio:
«E Olívia?»
«De baixa, chefe. Uma gripe, em casa. Pediu o dia.»
No dia anterior, à noite, Isaltino fizera o seu relatório a um Jaime
Ramos tenso e arreliado — Olívia partira para Vigo e ele seguira-a,
obediente e cauteloso. Ela conduz depressa demais, chefe, ela é
uma acelera. De Tuy a Vigo como uma flecha.»
«E em Vigo?»
«Em Vigo mais calma, chefe.»
«Ela viu-te?»
«Não.»
«Tens a certeza?»
«Como ter estado sol ontem e ir chover amanhã.»
«Isaltino, tu não sabes se vai chover amanhã.»
«Sei, chefe. É o céu, vê-se pelo céu. E pelo calor. Há de chover
daqui a nada, se não for uma trovoada.»
«Tu e a trovoada.»
«Maio é o mês das trovoadas.»
«Não vimos nenhuma.»
«Acaba amanhã o mês.»
«E Olívia?»
E Isaltino contou como Olívia estacionou a moto ao pé da Avenida
Beira Mar. Como ele achou estranho, porque não fica no centro,
mas foi aí que ela deixou a moto, levando o seu capacete
pendurado da mão direita. Como ela andou a pé como se quisesse
despistar alguém, subindo na direção dos bairros antigos, cruzando
as ruelas daquela cidade de betão e granito, entrando num pequeno
hotel, percorrendo as pracetas desarrumadas de uma cidade
estragada, já não a Vigo de há vinte anos, que cheirava a calamares
e a Ducados, até se sentar naquela esplanada do Café Don
Gregorio, voltada para a Puerta del Sol. Como esperou aí até que o
sol da manhã crescesse em luz e calor. Como Isaltino a vira pedir
uma bebida, e depois outra — uma turista tranquila.
«E que bebeu ela, Isaltino?»
«Vinho branco.»
«E tu estavas onde?»
«Num barzinho pequeno ao lado do hotel. Do Puerta del Sol.»
«E daí em diante?»
«Pois aí é que eu fiquei surpreendido. Talvez o chefe tenha razão
nas suas suspeitas e Olívia não tenha ido a Vigo fazer nada.»
«Eu não tenho suspeitas.»
«O que queira.»
«E daí em diante, Isaltino?»
«Desceu para o porto, chefe. Tal como chegara até ali. Perdi-a
durante cinco minutos e esperei-a perto da moto, mas dentro do
meu carro. Fácil. Foi à estação, aos comboios, pediu informações.
Daí seguiu para o hospital e daí para a polícia, Guardia Civil.
Repetiu o percurso, portanto. Isto segundo o que o chefe me disse.
E às três da tarde voltou para a estrada.»
E Isaltino abriu o caderno e conferiu, folheando, fixando uma
página, folheando outra vez, voltando a olhar Jaime Ramos de
frente:
«Três e vinte, chefe, para sermos mais precisos. Às três e vinte
estava nos semáforos à saída de Vigo. Nessa altura sabia que não
ia para outro lado senão para aqui, para o Porto. Mas não veio pela
autopista. Em vez de ir apanhar a autoestrada virou à direita e
seguiu para Bayona e de Bayona desceu sempre pela estrada que
vem para La Guardia. Parou um bocadinho depois de Oia, eu passei
por ela e esperei mais à frente, antes de La Guardia.»
«Porque é que os galegos dizem A Guarda e tu dizes La
Guardia?»
«Não sei falar galego, chefe. E sempre é Espanha, se me faço
entender.»
«Veio para aqui a seguir?»
«Para casa. Segui-a até casa, e vi que arrumou a moto na
garagem do costume. Entrou em casa e vim-me embora. Está com
gripe.»
Depois, com efeito, choveu ao longo de quase toda a noite, e
Jaime Ramos ficou sentado na cama, um livro sobre os joelhos,
como se tivesse esperado pela chuva para confirmar a intuição de
Isaltino, o meteorólogo de Valongo. Adormeceu a custo e acordou
cedo de mais, pelas quatro e meia, cheio de fome, o mesmo livro
aberto na mesma página, os óculos caídos no chão, ao lado da
cama. Depois de ligar o rádio, em boxers e T-shirt, descalço, abriu
as portas da varanda para ouvir melhor a chuva a cair nas lajes de
tijoleira do pátio e escoar-se junto dos canteiros, como um regato.
Ficou ali por instantes mas a fome arredou-o para a cozinha, onde
começou por preparar café numa cafeteira italiana até chegarem as
notícias das cinco, chove em todo o país, várias corporações de
bombeiros foram esta noite chamadas para acorrer a situações de
alguma gravidade, uma casa ruiu, uma árvore caiu sobre a rua, um
ministro irá esta manhã ao parlamento, um incêndio em Buenos
Aires, chove em todo o país. Jaime Ramos gostaria de saber dançar
— convidaria Rosa para uma viagem até Buenos Aires, como
acontece a alguém da sua idade sonhar pelo menos uma vez na
vida. Tinha de passar a pedir mais café colombiano. Tinha de passar
a comer cereais sem açúcar. Tinha de passar a ser outra pessoa
qualquer. Entretanto, retirou dois ovos do frigorífico (os solitários
guardam os ovos no frigorífico) e bateu-os numa tigela até que a
sua consistência o comoveu. Uma pitada de sal, ligeira. Que
descansem. Com a frigideira ao lume, Jaime Ramos corta fatias
muito finas de cebola, meia cebola basta. Um fio de azeite, um fino
fio de azeite apenas para que a cebola deslize sobre a superfície
quente da frigideira. Uma pequena nuvem de colorau, e uma colher
de pau para mexer a cebola e amaciá-la devagar. Quatro, cinco,
seis rodelas de chouriço que caem sobre a cebola e rapidamente
são absorvidas. Entretanto, colhe alguns ramos de salsa nos vasos
da varanda e pica-os na tábua, juntando-os à cebola. Mexe uma vez
e outra. Mexe de novo e, antes que a cebola comece a dourar, junta
tudo na tigela onde os ovos aguardam. As batatas cozidas da
véspera (sobras que guardara, porque tudo se guarda na cozinha)
são agora cortadas em fatias finas e depois conduzidas à frigideira
para que salteiem e algumas fiquem estaladiças. O café pede-lhe
atenção, e Jaime Ramos serve-se de uma chávena grande a que
junta açúcar. Rosa bebe café sem açúcar, mas Rosa está a dormir
no andar de cima — e ele concluiu, entretanto, que em nenhum país
produtor de café se bebe café sem açúcar, e que o mundo sofreria
bastante se se deixasse de consumir café sem açúcar. Bebe um
pouco. Sacia o seu apetite de café, o sabor reconcilia-o com o
aroma igualmente doce da cebola e, agora, das batatas que vão
ficando estaladiças de um dos lados. Saltear as batatas em pouca
gordura, sujeitá-las ao calor sem fritá-las, absorvendo o resto do
azeite. Dois comprimidos matinais em jejum. Mais um, a seguir, com
o pequeno-almoço. Pão torrado. Voltear a mistura de ovos, cebola,
salsa, rodelas de chouriço (garantiram-lhe na mercearia que vinha
de Vinhais), vertê-la sobre as batatas, ajeitá-la com o garfo, deixar
que o calor seque os ovos, agitar a frigideira para que não seja
necessário virar a tortilha, ver como o aroma se transforma em
perfume e pede apoio a um apetite ingénuo e matinal. Servir tudo
num prato que espera na mesa da sala, ao lado do café e do pão
torrado, diante das portas abertas para a pequena varanda onde
caem algumas gotas de água da chuva. 5h10, ouve na rádio. Onde
estará Olívia a esta hora? Onde estará Béni? Onde estará Irina? A
primeira garfada comove-o. Rosa não aprovaria as batatas — mas
Rosa está a dormir no andar de cima, e ele estudou, investigou, e
sabe que as batatas elevam o nível de serotonina, o que explica que
as pessoas magras tenham mau humor. Assim, vai construindo
teorias à medida que o pequeno-almoço o desperta e a melancolia
se mistura com o som da chuva, até serem uma e a mesma coisa.
29

ERA UM APARTAMENTO ONDE ISALTINO DE JESUS GOSTARIA DE VIVER,


dependurado sobre o mar, mesmo em frente — o mar de Leça com
a sua ondulação fria e cinzenta, como um quadro romântico onde o
farol da Boa Nova ocupava um lugar de destaque a esta hora,
quando a luz do amanhecer sobe lentamente por detrás da colina
até tingir de luz o recorte da praia, entre a chuva que não parava de
cair. Janelas abertas sobre a varanda, varanda aberta sobre o mar.
Um vazio benigno naquela sala onde notara um perfume indefinido
e familiar, o perfume de uma presença de que suspeitara ainda
antes de abrir a porta, quando o elevador o depositara no oitavo
andar, transportando aquela pequena mochila onde se encontrava a
sua coleção de gazuas, a coleção de chaves-mestras, a memória da
coleção de pequenos delitos cometidos em nome da lei e da ordem.
O pequeno e vulgar Marlowe de Valongo. Não. Isaltino não se sentia
o Marlowe de lugar nenhum — não era um homem solitário
destinado a viver aventuras extraordinárias. Não era um homem
romântico, sequer. Não tinha nada de extraordinário. Era apenas um
funcionário cansado ao fim do dia, recolhendo provas de um deslize
que o conduzia de uma mentira a uma descoberta e de uma
descoberta à necessidade de encobrir outra mentira. Mais tarde se
veria, mais tarde ele veria até onde as coisas o levavam. Cabrão do
velho.
Por isso, antes de entrar naquele apartamento do oitavo andar, de
onde as vidraças humedecidas pela chuva e pela maresia vigiavam
o mar de Leça ainda escuro, limitou-se a experimentar uma gazua, a
verificar que a fechadura era tão simples de abrir que dava pena
abri-la — e mal a porta cedeu notou logo aquele perfume que se
sobrepunha sem violência ao odor do óleo que absorvera da Glock
de 9mm e que se pegara à mão direita, dentro do bolso. Sentira o
cheiro da marijuana. Alguém fumara erva naquela sala que o
recebia de frente: dois grandes sofás pretos voltados para a
varanda, para o mar, para a escuridão. Paredes brancas, uma
galeria de fotos em molduras brancas, um tapete vermelho que
cobria todo o espaço diante dos sofás — e Olívia sentada no chão,
em posição de lótus, balançando suavemente o corpo. Sem um
ritmo, propriamente dito; apenas balançando o torso, inclinando-se
para a frente e recuando para uma posição perfeita, costas direitas,
cabeça ligeiramente inclinada sobre o ombro.
Isaltino deu dois passos em frente e devolveu a arma ao coldre,
debaixo do casaco. Havia um cinzeiro de porcelana ao lado de
Olívia, no chão. Com o pé, afastou-o para debaixo do sofá.
«Já são horas, rapariga.»
Mas ela não respondeu. Nem interrompeu aquele movimento
pendular que fazia dela uma ausente. Tinha uma beata entre os
dedos e Isaltino baixou-se para lha tirar. Ficou de cócoras um
instante, ao lado de Olívia, que vestia jeans e uma T-shirt branca e
larga, o cabelo caindo sobre o rosto, desamparado como o resto do
corpo. Mas Isaltino não era esse amparo que faltava à mulher
sentada no chão. Repetiu então, enquanto se levantava:
«Já são horas, rapariga.»
Mas Olívia continuava sentada, ausente, como um pêndulo.
«Onde está ela?»
Silêncio. O pêndulo continuava a oscilar. A luz ainda não chegara
para iluminar a madrugada; só uma luz, uma luz ténue e cinzenta ao
longo da praia que se via de toda a sala, lá em baixo. Isaltino
gostaria de viver naquele apartamento. Veria televisão semideitado
num dos sofás pretos de pele ou naquela poltrona voltada para a
varanda, onde estava o blusão de ganga de Olívia.
Olhou em volta e dirigiu-se a uma das portas, a que dava para um
pequeno corredor onde havia duas divisões — uma casa de banho
e um quarto, verificou. No quarto, sobre a cama, apenas tapada por
um edredão branco, estava Béni, deitada de lado. Aproximou-se e
procurou um sinal da respiração da rapariga; depois tomou-lhe o
pulso; depois, Isaltino de Jesus sentiu um rubor: Béni voltou-se para
o outro lado e ele viu-lhe os seios desprotegidos, o ombro coberto
pelo cabelo escuro e comprido, as costas nuas. Ao fundo da cama,
no chão, a mochila de Béni, a mesma que ele vira em Vigo, no dia
anterior. Um par de calças, dois sapatos, o soutien, uma bolsa de
toilette ou maquilhagem. Também no quarto as portas de vidro
davam para a varanda; em breve a luz entraria e talvez acordasse
Béni.
Em silêncio, voltou para a sala e, depois, procurou a cozinha, do
outro lado do apartamento. Trouxe um copo de água e sentou-se no
sofá, ao lado de Olívia.
«Já são horas, rapariga.»
Ela continuava na mesma posição, movimentando-se nos
mesmos sentidos, para a frente, para trás, absorta.
Estendeu o braço e tocou-lhe no ombro. Não tocava numa mulher
há muito tempo. Era um ombro que dava gosto tocar. Um perfume, o
de Olívia, que se misturava com o da marijuana. Tocou-lhe de novo
no ombro e sacudiu-a.
«Temos de arrumar isto tudo. Tens de devolver a rapariga à
família, ou de a mandar ir para casa. Tens de ir ver o teu filho. Tens
de tomar banho e de voltar.»
«Eu sabia que tu vinhas aí», ouviu-a dizer ao fim de dois ou três
minutos.
«Porquê?»
«Porque és um bom polícia.»
«Sou um bom polícia. Levanta-te. Bebe água», estendendo-lhe o
copo que trouxera da cozinha.
Ela obedeceu. Bebeu dois goles, a tremer um pouco.
«De quem é esta casa?»
«De um amigo.»
«Namorado dela?»
«Não», riu então, «não.»
«De família?»
Olívia procurou com o olhar o maço de cigarros que encontrou no
chão. Escolheu um cigarro e acendeu-o devagar enquanto Isaltino
se levantou para abrir a janela, como fazia sempre que Jaime
Ramos fumava no seu gabinete.
«De família?», voltou a perguntar, de pé, olhando para Olívia.
«Não, também não. Um amigo. Um amigo que trabalha para o
irmão e que lhe emprestou o apartamento.»
«É um bom apartamento», e Isaltino sentiu-se ridículo porque a
frase estava deslocada daquele lugar, daquela hora e daquela
circunstância. Ele queria saber o que Olívia fazia ali, queria que
Olívia acordasse Béni e a mandasse para casa, onde de certeza era
o seu lugar.
«O que me deu?», perguntou ela.
«Não faço ideia. O que é que te deu? Não tenho muito tempo e tu
também não. Que idade tens? Trinta e nove? Quarenta? O que é
que fazes aqui, nesta casa? O que faz a rapariga naquela cama?
Porque é que a trouxeste de Vigo?»
Olívia levantou-se, finalmente, e depois baixou-se de novo para
pegar no cinzeiro que Isaltino tinha afastado com o pé. Apagou o
cigarro e colocou-o sobre uma mesa onde várias pilhas de livros e
de revistas se tinham acumulado em redor de molduras de
fotografias.
«Como se chama o amigo dela?»
«Miguel.»
«Onde está ele? Daqui a bocado isto vai parecer uma festa.»
«Não está cá. Ninguém sabe onde ele está.»
«Outro que desapareceu?»
«Outro que desapareceu», ela abraçando-se a si própria, as mãos
pelos ombros, a cabeça para trás. Isaltino olhou-a e confirmou que
Olívia era bonita, recortada contra a luz escura do céu, o cabelo
aloirado, a T-shirt branca deixando à vista o colo moreno, os
ombros. Os pés nus de Olívia. As calças com o fecho aberto. Uma
fita vermelha e amarela, de tecido entrançado, no pulso. Os pés nus
de Olívia.
«Porque é que vieram para aqui?»
«Como é que sabes que a trouxe de Vigo?»
«Porque ela estava em Vigo.»
«Podia não estar. Eu disse que ela estava em Vigo.»
Isaltino não sorriu, limitou-se a servir-se ele próprio do copo de
água:
«Eu estive em Vigo e vi-te.»
«O chefe sabe?»
«O chefe costuma saber de tudo.»
«Não lhe disseste?»
«Não.»
«Então ele não sabe.»
«Não deve saber.»
«Foi ele que te mandou a Vigo?»
Naquele instante, Olívia lembrou-lhe uma namorada de há muito
tempo, de que evitava recordar-se. Célia tinha olhos azuis muito
claros e era uma mulher muito triste que nunca poderia tê-lo
ajudado a ser o homem feliz que, de facto, era. Ele tinha vinte e dois
anos, ela era quatro anos mais velha e namoravam aos fins de
semana, iam ao cinema, faziam amor num Fiat 127 branco que não
tinha motor de arranque e era preciso deixar sempre estacionado
em descidas, comiam francesinhas num café do Monte dos Burgos.
Até terminarem o namoro nunca conhecera a família de Célia (que
vivia na Maia). Nunca conhecera os seus pais. Um irmão. Uma irmã.
Nunca. Há tempos, um ano atrás, voltara a vê-la em Gulpilhares,
num restaurante de praia perto da capela do Senhor da Pedra, os
olhos azuis muito claros. Mas não lhe falara. Isaltino era um homem
casado, muito feliz, os seus filhos cresciam e seriam felizes, e um
dia, um dia, mudaria de Valongo para Leça.
«Não interessa como é que fui a Vigo, como é que te vi em Vigo.
Distraíste-te, rapariga. Na tua posição não podes distrair-te, nem
cometer erros deste tamanho. São horas. Seis da manhã. O que se
faz com ela?», o polegar apontando para o quarto onde Béni
dormia.
«Eu levo-a a casa.»
«Não me parece. Fumaste erva, ela fumou erva. Eu não tenho
jeito para lidar com gente que se droga. E explicas-me o que te
passou pela cabeça?»
«Não sei. Deu-me uma coisa. Ela estava perdida, descobri-a em
Vigo, e percebi que ela estava perdida.»
«Mas nós não somos da Segurança Social. Este caso é uma
merda, Olívia, uma merda de um caso que não nos diz respeito. É
uma merda de um caso que o chefe tratou para que o diretor não o
chateie por ele fumar no gabinete. É um caso de merda e tu foste
meter-te nele.»
«Somos da polícia. Ela estava perdida na mesma.»
«Dormiste com ela?», perguntou-lhe Isaltino, que sabia que as
pessoas mentem muito quando falam sobre sexo e que recordava a
forma como Béni tomou Olívia pelo braço, em Vigo, saindo do bairro
histórico.
«Não me parece», Olívia depois de um breve silêncio.
«Está tudo doido. As mulheres estão doidas. Há quanto tempo
dormes com mulheres? Eu não precisava de saber isso. Não valia a
pena. Uma rapariga está perdida, tu tens pena dela, andas de braço
dado com ela em Vigo, e eu descubro-te num apartamento em Leça,
meia drogada, a fumar erva. O que vou dizer ao velho?»
Olívia voltou-se para Isaltino, os braços caídos ao longo do corpo,
muito séria:
«Vais dizer-lhe que encontraste uma maneira de chegar aos
russos. Os russos. Aquele caso que não é uma merda. Este
apartamento tem a ver com os russos, a casa da Béni tem a ver
com os russos. Os russos, praticamente, Isaltino, estão em todo o
lado desta minha semana de merda, mas eu distraí-me, sim. Distraí-
me como uma miúda do liceu. Mas, mesmo assim, não percebo
porque é que entraste aqui armado.»
Naquele instante, Isaltino viu perfeitamente (porque estava de pé),
recomeçou a chover com mais intensidade, uma chuva forte que
escurecera de novo a madrugada e se acrescentara ao tom cinzento
do mar de Leça. Ao longe, na comprida avenida batida pelo vento,
um homem solitário pedalava no meio da chuva. Pedalava
perseguindo a madrugada.
30

JAIME RAMOS PENDUROU O BLUSÃO MOLHADO NO CABIDE e voltou-se para


Isaltino, que entrou atrás dele:
«E a Olívia?»
«De baixa, chefe. Uma gripe, em casa. Pediu o dia. Mas trago-lhe
o relatório da balística.»
«A balística é a ciência do futuro, Isaltino.»
«O chefe sabe mais do futuro do que todos nós.»
«Por uma bala sabe-se tudo. Que arma a disparou, em primeiro
lugar. Quem é o dono da arma. Quem a roubou. Onde esteve. E
pela arma conhece-se a hipertensão do atirador, o nível de
colesterol, se é fumador ou abusa do sal na comida.»
«Estou a ver, chefe.»
«Estás com olheiras, Isaltino. Noite de chuva, noite de insónia»,
Jaime Ramos apontando para a cadeira diante da secretária, e o
outro sentando-se. «Faltam-me dados, aqui. Falta-me um espaço
para preencher. Já li esse relatório da balística. Dentro de uma
semana, ou menos, os russos são assunto encerrado, obra de
outros russos que vêm periodicamente da Rússia para verificar
depósitos bancários e castigar os subordinados. E morre um aqui,
outro ali. A minha tolerância tem limites. A mesma coisa em relação
a adolescentes que desaparecem de casa, sobretudo se se trata de
solares no Alto Minho onde foram vistos russos há uns meses.»
«Onde foram vistos os russos?»
«Perto da casa de Ferreira Vasconcelos, Isaltino. Não estás
atento ao que interessa, mas eu estive a ler o teu relatório e não é
costume haver multas de trânsito em nome de Arkady Tarasov a
menos de dois quilómetros daquela casa. Excesso de velocidade à
beira de Moledo. Álcool a mais à beira de Moledo. Falta de
documentos de um carro, um Audi, à beira de Moledo. Relê o
relatório, confirma com a Guarda. Não podemos permitir que
Moledo, a nossa joia do Alto Minho, fique sob suspeita.»
Isaltino sorriu em silêncio e depois falou devagar, pousando o seu
caderno sobre o tampo da secretária:
«Não é preciso, chefe, não é preciso. Há outra maneira de chegar
aí, se me dá licença.»
E, conforme combinara com Olívia, contou a Jaime Ramos a
história de uma semana que começava com o nome de Miguel dos
Santos Póvoa e o desaparecimento de Benedita Ferreira
Vasconcelos, ou por que razão aquele engenheiro cuja fotografia ele
segurava na mão tinha desaparecido dois dias depois da morte de
Arkady Tarasov e Mikhail Polianov.
«Uma coisa de cada vez», pediu Jaime Ramos, que não gostava
de coincidências.
«Chegámos lá.»
Foi uma narrativa decente. Nenhum deles mencionou sexo.
31

AH, FAMÍLIAS ESTÁVEIS, JAIME RAMOS CONHECIA-AS, FAMÍLIAS ESTÁVEIS,


DURADOURAS, com tradições e uma casa no Minho, entre arvoredos e
vinhas antigas. Um dia, a filha mais nova desaparece: é como um
turbilhão invadindo as vinhas que descem para a estrada, ao longe,
arrastando os primeiros perfumes de primavera.
Uma história de família? Já não existem. Pelo menos como elas
eram há vinte, trinta anos, com hierarquias estáveis e relações
duradouras, autoridade que não se questionava, destinos medidos
por etapas: primeiro a infância, depois a adolescência, dois ou três
erros de juventude desculpados mas punidos, a entrada na idade
adulta, o primeiro emprego. Agora não há primeiro emprego, não há
primeira casa própria, ou alugada num bairro dos subúrbios ou
numa rua não tão no centro da cidade, mas onde há autocarros que
passam, uma mercearia, uma tabacaria, um café que fecha aos
domingos; agora, o mundo mudou. Os filhos fumam cedo demais,
recusam ir às aulas suplementares de Matemática, chegam tarde a
casa, trazem droga nos bolsos (um pouco de erva, um pouco de
haxixe), bebem álcool, roubam pequenos objetos de casa, imitam
personagens de televisão e vidas do cinema. São estrelas de rock
ou têm más companhias, não conhecem os avós. Ou os avós
mudaram de repente e são prisioneiros do passado, nostálgicos da
revolução, do maio de 68, de Woodstock ou de um mundo que não
foi capaz de existir; as avós já não sabem cozinhar, impor regras,
ouvir queixas, limpar as lágrimas ou o nariz sujo, obrigar os netos a
tomar banho e a aparar as unhas. Os tios tiveram azares na vida —
faliram, morreram, estiveram à beira da morte, vêm de outra vida,
escrevem em blogues sobre política e literatura, copiam poemas
que circulam de mão em mão, atrasam-se a pagar as contas e a
liquidar os impostos, têm cancro aos quarenta anos, fogem para um
país distante, sonham voltar a África, perder-se num bairro de
Marraquexe, ou entregar-se a um amor que falhou há muito tempo.
Às vezes, as pessoas sensatas têm saudade de um mundo em que
havia ordem e disciplina, e contrariedades, mas tudo as cansa — a
ordem, a disciplina sobretudo —, tudo as comove, tudo as impede
de voltar a lutar até ao fim.
Uma história de família seria bom. Em plena crise económica, as
famílias despedaçam-se facilmente. Falta o dinheiro para as coisas
essenciais: férias à beira do mar, pão fresco aos sábados, os jornais
de fim de semana, roupas novas para os filhos em setembro, discos
que se juntam numa sala. E para o arroz, para o frango cortado em
pedaços, para o tabaco, para o vinho, para a melancolia, para os
passeios pela serra, para a vida que há de terminar mais cedo do
que se supõe. Tanta falta de vida, tanta falta de amor, tanta falta de
alegria.
Jaime Ramos passa em revista casos e casos que vieram ter à
sua mão nos últimos dois meses: um rapaz de dezasseis anos que
fica em casa, a viver sozinho, abandonado pelo pai, que tinha ido
viver com a jovem namorada de vinte e oito anos, enquanto a mãe
se dedica a descobrir as margens da Atlântida numa cidade
marroquina, onde se perdera há dois anos por causa de um guia
local que lhe oferecera sexo e haxixe; um homem que abandona os
seus dois filhos, de seis e oito anos, numa estrada algarvia, a meio
da noite; uma mulher que, depois de consumado o divórcio, se
tranca no quarto durante uma semana, urinando e defecando na
cama, deixando a filha menor, de cinco anos, abandonada no seu
quarto, sem comida; um empresário bem-sucedido que decide fazer
as malas a meio de uma semana e abandona a família feliz,
partindo sem deixar outro rasto que não seja o de dois bilhetes
comprados, em simultâneo, um para a África do Sul e outro para a
Venezuela; um dia o marido levanta-se da cama para acordar os
filhos e vê que a mulher tinha saído de casa levando duas malas de
roupa — ah, ele conhecia as famílias perfeitas que dão grandes
passeios de bicicleta em caminhos junto do mar. Ele conhecia todo
o género de famílias mas não queria nenhuma delas para si, até que
um dia todas desaparecessem da face da terra, e a memória de
Jaime Ramos também, e a de Rosa, e a de Béni, e a de Isaltino de
Jesus, e a de José Corsário, e a de Olívia — que eram a sua família
verdadeira, o seu pão e a sua chuva de verão, aqueles que o
compreendiam e não o desculpavam.
Ele não entendia nem julgava a vida dos outros. Limitava-se a
enumerar desordens. Nunca tivera filhos, nunca sentira qualquer
tipo de cumplicidade em relação aos filhos dos outros ou aos
adolescentes que via na rua, em ajuntamentos, ou solitários, ou
acompanhados uns pelos outros, suspeitos de pequenos crimes, de
pequenos delitos — furtos, alcoolismo, consumo de droga,
vandalismo — que desculpava como um indicador da idade. Via-os
passar na rua, altas horas, bebendo cerveja por garrafas de litro,
rindo alto, mas continuava sem fazer um esforço para o degrau
seguinte; continuava sem entender nem julgar. Estranho no meio de
estranhos, fingia que o mundo não o surpreendia, e essa era a sua
defesa contra a adolescência. Como fora a sua adolescência,
depois da morte do pai? Ele vira o caixão descer à terra, levando-o,
um homem triste e brutal, transformado numa espécie de resíduo à
medida que os anos passavam e se repetiam os rituais de uma vida
com poucas alegrias: o enxofre na vinha, a cor das abóboras, a
rama verde dos campos de batatas, o ondular do milho nas
encostas, os bois arrastados pelos lameiros logo de manhã. Não
tinha nenhuma marca de sentimentalismo, nenhum sinal de
sentimentalismo na sua vida. Recordava o caixão que levava o pai
para o interior da terra e do xisto; recordava a mãe, cozinhando,
sentada num banco diante da lareira, aguardando que um novo dia
chegasse para pôr fim ao anterior, envelhecendo até morrer num
país de merda que escondia o sofrimento dos outros — uma
espécie de escândalo — com medo de olhá-lo de frente. Nessa
altura visitava-a com frequência e ajudava nos trabalhos do campo
ao lado do irmão: a época do milho, a época das batatas, o cabo
nodoso da enxada que herdara do pai e que o seu irmão nunca
quisera utilizar, as queimadas de verão, as trovoadas, o ruído da
chuva a cair no pátio da casa, rente aos vasos de malvas e cravos,
o cheiro quase putrefacto das arrecadações. O irmão, precisamente,
casado com uma namorada de infância naquela aldeia onde não
havia infância ou onde a infância era substituída por fugas para o
rio, saltando do alto dos penedos para o coração da água fria, ou
por corridas até às eiras solitárias e poeirentas. E por lembranças.
Não memórias. As memórias são outra coisa, pensou Jaime Ramos.
As memórias são o nome das árvores ao longo de uma estrada nas
montanhas, um sabor que nunca terá um nome nem uma história,
uma bicicleta que ficou tingida de ferrugem, um barco no meio do
rio, um livro aberto ao lado da cama, uma manhã de nevoeiro, um
comboio que atravessa a fronteira, os picos de neve entre as minas
das Astúrias (os seus tios trabalharam lá durante anos), um bilhete
de cinema deixado no bolso de um casaco que já não se usa, o riso
da primeira namorada, ou da segunda, o cheiro da pólvora num
descampado em chamas, o piar das corujas tão infantil, o ruído dos
helicópteros rondando a estepe africana, o vento quente e salgado
das ilhas da Guiné, o cheiro do peixe no mercado de Espinho, o
rosto de Rosa aguardando que lhe respondesse às perguntas que
ela raramente fazia, o ruído das portas que se fecham pelos
corredores vazios da polícia ao fim do dia, as orações que
aprendera em criança, a confissão de que estava a envelhecer sem
remédio, e tudo o que nem o tinha mudado nem o tinha deixado
indiferente, como o vazio das praias a meio da noite, as casas
coloridas da Costa Nova, as dunas de São Jacinto onde costumava
sentar-se a observar as garças que atravessavam a língua de areia
que subia desde a ria, as luzes isoladas dos faróis, o ondular do mar
rente à Afurada, os cadáveres arrumados em gavetas — era essa a
sua vida: um grão de sal a desfazer-se na boca. O seu prazer
secreto, o seu esconderijo.
32

ELE JULGAVA APAIXONAR-SE POR TODAS AS MULHERES COM AR TRISTE E


ABANDONADO. Procurava-lhes o olhar mesmo involuntariamente; era
irremediável a partir de certa altura, uma espécie de inclinação para
o abismo e para os problemas que haviam de surgir. O seu tio —
professor de Matemática num liceu — detetara-lhe o hábito e
avisara-o antes do primeiro casamento. Mas Miguel dos Santos
Póvoa continuou a pisar esse risco pela vida fora; bastava entrar
numa sala, num bar, num lugar onde houvesse esse perigo, e ele
aproximava-se (primeiro com o olhar mas, depois, fisicamente)
como se fosse arrastado por uma torrente que vinha de todos os
lados.
Maria Luís foi a sua grande paixão mal terminou a faculdade —
ela tinha um ar luminoso, mas o seu sorriso era triste como o de
uma fada, os lábios gulosos, arredondados, os olhos claros, uma
voz suave e tranquilizadora. Casaram num dia de verão e a festa
terminou com um baile cheio de adultos a parecerem adolescentes,
rock que ficara apenas nos seus discos de vinil, Led Zeppelin e
Deep Purple, The Doors ou Rolling Stones, canções que ele próprio
não ouvia há muito tempo. Casaram-se entre familiares que nunca
se tinham afastado e desconhecidos que os cumprimentavam, ao
novo casal, com promessas de esperar para ver os filhos, pelo
menos dois, o futuro, a felicidade que vem nos livros ou nos filmes.
Metade dos convidados não sabia quem eram os Led Zeppelin; a
outra metade já não estava em condições de ouvir Stairway to
Heaven e vibrava de cada vez que o disc-jockey escolhia canções
ordinárias que estavam na moda durante esse verão. Naquela noite
(uma penumbra que vinha das montanhas em frente da colina onde
decorrera a festa), Miguel amara muito Maria Luís. Os seus olhos
claros. Os lábios que prometiam a generosidade toda. Uma alegria
sem disfarce. Mas o tio de Miguel dos Santos Póvoa, que lhe
transmitira a paixão pela Matemática, que ensinara por vários liceus,
de Angola ou de Trás-os-Montes e do Minho, era exatamente isso:
um matemático. E havia uma fórmula desconhecida de Miguel mas
que o tio compreendera antes e adivinhara como um presságio que
não admitia a salvação; e a fórmula tinha essa incógnita brutal sobre
a capacidade de Miguel amar verdadeiramente, amar durante muito
tempo, amar como um trabalho de paciência e de bondade ou
sacrifício.
Jaime Ramos, ao reconstituir daí a alguns dias a história de
Miguel dos Santos Póvoa depois de visitar o seu apartamento de
Leça, deparou com este pormenor: o casamento e as fotografias
dos convidados em redor de dois noivos felizes. Ramos sabia que
todas as histórias da humanidade circulam em redor da tentação da
infelicidade, mas ele não era um juiz imparcial: gostava dos finais de
casamentos, quando as mesas ficavam mais desertas e metade dos
convidados tinha partido. Restos de comida, copos vazios em
mesas nos cantos das salas, crianças que choravam com sono,
pares que dançam solitários ao som de canções que tinham
passado para segunda categoria, despedidas formais, desejos de
felicidade, palavras de circunstância, familiares sorridentes mas
abatidos. Nessas alturas, Jaime Ramos distendia os músculos das
pernas e acendia o derradeiro charuto, saboreando aquele perfume
de melancolia e cansaço, decadência física, roupa amarrotada,
casacos dependurados em cadeiras desarrumadas, mulheres
solteiras — de olheiras profundas e escuras disfarçadas pela noite
que caía — que se reuniam nas varandas, fumando e rindo. E
também camisas de fora das calças, pés deformados dentro de
sapatos que iam perdendo o brilho, a passagem dos criados que
levantam sucessivamente pratos que já ninguém quer usar. Depois,
as despedidas sucedem-se já sem cerimónia nem alegria — e uma
tranquilidade malévola tomava conta de Jaime Ramos, misturada
com palavras e frases absurdas que ia murmurando para
desconhecidos que o cumprimentavam. Era quase sempre um
entardecer cor de pólvora, o dos casamentos, e Jaime Ramos
perseguia o fumo do charuto pelo teto cheio dos odores de comida,
bebidas deixadas a meio, uma abundância de cores que cansava,
gritos de crianças que corriam pelos jardins em grupos e que
destruíam os canteiros e choravam por causa de feridas imaginárias
em quedas acrobáticas que o deixavam sorridente e maldoso. Essa
tranquilidade contrastava com o nervosismo dos últimos momentos,
antes da partida dos noivos para um hotel junto do mar, uma solidão
nova e repartida, um adeus ao recinto de dança onde tinham ficado
imagens de uma mulher loira dançando e segurando um copo de gin
com a mão esquerda, um casal de meia-idade que sabia todos os
passos de um tango esquecido, um cavalheiro distinto que passou
meia hora movendo os pés ao som de canções de há cinquenta
anos, um casal que regressava ao passado, vários vestidos
coloridos, vários fatos escuros que continuavam a mover-se em
todos os sentidos. E havia uma espécie de resfriado, uma tontura
que não desaparecia, ao mesmo tempo que desaparecia a noite.
Então, Jaime Ramos isolava-se nesse torpor em que uma nova
bebida, e outra, e outra ainda, vinham desenhar aquela geografia de
casamentos recordados, em que era sempre um dos convidados e
nunca fora uma figura principal — até se dar conta de que ele, ele,
Jaime Ramos, era parte daquele casal que dançara um tango em
toda a perfeição e que ela, a mulher, era Rosa, que, se não fora o
amor da sua vida, era por certo a companhia que o escolhera para
ser acompanhado durante todos aqueles anos de melancolia em
festas de casamento que ele nunca estaria disposto a organizar
para si mesmo.
Ao olhar as fotos do casamento de Maria Luís e de Miguel dos
Santos Póvoa, Jaime Ramos detetou essa melancolia mais forte em
todo o rosto da noiva e compreendeu o que se dizia do noivo, que
era um sedutor profissional, um jogador romântico, um personagem
de romance russo. Ramos tinha lido poucos romances russos mas
percebia o que isso queria dizer mal se lembrava da primeira frase
de Anna Karenina, ou do rosto de Audrey Hepburn interpretando o
papel de Natasha, em Guerra e Paz, olhando de relance para o
príncipe Bolkonsky.
«O chefe tem a mania dos russos», repetia Isaltino de Jesus na
sua memória. Fora durante um inverno em que Jaime Ramos
dedicara algumas semanas a ler romances russos, sim, Turguéniev
e Tolstói em doses desiguais, tudo para o deixar melancólico acerca
dos casamentos, das famílias e do seu cinismo sem mágoa,
verdadeiramente sem mágoa.
A esta distância, Miguel dos Santos Póvoa — Jaime Ramos
sabia-o — não recordava quase nada do seu casamento senão a
imagem que veio ter com ele mal descera as escadas do
restaurante, um edifício branco e amarelado, rodeado de muros de
granito por onde trepadeiras se tinham arrastado ao longo dos anos:
ele e Maria Luís separando-se ao fim de algum tempo, menos de
um ano, como aconteceria de facto, porque, como explicaria depois,
não tinha jeito para ser um marido atencioso. Mas era mentira. Ele
foi um marido atencioso que se apaixonava frequentemente por
todas as mulheres com ar triste e abandonado. E depois de Maria
Luís, cuja tristeza passou a depressão e agressividade, foi Cecília, e
depois de Cecília foi Rita, e depois de Rita perdeu a conta às vezes
em que regressava a casa convencido de que estava disposto a
refazer a sua vida com uma mulher que conhecera há pouco e onde
detetara os vestígios de um drama que ele curaria — porque, na
verdade, ele era atencioso, dedicado e, sobretudo, cansava-se
rapidamente de cada uma das paixões que alimentava como um
remédio para o seu destino.
Jaime Ramos percebeu isso, mas não lhe serviria de nada.
Exceto naquele momento em que uma das anotações de Isaltino de
Jesus (uma folha arrancada a um bloco, com a sua letra de
amanuense da década de sessenta, a duas cores, azul e
sublinhados a vermelho) o fez voltar a África de repente, como se a
sua vida o reconduzisse permanentemente ao lugar onde os outros
se perdem ou começam a perder-se.
«África outra vez, chefe. Estou cansado de África.»
«Dizes isso como se fosse uma maldição.»
«Digo isto como se fosse uma repetição.»
«Há gente que nunca saiu de África, Isaltino.»
Jaime Ramos sabia que era ambas as coisas. E que os
portugueses regressam várias vezes a África para comprovar que
não são capazes de amar com paciência mas apenas embalados
pela paixão, essa doença que os arrasta frequentemente para o
abismo, tanto como os eleva aos céus. Mesmo quando a trovoada
se aproxima.
33

O ROSTO DE PAULA ESTAVA ADORMECIDO COMO NUM SONHO. Havia uma


parede em frente da cama, um ruído amável da chuva caindo sobre
todas as coisas — as árvores junto da varanda que escondiam o
mar. Esse foi o primeiro sonho de Miguel dos Santos Póvoa, uma
espécie de recordação de coisas que poderiam não ter existido e
que, por isso, não contaria a ninguém.
Ela saiu do quarto pé ante pé, fechando a porta com um estalido.
Mas atrás de si ficou um olhar, e ele detetou-o, mesmo quando
Paula fotografou o quarto com o telemóvel, em todas as direções.
Na altura fingiu estar a dormir, voltado de barriga para baixo na
semiobscuridade do quarto.
Essa foi a primeira sensação discordante na sua história com
Paula.
A segunda veio alguns dias depois quando ela lhe anunciou que
regressava a Angola e ele viu o seu bilhete de avião em classe
executiva. Tinham dançado durante toda a noite no largo diante da
Assembleia e ela sorrira quando ele lhe perguntou se trabalhava
para o Governo. Ela sorrira, mas ele notara o desconforto, o mesmo
que ele experimentara um mês depois, em plena Avenida dos
Aliados, no Porto: turistas sentados na esplanada do Café Guarany,
funcionários que descem a rua à hora de almoço, rapazes de skate
na placa principal da praça, os plátanos de folhas suaves e
douradas escondendo a fachada do edifício da Caixa Geral de
Depósitos encimado pela inscrição que diz República Portuguesa. E
então viu-o, era um homem alto e magro, o fato cinzento que vira de
outras vezes, muito de acordo com tudo o resto, até com o cabelo
grisalho penteado com cuidado logo depois do banho, o rosto
barbeado, os olhos claros, os lábios finos — e a pasta de cabedal
que transportava na mão.
Ele seguira-o ao longe, cuidadosamente, porque o julgava noutro
lugar, muito distante, no Hemisfério Sul, numa cidade que não faz
parte de nenhum mapa, de nenhum roteiro. Há seis meses, mais ou
menos, o homem convidara-o para uma visita de férias:
«É uma cidade onde não há notícias nem surpresas. De vez em
quando os bandos de fronteira matam um juiz mais entusiasta que
vem aborrecer os negócios, mas isso passa-se do outro lado da
fronteira e sempre a meio da noite. Só há o Pantanal por perto e o
último português conhecido bebia muito e desapareceu no meio do
contrabando. O único hotel de Cuiabá está cheio de fazendeiros que
vêm apanhar o avião para São Paulo ou comprar carros novos que
depois só podem conduzir durante uns quilómetros na estrada
principal. Venha passar uns dias. Ali não há petróleo e o último
general a sério é o de uma fotografia pendurada na prefeitura, um
sujeito de bigodes chamado Werneck, presidente do Lyon’s, ou do
Rotary, não sei bem.»
Mas Miguel não foi logo, ainda que gostasse de fazer a viagem
para São Paulo e, depois, de São Paulo para Cuiabá: gado, soja,
dancings no meio dos descampados, camiões que atravessam
estradas solitárias na direção de Porto Velho, e, como vinha nos
jornais, fazendas a perder de vista, ressequidas pelo calor e pela
seca. Ali, investigara por conta própria, crescia uma ou outra
plantação de maconha não muito longe do Araguaia, e ele gostaria
de testá-la, recolher algumas plantas, trazê-las para o Minho,
aumentar a coleção de Luís.
Demorou uns meses a aceitar o convite mas não foi de avião até
Cuiabá. Desceu em Goiânia, uma cidade suja e desenhada em
quadrícula onde dormiu mal, num hotel de fazendeiros ricos rodeado
de ruas cheias de prostitutas, como imaginava que seria a última
cidade dos bandeirantes que, na hora de partir, mijavam para o alto
só para verificar de que lado vinha o vento. E seguiam. Alugou um
carro e percorreu quatrocentos quilómetros ao longo de plantações
de milho e soja sob um calor abafado e seco que não era o calor
dos trópicos mas o ardor de um deserto vasto e amarelado que só o
Araguaia interrompia a meio do caminho para Rondonópolis, uma
cidade de fronteira onde o contrabando era fácil e o deserto fora
travado por alguns rios dispersos que comunicavam com o
Pantanal.
Ao fim do dia, Miguel alojou-se num hotel em Rondonópolis — um
edifício incolor e isolado onde as mulheres dos fazendeiros vinham
passar a tarde em redor de uma piscina azul, em grupos, falando
alto e bebendo caipirinhas de vodka. Miguel ficou a ouvi-las da
varanda do quarto, fumando um resto de maconha que comprara
em Goiânia, ao porteiro do hotel; eram cinco e, ao fim de pouco
tempo, ele identificava as suas vozes uma a uma, contando histórias
sobre as suas infidelidades, os motéis que frequentavam em São
Paulo quando iam levar as filhas à universidade, os pequenos hotéis
de Cuiabá onde se encontravam com amantes clandestinos para
desonrar o calor eterno do Mato Grosso — e tudo isso lhe pareceu
uma espécie de desvario no meio dos campos de soja, numa cidade
do interior onde os homens ricos viajavam no avião privativo e as
mulheres os traíam com método e circunspeção. Elas riam, Miguel
ria — mas em silêncio, embalado pelo torpor da maconha cujo fumo
desaparecia no horizonte a caminho da fronteira com a Bolívia ou de
fazendas onde proprietários tranquilos sabiam que as suas
mulheres eram adúlteras e os traíam com os motoristas, com
vizinhos ou com advogados formados em São Paulo ou Curitiba e
que vestiam fato e gravata no meio do inferno do Mato Grosso.
Acabou por adormecer com as vozes das mulheres em fundo,
repousando de uma estrada poeirenta, solitária e atravessada por
camiões que tanto vinham do Maranhão como do Paraná. E
acordou quando o restaurante do hotel estava prestes a fechar as
portas, às dez da noite, mas ainda a tempo de comer peixe frito do
Araguaia com cerveja gelada. Deitou-se cedo e acordou cedo, com
aquela luz azulada que se espalhava pelos planaltos em redor, a
melhor hora do dia para viajar — eram apenas duzentos e cinquenta
quilómetros até Cuiabá, cerca de três horas de carro, mais duas
pelo meio da serra até à fazenda onde era aguardado por aquele
homem magro, alto, vestido de calças de linho e camisa
impecavelmente branca, que olhou para ele como um velho protetor
que o tinha iniciado nos negócios.
O general vivia ali há dois anos, comprara a fazenda há muito
tempo e mantivera-a para um retiro anónimo e sem rasto. Abraçou-o
com cautela, como se a roupa de Miguel precisasse de ser mudada
com urgência — e precisava — e fosse necessária uma espécie de
quarentena depois de ele ter passado por aquelas três cidades
cheias de pecado e de pó. Goiânia, Rondonópolis e Cuiabá.
A esta distância, Miguel recordava um casarão vasto e comprido
onde o general comandava uma legião de criados invisíveis que
saíram de esconderijos oportunos transportando água gelada, café,
salgados, um cinzeiro e, depois, um jantar à hora do crepúsculo,
pelas cinco e meia da tarde, junto de uma piscina que não devia ser
muito usada.
O homem estava informado sobre quase todas as operações da
empresa, e mantinha contactos regulares com Luís Ferreira, a quem
visitava de seis em seis meses:
«Mas o país, caro engenheiro, o país está cheio de gente que o
não merece. Antigamente, tínhamos os comunistas; agora, temos a
gente que enriqueceu com o dinheiro da política, com luvas,
comissões, percentagens, participações, bancos em Cabo Verde e
em Luanda. Prefiro, de longe, os comunistas. É gente com que se
pode contar abertamente: odeiam-nos. O ódio fortalece-nos. São do
outro mundo, pertencem a outro planeta, parecem extraterrestres.
Mas estes, engenheiro, estes que agora mandam em tudo, eu não
os queria nem como sócios de uma lanchonete. De um barzinho. Já
começo a falar como aqui no Brasil. Ao fim de vinte anos pertencem
todos à mesma família, casam dentro daquele círculo de relações,
negoceiam com o Estado onde já está a outra parte da família. Os
apelidos de família, com o tempo, são os nomes da empresa.
Aprenda uma coisa, engenheiro: uma coisa é a família, outra coisa
são os negócios. Nos negócios o limite entre o bem e o mal é uma
linha muito estreita. Na família, não. Na família há o bem de um lado
e o mal do outro.»
34

O GENERAL POISOU O COPO SOBRE A PEQUENA MESA onde o criado deixara


marcada uma espécie de geometria mantida pelo hábito: um bule de
café, duas chávenas brancas de porcelana portuguesa (o general
atribuía-lhes grande significado: tinham sido herdadas da família
Ferreira Vasconcelos, uma espécie de oferta de despedida ao fim de
vinte anos de serviço nas empresas da família), um cinzeiro, uma
caixa de robustos Dona Flor, baianos, uma caixa de robustos
Danemann, baianos, feitos à mão em São Félix da Cachoeira, duas
caixas de fósforos imaculadas, um cinzeiro, um cortador de
charutos, uma garrafa de rum, dois copos baixos e de vidro grosso,
e um telefone portátil que colocou fora do tabuleiro, sobre uma pilha
de livros ilustrados que pareciam ter sido folheados muitas vezes.
Era uma sala a que faltava uma parede: estava aberta para o
arvoredo, separada do declive por uma balaustrada de madeira e
era por ali que chegava a brisa tépida e doce, silenciosa.
Miguel reparou que não havia música, não havia televisão, nem
aparelho de rádio — nem mesmo no seu quarto, um salão voltado
para a planície cortada por uma estrada de terra que levava por sua
vez à estrada alcatroada que o trouxera de Cuiabá. Não teve tempo
de identificar as fotografias expostas nas paredes que rodeavam a
mesa onde tinham jantado, servidos pelo mesmo criado que
trouxera o café.
O general serviu-o, abriu uma das caixas de charutos e escolheu
um robusto escuro a que cortou a ponta e que acendeu com um
fósforo a que deixou arder, primeiro, uma parte da haste. Nada de
trejeitos, de ademanes, de cerimoniais, reparou Miguel: um homem
que fez o que tinha a fazer, como ele se recordava dos dois anos
em que trabalhara com ele ou em que se encontravam todas as
semanas. Faziam-no em lugares banais, num escritório do Porto,
num hotel em África, à mesa de um restaurante de aeroporto de
onde partiam para destinos diferentes.
«Esteve na guerra onde, general?», Miguel perguntara-lhe uma
vez.
«Angola. E na África toda. Estive sempre em guerra, engenheiro.»
Era um rosto fino e muito barbeado, o nariz liso, as unhas
aparadas e o cabelo penteado para trás, grisalho, como se
estivesse sempre ligeiramente molhado. Nunca lhe vira realmente
os olhos e não saberia dizer se eram castanhos ou castanhos e
esverdeados, ou cinzentos, ou negros — eram escuros. Isso
bastava porque, mal o sol ficava um pouco mais forte, usava uns
Ray-Ban que dominavam quase todo o rosto e escondiam as
pupilas inquietas daquele homem que tinha nome mas que todos
tratavam por general.
Por duas vezes, Miguel lembrava-se, na casa de Luís Ferreira,
tentou fazer perguntas sobre a guerra — o general desenhou um
risco invisível na toalha branca onde caíra uma gota de vinho:
«A nossa guerra é outra, engenheiro.»
A nossa guerra, pensa Miguel dos Santos Póvoa, é feita por
generais reformados que conhecem os generais reformados que já
foram seus inimigos. E todos partilham despojos de um mundo
perfeito e organizado por subterrâneos que só eles conhecem: vias
rápidas por onde escorrem dinheiro e informações, petróleo e
mensagens discretas trazidas por homens discretos que nunca
dizem de onde vêm e de que nunca saberemos o próximo destino,
ou onde voltaremos a vê-los de novo, e se estarão vivos, ou mortos,
ou recolhidos numa fazenda no Mato Grosso, ou num lar onde
foram depositados por filhos demasiado jovens ou apenas
demasiado egoístas.
Um dia perguntara a Luís Ferreira quem era realmente o general.
Luís tinha acendido um cigarro de marijuana do Belize (uma
raridade cultivada entre ruínas maias, em Altún Ha) e entrara
naquele período de ligeiro torpor que antecederia a chegada de uma
euforia que o despertava para confissões desnecessárias ou para
conversas intermináveis — mas foi lacónico:
«Um amigo. Era amigo do meu avô, amigo do meu pai. Esteve em
Angola, passou pelas Informações, entrou para a empresa como um
sócio que não está no papel. A função dele é saber tudo o que se
passa, seja onde for. Na cozinha desta casa ou numa reunião de
ministros em Luanda. Ou na Venezuela.»
«Tem uma rede, portanto.» Miguel tentando continuar a conversa.
«Ele é a rede. O chip. O banco de dados. Descobri-o há muito
tempo, mas quem o trouxe foi o meu pai. Ele praticamente vivia num
sótão de Lisboa, desconhecido de quase toda a gente, rodeado de
fichas e arquivos. Ele é o arquivo. Em setenta e oito, setenta e nove,
ele era a garantia de que havia serviços de Informação. Os militares
tinham-no lá porque não incomodava ninguém. Nos anos oitenta, os
civis pediam-lhe informações mas ele resistiu sempre. Em nome da
pátria, do exército e dessas velharias. Sim, tinha uma rede, mas era
pessoal, antigos colegas de armas, compadres de lá da terra que
tinham ficado sem ocupação fixa. Nessa altura, quando os políticos
entraram em todo o lado, ele foi contratado pelo meu pai. É desde
essa altura que tem a vida assegurada. É o general.»
«E tu ficaste com as informações.»
O outro rira de repente, engasgando-se com o fumo, o resto do
cigarro enrolado. Estavam na varanda e Miguel partiria no dia
seguinte para África.
«Não, as informações não me interessam. Fiquei com o general, o
que é diferente. As informações são dele, uma dor de cabeça.»
Quatro anos depois o general retirara-se para uma fazenda no
Mato Grosso (Jaime Ramos chegaria a esta informação por acaso)
e agora, sentado à sua frente, fumava um Dona Flor robusto que ele
recusara experimentar.
«Você veio aqui, engenheiro, porque tem um problema. Isto não é
um lugar para férias, não é um lugar para novos. Tudo à volta seca
e transforma-se em deserto. Os portugueses que vieram para o
Mato Grosso são de três categorias. A mais desconhecida é a dos
fazendeiros que vieram criar gado e plantar milho e foram obrigados
a desistir. Subiram para Goiás, mais tarde ou mais cedo, ou
regressaram a São Paulo ou a Minas. É a categoria mais
interessante, porque ninguém dava nada pela loucura deles. Nos
anos setenta, o regime inventou a colonização interna e deu terras
aos fazendeiros do Paraná, aos gaúchos ou a quem pedisse. Eles
tinham um sonho, os gaúchos, alemães ou italianos: criar índios de
olhos azuis, misturarem-se com o Mato Grosso, e enriquecer. Desta
vez resultou. É o limite do celeiro do Brasil, que começa a oeste de
São Paulo e de Minas. A segunda categoria de portugueses do
Mato Grosso era a dos funcionários do Estado. Vieram, ficaram e
reproduziram-se. A terceira era a dos bandidos que gostam de
zonas de fronteira, onde se pode fazer contrabando fácil, justiça
rápida e escravatura com os índios. Também vieram. Também se
reproduziram, mas desapareceram.»
«E o senhor, general?»
«Eu não faço parte do mundo. Estou retirado. Sou um velho que
enviuvou muito cedo, sem filhos e com algum dinheiro. Passo aqui
metade do ano a mexer em papéis. À minha maneira sou um
historiador, engenheiro. Há quinze anos que alimento um cancro,
uma companhia incómoda que me leva a São Paulo de dois em dois
meses. Com algum dinheiro tenho acesso a um hospital de luxo
onde não faço perguntas e me deixam fumar um charuto por dia na
varanda do quarto, que dá para o estádio do Corinthians. Depois
vão pôr-me ao aeroporto e volto para Cuiabá.»
«Não se sente sozinho?»
«Não», disse ele entre uma nuvem de fumo. «Tenho os meus
papéis, sou importante há dez anos, faço ginástica e dou passeios a
cavalo. Há uns rapazes e umas raparigas que, digamos, preenchem
a minha necessidade de sexo. Já não tenho família, sou peça única
e fiz um testamento estapafúrdio uma vez que sou viúvo. E agora
diga-me: o que anda a incomodá-lo?»
E Miguel dos Santos Póvoa recuou uns meses, falou-lhe de São
Tomé, falou de Luanda, falou de Paula, falou de como
desapareceram os seus papéis em Argel, falou de Paula outra vez e
de como a reencontrara em Luanda, onde encontrara os russos da
Costa do Marfim, falou de como tinha decidido contar-lhe isto a ele,
general, antes de falar com Luís Ferreira. Mas havia uma razão para
isso. Uma razão perigosa.
35

UM FINAL DE ANO APARECEU NA SUA MEMÓRIA COMO UM CLARÃO. É nesse


momento que tudo se interrompe para que Jaime Ramos possa
voltar atrás e reconstituir cada anotação da agenda de Miguel dos
Santos Póvoa. Por isso, um final de ano apareceu na sua memória
como um clarão, quando todos tinham feito as malas e partido
estrada fora, num regresso triste a casa. As passagens de ano eram
uma espécie de compensação profana pela perda do Natal de
antigamente e, nessa altura, havia casas de família desocupadas no
Algarve: vivendas abandonadas depois do verão com as piscinas
vazias e os jardins acumulando folhas velhas e arbustos que nunca
sobreviviam mais de duas estações, em urbanizações solitárias a
que o tempo iria emprestar humidade nas paredes e grafitti em
muros voltados para arruamentos desertos.
Ele não pertencia a essas famílias que, durante uma ou duas
décadas, pediram empréstimos bancários para comprar uma
segunda casa no Algarve, um apartamento não muito longe da
praia, um refúgio de classe média para férias modestas; e estava
longe das que prolongavam no Algarve o bem-estar das suas casas
principais, porque o mundo dos ricos sempre lhe fora vedado. Mas
participava de ambos os grupos na categoria de convidado; era
aquele «que aparecia», que se alojava em qualquer lado, arrastando
um saco com livros e um computador, uma mochila com duas
mudas de roupa ou um chapéu que todos pediam emprestado na
praia. Dormia num quarto de solteiro e levantava-se mais cedo do
que os outros, os donos das casas, que se arrastavam com a roupa
do dia anterior pelas varandas e corredores, despertando de uma
noite curta e embebida em álcool.
Eram férias de empréstimo — e recordações de mulheres
casadas com quem fazia sexo em praias desertas e mal iluminadas
enquanto os maridos cuidavam dos filhos ou preparavam jantares
no terraço. Fingia-se de inocente, de menino abandonado, de
adolescente a que a sua qualidade de órfão emprestava dignidade.
Era preciso protegê-lo. E ele aproveitava a proteção, deixava que o
convidassem para essas semanas de verão, ou uma semana aqui e
outra ali, passando de uma casa para outra, aceitando aquela
generosidade que o transformava numa pessoa querida, porque
sabia agradecer — trazia uma garrafa de vinho para o jantar,
biscoitos para as senhoras, discos para os maridos, ia comprar os
jornais logo de manhã, mergulhava na piscina com as crianças e
regava as plantas do jardim ao fim da tarde. Essa pessoa tão
elegante. Esse rapaz a quem o destino roubou os pais.
Mesmo sobre esse assunto pairava uma espécie de pudor que o
protegia de esclarecimentos mais minuciosos. O pai e a mãe
desaparecidos durante uma viagem pelo Oriente, quando tinham
aproveitado um mês de férias para regressar a Goa e, depois, por
uma pequena aventura na Índia; e, então, a notícia do acidente
apanhou-o em casa dos tios: os teus pais morreram num acidente
de carro em Jaipur, a caminho de Samode Haveli. Os corpos
chegaram duas semanas depois para um funeral rápido onde
compareceram a família e amigos dos pais numa espécie de
homenagem aos aventureiros que cruzaram as estradas de pó do
Paquistão, rondando Lahore, já depois das monções de setembro,
quando as aulas recomeçavam, e que nunca regressaram a Goa,
que nunca regressaram a Lisboa, que nunca regressaram a nenhum
lado. A bagagem que acompanhava os corpos dos pais tinha sido
cuidadosamente reduzida no Paquistão; de tudo o que chegara na
altura, ele conservava ainda as quatro camisas brancas de manga
curta (Made in India. Hashim Butalia & Sons. Calcutta & Lahore) que
de vez em quando usava no verão; um cachimbo que teria sido
usado para fumar haxixe; um canivete suíço gravado com o nome
do pai, NSP, em letras brancas cursivas; dois vestidos da mãe,
embrulhados em papel de seda; uma carteira de homem, de pele,
onde cabiam todos os documentos de identificação dos pais — o
resto desapareceu com o tempo, e o que não desapareceu ele
queimaria mais tarde, depois da faculdade, quando decidiu que já
não era órfão.
Mas era. Fora bom aluno porque era órfão desde os catorze anos,
não casara porque era órfão, viajara pelo mundo inteiro porque era
órfão. Não órfão de todo, porque os seus tios cuidaram dele,
compravam-lhe roupa, vigiavam-lhe as companhias, exigiam bom
comportamento, abriram-lhe a primeira conta bancária e libertaram-
no de obrigações quando chegara a altura. E ele recordava aquele
tio discreto, professor de Matemática, sorrindo-lhe de vez em
quando, sem nada para lhe dizer senão banalidades sobre como a
vida seria má se ele não estudasse, se não trabalhasse, se não
fosse o melhor da turma ou o melhor do liceu, como uma espécie de
prova adicional que teria de passar por ser órfão. Na verdade, ele
era órfão daqueles pais que tinham desaparecido num país
longínquo, que fumavam erva, se deitavam tarde e nunca tinham
envelhecido na sua imaginação — a que recordava a beleza da
mãe, o cabelo grisalho do pai, uma casa habitada por hordas de
amigos e desconhecidos e uma série de dívidas acumuladas e que
os tios se encarregaram de liquidar ao longo dos anos.
Era um assunto arrumado. Havia apenas um final de ano que
aparecera de repente como um clarão na sua memória. Teresa tinha
vários apelidos, que usava conforme a circunstância, e era
vagamente loira de acordo com a estação do ano. Combinavam
encontros sempre em lugares diferentes; ela desculpava-se com
afazeres de família ou assuntos de trabalho — tudo desculpas
vagas, porque se limitava a enganar um marido ciumento que sabia
que era traído e com quem ele trocava confidências ou discutia
futebol. E ele, sim, jogava aquele jogo: vinha de comboio, do Porto
para Albufeira, convidado para fins de semana prolongados no início
da primavera, animado por uma promessa de risco e de sexo muito
indecente, imaginando onde Teresa queria que ele se escondesse,
esperando-a. Uma praia, noite alta, depois de percorrerem os bares
da moda; a varanda sobre o jardim de casa, depois de todos se
deitarem; um motel que costumavam usar e onde ouviam música
que depois trauteavam no dia seguinte, em família, como um código
que só os dois conheciam.
«Estamos a arriscar muito», ele dizia.
«A vida é assim»: seminua, escovando o cabelo, sentada ao
fundo da cama. Ele sabia que a vida era assim. E gostava daquele
crucifixo que Teresa usava no fio de ouro, sobre a pele morena,
madura. E das mensagens que lhe enviava enquanto jantava em
casa dos sogros ou depois de levar os filhos ao colégio, uma escola
de padres rodeada de árvores e com enormes vitrais voltados para
a rua. «Não consigo esquecer-me de ti a sair do banho, o cabelo
molhado, bonito.» «Saudades do teu pau.» «Molhada para ti.» O
prazer de ser vulgar, de apreciar a vulgaridade. Ele sabia que a vida
era assim: Teresa e os seus três ou quatro apelidos mais
conhecidos num motel escondido entre amendoais na estrada de
Portimão, o que o excitava muito: a cama redonda, as luzes, o
cheiro a erva, a tontura da erva, o desprendimento, a ousadia que a
erva concedia, aquele torpor, os filmes pornográficos, a memória da
viagem de comboio entre o Porto e Albufeira, aquela vulgaridade,
sim, aquela espécie de amor, o perfume do seu ombro, do pescoço,
dos pulsos, do cabelo solto sobre uma almofada grande de mais, a
canção de Morrissey que o elegia como herói, First of the gang to
die, e então ela chamava-lhe Hector, porque, na canção, «Hector
was the first of the gang with a gun in his hand, and the first to do
time, the first of the gang to die», «and he stole all hearts away», ele
tinha uma arma e era o herói de Teresa, seria o primeiro a morrer se
fosse preciso, seria um herói naquele mundo de gente acomodada
em empregos estáveis e em famílias católicas. «Fode-me muito»,
pediu ela, como se pedisse «ama-me muito, a minha vida já não tem
sentido».
36

NAQUELE FIM DE ANO, O CONVITE VEIO COMO ELE CONTAVA — mas, em vez
do comboio, foi de carro, atravessando o Alentejo ao crepúsculo,
ouvindo música e trauteando canções antigas que os seus pais
teriam ouvido numa viagem como aquela, rasando a planície
enquanto escurecia. O que Miguel dos Santos Póvoa recordaria não
teve nada a ver com o final do ano, nada a ver com Teresa (uma
amante fácil, uma história cómoda) — só um clarão, uma espécie de
contemplação dos dias que chegavam. Na manhã de dia 31 de
dezembro saiu de casa muito cedo, como costumava fazer para
evitar os pequenos-almoços em grupo, mas, especialmente, para
evitar Teresa — a pele de Teresa debaixo do roupão de turco
amarelo — a barrar torradas com manteiga, distribuindo-as pelos
dois miúdos que jogavam playstation, enquanto o marido, sentado
ao balcão da cozinha a beber café, despenteado, consultava o
telemóvel para reclamar um e-mail que não chegava. Caminhou
junto da marina, até descobrir uma esplanada para se sentar. Pediu
um café, uma água. Veio o sol, entretanto — Jaime Ramos haveria
de reconstituir esta cena depois de várias tentativas, ouvindo a
imaginária descrição de Miguel dos Santos Póvoa, sentado à mesa
do que chamavam «sala de interrogatórios» (um gabinete sem
escutas nem material para gravação onde tomavam notas de
declarações para inquérito). Depois disso, Jaime Ramos tomou
outras providências, fez pedidos extraordinários (horários de voos,
registos em hotéis, alugueres de carros, escutas impossíveis), mas
nunca conseguiu aquela nitidez que reservava para momentos fatais
numa investigação, «o momento em que tudo se interrompe para o
senhor inspetor poder voltar atrás», como Isaltino de Jesus gostava
de dizer.
«O que aconteceu então?»
«Alguém pousou um jornal em cima da mesa.»
«Que jornal?»
«Isso tem importância?»
«Não. Mas eu gostava de saber.»
«Um jornal inglês. O Guardian, acho, um jornal inglês.»
«E que mais aconteceu?»
«Ele pediu para falar comigo. O homem.»
«Você deixou que ele falasse consigo.»
«Claro», Miguel espantado. «Ele sentou-se e falou.»
«Que idade tinha? Como era ele? Falava português?»
«Claro que falava português, claro que falava.»
«Tinha um jornal inglês na mão.»
«Já lá vamos.»
«Vamos, sim. E quanto ao homem?»
«Era angolano, vim a saber depois. Era negro. Quer dizer, meio
mulato. Vestia bem e falava bem.»
«E o jornal, porquê o jornal?»
«Lá dentro estavam fotografias. Eram fotografias de mim e da
Teresa.»
«Ah», fez Jaime Ramos. «Pela boca morre o peixe.»
«Como?»
«Tantas vezes vai à fonte.»
«Não percebo.»
«Alguma vez teria de acontecer. Numa semana fizemos o
levantamento dos seus estragos conjugais, sabemos do que
falamos. A culpa não é nossa.»
«Isto é uma questão moral?»
«Não, nunca é. Nem é um problema. E, se fosse um problema,
era de saúde pública, se me faço entender. Eu não tenho moral nem
para mim. As fotos comprometiam-no assim tanto?»
«Eram fotos com a Teresa. Fotos num hotel, no quarto de um
hotel.»
«Só isso?»
«Não. Havia fotos em várias situações, em alturas muito
diferentes, em lugares diferentes. Quem tirou aquelas fotos vigiou-
me ao longo de vários meses, e é isso que eu não entendo.»
«Tem essas fotos consigo?»
«Posso ir buscá-las.»
«Nós vamos buscá-las onde for preciso, não se incomode. A sua
amiga recebeu uma cópia dessas fotos?»
«Não, até agora não, e já passaram cinco meses. Mas há uma
coisa que me surpreende.»
«Com a idade isso passa. Qual é a surpresa?»
Miguel dos Santos Póvoa tinha o estranho costume de baixar os
olhos a meio de uma conversa e de voltar lentamente ao mesmo
ponto sem alterar o tom de voz:
«Porquê fotos em papel, e não por e-mail?»
«Há gente que trabalha à antiga, sem deixar rasto. Gente de
antigamente, engenheiro. E há outra coisa: eles precisavam de ver a
sua reação, de vê-lo de frente, de perceber até que ponto o
incomodavam essas fotos. Incomodaram?»
«Na altura, não. Pareceu uma brincadeira. Julguei que era um
daqueles detetives privados que trabalham em casos de adultério,
podia ter sido contratado pelo marido da Teresa.»
«Havia essa possibilidade. Mas acha que ele esperava pelo fim
do ano, pelo último dia do ano, por uma viagem ao Algarve?»
«Também achei estranho, mas podia ser. Os meus amigos são
muito estranhos», Miguel olhando a parede onde, ao longo dos
anos, tinham sido colados cartazes, avisos de intendência, anúncios
sobre animais abandonados e casas de férias para alugar.
«Mas há gente mais estranha, não há? A sua surpresa não foi
essa, pois não? Que as fotos tivessem chegado em papel ou pela
internet, isso não foi a surpresa, pois não? O que é que o
surpreendeu de verdade?»
Fez uma pausa. Teria de fazer uma pausa, pensou Jaime Ramos.
«Uma das fotos não era com Teresa. Era com Paula. Estava
assinalada por um Post-it amarelo, e o que me surpreendeu nem foi
isso, ser uma foto com Paula, porque eles andavam a vigiar-me, não
é verdade? Eles andavam atrás de mim. Devem ter fotos minhas
com outras pessoas, devem ter. O que me surpreendeu é que essa
foto com Paula não foi feita em Lisboa, nem no Algarve, nem no
Porto. Ou em Lisboa. Ou em Luanda, o que seria natural.»
Nova pausa, mais prolongada, mas Jaime Ramos não estava em
condições de dar tiros no escuro.
«Na Nova Zelândia?», limitou-se a sorrir.
«São Tomé.»
«Fale-me dessa Paula, engenheiro. Acho que vamos demorar
ainda um pouco.»
37

ELA GOSTAVA DE ENROLAR UM CIGARRO DURANTE O JANTAR, enquanto


esperavam a sobremesa — e de guardá-lo numa caixinha de prata
quase feita à medida, com um fecho de jaspe vermelho. Esse era o
sinal. Depois, Paula brincava com o cigarro entre os dedos, um
cigarro perfeito — Miguel dos Santos Póvoa recordava-se dos
cigarros que saíam da máquina de Luís Ferreira, redondos, a ponta
de filtro marcada com um V dourado, mas nenhum era tão generoso
como os que Paula enrolava.
«Liamba pura, pura. Pedrada dos céus», dizia. Uma espécie de
gourmet que gostava de sacrificar cada minuto de duração da
cerimónia. Até lá, ela bebia vinho, acompanhava-o num whisky, mas
nada a dispunha para um humor descontraído como o líquido
gelado das caipirinhas, porque o sumo de lima combatia o stress,
garantia. Miguel sabia que era o açúcar, o encontro perfeito de gelo
e álcool, a mistura perversa com um fim muito preciso: deixar uma
tontura que depois se acrescentava a todos os gestos de Paula,
levemente alcoolizada. «Faz o que quiseres de mim.» Ele sorria,
bebia whisky, misturava água e gelo para que a bebida fosse mais
fácil, mais adolescente, enquanto Paula pedia nova caipirinha, ou
ele pedia nova caipirinha para Paula.
Uma noite em Luanda, ele daria a vida por uma noite em Luanda
vista do terraço do hotel, quando os bairros pobres desapareciam do
horizonte, quando os ruídos do centro se limitavam a uma
motorizada que passava, quando um carro da polícia atravessava
as colinas — e se ouvia apenas uma espécie de eco de cada coisa
que diziam. Uma noite em Luanda. A ilha vista daí, do terraço do
hotel, a ponte que funcionava como uma restinga suspensa, uma
gota de suor no lábio superior de Paula, o ombro, o colo imaculado,
a pele lisa, aquele torpor, o cheiro a sexo à mesa do restaurante, o
riso dos criados que adivinhavam aquele resultado e se afastavam
quando Paula se levantava e levantava os braços, espreguiçando-
se. Depois ele levantava-se também, segurava-a pela cintura,
descia um dedo pelo ombro de Paula, deixava cair a mão, ela
encostava o corpo ao seu, e Miguel pressentia que a felicidade
existia ou, pelo menos, que uma espécie qualquer de felicidade
havia de romper na sua vida e que Paula a anunciava com o seu
sorriso.
O que sabia dela? Pouco, quase nada. O pai, um general
reformado do Cuanza Sul que vivia num hotel. Estudos em França e
na Suíça, depois nos Estados Unidos. «Nasci em Luanda, isso é
suficiente.» Mas não era. Aos poucos conheceu os dormitórios de
uma universidade em Rhode Island, os passeios na neve americana
da Nova Inglaterra, o namorado que foi abandonado num terminal
de aeroporto e que chorou quando ela partiu definitivamente para
Angola, em julho de 2006. Conheceu um apartamento parisiense
que o pai de Paula comprou para que ela pudesse, durante três
anos, estudar os mistérios da ciência política (também aprendeu a
dizer SciencePo). Conheceu dois jovens funcionários da embaixada
de Angola em Paris, emitindo vistos e jantando em restaurantes
brasileiros. Conheceu voos de longo curso entre África e a Europa.
Hotéis em Londres, onde Paula era recebida como uma cliente
regular e onde deixava uma mala com roupa para a próxima estada.
O apartamento de Lisboa, voltado para um jardim onde um
motorista branco lia os jornais enquanto aguardava o pai, e depois o
levava a almoços no Guincho para tratar de negócios ou de política.
Conheceu a areia da antiga Novo Redondo, do Sumbe, a ondulação
do mar, as pontes de madeira sobre o leito do N’gunza, as nuvens
brancas sobre a estrada para Cela. Conheceu a irmã de Paula,
Liliane, que vive em Londres. Conheceu a varanda de uma casa
debruçada sobre um planalto cuja descrição não pôde fixar, mas
onde a chuva de abril se despede deixando nuvens de cinza
pousando sobre toda a terra. Conheceu um caderno onde Paula
compõe o seu diário incompleto, onde cola fotografias dos lugares
por onde passa, cartões de embarque, pacotes de açúcar vazios, e
onde escreve com canetas de três cores (preto, azul, sépia). E
soube que o pai de Paula enviuvou antes de casar com Irene, a mãe
de Paula e Liliane, e que Irene também morrera — há cinco anos,
de cancro, em Lisboa. E que o prato preferido de Paula é camarão
frito (com batatas fritas) nos restaurantes da Ilha de Luanda, que ela
acompanha com cerveja. E que Paula gosta de cozinhar. Conheceu
também a música que a acompanha nas suas viagens. Soube que
as viagens se relacionam com o seu trabalho, e que esse trabalho é
feito para um banco angolano que agradece todas as suas
informações sobre investimentos, os seus pareceres sobre negócios
em curso, os seus relatórios sobre as implicações políticas desta ou
daquela decisão, as suas listas de pessoas a contactar para este
negócio ou aquela operação financeira, os seus cálculos e previsões
— porque foi isso que aprendeu a fazer em Rhode Island, sem falar
no curso de SciencePo em Paris. Conheceu tudo isto através de
Paula, em conversas longas depois de jantar ou na cama de um
hotel onde se demoram a falar do que calha — e Miguel gosta disso,
de conversar, de descer o braço pelo corpo de Paula, das pernas de
Paula pousadas sobre o seu peito, da luz que vem da janela e que
anuncia a madrugada africana, cedo de mais, sempre muito cedo.
Desde o primeiro encontro, em São Tomé, até ao mais recente,
em Luanda, passaram quase oito meses. Ela enrolava um cigarro
durante o jantar, enquanto esperavam a sobremesa — depois
guardou-o na caixinha de prata. Miguel dos Santos Póvoa tomou
nota mentalmente, como se precisasse de se recordar disso mais
tarde.
«Tesão por ti», disse.
«Branco maluco», ela tocando com a perna o tornozelo de Miguel,
por baixo da mesa. Era isto que, na altura, sabia de Paula.
38

VOLTOU A VÊ-LA NAQUELE DOMINGO DE MAIO depois de ter recebido o


recado, curto, de duas linhas, a avisá-lo de que o general o
esperava em Luanda. Melhor: que o esperavam em Luanda. Depois
de uma semana em Cabinda, ele suspeitou que fosse o general a
recebê-lo — e Luanda, depois de uma semana em Cabinda, parecia
o paraíso quando o avião começou por rondar a baía e ele olhou
para o relógio enquanto acordava: sete e meia. Um carro esperava-
o junto do passeio. A viagem, antes das oito da manhã, ao domingo,
é rápida e, ao longe, oferece o retrato da Ilha ainda por despertar,
depois de uma noite de bebida e de uma chuva tépida que deixa
manchas de água e lama ao longo da estrada.
Desta vez não é o quarto habitual (de onde tem a vista habitual
sobre a língua de areia que separa a cidade do mar azul e quieto, o
promontório de São Paulo mais adiante), nem o hotel habitual,
ocupado com um congresso. O carro leva-o para fora de Luanda,
por uma estrada interminável e alaranjada. Toma um pequeno-
almoço rápido antes de dormir um pouco, deitado sobre uma cama
larga, limpa e acolhedora. Vida de hotel: dormir em hotéis
desconhecidos e em hotéis conhecidos, retomar os seus próprios
hábitos entre as obrigações da vida de hotel — saber qual é a
melhor hora para fugir até ao piso da piscina, conhecer o barman do
fim da tarde, sorrir à rececionista (sobretudo a ela), pedir táxis ao
porteiro (e dar-lhe dois dólares).
Recordação de Miguel dos Santos Póvoa: acaba de almoçar no
restaurante do hotel e, antes de abandonar a sala, percorre as
mesas do buffet de domingo verificando que não ficou nada de
importante para provar: muamba de galinha, quizaca, ensopado de
peixe, feijão com óleo de palma, batata-doce, funje, arroz de
garoupa, peixe seco assado, caldeirada de cabrito, galinha de
cabidela, camarões com quiabos e leite de coco, calulu de peixe,
diongo de banana, pudim de coco, pequenas amostras do apetite
familiar. Ele é magro, alto, usa óculos, o cabelo curto está
demasiado despenteado sob um boné de basebol azul-escuro.
Também calça ténis e a T-shirt vermelha de costuras descosidas,
atrás, tem escrita a palavra Athletic. Mas é domingo. Ao fundo da
mesa há uma família brasileira e a ele parece-lhe que aquele
homem alto que bebe Coca-Cola é parecido com um jogador de
futebol famoso há uns anos, Rivaldo.
«Parece o Rivaldo», diz para um criado.
«É o Rivaldo.»
Fica sentado a uma mesa da pequena esplanada diante da
piscina. Escolhe a mais recolhida de todas porque quer enrolar um
cigarro. Trazem-lhe um café e, semicerrando os olhos por causa da
luz do sol, repara na mulher que mergulha na piscina. Um mergulho
perfeito, os círculos de água afastando-se do lugar onde ela
mergulhara. Depois, ela volta à tona, começa a nadar de costas,
lentamente, e ele repara nos seios, os seios flutuando na água da
piscina como uma miragem da tarde de domingo, uma recompensa
pelo almoço sem gosto que devorara depois de uma noite mal
dormida.
«Parece o Rivaldo.»
«É o Rivaldo.»
«Parece um hotel na Florida.»
«É um hotel na Florida.»
«Parecem seios a flutuar.»
«São seios a flutuar.»
Ri sozinho, à medida que enrola o cigarro, uma mistura de duas
ervas que trouxera de Cabinda — e, quando termina a operação,
acende-o e inspira devagar o fumo perfumado que depois
desaparece no ar, na direção dos andares superiores do hotel.
«Parecem as mamas da Sophia Loren.»
«São as mamas da Sophia Loren.»
Aspira o perfume. Limpa com a mão o suor que aos poucos se foi
acumulando na testa e, para disfarçar o embaraço, coloca o pacote
de tabaco de enrolar sobre a mesa, ao lado do cinzeiro. Uma tontura
começa a envolvê-lo e a manietá-lo, enquanto deita a cabeça para
trás, olhando para o alto, para o céu azul de Luanda. Não de
Luanda, propriamente — o hotel onde fica estes dias está a
cinquenta quilómetros de Luanda, ao pé de Quibala, e, portanto, não
há mar, não há humidade, e também não há ruído. Só um planalto
seco e quente em redor daquele hotel cuja piscina parece a de um
hotel de Miami.
«Parece um hotel de Miami.»
«É um hotel de Miami.»
«Parece-me o engenheiro Póvoa», ouve então à sua frente, e
baixa a cabeça devagar. Um negro sorridente estende-lhe uma mão
suada e Miguel dos Santos Póvoa reconhece-o e mostra uma
surpresa que não sente.
«Sou o engenheiro Póvoa, meu general.»
«Bem vindo, engenheiro», o homem sentando-se e apontando
para a chávena de café. «Toma um whisky?»
«Não, general. Obrigado. Muito calor, muito sono e muito whisky
nos dias anteriores.»
O outro riu, dentes brancos, os olhos fixando-o com intensidade.
«Tudo bem em Cabinda, engenheiro?»
«Como sempre. O trabalho foi feito, as plataformas trabalham
bem, as amostras são de primeira qualidade», Miguel observando,
sobre o ombro do general, a mulher que saía da piscina, maillot
azul, gotas de água, o cabelo frisado e escorrido.
«Estamos a provar vinho, engenheiro. Vinho angolano, vindo do
Sul, de uma fazenda onde plantámos vinhas há oito anos. E chegou
agora o primeiro vinho. Quer fazer-nos companhia?», o general
levantando-se, de camisa vermelha e calções de caqui.
Ele recusa, sempre com um sorriso. Vou preparar-me para a
sesta, general. Faz muito bem, mas pense na experiência que
perde: vinho angolano, o outro afastando-se com um aceno,
aguardado numa mesa onde outros homens estão sentados. Daí a
pouco riem todos e bebem vinho. Há algumas mulheres em volta.
Uma delas era a nadadora que Miguel vigiara do seu lugar:
braçadas firmes, crawl e costas, mergulho, mariposa, ir ao fundo e
voltar, os seios desenhados para prolongar todos os seus
movimentos, as unhas pintadas de negro, dois brincos que de
repente brilharam à luz do sol na sua pele de caramelo. Daí a dez
minutos, quando decidiu ir para o quarto («preparar-me para a sesta
de domingo»), atravessa o pátio e ouve o general chamá-lo.
«Engenheiro.»
Ele acena-lhe, de longe, mas o outro é insistente:
«Engenheiro Póvoa.»
Miguel dirige-se para a mesa onde aquela pequena multidão
festeja o triunfo do general vitivinícola, cumprimenta todos, os seus
olhos encontram os da nadadora, evitando olhar os seios.
«Engenheiro Póvoa», ele apresentando-o a todos. «Venha aqui
comprovar que além de petróleo, a sua especialidade, também
produzimos vinho. Tragam um copo. Nem só de petróleo vive o
homem.»
Entretanto, diz os nomes dos presentes, um a um. Miguel aperta-
lhes as mãos. E, finalmente, apresenta a nadadora:
«Lurdes. Doutora Lurdes Varela. A nossa diretora de marketing.
Ela vai tentar vender-lhe este vinho, engenheiro.»
Ela sorri e estende a mão, as unhas pintadas de negro, a pele de
caramelo-escuro, a joia do marketing em África.
«Muito gosto», ela diz, um pano tapa-lhe agora o peito, mas
Miguel dos Santos Póvoa sente uma tontura ligeira à medida que,
em câmara lenta e diante do silêncio de todos os outros, se debruça
para cumprimentá-la.
«Hoje em dia sabemos muito de marketing», ouviu então aquela
voz atrás de si. Voltando-se, viu-a, óculos de sol demasiado grandes
para o seu gosto, aquele fio com um minúsculo anjo de prata
suspenso no pescoço, os lábios desenhados a vermelho.
«A Paula aparece quando menos se espera. Vinda de nunca se
sabe onde», brincou o general, bebendo um pouco daquele vinho
escuro que, percebeu Miguel daí a pouco, nenhum marketing
salvaria. «Paula, o engenheiro Miguel.»
«Como está?», Paula estendendo a mão. «O general já lhe
vendeu algum vinho?»
«Ainda não. Trabalho em petróleo, analiso amostras de petróleo.»
«Falta pouco para se interessar por vinho. Aqui todos nos
interessamos», o general ri. A diretora de marketing ri, espreita
Miguel por cima dos óculos de sol, o pano desceu um pouco sobre o
peito, alguém lhe quer mostrar fotografias de vinhas angolanas num
telemóvel, ele acaba por pedir uma cerveja quando Paula se levanta
e se despede de todos com um aceno, lembrando que os domingos
são bons para dormir uma sesta.
«Temos de combinar uma viagem até à fazenda. Ficamos lá no
próximo fim de semana», propõe o general, quando Miguel fixa de
novo a diretora de marketing. «Lurdes, temos de combinar isso.»
Um zumbido no telemóvel desperta-o daquela conferência de
alegres produtores de vinho africano, e Miguel verifica que tem uma
mensagem de Paula. Lê-a e deixa-se estar, a escutar as
gargalhadas à sua volta, o tilintar de copos, as conversas sobre
vinho. Tem a impressão de que está ausente, mesmo quando a
diretora de marketing muda de cadeira e finge olhar
melancolicamente na direção contrária, como se tivesse saudades
da piscina de onde acabou de sair e onde fixou o olhar daquele
português alto, de boné de basebol, que entretanto se levanta e
cumprimenta todos, a voz pastosa do meio da tarde.
«A sesta, engenheiro?», pergunta o general.
«A sesta, general.»
«Tenha cuidado com os sonhos durante o dia, geralmente são
perigosos.»
«Nunca sonho durante o dia», disse, mas era mentira. O seu
sonho era Paula, que o aguardava no quarto. «Roubei-te a chave do
quarto», dizia a mensagem no telemóvel.
39

NÃO LHE TOQUES. Foi como se Luís Ferreira, aliás Luís Ferreira
Vasconcelos, lhe dissesse, enquanto acendia um cigarro, um dos
seus, enrolado há pouco e largando aquele perfume agridoce pela
varanda:
«Não lhe toques.»
Miguel dos Santos Póvoa não lhe tocou, Luís Ferreira não dissera
nada. Olhara para ele e, depois, fez um gesto para a janela como se
o convidasse a observar o tom do crepúsculo, o bosque de pinheiros
que descia para as dunas, os penhascos quase diluídos entre a
neblina da tarde, do outro lado da foz do Minho — vês como é bela
a vida? Bela, interessante, cómoda, com paisagens que raramente
se repetem, aquela luz incandescente do sol que já desapareceu.
Na vida real isto não existe, há pessoas com emprego razoável,
como engenheiros fixados em plataformas de petróleo, gabinetes e
laboratórios onde analisam dados, recebem ordens e telefonemas,
cumprem tarefas e destinos; ou são modestos professores de liceu,
ou distribuem correio pelas ruas de uma vila mesmo que sejam
engenheiros, ou veem na internet as coisas que gostariam de ter e
de viver. Está tudo aqui, neste crepúsculo. Não lhe toques.
Carmo sentara-se ao seu lado durante todo o jantar e Miguel não
lhe tocou embora tivesse sido fácil, tão fácil, um pequeno desvio
bastava, braço contra braço, a pele morena de Carmo apetecendo,
o cabelo loiro recolhido num rabo de cavalo, uma leve penugem
alaranjada pelo sol, a pulseira de ouro, os dois anéis, um no anelar,
outro no polegar, duas rodelas de metal baço e liso, os dedos
curtos, finos — não os dedos de uma mulher que tivesse vivido para
cuidar das mãos, mas os dedos de uma mulher que mergulhava no
mar de Moledo antes das onze da manhã e deixava que o sal se
acumulasse em camadas sobre a pele, secando, deixando ilhas
esbranquiçadas nascer ao longo do corpo como o sinal de alguém
que não prescinde do mar. Havia, portanto, os dedos de Carmo.
Miguel dos Santos Póvoa imaginou os dedos de Carmo segurando o
seu pénis, massajando-o, deslizando, procurando um ponto de
equilíbrio onde não existiria nem equilíbrio nem ponto de apoio. As
unhas, cortadas rentes. Os braços, moldados por sessões de
natação entre as ondas frias do mar do Minho, uma ruga mais
pronunciada no pulso — e o vestido, curto, que subia ligeiramente
até meio da coxa, morena, sólida, de nadadora, onde ele vira uma
tatuagem, uma espiral azul. Ele vira-a nessa manhã, atravessando o
areal, solitária, uma mochila ao ombro; sentou-se junto das dunas e
ficou ali um quarto de hora, olhando para a muralha quase desfeita
da Ínsua; depois, de repente, levantando-se, despiu a T-shirt e
correu até à beira do mar, desviou-se para a direita a fim de
acompanhar os riscos de espuma ao longo da praia, entrando cada
vez mais na água, até mergulhar no mar, rompendo uma das ondas,
rompendo outra, mergulhando, descendo até ao fundo, deixando
atrás de si um rasto. Voltou à superfície daí a pouco mas, nessa
altura, ele estava já sentado na esplanada do café diante do parque
de estacionamento — e viu-a apenas saindo da água, caminhando
pela areia, regressando às dunas, deitando-se sobre a areia. Um dia
normal na vida de uma banhista.
Miguel gostava do cheiro da praia. Vivera meses no meio do mar,
em plataformas que sondavam o interior da terra, lá em baixo,
procurando petróleo, tubos subindo e descendo, na Noruega e em
África, ao largo do Senegal ou do Gabão, ao largo de São Tomé ou
de Maracaibo, na Venezuela — mas o cheiro da praia era diferente.
Não tinha ruídos de sondas entrando na carapaça dos navios; não
tinha placas de ferro sujas por onde caminhavam homens em fato-
macaco, à popa, de rosto escuro e manchado de óleo; não tinha um
mar inóspito a cercar uma ilha de aço e gruas desenhadas no céu
onde um helicóptero baixava duas vezes por semana; não se
deitava na praia como lhe acontecera numa das plataformas, um
antebraço partido, isolado no seu camarote de dois metros por dois
metros, com um leitor de CD que repetia, até à exaustão, rock e
blues, Bob Dylan e AC/DC, Green Day e J. J. Cale, Midnight Oil
(uma recordação que não era sua, mas que lhe lembrava a
adolescência que não teve) ou The Strokes. Gostava do cheiro do
bronzeador da infância, creme Nivea, loção Nivea, óleo Nivea,
balões Nivea gigantescos a meio do areal. Esse era o cheiro de
Carmo quando saiu da praia e, como se soubesse desde há muito
tempo onde ele estava sentado, se lhe juntou à mesa da esplanada.
«Um engenheiro diante do mar.»
Foi isso que ela disse, exatamente isso, um engenheiro diante do
mar. Que faz um engenheiro diante do mar? Observa o mecanismo
das ondas, a perfuração nos rochedos, a erosão das dunas, o voo
das andorinhas do mar (e de dois corvos marinhos, um pato
ferrugíneo raríssimo em voo rasante, tinha-os visto em Malta,
refugiados nos rochedos, coloridos e perdidos em enseadas
inacessíveis), as mulheres que se sentam nesta mesma esplanada,
os pinhais do outro lado da foz do Minho, em Espanha, subindo até
ao topo de Santa Tecla.
Mas ele não era verdadeiramente um engenheiro diante do mar;
era um viajante em férias, acabado de regressar de Luanda e, antes
disso, acabado de regressar de outra cidade onde se esquecera da
escova de dentes, de um livro barato comprado numa livraria de
aeroporto e de um cabo USB para ligar ao computador.
«Não lhe toques», parecia ter ouvido dizer a Luís. Não precisava.
Ele suspeitava que Carmo, que não era uma mulher
excecionalmente bonita, não estava interessado em que ele lhe
tocasse — pelo que sabia, ela interessava-se por outras mulheres,
sobretudo por uma em especial, a bióloga que ia e vinha, que
aparecia de vez em quando e que mal lhe falava, como se quisesse
disfarçar que as duas dormiam juntas. Ah, Miguel dos Santos
Póvoa, o engenheiro diante do mar, imaginava Carmo deitada sobre
a cama, esperando a amiga. Mas, mais do que isso, imaginava o
seu braço coberto de uma luz brilhante, durante o jantar, o braço
muito perto do seu, de repente tocando-se, roçando incidentalmente
enquanto bebia um pouco daquele vinho, ela sorria e ele imaginava-
a deitada ao lado da bióloga, ambas nuas, mas sobretudo não
totalmente nuas, escutando os ruídos da noite, emprestando os
dedos de uma à outra enquanto os cães ladravam ao longe, ao
fundo da quinta, perto dos lagares abandonados e do relvado onde
ele passeara com Luís, antes de Luís lhe dizer, concluindo uma
negociação que fora tão fácil e tão oportuna para a sua vida: «A
partir de agora fazes parte de uma família.»
«Um engenheiro diante do mar», voltou ela, enquanto pedia um
ginger ale. Helena, a bióloga, exatamente assim, Helena. E então,
naquele jantar de ontem, vira a irmã mais nova, Béni, sentada do
outro lado da mesa, comendo o resto de uma sobremesa, olhando
os dois como se os fotografasse para um arquivo de coincidências,
que deviam acontecer com alguma frequência naqueles jantares de
família em que todos se tratavam por tu, novos e velhos — à
exceção da avó, quando ela vinha de Ponte de Lima e se lhes
juntava à mesa, aprovando a carne ou o peixe, lembrando ementas
de outros jantares, sobremesas cuja receita nunca fora alterada nos
últimos dois séculos, histórias de família sugeridas por empréstimo
da própria conversa, que se aligeirava à medida que a noite
avançava e o crepúsculo se tinha já despedido há muito.
«Gostava mais de ser biólogo», disse ele. «Ou ornitólogo.»
«E andavas a saltar de rochedo em rochedo, com binóculos,
vestido de caqui.»
«Não de caqui.»
«Isso é o menos», Carmo misturando o gelo e o limão do ginger
ale. «E porquê Biologia?»
«Acho que ia gostar.»
«Eu gosto de Biologia. Biologia marinha, o fundo do mar, as algas.
A costa está cheia de sargaço desde que vínhamos para a praia em
miúdos. Apanhávamos as algas e servíamo-nos delas como uma
cabeleira, depois ficava tudo agarrado à pele. Tu gostas de coisas
agarradas à pele?»
«Gosto de biólogas.»
Ela voltou o rosto e olhou-o sem sorrir. Olhos. Lábios. Uma
penugem protegendo o risco do lábio superior, ou abaixo da orelha
esquerda, o sal que tinha sido reduzido a uma poeira.
«Eu também. É esse o meu problema. Gosto de biólogas que
investigam o fundo do mar. São coisas puras que quase
desapareceram. Não tem nada a ver com os hábitos sexuais dos
pássaros, com os negócios de família, com política, com histórias de
engenharia. Sabes pouco disso, senhor engenheiro, e não acho que
vás aprender muito mais.»
«Mesmo assim, gosto de biólogas.»
«É uma pena. Podias gostar de herdeiras que nunca vão ser
ricas, de donas de lojas de perfumes ou de professoras de música.
Há muitas profissões atraentes para um engenheiro que vai e vem
de todo o lado.»
40

A ÚLTIMA VEZ QUE BÉNI FOI VISTA, DEPOIS DAQUELE DOMINGO DE MANHÃ, BEM
CEDO, em que tomou o autocarro em Valença com destino a Vigo: ao
meio-dia de quinta-feira pagou a conta do Hotel America com
dinheiro, sem usar qualquer cartão. Aos vinte e dois anos, uma
mulher conhece o ofício do seu pai: não deixar rasto. O advogado
Ferreira Vasconcelos conhecia os truques a usar. Tinha aprendido
parte deles no exército, durante uma instrução deficiente para
operações de guerrilha à distância, ou seja, contrainformação.
Pobres espiões lusitanos espalhados em gabinetes descoloridos
onde oficiais superiores coligiam recortes de jornais e mandavam
datilografar relatórios que toda a gente conhecia, generais do
regime, operacionais no terreno e furriéis tenentes que não
conheciam a pólvora senão de ouvir ao longe o estampido das
armas de treino.
O regime caiu-lhe nas mãos, de certa maneira. Jaime Ramos não
gostava desse trabalho de arquivista mas sabia que tinha de
avançar aos poucos, documento a documento, memória a memória,
relatório a relatório, fechado num gabinete onde só podia fumar às
escondidas e onde o sorriso de Teófilo Cubillas desaparecia naquele
poster de O Norte Desportivo. Um casarão sobre a foz do Neiva
onde, no final do verão de 1975, dois tios velhos e dois advogados
vestidos para um velório de família lhe passam a responsabilidade
de dirigir o escritório. Não teve de apresentar contas nem de dizer
ao que vinha: tinha de ir buscar clientes, de inspirar confiança e de
salvar o país. Todas essas coisas estavam ligadas, mas o país não
o interessava. O país que lhe interessava estava no Brasil e em
Espanha, exilado ou foragido, com úlceras, procurando empregos,
chorando grandes quantias de dinheiro perdido, propriedades,
títulos que valiam quase nada, herdades alentejanas, fábricas
desativadas, papéis a que era preciso emprestar dignidade. Depois,
em Viana, encontrou-se com dois coronéis do novo regime a quem
prometeu apoio para a contrarrevolução, em troca de olhos
fechados e de garantias para os seus clientes, quase todos avós de
adolescentes que nasceram depois da revolução. O encontro,
noturno, dá-se num passeio junto da foz do Lima, escondidos entre
as dunas, os carros estacionados ao longe. Grande atração sente
esta gente pela foz dos rios. A foz do Minho reclama-o também: há
doze anos, Luís Ferreira Vasconcelos encontra-se em La Guardia
com um general que daí a pouco entraria na idade de reforma;
almoçam na varanda de um restaurante voltado para o mar, mas já
não falam de exilados, de títulos de propriedade a recuperar, de
dignidade das famílias — em vez disso, negócios vivos, viagens-
relâmpago a Angola, de onde vem dinheiro, cada vez mais dinheiro.
«Várias medalhas, chefe, e todas em combate.»
O regime caiu-lhe nas mãos. Não o regime propriamente, mas um
bando de famílias que tinham sido ricas e que tinham perdido tudo
— menos o nome. Em Portugal, senhor inspetor, diz o homem
sentado à sua frente, o nome das famílias é um alicerce profundo
que suporta todos os terramotos e todas as revoluções, desde 1834
que as famílias são as mesmas.
«E a do seu amigo?»
«A do Henrique? É uma família sem história. Ele foi meu amigo
durante muito tempo, e fizemos muitos negócios.»
Ramiro tinha-lhe recomendado uma conversa com este homem.
Um homem demasiado rico e demasiado velho, mas que não tinha
perdido a memória: «É a única forma de transformares tudo isso
numa história com algum sentido», Ramiro por telefone. «A mim não
me deve nenhum favor especial. Trato-lhe de coisas de família,
como o divórcio dos filhos, vendas de propriedades, e ouço-o
durante uma ou duas horas de cada vez. É o meu Acúrsio das
Neves. Sabes quem é Acúrsio das Neves?»
«Não.»
«O único homem que conseguiu, ao mesmo tempo, manter o
juízo e defender o príncipe Dom Miguel. Se tivesses nascido em
Vidago sabias isto. Naqueles pinhais ainda há milicianos miguelistas
que não mudaram de general. Tem quase noventa anos.»
Ele aguardava-o (Isaltino tinha ficado no carro) ao cimo de umas
escadas de onde se viam árvores a perder de vista e uma aldeia lá
ao fundo, numa língua de areia limpa, uma espécie de baía
preparada para permanecer incógnita durante o verão que se
aproximava, assinalada pelo farol de Montedor recortado sobre os
rochedos, à direita. Encostado à balaustrada, apontou para o farol
com a bengala:
«Conhecia este lugar? De certeza que não. Ninguém conhece.
Um dia, noutra vida qualquer, vou ser geógrafo. Para ensinar aos
meus netos todos os caminhos do litoral. Começar no Lima e subir
pela costa, Espanha dentro. Não há outro lugar assim.»
Jaime Ramos não ficou impressionado por aquele rosto sem
rugas, sem óculos, sem tremores — a que apenas o cabelo quase
totalmente branco assinalava a idade. E a voz, a voz, talvez ele não
esquecesse, nunca mais, a voz de um barítono que treina as cordas
vocais todos os dias apesar das recomendações de um médico
cauteloso. Seguiram pela varanda fora, entre plantas bem tratadas,
até uma mesa onde o tabuleiro do chá acabara de ser pousado por
uma mulher de meia-idade que os olhara e se afastara rapidamente,
entrando em casa por uma porta que se fechou atrás de si.
«Gosto de quem chega a horas», ele sentando-se, encostando a
bengala a uma das quatro cadeiras em redor da mesa. «Sente-se,
sente-se. Gosto de quem chega a horas. É um luxo a que poucas
pessoas se podem dar, mas tomo sempre nota. À medida que os
anos passam recordo as pessoas que chegaram a horas. É com
essas que conto. Toma chá? Não o faço por prazer. Faz parte das
minhas obrigações. Chá. Há trinta e cinco anos que tomo chá a esta
hora, é uma obrigação como qualquer outra. Durante dez minutos,
na varanda ou lá dentro, tudo para. Só eu e uma chávena. E quem
me acompanha.»
Sendo assim, pensou Jaime Ramos, apresentando a sua chávena
diante do bule. Sem tremer, o outro serviu o chá para os dois, e ele
seguiu os movimentos da sua mão, os seus gestos sem falha.
Depois acompanhou-o no chá, de facto, enquanto o ouvia falar
sobre o farol de Montedor, uma capela abandonada, um sino que
tocava de vez em quando, uma estrada que seguia pela montanha
dentro, um pinhal que tinha desaparecido, uma duna desfeita, Jaime
Ramos perseguindo a conversa, acenando, concordando — até
que, sempre sentados, regressaram à varanda depois desse
primeiro monólogo.
«O seu amigo, o doutor Ramiro, nunca toma chá. Inventou uma
solução: queixa-se de problemas de tensão e eu dispenso-o do chá.
Mas o senhor faz cerimónia, e eu tomo nota. Tomo nota de tudo. É
por isso que não perdi a memória. Tomo nota de tudo. Aqui»,
levando a mão à testa, ao parietal direito. Depois sorriu, mostrando
dentes brancos, alinhados, perfeitos, surpreendentes: «O que quer
saber de Henrique Ferreira Vasconcelos?»
Jaime Ramos podia querer saber quem era aquela família, e
perguntaria «quem é aquela família?», e tinha a certeza de que o
velho começaria a falar pela tarde fora, ou «que negócios faz aquela
família?», e devia preparar-se para tomar notas ou para fechar os
olhos e ouvir. Por isso limitou-se a explicar, de outra maneira, que
estava parado na sua investigação:
«É amigo dele?»
«Fui amigo dele enquanto ele vivia. Não morreu, é certo, mas é
como se tivesse partido. A traição dos amigos é mais dolorosa do
que a infidelidade conjugal. Esta é apenas um jogo imbecil, uma
passagem. Os amigos são o que nos resta, inspetor.»
«Imagino.»
«Nunca pensou nisso?»
«Tenho poucos amigos.»
«É um homem prudente. Um cético.»
«O suficiente. Sigo a receita médica.»
«Porque quer saber coisas desse homem?»
«Preciso. Ossos do ofício. Disseram-me que tinham sido amigos.»
«Fomos, inspetor, fomos. Há muito tempo que o não vejo e, se o
visse, creio que não podia falar com ele. Alzheimer, segundo creio.
Há de morrer em breve. É um vegetal, segundo me disseram.
Esteve com ele?»
«De passagem», mentiu. E ficou em silêncio, como se procurasse
um sinal nas frases do outro. Estava habituado a esse combate:
escutar. Investigar é escutar sem parar, sem fim à vista. Mas o
homem que estava à sua frente olhou-o apenas com curiosidade e
igual silêncio e Jaime Ramos percebeu que perderia o confronto:
«Ele traiu-o como advogado?»
«Oh, não, não, não como advogado. Era um advogado muito
competente e um homem de negócios muito leal. Foi muito útil para
esta família. A traição é só um choque, um choque inicial. Depois, é
uma confirmação: a de que o género humano não tem limites.
Quando deixou de ser útil como advogado, passou a ser útil como
amigo. Porque precisamos de amigos, de aliados, de gente que nos
acompanhe no chá. A mulher dele morreu e ficou sozinho com três
filhos que não eram os filhos dos seus sonhos, nem dos seus
pesadelos — eram-lhe completamente indiferentes. Tem filhos,
inspetor?»
«Não», o diretor tinha-lhe feito a mesma pergunta.
«Bem vejo. Não sei se pode compreender. Mas eu explico-lhe
rapidamente. Nesses anos, depois da revolução, ele sacrificou tudo
porque tinha perdido tudo. Tinha perdido a família, tinha perdido a
casa, tinha perdido a mulher. A família, porque teve de abandonar
Luanda, deixando para trás a casa onde viveu e os filhos deram os
primeiros passos. A mulher nunca se habituou a isto. Era uma
senhora de romance do século passado, muito nervosa, muito
doente, e pouco habituada a trabalhar. Pelo contrário, ele trabalhava
como um doido, tinha ficado com o escritório dos tios, precisava de
dinheiro para viver como em Angola, não ligava aos filhos, não
ficava ao sábado em casa. Nessa altura, as quotas de um escritório
de advogados valiam pouco, mas o seu trabalho valia muito e ele
tinha uma maneira muito especial de resolver as coisas, de
trabalhar, de manter os clientes, de trazer dinheiro para casa. Era
advogado de gente desesperada, teve sorte. Para gente
desesperada, qualquer pequena vitória era celebrada como uma
vitória sobre o mundo todo. E reconstruiu pequenos impérios,
inspetor, porque, naqueles tempos da revolução, ele era um militar
que se tinha transformado em advogado. Conhecia os militares,
tinham bebido juntos em Angola, faziam-lhe favores, deviam-lhe
favores, nunca precisou de se esconder. Não teve de esperar que a
Direita chegasse ao poder, se me faço entender. Eu faço parte de
um mundo que nessa altura já tinha terminado, e portanto não tinha
grandes ilusões. Não tinha interesses em África, não tinha empresas
ocupadas, nem dinheiro nos bancos. Não tinha nada, exceto
economias em Espanha, a salvo. Um pouco na Suíça. Um mês
depois da revolução, o nosso dinheiro, que não era uma fortuna,
estava fora daqui. Nós fomos sempre traidores, como a História há
de dizer. Também nunca precisámos que a Direita regressasse ao
poder e reerguesse os bancos, as empresas de construção ou de
navegação, ganhasse dinheiro com estradas, tomasse conta do
dinheiro, mandasse na política. Somos traidores há muito tempo,
ninguém dá por nós, nunca precisámos da política. Eu olho para o
farol de Montedor, e o que vejo? Está ali há cem anos, inspetor, e o
que vejo? O farol de Montedor. Não precisámos de o construir. Mas
quando essa gente voltou do exílio, e tomou conta dos bancos, das
empresas e da política, só podia destruir o país, porque o país não
produzia nada, o país era um descampado preparado para a guerra
da construção. Era o único valor, a construção. Essa gente que tinha
enriquecido com o regime, com o Salazar e com o regime, tirando
meia dúzia de industriais, era gente que nos devia envergonhar.
Quando voltaram do Brasil, e de Espanha, e de Angola ou
Moçambique, trataram do seu milagre económico. Nos anos oitenta,
o país teve o seu milagre económico: especulação imobiliária e
construção, tudo financiado a rodos. Proprietários, construtores e
banqueiros — foi isto a alma do milagre económico dos anos oitenta
e dos anos noventa. Até não haver mais terrenos, até faltarem o
dinheiro para a construção e as pessoas para ocupar essa
especulação toda. E foi o fim. Exceto para nós, que nunca
dependemos dos bancos nem da construção. Temos vinhas por
gosto, e os meus netos dedicam-se a gerir dois hotéis pequenos,
perto de Caminha. Num país que cozinha bem para os turistas, é a
única atividade útil hoje em dia. Fazemos vinho, como há duzentos
anos. Temos de quase tudo na família. Professores na universidade,
onde ensinam História e Arqueologia. Um arquiteto que vive no
Brasil. Um embaixador em idade de reforma que vem de África
daqui a dois meses. E eu. Lucrámos com a venda de terrenos, mas
não guardámos quase nada para nós. Confiámos na argúcia do
género humano e na sua enorme capacidade para repetir erros. Os
bancos não nos desiludiram muito, perguntam-me todos os anos se
quero abrir contas, e eu respondo que não, porque o dinheiro é
quase sempre o mesmo. Aliás, é quase sempre o mesmo desde há
duzentos ou trezentos anos, embora tivéssemos ganho alguma
coisa com a democracia. Eu continuo a olhar o farol de Montedor,
inspetor. E o que vejo? O que via há quarenta anos, há exatamente
quarenta anos: hortas, descampados, um areal comido pelo mar,
mais hortas ali ao fundo. E o farol, evidentemente. Um bisavô meu
desenhou uma parte do farol, aliás. Mas é para lá que continuo a
olhar.»
«E o seu amigo, também teve de esperar que a Direita
regressasse?»
«Não, não. Ele aprendeu depressa. Conheceu as vísceras do
regime, os segredos, o dinheiro dos outros. E teve juízo. Ganhou o
dinheiro que havia a ganhar e não quis entrar no carrossel, limitou-
se a encaminhar as pessoas que queriam andar no carrossel. Não
deixou rasto. Um dia disse-me que tinha sido da contrainformação
militar, em Angola, e que a sua especialidade era não deixar rasto.
Nunca deixou rasto. Foi por isso que trabalhou para mim, que fez
serviços muito importantes para esta família. Não foram operações
financeiras, propriamente ditas, mas tratar dos papéis com eficiência
e discrição. Até que tudo começou a ruir. Os filhos. A morte da
mulher. O filho, sobretudo.»
«O filho?»
«O filho não aprendeu essa lição. Nasceu no meio do turbilhão,
está entre dois mundos: o da família e o da finança. Ganha dinheiro
depressa, aqui, ali, não sei em que se ganha dinheiro hoje em dia.
Isso faz algum barulho. O mundo ultrapassa-me, inspetor. O senhor
devia saber em que subterrâneos se perde o dinheiro hoje em dia,
porque ele anda por aí, mas algum se perde. O filho, Luís, trata
desse dinheiro que se perde. Não lhe gabo a sorte, a si.»
«E como recolhe ele esse dinheiro?»
«Ah, inspetor, isso é um mistério que lhe deixo por resolver. Não
posso poupar trabalho à polícia. Pago os meus impostos para que a
polícia mantenha um mínimo de decência no país e para que tenha
algum prazer em descobrir como se organiza o crime económico
nas nossas províncias.»
Dinheiro que se perde sem deixar rasto. Béni parte para Vigo e
deixa um rasto em Valença. A luz branca do farol de Montedor deixa
um rasto no primeiro céu de junho, alaranjado e limpo.
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«ÉS CRENTE?», ELA DE OLHOS SEMICERRADOS, GESTOS PRECISOS DENTRO


DA SACOLA, as pernas dobradas em posição de lótus sobre a areia.
Um mar silencioso que tinha adormecido com a noite. Miguel nota
as suas mãos, eficientes, ripando as folhas de erva, passando-as
para uma caixa que a tritura, misturando-a com tabaco, depois
recolhendo tudo e moldando um cigarro que aparece, como um
milagre, na ponta dos dedos.
«Não tinha mortalhas, aqui não há», explicou, olhando o cigarro
com orgulho. «És crente?»
Miguel dos Santos Póvoa não era crente há muito tempo, deixara
de frequentar as aulas de Religião e Moral depois da morte dos
pais, aos 14 anos, e até aí conhecera do assunto apenas o que o
tinham obrigado a aprender naquele colégio caro, enorme, onde os
padres enviavam as faturas mensais no meio do caderno de
sumários e, em dezembro, lembravam a necessidade de festejar o
Natal como a data do nascimento de Cristo. Os tios mudaram-no de
escola no final do ano, para seu grande alívio, e deixou de ter aulas
de Religião e Moral e de ir à missa de Páscoa; na escola pública
jogava futebol, fumava Português Suave encostado ao portão das
traseiras, onde esperava por uma rapariga chamada Anabela, que
era muito mais alta do que ele e não gostava de Matemática. Quase
ninguém gostava de Matemática.
«Sou crente», ouviu-se a responder. «Acredito em ti.»
Ela riu, o cigarro entre os dedos:
«Fui a casa e trouxe uma folha daquela Bíblia que está na sala.
Ninguém lê. É boa para fazer de mortalha.»
«De que parte é a folha?»
«Apocalipse.»
«Apocalipse. É muito a propósito.»
«O fim dos tempos. Falas russo?»
«Não.»
«Porque te dás com russos?»
«Trabalho com russos.»
«O que fazem eles?»
«Levam papéis, trazem papéis. Ganham dinheiro, fazem
negócios.»
«Sempre dinheiro.»
«Sempre dinheiro, sim.»
«Já pensaste que devíamos ser mais espirituais, ligar menos ao
dinheiro?»
«Sempre tiveste dinheiro», Miguel aceitando o cigarro que Béni
lhe passava, os dedos finos, pequenos, sujos.
«Tu também tens dinheiro, ultimamente.»
«O pecado toca a todos.»
«Deixa-me ficar em tua casa», ela pediu, os olhos voltados para o
mar. «Durante uns dias, uma semana, duas.»
«E que fazias durante essas duas semanas?»
«Pensava. Tenho de pensar no que quero fazer daqui a alguns
anos, quando já não tiver irmão, nem irmã, e tudo isto desaparecer.»
«Isto não vai desaparecer.»
«Uma semana ou duas.»
«Vou ter de mentir ao teu irmão.»
«Não é a primeira vez. Por exemplo, ele não sabe que andas com
essa angolana que fica em tua casa de vez em quando.»
Miguel dos Santos Póvoa olhou para a rapariga, que continuava
sentada, a mão estendida pedindo que lhe devolvesse o cigarro.
«Que rapariga angolana?»
«Na Suíça, naquele colégio de putinhas suíças e alemãs,
ensinaram-nos a observar e a calar. Era uma das coisas que
treinávamos: estar caladas durante uma noite inteira e anotar tudo
mentalmente. Depois, reconstituir cada conversa, cada peça de
roupa que as pessoas usavam, cada palavra difícil. As palavras
difíceis sobretudo, porque falávamos línguas diferentes, português,
espanhol, inglês, russo, italiano, árabe, turco, muito árabe. Eu
decorava as palavras difíceis, tomava nota das roupas, desenhava
os vestidos que cada uma usava. Era um jogo, mas servia como
treino. Ainda faço isso de vez em quando.»
«Ensinaram-te mais coisas lá na Suíça?»
«Claro. Muitas mais. Lembras-te de Mulholland Drive? Eu sou a
Naomi Watts, só que mais inteligente, um pouco mais inteligente.
Não muito, mas alguma coisa, e havia muitas raparigas solitárias
naquele colégio. Muitas raparigas abandonadas por pais ricos. De
modo que aprendíamos coisas indecentes.»
«Que rapariga angolana?», voltou ele.
«Tu andas com uma rapariga angolana. Eu ouvi-os falar disso. O
meu irmão e os russos. Mas eles não viram Mulholland Drive…»
«Quando é que eles falaram da rapariga angolana?»
«Na semana passada. Tu andas com uma rapariga angolana,
engenheiro químico?»
Miguel dos Santos Póvoa acendeu um cigarro dos seus, retirado
do maço, e ficou ali a olhar à volta, como se — mais tarde, como
veio a acontecer — tivesse de recordar cada coisa perdida na praia:
os rochedos, o forte, o ruído da estrada ao longe, as luzes que
apareciam e desapareciam na montanha do outro lado da baía. Mas
aquilo era o Alto Minho, não era um colégio na Suíça, e Béni
continuava sentada ao seu lado, absorta e, parecia-lhe, com um
sorriso dissimulado.
«Não, não ando com nenhuma rapariga angolana.»
«O senhor engenheiro químico gostava de andar com a minha
irmã, não é verdade? Eu sei. Eu vi como vocês se olham, e como
ficam sempre juntos. Não me excita muito. Mas o meu irmão
também não gostaria disso. É por isso que ela fica sempre perto de
ti. Para fazer ciúmes à namorada, o que já me excita um pouco, e
para preocupar um pouco o meu irmão. Mas nenhum deles sabia
que tu andavas com uma angolana. Ela arranja-te liamba?»
«Podes ficar lá em casa uma semana. Depois eu volto e não te
quero lá, nem quero que o teu irmão saiba. E não levas nenhum
namorado para lá.»
«Ninguém vai saber.»
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NA ALDEIA HAVIA DOIS RESTAURANTES E UM RIO — E CONCERTOS DURANTE O


VERÃO, com bandas tocando música irlandesa para uma pequena
multidão de adolescentes que declaravam amar a natureza e
adultos que sonhavam com um mundo onde a marijuana não
provocava dores de cabeça. Sentado à secretária, aproveitando
aquela hora de tranquilidade antes do jantar, Jaime Ramos
reconstituía, à sua maneira, as noites da aldeia, prolongadas em
tabernas que vendiam cerveja e vinho falsificado. Os adolescentes
que acordavam tarde, pelo meio-dia, uma hora, e desciam a pé até
ao rio sem tomar o pequeno-almoço nem acordar totalmente. Os
velhos sentados à porta das tabernas. Clareiras no meio do
arvoredo, acampamentos, restos de fogueiras da noite anterior,
roupa espalhada nas eiras, alguém empoleirado num muro
observando as duas ilhotas numa curva do rio. Havia uma enseada
de areia fina entre as escarpas, e essa imagem que vem
reproduzida em fotografias da época (a enseada, a areia fina, um
raio de sol iluminando a curva do rio, grupos de jovens em fato de
banho, casais sentados ao lado de mochilas) — e ela subindo,
subindo pelas escarpas, depois escondida atrás de umas rochas,
depois subindo mais, trepando pela vegetação, depois aparecendo,
nua, tocando acordeão lá no alto, completamente nua, a música
como uma anunciação da tarde divina daquele sábado em que as
águas do rio recebiam os grupos de visitantes em ressaca. A
imagem era perfeita, luminosa, a preto e branco (havia algumas
fotos), e lembrava um filme russo que Rosa o levara a ver há muitos
anos. Mesmo que não tivesse visto o filme de Tarkovski, ele nunca
conseguira explicar a beleza daquele rio, as suas águas mansas ou
a corrente silenciosa entre os ramos dos freixos que se
aproximavam da sombra e desciam devagar sobre todas as coisas.
E, então, ela (diz-se) tocava uma melodia perigosa, inclinando-se
sobre o acordeão, abraçando-o, apertando-o contra os seios, as
coxas resplandecendo, iluminadas pelo sol que queimava as
escarpas e deixava às claras as pequenas cicatrizes na sua pele
muito branca, o cabelo que, na altura, caía sobre os ombros, os
dedos passeando sobre as escalas, um par de grifos descendo
sobre os zimbros do lado de lá do rio, já em Espanha. Jaime Ramos
recordava algumas vezes a acordeonista e a sua estranha beleza
indefinida, só detetável de certo ângulo, muito perto dos seus olhos,
que eram negros como o cabelo. E havia ainda os lábios
inexpressivos, aquele gesto que ficava suspenso quando começava
a gesticular e recolhia as mãos de repente, arrependida, os dedos
flutuando sobre o teclado do acordeão. Então, imaginava como ela
se equilibraria, suspensa nas escarpas, tocando para ferir com a
música aquela tarde de verão — e como Béni a vira pela primeira
vez, nadando no meio do rio, depois boiando, os braços abertos, os
rapazes mergulhando em redor, procurando chamar a atenção, o
verão é um mundo aberto sob o céu.
Mas não conseguia reconstituir esse momento até que Olívia lho
descreveu, minuciosamente. E fazia sentido.
43

PAULA NUNCA MAIS RESPONDERA ÀS SUAS MENSAGENS E ISSO INQUIETAVA-O.


Nessa derradeira noite em Angola, antes de adormecer (as janelas
entreabertas para que entrasse aquele fresco do planalto, o vento
que atravessava o mar e chegava até ali), ela dissera-lhe que
voltaria para Portugal em breve. Podiam encontrar-se lá? Ela ficava
em Lisboa, claro que podiam. Miguel apanhava o voo de quarta-feira
para São Tomé, e de São Tomé iria para Lisboa na semana
seguinte.
«O que vais fazer a São Tomé?»
«Amostras. Duas empresas francesas estão a trabalhar ao largo
do Príncipe e recolheram amostras de profundidade.
«Ah, empresas francesas.»
«Sondas móveis, a partir de navios. O fundo do mar. E São Tomé,
onde nos conhecemos. E tenho um relatório para entregar.»
«Nunca te conheci», ela riu. «Eu não estive lá, era outra em vez
de mim, uma irmã gémea. Não era eu.»
«Eu reconheço esse sinal no queixo, minha senhora.»
«Sou a tua senhora quando tu não és um traidor que trabalha
para os franceses de São Tomé.»
«Trabalho para o inimigo, sempre, como tu trabalhas para o
inimigo dos franceses.»
Um braço sobre o peito, Paula cantarolando como costumava
fazer quando estavam deitados, antes de ele adormecer
profundamente. Nessas alturas, mesmo antes de adormecer,
prometia amá-la para sempre, mas Paula ria:
«Como fizeste antes.»
«Eu não vivi antes de te conhecer. Amei-te desde que nasci. E
agora?»
«Agora dorme.»
«Como sabes o que eu fiz antes?»
«Todos os homens fizeram isso antes.»
«Isso, o quê?»
«Prometer amor para sempre.»
«As mulheres também.»
«Ah. Mas ninguém pode confiar nas mulheres.»
Quando acordara, muito cedo, Paula já tinha partido. Pela janela
viu o lugar vazio do carro no parque de estacionamento do hotel.
Dois chineses jogavam à bola perto da estrada. Um homem solitário
arrancava ramos aos arbustos que se esforçavam por resistir à
seca. Paula nunca mais respondeu às suas mensagens. Apenas a
promessa de se encontrarem em Portugal uma semana depois,
duas semanas depois. E tinha medo, também, porque nunca lhe
falara daquele fim de ano no Algarve, quando lhe mostraram a
fotografia de ambos, dançando na Praça de Maio, em São Tomé,
como uma espécie de chantagem antecipada.
«Porquê?», perguntou-lhe mais tarde Jaime Ramos.
«Porque eu não queria terminar aquela história. Era a única que
eu tinha.»
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O INSPETOR JAIME RAMOS GOSTA DE VER O AMANHECER. MESMO QUE FOSSE


MENTIRA, A IDEIA CIRCULAVA NA POLÍCIA
— tal como o facto de não gostar
de pássaros. O inspetor Jaime Ramos não gosta de pássaros. Não
usa gravatas. Fuma charutos às escondidas no seu gabinete. As
suas camisas têm todas o mesmo corte, o mesmo tamanho, são da
mesma marca, diferem pouco de cor. O inspetor Jaime Ramos sai
de casa ao amanhecer quando tem um caso para resolver nesse
dia, e não atende o telefone enquanto não regressa ao gabinete,
esquece o blusão no espaldar da cadeira e rouba um charuto a uma
das gavetas da sua secretária. A secretária, por sua vez, é uma
peça de museu que transportou da antiga sede para as novas
instalações, juntamente com o cheiro a tabaco, a edição antiga de
Guerra e Paz em dois volumes, a fotografia de Teófilo Cubillas e um
coldre vazio que pendura no cabide.
Tirando o cheiro do tabaco, «tudo o resto é lenda», costuma ele
dizer. Mas a lenda persegue-o mesmo a esta hora, atravessando a
cidade pelas seis da manhã, quando ainda não há trânsito nem luz
do sol — apenas um resto de orvalho sobre o capô do mesmo carro
de há dez anos, o que é suficiente para lhe lembrar o amanhecer de
outro tempo, ou o primeiro café tomado numa antiga taberna
convertida em cafetaria. Saíra de casa como um intruso na sua
própria rua, evitando fazer ruído mesmo ao fechar a porta do velho
prédio de onde algum dia teria de se mudar com Rosa, como
prometera há anos. As suas promessas são históricas, também, e
ele sabe — dariam para preencher um catálogo de incumprimentos
pessoais, de distrações que se acumulam ao lado da biografia
oficial, um currículo que só os seus agentes conhecem e escondem.
Ao chegar à Rua do Carvalhido escolhe um lugar onde estacionar
o carro, o que é fácil àquela hora, a dois passos da Fábrica de
Candeeiros Leal, que finge observar com curiosidade enquanto
entra num pequeno café já aberto. Pede uma água com gás (o
refúgio de um hipertenso ensonado), que toma com os dois
comprimidos que retira de uma caixa de prata do bolso das calças
— mas comove-o o aroma proibido dos fritos vindo da cozinha,
bolos de bacalhau, croquetes de batata, os preparativos para o
almoço, carne estufada, dobrada com jardineira. De repente ouve-se
a si mesmo a pedir rissóis de pescada. Dois? Dois. No plural.
«Estão quentes. Prefiro-os aos de camarão», o dono do balcão
apontando-lhe um dedo cúmplice. «E logo de manhã. Depende da
hora a que um homem se levanta. Prove um croquete de batata com
molho de tomate.»
«O molho é fresco?»
«E de ontem. Precisa de amadurecer. Como a feijoada. A melhor
feijoada faço-a à noite para o almoço do dia seguinte, se for de
feijão branco como a da minha terra.»
«É de onde?»
«De Montalegre, no Barroso. Vinho branco?»
Os rissóis despertaram em Jaime Ramos uma sede inesperada —
e aceitou a proposta de vinho branco enquanto mergulhava o rolo
de batata envolvido em farinha, ovo e pão ralado, ainda morno, num
molho de tomate sem temperatura, denso, adocicado e onde fios de
cebola emergiam para conferir alegria à pasta de legume
suavemente triturado, com um sabor largo a cominhos, alho e
loureiro.
«Dá alegria ver alguém a comer. Sobretudo de manhã. Hoje em
dia já ninguém come de manhã. E o vinho?»
«Vai bem.»
«Às vezes é o que se pede. Que vá bem.»
Jaime Ramos raramente pedia mais. Vai bem, o vinho,
refrescando a língua, o céu da boca, a garganta, fazendo depois
crescer um ardor ligeiro que sobe do estômago e se instala em todo
o corpo.
«Hei de voltar para os croquetes de batata.»
«Não esqueça o molho de tomate.»
«Não esqueço.»
Ao sair para a rua, o céu escureceu de repente, como se
estivesse zangado com a refeição de fritos e o copo de vinho
matinal. Mas Jaime Ramos sentia-se repousado, respirando com
mais facilidade, finalmente satisfeito com o amanhecer e preparado
para uma longa espera — e, se chovesse, isso ia facilitar-lhe as
coisas. Gostava de ficar dentro do carro enquanto chovia, as gotas
de água descendo pelos vidros, o fumo da cigarrilha escoando pela
janela entreaberta.
Mas não choveu, e Jaime Ramos também não esperou muito.
Olívia saiu de casa às oito, a mochila ao ombro, um blusão de
ganga pendurado na cintura, o capacete na mão direita. Atravessou
a rua e seguiu vinte metros pelo passeio até à garagem onde
costumava guardar a moto. Do lugar onde estava, ele pôde vê-la
desaparecer na garagem — ligou o motor, preparado para segui-la
logo que saísse da garagem. Mas daí a cinco minutos Olívia ainda
não tinha aparecido e o telemóvel de Jaime Ramos tocou. Ao ver o
número, limitou-se a sorrir.
«Chefe.»
«Sou eu.»
«Ainda bem que está aí fora. Esse carro não serve para
vigilância.»
«Eu sei. Estou à tua espera.»
«Deixo a moto ou quer seguir atrás de mim?»
«Eu levo-te», disse ele, começando a retirar do lugar do morto
aqueles jornais velhos, amarelecidos, esquecidos há várias
semanas. E então Olívia apareceu ao seu lado, abrindo a porta do
carro.
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«NÃO VOLTO PARA CASA», DISSE A RAPARIGA PARA JAIME RAMOS, Olívia
sentada numa cadeira que arrastou até junto do sofá. Sobre a mesa
estavam os restos do jantar do dia anterior e, ao contrário do que
seria normal, Jaime Ramos não mostrou qualquer curiosidade em
relação aos hábitos gastronómicos de Benedita Ferreira
Vasconcelos. Limitou-se a encolher os ombros, como se a ideia de
regressar a uma casa, qualquer que ela fosse, lhe parecesse
absurda.
Mas ela repetiu:
«Não volto para casa.»
«Faça como entender. Não estou aqui por si. Estou aqui pelo
dono desta casa.»
«Miguel?»
«Miguel. Onde está ele?»
«Fora do país. Está quase sempre fora do país, e emprestou-me
a casa. O meu irmão não sabe, ninguém sabe, o meu pai não
sabe.»
«Onde é que é esse lugar fora do país?»
«Angola, muitas vezes. Brasil. Nunca se sabe. Vai em trabalho.»
«E quando volta?»
«Tanto pode ser hoje como na próxima semana», Béni
mordiscando o punho da camisola, os olhos desviando-se de Olívia
para o polícia que acabara de acender uma cigarrilha. «Volta hoje,
mandou uma mensagem a dizer que volta hoje.»
Jaime Ramos conferiu todos os retratos que tinha desenhado ao
longo dos últimos dias: o cabelo escuro de Béni, a tatuagem no
tornozelo que tinha visto numa fotografia, a pulseira de tecido, até a
voz daquela rapariga sentada sobre uma das pernas. Pelo canto do
olho observou Olívia, as mãos pousadas sobre os joelhos, inclinada
para a frente, como se não pertencesse a esta conversa, limitando-
se a oferecer o seu silêncio numa espécie de sacrifício e de
autopunição. Levantou-se sem olhar de frente para ela e, as mãos
atrás das costas, segurando a cigarrilha que entretanto se apagara,
encostou-se à porta da varanda, como se se preparasse para
apreciar o mar cinza de Leça.
«A partir de agora, esta história não lhe pertence», disse ele. «É
provável que tenha de prestar declarações, mas a mim tanto me faz
desde que não fume liamba à minha frente. Onde arranja a erva?»
«O meu irmão.»
«Tráfico de família também não me interessa», Jaime Ramos
voltando-se para a sala e apontando para o cinzeiro. «Mas não deve
fumar isso tudo sozinha. Acho que devia falar para casa, ligar ao
seu pai. Foi a única pessoa que realmente perguntou por si.»
«O meu pai nunca pergunta por mim.»
«Você nunca o ouviu perguntar por si. Mas sim, ele perguntou. Eu
ouvi.»
Disse isto antes de Béni começar a chorar, o que o incomodava
bastante. Então, Olívia finalmente levantou-se e ele saiu do
apartamento, o telefone na mão, ligando para Isaltino.
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NO MEIO DA FOLHAGEM. FOI ASSIM QUE MIGUEL DOS SANTOS PÓVOA


DESCREVEU PARA SI PRÓPRIO O HOMEM DE CABELO GRISALHO a descer a
Avenida dos Aliados. Seguiu-o depois de deixar uma nota de cinco
euros na mesa da esplanada, reconhecendo-o ao longe no meio da
pequena multidão que se mistura com a folhagem das árvores, a
passagem dos autocarros, até o perfume de primavera. Iria
reconhecê-lo onde quer que ele estivesse, apesar do seu passo
firme e decidido que tanto podia seguir para a esquerda e
atravessar a praça, como voltar à direita para subir a Rua dos
Clérigos. Fora a ele que comunicara a presença de Mikhail Polianov
em Cabinda — vira-o à saída do Mamã Yezê, o restaurante onde
gostava de comer calulu de carne seca com funje ou batata-doce
assada. Vira-o depois em Luanda conversando com chineses no
Hotel Trópico, sentado ao lado de Arkady, fumando e bebendo
whisky. E ficara preocupado porque Arkady e Mikhail, o coronel de
Cabul e o engenheiro russo, talvez não tivessem comunicado a sua
ida a Angola, e o general precisava de saber. Esse não era o seu
papel, bem vistas as coisas, mas eles eram responsáveis pela
segurança das operações: recolher amostras de petróleo ou de
madeira, transportar para Lisboa aquilo que Luís Ferreira
Vasconcelos pedisse — e que nem ele queria saber.
Durante algum tempo suspeitara de diamantes, mas ele era
apenas um engenheiro que Luís manobrava e alimentava. Agora
vais para o Rio e do Rio para Luanda. No Rio entregas as amostras
a um laboratório, alguém passará no teu hotel e há de recolher o
envelope que deixarás na portaria do hotel. E apareciam então
empresas de gestão de negócios, bancos que comunicam através
de códigos que ele também transporta para lugares estranhos, de
Nassau a Paramaribo, de Luanda para Madrid.
E sim, recorda-se de Paramaribo, a cidade debaixo de trovoada,
depois de um voo desde Oranjestad a meio da noite, um táxi que o
deixou num hotel silencioso, tão silencioso como o seu sono. Ao
acordar vestido sobre uma cama de dois metros por dois, a mala por
abrir, o cinzeiro voltado sobre o tapete, percebeu que tinha viajado
sob o efeito de uma erva que o deixara durante dois dias num torpor
próximo da insensibilidade. Luís Ferreira quis conhecê-la e pediu
uma amostra — ele sabia como transportá-la, nestes casos: num
tubo de aspirinas efervescentes, embrulhada em fita adesiva, depois
em papel alumínio e, finalmente, em outra folha de película plástica.
Mas o seu torpor nem sequer o incomodou porque trovejara
bastante em Paramaribo durante o seu primeiro dia na cidade, um
domingo quente e silencioso. Na segunda-feira alguém passou pelo
hotel para levantar o sobrescrito que transportara na sua modesta
mochila de viajante quase permanente, engenheiro químico em
férias quase permanentes, salário de cinco mil euros líquidos mais
despesas de deslocação, um metro e oitenta e oito, duas dioptrias
na vista direita, uma e meia na esquerda, órfão desde os catorze
anos, um gosto desajustado pela Matemática.
Também não era o seu papel perseguir o general numa rua do
Porto, mas teve curiosidade. Um mês antes, em Cuiabá, contara-lhe
que conhecera Paula há uns tempos em São Tomé, e que ela fizera
perguntas sobre o seu trabalho.
«Tem uma foto dessa Paula, engenheiro?»
«Só no telemóvel», mentiu ele. Na verdade, tinha várias, tinha
bastantes e a sua mágoa era essa — não saber de onde Paula
aparecia, para onde ela seguia, onde ela se escondia. Uma foto à
janela de um hotel em Luanda. Uma foto durante um passeio em
Lisboa, à beira do Tejo. Onde estaria Paula?
Engenheiro, disse então baixinho, ao atravessar a rua, uns metros
atrás daquele homem que de dois em dois meses fica internado
alguns dias no Hospital Albert Einstein de São Paulo, um bloco de
cimento pálido decorado com um promontório gigantesco em vidro
negro. Engenheiro, engenheiro — e que o recebera numa fazenda
perto de Cuiabá, onde termina o Brasil, onde termina o deserto.
O general entra no Hotel Intercontinental, apertando o casaco à
porta (porque isso lhe permite olhar para o vidro e verificar se é
seguido), e ele desvia-se de repente na direção de São Bento,
depois desce para a Bolsa, desce ainda mais até uma ruela que o
leva à Praça da Ribeira, onde se senta debaixo de um guarda-sol,
escondido de quem passa, escondido de si mesmo porque
finalmente compreendera que ele, engenheiro, era apenas um
colecionador de erva que, de cidade em cidade, consoante uma
ordem decidida com meses e meses de antecedência, distribuía
códigos, números, amostras — e, às vezes, encomendas postais
que Luís Ferreira não podia enviar por correio. Com Béni instalada
em sua casa, teria de partir de madrugada para Luanda e, depois,
para São Tomé. E depois regressaria e não queria voltar mais.
47

ISALTINO DE JESUS TINHA DEPOSITADO UMA PASTA SOBRE A SUA SECRETÁRIA e


Jaime Ramos olhou-a com curiosidade enquanto entrava no
gabinete e relembrava a primeira hora passada em conversa com
Miguel dos Santos Póvoa. Fora fácil, muito fácil, descobri-lo entre os
passageiros de um voo que regressava de Luanda. O avião
chegava às quatro e meia da tarde a Lisboa, e o de Lisboa chegava
ao Porto às sete e dez. Chegou às sete e cinco, e Miguel dos
Santos Póvoa estava cansado da viagem mas não ficou
surpreendido quando José Corsário (Jaime Ramos estava sentado
no carro) lhe pediu que o acompanhasse até ao fundo do passeio do
aeroporto sem levantar suspeitas, como se ele, Corsário, tivesse
apenas vindo buscá-lo de carro, como um amigo prestável.
A partir de certa altura, pensou Jaime Ramos, as coisas
acontecem com grande rapidez. Ao fim da manhã, dominado pelo
sono, esgotado por tanto esperar um desenlace, tomou o caminho
de casa de Luís Ferreira, que o aguardava à porta de casa vestido
de cerimónia, como sempre. Olívia notara os botões de punho, os
sapatos grená, a camisa sem uma ruga — e um carro vermelho
descapotável à porta da garagem, brilhante como uma joia de
museu. O inspetor aproximou-se do carro e procurou uma cigarrilha
no bolso, mas não a acendeu; limitou-se a olhar para o carro e a
aguardar que Luís Ferreira se aproximasse, o que ele fez devagar,
como uma espécie de cicerone, parando diante da garagem:
«Carros antigos eram o sonho de qualquer pessoa antes da crise
petrolífera. No caso do meu avô não era um sonho apenas, inspetor.
Era um Pierce-Arrow de trinta e quatro, prateado. Mas o meu avô
nunca conseguiu comprá-lo. Aos trinta e dois anos cumpriu uma
parte do sonho, um Studebaker Champion de mil novecentos e
cinquenta e dois, vermelho, descapotável, seis cilindros em linha.
Este mesmo. Um Studebaker. Há de perguntar-se: e porquê um
carro americano destes?»
Mas Jaime Ramos não queria saber. Eram onze e meia da manhã
e o sono deixava-o indisposto. O sol queimava nos olhos, refletido
no mar, entrando pelas largas ameias do jardim. E havia o sono,
principalmente o sono, o sono ameaçava-o muito mais. Por isso
ficou calado. Mas o outro repetiu a pergunta substituindo-o no papel
de interlocutor:
«Porquê um carro americano destes? Exatamente. Porque era
preciso um pouco de loucura nesses anos, num Minho muito
arrumado, no país que éramos. Imagino muitas vezes o meu avô
descendo as estradas de Paredes de Coura para aqui, ou subindo
de Cerveira para a serra, ao volante deste carro», Luís Ferreira
Vasconcelos apontando com o polegar para a garagem atrás de si.
«Uma loucura, sem dúvida. Imagino-o a passear entre mimosas, ao
fim de semana, em visita à família, guiando um Studebaker
vermelho. Um café?»
«Vou fumar.»
«Claro. Eu acompanho-o.»
Mas Jaime Ramos não chegou a acender a cigarrilha que, num
gesto mecânico e treinado, tinha tirado da pequena caixa que
guardava no bolso do blusão. Ele acreditava que os charutos se
apagam diante do ódio dos seus adversários, mas talvez tivesse
suspeitado que José Corsário estava prestes a aparecer por detrás
deles. O cabo-verdiano espreitou primeiro pela vidraça que dava
para o jardim, e só depois saiu pela porta do terraço.
«Novidades?», perguntou Jaime Ramos.
«Bastantes. Um arquivo inteiro para desbravar.»
«Estão a visitar a minha casa, portanto», Luís Ferreira sorrindo
sem ironia, a boca num esgar.
«Daqui a duas horas, mais ou menos, uma equipa de polícias vai
bater-lhe à porta e mostrar-lhe um mandato de busca. Não vão
procurar carros antigos, vão procurar documentos. Mas esta não é a
sua casa. É a casa onde vive com o seu pai.»
«E com que acusação? Impostos? Estão em dia. Uma inspeção
fiscal vinha a calhar. Somos contribuintes sérios, inspetor. Já deve
ter reparado, e para isso não precisava de vir aqui.»
«Os impostos não me interessam. Há uma brigada fiscal que trata
do assunto. Não me interessam os impostos. Interessa-me a sua
vida toda. Os impostos são a nossa desgraça, a nossa única
indústria, a nossa única fonte de rendimento.»
«Não compreendo.»
«Eu sei que não compreende, mas estou cansado a esta hora da
manhã. Interessam-me o Arkady Tarasov e o Mikhail Polianov.
Interessam-me porque estão mortos, e o meu trabalho é explicar
essas mortes. E porque são russos, e eu gosto de literatura russa.»
«Pobre vida de polícia. E eu tenho alguma coisa a ver com isso?»
«Eles trabalhavam para si.»
«Surpreenda-me outra vez, inspetor.»
«Eles trabalhavam para si», repetiu Jaime Ramos. «Sei como
foram mortos, mas não sei mais nada. E o Miguel dos Santos Póvoa
também trabalha para si. Todos estão nas suas folhas de
pagamento em operações delicadas que se chamam transporte de
valores, amostras de sedimentos, exploração de plataformas
petrolíferas. Mas, por mais que tivéssemos procurado, não
encontrámos esse petróleo. Só despesas feitas em favor do
Tarasov, do Polianov, Santos Póvoa — e da sua irmã Béni,
Benedita.»
«O Tarasov e o Polianov tinham vida própria. Ganhavam o seu
dinheiro, não eram meus empregados.»
«Pode ser. Mas alguma coisa aconteceu para eles terem sido
mortos.»
«É muito comum hoje em dia, inspetor. O crime é uma indústria
em crescimento, o senhor sabe. E a Béni desapareceu.»
«A Béni está a dormir depois de fumar toda a erva que pôde
encontrar aqui à volta. Mas não precisa de salvação», Jaime Ramos
voltando-se para o casarão e reparando que ao lado de Olívia, da
janela da sala, no andar de cima, o rosto enrugado e triste de
Henrique Ferreira Vasconcelos os olhava sem expressão, como se
procurasse um rasto de luz no meio da poeira.
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GABRIEL MEDINA GOLDFARB, GENERAL RETIRADO E NA RESERVA, SESSENTA E


CINCO ANOS, viúvo, viajou (de avião) do Porto para Lisboa na tarde de
24 de maio, segunda-feira, e de Lisboa para São Paulo nessa
mesma noite. A sua entrada no Hospital Albert Einstein foi registada
no dia 25 de manhã, bem cedo. O táxi que devia transportá-lo entre
o aeroporto Marechal Rondon, Cuiabá, Mato Grosso, e a fazenda
Rosa do Mato, município de Santo Antônio de Leverger, à beira do
rio Cuiabá, nunca foi localizado — mas o voo TAM 3638, com saída
de Guarulhos, São Paulo, às 12h35, e chegada a Cuiabá às 14h05,
regista um passageiro com esse nome, lugar 4-A, no dia 28 de
maio.
Foram pedidas informações adicionais à embaixada de Angola
sobre Paula Ana Paz de Oliveira, nascida em 1978, Luanda,
passageira de um voo TAAG de Luanda para Lisboa no dia 20 de
maio, presumivelmente assassinada a 23 de maio e cujo corpo se
encontra no Instituto de Medicina Legal do Porto a aguardar
identificação.
Isaltino de Jesus acrescenta a estes dados, com a sua letra
cursiva, em tinta azul e sublinhados a vermelho, uma folha relativa a
Irina Aleksandreiéva Polianova, cidadã com dupla nacionalidade,
russa e portuguesa, empregada comercial, nascida em Odessa, na
Ucrânia, viúva, passageira de um voo Lufthansa com destino a
Frankfurt e Moscovo no dia 1 de junho, depois de pedir um mês de
férias na loja de roupa onde trabalha habitualmente.
O resto das folhas é uma lista de depósitos anónimos em vários
bancos, em lugares tão diferentes como Luanda, Benguela, São
Tomé, Paramaribo, Belize City, Rio de Janeiro, Caracas, Madrid,
Mindelo, Libreville, Bogotá, São Paulo, Porto, Viana do Castelo ou
Londres. A maior parte desses depósitos é realizada em dinheiro,
euros e dólares, mas também francos suíços — e Isaltino de Jesus
assinala a vermelho as datas em que esses depósitos coincidem
com viagens de Miguel dos Santos Póvoa, embora o seu nome
nunca apareça ligado a um único talão de depósito, a uma única
operação bancária.
Inclinado sobre a mesa, espalha uma série de fotografias que vai
retirando de um sobrescrito castanho. Nem todas são impressas em
papel fotográfico; algumas saíram da pobre impressora que funciona
ao canto da sala, junto da secretária ocupada por Olívia, e foram
copiadas do telemóvel de Miguel dos Santos Póvoa, ou do seu
computador portátil, ou ainda do seu próprio telemóvel. Estuda o
rosto de Paula, observa demoradamente cada uma das imagens.
Assim se constrói um processo, diz baixinho. Por vezes tem
necessidade de falar baixinho e de conferir que as frases funcionam
independentemente daquilo que pensa. Como, por exemplo, cabrão
do velho, quando se refere a Jaime Ramos. Há também fotos,
tiradas por José Corsário, e que identificam pequenos
compartimentos de um humidificador onde Luís Ferreira
Vasconcelos guardava amostras de Cannabis Sativa, vulgo
marijuana, maconha, liamba, suruma, taco, erva, chamom, ganja,
baseado, bagulho — e cada compartimento indicando uma origem:
Angola, Brasil, São Tomé, Moçambique, Alentejo (Estremoz),
Funchal, etc. —, além de uma sofisticada máquina de fabrico de
cigarros artesanais de origem americana.
Não sabe como foi ali parar aquela fotografia de um farol, mas
juntá-la-á depois ao processo, porque para alguma coisa existem os
faróis — e este está recortado contra a escuridão de um mar
anoitecido e indiferente, como acontece quase sempre. O último que
viu foi o de Leça, numa noite de chuva que anunciava o fim de maio.
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ELE NÃO TINHA UM APREÇO ESPECIAL PELAS SUAS PEQUENAS MENTIRAS — ao


longo dos últimos anos podia contá-las pelos dedos: inocentes,
algumas; na realidade, a maior parte não teve importância, se
tirarmos os telefonemas com Célia — lembrou-a, olhos azuis muito
claros, como uma recordação de adolescência, ao balcão daquele
restaurante de praia em Gulpilhares, a dois passos do Senhor da
Pedra. Na altura não lhe falou, mas dois ou três dias depois recebeu
um telefonema e reconheceu a voz da antiga namorada, o seu
sotaque, o riso malcriado. Trocaram números e combinaram um
almoço para daí a uma semana («Às vezes perguntava-me, onde é
que anda aquele rapaz?, finalmente vejo-te, vê tu a coincidência, e
até podemos conversar um bocadinho.» «Sim, podemos conversar,
podemos.» «Olha se tínhamos casado, imagina bem.» «Pois era,
mas não casámos.»), Isaltino em sobressalto durante aqueles dias,
primeiro imaginando Célia quinze anos atrás, no interior de um Fiat
127 em terceira mão, uma saia de ganga que era fácil de fazer subir,
a chuva no vidro embaciado do carro; depois, o sentimento de culpa
antecipado, a asneira que tinha sido aceitar o encontro com uma
namorada de que já se tinha praticamente esquecido, e, ao mesmo
tempo, a vontade de que o encontro passasse rápido e não
deixasse marcas, que Célia voltasse para a galeria das recordações
e a sua vida voltasse à tranquilidade de antes — antes do primeiro
telefonema de Célia, antes do segundo telefonema, da primeira
mensagem que ela lhe enviou para o telemóvel («Mal posso
esperar.»). E, finalmente, o dia do encontro e aquele telefonema,
logo às nove da manhã, Célia a chorar, ele dentro do carro, a
caminho da casa de Jaime Ramos:
«Desculpa, desculpa, mas temos de adiar o almoço.»
«Sem problema. Adiamos o almoço», Isaltino respirando de alívio,
bem vistas as coisas, depois podia ser ele a adiar e, mais tarde, o
almoço podia ficar esquecido.
«Desculpa.»
«Passou-se alguma coisa?», ele achou que devia perguntar,
embora não estivesse interessado em saber, mas a verdade é que
Célia estava a chorar.
«O meu marido morreu hoje de noite, um ataque cardíaco.
Desculpa. Tenho tantas coisas a tratar, depois ligo-te, almoçamos
para a semana. Adeus.»
Ficou ali parado no carro, aguardando a luz verde de um
semáforo, o telemóvel na mão, «o meu marido morreu hoje de
noite». Demorou um pouco até que a respiração voltasse ao normal,
mastigando pastilha elástica e conduzindo o carro até ao bairro de
Jaime Ramos, que o aguardava no café Nova Sintra, sentado diante
do jornal, de uma chávena vazia e de uma Água das Pedras. «O
meu marido morreu hoje de noite. Desculpa.»
Nessa tarde deu o seu telemóvel como perdido e pediu um
número novo para que Célia nunca mais lhe pudesse ligar. Um mês
depois, aproveitando uma diligência em Espinho, passou por
Gulpilhares e viu-a ao balcão do restaurante, os mesmos olhos
azuis muito claros, vestida de escuro, uma jovem viúva que ele
acabou por não reencontrar. Considerou que a sua vida, a
tranquilidade da sua vida, a sua paz familiar, a sua agradável
mediocridade, tinham sido salvas pela morte providencial do marido
de Célia, de quem nunca soube o nome e de cuja existência a
jovem viúva devia guardar — ele achava — uma recordação
simpática e culpada.
Tirando a sua pequena mentira com Célia, Isaltino de Jesus
nunca dissera a Jaime Ramos toda a verdade sobre o encontro de
Olívia e Béni em Vigo — nem a forma como passearam juntas pelas
ruas do bairro histórico, como entraram naquele bar a dois
quarteirões do Paseo Rosalía de Castro, ou como nesse fim de
tarde acabaram por regressar as duas a Portugal, na moto de Olívia
— pela estrada do litoral, de Bayona a La Guardia, e de La Guardia
a Leça. O assunto dizia-lhe respeito apenas a ele, e não estava
disposto a ser delator da distração de Olívia. O seu olhar não o
enganara e vira nela, não o descaramento de Célia, grosseiro e
atrevido, mas uma inocência tola à beira do abismo.
«Deu-me uma coisa. Ela estava perdida.»
Se a rapariga estava perdida, Olívia estava também perdida,
todos estavam perdidos, e aquilo que era uma história de russos
assassinados (a imprensa gostaria de um pouco de violência e
ameaça à ordem pública) passaria a ser uma história de costumes.
Não contassem com Isaltino de Jesus. Ele podia não ser o Marlowe
de Valongo, mas a segurança das pessoas não tinha nada a ver
com saberem tudo uns dos outros. Já havia devassa a mais na vida
de todos os dias. Já havia coscuvilhice a mais por meios legais,
cartões de crédito, impostos, mais impostos, sempre impostos, chips
de autoestrada, faturas registadas, telefones vigiados, mails
desviados, conversas escutadas de um apartamento para outro,
buscas pela internet: o mundo transformara-se num grande palco
onde todos servimos de espectadores e de atores ao mesmo tempo.
Não contem com Isaltino de Jesus, aquele que um dia se julgou o
Marlowe de Valongo, mas um Marlowe sem aventuras, sem glória,
sem solidão. Ele respeitaria Olívia, mesmo se ela tivesse dormido
com a rapariga — uma rapariga bonita, tonta e rica, que precisava
de trabalho e de ocupação, como toda a gente.
Olhando à sua volta (os papéis na secretária), conferiu que tinha
agora tudo preparado para Jaime Ramos: em folhas brancas e lisas,
quase um cronograma dos acontecimentos que tinham perseguido
ao longo de duas semanas em que a primavera se instalara, partira
no meio da chuva e, finalmente, regressara para devolver um pouco
de tranquilidade à secção onde ele próprio, Corsário, Olívia, Dulce,
Jacinto e Vasco aguardavam que chegasse o primeiro sábado de
junho e a promessa de um longo verão.
A última peça desse processo chegara há meia hora: a foto a
preto e branco de um homem magro, de cabelo grisalho (aquele
penteado clássico que o seu pai usava, passando o pente pela água
da torneira), olhos claros, o queixo saliente — e uma gravata de dois
tons sobre uma camisa branca de colarinho rígido. O trajeto de
Gabriel Medina Goldfarb tinha sido cuidadosamente revisto por si,
desde o aeroporto de São Paulo, primeiro no voo Iberia 06824 para
Madrid, depois no voo TAP 1007 de Madrid para o Porto, chegada
às 9h40 do dia 21 de maio. Alojamento no Hotel Intercontinental do
Porto por três noites, três dias. Carro alugado no próprio hotel. Tinha
sido fácil, depois disso, colocar o general Medina no casarão de
Luís Ferreira Vasconcelos na tarde de 22, sábado, seguindo as
indicações de Miguel dos Santos Póvoa. A arma e as munições
utilizadas para matar Arkady Tarasov e Mikhail Polianov não foram
identificadas — a balística é uma ciência exata quando há registos e
não se lida com um militar que atravessou as montanhas e planaltos
do Nordeste de Angola durante a guerra, ou quando o atirador não
usa duas armas para despistar um grupo de pobres polícias do
Porto, glória das nossas províncias, habituados a crimes de rua, um
porteiro varado por uma rajada de metralhadora, uma mulher a
quem cortam os pulsos e esburacam os olhos, um homem solitário
abandonado num areal da Afurada com duas balas no peito. Mas
aqui tratava-se de um general retirado, campeão de África, ginasta,
magro, musculado, que começara a ser devorado por um cancro e
por uma dívida do dever, o que justificara que Luís Ferreira
Vasconcelos tivesse sido detido apenas por posse ilegal de drogas.
Antes de sair da sala (o encontro com Jaime Ramos era às sete e
meia, no Bar Bonaparte, nessa noite ficaria no Porto, telefonara para
casa a avisar), Isaltino olhou ainda com alguma atenção para a foto
daquela russa a que nunca tinham conseguido arrancar uma única
informação. Ele sabia que ela escondia qualquer coisa, sabia que
por detrás daquele ar de pequena mulher estúpida e ignorante
(tinha-lho visto nos olhos, mas não podia dizer isso em voz alta)
havia um segredo qualquer, uma prova que eles ignoravam — e que
estava agora fora do seu alcance, em Moscovo, onde a primavera
chegava mais tarde (informara Jaime Ramos, como se soubesse do
que falava). Nada a fazer. Nada a corrigir. Dois russos mortos eram
um pormenor na vida da cidade. Ninguém ia dar por falta deles.
O único problema que ficara por resolver era o do
desaparecimento de Paula Ana Paz de Oliveira, raio de nome, mas
Jaime Ramos recusava-se a tomar conhecimento do assunto,
argumentando que desaparecimentos não eram entrada do seu
dicionário. Exatamente assim, cabrão do velho. Ele sabia que
Miguel dos Santos Póvoa tinha colaborado daquela maneira por
causa da morte da mulher angolana, mas não havia maneira de ligar
nem o general nem os russos ao cadáver retirado da lama do rio. O
rapaz, aquele engenheiro franzino e desengonçado, recusara-se a
identificar o corpo. O pai da rapariga, outro general, chegava de
Luanda no dia seguinte, de madrugada, e logo se veria.
Provavelmente, teriam de chamar de novo Miguel dos Santos Póvoa
— ele fechara-se no apartamento de Leça (Jacinto montara guarda
à porta durante os dois últimos dias) e só saíra esta tarde, de carro,
na direção de Caminha, e ainda não voltara do seu passeio.
Isaltino estranhou o pouco trânsito a esta hora, sete da tarde — o
que era bom, uma vez que não gostava de chegar atrasado. Jaime
Ramos não estava ainda no Bonaparte, aquele bar voltado para a
Praia da Luz, na Foz, e que, às vezes, era uma espécie de segunda
casa do seu chefe. Sentou-se então ao balcão, onde já havia outros
frequentadores, e pediu uma cerveja.
«Portuguesa, irlandesa, belga, inglesa, alemã?», ao balcão, a
rapariga olhava-o com interesse enquanto servia uma pequena taça
de milho frito.
Isaltino considerou as hipóteses e sorriu, lembrando-se dos rituais
de Jaime Ramos, escolhendo uma cerveja para cada ocasião:
«Qual a melhor para esta hora?»
«Uma de trigo. Ajuda a preparar o estômago.»
«Fico à espera.»
Foi então que o ouviu, mesmo atrás de si, recortado contra a luz
suave da pequena sala do bar — e obrigando-o a voltar-se:
«Inspetor Isaltino, então a ocupar o meu lugar?»
«Não, chefe. A guardá-lo para si. Vamos tomar uma Erdinger?»
«Às nove e meia Rosa vai ter comigo a Caminha. Vou comer e
dormir durante todo o fim de semana.»
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ÀS OITO E MEIA, DURANTE A PRIMEIRA SEMANA DE JUNHO, A NOITE AINDA NÃO


POISOU SOBRE TODA A TERRA DO LITORAL. Aqui e ali, entre o farol e a
ondulação do mar que ameaça a pequena fortaleza, pequenos
barcos passeiam como se não tivessem destino, lançando redes,
regressando aos poucos ao areal; há trinta anos, as praias cobriam-
se de sargaço ao fim da tarde, principalmente em redor do molhe de
Vila Praia de Âncora, diante da avenida que acendia as luzes e
primeiro sentia as neblinas que desciam ao longo da costa.
O homem estava sentado sobre uma das dunas, perto das
armações de madeira que no fim de semana receberiam os
primeiros toldos do ano. Uma praia deserta tranquiliza mais do que
o próprio ruído do mar; depois de alguns dias de chuva, as marés
baixas são suaves, de ondulação limpa, como um metrónomo que
se pode controlar à distância. Jaime Ramos sabe o que vai
acontecer — porque previu tudo, desde o início. Deixara Isaltino de
Jesus à porta do bar, no Porto, e entrara na autoestrada depois de
Jacinto ter confirmado que Miguel dos Santos Póvoa tinha desviado
o carro da estrada nacional, atravessara os pinhais, à esquerda, e
parara em frente de um dos bares da praia, em Moledo. Quando se
cruzaram, Jaime Ramos mandara-o embora, acenando-lhe com a
mão e recomendando-lhe silêncio: o homem estava à vista do muro,
sentado na coroa de uma duna. O polícia desceu as escadas.
Agora, a escuridão começara a envolver toda a praia e deixara de
se ver o forte da Ínsua, recortado contra o vulto da montanha de
Santa Tecla. Olhou o relógio e confirmou que passara uma hora
desde que aterrara o avião de Genebra. Jaime Ramos precisava de
se certificar que a mensagem tinha sido entregue.
«O chefe, afinal, é um romântico.»
«Cumprimos o nosso dever, Isaltino, cumprimos o nosso dever.»
«Ele era uma marioneta, no fundo. E sem saber, sem suspeitar de
nada. Levava dinheiro de um lado a outro, e dentro do dinheiro o
que calhava. Porquê transportar dinheiro, chefe?»
«Os portugueses são desconfiados em quase tudo, menos no que
devem. E não vão em depósitos no banco, Isaltino. Depósitos no
banco deixam rasto, aparecem fiscais das finanças, polícias como tu
e eu, curiosos que não desarmam. Mas um homem que transporta
amostras de petróleo, de rochas, de sedimentos, disso ninguém
desconfia. Tudo certificado, exceto os diamantes que toda a gente
recolhia em toda a parte. Em toda a parte.»
«E ela, a angolana?»
«Sabia que os russos desviavam dinheiro e faziam negócios por
conta própria. Ela não. Ela limitava-se a fazer o seu trabalho, a
transportar o que havia a transportar de um lado para o outro. Mas
sabia de tudo.»
«Vamos ter de abrir inquérito?»
«E porquê, inspetor Isaltino? Dá-me a impressão que não temos
uma única prova de que a rapariga se dedicava ao crime. Também
deve ter feito negócio por conta própria. Ela foi morta por Tarasov
enquanto Polianov estava a ser morto pelo general. Depois, o
general meteu o cadáver do primeiro russo no carro, esperou pelo
outro e levou-o para Vila do Conde. A Medicina Legal há de
confirmar tudo.»
Isaltino encolheu os ombros, conformado. Bebera a sua primeira
cerveja de trigo sentado ao balcão do Bonaparte. Depois, Jaime
Ramos partiria, confirmando que Jacinto seguira Miguel dos Santos
Póvoa até Moledo. Mas antes, voltando-se para o balcão, deixando
o dinheiro da conta:
«A Medicina Legal há de confirmar tudo, Isaltino. Só não pode
confirmar a morte de Paula.»
«E porquê?»
«Porque Paula Ana Paz Oliveira, um nome assim dá vontade de
ser angolano, não foi assassinada. Aquela mulher não é a amiga do
nosso Póvoa.»
Quarenta minutos depois, Jaime Ramos descera as escadas para
a praia. Estava a começar a tornar-se um hábito terminar as suas
histórias em redor deste lugar, que agora era uma espécie de clarão
de luz no litoral. Olhando o mar para confirmar que ele continuava
sentado no mesmo lugar, sentiu também aquele perfume de
pinheiro, de terra queimada, de carqueja e giesta entre os
eucaliptos, e voltou-se, cabeça inclinada para trás, sorvendo o ar.
Foi então que a viu, saindo de um táxi, vestido preto, sapatos de
salto alto, o cabelo frisado solto. Ao chegar às escadas, descalçou-
se e olhou para a espuma branca das pequenas ondas, antes de
descer. Jaime Ramos estava logo abaixo, e viu-a passar. Um anjo
de prata no fio do pescoço. E só então ele voltou para trás, subindo
as escadas, deixando as coisas entregues ao seu destino.
Estás um pouco velho, ligeiramente trôpego. Se tivesse outra
profissão, poderiam festejar a tua carreira. Por exemplo: quanrenta
anos de vida literária, inspetor Ramos. Quarenta nos de vida
artística comemorados com o esplendor de uma vaga recordação
profissional. Quarenta anos de carreira e a promessa de uma
reforma adiada por mais uma década — e, a bem ver, inspetor
Ramos, o que irias tu fazer de uma reforma garantida por anos de
economias mal guardadas? O vendaval passou, nada mais resta.
Irias trautear canções velhas e tão fora de moda como tu próprio.
Irias retomar o hábito de ir pescar para a ria de Aveiro ou num rio do
Gerês onde não chegam nem o ruído da cidade nem as vagas de
uma multidão que passou por todos os anos da tua vida. Irias
esperar Rosa junto do portão da escola e aguardarias que ela
contasse como a ignorância tomou conta da humanidade e ninguém
se interessa por Matemática, por Física, por Química, pelos
segredos do Cosmos. Irias cozinhar para que o teu pequeno
apartamento tivesse um aroma e uma história pessoal, e para que
Rosa abandonasse a sua busca por uma dieta perfeita. Irias ser
como és, nada mais.

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