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Professor,
jornalista e editor, foi também diretor das revistas Ler e
Grande Reportagem – e da Casa Fernando Pessoa. De 28
de junho de 2011 a 25 de outubro de 2012 exerceu o cargo
de Secretário de Estado da Cultura do XIX Governo
Constitucional. Colaborou em vários jornais e revistas, e foi
autor de vários programas na rádio (Antena 1) e televisão
(Livro Aberto, Escrita em Dia, Ler para Crer, Primeira
Página, Avenida Brasil, Prazeres, Um Café no Majestic,
Nada de Cultura). Da sua obra destacam-se livros de
poesia (Metade da Vida, O Puro e o Impuro, Se Me
Comovesse o Amor) e os romances Regresso por um Rio,
Morte no Estádio, As Duas Águas do Mar, Um Céu
Demasiado Azul, Um Crime na Exposição, Lourenço
Marques, Longe de Manaus (Grande Prémio de Romance
e Novela da Associação Portuguesa de Escritores 2005) e
O Mar em Casablanca.
JAIME RAMOS ERA ELE. MAL TINHA BIOGRAFIA. Mal tinha memória. O seu
biógrafo era Isaltino, o homem atento que anotava tudo nos seus
cadernos da Papelaria Emílio Braga, de velho papel almaço, capa
preta e lombada vermelha, com a sua letra de amanuense militar
que, por sua vez, imitava a do pai merceeiro, que morrera com uma
cirrose hepática e seis filhos, dos quais nenhum jogava futebol e
apenas um ficara desempregado e emigrara para o Canadá,
Montreal, de onde nunca a família nunca recebera notícias. Isaltino,
a flor da modéstia, a voz, o sotaque experimentado, a manha, a
astúcia dos provincianos, o homem que reúne todas as informações
ocultas num cérebro funcional e livre de tabaco ou de álcool.
Isaltino, que o tratava por chefe e que o protegia dos outros chefes.
Isaltino, que lhe guardava as chaves do carro, os talões do
estacionamento, o isqueiro de plástico, as faturas de despesas para
a contabilidade da polícia, que arejava o gabinete quando Jaime
Ramos prolongava a noite de trabalho e acendia charutos proibidos
em departamentos públicos. Isaltino, que conduzia amavelmente o
carro de serviço enquanto Jaime Ramos dormitava, ou protestava
contra um trânsito invisível e contra a meteorologia. Isaltino que
subia e descia escadas à sua frente, que era o primeiro a chegar às
cenas de crime, que se ajoelhava ao lado dos cadáveres, que
marcava a geografia de cada homicídio (essa geografia que
implicava a partilha de territórios entre as outras polícias, a Medicina
Legal, os delegados do Procurador, os bombeiros, as famílias, as
testemunhas, os peritos que tinham pressa, os peritos que não se
apressavam, os vizinhos curiosos ou apenas os curiosos que
passavam) e que transformava tudo em relatórios escritos sem erros
ortográficos. Jaime Ramos apreciava irracionalmente este
pormenor, a colocação das vírgulas, as regras de concordância, a
ausência de advérbios de modo, as orações reflexas construídas à
antiga, os itálicos em expressões estrangeiras, geralmente inglesas
— onde aprendeste essa graciosidade de amanuense, Isaltino de
Jesus? —, em dados acumulados numa memória intransigente e
sem mácula. Isaltino, o ajudante implacável e falsamente submisso
(«cabrão do velho», ele escutava-lhe as humilhações vividas em
silêncio), o provinciano que se espantava com a grandeza do mundo
(o modo como admirava, sem invejar, as viagens de Jaime Ramos
— «Isaltino, o mundo não acaba.» «O chefe é a prova disso.»). O
penteado de Isaltino, desviando-se para o lado direito, onde se
notava uma queda prematura de cabelo e que um dia seria ridícula
e ele esconderia com uma madeixa ainda mais ridícula. O modo
como aceitava os reparos, as ironias («É como diz, chefe.»). E o
modo como protestava («O chefe não me dá importância, mas
consegui isto, consegui aquilo.» «És um génio, Isaltino, e não estou
a brincar, não estou a ser irónico, mas costumo poupar nos
elogios.» «Uma vez ou outra eu preciso de um elogio.»). E o modo
como respeitava Rosa, como nunca interferia naquela relação que
Jaime Ramos tantas vezes descuidava entre inquéritos, falhas,
esquecimentos, trabalho em excesso. Isaltino de Jesus, o motorista
fiel que passava pelo Café Nova Sintra todas as manhãs de
segunda-feira e recolhia um Jaime Ramos exausto, silencioso, de
poucas frases, intoxicado pelo segundo café expresso, pela
segunda cigarrilha da manhã, pela leitura dos jornais — e que lhe
falava de futebol, de meteorologia, do preço das coisas comuns (o
pão, a carne, o peixe, os legumes, as ementas dos restaurantes, o
material escolar, a roupa dos filhos, as férias que se aproximam, as
férias que se vão ou foram), das obras nas ruas, da necessidade de
vigiar a saúde e de cumprir as indicações dos médicos. Isaltino,
Isaltino, a sua fidelidade conjugal, a sua falta de sentido de humor, o
seu alfinete de gravata, os seus sapatos engraxados, os almoços de
Páscoa, os hábitos madrugadores. As fotografias da sua mulher,
Vânia, e dos filhos, Gabriel, Alice, Bruno, expostas numa pequena
moldura que nunca saía daquele sítio, ao canto direito da secretária,
ao lado do quarteto de canetas guardadas num copo (preto, azul,
vermelho e verde — exatamente estas cores, que podiam ser
outras, que podiam ser mais originais, azul celeste, azul ultramarino,
violeta, roxo, castanho, sépia, mas que eram exatamente aquelas,
as cores padrão de qualquer burocrata dos anos sessenta), além de
dois lápis Viarco número dois e de uma agenda Condor onde eram
apontados todos os afazeres, todas as ocupações, todos os
encontros, todos os aniversários.
E José Corsário, o cabo-verdiano do Mindelo, o filho do
funcionário colonial dos impostos que morreu feliz por ter garantido
passaporte português depois da independência de Cabo Verde, o
filho da jovem estudante de Santo Antão que se apaixonara pelo
músico que tocava mornas românticas e sedutoras (vestido de
branco como um poeta de antigamente, podia verificar nos retratos
de Eugénio Tavares) e que — depois de enviuvar — regressara à
ilha onde vivera mais de metade da vida, São Vicente, Mindelo, no
primeiro andar de uma casa voltada para o velho largo arejado e
limpo, rente à Câmara Municipal. José Corsário e Fátima, a
namorada angolana, a rapariga de Benguela, os discos de mornas
clássicas, de funaná, de canções ultramarinas como o mar
ultramarino de Cabo Verde, como a chuva tépida numa ilha
desértica, como um vulcão numa ilha vulcânica, como as saudades
da terra. Vinte dias por ano no Mindelo. Presentes embrulhados
para toda a família em Cabo Verde. Uma ventania antes dos
trópicos. E depois, sentado a uma secretária, usando o telefone,
diante do computador, inclinando-se para trás, «eu devia ter
regressado a Cabo Verde, o meu pai foi um traidor à pátria que
hipotecou tudo por um miserável passaporte português, um
passaporte de branco», guardando tudo numa mochila que
arrastava consigo dia e noite, domingos e dias de semana, a
qualquer hora em que estivesse acordado.
«O que guardas nessa mochila suja, Corsário?»
«Lixo, chefe. Nós, os pretos, guardamos tudo o que encontramos,
temos sempre uma camisa guardada para as necessidades, comida
quase estragada, música, papéis, cassetes que já não tocam em
nenhum aparelho, fotocópias de papéis, e os vários bilhetes de
identidade andam sempre connosco porque podemos ter a pouca
sorte de encontrar a polícia.»
O que herdara ele do funcionário colonial cumpridor, do pai que
vestia um fato branco naquele grupo que tocava mornas para as
jovens de Santo Antão, do velho cabo-verdiano do Mindelo que
recitava Eugénio Tavares e ouvia rádio nas noites de domingo? O
que herdara ele do tio que procurara refúgio político em Argel e
acabara depois em Pequim, entre grupos de exilados que
veneravam Mao e que depois lutariam na Guiné, fardados de
coreanos e preparados para o combate contra o colonialismo
português? O que herdara ele dos tios que bebiam grogue nas
tabernas de São Vicente ou de Santiago, ou da Brava, ou de Santo
Antão, e pescavam ao largo das ilhas? O que herdara ele de Jaime
Ramos, a quem detestava os hábitos de fumador, a indisciplina e a
sonolência do verão?
«Eu devia ter regressado a Cabo Verde em vez de andar a caçar
bandidos que não sabem distinguir um preto de um branco.»
«E tu que és, Corsário? Preto ou branco?»
«Essa é a minha maldição, chefe. Estou no meio. Herdei genes
desencontrados de brancos egoístas e de pretos preguiçosos, estou
no meio. Na minha família tanto há alcoólicos pobres como primos
remediados que ajudam à missa numa igrejinha caiada de São
Vicente e cantam com voz de bispo. Há um resto de sangue de
escravo, um resto de comerciantes de atum, um resto de
vendedores de fazenda, de cobradores de impostos e até, para não
parecer mal, de negociantes de escravos. Há de tudo. É a minha
maldição. E a sua sorte.»
O recorte das montanhas de São Vicente recordava-lhe os
vulcões de um planeta deserto, e José Corsário sabia que nunca iria
esquecê-las desde o primeiro dia em que se lembrara delas entre as
neblinas do Porto, entre as brumas da memória, ó pátria de egrégios
avós — maldição de ser português, dizia ele. Também não
esqueceria o seu primo Tchoi, bêbedo, as calças rasgadas, a
camisa branca suja de poeira, escrevendo num muro de Salamansa,
com letras de meio metro de altura, uma mensagem de amor que
nunca compreendera, depois da morte de Luísa, a sua namorada:
«O mundo roubou-me a melhor namorada que havia.» Tchoi tocava
saxofone e violão pelas noites do Mindelo, rua a rua, enlouquecera
desde essa tarde em que o funeral de Luísa percorrera o caminho
entre a igreja matriz e o velho cemitério onde iam ficando
esquecidos todos os antepassados, negros e mestiços, velhos e
novos, mulheres e homens, de São Vicente ou de Santo Antão, os
que tinham sobrevivido à fome, ao vento de leste, ao álcool — ou
tinham sucumbido a todos os males das ilhas. Foram dar com ele,
no dia seguinte, sentado no areão da Lajinha, bebendo grogue velho
e cantando baixinho uma morna triste como todas as mornas que
evocam amores perdidos, amores impossíveis, amores de outrora.
Pediu apenas que o levassem a Salamansa no seu próprio carro,
em cujo porta-bagagens guardara um balde de tinta e um pincel
com que pintaria a sua mensagem estranha e sem assinatura. Dois
anos depois, três anos depois, vários anos depois, José Corsário
voltaria a Salamansa para ler a frase do seu primo bêbedo que
entretanto emigrara para os Estados Unidos e vivia agora perto de
Boston, numa cidade onde abrira um restaurante que prometera
visitar mas que sabia que nunca iria ver, até porque o seu primo era
apenas o seu primo e havia limites para os laços de família. «O
mundo roubou-me a melhor namorada que havia.» Mostrou a frase
a Fátima (fora apresentá-la à mãe e à família), e ela olhou sem
perceber o sentido daquelas palavras pintadas a vermelho-escuro,
vermelho-sangue, num muro branco.
«Isto é o que eu nunca quero escrever de ti», disse-lhe ele, e
Fátima, que continuava sem compreender, apertou-lhe a mão,
segurou-lhe a mão, acariciou-lhe a mão como se entendesse o
mistério de um amor dedicado e condenado à eternidade. Corsário,
que tinha bebido bastante, disse-lhe que iria morrer antes dela,
antes da mãe, antes dos velhos tios de Santo Antão, antes dos
canaviais de Salamansa, como se lhe jurasse um amor mais forte e
mais fundo do que o mar.
«E vais casar com uma angolana porquê?», perguntou-lhe Jaime
Ramos.
«É a primeira africana na nossa família, chefe.»
«E tu não és africano?»
«Não, chefe. Sou cabo-verdiano.»
8
JAIME RAMOS VOLTOU A TER MEDO. UMA SENSAÇÃO NOVA DESDE QUE
ACABARA A GUERRA. Nada, nem a doença, as intempéries, o silêncio a
meio da noite, as palpitações da taquicardia, lhe tinham provocado
medo. A sensação era nova e, a princípio, não tinha medo. É isto o
medo? Mesmo quando — há um ano apenas — estivera internado
num hospital, relegado para o fio da navalha, esmagado por
diagnósticos que nunca entendera (a hipertensão, que não
conhecia, o excesso de trabalho, que não conhecia, o esforço do
coração, coisa que julgava uma metáfora, uma imagem boa para
quem escrevia poemas), não era medo que sentira. Talvez tivesse
sentido a proximidade da morte; mas aprendera a lidar com ela
como uma ausência, um problema sem solução, uma
inevitabilidade, a única inevitabilidade. E, mesmo nessas
circunstâncias, a morte dos outros habituara-o a encará-la como um
degrau no caminho para outra coisa qualquer.
Rosa acompanhara-o nesses dias em que estivera no hospital.
Ele conhecia a doçura da gratidão, sabia que a gratidão faz nascer
qualquer coisa mais forte. Não conhecia o amor, nunca falara de
amor, nunca pronunciara as palavras que vira no cinema, nos livros,
nos outros, porque não gostava de repeti-las; ele estava grato a
Rosa, sorria quando ela entrava no quarto do hospital e lhe trazia
jornais, uma empada de galinha, cartas que tinham chegado à sua
caixa de correio, um disco novo para ele ouvir durante a noite. Por
vezes, ela adormecia no pequeno sofá onde as visitas se sentariam,
ao lado da cama. Ele ficava desperto, olhando-a, reparando como
uma ruga nascera naquele rosto, como novos fios de cabelo branco
tinham aparecido, como as mãos ficavam pendentes sobre o corpo
adormecido. E o tempo passava sem ruído. Depois, um dia, uma
tarde, uma noite, falaram sobre a idade — a idade não é o tempo
que passou; é o tempo que resta. Nem assim sentiu medo. Jaime
Ramos sabia o que era a gratidão. Sabia o que era a insónia, e a
maior parte das suas insónias tinha a ver com o medo e com o
medo da morte, mas nunca confessaria esse deslize ideológico. Ele
também sabia o que era a chuva de verão. O que era a madrugada.
O que era a proximidade da morte, afinal de contas. O que era a
idade. Mas o medo só chegara agora, subitamente, como a
passagem numa estrada deserta a caminho do Norte, entre florestas
ardidas e rios que tinham desaparecido.
Olívia partira há uma semana para Vigo e o resultado tinham sido
duas mensagens no telemóvel. Primeiro: «Cheguei de manhã. Ainda
não tenho notícias.» E depois: «Vou ficar mais um dia. Não há
notícias.» Depois, sim, voltara ao Porto, ao terceiro dia. Entrou no
seu gabinete ao fim da manhã, olheiras profundas, escuras, num
rosto de mulher indiferente, os cabelos presos num rabo de cavalo,
o blusão de motard, a mochila ao ombro como uma extensão do
corpo:
«Ela esteve em Vigo. Mas já não está. Ou então Vigo mudou
muito no último ano.»
Jaime Ramos pedira-lhe para fechar a porta, esperando que se
sentasse. Ela ficou de pé, a mochila descera entretanto do ombro
para o braço, fletindo uma perna, encarando-o como se esperasse
uma reprimenda.
«Eu faço um relatório por escrito.»
«Neste assunto não há relatórios por escrito.»
«Eu fiz tudo.»
«Ela pode ter mesmo saído para outra cidade», Jaime Ramos
como se a consolasse por uma desilusão.
«Pode. Mas devia haver um rasto.»
Olívia sentou-se finalmente, abrindo a mochila, de onde retirou o
seu caderno vermelho:
«Hotel America, cinco noites confirmadas, estive lá. Não deu nas
vistas. Do Hotel America parti para todos cafés, cervejarias e
restaurantes das redondezas. Esplanadas. Ela esteve em duas das
esplanadas da zona velha. Bebeu cerveja numa e café noutra.
Sempre sozinha. No hotel perguntou onde eram os autocarros, esse
é o dado mais importante. E há autocarros para todo o lado, Madrid,
Corunha, Porto, Santiago, Barcelona. E aviões.»
«Porquê aviões?»
«Porque pode ter apanhado um avião. Mas não me parece. Quem
fica no Hotel America não apanha aviões, nem para o Brasil.»
«O Brasil é uma boa hipótese.»
«Tinha de ir a Madrid primeiro. Para o Brasil não há voos de
Santiago, nem de Vigo.»
Jaime Ramos pensava no assunto enquanto uma estrada
imaginária o levava até Valença e de Valença, sem ter dado conta, a
Tui, e de Tui a Vigo por uma estrada conhecida de mais para lhe
conceder surpresas. Ele era capaz de tudo na sua vida pessoal.
Cozinhava nos fins de semana, levava o lixo à rua (e, três vezes ou
quatro por ano, subia ao apartamento de Rosa para recolher o dela),
sabia fazer música com as garrafas de vinho na mesa, abria
garrafas de cerveja com o isqueiro, anotava coisas absurdas num
bloco que perdia ao longo do ano e reencontrava no bolso de umas
calças usadas e velhas, na mochila dos apetrechos da pesca ou no
meio de livros que desistira de ler. Mas agora olhava para aquela
fotografia. Havia uma fotografia, Jaime Ramos não sabia quem
eram as pessoas nem conhecia a cidade, mas um homem e uma
mulher simulavam uma dança diante do fotógrafo, ou dançavam
diante do fotógrafo, as pernas direitas erguidas como se
dançassem, e ambos riam. Só depois soube que a cidade se
chamava Sumbe, e que ficava algures em Angola. Angola era longe
de mais. E Sumbe era mais longe do que imaginava. Era onde
chegava a sua geografia.
19
PARA INVESTIGAR É PRECISO SER PACIENTE. NÃO LER JORNAIS. Não olhar
para o calendário. Resignar-se. Temer os resultados da
investigação, temer voltar a página, temer descobrir que se acertou,
ficar suspenso de uma intuição. Estranha ironia, estranho receio.
Jaime Ramos enfrenta o último dia do mês com a habitual sensação
de perda de mais um mês gasto, mas uma voz qualquer lembra o
essencial: para investigar é necessário ser paciente, esperar ser
tocado pelo deslumbre, uma luz que desce do céu e ilumina os
corredores dos arquivos, as salas noturnas onde os agentes se
reúnem para afastar a insónia e ouvir os autocarros que passam no
cruzamento das ruas mais abaixo.
Ser paciente até que um sinal se transforme no parágrafo que, por
sua vez, se transforma em toda a Sagrada Escritura do seu
trabalho. E que Isaltino de Jesus, ao fim da tarde, se sente com ar
de caso em frente da sua secretária e diga a palavra mágica, o
sinal:
«Chegámos. Chegámos lá, chefe.»
Chegámos. Mas não chegámos a esta hora, ao fim da tarde;
chegámos mais cedo, chegámos às primeiras horas da manhã
quando Jaime Ramos pendurou no cabide o seu blusão molhado da
chuva do último dia do mês de maio:
«E Olívia?»
«De baixa, chefe. Uma gripe, em casa. Pediu o dia.»
No dia anterior, à noite, Isaltino fizera o seu relatório a um Jaime
Ramos tenso e arreliado — Olívia partira para Vigo e ele seguira-a,
obediente e cauteloso. Ela conduz depressa demais, chefe, ela é
uma acelera. De Tuy a Vigo como uma flecha.»
«E em Vigo?»
«Em Vigo mais calma, chefe.»
«Ela viu-te?»
«Não.»
«Tens a certeza?»
«Como ter estado sol ontem e ir chover amanhã.»
«Isaltino, tu não sabes se vai chover amanhã.»
«Sei, chefe. É o céu, vê-se pelo céu. E pelo calor. Há de chover
daqui a nada, se não for uma trovoada.»
«Tu e a trovoada.»
«Maio é o mês das trovoadas.»
«Não vimos nenhuma.»
«Acaba amanhã o mês.»
«E Olívia?»
E Isaltino contou como Olívia estacionou a moto ao pé da Avenida
Beira Mar. Como ele achou estranho, porque não fica no centro,
mas foi aí que ela deixou a moto, levando o seu capacete
pendurado da mão direita. Como ela andou a pé como se quisesse
despistar alguém, subindo na direção dos bairros antigos, cruzando
as ruelas daquela cidade de betão e granito, entrando num pequeno
hotel, percorrendo as pracetas desarrumadas de uma cidade
estragada, já não a Vigo de há vinte anos, que cheirava a calamares
e a Ducados, até se sentar naquela esplanada do Café Don
Gregorio, voltada para a Puerta del Sol. Como esperou aí até que o
sol da manhã crescesse em luz e calor. Como Isaltino a vira pedir
uma bebida, e depois outra — uma turista tranquila.
«E que bebeu ela, Isaltino?»
«Vinho branco.»
«E tu estavas onde?»
«Num barzinho pequeno ao lado do hotel. Do Puerta del Sol.»
«E daí em diante?»
«Pois aí é que eu fiquei surpreendido. Talvez o chefe tenha razão
nas suas suspeitas e Olívia não tenha ido a Vigo fazer nada.»
«Eu não tenho suspeitas.»
«O que queira.»
«E daí em diante, Isaltino?»
«Desceu para o porto, chefe. Tal como chegara até ali. Perdi-a
durante cinco minutos e esperei-a perto da moto, mas dentro do
meu carro. Fácil. Foi à estação, aos comboios, pediu informações.
Daí seguiu para o hospital e daí para a polícia, Guardia Civil.
Repetiu o percurso, portanto. Isto segundo o que o chefe me disse.
E às três da tarde voltou para a estrada.»
E Isaltino abriu o caderno e conferiu, folheando, fixando uma
página, folheando outra vez, voltando a olhar Jaime Ramos de
frente:
«Três e vinte, chefe, para sermos mais precisos. Às três e vinte
estava nos semáforos à saída de Vigo. Nessa altura sabia que não
ia para outro lado senão para aqui, para o Porto. Mas não veio pela
autopista. Em vez de ir apanhar a autoestrada virou à direita e
seguiu para Bayona e de Bayona desceu sempre pela estrada que
vem para La Guardia. Parou um bocadinho depois de Oia, eu passei
por ela e esperei mais à frente, antes de La Guardia.»
«Porque é que os galegos dizem A Guarda e tu dizes La
Guardia?»
«Não sei falar galego, chefe. E sempre é Espanha, se me faço
entender.»
«Veio para aqui a seguir?»
«Para casa. Segui-a até casa, e vi que arrumou a moto na
garagem do costume. Entrou em casa e vim-me embora. Está com
gripe.»
Depois, com efeito, choveu ao longo de quase toda a noite, e
Jaime Ramos ficou sentado na cama, um livro sobre os joelhos,
como se tivesse esperado pela chuva para confirmar a intuição de
Isaltino, o meteorólogo de Valongo. Adormeceu a custo e acordou
cedo de mais, pelas quatro e meia, cheio de fome, o mesmo livro
aberto na mesma página, os óculos caídos no chão, ao lado da
cama. Depois de ligar o rádio, em boxers e T-shirt, descalço, abriu
as portas da varanda para ouvir melhor a chuva a cair nas lajes de
tijoleira do pátio e escoar-se junto dos canteiros, como um regato.
Ficou ali por instantes mas a fome arredou-o para a cozinha, onde
começou por preparar café numa cafeteira italiana até chegarem as
notícias das cinco, chove em todo o país, várias corporações de
bombeiros foram esta noite chamadas para acorrer a situações de
alguma gravidade, uma casa ruiu, uma árvore caiu sobre a rua, um
ministro irá esta manhã ao parlamento, um incêndio em Buenos
Aires, chove em todo o país. Jaime Ramos gostaria de saber dançar
— convidaria Rosa para uma viagem até Buenos Aires, como
acontece a alguém da sua idade sonhar pelo menos uma vez na
vida. Tinha de passar a pedir mais café colombiano. Tinha de passar
a comer cereais sem açúcar. Tinha de passar a ser outra pessoa
qualquer. Entretanto, retirou dois ovos do frigorífico (os solitários
guardam os ovos no frigorífico) e bateu-os numa tigela até que a
sua consistência o comoveu. Uma pitada de sal, ligeira. Que
descansem. Com a frigideira ao lume, Jaime Ramos corta fatias
muito finas de cebola, meia cebola basta. Um fio de azeite, um fino
fio de azeite apenas para que a cebola deslize sobre a superfície
quente da frigideira. Uma pequena nuvem de colorau, e uma colher
de pau para mexer a cebola e amaciá-la devagar. Quatro, cinco,
seis rodelas de chouriço que caem sobre a cebola e rapidamente
são absorvidas. Entretanto, colhe alguns ramos de salsa nos vasos
da varanda e pica-os na tábua, juntando-os à cebola. Mexe uma vez
e outra. Mexe de novo e, antes que a cebola comece a dourar, junta
tudo na tigela onde os ovos aguardam. As batatas cozidas da
véspera (sobras que guardara, porque tudo se guarda na cozinha)
são agora cortadas em fatias finas e depois conduzidas à frigideira
para que salteiem e algumas fiquem estaladiças. O café pede-lhe
atenção, e Jaime Ramos serve-se de uma chávena grande a que
junta açúcar. Rosa bebe café sem açúcar, mas Rosa está a dormir
no andar de cima — e ele concluiu, entretanto, que em nenhum país
produtor de café se bebe café sem açúcar, e que o mundo sofreria
bastante se se deixasse de consumir café sem açúcar. Bebe um
pouco. Sacia o seu apetite de café, o sabor reconcilia-o com o
aroma igualmente doce da cebola e, agora, das batatas que vão
ficando estaladiças de um dos lados. Saltear as batatas em pouca
gordura, sujeitá-las ao calor sem fritá-las, absorvendo o resto do
azeite. Dois comprimidos matinais em jejum. Mais um, a seguir, com
o pequeno-almoço. Pão torrado. Voltear a mistura de ovos, cebola,
salsa, rodelas de chouriço (garantiram-lhe na mercearia que vinha
de Vinhais), vertê-la sobre as batatas, ajeitá-la com o garfo, deixar
que o calor seque os ovos, agitar a frigideira para que não seja
necessário virar a tortilha, ver como o aroma se transforma em
perfume e pede apoio a um apetite ingénuo e matinal. Servir tudo
num prato que espera na mesa da sala, ao lado do café e do pão
torrado, diante das portas abertas para a pequena varanda onde
caem algumas gotas de água da chuva. 5h10, ouve na rádio. Onde
estará Olívia a esta hora? Onde estará Béni? Onde estará Irina? A
primeira garfada comove-o. Rosa não aprovaria as batatas — mas
Rosa está a dormir no andar de cima, e ele estudou, investigou, e
sabe que as batatas elevam o nível de serotonina, o que explica que
as pessoas magras tenham mau humor. Assim, vai construindo
teorias à medida que o pequeno-almoço o desperta e a melancolia
se mistura com o som da chuva, até serem uma e a mesma coisa.
29
NAQUELE FIM DE ANO, O CONVITE VEIO COMO ELE CONTAVA — mas, em vez
do comboio, foi de carro, atravessando o Alentejo ao crepúsculo,
ouvindo música e trauteando canções antigas que os seus pais
teriam ouvido numa viagem como aquela, rasando a planície
enquanto escurecia. O que Miguel dos Santos Póvoa recordaria não
teve nada a ver com o final do ano, nada a ver com Teresa (uma
amante fácil, uma história cómoda) — só um clarão, uma espécie de
contemplação dos dias que chegavam. Na manhã de dia 31 de
dezembro saiu de casa muito cedo, como costumava fazer para
evitar os pequenos-almoços em grupo, mas, especialmente, para
evitar Teresa — a pele de Teresa debaixo do roupão de turco
amarelo — a barrar torradas com manteiga, distribuindo-as pelos
dois miúdos que jogavam playstation, enquanto o marido, sentado
ao balcão da cozinha a beber café, despenteado, consultava o
telemóvel para reclamar um e-mail que não chegava. Caminhou
junto da marina, até descobrir uma esplanada para se sentar. Pediu
um café, uma água. Veio o sol, entretanto — Jaime Ramos haveria
de reconstituir esta cena depois de várias tentativas, ouvindo a
imaginária descrição de Miguel dos Santos Póvoa, sentado à mesa
do que chamavam «sala de interrogatórios» (um gabinete sem
escutas nem material para gravação onde tomavam notas de
declarações para inquérito). Depois disso, Jaime Ramos tomou
outras providências, fez pedidos extraordinários (horários de voos,
registos em hotéis, alugueres de carros, escutas impossíveis), mas
nunca conseguiu aquela nitidez que reservava para momentos fatais
numa investigação, «o momento em que tudo se interrompe para o
senhor inspetor poder voltar atrás», como Isaltino de Jesus gostava
de dizer.
«O que aconteceu então?»
«Alguém pousou um jornal em cima da mesa.»
«Que jornal?»
«Isso tem importância?»
«Não. Mas eu gostava de saber.»
«Um jornal inglês. O Guardian, acho, um jornal inglês.»
«E que mais aconteceu?»
«Ele pediu para falar comigo. O homem.»
«Você deixou que ele falasse consigo.»
«Claro», Miguel espantado. «Ele sentou-se e falou.»
«Que idade tinha? Como era ele? Falava português?»
«Claro que falava português, claro que falava.»
«Tinha um jornal inglês na mão.»
«Já lá vamos.»
«Vamos, sim. E quanto ao homem?»
«Era angolano, vim a saber depois. Era negro. Quer dizer, meio
mulato. Vestia bem e falava bem.»
«E o jornal, porquê o jornal?»
«Lá dentro estavam fotografias. Eram fotografias de mim e da
Teresa.»
«Ah», fez Jaime Ramos. «Pela boca morre o peixe.»
«Como?»
«Tantas vezes vai à fonte.»
«Não percebo.»
«Alguma vez teria de acontecer. Numa semana fizemos o
levantamento dos seus estragos conjugais, sabemos do que
falamos. A culpa não é nossa.»
«Isto é uma questão moral?»
«Não, nunca é. Nem é um problema. E, se fosse um problema,
era de saúde pública, se me faço entender. Eu não tenho moral nem
para mim. As fotos comprometiam-no assim tanto?»
«Eram fotos com a Teresa. Fotos num hotel, no quarto de um
hotel.»
«Só isso?»
«Não. Havia fotos em várias situações, em alturas muito
diferentes, em lugares diferentes. Quem tirou aquelas fotos vigiou-
me ao longo de vários meses, e é isso que eu não entendo.»
«Tem essas fotos consigo?»
«Posso ir buscá-las.»
«Nós vamos buscá-las onde for preciso, não se incomode. A sua
amiga recebeu uma cópia dessas fotos?»
«Não, até agora não, e já passaram cinco meses. Mas há uma
coisa que me surpreende.»
«Com a idade isso passa. Qual é a surpresa?»
Miguel dos Santos Póvoa tinha o estranho costume de baixar os
olhos a meio de uma conversa e de voltar lentamente ao mesmo
ponto sem alterar o tom de voz:
«Porquê fotos em papel, e não por e-mail?»
«Há gente que trabalha à antiga, sem deixar rasto. Gente de
antigamente, engenheiro. E há outra coisa: eles precisavam de ver a
sua reação, de vê-lo de frente, de perceber até que ponto o
incomodavam essas fotos. Incomodaram?»
«Na altura, não. Pareceu uma brincadeira. Julguei que era um
daqueles detetives privados que trabalham em casos de adultério,
podia ter sido contratado pelo marido da Teresa.»
«Havia essa possibilidade. Mas acha que ele esperava pelo fim
do ano, pelo último dia do ano, por uma viagem ao Algarve?»
«Também achei estranho, mas podia ser. Os meus amigos são
muito estranhos», Miguel olhando a parede onde, ao longo dos
anos, tinham sido colados cartazes, avisos de intendência, anúncios
sobre animais abandonados e casas de férias para alugar.
«Mas há gente mais estranha, não há? A sua surpresa não foi
essa, pois não? Que as fotos tivessem chegado em papel ou pela
internet, isso não foi a surpresa, pois não? O que é que o
surpreendeu de verdade?»
Fez uma pausa. Teria de fazer uma pausa, pensou Jaime Ramos.
«Uma das fotos não era com Teresa. Era com Paula. Estava
assinalada por um Post-it amarelo, e o que me surpreendeu nem foi
isso, ser uma foto com Paula, porque eles andavam a vigiar-me, não
é verdade? Eles andavam atrás de mim. Devem ter fotos minhas
com outras pessoas, devem ter. O que me surpreendeu é que essa
foto com Paula não foi feita em Lisboa, nem no Algarve, nem no
Porto. Ou em Lisboa. Ou em Luanda, o que seria natural.»
Nova pausa, mais prolongada, mas Jaime Ramos não estava em
condições de dar tiros no escuro.
«Na Nova Zelândia?», limitou-se a sorrir.
«São Tomé.»
«Fale-me dessa Paula, engenheiro. Acho que vamos demorar
ainda um pouco.»
37
NÃO LHE TOQUES. Foi como se Luís Ferreira, aliás Luís Ferreira
Vasconcelos, lhe dissesse, enquanto acendia um cigarro, um dos
seus, enrolado há pouco e largando aquele perfume agridoce pela
varanda:
«Não lhe toques.»
Miguel dos Santos Póvoa não lhe tocou, Luís Ferreira não dissera
nada. Olhara para ele e, depois, fez um gesto para a janela como se
o convidasse a observar o tom do crepúsculo, o bosque de pinheiros
que descia para as dunas, os penhascos quase diluídos entre a
neblina da tarde, do outro lado da foz do Minho — vês como é bela
a vida? Bela, interessante, cómoda, com paisagens que raramente
se repetem, aquela luz incandescente do sol que já desapareceu.
Na vida real isto não existe, há pessoas com emprego razoável,
como engenheiros fixados em plataformas de petróleo, gabinetes e
laboratórios onde analisam dados, recebem ordens e telefonemas,
cumprem tarefas e destinos; ou são modestos professores de liceu,
ou distribuem correio pelas ruas de uma vila mesmo que sejam
engenheiros, ou veem na internet as coisas que gostariam de ter e
de viver. Está tudo aqui, neste crepúsculo. Não lhe toques.
Carmo sentara-se ao seu lado durante todo o jantar e Miguel não
lhe tocou embora tivesse sido fácil, tão fácil, um pequeno desvio
bastava, braço contra braço, a pele morena de Carmo apetecendo,
o cabelo loiro recolhido num rabo de cavalo, uma leve penugem
alaranjada pelo sol, a pulseira de ouro, os dois anéis, um no anelar,
outro no polegar, duas rodelas de metal baço e liso, os dedos
curtos, finos — não os dedos de uma mulher que tivesse vivido para
cuidar das mãos, mas os dedos de uma mulher que mergulhava no
mar de Moledo antes das onze da manhã e deixava que o sal se
acumulasse em camadas sobre a pele, secando, deixando ilhas
esbranquiçadas nascer ao longo do corpo como o sinal de alguém
que não prescinde do mar. Havia, portanto, os dedos de Carmo.
Miguel dos Santos Póvoa imaginou os dedos de Carmo segurando o
seu pénis, massajando-o, deslizando, procurando um ponto de
equilíbrio onde não existiria nem equilíbrio nem ponto de apoio. As
unhas, cortadas rentes. Os braços, moldados por sessões de
natação entre as ondas frias do mar do Minho, uma ruga mais
pronunciada no pulso — e o vestido, curto, que subia ligeiramente
até meio da coxa, morena, sólida, de nadadora, onde ele vira uma
tatuagem, uma espiral azul. Ele vira-a nessa manhã, atravessando o
areal, solitária, uma mochila ao ombro; sentou-se junto das dunas e
ficou ali um quarto de hora, olhando para a muralha quase desfeita
da Ínsua; depois, de repente, levantando-se, despiu a T-shirt e
correu até à beira do mar, desviou-se para a direita a fim de
acompanhar os riscos de espuma ao longo da praia, entrando cada
vez mais na água, até mergulhar no mar, rompendo uma das ondas,
rompendo outra, mergulhando, descendo até ao fundo, deixando
atrás de si um rasto. Voltou à superfície daí a pouco mas, nessa
altura, ele estava já sentado na esplanada do café diante do parque
de estacionamento — e viu-a apenas saindo da água, caminhando
pela areia, regressando às dunas, deitando-se sobre a areia. Um dia
normal na vida de uma banhista.
Miguel gostava do cheiro da praia. Vivera meses no meio do mar,
em plataformas que sondavam o interior da terra, lá em baixo,
procurando petróleo, tubos subindo e descendo, na Noruega e em
África, ao largo do Senegal ou do Gabão, ao largo de São Tomé ou
de Maracaibo, na Venezuela — mas o cheiro da praia era diferente.
Não tinha ruídos de sondas entrando na carapaça dos navios; não
tinha placas de ferro sujas por onde caminhavam homens em fato-
macaco, à popa, de rosto escuro e manchado de óleo; não tinha um
mar inóspito a cercar uma ilha de aço e gruas desenhadas no céu
onde um helicóptero baixava duas vezes por semana; não se
deitava na praia como lhe acontecera numa das plataformas, um
antebraço partido, isolado no seu camarote de dois metros por dois
metros, com um leitor de CD que repetia, até à exaustão, rock e
blues, Bob Dylan e AC/DC, Green Day e J. J. Cale, Midnight Oil
(uma recordação que não era sua, mas que lhe lembrava a
adolescência que não teve) ou The Strokes. Gostava do cheiro do
bronzeador da infância, creme Nivea, loção Nivea, óleo Nivea,
balões Nivea gigantescos a meio do areal. Esse era o cheiro de
Carmo quando saiu da praia e, como se soubesse desde há muito
tempo onde ele estava sentado, se lhe juntou à mesa da esplanada.
«Um engenheiro diante do mar.»
Foi isso que ela disse, exatamente isso, um engenheiro diante do
mar. Que faz um engenheiro diante do mar? Observa o mecanismo
das ondas, a perfuração nos rochedos, a erosão das dunas, o voo
das andorinhas do mar (e de dois corvos marinhos, um pato
ferrugíneo raríssimo em voo rasante, tinha-os visto em Malta,
refugiados nos rochedos, coloridos e perdidos em enseadas
inacessíveis), as mulheres que se sentam nesta mesma esplanada,
os pinhais do outro lado da foz do Minho, em Espanha, subindo até
ao topo de Santa Tecla.
Mas ele não era verdadeiramente um engenheiro diante do mar;
era um viajante em férias, acabado de regressar de Luanda e, antes
disso, acabado de regressar de outra cidade onde se esquecera da
escova de dentes, de um livro barato comprado numa livraria de
aeroporto e de um cabo USB para ligar ao computador.
«Não lhe toques», parecia ter ouvido dizer a Luís. Não precisava.
Ele suspeitava que Carmo, que não era uma mulher
excecionalmente bonita, não estava interessado em que ele lhe
tocasse — pelo que sabia, ela interessava-se por outras mulheres,
sobretudo por uma em especial, a bióloga que ia e vinha, que
aparecia de vez em quando e que mal lhe falava, como se quisesse
disfarçar que as duas dormiam juntas. Ah, Miguel dos Santos
Póvoa, o engenheiro diante do mar, imaginava Carmo deitada sobre
a cama, esperando a amiga. Mas, mais do que isso, imaginava o
seu braço coberto de uma luz brilhante, durante o jantar, o braço
muito perto do seu, de repente tocando-se, roçando incidentalmente
enquanto bebia um pouco daquele vinho, ela sorria e ele imaginava-
a deitada ao lado da bióloga, ambas nuas, mas sobretudo não
totalmente nuas, escutando os ruídos da noite, emprestando os
dedos de uma à outra enquanto os cães ladravam ao longe, ao
fundo da quinta, perto dos lagares abandonados e do relvado onde
ele passeara com Luís, antes de Luís lhe dizer, concluindo uma
negociação que fora tão fácil e tão oportuna para a sua vida: «A
partir de agora fazes parte de uma família.»
«Um engenheiro diante do mar», voltou ela, enquanto pedia um
ginger ale. Helena, a bióloga, exatamente assim, Helena. E então,
naquele jantar de ontem, vira a irmã mais nova, Béni, sentada do
outro lado da mesa, comendo o resto de uma sobremesa, olhando
os dois como se os fotografasse para um arquivo de coincidências,
que deviam acontecer com alguma frequência naqueles jantares de
família em que todos se tratavam por tu, novos e velhos — à
exceção da avó, quando ela vinha de Ponte de Lima e se lhes
juntava à mesa, aprovando a carne ou o peixe, lembrando ementas
de outros jantares, sobremesas cuja receita nunca fora alterada nos
últimos dois séculos, histórias de família sugeridas por empréstimo
da própria conversa, que se aligeirava à medida que a noite
avançava e o crepúsculo se tinha já despedido há muito.
«Gostava mais de ser biólogo», disse ele. «Ou ornitólogo.»
«E andavas a saltar de rochedo em rochedo, com binóculos,
vestido de caqui.»
«Não de caqui.»
«Isso é o menos», Carmo misturando o gelo e o limão do ginger
ale. «E porquê Biologia?»
«Acho que ia gostar.»
«Eu gosto de Biologia. Biologia marinha, o fundo do mar, as algas.
A costa está cheia de sargaço desde que vínhamos para a praia em
miúdos. Apanhávamos as algas e servíamo-nos delas como uma
cabeleira, depois ficava tudo agarrado à pele. Tu gostas de coisas
agarradas à pele?»
«Gosto de biólogas.»
Ela voltou o rosto e olhou-o sem sorrir. Olhos. Lábios. Uma
penugem protegendo o risco do lábio superior, ou abaixo da orelha
esquerda, o sal que tinha sido reduzido a uma poeira.
«Eu também. É esse o meu problema. Gosto de biólogas que
investigam o fundo do mar. São coisas puras que quase
desapareceram. Não tem nada a ver com os hábitos sexuais dos
pássaros, com os negócios de família, com política, com histórias de
engenharia. Sabes pouco disso, senhor engenheiro, e não acho que
vás aprender muito mais.»
«Mesmo assim, gosto de biólogas.»
«É uma pena. Podias gostar de herdeiras que nunca vão ser
ricas, de donas de lojas de perfumes ou de professoras de música.
Há muitas profissões atraentes para um engenheiro que vai e vem
de todo o lado.»
40
A ÚLTIMA VEZ QUE BÉNI FOI VISTA, DEPOIS DAQUELE DOMINGO DE MANHÃ, BEM
CEDO, em que tomou o autocarro em Valença com destino a Vigo: ao
meio-dia de quinta-feira pagou a conta do Hotel America com
dinheiro, sem usar qualquer cartão. Aos vinte e dois anos, uma
mulher conhece o ofício do seu pai: não deixar rasto. O advogado
Ferreira Vasconcelos conhecia os truques a usar. Tinha aprendido
parte deles no exército, durante uma instrução deficiente para
operações de guerrilha à distância, ou seja, contrainformação.
Pobres espiões lusitanos espalhados em gabinetes descoloridos
onde oficiais superiores coligiam recortes de jornais e mandavam
datilografar relatórios que toda a gente conhecia, generais do
regime, operacionais no terreno e furriéis tenentes que não
conheciam a pólvora senão de ouvir ao longe o estampido das
armas de treino.
O regime caiu-lhe nas mãos, de certa maneira. Jaime Ramos não
gostava desse trabalho de arquivista mas sabia que tinha de
avançar aos poucos, documento a documento, memória a memória,
relatório a relatório, fechado num gabinete onde só podia fumar às
escondidas e onde o sorriso de Teófilo Cubillas desaparecia naquele
poster de O Norte Desportivo. Um casarão sobre a foz do Neiva
onde, no final do verão de 1975, dois tios velhos e dois advogados
vestidos para um velório de família lhe passam a responsabilidade
de dirigir o escritório. Não teve de apresentar contas nem de dizer
ao que vinha: tinha de ir buscar clientes, de inspirar confiança e de
salvar o país. Todas essas coisas estavam ligadas, mas o país não
o interessava. O país que lhe interessava estava no Brasil e em
Espanha, exilado ou foragido, com úlceras, procurando empregos,
chorando grandes quantias de dinheiro perdido, propriedades,
títulos que valiam quase nada, herdades alentejanas, fábricas
desativadas, papéis a que era preciso emprestar dignidade. Depois,
em Viana, encontrou-se com dois coronéis do novo regime a quem
prometeu apoio para a contrarrevolução, em troca de olhos
fechados e de garantias para os seus clientes, quase todos avós de
adolescentes que nasceram depois da revolução. O encontro,
noturno, dá-se num passeio junto da foz do Lima, escondidos entre
as dunas, os carros estacionados ao longe. Grande atração sente
esta gente pela foz dos rios. A foz do Minho reclama-o também: há
doze anos, Luís Ferreira Vasconcelos encontra-se em La Guardia
com um general que daí a pouco entraria na idade de reforma;
almoçam na varanda de um restaurante voltado para o mar, mas já
não falam de exilados, de títulos de propriedade a recuperar, de
dignidade das famílias — em vez disso, negócios vivos, viagens-
relâmpago a Angola, de onde vem dinheiro, cada vez mais dinheiro.
«Várias medalhas, chefe, e todas em combate.»
O regime caiu-lhe nas mãos. Não o regime propriamente, mas um
bando de famílias que tinham sido ricas e que tinham perdido tudo
— menos o nome. Em Portugal, senhor inspetor, diz o homem
sentado à sua frente, o nome das famílias é um alicerce profundo
que suporta todos os terramotos e todas as revoluções, desde 1834
que as famílias são as mesmas.
«E a do seu amigo?»
«A do Henrique? É uma família sem história. Ele foi meu amigo
durante muito tempo, e fizemos muitos negócios.»
Ramiro tinha-lhe recomendado uma conversa com este homem.
Um homem demasiado rico e demasiado velho, mas que não tinha
perdido a memória: «É a única forma de transformares tudo isso
numa história com algum sentido», Ramiro por telefone. «A mim não
me deve nenhum favor especial. Trato-lhe de coisas de família,
como o divórcio dos filhos, vendas de propriedades, e ouço-o
durante uma ou duas horas de cada vez. É o meu Acúrsio das
Neves. Sabes quem é Acúrsio das Neves?»
«Não.»
«O único homem que conseguiu, ao mesmo tempo, manter o
juízo e defender o príncipe Dom Miguel. Se tivesses nascido em
Vidago sabias isto. Naqueles pinhais ainda há milicianos miguelistas
que não mudaram de general. Tem quase noventa anos.»
Ele aguardava-o (Isaltino tinha ficado no carro) ao cimo de umas
escadas de onde se viam árvores a perder de vista e uma aldeia lá
ao fundo, numa língua de areia limpa, uma espécie de baía
preparada para permanecer incógnita durante o verão que se
aproximava, assinalada pelo farol de Montedor recortado sobre os
rochedos, à direita. Encostado à balaustrada, apontou para o farol
com a bengala:
«Conhecia este lugar? De certeza que não. Ninguém conhece.
Um dia, noutra vida qualquer, vou ser geógrafo. Para ensinar aos
meus netos todos os caminhos do litoral. Começar no Lima e subir
pela costa, Espanha dentro. Não há outro lugar assim.»
Jaime Ramos não ficou impressionado por aquele rosto sem
rugas, sem óculos, sem tremores — a que apenas o cabelo quase
totalmente branco assinalava a idade. E a voz, a voz, talvez ele não
esquecesse, nunca mais, a voz de um barítono que treina as cordas
vocais todos os dias apesar das recomendações de um médico
cauteloso. Seguiram pela varanda fora, entre plantas bem tratadas,
até uma mesa onde o tabuleiro do chá acabara de ser pousado por
uma mulher de meia-idade que os olhara e se afastara rapidamente,
entrando em casa por uma porta que se fechou atrás de si.
«Gosto de quem chega a horas», ele sentando-se, encostando a
bengala a uma das quatro cadeiras em redor da mesa. «Sente-se,
sente-se. Gosto de quem chega a horas. É um luxo a que poucas
pessoas se podem dar, mas tomo sempre nota. À medida que os
anos passam recordo as pessoas que chegaram a horas. É com
essas que conto. Toma chá? Não o faço por prazer. Faz parte das
minhas obrigações. Chá. Há trinta e cinco anos que tomo chá a esta
hora, é uma obrigação como qualquer outra. Durante dez minutos,
na varanda ou lá dentro, tudo para. Só eu e uma chávena. E quem
me acompanha.»
Sendo assim, pensou Jaime Ramos, apresentando a sua chávena
diante do bule. Sem tremer, o outro serviu o chá para os dois, e ele
seguiu os movimentos da sua mão, os seus gestos sem falha.
Depois acompanhou-o no chá, de facto, enquanto o ouvia falar
sobre o farol de Montedor, uma capela abandonada, um sino que
tocava de vez em quando, uma estrada que seguia pela montanha
dentro, um pinhal que tinha desaparecido, uma duna desfeita, Jaime
Ramos perseguindo a conversa, acenando, concordando — até
que, sempre sentados, regressaram à varanda depois desse
primeiro monólogo.
«O seu amigo, o doutor Ramiro, nunca toma chá. Inventou uma
solução: queixa-se de problemas de tensão e eu dispenso-o do chá.
Mas o senhor faz cerimónia, e eu tomo nota. Tomo nota de tudo. É
por isso que não perdi a memória. Tomo nota de tudo. Aqui»,
levando a mão à testa, ao parietal direito. Depois sorriu, mostrando
dentes brancos, alinhados, perfeitos, surpreendentes: «O que quer
saber de Henrique Ferreira Vasconcelos?»
Jaime Ramos podia querer saber quem era aquela família, e
perguntaria «quem é aquela família?», e tinha a certeza de que o
velho começaria a falar pela tarde fora, ou «que negócios faz aquela
família?», e devia preparar-se para tomar notas ou para fechar os
olhos e ouvir. Por isso limitou-se a explicar, de outra maneira, que
estava parado na sua investigação:
«É amigo dele?»
«Fui amigo dele enquanto ele vivia. Não morreu, é certo, mas é
como se tivesse partido. A traição dos amigos é mais dolorosa do
que a infidelidade conjugal. Esta é apenas um jogo imbecil, uma
passagem. Os amigos são o que nos resta, inspetor.»
«Imagino.»
«Nunca pensou nisso?»
«Tenho poucos amigos.»
«É um homem prudente. Um cético.»
«O suficiente. Sigo a receita médica.»
«Porque quer saber coisas desse homem?»
«Preciso. Ossos do ofício. Disseram-me que tinham sido amigos.»
«Fomos, inspetor, fomos. Há muito tempo que o não vejo e, se o
visse, creio que não podia falar com ele. Alzheimer, segundo creio.
Há de morrer em breve. É um vegetal, segundo me disseram.
Esteve com ele?»
«De passagem», mentiu. E ficou em silêncio, como se procurasse
um sinal nas frases do outro. Estava habituado a esse combate:
escutar. Investigar é escutar sem parar, sem fim à vista. Mas o
homem que estava à sua frente olhou-o apenas com curiosidade e
igual silêncio e Jaime Ramos percebeu que perderia o confronto:
«Ele traiu-o como advogado?»
«Oh, não, não, não como advogado. Era um advogado muito
competente e um homem de negócios muito leal. Foi muito útil para
esta família. A traição é só um choque, um choque inicial. Depois, é
uma confirmação: a de que o género humano não tem limites.
Quando deixou de ser útil como advogado, passou a ser útil como
amigo. Porque precisamos de amigos, de aliados, de gente que nos
acompanhe no chá. A mulher dele morreu e ficou sozinho com três
filhos que não eram os filhos dos seus sonhos, nem dos seus
pesadelos — eram-lhe completamente indiferentes. Tem filhos,
inspetor?»
«Não», o diretor tinha-lhe feito a mesma pergunta.
«Bem vejo. Não sei se pode compreender. Mas eu explico-lhe
rapidamente. Nesses anos, depois da revolução, ele sacrificou tudo
porque tinha perdido tudo. Tinha perdido a família, tinha perdido a
casa, tinha perdido a mulher. A família, porque teve de abandonar
Luanda, deixando para trás a casa onde viveu e os filhos deram os
primeiros passos. A mulher nunca se habituou a isto. Era uma
senhora de romance do século passado, muito nervosa, muito
doente, e pouco habituada a trabalhar. Pelo contrário, ele trabalhava
como um doido, tinha ficado com o escritório dos tios, precisava de
dinheiro para viver como em Angola, não ligava aos filhos, não
ficava ao sábado em casa. Nessa altura, as quotas de um escritório
de advogados valiam pouco, mas o seu trabalho valia muito e ele
tinha uma maneira muito especial de resolver as coisas, de
trabalhar, de manter os clientes, de trazer dinheiro para casa. Era
advogado de gente desesperada, teve sorte. Para gente
desesperada, qualquer pequena vitória era celebrada como uma
vitória sobre o mundo todo. E reconstruiu pequenos impérios,
inspetor, porque, naqueles tempos da revolução, ele era um militar
que se tinha transformado em advogado. Conhecia os militares,
tinham bebido juntos em Angola, faziam-lhe favores, deviam-lhe
favores, nunca precisou de se esconder. Não teve de esperar que a
Direita chegasse ao poder, se me faço entender. Eu faço parte de
um mundo que nessa altura já tinha terminado, e portanto não tinha
grandes ilusões. Não tinha interesses em África, não tinha empresas
ocupadas, nem dinheiro nos bancos. Não tinha nada, exceto
economias em Espanha, a salvo. Um pouco na Suíça. Um mês
depois da revolução, o nosso dinheiro, que não era uma fortuna,
estava fora daqui. Nós fomos sempre traidores, como a História há
de dizer. Também nunca precisámos que a Direita regressasse ao
poder e reerguesse os bancos, as empresas de construção ou de
navegação, ganhasse dinheiro com estradas, tomasse conta do
dinheiro, mandasse na política. Somos traidores há muito tempo,
ninguém dá por nós, nunca precisámos da política. Eu olho para o
farol de Montedor, e o que vejo? Está ali há cem anos, inspetor, e o
que vejo? O farol de Montedor. Não precisámos de o construir. Mas
quando essa gente voltou do exílio, e tomou conta dos bancos, das
empresas e da política, só podia destruir o país, porque o país não
produzia nada, o país era um descampado preparado para a guerra
da construção. Era o único valor, a construção. Essa gente que tinha
enriquecido com o regime, com o Salazar e com o regime, tirando
meia dúzia de industriais, era gente que nos devia envergonhar.
Quando voltaram do Brasil, e de Espanha, e de Angola ou
Moçambique, trataram do seu milagre económico. Nos anos oitenta,
o país teve o seu milagre económico: especulação imobiliária e
construção, tudo financiado a rodos. Proprietários, construtores e
banqueiros — foi isto a alma do milagre económico dos anos oitenta
e dos anos noventa. Até não haver mais terrenos, até faltarem o
dinheiro para a construção e as pessoas para ocupar essa
especulação toda. E foi o fim. Exceto para nós, que nunca
dependemos dos bancos nem da construção. Temos vinhas por
gosto, e os meus netos dedicam-se a gerir dois hotéis pequenos,
perto de Caminha. Num país que cozinha bem para os turistas, é a
única atividade útil hoje em dia. Fazemos vinho, como há duzentos
anos. Temos de quase tudo na família. Professores na universidade,
onde ensinam História e Arqueologia. Um arquiteto que vive no
Brasil. Um embaixador em idade de reforma que vem de África
daqui a dois meses. E eu. Lucrámos com a venda de terrenos, mas
não guardámos quase nada para nós. Confiámos na argúcia do
género humano e na sua enorme capacidade para repetir erros. Os
bancos não nos desiludiram muito, perguntam-me todos os anos se
quero abrir contas, e eu respondo que não, porque o dinheiro é
quase sempre o mesmo. Aliás, é quase sempre o mesmo desde há
duzentos ou trezentos anos, embora tivéssemos ganho alguma
coisa com a democracia. Eu continuo a olhar o farol de Montedor,
inspetor. E o que vejo? O que via há quarenta anos, há exatamente
quarenta anos: hortas, descampados, um areal comido pelo mar,
mais hortas ali ao fundo. E o farol, evidentemente. Um bisavô meu
desenhou uma parte do farol, aliás. Mas é para lá que continuo a
olhar.»
«E o seu amigo, também teve de esperar que a Direita
regressasse?»
«Não, não. Ele aprendeu depressa. Conheceu as vísceras do
regime, os segredos, o dinheiro dos outros. E teve juízo. Ganhou o
dinheiro que havia a ganhar e não quis entrar no carrossel, limitou-
se a encaminhar as pessoas que queriam andar no carrossel. Não
deixou rasto. Um dia disse-me que tinha sido da contrainformação
militar, em Angola, e que a sua especialidade era não deixar rasto.
Nunca deixou rasto. Foi por isso que trabalhou para mim, que fez
serviços muito importantes para esta família. Não foram operações
financeiras, propriamente ditas, mas tratar dos papéis com eficiência
e discrição. Até que tudo começou a ruir. Os filhos. A morte da
mulher. O filho, sobretudo.»
«O filho?»
«O filho não aprendeu essa lição. Nasceu no meio do turbilhão,
está entre dois mundos: o da família e o da finança. Ganha dinheiro
depressa, aqui, ali, não sei em que se ganha dinheiro hoje em dia.
Isso faz algum barulho. O mundo ultrapassa-me, inspetor. O senhor
devia saber em que subterrâneos se perde o dinheiro hoje em dia,
porque ele anda por aí, mas algum se perde. O filho, Luís, trata
desse dinheiro que se perde. Não lhe gabo a sorte, a si.»
«E como recolhe ele esse dinheiro?»
«Ah, inspetor, isso é um mistério que lhe deixo por resolver. Não
posso poupar trabalho à polícia. Pago os meus impostos para que a
polícia mantenha um mínimo de decência no país e para que tenha
algum prazer em descobrir como se organiza o crime económico
nas nossas províncias.»
Dinheiro que se perde sem deixar rasto. Béni parte para Vigo e
deixa um rasto em Valença. A luz branca do farol de Montedor deixa
um rasto no primeiro céu de junho, alaranjado e limpo.
41
«NÃO VOLTO PARA CASA», DISSE A RAPARIGA PARA JAIME RAMOS, Olívia
sentada numa cadeira que arrastou até junto do sofá. Sobre a mesa
estavam os restos do jantar do dia anterior e, ao contrário do que
seria normal, Jaime Ramos não mostrou qualquer curiosidade em
relação aos hábitos gastronómicos de Benedita Ferreira
Vasconcelos. Limitou-se a encolher os ombros, como se a ideia de
regressar a uma casa, qualquer que ela fosse, lhe parecesse
absurda.
Mas ela repetiu:
«Não volto para casa.»
«Faça como entender. Não estou aqui por si. Estou aqui pelo
dono desta casa.»
«Miguel?»
«Miguel. Onde está ele?»
«Fora do país. Está quase sempre fora do país, e emprestou-me
a casa. O meu irmão não sabe, ninguém sabe, o meu pai não
sabe.»
«Onde é que é esse lugar fora do país?»
«Angola, muitas vezes. Brasil. Nunca se sabe. Vai em trabalho.»
«E quando volta?»
«Tanto pode ser hoje como na próxima semana», Béni
mordiscando o punho da camisola, os olhos desviando-se de Olívia
para o polícia que acabara de acender uma cigarrilha. «Volta hoje,
mandou uma mensagem a dizer que volta hoje.»
Jaime Ramos conferiu todos os retratos que tinha desenhado ao
longo dos últimos dias: o cabelo escuro de Béni, a tatuagem no
tornozelo que tinha visto numa fotografia, a pulseira de tecido, até a
voz daquela rapariga sentada sobre uma das pernas. Pelo canto do
olho observou Olívia, as mãos pousadas sobre os joelhos, inclinada
para a frente, como se não pertencesse a esta conversa, limitando-
se a oferecer o seu silêncio numa espécie de sacrifício e de
autopunição. Levantou-se sem olhar de frente para ela e, as mãos
atrás das costas, segurando a cigarrilha que entretanto se apagara,
encostou-se à porta da varanda, como se se preparasse para
apreciar o mar cinza de Leça.
«A partir de agora, esta história não lhe pertence», disse ele. «É
provável que tenha de prestar declarações, mas a mim tanto me faz
desde que não fume liamba à minha frente. Onde arranja a erva?»
«O meu irmão.»
«Tráfico de família também não me interessa», Jaime Ramos
voltando-se para a sala e apontando para o cinzeiro. «Mas não deve
fumar isso tudo sozinha. Acho que devia falar para casa, ligar ao
seu pai. Foi a única pessoa que realmente perguntou por si.»
«O meu pai nunca pergunta por mim.»
«Você nunca o ouviu perguntar por si. Mas sim, ele perguntou. Eu
ouvi.»
Disse isto antes de Béni começar a chorar, o que o incomodava
bastante. Então, Olívia finalmente levantou-se e ele saiu do
apartamento, o telefone na mão, ligando para Isaltino.
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