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Doutrinando um Bolsominion

 
Blame P.T.
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução


total ou parcial sem autorização prévia dos autores.
Os personagens e acontecimentos descritos a seguir
são totalmente ficcionais. Qualquer semelhança com
pessoas ou eventos reais é mera coincidência.
Imagem de capa: Close no torso nu de um modelo
de cueca preta, com a bandeira do Brasil ao fundo e o título
em duas faixas entrecruzadas: uma vermelha escrita
"Doutrinando" em fonte sem serifa branca e a outra
amarela com o texto verde escrito "Bolsominion", com o
"um" em azul entre elas. Abaixo, o nome da autora, Blame
P.T., em fonte caligráfica branca.
Avisos de gatilho:

Conteúdo +18! Transfobia, homofobia, sexo explícito,


prática de BDSM com punições e humilhação, agressão
física e psicológica não relacionada ao BDSM.
À memória da nossa divina e maravilhosa Gal Costa.
 

Sumário
 

Capítulo 01 - “Uma escolha difícil”

Capítulo 02 - “Melhor Jair se arrependendo”

Capítulo 03 - “Mas e o PT?”


Capítulo 04 - Dialética do senhor e do escravo

Capítulo 05 - “É golpe!”
Capítulo 06 - Vermelho

Capítulo 07 - “Seu comunista!”

Capítulo 08 - “País de maricas”


Capítulo 09 - Golden shower

Capitulo 10 - A fraquejada

Capítulo 11 - “Estão atrás da nossa hemorroida”

Capítulo 12 - “Onde está Sérgio?”

Capítulo 13 - “Mais louco é quem me diz”


Sobre a autora
Capítulo 01 - “Uma escolha
difícil”
 

Sérgio encarava o telão atrás de si, estarrecido com


as cenas que ele exibia. Se alguém lhe dissesse que um dia
veria tamanha obscenidade em sua vida, ainda mais no
meio de um matrimônio, ele riria e perguntaria que
faculdade esquerdista aquela pessoa frequentava para ter
uma ideia assim. Uma imundície dessas não acontecia em
casamentos e nem depois, quiçá um de gente conservadora
e cristã, como eles. Gente de bem.

A balbúrdia se instaurou a sua volta e os presentes


reagiam, cada qual a sua maneira: a noiva esmurrava o
noivo, que mal se movia; os avós vindos da Itália
especialmente para o casório, corriam a tapar os olhos dos
netos; o pai do noivo, político de renome, tombara arfando
com a mão no peito enquanto sua terceira esposa chamava
uma ambulância; a mãe do noivo, com um quê de
decepcionada, mas não surpresa, retirava o cigarro da boca
pra xingá-lo. O padre há muito deixara a cerimônia,
repreendendo o noivo que transava com quatro rapazes e
uma matrona no vídeo, cada um atacando uma “frente”
dele, se é que se poderia chamar assim.

Se desviou por pouco de um enfeite arremessado pela


noiva em fúria. Os irmãos milicianos dela também vinham
pra cima. Correu dali.
Era um caminho sem volta, para a cerimônia e para
qualquer paz a ser reestabelecida. Não que aquilo fosse
problema dele, é claro.
Não seria, se não fosse ele próprio, o noivo.

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O palestrante ajustou o microfone e alisou o cabelo


castanho-claro cacheado, bem cortado e penteado. Se
comunicar era um dom e uma rotina e, como qualquer
rotina, requeria seus pequenos cuidados. Após alguns sinais
para a equipe de som ao lado, ele se dirigiu à plateia de
universitários com um largo sorriso e se apresentou:

— Olá, o meu nome é Sérgio Frazier, tenho 32 anos e


um patrimônio de 25 reais na minha conta. É, já dá pra uma
pizza! — Esperou as risadas, que quase não vieram e
continuou: — Vocês já devem estar cansados dessa
conversa mole, né? Diferente do que a maioria dos coaches
financeiros diz, é perfeitamente possível ir à falência em
menos de três anos investindo em um negócio.

Ergueu as sobrancelhas em direção aos rostos


espantados a sua frente: — Eu sei, é chocante saber que
mais da metade dos negócios abertos acabam bem antes
de completarem essa marca, mas eu sou a prova viva de
que é possível superar os obstáculos se você se concentrar
nos três “q”s: qualidade, quantidade e quem-conhece-o-
seu-produto. Essa última foi meio difícil de bolar. — Eles
riram de verdade dessa vez.
Adorava quando faziam isso. O deixavam saber que
estava no caminho certo: — Pra lucrar, vocês precisam de
quantidade. Pra fidelizar o cliente, qualidade. Mas antes de
qualquer coisa, vocês devem conhecer o seu público-alvo.
Quando eu comecei há dez anos, era recém-formado num
escritoriozinho de nada. Hoje, sabem quantas filiais a
Enrique-se abriu desde então? Cinco. Eu viajo o Brasil inteiro
dando palestras e, em todas elas, sempre me perguntam
qual o segredo do meu sucesso. E eu respondo: trabalho.
Trabalhei noite e dia pra construir o meu nome, até
dormindo a minha mente trabalha pensando em como eu
posso inspirar ainda mais pessoas.
Foi até a mesinha ao lado da bancada, onde pegou o
exemplar e o ergueu para o alto: — É por isso que lancei o
meu último livro “Fique rico enquanto dorme”! Ele conta
toda a minha trajetória de vida e traz conselhos
valiosíssimos para qualquer um que queira ser um
empreendedor no Brasil atual! Quem quiser adquirir, é com
a querida Val ali. — Acenou para sua assistente, uma mulher
de meia-idade com óculos gatinho.

— Estarei na sala ao lado ao final da palestra para


autografá-los! — Guardou o livro, abrindo a sessão para as
perguntas.

Uma jovenzinha de cabelo escuro e crespo levantou a


mão: — O senhor é filho do ex-senador Ronaldo Frazier, que
possui dentre outras coisas, 15 mil hectares no interior,
incluindo uma vinícola?
Sérgio piscou: — Hã, não entendi a sua pergunta,
mocinha. Qual é mesmo o seu nome?

— Rafaela.

— Muito bem, Rafaela, querida — Ele deu outro sorriso


enorme, juntando as pontas dos dedos: — é verdade sim
que o meu pai foi senador e possui uma vinícola, mas você
e qualquer um aqui podem ficar certos de que isso não
influenciou em nada a minha carreira. Tudo o que eu
consegui foi por meu próprio mérito e eu tenho certeza de
que se vocês tirarem apenas meia hora do seu tempo
diariamente no meu canal no Youtube ou lerem o meu livro,
vocês todos aprenderão algo, inclusive você, Rafaela.

Desejava que as risadinhas ao redor da garota a


calassem de vez. Porém, ela continuou: — Falando em
aprender, em entrevistas o senhor disse que fez um curso
em Yale, mas seu nome não consta nos registros de
graduados da instituição.

O silêncio se espalhou conforme os segundos


passavam e Sérgio umedecia os lábios, as sobrancelhas
franzidas: — A senhorita se equivocou. Veja, eu realmente
estudei em Yale, mas eu não cheguei a completar. Como
alguns aqui talvez se lembrem, nessa época o meu pai
sofreu um enfarte e eu me vi obrigado a retornar ao Brasil.
— O suor se formava em sua testa. Parecia que os refletores
do auditório tinham descido a meio palmo dele.

— Sim, o senhor não se formou em Yale. Na verdade,


pelo que eu apurei, suas notas foram bem abaixo da média
por todo o período em que esteve matriculado.

Sérgio sorriu, nervoso: — Rafaela, qual é mesmo o seu


curso?

— Jornalismo. — Nova chuva de risadas.

— Está no caminho certo, pelo visto. Mas, falando


sério, eu duvido que algum de vocês aqui conseguissem
ficar na média enquanto o pai de vocês sofre num leito de
hospital. É muito fácil apontar os fracassos dos outros! Tem
um capítulo inteiro dedicado a isso no meu livro. Próxima
pergunta! — Já apontava outro, mas a protótipo de repórter
não se deu por vencida:

— Teria um capítulo sobre o escândalo de corrupção


em que o seu pai esteve envolvido?

Suspirou. Não costumava perder nenhuma discussão


em que participasse e não iria começar agora: — Vocês
querem falar de política? Vamos falar de política: sabe
quanto imposto embutido vocês pagam em todos os
produtos que consomem? Fora a roubalheira do imposto de
renda, IPVA, IPTU... E pra quê? Sustentar infinitos cabides de
emprego, um Estado inchado até dizer chega! Se o meu pai
foi apontado nesse esquema (sem provas até hoje) isso não
muda o fato de que o povo é explorado por esquerdalhas
que quiseram fazer o Brasil escravo de seus desmandos!
Você parece uma menina inteligente, apesar de ter um jeito
meio esquerdinha.
Risos irromperam dos rapazes atrás dela. Piscou para
eles, recebendo em troca uma saraivada de aplausos.
— Se vocês pensarem bem, vão ver como estão sendo
enganados por esses ladrões disfarçados de defensores do
povo e das minorias!

Assistiu uma professora mandar a garota sentar-se,


coisa que provavelmente ela já faria graças à reação em
volta, e encerrou a palestra.

Já do lado de fora, depois da sessão de autógrafos,


desabafou com a assistente: — Que porcaria! E esses
brindes? — falava das viseiras de emborrachado sendo
usadas em “lutinhas” entre os estudantes.

— Fala pro Nestor que essa merda ficou um lixo! — ela


assentiu, nervosa e quieta.

— Esses maconheiros adoram uma balbúrdia! — ele


exclamou, fechando a porta da picape. A assistente mal
entrou, Sérgio arrancou com tudo. Estava de saco cheio de
comunistas em suas palestras. Seria ótimo se pudesse
barrá-los do mundo, pensava, apesar de seu alívio em ver
que eles estavam longe de serem unanimidade em qualquer
lugar que fosse.

— Viu só, Val? A gente abre o coração, prepara tudo


com todo o carinho do mundo e chega uma fedelha
qualquer falando daquele jeito. Merecia uma boa surra!

Ela acenava a tudo, calada. Gostava dela


principalmente por isso. Deixou a assistente em sua
residência para poupá-la de pegar um ônibus e voltou para
a empresa, onde Camila o esperava.

— Oi, Mozão! — Sua noiva o recebeu com um beijo


dentro do carro. — Já decidi que flores vou querer na
entrada: girassóis! São símbolo da fortuna!

— Que ótimo, Paixão.

— Fica verde e amarelo, seus pais vão a-do-rar!

— Ah, vão mesmo.

— Você parece chateado, aconteceu alguma coisa?

— Não, foi tudo bem. É só que... esquece. — Forçava


um sorriso para ela, mas depois de fazer isso tantas vezes o
dia todo, Sérgio só queria chegar em casa e não ver mais a
cara de ninguém.
— O que foi? Criticaram a sua palestra?

— Falaram do meu pai. De novo. Sabe, é difícil


construir a minha própria vida quando todo mundo faz
questão de ficar me lembrando dessas coisas! Eu nunca
roubei nem uma caneta, mas de repente, sou o errado! Só
porque eu sou filho dele, não posso me orgulhar de nada?
— Ai, Amor! Não pensa nessas coisas ruins. O seu pai
era inocente, né?
— Nunca conseguiram provar o contrário, pelo menos.
Mas também, não me interessa. Era só uma esquerdista
querendo se exibir pros coleguinhas. O Luladrão com
certeza roubou muito mais que o meu pai e essa cambada
de hipócritas o idolatra!

— Deixa pra lá, Amor. — Ela inclinou a cabeça coberta


de madeixas loiras para beijá-lo de novo enquanto dirigia.
Camila era um amorzinho mesmo, tão prendada, tão
educada, tão recatada. O pai dela era sócio majoritário da
empresa. Ela seria uma ótima rainha do lar e mãe dos seus
filhos.

Deixou-a na casa dos pais dela. Sendo bons


descendentes de italianos, os Gentile gostavam de se
reunir. Recusou o convite deles para jantar e se despediu: —
Até amanhã, Paixão!

Em sua mansão no condomínio, fez um sanduíche de


pão integral, frango grelhado e salada com suco antes de
ajustar o equipamento para começar a live da semana. Seus
seguidores já disparavam enxurradas de comentários
cumprimentando-o ou mandando pedidos desesperados de
ajuda do tipo “minha geladeira está vazia há uma semana”.

Mastigava o sanduíche, fechando os olhos. Não


fumava, não bebia, se cuidava para manter uma
produtividade alta e mesmo assim, uma dor de cabeça
insistia em atormentá-lo.

Terminado o jantar, ligou a câmera e se dirigiu aos


presentes: — Boa noite, empreendedores patriotas! Hoje foi
um dia difícil, tô um pouco cansado então vou abrir um
espaço pra vocês comentarem algo dessa semana.
Conferiu e todos os membros do canal pediam a
mesma coisa: — Ah, vocês querem que eu fale desse cara,
é? Dou-tri-na-dor... Quem é esse? É coisa de putaria, né? Ô
pessoal, a monetização, olha a monetização!

Mandaram o site. Abriu numa aba sigilosa do


navegador e diversos anúncios pornográficos inundaram a
tela. Depois de fechar as pop-ups, encontrou o perfil do
sujeito. A foto mostrava um homem de pele bronzeada e
cabelo preto, a barba por fazer. Ele segurava um chicote na
mão, o que ressaltava seus músculos sob a camiseta cinza:

“Leon Doutrinador, especialista em


dominação completa. Faço carnista virar
vegano, ateu virar crente e até mesmo
bolsominion virar petista. Valor a combinar.”
Gargalhou: — Vocês não têm jeito... O que eu tenho
pra comentar de um boiola fresco desse?

Outro seguidor mandou um print do Twitter, onde


Leon respondia a alguém: “Parem de encher minha caixa de
comentários. Se quiserem uma terapia de conversão do
bolsoasnismo, entrem em contato por este número.”
— Não vou mostrar o contato dele porque eu não
divulgo porcaria. Aqui é um canal conservador e cristão de
finanças. Não, eu não vou debater com esse cara! — A
timeline deslizava cada vez mais rápido e isso cheirava à
oportunidade. Sérgio calculava os riscos e os potenciais
lucros que a situação trazia. Seu canal era grande, mas não
estava entre os maiores. Explorar uma polêmica como
aquela certamente atrairia novos seguidores. Respirou
fundo, as sobrancelhas erguidas.
Riu, tapando os olhos: — Vocês me colocam em cada
uma... Tá, querem mesmo que eu faça isso? Quem quiser
manda like e contribui, porque eu não vou gastar meu
suado dinheirinho com essa palhaçada!

Assim que os avisos de doação começaram a pipocar,


pegou o celular, pôs no viva-voz e digitou o número no
teclado. Esperou, esperou, até desanimar: — Tá fora de
área. Provavelmente ele está ocupado dando o furo por aí!
Tá, eu vou deixar uma mensagem e se ele responder eu
gravo, pessoal. Ah, sim, vou pegar aquele chicotinho dele e
mostrar o que é um homem de verdade! Peraí, não nesse
sentido!

Comentaram outras tretas da semana envolvendo


conservadores e progressistas, com direito a ameaças de
morte e agressões físicas: — Galera, é isso o que os
degenerados esquerdistas querem, não percam a cabeça
com essa gente. Eles são ardilosos. Não, eu não vou sair no
braço com ninguém!

As doações tinham atingido sua meta. Ótimo, poderia


encerrar os trabalhos e descansar: — Isso é tudo, pessoal!
Abraços de hétero! Deus abençoe o nosso presidente! —
Fechou a aba da webcam. Ia desligar o notebook também,
quando sua curiosidade falou mais alto.

Reabriu a aba sigilosa, clicando em um dos vídeos do


perfil do tal “Leon”. Ele aparecia sem camisa, vestindo uma
espécie de traje de couro estranho enquanto posava para a
câmera com aquele sorriso safado, o chicote estalando na
mão dele e depois na pele macia das nádegas do outro
degenerado... Por algum motivo, não conseguia tirar os
olhos daquela cena, parecia dominado por algum tipo de
feitiço enquanto assistia aquela exibição deplorável. Pausou
o vídeo assustado, sentindo os próprios batimentos
cardíacos.

“Tô com tesão de tanto que a Camila fica regulando,


só pode”, concluiu apressadamente. Em ocasiões fortuitas,
ela concordara em bater umazinha para ele, mas queria
casar virgem. Sérgio também não queria apressar as coisas,
desde que ele a desvirginasse, é claro. “Deus tá vendo.” Ela
dizia. Agora, pouco lhe importava que Ele o visse ou não, só
queria um boquete.

Levou o celular consigo ao banheiro. Morava sozinho,


então não se preocupou em usar fones. Buscou “dominação,
sadomasoquismo” e diversas imagens apareceram. Pessoas
com a bunda de fora, com grampos nos mamilos e nos
genitais, surras de chicote e palmatória. Não é que nunca
tivesse visto aquilo antes em filmes ou em suas noites
solitárias na internet, mas algo prendia sua atenção agora.
Não sabia o que era, só queria se livrar do tesão que se
acumulava. Não havia tempo para procurar por um vídeo
mais hétero, justificou a si mesmo: quando a vontade
surgia, era melhor aproveitar.
Movia a mão sobre o pau, assistindo o doutrinador
flagelar as costas de uma mulher e de outro cara, marcando
os corpos com vergões de aparência dolorida. Depois, ele
partiu para a palmatória, a pele alva do homem se tornando
rosa como deveria ser o guarda-roupa da ex-ministra, tudo
isso enquanto gritava ofensas aos dois. A voz dele ecoava
no que parecia ser uma câmara particular. Era grave e um
pouco rouca, diferente do que supunha pela foto. Uma voz
que se impunha sobre as outras, uma voz de comando e de
um certo modo reconfortante, por mais paradoxal que isso
fosse. Moveu o pulso cada vez mais rápido até o gozo vir
morno por entre os dedos.
Arfava de pé, se apoiando nos azulejos do banheiro.
Caralho, o que foi isso? Se limpou e encarou o próprio rosto
esbaforido no espelho. Começava a se questionar se era
normal sentir tanto tesão por um vídeo desses sendo hétero
quando ouviu a notificação do celular: o malandro tinha
respondido!

Leon:
Novato ou iniciado?
Sérgio:
Você não entendeu: é uma entrevista XD
Quero te entrevistar pro meu canal no
Youtube
O status “digitando” ficou um bom tempo na tela, até
que apareceu a mensagem:
Leon:
novato então: R$ 350,00 a hora, mais a
taxa de gravações de 100,00. O pagamento
é adiantado, pra evitar espertinhos que
marcam e depois somem ; ) posso te
encaixar na quarta, às 19 hrs?
Jogou o nome da rua no Google Maps: já passara por
ali, mas nunca notara o clube “Kama Sutra”. Só achou o
preço salgado. Pediu um desconto, ao que o cidadão
respondeu: “Ninguém aqui trabalha de graça”. Comunistas
hipócritas...
Sérgio:
ñ pode ser online?
Leon:
Pode, mas é bem menos divertido...
Parou, pensativo. Ficar em casa com certeza seria
mais discreto e seguro. Por outro lado, ir até o lugar e filmar
toda a bizarrice do cenário com certeza lhe renderia mais
cliques, quem sabe até o vídeo fosse parar no “Em alta”?
Correr riscos fazia parte do negócio. Teclou depressa:

Sérgio:
eu vou aí.
Capítulo 02 - “Melhor Jair se
arrependendo”
 

Na carreira de coach financeiro, avaliar bem os riscos


era a diferença entre o sucesso ou o fracasso. Pena que não
ensinem sobre gerenciamento de emoções nesses cursos,
Sérgio pensava: mandara a mensagem na segunda e desde
então não dormia direito. Passou a mão pelo rosto
amassado. Logo ele, que sempre controlava cada aspecto
de sua própria vida, agora sentia-se mais pisado que fruta
de xepa. Sentado no escritório da Enrique-se, chamou o
rapaz do design.

O magricela de óculos veio até sua sala, a cara de


bocó atrapalhado de sempre: — Com licença, chefe. Estava
ocupado com o projeto, o senhor chamou?

— Não, não chamei não...Imagina. — Suspirou, sem


olhá-lo: — Me traz um café!

— Quem cuida disso é o...

— Não interessa quem cuida, eu mandei você! Vai!

O garoto foi e voltou num pé com a xícara e o


adoçante. Ficou encarando-o até ele o servir, e acrescentou:
— Aquela ideia das viseiras, a Val já te disse, né? Foi uma
porcaria. Trata de melhorar da próxima.
O rapaz, cujo nome nem se lembrava, esfregou o
próprio rosto, olhando o chão: — O senhor me desculpa,
mas eu disse que viseira de emborrachado não era ideal. Foi
o senhor mesmo quem mandou “cortar custos”.

Sérgio largou o café de lado. Precisava colocar aquele


sujeitinho no lugar dele: — E QUER QUE EU FAÇA O QUÊ,
HEIN?! Se não tem competência pra fazer melhor e mais
barato tem uma fila esperando pra entrar no seu lugar! É do
or quit, meu!
O garoto o olhou com aquela cara sorumbática,
murmurando um “sim, senhor” e fazendo menção de ir.

— Ei! — Estendeu a xícara vazia.

Ele a apanhou sem olhá-lo e saiu.

Sérgio esfregou as têmporas, se arrependendo do


café, pois além de piorar sua dor de cabeça, já estava frio.
Fechou os olhos, ensaiando mentalmente o encontro com o
tal “doutrinador”: os argumentos que usaria com ele,
possíveis tiradas para quando o coitado pedisse arrego.
Porém, vinham sempre em sua cabeça o estalar do chicote
e os gritos do vídeo. Não, ele não se atreveria... Meteria um
processo nele e ainda ganharia com visualizações se fosse o
caso. Camila talvez ficasse aborrecida, mas justificaria tudo
em prol de “defender o nosso presidente”. Não precisaria
fazer nada, dizia a si mesmo. Bastava seguir a lógica e
acabaria com o veadinho comunista.
Atualizou sua coluna no jornal com os quatro porquês
de o brasileiro médio não conseguir enriquecer (tudo
relacionado à falta de disciplina, é claro) e almoçou com a
namorada. Ela passava tanto tempo tagarelando sobre o
casamento que quase não conseguia espaço para falar.
Felizmente, ela percebeu: — Ai, Amor, é que estou tão
nervosa! Tanta coisa pra pensar, afinal, é o nosso sonho!

— Claro — respondeu. É, não valia a pena contar o


que pretendia, poderia causar uma má impressão nela.

— E se a gente saísse um pouco? Podemos conversar


com mais calma.

— Já estamos conversando na verdade. Alô, alô? —


Pegou o copo da mesa, fingindo que era um telefone sem
fio.

Camila ria. Adorava ver como o narizinho dela se


arrebitava ao fazer isso. Ela suspirou: — É que você não se
abre comigo, nunca me conta nada sem eu insistir. Parece
até um robô, só responde com monossílabos, sim, não...Já
sei: que tal jantar fora hoje?

— Não dá, vou sair às nove pra... — Se conteve. Não


podia simplesmente dizer “vou gravar com um mestre em
dominação BDSM! Beijo, Mozão!”: — gravar um vídeo pro
canal, é.

— Poxa... — A garota fez uma carinha tão triste que


acabou concordando em jantarem no dia seguinte. Ela lhe
deu um beijinho no canto da boca e voltaram de mãos
dadas para a sede da empresa, onde Sérgio se deixou
afundar nas planilhas, sem querer pensar em por que
ansiava mais pelo encontro com um desconhecido do que
com sua própria namorada.

Terminado o expediente, pegou o carro e foi pra casa


tomar um banho. Colocou sua melhor camisa polo, uma que
dizia “sou um cara normal, bem hétero”, bermuda cáqui e
sapatênis. Tinha que representar todo o sucesso pessoal
que uma vida regrada nas finanças poderia trazer, em
contraste com o modelito de couro que representaria o
outro lado, pervertido e comunista. Era tudo um belo mise-
en-scène, ou numa linguagem mais simples, uma questão
de semiótica. Equipou o celular com bateria extra e um
cartão de memória potente, aproveitando pra reunir
folhetos da empresa e um exemplar de sua autobiografia.
Sempre mantinha pelo menos um no carro, para o caso de
encontrar um potencial cliente. “Amplie sua marca”, era seu
lema. Cada momento com uma nova pessoa era uma
chance de fazer propaganda.

Estacionou várias ruas antes e foi caminhando pela


avenida cercada de pequenos comércios. E pensar que bem
ali, naquela pacata esquina ficava um antro de perversão e
ainda por cima, comunista. A placa do pequeno prédio de
paredes escuras e portas e janelas vermelhas lhe captou a
atenção em meio à aparência comum daquela parte do
bairro.
Logo de cara, foi recepcionado na porta por uma drag
queen. O cabelo excêntrico e maquiagem gótica o faziam se
lembrar da atriz de “Elvira, a rainha das trevas”. Forçou um
sorrisinho, tentando disfarçar o desconforto: — Aqui que é o
Kama-Sutra?

— É sim, querido — Ao contrário dele, a drag o


cumprimentava com um sorriso amplo, repetindo a
pergunta que Leon tinha feito antes: — É a primeira vez que
vem a um clube assim? Pela sua carinha eu tô achando que
é...

— Ah, eu não vou ficar, só vim pra ver o...

Ela arregalou os olhos: — Ai, o Leon é um amor, não


é? Vem, querido eu te levo lá! Meu nome é Soraya e serei
sua guia esta noite.

Seguiu-a pelo bar. Num salãozinho à parte, casais


compartilhavam uma mesa, e Sérgio não conseguiu deixar
de encarar o marmanjo de quatro, usando coleira e sendo
guiado por uma mulher mascarada e igualmente vestida
num maiô de tiras de couro. Ia sacar o celular para filmar,
quando a drag o arrancou dele: — Ei, não pode filmar aqui
não, tá doido?! Leon não te falou das regras?

— Tão escondendo alguma coisa? — Erguia a


sobrancelha, se perguntando que tipo de drogas aquele
pessoal poderia ter.

Ela revirou os olhos: — Todo mundo que entra aqui


cumpre um acordo mútuo que envolve respeito à
privacidade! Pelo visto, você vai dar trabalho, do jeitinho
que ele gosta...
Foi a vez dele de entreabrir os lábios, desconcertado.
Não valia a pena gastar saliva com essa “aberração”,
pensou.

Soraya parou perto da escada. Sérgio esperou que ela


subisse para segui-la. Parecia escoltá-lo, e só o largou
quando chegaram.

— Agora, você é problema dele. — disse, batendo na


porta.

Suava em expectativa, até que ele finalmente


atendeu.

Com uma camiseta cinza apertada e calça jeans


escura bem justa, ele era mais baixo do que imaginava,
mesmo calçando botas pretas de cano curto. Mas a voz
mantinha a mesma potência dos vídeos.

— Sérgio, é? — ouvi-lo pronunciando seu nome


arrepiava os pelos da nuca até embaixo... Engoliu em seco.

— S-Sérgio Frazier, do canal Enrique-se. Prazer —


Estendia a mão, só então se questionando se a escolha de
palavras tinha sido boa. Segurou o celular, como se fosse o
salva-vidas daquele mar de constrangimento: — J-já paguei
pela sessão... e a taxa.

— Ah, entra. — A mão que ele pôs em seu ombro


parecia pesar uma tonelada. Sérgio desviou o olhar do dele,
mas teve tempo o suficiente para julgar que ele... sorria?
Agora, tinha medo do sorriso dele tanto quanto da voz. Era
um sorriso encantador.

O quarto lhe provocava a mesma mistura de repulsa e


atração: o ar-condicionado soprava uma brisa fresca e
convidativa, enquanto as paredes iluminadas em preto e
vermelho vinho o recebiam com correntes penduradas e
quadros retratando homens e mulheres em diversos
suplícios. Não era a câmara medieval de tortura que
imaginara, mas não estava longe do tipo de lugar que
diziam para se manter longe a todo custo. Ao fundo, havia
um “X” enorme pregado na parede com algemas e uma
espécie de potro com correntes, além de uma coleção de
chicotes e acessórios que ele não fazia ideia pra que putaria
serviriam. Um calafrio passou veloz por sua coluna ao fitá-
los.

Leon buscou uma cadeira simples e colocou de frente


para outra que tinha tiras de couro e fivelas no encosto e
nas pernas, além de um fundo falso. Se arrepiou na mesma
hora:

— Não, não, eu não vim aqui pra...

— Eu sei. — Ele pegou uma placa fina de madeira e


encaixou numa fresta do fundo, tornando a cadeira
novamente utilizável. Leon ficou com ela para si, virando-a
ao contrário enquanto indicava para ele a cadeira de
plástico. Dobrou os braços sobre o encosto dela, as pernas
grossas e torneadas separadas lado a lado, ressaltando bem
o volume sob o jeans.
Sérgio desviou um pouco o olhar.

— Então você veio me entrevistar — Ele ria: — nunca


me pagaram pra isso, é a primeira vez! — falava com uma
animação sincera no rosto, e Sérgio se sentiu um pouco
desprezível ao prosseguir.

— Na verdade, foi ideia dos meus seguidores. Eles são


muito reativos.
— Uns verdadeiros templários, você quer dizer. Não
pararam de encher o meu saco nas redes. Quer uma água,
um refrigerante? — Ele pegou o controle remoto do ar-
condicionado: — Posso aumentar, se quiser.

Tirou a mochila das costas: — Não, obrigado. Posso


montar o triplé aqui?
— Claro! Quer ajuda? — Ele se levantou.

Sérgio terminou de posicionar o equipamento.


Enquanto ajustava o ângulo, o celular tombou de suas
mãos, mas Leon o segurou a tempo.
— Opa! — Seus olhares se cruzaram, o corpo dele
quase todo dobrado sobre suas costas. Na proximidade em
que estavam, podia sentir o hálito e o cheiro dele. Era forte,
mas não desagradável e Sérgio ficou imaginando se o
sujeito havia tomado banho ou não. E antes do que previa,
já pensava em Leon, tomando banho.

Buscou depressa a outra cadeira, sob o olhar curioso


dele.
— Tá nervoso?
— Não... — Dava seu melhor sorriso, o que não era
difícil perto dele, por qualquer motivo: — Trouxe um
pequeno roteiro, com perguntas dos meus seguidores.

— Ah — Ele o folheou por um momento: — Enrique-se,


é o seu canal?

— Sim, já tinha ouvido falar?

— Não. Isto é, até os seus seguidores me


perseguirem. — Ele devolveu o roteiro.
Fugindo do silêncio pós resposta dele, Sérgio iniciou a
gravação: — Vamos começar.

Leon virou a cadeira e sentou, de braços cruzados.


— Olá, futuros empreendedores brasileiros! Vocês
pediram e vocês conseguiram: eu sou Sérgio Frazier e estou
falando diretamente no clube Kama-Sutra com Leon, o
Doutrinador!

— Oi — Ele acenou para a câmera, com o sorriso mais


descarado que Sérgio já viu, e ele era o tipo de pessoa que
vivia à base de sorrisos assim. A transmissão não era ao
vivo, assim, qualquer peripécia que aquele marginal lhe
aprontasse seria prontamente editada.
— Pra quem caiu de paraquedas nesse vídeo, fique
tranquilo que o canal continua sendo sobre finanças, mas
como nós da Enrique-se nos orgulhamos muito do nosso
viés conservador e a favor da liberdade de expressão, eu
não podia deixar passar esse pedido de vocês. Então Leon,
aqui no seu perfil diz que você “converte” carnista em
vegano, ateu em crente e bolsominion em petista. O que
seria essa conversão, cê tá falando sério?

Ele ergueu o queixo: — Na verdade, esse anúncio foi


uma reação a várias provocações que recebo nas minhas
redes sociais, divulgando o meu trabalho com BDSM. É com
ele que eu me sustento, mas desde que esse pessoal veio
encher minha paciência, decidi dar o troco e inclui-los na
minha lista de “conversões”.

— E como exatamente seria isso? Quero dizer, se você


puder explicar de um jeito que não corte a monetização do
meu canal ― Forçou uma risada, enquanto o rosto de Leon
se tornava um pouco mais sério.

— Bem, não é muito diferente do usual: eu só grito na


cara deles o quão idiotas eles são por pensarem assim.
Geralmente eles também pedem para eu cuspir neles e, é
claro, bater. É tudo com consentimento dos clientes.
Sérgio juntou os dedos, franzindo a testa. Ter vontade
de experimentar uma putaria diferente de vez em quando
na privacidade de casa era normal, mas a partir daquele
ponto, já achava demais: — Me desculpa, mas não acredito
nisso. Quem em sã consciência pagaria a você para ser
humilhado e agredido? Deve ser alguma fake News da
esquerda para desmoralizar a direita conservadora.

— Não é tão incomum. Faz parte da natureza humana


ter prazer até no sofrimento. Os bolsominions, por exemplo,
são naturalmente masoquistas: todos que atendi até agora
adoram apanhar de chicote. ― Leon o encarava fixamente.
Os olhos de Leon eram castanho escuros, ou melhor, pretos
como um abismo e capazes de tragá-lo se os encarasse por
muito tempo.

Sérgio se voltou depressa para as anotações. Alisou o


rosto, procurando retomar o assunto. A honra de
bolsonaristas e conservadores dependia dele: ― Pois se
reagiram assim não são verdadeiros bolsonaristas, nem
conservadores. Provavelmente, nem homens de verdade
são. ― franziu a testa, tentando passar indiferença àquele
comentário maldoso, mas a risada de Leon repercutiu no
quarto:

― Ah, sim. A velha falácia do escocês de verdade!


Dessa vez, a surpresa dominou Sérgio ao perceber
que seu adversário estava bem mais preparado do que
imaginava. Ficou tanto tempo em silêncio que ele se
inclinou para frente, perguntando:

― Conhece essa?

― Claro que sim ― respondeu e Leon se apoiou no


próprio cotovelo assistindo-o explicar: ― ao se deparar com
um exemplo que foge a uma regra geral, o interlocutor usa
como desculpa o argumento de apelo à pureza da categoria.

― É, tipo “escoceses não colocam mel no mingau”, e


o outro responde “mas meu tio escocês faz isso”, e o
primeiro carinha fala “Ah, sim, mas ele não é escocês de
verdade”. ― As palavras fluíam dos lábios carnudos de Leon
e Sérgio se pegou imaginando como seria lamber mel
diretamente deles. ― Mas estávamos falando de
bolsominions, não é?
― Bolsonaristas é um termo melhor. E nem todos os
meus seguidores são, é simplesmente que eles preferiram
votar em alguém que não estava preso ou representando
um presidiário. ― Cravou essa. Era o fim dos argumentos
daquele esquerdinha.

Ainda se deleitava com o que havia acabado de dizer,


quando Leon se levantou, se apoiando no encosto da
cadeira: ― Olha aqui, quem você pensa que é? Você vem,
marca um horário comigo apenas pra provar que o seu
posicionamento político é mais correto que o meu? Você se
acha especial nesse nível?
― Só que o meu alinhamento político é sim mais
correto que o seu. Não tem o que discutir nesse ponto.

Ele riu e pegou uma das latas de guaraná jesus do


frigobar, bebendo-a em goladas. Gotas do líquido gelado e
rosa caíam de seu queixo e percorriam em trilhas o pescoço
torneado dele, descendo pelos músculos maciços de seu
peitoral e molhando sua camisa cinza.

Os lábios finos de Sérgio se inundaram em resposta.


Estava difícil manter a concentração, e ele não entendia o
porquê, se estava ganhando o debate. Espalmou as mãos
sobre as próprias coxas, tentando ignorar um formigamento
que se espalhava por elas até a virilha: — E não importa o
que quer que o nosso presidente tenha feito, o importante é
que nós tiramos o PT do poder, livramos o Brasil da
corrupção! Nada vai mudar isso.

Leon levou a mão para a frente da boca, contendo o


refrigerante de escapar por sua risada: ― Cara, em que
planeta vocês vivem? ― Ele colocou a lata em cima do
potro, cruzando os braços: — Sabe o que parece? Que você
e os seus amigos tem uma tara em condenar os outros. Se
acham os “salvadores da pátria”, com a missão sagrada de
impor o pensamento de vocês. O engraçado é que, se
alguém discorda, vocês acusam a pessoa de estar
“doutrinando”!

— Mas é isso o que vocês, comunistas, fazem!


Querem que todos pensem igual, que aceitem depravações
como aborto, gayzismo, feminismo, pedofilia...
— Você tá pirando, cara. Não tá falando lé com cré.
Isso que você falou é a pecha que vocês da direita tentam a
todo custo colar na gente. Eu sou a favor sim, do direito ao
aborto.

Sérgio bateu com a mão no próprio joelho: — Aí! Não


disse?

— Na verdade, não cabe a homens cis decidirem


nada, a escolha deveria ser sempre das pessoas com útero,
já que afeta a elas. O feminismo aliado a outras lutas só
vem ajudando as pessoas a se libertarem de toda opressão
que o machismo impõe. Agora, isso de “gayzismo” é só o
seu preconceito contra os LGBTs que não aceitam mais
ficarem no armário ou sendo chacota pra vocês. E nem vou
comentar a sempre presente tentativa de associar a
esquerda com pedofilia pra nos difamar! — Ele olhou para o
relógio do celular: — Faltam cinco minutos pra acabar a sua
sessão. Dá tempo de eu te dar um tapa na cara, se quiser.
Engoliu em seco frente aquela sugestão, a mão larga
e grossa dele golpeando seu rosto. Sentia-o quente só de
pensar. Ergueu as sobrancelhas, encarando o homem a sua
frente e depois a tela do celular. Faltavam apenas cinco
minutos para acabarem a entrevista e Sérgio lamentou em
segredo não ter pago por mais uma hora. Não queria sair
daquela cadeira. Não queria sair da frente dele.

Leon parou, de braços cruzados. Aquele comunista era


bom em retórica, e o mais impressionante, o sujeito não se
exaltara com ele, nem o xingara uma única vez. Sequer
tinha levantado a voz pra ele. Era totalmente diferente do
que imaginava de um praticante de BDSM, e por isso
mesmo, sentia ter fracassado em seu intento. Ficou
remexendo os papéis e o livro que trouxera de presente
mais uma dúzia de vezes, se perguntando o que teria de
fazer para ganhar um tapa de Leon. Só um. Se o ofendesse
e ele partisse para a agressão, não só saciaria o desejo,
como também poderia alegar que o adversário perdera a
razão e, portanto, a discussão. Seria perfeito.

— Acabou sua hora. Acho melhor finalizar o vídeo.

Precisava agir rápido. Já tinha falado mal do Lula e


não tinha adiantado. Não conseguia imaginar o que mais
poderia enfurecer aquele homem. Se levantou, sem desligar
o celular e arriscou, falando tudo o que lhe vinha
naturalmente à cabeça:

— Sabe o que mais? O erro dos militares foi ter


torturado e não matado! A gripezinha levou pouca gente, só
alguns milhares! O Brasil não podia parar por cinco mil
mortes! Bandido tem mais é que ter o CPF cancelado
mesmo, se levou tiro da polícia, coisa boa não tava fazendo!
Leon o encarava, de braços cruzados. Continuou
tentando levá-lo a reagir: — O PT quebrou o Brasil, Bolsa
família só serve pra sustentar vagabundo, nazismo é de
esquerda! — berrava, até que o homem o agarrou pelos
pulsos.

Sérgio parou, a voz grave e levemente rouca de Leon


penetrando seus ouvidos: — Nunca vi uma vontade tão
grande de levar uns tabefes quanto a sua, mas acabou o
seu horário. Não vou ficar ouvindo asneiras de graça, não.
Se quiser apanhar, vai me pagar pra isso! — O fetichista
teve a ousadia de pegar seu celular e triplé, o conduzindo
com um aperto firme pra fora da masmorra.

Se debatia, humilhado: — Você não sabe nada sobre


mim!

— E preciso? Só a sua fuça já entrega: tem uma cara


terrível de fascista! — E fechou a porta com uma batida.
Sérgio piscava, paralisado com o que acabara de
acontecer.
— Fascista é a sua avó! — gritou para as paredes.
Que comunista safado. Poderia puxar seu cartão de
crédito premium e esfregar na cara de Leon, gritar que ele
não passava de um fudido que adoraria ter a conta bancária
que ele tinha, mas no fundo sabia que não adiantaria. O
desgraçado queria que rastejasse aos seus pés, que
admitisse o quanto queria as mãos fortes e grossas batendo
nele, doutrinando-o... Espera, era isso o que queria? Sérgio
se perguntava.

Saiu, ignorando os olhares da drag na entrada. Sentia-


se tonto e sem chão, como quando soubera que o
presidente tinha sofrido aquele atentado horrível contra sua
pessoa. Mas era pior dessa vez, por que a facada traiçoeira
não partira do inimigo, mas de si mesmo. Ele era Sérgio
Frazier, empreendedor e coach financeiro de sucesso,
homem conservador de direita e cidadão de bem. E estava
perdidamente de quatro por aquele comunista depravado.
Capítulo 03 - “Mas e o PT?”
 
Ao chegar no condomínio onde morava, Sérgio
pigarreou aborrecido para o porteiro, as anotações
amassadas no colo repousando sobre o pau nem tão em
repouso assim. Entrou depressa em casa, tirou a roupa e fez
uma série de flexões, tomando o cuidado para que fossem
mesmo flexões com os bíceps e não só “de cabeça”. Mesmo
assim, a ereção continuava firme e dolorosa. Foi direto
tomar um banho frio. Não queria acreditar: era homem,
cabra-macho mesmo. Tinha até participado da parada do
Orgulho Hétero e tudo. Não podia estar assim, ainda mais
por um esquerdista fetichista daquele, talvez o pior tipo de
pessoa que poderia existir. Esfregou o sabonete pelo corpo,
tentando lavar o cheiro de Leon de sua lembrança.

Suas mãos deslizavam fácil pela pele e logo já estava


de novo tocando uma. Apertou a própria glande entre os
dedos, alisando a fresta nela, indo e voltando até quase a
base. Pensava na voz dura e inflexível dele o mandando
embora, e nas palavras que mais o marcaram: ele tinha
percebido que queria apanhar, e não só por que o provocara
deliberadamente. Devia ter notado pelo modo como ficara
sem jeito com a proposta do tapa. Outra pessoa poderia ter
ao menos feito o esforço para rir, mas do mesmo jeito que
percebera ser fácil sorrir para Leon, era difícil não ser
sincero perto dele. Ele rapidamente quebrara sua máscara
de estoicismo e revelara toda insegurança por debaixo dela.
Sérgio podia encenar bem para uma plateia, mas sabia
agora que era impossível enganar aquele homem.

Deslizava os dedos em torno de seus próprios


mamilos, sentindo-os despontarem de excitação no contato
com a água. Suas bolas batiam contra seu punho e Sérgio
imaginou como seria ter Leon ali, com as mãos sobre ele,
tocando-o daquele jeito, batendo em seu rosto e em sua
bunda, forçando-o a fazer todas aquelas coisas pervertidas
que ele em toda sua vida conservadora e cristã recusara,
mas que agora o consumiam como as chamas consumiam
as matas brasileiras no Dia do Fogo. A água do chuveiro
levou embora todas as evidências de seu prazer, mas o
alívio foi momentâneo: assim que se vestiu e conferiu o
vídeo, concluiu que não conseguiria editá-lo como
pretendia. Não só o debate se encerrava numa conclusão
desfavorável, como também podia ver em detalhes todas as
pausas, seu olhar vagando por onde não deveria. Parecia
até que não estivera em seu juízo perfeito na presença dele.

Deu play no momento em que Leon lhe dizia


exatamente o que ansiava, mas não tinha coragem de
pedir. Sérgio olhou para a foto dele com Camila no papel de
parede do computador. Só ele sabia como tinha trabalhado
para chegar ali. Mesmo que todos lhe dissessem que ele
não passava de um herdeiro que ganhara tudo de mão
beijada, ainda assim, tivera que ter o mínimo de esforço
para convencer seu velho pai a lhe dar o dinheiro para a
sociedade com o sogro. Não podia se arriscar a perder tudo
por uma mera curiosidade.
Por outro lado, tinha medo que nunca conseguisse se
ver livre daquele desejo. Se lembrou do tempo em que
pensava em se tornar coach amoroso, uma carreira muito
breve, visto que todas as suas namoradas anteriores não
passavam de umas alpinistas sociais interesseiras. Talvez a
saída para aquele dilema fosse simplesmente se expor mais
à imagem de Leon. Forçou-se a editar o vídeo, só parando
quando o resultado ficou satisfatório. Cortou trechos, mudou
alguns contextos, e voilà!

Enquanto subia o vídeo, tuitou: “Era pior do que vocês


pensavam: “O CARA DEFENDE ABORTO E AMEAÇOU PARTIR
PRA AGREÇÃO! PERDERAM A VERGONHA!!!”. Esboçou um
pequeno sorriso ao ver a timeline se encher de respostas e
sugestões. Visualizações crescendo, deu boa noite e
mandou uma mensagem para Camila.

Pouco depois, ela telefonou: — Amor, cê tá bem?

— Tô sim. Foi só um susto!

— Meu Deus, mas você não me disse que ia num


lugar desses! Esse marginal poderia ter até matado você!

— São os sacrifícios que fazemos por uma causa


maior. Mas tá tudo bem agora. — disse, ao que ela
perguntou se ele tomaria alguma providência. — Não, não
vale a pena gastar o tempo da polícia com um tipinho
desses. Dorme bem, tá? Não fica pensando nisso não.

— Um beijo! — ela disse, sonolenta e dengosa.


— Outro! — respondeu, desligando. Pronto, agora
podia dormir em paz com sua consciência. Não estava
enganando sua noiva. Ela sabia o que tinha acontecido e
aquele comunista safado teria o que merecia por ter tirado
seu sossego.

Ao menos era o que pensava até receber a mensagem


dele pelo Whatsapp no dia seguinte, logo de manhã:

Leon:
QUE PALHAÇADA É ESSA?
Ele mandou um print do tuite. Sérgio riu: não
esperava uma resposta tão rápida. Teclou:

Sérgio:
Não entendi XD
Leon:
Nunca te ameacei fisicamente! Você editou
toda a entrevista pra parecer que eu fiz
isso!!!! Vc tem noção do q tá fazendo?
Sérgio:
Liberdade de expressão. Vc tem a sua, e eu
tenho a minha versão dos fatos
Leon:
Só que a sua versão é mentira! Eu disse
“ainda dá tempo de te dar um tapa na cara,
se vc quiser”, eu nunca disse q faria sem
consentimento
Sérgio:
Não foi o que pareceu. Vc mesmo disse q
via em mim “uma vontade grande de
apanhar”, o q quer dizer isso???
Leon:
Vc é doido ou se faz. O q eu disse foi q vc
parecia mesmo estar tentando me provocar
pra q eu fizesse isso. Acontece q vc não
passa de um recalcado q não entende como
o BDSM funciona. Tudo o q fazemos tem q
ser são, seguro e consensual. Pelo jeito vc ñ
sabe o significado dessa palavra
Sérgio:
Se queria tanto me bater, pq ñ fez? Não é
macho o suficiente?
Leon:
0.o Sua sessão tinha acabado. Se vc ñ tem
coragem de assumir suas vontades, ñ posso
fazer nada
¯\_( )_/¯
Mas se vc não apagar aquele tuite e falar a
verdade sobre o nosso encontro, me vejo
obrigado a entrar na justiça contra vc
Mordeu o punho fechado. Esse esquerdista era mais
difícil do que pensava. Geralmente, todos que viravam
assunto de seus vídeos se recolhiam pra fugir dos ataques
de seus seguidores, mas ali estava Leon, reagindo e
praticamente jogando a verdade em sua cara. Não seria
bom tomar um processo justo agora, faltando tão pouco
para o casamento, pensou.

Leon:
Vai por mim, vc ñ vai querer o clube todo
protestando na porta da sua empresa. Todo
mundo aqui tá me apoiando. Só vc pode
consertar essa situação agora, camarada
Um calafrio correu por seu corpo. Não queria nem
imaginar aquele bando de indecentes incendiando pneu na
frente da Enrique-se. Correu com os dedos no teclado do
celular.

Sérgio:
Ok, me dá um tempo
Leon:
Vou procurar um advogado ainda hoje se vc
ñ consertar essa merda
Foi depressa no aplicativo e deletou o respectivo
comentário. Talvez pudesse remediar a situação com o
pessoal depois.

Sérgio:
Já apaguei. Satisfeito?
Leon:
Ñ basta apagar, tem q explicar direito o q
aconteceu, q eu ñ te ameacei e q BDSM ñ
tem nada a ver com agredir pessoas
gratuitamente
Sérgio:
Com certeza. Paguei 450,00 só pra vc me
chamar de recalcado e falar imundícies
esquerdistas XD
Leon:
E vc adorou isso, ñ queria nem ir embora
Um pequeno sorriso de canto brotou em seu rosto.
Mesmo assim, não se sentia à vontade para admitir. Digitou:

Sérgio:
E se eu te chamasse pra almoçar, como um
pedido de desculpas?
Leon:
???
Sérgio:
Pode ser num restaurante perto daí? Aquele
japonês?
Leon:
Pode sim.Mas vc paga
Sérgio:
E a distribuição igualitária de bens? Vc não
era comunista?
Leon:
Muito engraçadinho XD tenho mais o q fazer
Sérgio:
Tá, eu pago.
Leon:
Certo.
— Yes! — Comemorou com o celular na mão, mas
primeiro teria que marcar presença na reunião do sogro,
infelizmente.

Cumprimentou Regina e Val na portaria. O rapaz do


design se chamava Nestor, ela lhe dissera. Reparou em
como ele o olhava de lado durante toda a reunião, mas não
estava preocupado com o que um reles funcionariozinho
achava dele e sim com o relógio: observava os ponteiros
marcharem lentamente em direção ao 12, imaginando o
que mais Leon poderia lhe propor...

— Você concorda, Sérgio? — O senhor Gentile, pai de


Camila, o encarava. Teve de pedir que repetisse a pergunta.

— Marcamos palestras para expandir a marca nos


próximos meses, inclusive depois do casamento. Queremos
saber se está de acordo.
— Por mim, tudo bem.

Sentada ao seu lado, a noiva o segurou pelo braço: —


Claro que teremos uma pausa entre as palestras para a
nossa Lua de Mel, não é, Amor? — Se limitou a imitar o
sorriso dela. Na verdade, sua ansiedade era tanta que tinha
até se esquecido de que ela estava ali.

Enquanto o sogro voltava à pauta, Sérgio tornava a


refletir: precisava evitar um processo e conseguir outra
sessão com Leon, antes que terminasse por fazer uma
besteira pior para matar aquela curiosidade. Imaginava que
ao ficar novamente cara a cara com ele, perceberia que
tudo não passara de tesão acumulado, igual em sua
adolescência quando os hormônios à flor da pele o faziam
pensar mais com a cabeça de baixo do que com a de cima.
Se fizesse logo o que quer que estivesse em seus
pensamentos, aquela vontade sumiria.

Ao fim da reunião, foi o primeiro a se levantar. Já ia


saindo quando Camila o alcançou.
— Liguei pra aquele restaurante que tu gosta e como
você tinha esquecido de fazer a reserva, eu mesma fiz!

— Ah, obrigado! — Merda, tinha se esquecido


completamente! Sorriu sem graça, passando a mão sobre a
nuca: — Sabe o que é, vou almoçar com um cliente de
consultoria agora...
— Não tem problema, podemos jantar! Ah, Amor,
melhor pegar sua maleta! — Ela apontou para suas mãos
vazias.
— Valeu! — disse, indo buscá-la. Ao voltar, a garota o
esperava fazendo biquinho com os lábios. Deu um beijo nela
e acenou do carro.

###

Depois de muito procurar por um estacionamento e


correndo o risco de ganhar um amassado na lataria de sua
BMW, Sérgio tirou o relógio de ouro do pulso e guardou-o no
bolso, voltando a colocá-lo ao chegar no restaurante.
Cumprimentou a atendente e pediu uma água. Estava
morrendo de fome, mas preferia esperar Leon para fazer o
pedido.

O restaurante cheio já esvaziava e ele não aparecia.


Debruçado sobre a mesa, começava a pensar que ele tinha
dado um bolo por vingança até que o homem apareceu de
camiseta branca, chinelo de dedo e bermuda curta colorida
que acentuava as coxas musculosas. Seus óculos escuros
refletiam o sol escaldante do lado de fora. Em seu terno,
camisa social e sapatos fechados, Sérgio sentia-se bem
menos afortunado. Acenou e ele logo veio, retirando os
óculos de sol.
— É agora que aparece um miliciano pra me matar ou
posso almoçar tranquilo?

— Quanta desconfiança!
— Então, já se retratou comigo?

— Bem, ainda não, mas não vamos falar disso agora.


Tô morrendo de fome. Ei, alguém aqui pode me servir!? Será
que é pedir muito? — Agitou a mão para o grupo de
atendentes. Leon arregalou os olhos, escondendo o rosto.

Ignorou e fez logo o pedido: — Um frango ao teryiaki


com uma porção de arroz e uma coquinha bem gelada pra
acompanhar. Mas tem que ser light, ouviu? Você ouviu,
garota? Você tem cara de desatenta que vai tombar minha
comida no chão, nem pense em fazer isso!

A funcionária acenou com a cabeça, se desculpando.

— E você, vai querer o quê?

— O mesmo, se não se importa. — Leon respondeu,


erguendo de leve as sobrancelhas. A garçonete correu com
o pedido deles. Bebericava a água, quando Leon murmurou:
— Você foi muito rude com aquela menina! Ela é uma
funcionária, não sua escrava.

— Vai me dizer que vocês do clubinho feliz não falam


exatamente assim com as pessoas? Que é, vai ficar me
julgando agora?
— Falamos, mas é tudo numa cena particular,
decidido previamente. Esse é o problema de vocês,
guardam toda a maldade pra despejar nos mais frágeis,
justamente porque sabem que não podem se defender. Eu
teria um prazer imenso em surrar você por isso. —
acrescentou, num murmúrio.
— E porque não tenta, bonitinho? — Sorriu, debruçado
na mesa.

Leon lhe devolveu o sorriso: — Não provoque o que


você não aguenta.

Ficaram numa batalha de olhares até que Sérgio se


deu por vencido, se apoiando no encosto da cadeira: — O
que esse bando de folgados faz que não aparece?
Esperaram mais um pouco até finalmente a garçonete
chegar com os pratos.

— Valeu, Ju! — ele disse, com um sorriso e a garota


sorriu de volta, com naturalidade. Eles já se conheciam, é
claro. Sérgio achou melhor não dizer mais nada até que ela
saísse de perto.
Começaram a comer em silêncio. Sérgio saboreou o
frango com molho adocicado. Tinha sido um erro ter
escolhido um lugar próximo do clube, percebia agora.

Como se tivesse lido seus pensamentos, Leon limpou


a boca com um guardanapo: — Eu conheço todo mundo
aqui. E a Jussara, cê vai pedir desculpas a ela.

— Tudo bem, eu peço desculpas a quem você quiser,


mas agora o que eu quero é saber de quanto você precisa
pra deixar pra lá essa ideia descabida de processo. Vai,
pode me dizer!

— É muita cara de pau... Acha que pode me comprar,


é isso? Eu só quero uma coisa, que é respeito. Não pode sair
por aí acusando os outros e ficar tudo por isso mesmo. Nós
fetichistas já sofremos muito com o preconceito e não
precisamos de mais gente alimentando mentiras sobre o
meio.

— Não vai desistir então?

— Não mesmo.

— Tudo bem. E se você me mostrasse um pouco de


como é essa... essa coisa de BDSM? Se fizer isso, pode ser
que eu mude de ideia.

Ele virou o rosto para o próprio celular, como que


ignorando a importância daquele pedido: — Já tenho
sessões marcadas pro resto da semana.

Hora de pegar pesado. Puxou um maço de dinheiro do


bolso e atirou-o sobre a mesa. Leon apenas olhava o bolinho
de notas de cem e cinquenta.

— Te pago o dobro se me mostrar como essa coisa


funciona. Tenho a tarde toda livre. — Sérgio voltou a dizer, a
testa enrugada em expectativa. — Dinheiro não é problema.

Ele continuou em silêncio por mais alguns instantes.


Sérgio sabia que era uma aposta alta com ele e consigo
mesmo.

Finalmente Leon expirou o ar, estendendo a mão


sobre a quantia.
— Mano, cê é doido! — Contou as notas depois de
mirá-las na frente da luz e guardou tudo no bolso da
bermuda.
— Te deixei com medo, foi?

— Não. É você quem tem que ter medo de mim. — o


doutrinador respondeu, com um sorrisinho.

Sérgio se limitou a pigarrear e pagou a conta.


Caminharam até o clube, porém ao invés da entrada,
pegaram outra rua e foram pela porta dos fundos.

Ao vê-los, Soraya cumprimentou Leon e arregalou os


olhos para ele: — O senhor de novo aqui? Sabia que ia
tomar gosto.

— Não tem nada decidido ainda, vou só explicar


algumas coisas a ele. Por favor, remarca as sessões de
hoje? — Leon entregou o dinheiro à drag, que balançou a
cabeça em compreensão e foi até o caixa.

No bar, uma dominadora pisava com o salto alto nas


bolas de um cara, enquanto outro puxava a rédea segura
entre os dentes de uma moça seminua com as mãos
algemadas para trás, fazendo as vezes de um cavalo. Sérgio
se perguntava se estava mesmo no ambiente certo para
ele.

Subiram até a masmorra que ficava no andar superior


ao invés do inferior, como se poderia esperar. Leon ligou o
ar e fechou a porta, oferecendo a cadeira para ele,
exatamente como no dia anterior. Estava de novo diante do
doutrinador e agora, teria de ouvir os termos dele.

— Não sei o que se passa nessa sua cabeça


desmiolada, mas BDSM não é sobre agredir pessoas. É
sobre poder e controle. É um vínculo delicado entre quem
detém o poder e alguém que oferece esse controle.
Dominador e submisso. Não é sobre subjugar uma pessoa,
mas conquistar esse poder e fazer por merecê-lo. Claro, pra
um fascista como você, eu devo estar falando grego.
— Não, não! Em primeiro lugar, não sou um fascista.
Fascista é um termo depreciativo que vocês esquerdistas
usam pra falar de quem não concorda com suas ideologias
violentas e terroristas. E em segundo lugar, eu entendi o
que você disse.

— Tudo bem. Sem entrar nos méritos ideológicos, eu


realmente tenho dúvidas sobre o que você acha que eu
faço. De que outra forma eu poderia pensar se você veio
aqui ontem mesmo me entrevistar e me expôs para os seus
seguidores como um desequilibrado? Ou você mentiu pra
eles e sabe muito bem, ou você realmente pensa assim. E
não podemos começar nada com você acreditando nisso.
Sérgio parou, atordoado com aquela lógica. Puta que
pariu, só queria levar uns tapas na cara, não ficar preso ali
por meia hora com o “senhor palestrinha”!

— Tantas desculpas pra se justificar... Preciso mesmo


ouvir toda essa bobagem sobre “vínculo delicado” e “fazer
por merecer o poder”? Porra, só faz as putarias do vídeo em
mim. É só isso que eu quero. E seria bom se fosse logo,
porque ainda tenho que jantar com a minha noiva mais
tarde.
Leon se levantou e abriu a gaveta, retirando uma
folha de papel. Depois, catou uma caneta e entregou a ele
como se estivessem em algum escritório e não num antro
de perversão e safadeza: — Aí, é um questionário pra eu
saber que práticas você curte ou não. Pode marcar talvez
nas que não tiver certeza.
Sérgio encarou o papel, sem acreditar no nível de
burocracia que precisava pra uma simples putaria no sigilo.
Marcou logo um “sim” em opções como “tapa no rosto”,
açoitamento, grampos. Não sabia bem o que era fisting,
mas ficou com preguiça de perguntar: marcou um “não”.
Outras, como golden shower, marcou um talvez, porque se
lembrava de ter ouvido o termo em algum lugar. Terminava
de marcar, quando Leon o interrogou:

— E a saúde vai bem? Alguma condição médica,


alergia, epilepsia, problemas na coluna, ou hipertensão?

Eu tô é com um hipertesão, queria responder.


Entregou o papel a ele.

— Nada, faço academia toda semana. Pra que quer


saber?
— Preciso saber quais os seus limites. Uma submissa
minha tem síndrome do túnel do carpo. Sabe, no pulso? Se
apoiar nele é uma das coisas que ela não pode fazer. Como
dominador, é meu dever prestar atenção nisso. — ele
explicou, retirando os anéis dos dedos e colocando-os sobre
a mesinha.
Sérgio concordou, admirando a preocupação dele com
aquele tipo de detalhe, como se fosse um médico ou
psicólogo com seu paciente. Também, podia dar um B.O.
feio se alguém passasse mal ali.
— O que faremos se chama cena ou sessão. Se tiver
algum problema ou quiser parar por qualquer motivo, pode
usar uma palavra de segurança. Ela serve pra não quebrar o
clima, pra quem gosta de dizer “Não, não faça isso!” mas
não quer realmente que o dominador pare. Pode ser
qualquer palavra.

Ficou pensando, até o próprio Leon sugerir: — Que tal


vermelho? Não se usa fácil em qualquer frase. A maioria usa
vermelho ou amarelo quando quer que pare ou diminua a
intensidade.
Mesmo preferindo azul, concordou com ele. Vermelho
era a cor do perigo e de tudo que não presta mesmo.

Leon retirou a camiseta, revelando um físico


trabalhado. Tinha o olhar fixo nele até perceber que o
olhava mais do que devia para um hétero. Ele pegou uma
peça estendida no potro atrás de si e atirou nele: — Aqui!
Era uma tanga de couro. Ficou olhando aquele
negócio e imaginando quantos caras já a tinham usado,
quando ele disse: — É nova, já até hidratei o couro. Posso te
dar como um brinde se continuar vindo. — ele falava com
um risinho, provavelmente se divertindo com seu embaraço.
Leon continuou a se despir, agora abrindo o zíper da
bermuda. Avistou o tecido esticado da cueca vermelha dele,
tão grande quanto os números das pesquisas de intenção
de voto em determinado ex-presidente.
Meu Deus, o que era aquilo? Sérgio não conseguia
tirar os olhos dele. Só voltou a se mexer quando ele apontou
o canto do quarto.

— Ali tem um banheiro. Vá se trocar. — Era aquela voz


de comando dele dizendo.
Foi logo, pendurando o terno no cabide. Fez o mesmo
com as demais peças, tentando não amarrotar muito, já que
não sabia se daria tempo de voltar pra casa antes de ir ver
Camila. O cabide caiu de suas mãos duas vezes enquanto
fazia isso.

Droga, Sérgio, não era isso que você queria? Era isso
o que eu queria, o tempo todo, concluiu. Abriu a cueca para
vesti-la, quando se deparou com o fundo dela, ou melhor, a
ausência de fundo. Só um fio dental, que ele teve o
pressentimento de ser a coisa mais incômoda do mundo, ter
algo relando no cuzinho dele o tempo todo. Não conseguiu
pensar nisso por tanto tempo sem que se torna-se algo
excitante, porém. Se vestiu, ajeitando os ovos no lugar e se
olhou no espelho vertical pendurado: podia ver toda a
bunda, quase como se estivesse nu. O cuecão com uma fina
corrente o cobria e o fazia pensar em personagens
estereotipados de tv. Um pensamento condenatório
atravessou sua mente ao imaginar que estava prestes a se
tornar o tipo de pessoa que ele tanto condenava, exceto
que não tinha feito nada ainda. Ele não era nada daquilo,
um fetichista. Era só... um cara curioso.
— Tudo bem aí? — Leon abriu a porta do banheiro.

Sérgio se surpreendeu ao vê-lo vestindo a mesma


calça que ele usara no dia anterior, as botas de couro.
Apenas a camiseta era outra, uma vermelha.
Instintivamente, virou de frente para ele, sua cabeça baixa
e as mãos juntas sobre a virilha como se estivesse prestes a
defender uma cobrança de falta.
Leon colocou as mãos sobre seus ombros. Mal teve
tempo de estremecer pelo toque firme dele, ele o empurrou
de leve, fazendo-o dar uma volta completa em torno de si
mesmo. Então, o segurou pelo queixo num movimento
brusco e sorriu: — Perfeito.

Não sabia o que responder. Se antes era como estar


na fila da montanha-russa e admirá-la de longe, agora
estava sentado no assento e segurando a barra do
brinquedo, assistindo sua subida cada vez mais alto.
— Venha. — ele disse, e ao fazer isso, o ar frio do ar
condicionado arrepiou sua pele seminua. Por algum motivo,
continuava com as mãos timidamente sobre os genitais. A
visão da janela descoberta arrepiou cada grama de seu ser.

Leon foi até a cortina, fechando-a. Deu outro meio


sorriso: — Pra quem estava há dois minutos batendo no
próprio peito e dizendo pra eu fazer tudo o que quisesse,
você não me parece muito confiante.
Aquela fala fez com que se recolhesse ainda mais.
Estava com medo de ser ridicularizado, de que Leon se
aproveitasse de sua fraqueza para expô-lo, que o criticasse
ainda mais por aqueles desejos contraditórios com tudo o
que acreditava. Ergueu os olhos para o alto por um breve
momento, quando ele disse: — Ei! Olhe pra mim.
Ele segurou seu rosto, as mãos grossas espalmadas
cobrindo suas faces quase por completo: — Eu não sou
apenas um sádico. Enquanto estivermos aqui, serei o seu
mestre. Seu professor. E você será meu servo e aluno. Vou
doutrinar você. O seu trabalho será me obedecer e acatar
todas as minhas ordens pra isso. E o meu trabalho será
puni-lo cada vez que fizer o contrário e retornar para seus
antigos hábitos. Se quiser só levar uns tapas, é melhor
procurar outro. Porque eu vou tirar o bolsominion que existe
em você e arregaçar ele, valeu?

Sérgio fez que sim com a cabeça. Sem que


percebesse, seus músculos se retesaram num reflexo.
— Se em qualquer momento você sentir algo e quiser
parar, é só usar a palavra de segurança. Se lembra dela?

— Sim.
— A partir de agora, vai se dirigir a mim como senhor,
sempre. — Ele pôs a mão sugestivamente sobre o cós da
calça e deixou um sorriso escapar por sua expressão séria:
— Sabia desde que te vi. Cê tava doidinho pra apanhar de
mim. Agora vai saber como é.
Ele voltou para a cadeira de madeira. Sentou nela, e
ordenou: — Venha aqui!
Sérgio teve um impulso de recuar em direção à porta.
Não era como se ele próprio tivesse pago pela sessão, mas
como se fosse uma pessoinha, uma criança que tivesse feito
besteira e estivessem lhe chamando a atenção.

— Venha já, servo!


Arregalou os olhos e foi, as mãos encolhidas.

— Ajoelha, pedaço de bosta! — ele gritou, fazendo


tudo estremecer ao redor.
Obedeceu, sentando em seus próprios calcanhares, os
joelhos contra o chão gasto de madeira.

Leon o olhava como ele próprio olhara Nestor no dia


em que lhe dera uma bronca: — Você é um submisso muito
rebelde. Mal me conheceu, já me arrumou um monte de
problemas com seus seguidores. E ainda me acusou de
mentiras na internet. Vocês bolsominions adoram uma fake
news, né? Eu vou dar uma coisa pra você gritar por aí
agora. — Mal disse isso, a mão dele voou sobre seu rosto,
acertando em cheio sua bochecha.
Sérgio pôs a mão sobre a face, a dor se espalhando
por ela como uma mensagem questionável de Whatsapp.
Baixou os olhos, recebendo outra bofetada, desta vez do
lado direito do rosto. Por mais que tivesse pedido por aquilo,
sentia junto da euforia uma vontade danada de sair dali.
Ergueu os olhos para ele, que continuou a estapeá-lo.
— Você se acha o tal, não é? Acha que é o
empreendedor, self-made man, merecedor da porra toda!
Você não é nada! É um zé-ruela com um pai rico que
sempre te deu todas as condições de ser alguém na vida, de
fazer a diferença. E virou o quê? Um coach financeiro. Uma
profissão honrada, se não fosse por seus conselhos furados.
Quantas empresas já faliram sob sua consultoria?
Engasgou, tentando umedecer os lábios, sua saliva
praticamente secando da boca. Foi como se tivesse levado
muito mais tapas do que tinha na realidade. — É mais difícil
do que parece. — murmurou.

Leon o agarrou pelas bochechas, erguendo seu rosto


até próximo do dele: — Como é? É muito difícil pra você, é?
Imagina como é pra Jussara, a garçonete que você humilhou
lá, no restaurante. Vocês, sapatênis liberais, nunca pensam
em mais ninguém além do próprio círculo de convivência,
né? Todo mundo pode chegar lá, na cabeça de vocês. Pena
que alguns já correram bem antes da largada, mas é a vida,
não é? — ele falava, o soltando de repente.
Sérgio se apoiou na parede para não cair.

De pé, Leon ganhava contornos de gigante: — Você


leva a vida vendendo besteiras em livros e palestras,
doutrinando adolescentes punheteiros e classe-média
metida a Eike Batista e quis vir aqui me dizer como o meu
trabalho é degradante? Francamente... — Ele voltou a
sentar, batendo no próprio joelho: — Venha aqui.
Levou vários minutos parado até Leon perder a
paciência e o puxar pelo braço para perto de si, dobrando-o
sobre seu colo. Antes mesmo que terminasse de se
posicionar, ele lhe deu uma palmada na bunda: — Quando
eu disser pra vir, é pra vir mesmo! Agora fica aí, com as
mãos no chão.
Engoliu em seco, a ardência do tapa demorando a
desaparecer. Ele era Sérgio Frazier, dono de um patrimônio
de milhões, filho de ninguém mais, ninguém menos que o
ex-senador mais rico do estado. Ninguém nunca em sua
vida tinha encostado um dedo nele, que diria colocá-lo de
bunda pra cima e bater daquele jeito. Talvez fosse hora de
desistir, pensou, quando a mão de Leon pousou outra vez
sobre ele, agora delicadamente. Ele acariciava o monte
pequeno e redondo que era sua nádega, a apalpando como
se quisesse medir a densidade muscular dela. Aquela
antecipação toda o estava matando.

Ele soltou um muxoxo: — Na sua biografia, você diz


que faz academia toda semana, mas dá pra ver que não
malha as pernas. O que é, tem joelho podre?
— N-não, senhor — lembrou depressa de acrescentar
o pronome de tratamento: — É que eu tenho vergonha.

— Vergonha de que, servo?

Demorou a responder, imaginando se o zangaria ou se


o faria rir: — De parecer boiola.
Ele deixou a mão sobre suas costas, como se o
consolasse: — Não é vergonha nenhuma ser ou parecer
boiola. Malhar as pernas é importante. Quer ficar parecendo
um cone de sorvete, com o tronco largo e as pernas
fininhas? A sua noiva vai sentir a diferença se você malhar.
Até o sexo fica melhor. Tudo fica melhor. Você passará a
malhar as pernas. Na sua próxima ida à academia, vai
procurar uma série de exercícios pra isso. E agachamento.
Um glúteo fraquinho desse não aguenta muita coisa, não. —
ele disse, voltando a acariciar a região de cima a baixo,
fazendo movimentos circulares parecidos com os de uma
massagem.
Sérgio fechava os olhos em deleite, quando um tapa
no meio delas o fez abri-los de novo, encarando o chão.

— Por que está apanhando, servo?

— E-eu fiz uma coisa ruim...Ai! — Não conseguiu


conter o grito quando outra palmada o acertou bem no
ponto usado para sentar.

— Especifique! — Ele deu uma série de tapinhas do


outro lado. Eram rápidos, mas lhe davam uma sensação
aguda de dor. Remexia as pernas, respondendo:
— Espalhei uma mentira na internet sobre o senhor!
Me descul...Aaai! — A mão de Leon o interrompeu,
descendo pesada sobre a nádega direita, arrancando outro
uivo dele.
— Vocês, bolsominions, acham que podem falar o que
quiserem dos outros e nunca enfrentar consequências. A
minha caixa de e-mails tá cheia de xingamentos e ameaças,
sabia? Você realmente acha que um pedido de desculpas
conserta isso? — Viu de relance ele se esticar para alcançar
um cabo fino de madeira.

Imaginava que seria um chicote, mas era uma


palmatória com área vazada em formato de estrela. Ela
tinha um lado macio de veludo e outro liso e duro de couro.
Tremeu, levando a mão para trás para se proteger, mas
Leon a empurrou contra suas costas enquanto brandia o
instrumento em seu traseiro descoberto. Uivava, latejando
de dor enquanto seu mestre falava:

— Você achou que podia fazer o que quisesse por ter


dinheiro e seguidores. Só não contava comigo! — E largou
mais uma série de pancadinhas, como se estivesse a brincar
com ele. Então, sem aviso, descia com toda a força.
Sérgio chorou. Agitava os calcanhares, tentando se
equilibrar e acabava mais preso ainda debaixo do braço do
dominador.

— Quando eu acabar, quero que escreva um pedido


público de desculpas. Tem que ficar visível para todos em
seu canal e em todas as redes sociais. Alguma pergunta?
Fungou o nariz: — O-o que devo dizer, senhor?

— A verdade: que eu nunca fiz nenhuma ameaça e


nem agredi você, pelo menos não sem consentimento. E
que suas visões sobre mim e os demais praticantes de
BDSM são preconceituosas e você lamenta por elas. Seu
cérebro de cloroquina consegue se lembrar disso?
Balançou afirmativamente a cabeça, as lágrimas
rolando por seu rosto.

— Ótimo! — Ele aplicou a palmatória mais uma série


de vezes, cada uma em um canto diferente. Sérgio tremia a
cada golpe, o calor da região se espalhando por suas pernas
e sua virilha.

Leon parou, contemplando o estado em que o


deixava. As mãos dele deslizavam pela tanga, puxando o
máximo possível o fio dental para logo depois soltá-lo. A
malha batia como um elástico em seu rego, provocando um
choque de dor e prazer. Os dedos dele passearam por sua
fenda até mais embaixo, tocando suas bolas. Ele agarrou
seu pênis, confirmando sua excitação.

— Mal começamos e já está de pau duro. Aposto que


se masturba com meus vídeos o tempo todo. Vocês
conservadores, são tão previsíveis... — Ele o soltou, e voltou
a brincar com seu fio dental, puxando-o para baixo até
retirar a tanga por fim.

Sérgio não sentiu muita diferença a não ser o alívio do


atrito do tecido com seu cu. Era como tirar um arreio de um
cavalo. Sua bunda continuava ardida e descoberta, mas seu
pau pendia agora entre as coxas grossas de Leon, que o
apertou entre elas e sua barriga: — Não vai gozar até que
eu permita, servo. Entendido? — Ele usou o lado macio do
instrumento, acariciando-o de leve enquanto afastava suas
bolas da linha de frente dos golpes. Quando já se
acostumava, o couro estalou novamente nele.
Gritou, sem fazer mais qualquer tentativa de se
conter. Estava em brasas, e seu pau implorando por alívio,
espremido entre as duas toras de carne que Leon tinha por
pernas. Tremeu todo, chorando e pedindo: — Por favor,
chega! Já estou satisfeito! Não aguento mais!

— Mentiroso! — ele gritou, acertando outra vez o


mesmo ponto dolorido: — Tá louco pra gozar, mas não fará
isso até eu terminar de encher o seu rabo de estrelas. Vai
ter mais estrela que propaganda do PT!

Sérgio fez uma careta: — Vocês falam tanto da


corrupção de hoje em dia, mas e o PT, hein? E o PT? — sua
fala foi seguida de um puxão de orelha e um berro dentro
dela:

— Cala a boca, servo! Aqui, na minha masmorra, um


animal como você não tem moral pra falar! Você quer
debater, aprende a ser gente primeiro! — E fustigou-o nas
pernas e nos braços, marcando-os. A dor inesperada lhe deu
uma recarga de adrenalina que reacendeu a sensação de
medo e prazer.

Como um artista manejando seu pincel, Leon usava


da técnica e da surpresa para criar uma obra de arte sonora
em seus nervos e pele, cada nova pincelada aplicando uma
nova tonalidade de rosa avermelhado nele. Sérgio mexia os
joelhos, o rosto há muito molhado, os olhos fechados e
apertados enquanto tentava aguentar calado a punição
infligida.

— Por acaso foi o PT quem desmontou o IBAMA no


pior período de secas? Foi o PT quem deixou o arroz e outros
produtos de cesta básica subirem descontroladamente
durante a crise do corona? Hein?!! Foi o PT quem ignorou
milhares de mortos? Responde!

— Não! Não! — gritou, e a palmatória desenhou um


arco no ar, aterrissando novamente em sua bunda
combalida. Urrou, sem se importar mais se outras pessoas
dentro do prédio ouviriam. Só queria que tudo acabasse
logo: — Perdão, mestre! Perdão! Sinto muito!

— Eu sei. Agora que estou aqui, você sente muito. E


vai sentir muito mais, pode ter certeza disso! — disse,
acrescentando mais uma dúzia de batidas rápidas que
fizeram Sérgio gemer, atordoado. Seu traseiro e suas pernas
formigavam e ele podia sentir o gozo se projetando das
bolas, seu canal se expandindo. Derramou tudo na perna de
Leon, que o xingou, dando-lhe um tapa no rosto.

Tonto, achou que ia cair, mas o doutrinador o segurou


firme, mantendo-o no colo. — Agora, vamos acabar com
isso. Conte comigo servo, até 13. Vamos!

— Um...

Paft!
— D-dois...

Paft!
— T-trêees...

Paft!
Sérgio parou, choramingando. Não aguentava mais de
dor, podia jurar que se olhasse para trás se veria em carne
viva. Mas Leon não quis saber.

— Continue! — gritou ele. — Continue ou vou


recomeçar a contagem toda do início.

Engoliu o choro, forçando a fala: — Qua-tro... Aaah! —


lamentava perante a mão implacável dele.
Ele parou, alisando sua pele marcada: — É bom que
você sinta cada golpe, cada pedacinho do sofrimento que o
governo que você ajudou a eleger tem imposto ao povo. Ao
menos aqui você parece sentir algo, pelo visto. Vamos,
continue.

— Cinco...Ai! — Tentava se prolongar para ter míseros


segundos de descanso, mas não podia fazer muito quando
Leon pousava os olhos escuros sobre ele. Lá pelo nove,
sentia que seria capaz de mijar na perna dele de tanta dor.
Nunca imaginava que uma surra seria tão dolorosa.
— Vamos, servo! Dez, repita!

— Não, não! por favor...


Ele olhou para cima, inspirando fundo: — Vai apanhar
o dobro se demorar.

Fechou os olhos, agarrando o chão. Demorou meio


minuto até conseguir falar: — D-dez...
Paft, paft! Quando viu, urina quente fluía sobre a
perna dele, escorrendo até o chão. Enrubesceu, recebendo
de volta mais três pancadas.
Seus braços tremiam pelo esforço de se manter
deitado no colo dele e Sérgio sentia-se flutuar, como se
estivesse fora do próprio corpo. Era uma sensação
diferente, como um orgasmo, só que melhor. Voltou a si com
Leon chamando-o:

— A contagem, vamos! Termine!


— Onze...

Paft!
— D-doze...

Paft!
— Treze! — disse num só fôlego. A palmatória de
couro explodiu seu último estalo no centro de suas nádegas,
convertendo Sérgio numa geleia trêmula de soluços e
lágrimas. Ficou deitado no colo dele, totalmente humilhado
e dolorido, sem conseguir se mover.

Leon tocou a pele arrepiada de suas costas, falando


com mansidão: — Tudo bem, já passou, passou — Ele
acariciava toda a extensão de seus ombros e espáduas com
movimentos amplos e calmos: — Você aguentou melhor do
que eu esperava.

Sérgio expirou e sorriu. Aos poucos, seu diafragma


voltava a relaxar. Todo seu corpo doía, mas também lhe
dava uma sensação boa, como num pós-treino. Quando
Leon achou que ele já estava calmo o suficiente, o mandou
levantar.

Cambaleou, se firmando no encosto da cadeira.

— Como se sente? — perguntou ele.

— Bem — Permanecia agarrado ao encosto. Tinha sido


a experiência mais incrível em toda sua vida até ali. Mas do
mesmo modo que era impossível passar um elefante por um
funil, para Sérgio era impossível externalizar algo tão
sincero e forte através da peneira de suas crenças. Tremia.

— Precisa de alguma coisa, uma água?


Aceitou, tentando não se engasgar.

Com um pedaço de papel higiênico, Leon se abaixou e


limpou toda a área molhada e suja de sêmen. Ele rodeou a
cabeça do pau como se polisse uma estátua e então lhe
disse para ir ao banheiro se lavar.
Piscou atordoado e ele completou: — Sua noiva está
te esperando, não?

Se apressou até o box. O choque da água fria em seu


corpo entorpecido o ajudou a acordar de vez. Esfregou a
esponja macia de leve, percebendo as marcas deixadas na
pele. Nenhuma em região visível ao público, felizmente.
Terminava de secar-se, quando Leon apareceu na porta.
— Tenho uma coisa pra você. É pra ajudar com a
recuperação. Vire-se.
Apesar do banho ter aplacado seu ardor, um novo
arrepio surgiu quando ele aplicou um bocado de creme frio
em suas nádegas. — O-o que é isso? — perguntou.
— Gel de arnica. É bom pra sarar mais rápido. — ele
disse, lhe entregando o potinho: — Pode levar com você e
passar pelo menos uma vez antes de dormir até melhorar.

Sérgio segurou o potinho em suas mãos e sem


qualquer motivo, chorou de novo. Não costumava chorar
por qualquer coisa, mas sentia que era impossível parar
agora. Estava cansado, triste e confuso. E provavelmente
com fome também. Tinha acabado de apanhar de um
estranho e o próprio lhe dava um creme para levar e passar
no rabo. Era muita humilhação, e ao mesmo tempo era tão
excitante. Por que sentia isso?
— Calma. É a sua primeira vez, é por isso que se
sente assim. Logo tudo fará sentido, eu prometo. — Leon
lhe dizia, com um sorriso encorajador.

Deixou que ele o abraçasse e o levasse até a pequena


cama que tinha do outro lado do quarto. Ele ficou a acariciar
seu cabelo, como se fosse comum uma pessoa já adulta no
colo de outra.
— Você foi um bom submisso hoje. Quando passar a
se comportar direito, podemos fazer vários jogos que você
vai gostar muito. — ele falava, e Sérgio fechou os olhos,
apreciando o carinho e o controle terno dele. Nunca se
imaginara naquele papel, mas estar sob o domínio de outro
lhe rendera um prazer que ele sempre quisera e nunca
pensara ser possível nos papéis reservados para ele em
sociedade. Tinha sido criado para dominar e submeter os
outros, impressioná-los e agora se descobria
irremediavelmente rendido.

— Aqui, abra a boca. — Leon disse, enfiando um


pirulito em formato de coração nela. — O açúcar ajuda a
reequilibrar a química do corpo depois das cenas. Você está
assim por causa dos hormônios. Sabe, a adrenalina e
noradrenalina circulando no seu corpo. Naturalmente elas
servem para ativar a reação de luta ou fuga, mas aqui, elas
são apenas parte do prazer. — ele explicou, acariciando seu
rosto. Beijou sua testa e apontou de novo o banheiro: — Vá
se trocar.

Suas pernas ainda tremiam quando chegou no


cômodo minúsculo. Parou em frente ao espelho,
examinando as marcas: ostentava uma dezena de
estrelinhas vermelhas sobrepostas por sua bunda, pernas,
costas e braços. Estava mais vermelho que o Foro de São
Paulo. Passou de leve os dedos sobre as manchas,
arrepiando-se com o formigamento e a ardência delas. Sua
ereção já tinha esvanecido. Ficou mais alguns instantes a
admirar o primeiro impacto de Leon sobre si. Imaginava
como conseguiria sentar para dirigir, quando a lembrança
do jantar com Camila lhe veio à mente.
Buscou as roupas do cabide. Vestiu a cueca, o tecido
causando-lhe um estremecimento, mesmo com o creme
aplicado amortecendo a sensação. Já vestido, conferiu sua
imagem no espelho: no rosto, nenhuma marca a não ser
uma leve vermelhidão que poderia ser confundida com um
rubor qualquer. Encontrou um perfume masculino dentro do
armário e perguntou a Leon se poderia usá-lo.
— À vontade. — ele respondeu.

Borrifou um pouco em seu próprio pulso. Era forte,


mas interessante. Arrumou o cabelo e ajustou o colarinho e
os bolsos, conferindo se seus pertences estavam todos ali.
Ora, é claro que estavam, pensou se recriminando. Leon
podia ser um comunista safado, mas não era ladrão como a
cambada do PT. Era apenas um cara legal cooptado por
pessoas ruins. Não tinha esperanças de virar o jogo
enquanto estivessem em cena, mas imaginava que,
conforme mantivessem contato, poderia fazê-lo entender
seu ponto vista melhor. Saiu do banheiro com o pirulito na
boca, o terno dobrado no braço.
Com esfregão e pano, Leon ainda limpava a sujeira
que ele tinha deixado no chão. Ficou parado, olhando-o em
silêncio. Perto dele, era como se continuasse de fio-dental,
esperando algo dele.

— Hoje eu limpo como cortesia, mas se acontecer de


novo eu vou esfregar seu rosto no chão e mandar você
limpar tudo, entendeu? — ele disse.
Balançou a cabeça: — Sim, senhor.

Leon apontou o celular em seu bolso e Sérgio se


lembrou. Abriu o aplicativo e digitou na frente dele:
“COMETI UM GRAVE ENGANO QUANTO AO LEON
DOUTRINADOR. ELE NUNCA ME AMEAÇOU E NEM ME
AGREDIU APESAR DAS MINHAS ACUSAÇÕES.
HUMILDEMENTE, RETIRO O VÍDEO E PESSO DESCULPAS A
ELE E À TODA COMUNIDADE PRATICANTE DE BDSM”.
— Tá bom assim?

— Quase — Ele tomou o celular de suas mãos,


corrigindo o erro de ortografia: — Tô vendo que você tem
muito o que aprender ainda, mas eu vou me encarregar
disso. — disse, com um brilho mordaz nos olhos.

Publicou a postagem sem parar para ver a reação em


cascata dos seguidores. Ergueu o rosto procurando por
Leon, mas ele já estava no banheiro, torcendo o pano num
balde. — Mesmo horário na próxima semana?

— Isso! Seja pontual. — ele respondeu, e Sérgio não


se atreveu a questionar o que aconteceria caso não
chegasse na hora.
Desceu as escadas e Soraya lhe cumprimentou. Ela
ria e só aí notou que continuava com o pirulito na boca. Por
alguma estranha razão, sentia-se melhor com ele e assim
permaneceu, chupando o doce até que o dissolvesse por
inteiro.

Sentar-se no banco se provou uma agonia e


frequentemente pensava em Leon conforme dirigia. O
doutrinador. Seu dominador.
Chegou no restaurante em cima da hora marcada com
Camila. Ela o abraçou na entrada. Não pode evitar ganir
com isso.

— Que foi, Amor? — A garota franzia as sobrancelhas,


analisando-o por todos os lados. — Você tá diferente. É
perfume novo, é?

— Peguei emprestado com um amigo. Tive que andar


muito e tô todo dolorido, só isso. Vamos entrar? — Colocou
o braço por sobre os ombros pequenos dela, se esforçando
para andar até o salão.

Pensou em Leon novamente ao sentar no lugar


escolhido por ela. Camila franziu a testa para ele outra vez:
— Você tá tremendo. Tem certeza que tá bem, Mozão?

Confirmou. No restante do tempo, ouviu todos os


planejamentos dela para o casamento: as flores seriam
girassóis, é claro, porque eram verde e amarelos. E o bolo
seria um naked cake enorme com uma metade recheada de
passas e outra com nozes, para agradar aos pais de ambos.
Camila elaborava a lista de convidados. Era importante que
sua prima chegasse em tempo de um voo direto de Maceió,
porque elas tinham sido muito chegadas antes do ensino
médio e estavam com saudades. Um problema seria a
reserva do hotel, Camila e ele ainda pesquisavam onde
passariam a lua de mel. Ele queria um lugar tranquilo, tipo
Gramado, e ela queria o Caribe.
— Só vamos casar uma vez, uma lua de mel, Sérgio!
— ela o chamou pelo nome e nisso, ele percebia que era
uma questão importante: — Gramado a gente vai qualquer
ano! Já falei com meu pai, ele ajuda a pagar. Quero um
destino internacional!

— Tá bom. — Alisou a própria coxa por cima da roupa.


A pontada que sentiu lhe trouxe alívio, o tipo de alívio que
se tem quando se puxa um pelo encravado ou se espreme
uma espinha. Algo tinha saído de dentro dele, e isso era
bom. Camila só queria ser feliz. Queria se bronzear na praia,
mostrar o biquini novo para as amigas. Ele queria fazer
parte dessa felicidade, ou ao menos, pensava assim.

Anestesiado, Sérgio olhava para a estampa


quadriculada da toalha de mesa. Quadrados vermelhos que
se interligavam uns aos outros. Quando viu, já estava
pensando de novo em Leon e na voz dele lhe prometendo
que tudo faria sentido. Intimamente, se agarrava a essa
esperança, imaginando como isso seria possível.

Não havia necessidade de quaisquer explicações:


sabia agora que era um pervertido como ele, e talvez até
mais por aceitar apanhar em lugar de bater. Não tinha o que
ser explicado. Isso era uma anomalia num conjunto até
então perfeito de sua personalidade. Como o amassado de
uma fruta na feira, Sérgio trataria de virar sua face
comprometida do olhar público. Era o correto a se fazer,
refletia, encarando o rosto iluminado pelas lâmpadas do
restaurante.

Camila gesticulava planejamentos mil. Sorria para ela,


por que não? Cruzou a perna por baixo da mesa, a pressão
adicionada reforçando aquele ardor residual. Ele mesmo
também estava feliz, imensamente feliz.

Logo a fome os fez dar mais atenção ao garçom


trazendo os pratos na bandeja.
Capítulo 04 - Dialética do senhor
e do escravo
 

Sentado em sua cadeira, Leon se ocupava de cortar


as finas tiras de camurça. Reunia-as em sua mão e as
costurava, pensativo. O som dos golpes de seu paddler de
estrela sobre a pele intocada de Sérgio não tinha deixado
sua cabeça ainda e frequentemente voltava a ele em
pensamentos. A ardência latejante em sua própria mão o
fazia imaginar como estaria seu alvo depois daquela sessão.
Tinha sido uma cena muito boa, tinha que admitir.

Com uma experiência considerável no ramo, já tivera


submissos e submissas de todo tipo. Por mais que adorasse
misturar suas próprias crenças políticas naquele jogo,
estava longe de se considerar um militante sério. Só queria
complementar sua renda e se divertir. Liberar seu
pervertido interior e ajudar outros a fazerem o mesmo.

Seu maior prazer era pegar um submisso rebelde e


domá-lo. Fazia isso frequentemente em suas conversões. O
problema era que, na maioria das vezes, os mais fervorosos
em suas crenças se provavam logo os menos determinados.
Já na segunda ou terceira sessão começavam a perder a fé
em suas próprias convicções. Mesmo os bolsominions mais
ferrenhos com o passar do tempo (e de seu chicote)
arrefeciam e admitiam que o mito não era “lá essas coisas”.
Querendo ou não, isso diminuía seu próprio interesse em
dominá-los também.

Sérgio era diferente. Não sabia explicar ainda, mas via


algo de inesperado nele. Ele era exatamente como a
maioria, é claro, mas determinadas atitudes o destacavam
do rebanho. Sérgio não era um ingênuo manobrado pela
mídia, mas um agente de manipulação, com atuação nas
redes. Se a maioria de seus clientes mugiam no Whatsapp,
repercutindo disparos pagos por entidades e sujeitos
escusos, Sérgio era dono de seu próprio canal, de uma
coluna num jornal de boa circulação, sem falar na influência
em redes pessoais. Ele brilhava revestido de algoritmos,
como um prêmio pendurado numa barraca de festa junina.
Quem diria que aqueles cachinhos castanho claros mais os
olhos verdes de aparência angelical escondiam ideias tão
autoritárias? Seria ele seu “submisso mor”, aquele com
quem poderia desenvolver o jogo por mais tempo, sem se
cansar?

Arrematou a peça, testando-a em sua própria coxa. As


tiras zuniram no ar e estalaram nela, provocando um leve
ardor que não chegou a deixar vermelhidão. Precisaria de
bem mais que isso para acontecer, sabia. Ergueu o açoite
outra vez num movimento mais amplo no mesmo ponto.
Uma pontada aguda se espalhou na região, deixando uma
mancha rosada de onde um suave calor emanava. Leon
sorriu, satisfeito. Pegou a mochila do curso e separou os
livros de que precisaria. Queria que tudo fosse excelente
para a chegada dele.
###

Sérgio se considerava pontual, na média dos


brasileiros. Em São Paulo, isso significava sair quase uma
hora e meia antes do horário marcado apenas para fugir do
congestionamento e estacionar o carro.

O tempo nublado era propício para usar um moletom,


o que lhe conferia a vantagem de poder repuxar o capuz
sobre o próprio rosto ao se aproximar da porta do clube.
Olhava para os lados, paranoico. Até a SUV que passava lhe
lembrava a de Camila, mas devia ser sua imaginação.
Entrou, cumprimentando Soraya de longe.

Ela tomava um drinque no bar: — Oi, gato! O Leon tá


te esperando, vai lá! — Ela fez uma mesura com o
canudinho.

Sérgio desviou o rosto, enrubescendo. Será que ela e


todos ali sabiam? E se Leon tivesse contado a eles tudo o
que tinham feito? Sentiu como se algo o pinçasse pelo
estômago, erguendo-o até o teto. Quase desistiu, quando
lembrou que já havia pago pela sessão. A última coisa que
faria seria desperdiçar seu próprio dinheiro. Se dirigiu até a
escada, a visão de um cara com grampos nos mamilos já
não o surpreendendo tanto quanto na semana anterior.

De fato, passara aquele tempo pensando em Leon,


sempre que sentava ou quando fazia a série de exercícios
para as pernas e glúteos na academia. No começo achara o
ato de se agachar e levantar diversas vezes humilhante,
mas a imagem do dominador sobre ele mandando-o fazer
aquilo o estimulara a continuar. Não se via praticamente
nenhuma diferença, mas Sérgio percebeu que já não sentia
um cansaço tão grande ao subir aquela escada. Talvez
devesse agradecê-lo, pensou, encontrando-o no corredor.

Ele vestia uma bermuda preta e uma camisa do


flamengo. Não se conteve diante disso: — Que foi,
acabaram suas camisetas de comunista?

Leon deu um risinho, claramente provocado: — Não. E


você, tá vindo de onde, La Casa de Papel?

Sérgio não se furtou de sorrir: — Como soube que eu


gosto dessa série? Por acaso fuçou minhas redes sociais? —
Olhava-o, desconfiado. Não queria que Leon achasse que
poderia expô-lo na internet.

— Só falei pela roupa. Gosto de saber mais sobre as


pessoas com quem eu brinco, mas nunca iria tão longe ao
ponto de stalkear. — ele respondeu, e Sérgio não viu
motivos para duvidar. — Entra aí.

Obedeceu, fechando a porta atrás de si: — Ah, já pedi


desculpas pra Jussara.

— Ela me disse. Do contrário, eu saberia e cê nem


pisava mais aqui. — ele respondeu.

Arregalou os olhos numa careta. Mas que convencido!


A masmorra continuava igual, exceto pelo potro trazido
mais para o centro e as cortinas pretas que já estavam
fechadas quando entrou. O ar condicionado zumbia fraco.
Cruzou os braços, encarando Leon sentado no pequeno sofá
plano que ele pensara ser uma cama. Ele parecia tranquilo,
mas Sérgio já tinha visto o lado mais bruto dele e agora se
mantinha a uma certa distância, não por temê-lo, mas por
“respeito”. Achava difícil diferenciar as duas coisas.

— Como foi a sua semana? Seus seguidores te


deixaram em paz depois do pedido de desculpas? — O
comunista levou a mão ao próprio queixo, se debruçando
sobre o joelho em ar contemplativo.

Sérgio achou que era muita sacanagem uma pergunta


óbvia daquela. Não ia deixá-lo cantar vitória tão cedo: —
Tudo bem, normal. Estranharam essa atitude, mas pra
maioria foi apenas prova de que nós, da direita, somos o
lado racional e sempre voltamos atrás quando erramos, ao
contrário da esquerda raivosa.

Ele ergueu a sobrancelha num sorriso sarcástico: —


Bom, a esquerda não me perseguiu por oferecer um serviço
na internet, é só o que eu sei.

— Ora, mas são exatamente vocês que mais


perseguem e cancelam as pessoas na internet! Nem você
pode discordar dessa afirmação.

— Eu diria que isso reflete muito mais a tendência


errática das redes em sempre procurar uma solução pronta
ao invés de construir alternativas menos punitivistas. Mas
você não veio aqui pra falar disso, certo?

Ainda de pé, Sérgio meneou a cabeça, erguendo a


mão: — Não, tudo bem. Eu gosto de te ouvir. Você é muito
inteligente, apesar de tudo.

Leon riu: — Quer dizer, apesar de comunista. Bom,


não sei o que você considera ser inteligente, mas como já
dizia um filósofo, existem indivíduos tão burros que não
conseguem vislumbrar quão burros são. Sendo assim, vou
levar como um elogio. Por que não se senta um pouco? —
perguntou, e Sérgio não conseguia dizer se o tom dele era
inocente ou malicioso.

Puxou a cadeira. Após uma semana seguindo a


orientação dele, já estava bem de novo.

— Nossa primeira cena foi um tanto bruta, então


pensei em colocar o pé no freio e conversar, sabe. A gente
quase não se conhece, afinal.

Sérgio franziu a testa, sua boca se tornando seca.


Leon queria conhece-lo melhor? Por quê? Pra quê? Será que
ele achava que...

— Olha, eu não sei o que você entendeu, mas eu sou


homem, tá? Hétero, entendeu? — Se levantou da cadeira,
desatando a falar: — Eu não quero te conhecer melhor, não
vou sair com você! Isso aqui é só uma putariazinha no
sigilo. Uma coisa que se faz quando se é macho, uma
válvula de escape. Não vou transar com você, e se você
pensa assim, acho melhor eu ir embora agora mesmo! —
falava, tremendo em ultraje.

Leon ergueu as mãos para ele, os olhos arregalados:


— Calma, da onde você tirou isso?
Sérgio retrucou, seu rosto tomado por um rubor
crescente: — V-você quem disse! Você quem estava dizendo
que...

Ele negou novamente, erguendo as mãos: — Não,


mano. O que eu dizia até você me interromper é que eu
preciso te conhecer melhor pra fazer o meu trabalho! Sabe,
isso aqui não é que nem nos filmes. Uma relação
dominador/submisso é muito frágil e necessita da mesma
atenção que qualquer relacionamento por aí. Se eu não te
conheço bem, as chances de fazer algo que tu não vai curtir
são enormes. Não posso simplesmente pular essa parte. —
Se acomodou melhor na cadeira, olhando-o de lado: —
Vocês, bolsominions, têm essa mania de se constrangerem
com coisas mínimas e saírem por aí espalhando pânico
moral.

Sérgio balançou a cabeça, concordando. — Tudo bem.


Não sou um falso moralista como você pensa. — Baixou o
rosto: — Admito que gostei... d-do que você fez comigo
naquele dia.

A face de Leon se iluminou conforme ele erguia o


queixo, com um sorrisinho.

Sérgio fingia olhar para a pilha de livros ao lado dele.


Identificou o exemplar de sua própria biografia ali: — Olha
só, você ainda tem! Já leu alguma coisa?
— Leio quando tenho tempo. Acho que parei na
metade. — ele respondeu, olhando a capa e a contracapa:
— Foi você mesmo quem escreveu?
— Não, contratei um ghostwriter. Não tinha tempo pra
isso.

Leon balançou a cabeça, sem dizer nada. — Gosta de


ler?

— Claro. Desde que não seja o Decálogo de Lênin, ou


aquele livro do candidato poste que defende incesto, eu
gosto. Sou bem eclético.
— Hum, tá. O problema é que esses livros que você
citou não passam de fake news até antigas da direita
conservadora. Já provaram que esse “Decálogo de Lênin”
era um documento falso usado como propaganda
anticomunista por agentes dos Estados Unidos durante a
Guerra Fria. Não preciso nem dizer que essa alegação de
defesa do incesto no livro do Haddad também é mentirosa,
né?

— Pois eu acredito! Se está na internet e tanta gente


já leu, deve ser verdade.

Ele riu: — Bom, vários pesquisadores já desmentiram


isso, até mesmo conservadores.

— Vocês, esquerdistas, podem muito bem estar


escondendo o jogo. — resmungou, ao que Leon
imediatamente o encarou:
— Quer dizer que você não confia em mim?

Sérgio parou, sem saber o que dizer. Não era questão


de confiar, a “cuestão” era que Leon poderia estar sendo
influenciado por intelectuais esquerdistas malignos, do tipo
que Gramsci se orgulharia. — Eu acho que confio em você.
Só não confio no pessoal do seu lado.

O dominador juntou as palmas das mãos: — E qual foi


o último livro que você leu? Não precisa ser sobre política,
pode ser sobre qualquer coisa.

— Tem esse, mas aposto que você nunca leu e


provavelmente odeia.

— Qual?

— A Revolução dos Bichos.

Leon virou o rosto numa gargalhada.

— Viu, mal falei o título e já está debochando!


— Não tô debochando, é só que é tão previsível. Meus
colegas de sociologia todos já leram esse livro. Não é um
título exclusivo da biblioteca de vocês, liberais.

Sérgio achou que tinha disfarçado bem sua expressão


desconcertada, pois Leon continuou sério, ouvindo-o: — De
qualquer forma, até mesmo você vai admitir que essa é
uma das maiores críticas já escritas contra o comunismo.

— Coincidentemente, escrita por um comunista. —


Leon acrescentou erguendo de leve o próprio queixo.

Se inclinou, feliz que tivesse chegado nesse ponto: —


Exato! Ou seja, se até ele via que o comunismo nunca daria
certo...
— O George Orwell provavelmente viu seus ideais
serem traídos pelo governo de Stálin. Portanto, não há
crítica ao comunismo em si no livro, mas sim ao
totalitarismo. Foram os Estados Unidos que transformaram a
obra dele em propaganda anticomunista na Guerra-Fria.

— Pode não ter sido intenção do autor, mas a crítica


faz sentido se você parar pra pensar. Um sistema que
considera todas as pessoas iguais está condenado desde o
início simplesmente porque ninguém é igual a ninguém.

— Discordo, mas o que o Orwell queria com essa obra


não faz diferença agora. Mesmo assim, interessante ver que
comunistas são capazes de autocrítica, o que não parece
ser o caso de liberais e conservadores.
— Ora, nós simplesmente não temos uma ideologia
para criticar, é só isso.

Leon arqueou uma sobrancelha para ele, como se ele


fosse um alienígena. — Ah, não tem? Desculpe, mas sempre
pensei que a defesa do capitalismo e da “liberdade e justiça
para todos” fosse um tipo de ideologia. Sem falar no apego
à tradição e aos costumes que os conservadores têm,
sempre alegando um “declínio” da sociedade com relação a
qualquer progresso dos direitos humanos.
Estava gostando de toda a atenção que Leon lhe dava
com aquele debate, apesar de no fundo, ainda preferir algo
mais “bruto”.
— Não é uma alegação, mas a realidade. Claro que
você não deve estar preocupado com o declínio dos valores
na sociedade ocidental.
— Olha, o único declínio que eu gostaria de ver é o
das suas costas nesse potro. Deve ser bem interessante... —
ele disse, se levantando.

Só aí Sérgio percebeu que continuavam sentados: o


tempo passava tão rápido quando discutiam. Continuou
onde estava e Leon o contornou, colocando as mãos sobre o
encosto da cadeira: — Se lembra das regras e da sua
palavra de segurança?

— C-claro que sim. Senhor. — respondeu depressa.

— Tire a roupa.

Era uma ordem simples. Sérgio escondeu as próprias


mãos dentro dos bolsos. Se pudesse, teria escondido o rosto
com o capuz também, mas não queria parecer assustado. —
Que é, vai me revistar agora?

— Não sou PM. Só achei que você quisesse uma, como


é que era mesmo? Putariazinha no sigilo.
Sérgio continuou na mesma posição em que estivera
por quase meia hora discutindo. Não entendia como aquele
comunista conseguia pular de um assunto para o outro com
tanta naturalidade. Tremeu em expectativa. Apesar de tudo
o que tinha dito no início, sentia um calor se apossar dele, o
suor se acumulando em suas mãos. Não estava quente, mas
seu rosto e pescoço ardiam conforme Leon vinha até ele.
— No questionário, você marcou todas as opções que
tinham a ver com sexo. A única que você pulou foi o
“fisting”, olha aqui. — Ele lhe mostrou a folha de papel, e
Sérgio congelou frente àquela evidência. — Claro que, se
você não tá a fim, não vou insistir.
— Marquei sim, porque pensei que se referia a sexo
normal. Homem e mulher. Heterossexual.

— Ah. Nesse caso, talvez você devesse ir até a Soraya


e pedir pra ela te agendar com alguma das nossas dommes.
Eu recomendo a Rosa, ela é muito boa.

Sérgio abriu a boca, erguendo a própria mão.


Desgraça de comunista, não tinha pra onde fugir agora: —
Não, não quero trocar. Eu só...

— Tudo bem. Só farei o que você quiser. Sexo não-


hétero também é normal, mas se você não quer, não
precisa. Me desculpe se alguma carícia minha na cena
anterior te fez mal, é que o seu questionário dizia...
— Esquece o questionário! — terminou por
interrompê-lo. Seu dominador ergueu as sobrancelhas por
alguns instantes, o semblante concentrado. — Você não me
fez mal, na verdade eu gostei. Só não quero que você
pense...

— Eu não penso. É você quem está dizendo. — Leon


tornou a encará-lo, os olhos escuros como abismos
profundos de onde ele não teria como escapar, e nem
gostaria.
Sérgio não desviou o olhar, ouvindo a ordem
novamente: — Vai tirar a roupa e me obedecer, servo? Ou
eu mesmo terei de fazer isso?

Sorriu para ele, cruzando os braços: — Eu quero ver


você tentar.

Não precisou dizer mais nada. Leon o segurou pelos


ombros, levantando-o à força da cadeira: — Qual era a
regra, servo? Hum?
— O senhor é meu dominador. O que o senhor disser,
eu faço, senhor. — respondeu.

— Muito bem. — Ele o largou e repetiu: — Tire a


roupa.
Sérgio tirou a parte de cima do moletom, mas parou
na hora de abrir a calça jeans. Não era medo do que quer
que Leon fosse fazer com ele, mas sim vergonha. Na
primeira vez, achava que era só uma curiosidade, mas
agora sendo a segunda vez que o procurava, era como se
estivesse comprovando o quanto ele era um tarado. Ainda
não tinha conseguido processar aquilo em sua mente tão
bem quanto gostaria para não sentir uma certa culpa.

— Você vai tirar isso — Não era uma pergunta, era


uma afirmação. Antes que falasse, Leon enfiou a mão no cós
do jeans, abrindo o botão e puxando o zíper. Deixou que ele
prosseguisse, inconscientemente prendendo a respiração
por alguns instantes.
Seu dominador desceu a peça, não de uma só vez
como seria mais confortável, mas sim aos poucos, as mãos
encostando e apalpando-o. Estremeceu quando a palma
dele cobriu toda sua nádega enquanto ele terminava de
desnudá-lo. Levantou uma perna de cada vez para que ele
puxasse sua calça e cuecas para fora. Ele as atirou num
canto, se voltando para ele.
— Olha só — Leon o segurava de lado, deslizando a
mão sobre sua bunda sem o menor constrangimento. —
Você teve uma recuperação rápida. Usou todo o creme que
eu te dei?

— S-sim. — respondeu.

— Vai ter que comprar mais então.

Se remexia, tentando sair do aperto dele. O


dominador desceu a mão sobre seu traseiro, lhe aplicando
uma palmada no meio dele. Soltou um gritinho de dor.
— E fique feliz por não ser o camarada Stalin no meu
lugar. Você ia ver o que é bom pra tosse! — Ele o libertou,
ordenando: — Vamos, seu liberalzinho de merda! Quero
você debruçado sobre aquele potro ali.

Sérgio foi relutante até o equipamento. Desde que o


vira, já tinha fantasiado em estar ali, amarrado e totalmente
entregue às carícias e dores que Leon poderia lhe ofertar,
mas estar prestes a entrar naquela situação lhe deu um frio
na barriga. Colocou os braços sobre a estrutura de madeira,
sentindo o couro acolchoado se moldando por debaixo de
seu corpo. Estava apenas com o peito nu e os cotovelos
sobre ele quando Leon veio por trás de si:

— Tem que colocar o corpo todo aí, inclusive a barriga.


— Ele agarrou sua nuca, empurrando-o gentilmente, mas
com firmeza: — É assim que eu quero você: bem empinado
— disse, enchendo a mão com suas nádegas. Ele empurrou
todo seu quadril para o alto, e com pequenos chutes em
seus tornozelos, o fez afastar as pernas uma da outra.

A corrente fria do ar condicionado passou por ele,


eriçando a pele de lugares que normalmente não a
recebiam. Mal tinham começado e Sérgio já sentia o
batimento cardíaco acelerado. Virou o rosto para trás e
encontrou Leon um pouco afastado, como se admirasse
uma obra-prima.

Ele voltou com um par de algemas. Sérgio hesitou ao


se lembrar de histórias sobre alguém preso em algemas
após o parceiro ter um mal súbito ou coisa do tipo.

Leon o tranquilizou: — Não são de verdade. Elas se


abrem se forçar um pouco mais, olha. — Demonstrou na
frente dele. Diante disso, deixou que ele as fechasse sobre
seus pulsos, prendendo-os na parte debaixo do potro.
Ele voltou para sua retaguarda, dando um resmungo
baixo ao ver que tinha retornado à posição anterior. — Abra
as pernas! — ele mandou.

Sérgio obedeceu. Mesmo assim, seu dominador o


segurou pelos tornozelos, apartando-os. — Assim! Vai ficar
bem aberto pra mim. — Engoliu ar de susto quando ele lhe
deu outro tapa na junção entre a bunda e as coxas. Igual ao
primeiro, tinha sido um pouco mais fraco em comparação
com a última vez em que estivera ali, mas o fez manter-se
na posição enquanto Leon amarrava seus pés com as
cordas. Quando terminou, ele as puxou um pouco entre os
dedos, perguntando se estava confortável.
— Tanto quanto alguém poderia estar assim, eu acho.
— respondeu, sem esconder um sorrisinho irônico.

— Estamos confiantes hoje. Gosto assim. — o


dominador respondeu, bagunçando de leve seus cachos: —
Já leu Hegel alguma vez?
— Lá vem você de novo com essa filosofada que
ninguém se interessa...

Seu dominador/professor deu a volta, parando a uma


distância alarmante de seu traseiro: — O seu desprezo pelas
Ciências Humanas é lamentável. — proclamou, e antes que
pensasse em outra resposta engraçadinha, ambas as mãos
de Leon estalaram sobre sua bunda. Arfou, sentindo um fio
de saliva escorrer da boca.
— De acordo com sua biografia, você já esteve numa
faculdade conceituada, estudou nos melhores colégios com
todo o tipo de facilidades. Qual a sua desculpa pra não dar
valor ao conhecimento? Além de ser um babaca, é claro?

Sérgio engoliu em seco. A fala e o tom da voz dele o


faziam se lembrar vagamente das cobranças de seus pais
quanto a educação dele. Vagamente porque seu pai e sua
mãe nunca tinham realmente se importado se ele
reconhecia o valor da filosofia de Hegel ou do que quer que
fosse, mas sim se estava tirando notas “passáveis” que
justificassem o investimento deles. Educação servia para
ostentar um diploma e mesmo assim, tinha falhado ao ter
de trancar a faculdade. Mas naquele curto espaço de tempo
que tinha para responder, não conseguia esconder a mágoa
que sentia de todos aqueles acadêmicos seguidores de
Gramsci:
— Eu dou valor ao conhecimento! Só não consegui
completar o terceiro grau por culpa das universidades
serem inundadas de doutrinadores esquerdistas! — bradou,
ao que sentiu uma fisgada: Leon o puxava pela orelha.

— Você quer dizer professores! É muito baixo usar


como desculpa uma suposta orientação ideológica deles pra
justificar seu fracasso. Admita, Sérgio você não foi um bom
aluno. Vamos!
Repuxou as algemas por debaixo do potro em
resposta à dor. Mesmo assim, achava injusto ter de dizer
aquelas palavras quando apostaria até suas cuecas que
Leon nunca lera nenhum dos teóricos do Liberalismo, muito
menos os conservadores: — Se ser um bom aluno pra vocês
é cultuar o velho pançudo do Marx, então eu nunca fui
mesmo um bom aluno!

Seu dominador deu um profundo suspiro, se


distanciando brevemente.
— Eu tô falando grego pelo jeito. Vamos ver se esse
flogger faz você entender. — Ele desfilou em sua frente com
o objeto. Parecia um pequeno açoite, com diversas tiras
finas e pretas.
Leon as sacudiu de leve sobre seu rosto e Sérgio pode
sentir a textura de veludo macio delas. Elas farfalhavam em
suas bochechas, testa e nariz: — Fiz este especialmente pra
você. Uso muito esse tipo, se desgastam rápido. — E
deslizou suavemente as pontas dos dedos por suas costas
enquanto retornava para o posto atrás dele.

Sérgio contorcia os dedos dos pés sobre o piso frio,


tentando reestabelecer o equilíbrio. Tremia de expectativa
imaginando que agora de certo Leon o castigaria
selvagemente por sua insubordinação, mas ele apenas se
dirigiu a um cavalete ao lado, armando-o na sua frente, na
altura de seu rosto.
Depois de ter enfim se dado por satisfeito com o
arranjo, ele foi até a pilha de livros sobre o sofá plano,
escolhendo o volume um tanto grosso e surrado:
“Fenomenologia do Espírito”. Ele bateu com o livro em sua
própria palma e o abriu cerimonioso no índice, passando a
folheá-lo na página que já estava marcada com um post-it.
Parecia não ter a menor pressa em nada do que fazia, e isso
só aumentava sua ansiedade.

Mesmo assim, Sérgio não se atreveu a dizer qualquer


coisa mais a seu “professor” e permaneceu em silêncio
assistindo-o buscar uma caneta marca-texto e sublinhar
uma parte da página. Finalmente, ele depositou o livro
aberto sobre o cavalete, prendendo as páginas dos lados
com o que parecia ser uma miniatura do Raul Seixas e uma
pedrinha de cristal vagabunda.
— Vai ler esse parágrafo que eu marquei, inteiro. E em
voz alta. E não vai parar enquanto não terminar. — ele
disse, se posicionando atrás do submisso.

Engoliu em seco, focando no conteúdo assinalado.


Leu: — “Hegel, a dialética do senhor e do escr-AAAU!...” —
As tiras do flogger sibilaram no ar, aterrizando em sua
bunda desprotegida num estalo agudo. Uma pontada se
espalhou rapidamente por toda a região, fazendo Sérgio
gemer baixo.
— Continua! — Leon ordenou.

Procurou a linha onde havia parado, se dando conta


de que mal passara do título: — “Em Independência e
Dependência da Consciência-de-si, Hegel propõe uma
abordagem sobre consciência propondo uma alegoria-AAH!
— Mal tinha se recuperado, sobressaltou-se com um novo
golpe, desta vez do outro lado. E depois, outro, bem no
centro.
Seus músculos se retesavam num reflexo, mas Sérgio
descobriu logo que com as pernas amarradas e afastadas
como estavam, não havia a possibilidade de contrair os
glúteos o suficiente para amenizar o impacto. A dor não era
forte como a do paddler, mas o ritmo rápido do açoite e a
quantidade de golpes sobrepostos logo foi o bastante para
que começasse a se remexer sobre o potro.
— Eu mandei parar de ler por acaso? — berrou ele,
erguendo a mão. As tiras batiam de cima a baixo dele,
ininterruptamente. Não entendia como ele conseguia esse
ritmo, até ver o flogger girando no dedo dele, pendurado
por uma espécie de chaveiro.

— “...nas figuras do senhor e do es-CRAAAVO! como


representantes da dialética do reconhecimento da
consciência de-SIII! um dos fenômenos da existência huma-
NAA!” — Parou, lambendo os próprios lábios. Era quase
impossível se concentrar na leitura, com aquelas tiras de
veludo batendo sem trégua sobre seu traseiro. Leon era
cuidadoso para que elas acertassem só ali e não em suas
bolas, mas ele podia sentir o ar se deslocando sobre elas
com o movimento do flogger e a proximidade daquele
contato o excitava tanto quanto o calor que se espalhava
por sua pele ardida.
— “Os dois momentos são como duas figurAAAS!
opostas da consciência: uma, a consciên-CIAAA!
independente para a qual o ser-para-si é a essência; outra,
a consciência dependenTE! para a qual a essência é a vida,
ou o ser para um Outro. Uma é o senhor, outra é o
escravAAAH!”

Retorcia os pés, até que os golpes pararam e ele


ouviu a voz impositiva de seu dominador: — Já está ficando
bem vermelho, como suas notas na escola, pelo visto.
Ele passou a mão de leve e deixou-a sobre ele por um
instante: —Tá bem quente também. — Se abaixou do lado
dele. Sérgio sentiu o próprio rosto também esquentar
quando ele apontou seu pau melado: — Tá meia-bomba
ainda, mas vamos resolver isso. — Ele deu um sorriso
enigmático e colocou o açoite de veludo sobre a mesinha,
apanhando um par de luvas de borracha pretas. Arrumava-
as sobre os dedos numa série de estalos que faziam Sérgio
estremecer. Será que ele ia...?
As mãos dele agarraram suas nádegas, afastando-as
para os lados: — Vamos ver essa rachadinha agora.

— Isso é propriedade particular! Tira as patas daí, seu


comunista!
Como previa, Leon não gostou nem um pouco. Com
um aperto firme nelas, ele berrou: — Não leu o que eu
mandei? Você é meu servo! Eu tenho todo o direito de ver o
que eu quiser! Vai ficar quieto enquanto eu te examino, ou
usar sua palavra de segurança. Fora isso, eu não vou parar.
Se lembra da sua palavra de segurança, servo?

Sérgio respondeu que sim. Ele realmente se lembrava,


só não queria parar. Também não queria deixar as coisas
“fáceis” para Leon, então continuou se remexendo nos
limites que tinha para se contorcer: — Sai daí, seu
esquerdista safado! Eu não te dou permissão pra olhar aí!
Ignorando todos os seus protestos, ele continuou a
abri-lo, deixando-o totalmente arreganhado. A respiração de
Leon misturada a corrente de ar fria chegava a ele, fazendo-
o ter uma ideia do quanto estava exposto e indefeso. Saber
que seu dominador poderia fazer o que quisesse e ele não
teria como reagir paradoxalmente dava a Sérgio toda a
liberdade que sempre quisera para explorar seu próprio
prazer e nunca soubera o quanto ansiara até aquele
momento.
Esperou imóvel, até que o doutrinador concluiu a
vistoria: — É, pelo menos você lava a própria bunda. Seus
coleguinhas conservadores parecem não gostar muito de
higiene. Depois falam das feministas. — Ele riu, voltando a
se abaixar por detrás dele.

Congelou ao ver Leon pegar um tubo de lubrificante e


espremer um pouco do conteúdo no dedo. — Ô, meu, o que
você vai fazer aí?
De repente, Sérgio sentiu uma pressão e uma dor
surgindo do recôndito mais escondido e preservado de seu
próprio corpo: — Tira, tira! — gritou, conforme Leon
avançava com a ponta do dedo enluvado.

— Calma, só estou sentindo a sua musculatura.


Relaxe. — ele disse, sem recuar um milímetro. O mantinha
na mesma posição, falando: — Faça de conta que está lendo
uma matéria no jornal sobre o preço do arroz durante a
pandemia.
Sérgio tentou fazer como instruído, mesmo assim,
teve de gemer e gritar quando o dedo afundou mais pra
dentro, invadindo toda sua propriedade privada. Era esse o
plano final dos comunistas, pensou, sentindo a última
fronteira que tinha com Leon ruindo igual às esperanças que
os eleitores do Trump tinham pelo muro na fronteira.
Curvava o quadril para baixo, ao mesmo tempo em que
uma sensação estranha se apossava dele. Enquanto um
lado seu queria se ver livre daquele dedo invasor, outro
queria acolhê-lo com flores e boas-vindas.
Leon movimentou-o um pouco, girando de um lado
para o outro e rodeando suas pregas. Espalhou mais
lubrificante sobre elas, fazendo um pequeno movimento de
vai-e-vem, a ponta do dedo abrindo caminho um pouco
mais e tocando-o mais fundo, o calor de suas nádegas se
misturando à sensação de ardência em seu cu. Sérgio
sentiu o pau endurecer. Queria poder se tocar, mas Leon
não tirara suas algemas, e depois de todas as grosserias,
provavelmente não o faria tão cedo.

— Continue a leitura, servo.


Já não se lembrava de onde havia parado, mas Leon
fez questão de apontar com o dedo desocupado.

— “Cada um, senhor e escravo, está certo de si, m-


mas não do outro... E assim, sua própria certeza de si não
tem verdade alguma, pois que sua verdaAaa...” — Ele
ampliou os movimentos, metendo o dedo várias vezes sem
nunca retirá-lo por completo. Então, dava um giro e depois
metia novamente, enquanto Sérgio fazia o possível para
prosseguir com a leitura. Seu diafragma parecia se fechar e
era quase impossível articular as palavras:
— "S-sua verdade só seria se seu próprio ser-para-si
lhe fosse apresentaaAA... — Leon enfiou um segundo dedo
lubrificado e envolveu seu pau com a mão, começando a
manipulá-lo. — "como objeto independente ou, o que é o
meeEEEsmoOoo, o objeto como essa pura certezaAaa de si
mesmoOoo...”
— Quando eu terminar, nunca mais vai pensar em
Hegel do mesmo jeito. — ele disse, apertando seu pau bem
na base enquanto enfiava os dedos sem trégua em seu cu.
Gemia, até ele parar, sem mais nem menos: — Quer gozar,
não quer, servo? Fale bem alto pra mim.

— E-eu quero gozar, senhor! Me deixa gozar, por


favor...

— Diga o meu nome, servo!

— Eu quero gozar, senhor Leon, doutrinador! P-por


favor! — gritou, sem se importar se alguém mais ouviria.
Leon retomou o ritmo da punheta, ainda trabalhando
seu cuzinho com os dedos. O orgasmo veio, parecendo
brotar de algum lugar inalcançável dentro de si. Seus pés e
mãos presos se retorceram enquanto gemia e se derramava
na mão de Leon.

Seu senhor recolheu o gozo entre os dedos,


espalhando-o em seu rosto quando agarrou sua face: —
Tome! Espero que esteja satisfeito!
Sérgio lambeu tudo e sorriu, fechando os olhos.

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Após aquele evento apoteótico-erótico, poderia ter
dito muitas coisas, a maioria das quais talvez se
arrependesse depois. Mas quando terminou de se limpar e
se vestir, o que saiu de sua boca foi: — Então você faz
sociologia? — Era uma pergunta idiota, visto a obviedade
dela, mas ele não sabia outra forma de retomar a conversa
sem que dissesse “Esse foi o maior orgasmo da minha
vida!” Por mais que fosse verdade (e pelo Mito, como era)
não estava pronto para admitir e talvez nunca estivesse.
Leon sorriu, passando um paninho com álcool no potro
e no flogger: — Faço sim. Pela manhã. É o único horário em
que eu não atendo aqui, percebeu?

— E pra quê estudar isso? Faria melhor investindo


seus lucros daqui em ações na bolsa! Conheço um cara que
tem as dicas quentes e...

— Se é pra apostar meu dinheiro, prefiro jogar no


bicho do Seu Zé da esquina. Muito mais confiável e
rentável.

— Você parece uma sátira de comunista de Twitter, é


inacreditável.
Ele riu de novo. Deus, esse homem nunca parava de
sorrir?

— E você é um projeto de bolsominion que deu muito


errado. Ou muito certo.
Sérgio franziu a testa, sem saber o que pensar
daquilo. — Aquela história de a gente se conhecer melhor,
como seria isso?
Seu dominador elevou as sobrancelhas, meneando a
cabeça como se aquilo fosse óbvio: — Ora, como qualquer
pessoa conhecendo outra. Podemos conversar um pouco no
barzinho lá embaixo. É mais privativo, digamos. — ele disse,
com uma piscadela.

Desceram até lá e ocuparam as cadeiras do balcão.


Ele pediu dois Cuba-Libres.
— Vai dirigir depois daqui? — Leon lhe perguntou de
repente.

Riu: — Vai querer controlar o que eu faço ou deixo de


fazer agora?
— Não. Só não quero meu submisso arriscando a
própria vida à toa. — ele respondeu, retendo seu copo.

— Tá, eu deixo meu carro no estacionamento e pego


um táxi, pode ser? — disse, pegando a bebida da mão dele.

Seu dominador ergueu o queixo e lançou um olhar


que o fez saber que não seria nada bom desobedecer
àquela recomendação.

— Prometo, tá bom? — disse, amenizando a expressão


taciturna dele.

— Algo que você deve saber é que não atendemos


gente bêbada e nem recomendamos o consumo de álcool
ou drogas antes das cenas. Eu quase bani as bebidas do
cardápio, mas isso espantaria a freguesia mais esporádica.
Sérgio balançou a cabeça, concordando: — Fez bem.
Já vi um bar falir porque o dono queria manter um aquário
com lagostas importadas! Sentimentalismo nessas horas só
dá prejuízo.
— E como. — Ele bebeu um gole do drink, sem tirar os
olhos castanho escuros de cima dele.

Sérgio reparou em como o cabelo preto e liso mesmo


grudado de suor caía em sua testa quase como uma franja.
Ele estava tão bonito. Tanto que ficou um bom tempo
apenas olhando-o, sem nem prestar atenção ao copo gelado
em mãos.

— Que é? Só porque tem “Cuba” no nome não vai


beber, é?

Sorriu, nervoso. Tragou o drink adocicado e o rum lhe


trouxe calor às suas bochechas numa sensação muito
semelhante com a de seu outro polo: — Olha, o que
aconteceu lá em cima... Eu não quero que você ache que
eu... Não me entenda mal, mas eu não sou um... você sabe.

Leon baixou o rosto e inspirou fundo: — Olha, eu


realmente me incomodo quando você fala assim. Eu não tô
aqui pra te forçar a nada e nem provar que você é alguma
coisa. Sabe quantos caras vem aqui atrás de um prazer
anal? Eu não teria dedos pra contar (e nem pra outras
coisas, aliás). Se você é hétero, tudo bem. Não tem nada de
errado nisso. Às vezes um cara hétero pode preferir que
outro cara o discipline, isso não tem nada a ver com
orientação sexual. BDSM nem sempre é acompanhado de
sexo. Mas eu tô achando que o seu problema não é esse.

Sérgio ouvia a tudo com atenção, mas sua cabeça


antiquada lutava com esses conceitos novos como alguém
tentando encaixar uma esfera num buraco quadrado. A
verdade é que não queria sequer pensar naquilo. Morria de
pavor de ser chacota de alguém e se fosse por algo assim,
era capaz de empacotar de verdade: — Eu só queria deixar
isso bem explicado.

Ele tomou outro gole: — Sabe, além de hétero ou gay,


você poderia ser bissexual. Quero dizer, existe essa
possibilidade.

— Pra mim não. Eu vim de uma boa família, não me


encaixo nessa definição aí.

Leon balançou de leve a cabeça, encarando-o


fixamente. Ele juntou as mãos e levou-as à boca, parando
por um momento nessa posição.
Por mais que já tivessem saído da cena, uma pontada
de dúvida e apreensão o fisgou no peito. O teria deixado
chateado com o que acabava de dizer? Não queria
decepcionar seu dominador, logo agora que tinha visto
quanto prazer ele poderia lhe proporcionar. Por mais que
detestasse, ele tinha razão: um vínculo estava sendo
formado entre eles. Dominador e submisso, senhor e
escravo. Um instinto mais forte que qualquer crença ou
dogma tinha sido despertado e Sérgio não queria dizer
adeus àquilo. Se tinha magoado Leon, faria o que fosse
preciso para corrigir seu erro:

— Você ficou chateado? É, ficou, eu sabia. Olha, me


desculpa, eu não queria ter dito isso. Se você é
homossexual, bissexual ou trissexual, não importa pra mim,
tá?

Leon quase engasgou, sua risada alta chamando a


atenção da mulher-pônei estacionada num pilar perto do
banheiro. Sérgio escondeu o rosto:

— Tá maluco? Tá todo mundo olhando!

— Desculpa, é que você é tão engraçado... — Ele se


recuperava: — Agora que me deu a deixa, vou aproveitar:
eu sou bissexual, ok. E trans.

Sérgio arregalou os olhos como se Leon tivesse ficado


azul de repente. Por mais que se esforçasse, não conseguia
imaginá-lo num vestido.

Ele explicou, mais sério: — Eu sou um homem trans,


tá bom. É isso.
— E por que não me contou antes? Teve medo de eu
desistir, foi?

— Não. Só não contei porque é muito incômodo ter de


dizer “oi, eu sou Leon e sou trans” a todas as pessoas a
quem eu me apresento. Eu nem sabia se ia te ver de novo!
— Mas e o meu direito de escolha? E se eu não
quisesse ser disciplinado por um cara trans?
— Ah...coitadinho — Leon deixou o copo na mesa,
acariciando o queixo dele e fazendo beicinho: — sabe
quanta merda eu já ouvi pra que gente como você tivesse o
“direito de escolha” preservado? Com a minha saúde
mental ninguém se importa, né? Não é uma questão de
fingir ser uma coisa que eu não sou. É só que eu não quero
me expor à toa.

— Tudo bem, mas você meteu o dedo no meu cu. É


muita intimidade.

— Não, isso é estímulo. Intimidade é construída, o que


eu tinha proposto no início, mas você não quis me ouvir.
— Tá, você tem razão. — disse, se lembrando da
primeira cena deles. Não conseguiu conter a curiosidade: —
Quer dizer que você nasceu menina? Mas e aquele, er,
negócio todo que eu vi quando você...
Ele baixou um pouco o rosto, sorrindo: — Aquilo era
uma prótese, ou packer. Foi cara pra caralho, literalmente, e
não me serve pra muita coisa além do volume. Mas acho
que isso não seria um problema pra você, seria? — Leon lhe
deu aquele olhar brincalhão que fez Sérgio pensar que
estava de quatro novamente, gozando só com os dedos
dele.
— Não. Não seria. — disse, sorrindo de volta. Da
mesma forma que tinha dito antes, por mais que não
estivesse acostumado à ideia de ter uma relação BDSM com
um homem, ainda mais um homem trans, sentia que isso
não seria nenhum sacrifício. Leon sabia como tirá-lo do eixo
completamente, fosse apenas com um gesto ou mesmo
uma palavra. Tanto que o fez de novo ao perguntar:

— E qual é a da sua noiva? Ela sabe que você vem


aqui?

Sérgio engoliu em seco. Pensar em Camila estando


sentado bem ali com ele naquele ambiente lhe deu uma
sensação de esmagamento no peito. Leon o olhou
preocupado.

— Não. Ela não sabe. — disse em voz baixa.

— E você planeja contar isso a ela?


A pergunta o acertou como um soco. Ficou em
silêncio, até finalmente responder: — Não.

Seu dominador pegou o volume do balcão, com um


risinho contido que não escondia sua decepção: — Era o
que eu pensava.
Virou o restante da bebida no copo, tentando desviar
o assunto: — E esse livro?

— Eu pretendia te dar como lição de casa para uma


próxima sessão. Agora, acho que será um presente de
despedida meu.

— Despedida? Mas — sua voz falhava. Não conseguia


entender por que de repente Leon o tratava daquela
maneira: — Você ficou ofendido com algo que eu disse? Me
perdoa, eu...
A voz dele caiu para um tom grave: — Sabe, mentir
pra sua noiva é um problema. Eu realmente não posso
continuar uma relação dominador/submisso com você desse
jeito. BDSM é pra ser são e consensual. Você vai acabar se
machucando e magoando alguém de verdade, Sérgio. Sinto
muito, mas vai ter que procurar outro dominador. — Ele lhe
entregou o livro.
O coach não conseguiu dizer nada. Pegou o livro como
se fosse apenas mais um ato de submissão do dia. Não
estava preparado para uma resposta como aquela. Que
canalha.

— Fala com a Soraya se quiser. Não sou o único que


faz as coisas que você curte. Tem um monte de
companheiros por aí, se me entende. — Ele sorria, como se
quisesse convencê-lo.
— Já sei, queria me dar um pé na bunda e inventou
essa desculpa agora. Se quiser pode dizer na minha cara
que você não me quer mais, ou melhor, que não quer mais
o meu dinheiro!

— Eu estava adorando fazer de tudo com você, seu


safado. Se você contar a sua noiva e ela concordar será
bem melhor, pode apostar.
Sérgio esfregava as pontas dos dedos no livro, sem
acreditar naquela reviravolta: — Você diz que realiza
fetiches, mas não aceita que eu queira trair minha noiva.
— Também tenho limites, sabe. BDSM é sobre limites.
Eu respeito os seus e você os meus, é simples. Só não quero
ser xingado por cônjuges enfurecidos dentro do meu próprio
estabelecimento.

— Pois está ótimo então! — terminou por dizer, vendo


Leon balançar a cabeça e deixar o copo de lado.

— Não é pessoal. Só não quero fazer parte disso.

O rum lhe caíra mal. Sentia-se à beira das lágrimas


quando se forçou a apertar a mão dele, aquela mão grossa
que tanto êxtase lhe proporcionara.

— Até qualquer dia. — Ele lhe deu um breve aceno ao


se distanciar em direção a um grupo próximo de amigos.
Sérgio retribuiu com ainda menos entusiasmo. Saía
com o livro debaixo do braço, certo de que se sua vida fosse
um filme, naquela hora estaria chovendo canivetes.

Distraído, se dirigia em direção ao estacionamento


onde deixara o carro, folheando brevemente as páginas
repletas de marca-texto, até se lembrar da voz de Leon lhe
dizendo para pegar um táxi depois dali. Do modo que
estava, se perguntava se realmente queria andar tanto até
o ponto mais próximo.
Via as horas no celular quando se deparou com uma
série de ligações perdidas enquanto o deixara no silencioso.
A sequência de mensagens tirou a cor de seu rosto. Pegou o
primeiro táxi que viu e ligou pra mãe, tremendo ao ouvi-la:
— A Camila tá aqui, no hospital! Onde é que você
está?
Capítulo 05 - “É golpe!”
 
Seu cérebro travara de tal forma ao receber aquela
notícia que não conseguia dar nenhuma resposta. Só
perguntava pra qual hospital ela tinha sido levada e a
pergunta mais difícil: — Como ela está?

— Ela bateu com o carro. Está fora de perigo, mas o


doutor achou melhor que ficasse em observação. Faz duas
horas que tô te ligando, Sérgio!
— Já tô chegando, mãe! Vou desligar!

Encontrou-a na sala de espera. Ela se levantou da


cadeira, as sedas finas de sua blusa se agitando ao vê-lo: —
Fiquei te ligando dezenas de vezes!
— Tava num encontro com um editor. — disse, dando
graças à Deus por Leon ter usado nele algemas forradas
que não deixaram marcas nos pulsos.

— Não é pra mim que você tem que se explicar! — Ela


agarrou seu braço, empurrando-o até a catraca que dividia
o saguão da área restrita.
Seguiram até o quarto onde Camila repousava. O ar
condicionado, as flores na entrada e o aspecto geral dele
faziam jus ao preço cobrado. Ela jazia na cama, com um
protetor cervical em volta do pescoço. O rosto dela parecia
um pouco inchado, mas não sofrera nenhum dano maior
que alguns arranhões. Se aproximou, ciente de seu dever
como noivo. Mesmo assim, era como se seus pés
grudassem no piso conforme andava.

Ela abriu os olhos. — Amor...

— Oi. — Parou ao lado dela, imaginando o que a noiva


lhe diria e se preparando para ouvir poucas e boas.

Os olhos grandes e claros como duas lentes de


aumento o encaravam: — Porque demorou tanto? Sua mãe
não conseguia te encontrar.

— Eu tava num encontro, com um editor.


— É? De qual revista?

— Ah, não me lembro o nome. De qualquer forma, não


era importante. — Se abaixou até ela, percebendo que
ainda segurava o livro de Leon. Deixou-o na cômoda ao lado
e pegou a mão da noiva: — O que aconteceu, Paixão?
Com aquele colar cervical, Camila fez biquinho, como
uma criança que tivesse caído do balanço: — Bati o carro na
altura da caixa d’água. Sabe, perto daquele sushi bar?

Sérgio riu, nervoso. O acidente tinha sido na mesma


rua do clube? Quer dizer que ela poderia ter...
— Foi lá, é? M-mas como? — Ela recolheu a mão,
suspirando.

— Você se importa realmente? Porque em duas horas


num encontro que não era importante, você não teve um
minuto pra olhar o celular e ver que eu precisava de ti!
— Ah, não! Não fala assim. Não é nada disso...

— Então o que é? — Ela ergueu o olhar para ele o


máximo que podia e Sérgio teve certeza de que Camila
tinha visto algo. Só temia que fosse o que achava.

— Eu não tive tempo, pensei que fosse uma


oportunidade interessante pra a Enrique-se, não podia
desrespeitar o editor assim! Se eu soubesse que você tinha
se machucado, teria saído dali na hora! — disse, buscando
as mãos dela.

— Teria mesmo?

— É claro que sim, claro! — Sorriu, abraçando-a.


Respirava aliviado ao ver que ela agora começara a
acariciar seu braço, até reparar no livro sobre a cômoda:

— O que é isso, Amor?

— Peguei emprestado com um amigo que encontrei


no caminho.

— Ah, e por acaso ele estava carregando esse livro, é?


Hegel...

— Eu já tinha pedido a ele. Estou lendo pra aprimorar


meus argumentos contra a esquerdalha.

Ela ergueu as sobrancelhas frente à lombada


detonada: — Você poderia comprar um novo, esse deveria ir
direto pra a lixeira.
— Claro que não! — disse, puxando-o de volta. Camila
o encarou atordoada e ele amenizou: — Tenho de devolver a
ele.

Ela se calou, parecendo magoada. Pediu desculpas


novamente, prometendo voltar para passar a noite ali com
ela.

— Não precisa, minha mãe vem aqui. Não quero


atrapalhar, você tem a sua coluna, as tarefas da empresa.
Pode ir, estou melhor agora. Só gostaria de uma coisa...

— Fala, Paixão.

— Pode me trazer um pão doce? Eles não deixam


entrar com comida no hospital, mas eu vi uns tão bonitos na
lanchonete daqui que fiquei na vontade.

— Pode deixar, volto num segundo! — Beijou de leve


a testa dela. Deixou o livro na cômoda e desceu até a
lanchonete, onde comprou o último disponível.

Voltou ao quarto, abrindo a porta com um gesto


teatral: — Seus problemas acabaram, moça! Tá aqui o seu
pedido!

Ela abriu um sorriso largo e bateu palminhas,


comemorando. Sérgio puxou uma cadeira até ela, tirando o
pão embrulhado de dentro do bolso do moletom. O livro
estava numa posição ligeiramente diferente na cômoda,
mas poderia ter sido ele esbarrando. Procedeu em partir
pequenos pedaços do pão, levando-os aos lábios maquiados
e gulosos de sua noiva.

Camila lambia os beiços, olhando-o de tempos em


tempos. Por mais que parecesse contente, havia um quê de
preocupação em sua testa. Achou que seria pior perguntar,
então continuou em a tarefa silenciosa, servindo-a como
uma ama serviria sua senhora. Pouco antes do último
pedaço, uma enfermeira apareceu na porta, encerrando o
horário das visitas.

— Eu posso ficar até sua mãe chegar, não se


preocupa — dizia, mas Camila foi contundente:

— Não quero ser a responsável por você se atrasar


nos seus compromissos. Seus seguidores estão te
esperando pra live, lembra? Pode ir, já estou bem agora que
veio me ver.

Se despediu dela com outro beijo na testa e a


promessa de ligar logo de manhã. Pegou o livro da cômoda
e guardou os restos do pão no bolso, ouvindo a bronca da
enfermeira.

Sua mãe ainda estava na sala de espera quando saiu.


Ela ainda parecia brava: — Tem sorte de ser bonito, porque
inteligente você não é.

Não escondeu seu olhar perplexo e magoado para ela.


Dona Glória desfiou o rosário enquanto saíam do prédio: —
Ainda bem que eu estava por perto, se não quem iria zelar
pelo seu noivado?

Ainda estavam a caminho do estacionamento, então


temia o quanto ela seria capaz de falar. — Mãe, eu ainda
nem me casei e a senhora já está falando como se eu
tivesse estragado tudo!
— Mas está quase! Eu pari você, Sérgio. Sei que está
mentindo!
Balançou a cabeça, seus lábios se contraindo num
sorriso involuntário.

— Viu, é assim que eu sei! Fica sorrindo que nem o


gato da Alice quando mente. Eu só espero que essa que
você arrumou seja mais burra do que parece. — ela disse,
abrindo a porta do carro.

— A Camila não é burra! A senhora não pode falar


assim dela! —Acomodou em seu colo ao sentar no banco do
carona.

— Ela pode não ser burra, mas vai ter que ser muito
tolerante. Eu vi que você saiu de casa com o carro, o que
fez com ele? Deixou estacionado num canto qualquer? Ou
usou pra pagar pó? Não me diga que você tá usando pó,
Sérgio!
— Mãe, eu não sou o tio Neves!

— Bem se vê, porque ele pelo menos escondia! Você,


com esses olhos vermelhos e essa cara pálida, saindo pra
encontros em horários estranhos no meio da semana... Abra
o jogo, filho! O seu pai já tem três safenas, ele não aguenta,
mas eu aguento. Você tá frequentando zona de novo?

Ela tinha chegado perto da verdade, mas precisava se


manter frio: — Eu não frequento zona, de onde você tirou
essa ideia? Deixei meu carro no estacionamento, bebi e
achei melhor pegar um táxi, foi só isso!
— Eu sei o que os jovens com dinheiro e berço como
você fazem, eu sei. O seu pai ia também, até depois de
casar — ela xingou ao parar no sinal: — eu também traía
ele, mas a essa altura a gente já nem tava mais junto,
lembra? Agora que tá acabado que nem um Matusalém ele
resolveu casar de novo e é essa a vida, Sérgio. — Ficaram
em silêncio até o sinal abrir.
— Não tenho moral pra falar “não traia a sua noiva”,
mas eu gostaria muito que você pelo menos não desse tão
na cara. Tá bom, filho? — Ela virou o rosto, como se fosse
lhe dar um beijo na bochecha, como as outras mães faziam
ao buscar os filhos na escola. No entanto, ela rapidamente
recuou: — Aí, olha esse bafo de rum! Aposto que até aquela
tonta percebeu!

— Foi só um drinque pra mim e pro editor no


restaurante! Pra dar uma boa impressão!

— Faz o que tu quiser, só não deixa mais gente ficar


sabendo. Seu pai não tá podendo se candidatar de novo,
mas ele tá apoiando o seu primo Beto. Você devia ter feito
concurso como ele. Se tivesse passado em direito poderia
ser delegado, ou juiz! Mas não...

Sérgio permanecia calado, ouvindo as cobranças que


já tinham envelhecido com as cordas vocais dela. Olhou
para a capa acabada do livro, pensando que nem mesmo
Leon parecia tão incompreensivo. Ele era exigente sim, mas
nunca exigia mais do que prometera lhe dar, submissão
consentida. Ele compreendia seus limites e o incentivava a
se superar, sem compará-lo com alguém específico para
fazê-lo se sentir mal consigo mesmo.

Dona Glória parou na porta de sua casa. Apesar de já


não morar mais com ela e o pai, Sérgio tinha consciência de
que eles sempre sabiam o que dizer para fazê-lo se sentir
pior. Perto dela sempre se sentia como um adolescente que
tinha feito merda.

— Leva umas flores pra ela e pelo amor de Deus, não


apareça cheirando à bebida. Vai ter que se esforçar muito
pra me convencer de que não tem nada errado, por que eu
não compro essa história!

Bateu a porta do carro ao sair.

— Não seja malcriado! Teve os melhores professores


pra fazer uma grosseria dessas.

— Tchau, mãe! — gritou de costas. Se tivesse tido um


professor como Leon, talvez fosse mais educado.

Ia mandar uma mensagem a ele, mas desistiu ao vê-


lo offline. Repensou tudo o que tinha feito até ali. Podia ver
que o tinha desapontado pela forma como ele logo o deixou
de lado. Ora, o que o desgraçado de um fetichista poderia
cobrar dele? E daí se ele tinha mentido pra Camila, não era
como se tivesse traído ela. Ou era? Refletia sobre aquilo, o
livro pesando em suas mãos. Seria um dedo (ou dois) no cu,
traição?
Tirou os sapatos e deitou na cama, sua roupa
cheirando ao pão doce, a leve ardência da chibata de
camurça em sua pele, cada sensação o castigando à sua
própria maneira. Gostava de Camila sim, ia se casar com
ela. Mas com Leon, era diferente. Tinha acabado de
conhecê-lo, mas nunca sentira uma atração mais forte em
toda sua vida. Queria se render a ele eternamente, lamber o
chão sob os pés daquele homem.
Não tinha certeza se Camila poderia preencher aquele
espaço. Ela era bonita, divertida, inteligente, mas era
exatamente como ele, conservadora. Ela era uma mulher
recatada, do lar, precisava preservá-la de suas perversões.
Não poderia envolvê-la em suas próprias fantasias. Afinal,
ela nem sequer lhe dava uma casquinha, ficava regulando
tudo. Se descobrisse o que ele tinha feito naqueles últimos
dias, o que ela pensaria?

Pegou o livro e folheou rapidamente as páginas gastas


sublinhadas em diferentes cores de caneta marca-texto.
Parou em Hegel, na parte que tinha lido mais cedo e cheirou
o papel. Estremecia ao lembrar dos golpes de Leon cortando
o ar e atingindo sua pele nua. Levou a mão à bunda,
sentindo-a ainda dolorida, tanto nos músculos como em seu
cu. Se contraía, imaginando como seria ter o dominador
socando-o bem ali com aquela prótese imensa ou o que
quer que ele preferisse. Ah, como precisava disso...
Agora, apenas lamentava que o dominador fosse tão
escrupuloso. Para um comunista, ele tinha princípios
demais. Apesar do que ele dissera, não achava que seria a
mesma coisa ter seu corpo submetido a outro. Além disso,
não queria se arriscar com alguém que talvez não fosse tão
cuidadoso. Se Camila descobrisse seria horrível, mas se
algum dos seus seguidores descobrissem, seria o fim do
mundo.

Se lembrou do olhar dela para ele e do livro na


cômoda e se levantou depressa. Puxou-o pela capa quase
arrebentada e olhou nas páginas. Felizmente, não havia
nenhum recado nem nada comprometedor ali que ela
pudesse ter lido. Na folha de rosto estava apenas o carimbo
do sebo ao qual ele havia pertencido e, Sérgio engoliu em
seco, o nome “*****” e um telefone anotado.

Pegou o celular, comparando com o telefone de Leon.


Eram os mesmos. Se deu conta de que talvez não fosse o
único a saber disso agora. — Ai, não...

Ligou depressa pra ele. Não queria parecer em pânico,


mas achava que precisava fazer alguma coisa. Felizmente,
ele atendeu:

— Sérgio, eu tô meio ocupado agora. Liga pro telefone


do clube que a Soraya te atende, tá.

— Leon, eu...

— Mudar agora pode ser difícil, mas você quase não


me conhece. Logo, logo, vai encontrar outro dominador bem
melhor que eu e...

— Não é isso! É que a minha noiva pode ter visto o


seu telefone no livro e pode ser que ela ligue perguntando
por alguém chamada *****, e... — Ele deu um suspiro
aborrecido do outro lado.
— Esqueci de rasgar essa página.

— Desculpa, acontece que ela acabou de sofrer um


acidente de carro, não pode levar um choque desses! Se
alguém chamada Camila ligar, será que você poderia fingir
que não me conhece, só por enquanto? Eu pensei — fez
uma pausa, desejando não se arrepender: — pensei em
contar tudo, assim que ela se recuperar.

Ele resmungou e respondeu bruscamente: — Vai


mesmo arriscar seu noivado por uma incursão recente e
ainda superficial no BDSM? Não quero e nem posso ser
responsabilizado por decisões impensadas de ninguém. Se
você contar e ela não topar, vai ser um trabalhão pra
convencê-la a continuar com você. Por outro lado, se você
realmente acha que não pode viver sem levar umas
chicotadas nessa sua bunda, conte a ela. Quem sabe a sua
noiva não leva na boa e até se junta a você? Agora se for
pra fazer esse joguinho de macho tóxico, pode me riscar da
sua lista, viu.

— Se você se importa tanto com esse tipo de coisa,


por que não avisou desde o começo?
Leon silenciou por longos minutos. Ele suspirou do
outro lado da linha: — Tem razão, mas você fez tanta
questão de avançar as coisas que eu me esqueci desse
detalhe.
— Ah, tá. Agora a culpa é minha que você não se
lembrou dos seus princípios!

— Eu errei nesse ponto, mas não quero e não vou


realizar fetiche de homem que não assume seus rolês pra
outra parte!

— Tudo bem, só me dá um tempo pra eu conversar


com ela.
— Faz o que quiser, só não vem com caô pra cima de
mim. Se quiser mesmo ser meu, vai ter que cumprir minhas
regras também!

— Eu vou cumprir. Já comecei inclusive a bater


umazinha pro Hegel.
Ele riu, murmurando: — Você é um submisso muito
impertinente. Deveria procurar alguém mais durão, que
castigue esse seu rabo como você merece.

— Já encontrei! — respondeu, desligando. “Deixa que


eu cuido da minha vida, Leon”, pensava, pegando o
notebook para realizar sua próxima live.

No dia seguinte, fez como a mãe aconselhara e


mandou Regina encomendar as flores mais bonitas que ela
encontrasse. Ela voltou com um vasinho de amores-
perfeitos embrulhado com um laço: — Foi o melhor que
consegui com o dinheiro que o senhor me deu.

Sérgio lançou um olhar feio para as flores roxas, mas


as levou para Camila no hospital. Ela abriu um pequeno
sorriso, ligeiramente maior que o dele ao vê-las.
A mãe dela, Dona Ítala, estava lá e ajudou a colocá-las
na cômoda enquanto ajudava a filha a sentar na cama. —
Camilinha vai poder voltar pra casa hoje, com a grazia di
Dio!
Ressabiado, Sérgio buscou o olhar de sua noiva, mas
Camila quase não o olhava. Ela apenas comia em silêncio o
mingau que a mãe lhe servia.

Pediu licença para ficar no lugar de Dona ítala.


Sorrindo, a velha senhora se levantou e os deixou a sós.
Pegou um pouquinho do mingau na colher, soprando de
leve antes de oferecer a ela.
A garota suspirou. — Sérgio, quero que seja honesto
comigo: você foi mesmo ver um editor ontem?

Sorriu por reflexo. Era um sorriso exatamente como o


que sua mãe tinha descrito: — Como assim, Camila? Que
isso, Paixão?

— Eu vi você estacionando do outro lado da rua, bem


longe do restaurante que você falou. Fiquei tão distraída
que bati o carro.

Nessa hora, Sérgio pensou que talvez ele fosse ser o


próximo a precisar de hospitalização. Pegou na mão dela: —
Meu anjo, eu tive que estacionar lá pra... — Pensava em
alguma desculpa plausível, mas não encontrava nenhuma.
A não ser: — Ah, é, foi pra pegar o livro emprestado com
aquele colega meu, o Henrique. Depois ele me ofereceu
carona até o tal restaurante e eu não pude recusar, com o
preço da gasolina hoje em dia...

Ela entreabriu os lábios maquiados e franziu as


sobrancelhas: — Ah, então foi isso é? E eu aqui pensando
besteira.

Sorriu, contente que ela tinha acreditado: — Era só


isso mesmo, Paixão. No que você estava pensando?
— Ah, uma besteira. Que você tava me traindo com
alguém. Alguma piranha. — ela disse, sorrindo também.

— Eu nunca faria uma coisa dessas com você. — A


ajudou a se amparar com o colar cervical. — Você deve
estar cansada desse negócio.
— Nem fala. Me ajuda a calçar meu chinelo pra eu ir
no banheiro?

Fez como pedido. Pouco tempo depois, o médico


apareceu para fazer os últimos exames e liberar a paciente.
A acompanhou até a casa dos Gentile, e os pais e
parentes dela logo a cercaram de carinho, em especial os
gêmeos. Os nomes deles eram Gian e Giovani, mas
intimamente Sérgio lhes dera os apelidos de Idi e Ota. Dois
armários de cabelo loiro que gostavam de jogar sinuca nos
fins de semana na enorme varanda da casa. O Idi se virou
pra ele, perguntando se tava afim de encaçapar uma bola e
Sérgio fingiu não ter escutado.

— Ele tá metido, hein? Nem fala mais com a famiglia.


Continuou sentado na cadeira da varanda, checando
se Leon tinha mandado algum sinal de vida, quando Gian
veio por um lado e o Giovani pelo outro. Eles se debruçaram
sobre o encosto como papagaios e o gêmeo mais velho
apertou seu braço: — A Camila tava tão triste ontem. Disse
que você não tem dado atenção a ela.
— Ela também disse pra mamma que te viu entrando
num puteiro. — disse o outro gêmeo, e Sérgio se deu conta
de que ela confundira o clube de Leon. Gaguejou,
esboçando o que poderia ser uma explicação, quando o Idi
pressionou o punho mastodôntico contra sua mão
repousada no descanso da cadeira.

Ota conteve seu grito ao tapar sua boca com a mão,


sussurrando: — Se fizer nossa fratella de palhaça, já sabe o
que acontece!
Balançava a cabeça, se remexendo na cadeira. De
dentro de casa, sua futura sogra acenou para eles,
convidando a todos para entrarem e “comerem alguma
coisinha”.

Os brutamontes o largaram, acompanhando o


restante da famiglia.
Sérgio levou a mão machucada à boca, xingando
baixinho a velha fofoqueira. Esperou até não ver nenhum
dos dois brucutus ali e foi se despedir de Camila: — Tenho
que ir ver as coisas na empresa, mas amanhã mesmo eu
volto pra gente ver um filme, tá bom, Paixão? — Com
cuidado, deu um beijo nos lábios finos dela e foi embora
depressa.
Passaria o resto da semana ocupado ora com os
trâmites da compra de um novo equipamento de som para
a empresa, ora com sua noiva. Como ela precisava evitar
qualquer esforço, pedia sempre que lhe alcançasse as
coisas ou a ajudasse a se levantar. Colocou “Ghost” na tv
para assistirem, que era o filme que ela mais amava.
Deixou-a repousar segurando sua mão.

Conforme os créditos passavam, refletia sobre tudo o


que vinha fazendo e não pode evitar a culpa. Leon estava
mesmo certo, não deveria enganar Camila assim, mesmo
que fosse só pra levar uma dedada no cu. Estavam
sozinhos, então pensou que talvez pudesse introduzir o
assunto usando os filmes do serviço de streaming como
ponto de partida: — O que acha desse, Paixão?

— Qual?

— Esse, Cinquenta Tons de Cinza. — Selecionou o que


achava ser o exemplo mais próximo que poderia usar.
— Vai falar mal dele no seu canal? — Ela ria: — Ah,
não sei. É meio tosco, né? Coisa de gente maluca, querer
ser amarrada, apanhar. Coisa de feminista doida.

— É... — Fingiu rir também, deixando o assunto


morrer por ali mesmo.
###
Leon voltou a atenção para a tela do computador em
cima da mesinha, de onde seu pai o encarava de volta de
um quarto de hotel em Las Vegas, enquanto hidratava uma
bota brilhante de couro. O cabelo grisalho dele caía sobre
seu rosto e nuca, enquanto falava: — Era ele, né?

— Era. — Largou o celular. Sentado no sofá meio velho


de seu apartamento, ainda se perguntava se tinha mesmo
feito a coisa certa.

— Você devia ter sido mais claro desde o início, filho.


Isso evitaria toda a dor de cabeça.
— Eu sei.

— Já encoleirou ele?

— Não. Na verdade, eu achava que ele nem ia voltar


depois da primeira cena. Deixei a coisa correr solta logo de
início pra ver se ele sumia, mas não é que ele gostou?

— Agora não larga mais do seu pé... — Ele ria,


pegando a outra bota para lustrar.
Ergueu as sobrancelhas: — Nem sei, pai. Ele acabou
de dizer que tem uma noiva e eu já sei como essa história
termina. Pelo tipo, ou ele some de vez, ou vai voltar com
alguma historinha.

— Filho, posso te dar um conselho? Você é um bom


dominador, sabe ser firme, comandar. O seu ponto fraco é
que você é muito careta.
— Ah, pai, chega! Primeiro a mãe, agora você
também! — Leon estendeu a palma da mão em direção à
tela, sem conter o riso.
— Ué, ele não tá te pagando? Se ele tem noiva, o
problema é deles. Não é culpa sua se ele não conta as
coisas que faz por aí. A vida é assim, filho.

— Eu sei, mas eu não sou assim. Não quero ser outro


machista escroto por aí. Eu quero fazer a diferença.
— Tá. Você expôs suas condições, tarde, mas mandou
a real. Agora, é por conta dele. Relaxe. — Ele soprou a bota,
conferindo seu trabalho.

— É que não posso evitar me sentir culpado por ter


dado a ele um gostinho da coisa. Você sabe, existem
pessoas que se apegam mais rápido que outras. Esse cara
se apegou a mim muito rápido. Provavelmente porque ele
nunca experimentou nada disso antes, mas tinha que ver,
pai. Ele aprende muito rápido pra um baunilha.
— Pelo jeito meu filho já encontrou seu sub perfeito.
Vai me apresentar ele depois do encoleiramento, Leon! —
ele brincou, cantarolando.

Baixou o rosto. Seus pais eram as únicas criaturas


capazes de envergonhá-lo daquele jeito.
— Lembrei, tenho um trabalho do curso pra fazer, pai.
Manda um beijo pra mãe!

— Mando sim. Beijo, filho! — Ele pegou o chicote e


saiu do chat.
Duas semanas se passaram sem que seu talvez-
submisso ligasse. Já era noite quando Leon deixou os livros
de lado. Deitado na cama, esticou o braço e pegou um
dispositivo que se assemelhava a uma pequena grade
tubular e curva. Brincou com o minúsculo cadeado
pendurado nela. Uma pena que não tivesse tido a
oportunidade de usá-lo. Suspirou, passando a mão no
cabelo e imaginando que fim levara Sérgio.

Provavelmente tinha voltado para sua querida vidinha


baunilha de bolsominion, com todos os seus parentes
bolsominions e sua noiva bolsominia, refletia consigo
mesmo, até ouvir a notificação do celular. Era uma
mensagem dele:

Sérgio:
Oi, Leon, tudo bem? Já conversei com a
Camila. Ela deixou sim, isto é, desde que
ninguém mais fique sabendo e você não
apareça na frente dela.
Um pequeno sorriso brotou em seu rosto, junto a um
suspiro cansado. O sujeito pensava que o enganava,
igualzinho tinha previsto. Ah, agora pegaria esse liberal
safado:
Leon:
Minha semana tá cheia, vai ter que ser na
próxima, naquele mesmo horário. Mas
antes, eu queria passar na sua casa pra te
entregar algo. Pode ser?
“Claro” foi a resposta dele.

Leon anotou o endereço, pegou o acessório e o


embrulhou com cuidado numa caixa sobrando por ali. Vestiu
sua camisa vermelha e jaqueta de couro.

Laika latia. Colocou mais ração para ela, lhe fez um


carinho e pegou as chaves da moto, digitando: “Tô a
caminho”.

###
Sérgio não sabia o que esperar. Achava que Leon
nunca cairia numa mentira tão deslavada. Nem imaginava
que ele o responderia tão rápido. “Parece que meu dinheiro
vale mais que os escrúpulos dele, afinal”. O pedido dele
para visitá-lo o pegara ainda mais desprevenido.

Deu uma geral pela casa, guardando peças de roupa


espalhadas no quarto e banheiro. Lavou a pouca louça ainda
com os restos de seu jantar e finalmente vestiu o roupão cor
de vinho que comprara numa loja cara de um shopping
frequentado por um público “diferenciado”. Achava aquela
grife breguíssima e o roupão, pra ser sincero, o deixava com
cara de vó. Mas tinha o lado positivo de que ele poderia
facilmente estar só de cueca por baixo e pouco mudaria em
sua aparência.
Foi até a geladeira separar alguma bebida. À princípio,
pensou numa espumante, algo que agregasse valor. Então
se lembrou de que Leon precisaria estar sóbrio e separou
um Guaraná Jesus pra ele. Desde que se decidira por voltar
a vê-lo, encomendara com um conhecido duas caixas do
refrigerante maranhense que parecia ser o preferido de seu
dominador.
Ficou sentado na sala, as lâmpadas externas acesas e
as internas apagadas, a não ser por um ou outro abajur
estratégico. Cutucou a unha do pé, se questionando se
aquele comunista viria de metrô, ou se faria a linha lulista e
viria de jatinho. Demorou um bom tempo, até o
interfonarem. Liberou a entrada dele e correu a olhar pelas
câmeras de segurança. Quase teve um susto ao ver a moto,
mas se acalmou percebendo que só havia um homem nela.

Abriu o portão automático. O dominador tirou o


capacete, colocando-o em cima da garupa da moto. Sérgio
notou a caixa vermelha amarrada nela e não deixou de se
sentir envaidecido e curioso com a expectativa de ser
presenteado. Mesmo assim, ergueu o próprio queixo,
ficando alguns centímetros acima da vista dele: — Não
entendi a pressa. Sentiu tanta falta assim de mim, foi?
Leon lhe deu um sorriso de Monalisa. Diferente do
seu, que quase sempre era a tentativa de camuflar seu
nervosismo, o dele era um cofre fechado a sete chaves com
todos os segredos do universo. E estava prestes a ser
aberto agora:

— Vim te trazer uma coisa. Espero que goste. — Ele


se virou, tirando a caixa da mochila.
— Ah, obrigado!

Ia abri-la, quando a mão dele o impediu: — Aqui não.

Sem que ele precisasse dizer mais nada, o convidou a


entrar.
Leon tomou a frente, adentrando a sala. Olhava para
os lados e para a decoração balançando a cabeça: — Sua
casa é bem maior do que eu pensava. É só você aqui, nesse
espaço todo? Parece meio solitário. — Ele jogou a mochila
no sofá.

— Meus seguidores me ajudam a passar o tempo. Já


estou acostumado. — respondeu, sem conseguir deixar de
persegui-lo com o olhar. Seu dominador ali, em sua casa.
Subia pelas paredes de tão nervoso.
Ele sentou no sofá, antes mesmo que o convidasse. A
barba dele estava por fazer, o que deixou Sérgio cheio de
más intenções.

— E a sua noiva? Está se recuperando?

Ficou olhando para a boca dele antes de finalmente


responder à pergunta: — Ah, sim. Ela até já tirou o colar
cervical.

— Que bom. Deve ser difícil no dia a dia. — ele disse e


juntou as mãos, mirando a caixa: — Mas vamos falar de nós
dois.
Sérgio não conseguia disfarçar o sorriso. A quem
enganaria? Tinha ficado aqueles dias todos pensando nele e
apesar da culpa que sentia por não ter contado a verdade à
Camila, nada podia ser pior do que não vê-lo mais.

— O que tem nessa caixa?

— É um presente, e assim como tudo que já propus a


você, pode escolher usar ou não.
Seu peito se elevou e abaixou rápido com sua
respiração. Se aproximou perguntando se poderia abri-la
agora e Leon fez um pequeno aceno com a cabeça,
sorrindo. — Quando você disse que conversaria com sua
noiva, tenho que confessar que duvidei que fizesse isso
mesmo. No entanto, cá estamos agora.

Após uma ligeira apreensão com o comentário dele,


abriu o embrulho, encontrando uma argola de metal
interligada a um tipo de dispositivo que poderia ser
confundido com algum acessório de cozinha, ou um
cortador de saladas futurista. — O que é isso?
Leon pediu licença e pegou o objeto de sua mão: —
Isto, meu servo, é um cinto de castidade pra quem tem
pênis.

Depois que ele disse isso foi que se atentou para a


cinta flexível de couro ainda dentro da caixa. Voltou-se para
a geringonça na mão de seu dominador e ele explicou: — É
um fetiche relativamente comum, querer ser restringido ou
restringir os impulsos sexuais alheios. Também pode ser
bastante eficiente para quem tem vício em se masturbar ou
pornografia. Seu autocontrole é pouco desenvolvido, e você
parece vivenciar o sexo muito ligado a estímulos genitais. O
que eu quero com isso, Sérgio, é fazer você parar de tocar
umazinha pro Hegel ou pra quem quer que seja.
Ele se aproximou, agarrando a tira que amarrava seu
roupão e puxando-o até perto de si: — Quero ter total
controle sobre quando, como e com quem você goza. O que
acha disso?

Sérgio entreabriu os lábios, sentindo-se desmanchar


de tanto tesão em ouvir aquilo, os braços de seu senhor tão
perto de si, segurando-o firme: — Eu não sei, nunca fiz isso.
Você quer trancar o meu...
— Sim, o seu pau. Vai dormir, comer, trabalhar, tudo
normalmente, mas a chave ficará comigo, pendurada no
meu pescoço.

— E como faço pra me limpar?


— Como pode ver, este modelo é aberto por todas as
laterais. Pode usar água e sabão e secar com um lenço
umedecido ou algo assim. Eu recomendo usar um pouco de
óleo de bebê também, ajuda a hidratar a pele. Posso
mostrar?

Começava a achar a ideia bastante interessante. — Só


pra experimentar! Se eu não gostar, você tira?
— Claro. Vamos abrir isso então — Ele desamarrou a
tira do roupão e deslizou as mãos por seu peito. Leon
contornava seus mamilos até deixá-los enrijecidos sob seus
dedos. Sérgio tentava ganhar um beijo em seu dominador,
mas ele o recusava no momento, concentrado em acariciar
sua barriga e por dentro de sua cueca.
Ele a puxou para baixo, deixando-a cair no chão e
revelando seu pau semiereto. Permaneceu parado a muito
custo enquanto ele o tocava de leve, fazendo-o balançar de
um lado para o outro como um pêndulo: — Acho que o
tamanho tá certo, pelo que me lembro.

Sérgio estremecia com aqueles toques. Mais um


pouco e seu pau com certeza não caberia naquela
gaiolinha...
— Melhor você deitar ali. — Leon apontou o sofá.

Se recostou nele, o roupão caído displicentemente por


seu corpo. Sentiu um arrepio quando Leon tirou o tecido da
frente, revelando sua nudez.
Ele tomou o cinto de castidade nas mãos, encaixando
a tira de couro na argola, e lhe lançando um sorriso
malicioso. Pôs o aparato de lado e pegou a mochila,
retirando uma sacola dela: — Antes de vir pra cá aproveitei
e passei numa farmácia. Aqui tem o óleo, lenços e
cotonetes pra ajudar com a sua limpeza diária, isto é, caso
você fique mesmo com ele. — falava, atiçando sua
curiosidade.

Ansioso, Sérgio via-o esfregar o óleo nas mãos,


passando um pouco pela argola até finalmente pegar em
seu pau e suas bolas, tudo de uma vez.
— Tá ficando duro, vai ficar difícil te trancar assim.
Pense na sua vovozinha de maiô ou tente resolver uma
conta difícil de cabeça, tipo 13 x 13.
— Ah, muito engraçado. — Sérgio ergueu um pouco a
cabeça, inspirando fundo. De pernas abertas para ele,
deixou que Leon passasse a argola só um pouco mais larga
que seu pau, enfiando primeiro suas bolas e depois seu
pênis, deslizando devagar e vencendo a resistência até que
tudo estivesse dentro dela. Enquanto tentava se distrair,
invariavelmente pensou em Camila ouvindo aquela mentira
dele. Mentir era algo corriqueiro, fazia parte de sua
profissão. Precisava “enfeitar a realidade”, do contrário,
ninguém compraria suas palestras, seus cursos, DVDs. Mas
mentir pra ela e depois pra ele não era algo de que se
orgulhava.

— Consegui! Agora só falta o resto. Tem uma meia


calça por aí? — respondeu que não, confuso. — Não tem
importância. Só vai ser um pouquinho mais difícil.

Ele pegou a pequena armação e pouco a pouco,


colocou seu pênis dentro dela, o toque frio do metal
arrepiando-o. Ele juntou os dois encaixes com um cadeado
minúsculo: — Considere seu pau expropriado a partir de
agora!

Olhou para si mesmo, a pequena armação curva o


retendo como uma armadilha. Pesava um pouco, mas era
discreta. A sensação de ter algo prendendo-o, de estar
humilhado e de certo modo castrado, era estranha e por
isso mesmo excitante. Experimentou sentar e não chegou a
incomodá-lo, apesar de tudo. Ficou de pé, a cinta de couro
pendendo um pouco com o peso da armação. Imaginou por
quanto tempo conseguiria andar com aquilo.
— E agora? — Olhou a chave na mão de Leon e isso
lhe deu um frio na barriga melhor ainda.

— Podemos fazer um teste. Que acha de eu te deixar


assim por uma semana?

Se encolheu, imaginando como faria por todo aquele


tempo. Era como ter um lembrete constante do domínio
daquele comunista sobre si e isso estava sendo melhor do
que qualquer outra coisa que pudesse pensar no momento.

— Acho que seria muito embaraçoso.

— Venha aqui. Deite-se. — Leon esticou os pés


calçados de botas e abriu espaço para ele. Ainda com
aquele frio na barriga, apoiou a cabeça no colo dele,
deixando o caminho livre para seu senhor.

— Pode não parecer, Sérgio, mas eu gosto de você.


De verdade. — Ele acariciava seu peito, fazendo um cafuné
em seus cachos com a outra mão: — Fiquei preocupado com
a possibilidade de não nos vermos mais. O que pensa disso,
meu servo?

Sérgio não soube o que responder. Sorria envaidecido


por saber que a atração era mútua, mas ainda temia que
Leon pudesse perceber algo errado em sua atitude e
descobrir que não havia de fato cumprido sua promessa.
— Não sei, senhor. — Estava sendo sincero de certa
forma. Apesar de agora ficar mais à vontade com ele, ainda
não conseguia entender completamente seu desejo por
aquele esquerdista.

Ele riu: — Arriscou seu noivado pra continuar me


vendo e não sabe o que pensar disso? Tem certeza? — ele
perguntava em tom brincalhão: — Parece que você não é de
entrar em contato com os próprios sentimentos, hum?

Deitado sobre as coxas de Leon, ficou a encarar os


olhos escuros e brilhantes dele por um longo momento,
refletindo no que ele tinha acabado de dizer. A verdade é
que, apesar de todos os seus lemas motivacionais, seus
posicionamentos rígidos e postura confiante, às vezes se
sentia como um fantasma pairando nos corredores da
empresa. Não era apenas como se sua própria vida não lhe
pertencesse, mas também não soubesse que tipo de vida
queria levar. Fazia tudo mecanicamente e com pouquíssimo
prazer.

Suspirou. Frente àquele silêncio, terminou


perguntando: — Você fuma maconha?

Seu dominador arregalou os olhos, rindo de novo.


— Você fuma então?

— Não é da sua conta o que eu faço, servo. Você é


minha propriedade, não o contrário. — Ele lhe lançava um
olhar repreensivo, mas ainda tranquilo. Em resposta, Sérgio
baixou um pouco o próprio rosto, como um lobo faria ao
ouvir o rosnado do líder de sua alcateia.

— Perdão, senhor. — Arriscou um olhar de esguelha


para ele dizendo: — É só que eu não curto drogas.

— Também não, mas não sou a favor da perseguição


que vocês fazem a quem usa. Jogam um monte de pobre no
xilindró enquanto os ricos enchem o rabo de cocaína e
lucram. Concorda que não é justo? — Ele acariciou mais
uma vez seus pequenos cachos, tocando sua testa e depois
a ponta de seu nariz.

Sérgio não queria admitir, mas estava adorando


aquele momento. Tanto que quase se esqueceu de retrucar
a opinião dele: — Sim, mas quem manda pobre mexer com
esse negócio? Vai olhar o funk, por exemplo, só faz apologia
ao que não presta: facção criminosa, maconha, pedofilia.
Tinham mais é que proibir esse lixo cultural!

Leon inspirou fundo, acariciando seu rosto: — Não são


todas... Só porque você não curte um gênero musical, não
quer dizer que não seja parte de uma cultura. Além disso, o
funk pode ser ótimo quando bem usado. Quer ver? — ele
disse, sua voz se tornando mais grave e rouca.

Sorriu em retorno, concordando. Era noite de terça,


teria trabalho no dia seguinte, mas ter seu dominador ali na
casa dele era uma ocasião especial, então queria aproveitar
tudo a que tivesse direito.
O dominador o fez se sentar. Ele o segurou pelo rosto,
apertando suas bochechas: — O seu preconceito cultural me
aborrece, servo. — Olhou para o aparelho de som super
potente pegando poeira no rack da sala. Puxou o próprio
celular do bolso: — Vai agora mesmo colocar essa playlist
aqui pra tocar. Rápido!

Se levantou para ligar o aparelho com Bluetooth, o


som grave da batida estremecendo os enfeites e retratos do
Mito em cima do móvel.

— Mais alto!
— A vizinhança inteira vai escutar assim!

— Perfeito. — ele respondeu, se recostando de pernas


abertas no sofá. — Tira o roupão. Quero você de costas pra
mim, agora.

Obedeceu, e ele o puxou pela parte de trás do cinto


de castidade. Não doía, mas o forçava a recuar até cair
sentado nele. Se assustou ao sentir o volume proeminente
de Leon roçando embaixo de si, mas não teve muito tempo
pra pensar nisso, pois ele logo pôs a mão sobre suas costas,
fazendo-o se curvar até tocar o chão com as mãos. Apoiava
os joelhos no sofá, suas nádegas erguidas em oferta a ele.
Leon tocou-as de leve, primeiro com as pontas dos dedos e
depois deslizando as palmas das mãos em movimentos
circulares enquanto um MC cantava:

 
“Tu pediu pra eu te botar
E eu boto com pressão
Então vai, já se prepara
Na raba toma tapão”
 
Um pequeno deslocamento de ar se antecedeu ao
tapa, o impacto amplificado tanto pela letra quanto pela
batida da música se espalhou por todo seu corpo.
Se apoiava com dificuldade, o pau engaiolado
balançando entre as suas pernas e as de Leon. Só de estar
naquela posição já começava a deixar aquela gaiola
pequena. Caía para frente de ponta cabeça, quando Leon o
puxou pelo cinto e o segurou pelo quadril, estapeando-o
com a palma e as costas da mão, sucessivamente. A
ardência logo despertou Sérgio para começar a se remexer.

Ele declarou: — Repita “não vou me meter na vida do


meu senhor e muito menos ser preconceituoso com funk!”
— Mas o senhor se mete na minha! — protestou.
Apesar de estar gostando de apanhar, achava aquilo injusto.

— Porque eu sou seu senhor, não entendeu? — Ele


deu um suspiro cansado, aplicando duas palmadas com a
mão aberta, uma em cada lado. Ao mesmo tempo, a batida
criava um efeito engraçado pela coincidência dos golpes em
sua bunda. Seu pau engaiolado balançava, e Sérgio podia
senti-lo pulsar por entre as grades metálicas.
— Vamos, servo. Será que eu vou ter que te bater
ainda mais? — Ele o prendeu firme contra seu próprio braço
e despejou três tapas ritmados que, por mais leves que
fossem em relação ao paddler e ao flogger, o fizeram dar
um gritinho entredentes.
Resmungou: — Os esquerdistas fazem balbúrdia na
faculdade e sou eu quem apanha... — A mão de Leon o
acertou mais três vezes por esse comentário. Ele esperou
um pouco, deixando que se recuperasse para a fustigada
seguinte, quando o “pincelou” sem parar, arrancando de si
um uivo.

— Eu acho que você faz essas piadinhas sem graça


porque no fundo, nem mesmo você se entende. É doloroso
viver no escuro, sem saber quem você é, sem entender o
que sente! — Leon falava, e Sérgio teve a impressão de que
não estava falando só dele. Começava a se penalizar um
pouco pela expressão triste de seu dominador, quando ele
recobrou a frequência, acertando-o com a palma aberta da
mão como se fosse uma bola de vôlei em jogo.

— Isso dói!

— Eu sei. — ele respondeu friamente, o som sucessivo


das palmadas repercutindo junto com a música pela enorme
casa vazia. Corava, envergonhado em pensar que talvez até
os vizinhos estivessem escutando e imaginando o que o MC
Niak fazia no seu aparelho de som.
— Não vou mais me meter na vida do meu senhor! Ai!
E nem ser preconceituoso com funk! Satisfeito agora?
— Saberá quando eu estiver satisfeito! — ele
declarou, com mais um tapa onde suas nádegas se
encontravam.

Àquela altura, começava a sentir seu pau lutando


contra a estrutura firme que o continha. Aquele aperto em
suas bolas começava a incomodar também.

— Leon...

— É senhor!

— Senhor, o meu... tá começando a doer. Eu tô


ficando de pau duro, Leon!
Ele parou por um momento, analisando o quadro: —
Na circunstância atual, faz parte do castigo. Tem que
aprender a sentir prazer sem ficar logo duro. — Ele retomou,
dando uma série de tapinhas ritmados em suas bolas, o que
só aumentava o seu tesão.

Seu traseiro queimava, e seu pinto mais ainda.


Adorava o ar intimista que apanhar direto da mão dele
tinha, mas aquilo era simplesmente tortura, estava a ponto
de explodir sem poder gozar.
— Para, Leon! Eu tô melado, mas a sensação é
péssima! Você poderia tirar esse cinto de mim e aí... — Sua
sugestão foi seguida de um “não”.

— Vai ficar assim até eu decidir tirar. É bom pra você


pensar um pouco melhor nas coisas que quer. Tem alguma
coisa que gostaria de me contar?
Engoliu em seco; seria isso uma indireta? Olhou para
trás, para a face contraída dele. Não iria confessar algo que
pudesse passar batido. Tinha que seguir adiante o
compromisso com Camila, mas não queria abrir mão de
Leon. E desconfiava que não seria bom chatear um
comunista que tinha a chave do pinto dele.
— Não, senhor.

— Muito bem. — Ele deu mais dois tapas dos lados e


um no centro, bem onde doía mais. Reclamou baixinho, as
mãos severas de seu doutrinador passando a massagear de
leve sua pele aquecida à medida em que o funk acabava e
começava outro. Os dedos dele o tateavam e agarravam
aqueles dois feixes de carne e nervos, apertando de leve e
soltando em seguida. Justo quando começava a gostar, ele
parou.
— Levante-se.

Sérgio cobria o pau latejante e pingando.

Ao ver isso, Leon puxou suas mãos dali: — De frente


pra a parede, com as mãos para trás! — Obedeceu
prontamente.

Ele voltou a tocar em seus glúteos, fazendo Sérgio


estremecer. Leon o apalpava como se o examinasse,
comentando ao pé do seu ouvido: — Você tem trabalhado
bem os músculos, tô gostando de ver. Te sacanearam?

Ruborizou, se lembrando de como se sentira


envergonhado em realizar aquelas séries de exercícios para
as pernas na frente de seus amigos. Mas sua resposta não
tinha sido de todo ruim: — Disse a eles que quero ficar com
pernas de atleta e não de palito que nem as deles.

Leon riu, desfazendo um pouco a seriedade. — Gosto


de quando você fala assim, sem se preocupar com o que os
outros vão achar. Se sente mais livre?

— Sim, senhor! — disse, surpreendendo-se com sua


própria resposta. Respondera ainda com o nariz virado para
a parede, sua “raba” em brasa e vigiando a posição dos pés
e mãos para agradar ao seu senhor, mas por algum motivo
estranho, era o mais livre que já tinha se sentido até então.

— Vai ficar aí até eu mandar, entendido? — Ele se


afastou, voltando a sentar-se onde há pouco o surrara.

Sérgio virou o rosto para vê-lo esticando as costas e


se reclinando no sofá, seu sofá, enquanto cruzava os pés
calçados de botas em seu tapete persa caríssimo.
— Você é um bolsominion muito mal educado! Espero
que isto tudo esteja te servindo de lição!

— Sim, senhor — respondeu, sem conseguir conter


uma risadinha.
Leon baixou o som com o controle: — Do que está
rindo agora?

— É que você simplesmente vem na minha casa, usa


o meu aparelho de som, me bate e me coloca de castigo no
cantinho, igual uma Supernanny.
— Ela não batia nas crianças, pelo que eu me lembre.

— Meus pais diziam que até Supernanny desceria a


lenha em mim. Mas eles mesmos nunca me bateram. —
confessou, sem entender como sua sessão de BDSM
começava a se parecer com uma terapia.

— Os meus também nunca fizeram nada disso


comigo. Bater em criança é uma selvageria sem tamanho.

Arregalou os olhos para ele, surpreso com aquela


opinião vinda de alguém que ganhava a vida batendo nos
outros.

— Só bato em adultos safados que nem você. — Ele


ria, seu olhar se direcionando exatamente para o lugar que
agora se encontrava rosado e marcado pelos dedos de sua
mão. Leon cruzou os braços, franzindo as sobrancelhas num
semblante severo: — De cara pra parede, Sérgio! O papo tá
bom, mas você ainda tá de castigo, não se esqueça.

Virou o rosto, a ereção já não incomodando como


antes. Mesmo sem ter gozado, havia satisfação apenas em
estar ali, de pé, servindo sob o olhar daquele senhor tão
rígido e ao mesmo tempo, tão amável. E Leon tinha dito que
gostava dele também. Ficou a espiá-lo por sobre o ombro de
vez em quando, mas tão logo ele o via, o mandava voltar
para frente.

— Vamos ficar aqui até amanhecer se continuar desse


jeito! — Leon ameaçou: — Tomei um energético e não tenho
aula, posso ficar o tempo que precisar.
Suspirou, já cansado de estar de pé, o cinto também
começando a incomodar pela ação da gravidade sobre ele.
Pensou que ficariam assim para sempre, até que o som da
campainha e depois de seu celular tocando o assustaram.

— Deixa eu atender, Leon! Pode ser importante!

— Tudo bem. — ele respondeu logo.


Sérgio pegou o aparelho de cima da mesinha de
centro ocupada pelo capacete de Leon e pelas compras da
farmácia. Era Camila. Engoliu em seco, ciente da presença
de seu dominador ali: — Dá licença?

— Não, vai atender aqui mesmo. Na verdade, quero


você sentado no meu colo enquanto estiver falando. — Ele
deu um tapinha na própria coxa.
— É o que, hein? — Fez uma careta pra ele, mas não
quis perder mais tempo discutindo ao ouvir a campainha.

Leon abriu os braços, liberando o espaço em seus


joelhos para que ele se sentasse ali. Sua pele irritada se
arrepiou em contato com o tecido rústico da calça jeans
dele. Ele passou o braço possessivamente sobre sua cintura,
e Sérgio se tornou mais consciente de que seria impossível
ele não ouvir qualquer coisa que sua noiva dissesse. O
celular continuava vibrando e tocando estridente.
Atendeu: — Alô?

— Oi, Amor! Tô apertando campainha há um tempão!


Que som alto é esse aí? — A voz dela chegava com
dificuldade ao seu ouvido. Procurou o controle do aparelho
de som, mas Leon se adiantou, abaixando o volume.

— Lembra daquele amigo que eu te falei? — Olhava


de esguelha para ele, desejando que Camila logo se
lembrasse do livro que ela vira no hospital.

— Ah, sei. Mas precisa dessa baixaria nesse volume


todo? Vão pensar que aqui é uma favela!

Leon balançava negativamente a cabeça como se


estivesse prestes a repetir toda aquela sessão nele só por
ter ouvido aquilo. Respondeu: — Não fala assim, Paixão! A
música ajuda ele a se concentrar.

— Será que eu posso entrar? Tô com saudade, Bem!


— ela falava, o tom de voz rivalizando com o som.

O dominador deu de ombros, murmurando: — Se ela


quiser entrar, tudo bem. Mas você vai continuar assim e no
canto. — decretou, com certo prazer.
Tentou pegar a cueca, mas Leon tirou a peça de seu
alcance. — Ou é assim, ou vou entender que você não
explicou direito o que estamos fazendo.
Sérgio olhou dele para o circuito de câmeras do lado
de fora em sua televisão. Deu um resmungo, chutando a
mesinha.

— Olha... — Ele erguia o indicador, como se ele fosse


um animalzinho não adestrado.
Falou ao celular, de saco cheio: — Camila, desculpa,
mas não posso te receber agora, tá bom! É muito exclusivo.
— Como assim, não tô entendendo.

Sérgio já estava a ponto de arrancar os próprios


cabelos: — Espera, eu vou aí te explicar! — Desligou e
tentou pegar o roupão do sofá, mas Leon também não o
deixou.
— Preciso da roupa pra ir lá fora!

— Ué, a casa não é murada? Pensei que acreditasse


no ideal da propriedade privada. Entre quatro paredes...

— Mas quatro paredes do lado de fora é bastante


diferente daqui dentro!

Ele sorriu: — Quero ver esse seu rabo quente pegando


um ventinho, Sérgio. Vai agora lá na sua noiva explicar essa
situação assim, do jeito que você está. Ela vai entender.

Se levantou, tentando em vão pegar a caixa ou


qualquer coisa para se cobrir, mas ele lhe tirou tudo, rindo.
Sérgio sabia que podia a qualquer momento usar a palavra
de segurança, porém sabia que isso faria Leon desconfiar
totalmente do que estava acontecendo ali.

Terminou por sair se cobrindo com as mãos e andando


pelo jardim da casa, a brisa fria da noite arrepiando sua pele
nua e ardida. Se Camila o visse daquele jeito, o que
pensaria? Não abriria o portão enorme de metal para ela, de
jeito nenhum. Em vez disso, pegou uma das cadeiras da
varanda, colocou rente ao muro e subiu nela. Olhava para
os lados e se agachava, com medo que o vissem.

O gritinho dela o assustou, mas se manteve frio, como


se estivesse apenas de bermuda, malhando em casa. — Oi,
Paixão! Eu te disse, tô ocupado agora.

— Mas é terça à noite, não me diga que você tá de


novo gravando outro vídeo pro canal? Será que o Henrique
não pode esperar?

— Ele tem faculdade, só tinha esse horário pra ele vir.


Estamos destrinchando todos os meandros da vulgaridade
do funk e como ele perpetua o lixo musical da atualidade
desde os anos 90. — falava, incomodado por um arbusto
encostando onde não devia.

— Ah, todo mundo sabe que funk é uma merda! Por


que não deixa isso de lado e vamos dar uma volta, Sérgio!

— Já falei, não dá! Que tal amanhã?

— E se eu ficar com vocês na sala? Não vou


atrapalhar, prometo.
— Não é isso! Eu... — falava, quando Leon apareceu
na porta.

Camila se esticou na ponta dos saltos, tentando espiar


por cima do muro: — Aquele é o Henrique? Parece super
gente boa, aposto que ele não se incomodaria de...

— Chega, Camila! Tá tarde, eu tô cansado! Vai pra


casa que é perigoso uma mulher solteira andar sozinha por
aí na rua! — Apontava o condomínio cercado e vigiado.
Ela gritou: — Você acha que eu sou trouxa, é? Que eu
vou acreditar que você e o seu amigo estão sozinhos
ouvindo funk até altas horas e nenhuma
não tem
vagabunda aí com vocês? Vai à merda, seu imbecil! — Ela
entrou na SUV e antes que pudessem fazer algo, saiu
cantando pneu e arrastando a moto de Leon consigo por
alguns metros.

Sérgio ficou agarrado ao muro. Em silêncio, assistia o


dominador levar as mãos a cabeça. Ele levantou a moto do
chão, arrasado.
— Eu pago!

Leon parou de desentortar o espelho retrovisor,


suspirando: — A culpa é minha. Não deveria ter aceitado
esse trabalho. — resmungou, desprendendo os cacos soltos.

— Vou te fazer um cheque, espera aí! — Entrou


depressa, vestiu o roupão e tirou o talão do cofre,
preenchendo um valor bastante além do que corresponderia
ao conserto. Entregou-o: — Ela não tava muito bem, devem
ser os remédios. Ela sempre foi meio ciumenta.

Ele balançou a cabeça: — Ela não tá pronta, Sérgio.


Não adianta forçar nada disso. Me desculpe, mas não dá pra
continuar desse jeito. — Leon retirou o cordão com a chave
em seu pescoço, lhe entregando: — Pode ficar pra você.
Talvez sua noiva se sinta mais segura se você der a chave a
ela.
A ironia golpeou sua face, mas Sérgio não sentiu
prazer algum nisso. Pegou a chave nas mãos, pensando em
como toda aquela noite tinha transcorrido tão bem pra se
desenrolar daquele jeito. Tinha entregue seu corpo a serviço
dele. Não queria que parassem agora. — Eu vou conversar
com ela! Se ela não concordar, então eu vou...

— Vai o que, hã? Romper seu noivado?

Poderia ir tão longe àquele ponto? Um arranjo de três


anos, um compromisso que as famílias tinham uma com a
outra. Haveriam perguntas, ressentimentos. Não sabia de
que modo a dupla de irmãos milicianos reagiria a um
término relâmpago. Tocou-lhe o braço: — Só me dá um
tempo.

Leon deu uma risadinha, de cabeça baixa: — A Camila


gritou bem alto e eu ouvi: ela não é trouxa e eu não sou um
idiota! Você prometeu conversar com ela da primeira vez e
tô vendo que não fez nada disso!

— Não, eu conversei sim! Ela que deu um ataque de


ciúme, pensando que podia ter mulher aqui com a gente —
disse, esperando que ele o levasse à sério: — Só preciso de
um tempo.

Ele suspirou: — Muito bem. Você vai conversar com


ela. — Leon ajustou o capacete: — Até lá, seja um bom
servo e tenha um pouquinho mais de responsabilidade nos
seus relacionamentos. Não me faça passar por isso uma
terceira vez, por que vai ser a última. Compreendido?
— Sim, senhor. — respondeu, entregando a chave de
volta a ele.
Leon ergueu uma sobrancelha: — Olha lá, hein. Se
tentar me passar a perna de novo, eu sumo com isso aqui e
vai ter que dar entrada no pronto-socorro ou num chaveiro!

— Vou obedecer desta vez. — respondeu de cabeça


baixa, a estrutura metálica pesando entre suas pernas, seu
traseiro dolorido suavemente acariciado pela maciez do
roupão.

Ele sorriu e baixou o visor. Saiu pela noite, o


escapamento um pouco mais barulhento depois da batida.

Sérgio desligou o aparelho de som e conferiu as


compras que Leon lhe deixara: cotonetes, talco e óleo de
bebê. Também tinha um kit para enemas, que lhe despertou
curiosidade e um tantinho só de apreensão. Tinha o
suficiente para se ocupar, pensou, abrindo os lados do
roupão e olhando para seu pinto engaiolado.

Era quase uma da noite quando a mãe de Camila


retornou seu telefonema e o tranquilizou ao dizer que ela
havia chegado bem em casa. Sua futura sogra, porém, o
enchia de perguntas, ao que Sérgio tentou ser o mais breve
e respeitoso possível, especialmente ao pensar no que a
dupla dinâmica Idi e Ota poderiam fazer com ele:

— Ela entendeu errado, Dona Ítala. Eu sempre fui


honesto, a senhora me conhece — pensou em seu pai
dizendo aquilo e concluiu que não era uma boa frase: — Por
favor, diz pra sua filha que ela tá me julgando mal e que eu
tô disposto a deixar tudo em pratos limpos amanhã.

Ela hesitava, mas parecia sincera em querer ajudá-lo:


— Tudo bem, vou conversar com ela. Afinal, vocês já estão
noivos há tanto tempo, fica mal quebrar um compromisso
assim. Você com certeza não a trairia. — A última frase lhe
soou mais como uma ameaça que uma constatação.

Se despediu depressa e inspirou fundo, sem saber


como consertaria tudo. De qualquer forma, precisava dormir
pra raciocinar bem no dia seguinte.

Vestiu uma cueca que deixasse aquela estrutura mais


fixa no lugar e um pijama confortável e deitou. A falta de ter
dado uma gozada ainda o perseguia. Sonhou que Leon o
ordenhava, extraindo todo o leite dele. Depois, ele o
castigava, batendo-lhe com um cinto e deixando grandes
marcas em vermelho-vivo enquanto o acusava de tê-lo
enganado novamente. A fivela do cinto bateu na cabeça de
seu pau, lhe arrancando um grito.

Acordou e viu que na verdade era a argola do cinto


que tinha prendido a pele e o fizera ter aquela dor
lancinante. Não dava mesmo pra ficar de pau duro com
aquela coisa.

O sono e a vontade de mijar o dominavam, então nem


pensou duas vezes ao se posicionar de frente para o
sanitário. Depois de xingar pela sujeira feita, limpou o
assento com um papel higiênico e sentou pra terminar,
percebendo finalmente o quão limitador aquilo seria. Não
sentava pra fazer xixi desde criança, ser forçado a isso só o
fazia pensar em todo o poder que havia cedido a seu
dominador. E pensar nele, de braços cruzados, ordenando
que andasse pela sala preso daquele jeito era o suficiente
para ficar excitado de novo.
Tomou uma ducha fria e depois de penar para secar
tudo com papel higiênico e cotonetes, se arrumou para o
trabalho. Como última precaução, checou se o volume
ficava muito aparente na calça, mas parecia normal. Ótimo.

Seria um longo dia.

###

Na parte de trás do clube Kama Sutra, Leon parou


para tomar um cafezinho e conversar com seus amigos
mais próximos, dominadores como ele. Era uma salinha ao
lado do corredor que por força do hábito acabou chamada
de sala dos dominadores. As dommes também a usavam,
dentre elas, a Camarada Rosa, que deixou de lado seu
tamagotchi e perguntou de novo:

— Peraí, ela ainda passou por cima da sua moto?

Leon acenou com a cabeça, tremendo um pouco pela


noite de sono mal dormida: — A questão é: castigo ele pela
atitude dela, ou não?

— Cara, para de ir na desse maluco! — Kleber, mais


conhecido como Stalin em certas cenas, alisou o bigode.
Não fosse o fato de ser negro, poderia facilmente passar
pelo revolucionário quando jovem: — Nenhum dinheiro no
mundo vale isso!

— Eu sei, mas tem uma coisa com esse cara que


desperta em mim o meu lado mais pervertido. Não sei
explicar. É uma vontade de dominá-lo absoluta. Ele me dá
muito nos nervos, de um jeito bom.

O Camarada Mao, que retirava uma vela em formato


fálico do molde, comentou: — Você precisa ser mais duro,
mostrar quem é que manda. Nenhum brat tamer suportaria
as coisas que você passou.
— Ele é realmente encrenqueiro aquele seu sub. —
comentou Soraya, que gostava de uma fofoca igual a todo
mundo.

— Se ele invadiu o espaço da cena com a vida pessoal


dele, tá na hora de você fazer o mesmo e invadir a vida
pessoal dele como dominador! — declarou o Companheiro
Che, de chimarrão na mão.
— Mais do que deixá-lo com o bumbum vermelho,
você precisa fazê-lo se sentir culpado de verdade pelo que
aconteceu e cobrar responsabilidade dele. — opinou Rosa,
guardando o joguinho na bolsa pra responder as mensagens
dos netos.

Leon balançou a cabeça, jogando fora o copinho de


café: — Valeu, pessoal. De volta à masmorra! — disse,
recebendo tapinhas no ombro.
###
Assim que estacionou o carro em sua vaga pessoal na
sede da empresa, Sérgio notou no retrovisor a presença dos
brutamontes que teria por cunhados. Pegava na marcha
para voltar ao asfalto, mas Gian e Giovani vieram a passos
largos e logo se posicionaram de ambos os lados do carro.

O gêmeo mais velho bateu no vidro, sua expressão de


poucos amigos acentuada pelo revólver que fazia volume
debaixo de sua camisa.

Sua pressão caiu e pensou que ia acabar manchando


a própria cueca, justo sua favorita e que não mostrara a
Leon ainda. O que eles fariam? Assassiná-lo a sangue frio
em plena luz do dia, em frente às câmeras? Se lembrou dos
inúmeros casos de pessoas apagadas por eles e voltou a
temer. “Não”, pensava, “sou filho do ex-senador mais rico
do estado. Eles não fariam isso assim, bem onde todos
podem ver”.

Baixou o vidro.

— Que demora, cunhadinho. Só queremos conversar.


Se importa? — ele acendeu o cigarro, guardando o isqueiro
no bolso.

Sérgio já se via amarrado numa pilha de pneus


encharcados de querosene, com eles ao lado, segurando
aquela pequena chama. Desceu do carro: — Podemos
conversar no refeitório se quiserem. Tem um café expresso
muito bom, já experimentaram?
O armário número dois veio pelo outro lado, a mão
ameaçadora agarrando seu ombro: — fratella
Nossa
apareceu chorando ontem. Como espera ser um bom
marido se antes mesmo de casarem já a faz chorar assim? É
preocupante, sobretudo pra você.
Tremeu, conforme tentava se afastar e os dois o
seguiam, devagar, mas sem se deterem, olhos fixos nele. —
E-eu sinto muito! Não era minha intenção, ela entendeu
errado! Eu estava fazendo uma pesquisa com um colega.
Não tinha nenhuma mulher com a gente... — falava, até
perceber que eles o haviam encurralado contra o carro.

A mão pesada de Gian afundou em sua barriga. Tossiu


e caiu ao chão, sem fôlego. Pensou que fosse cuspir suas
próprias tripas.
Giovani projetou sua sombra sobre ele: — É bom a
Camila não ter mais nenhum motivo pra chorar, qualquer
que seja. Do contrário, nós daremos um motivo para os seus
pais chorarem.
Permaneceu no chão enquanto eles caminhavam
calmamente de volta para o opala preto estacionado do
outro lado. A placa adulterada com fita isolante confirmou
que eles tinham tido tempo o suficiente para pensar em
todos os detalhes.
Se apoiou em sua BMW, puxando o ar pela boca e
olhou para a câmera acima. Dito e feito: estava tapada com
fita isolante. Levou a mão sôfrego até o próprio estômago,
recostado no carro. Deus, o que seria dele agora?
Limpou a baba escorrendo do queixo e olhou para o
céu, meio nublado. Faltavam oito meses ainda para o
casamento, isto é, se ele fosse realizado. Olhou para baixo,
para seus sapatos de couro italiano, legítimo. E se fugisse
para a Sicília? Não, pensando bem, o Poderoso Chefão já
tinha demonstrado que era uma burrice tentar fugir de
gângsters se cercando de mais gângsters. Talvez, Atibaia:
lugar calmo, sossegado. Poderia até comprar um sítio lá,
quem sabe? Podia apostar que Leon adoraria visitar a
propriedade que, Sérgio acreditava, pertencera ao maior
ídolo dele. E ele, por sua vez, adoraria estar sempre
lembrando do quanto aquele lugar fora decisivo para os
processos que se seguiram.
Claro que isso era só o desejo de fugir de tudo. Leon
tinha dito que gostava dele, mas é claro que não era bem
assim. Ele devia dizer aquilo para todos os outros clientes. E
ele próprio, largaria tudo pra viver no mato? Ficou se
perguntando, sem chegar a uma conclusão. O medo o fazia
pensar em loucuras. Poderia muito bem fazer as pazes com
Camila, se endireitar e parar de procurar encrencas. Assim
que pudesse, entraria em contato com seu pai e pediria
uma grana gorda pra se mandar o mais rápido para o
exterior. Quem sabe ele também não dava um jeito de tirar
os gêmeos da pesada de circulação? Viveria com sua
esposa e teria filhos, uma família tradicional e perfeita,
como deveria ser. Era o que deveria fazer.

Mas era o que queria?


Fungou o nariz. Ao vê-lo caído, Val veio correndo: —
Doutor Frazier! O senhor está bem?
— Tô, Val. Faz um favor, pede pro Nestor arrumar uma
escada e tirar a fita adesiva que algum engraçadinho
grudou na câmera. — gemeu, andando em direção ao
prédio.

Arrastou os passos até sua sala, onde ficou por toda a


manhã. Sentado em sua cadeira de escritório, reclinava a
cabeça e olhava para o teto se perguntando quando foi que
sua vida tinha saído dos eixos. Ah, sim. Foi quando
conhecera Leon, é claro. Aquele petista safado.
Agora, no entanto, poucas pessoas lhe davam motivo
para sorrir como ele. E justo quando voltava a se acertar
com ele, Camila aparecera e agora eram os irmãos dela que
o ameaçavam... Precisava dar um fim naquilo. Não queria
que Leon se decepcionasse mais com ele, e não queria
acabar gelado num necrotério. Na noite anterior, ao se
deitar, pensara em formas de terminar seu noivado.
Provavelmente em todas elas os irmãos Idi e Ota lhe
passariam o aço, como se dizia. Roía os cantos das unhas e
remoía os pensamentos quando Nestor apareceu em sua
frente.

— O que você quer?


— Me desculpe, Doutor Frazier, é que a Regina disse
que o senhor estava aqui e que poderia ver pra mim aquele
negócio do...
— Ah, que negócio eu tenho com o senhor? Vá ver se
eu tô na esquina!

— Mas o meu salário tá atrasado há duas semanas,


se...

— E você quer que eu faça o quê?! Se o senhor não


sabe, estamos numa crise! A pandemia quase destruiu a
empresa e agora é você quem quer terminar o serviço?! Ah,
vá procurar algo pra fazer em vez de reclamar! Eu tô com
dor de cabeça, fecha a porta sem bater! — Claro que o
desgraçado sairia sem fechar a porta, pensou.

Xingou, indo fechá-la quando deu de cara com Camila.


Ela entrou como um furacão, bastante diferente do seu
comportamento habitual.

Sérgio já preparava suas desculpas quando ela sacou


o celular: — Tá vendo isso aqui? Olha bem pra isso! É essa a
piranha que tava com vocês ontem?!
Piscou, erguendo as mãos e encarando a tela: era o
site do Detran, nas buscas por placas e proprietários: —
Você subornou alguém pra pesquisar a placa do Le... quero
dizer, do Henrique?
— Só que o proprietário não é Henrique, é *****! É
esse o nome da piranha que tava com vocês ontem?! É o
mesmo nome que tava no livro!
Sérgio levou as mãos à cabeça. Pronto: agora que não
ia mais conseguir convencê-la de que tinha sido um mal
entendido: — Não é o que você tá pensando, Camila... Não!
— gritava ao ter os cristais de murano da estante atirados
nele. Os caquinhos se espatifaram contra sua mesa, se
espalhando por toda a sala. Se escondeu debaixo da mesa.
— Você quer dançar funk com essa piranha fica à
vontade! Acabou tudo entre nós! — Os funcionários logo
vieram até a porta e frente à presença deles, Camila se
sentiu ainda mais instigada a continuar. Ela o esmurrava: —
Filma aí, pode filmar esse desgraçado! Quero que fique
registrado o que ele me fez!

Ela unhou seu pescoço até ser finalmente retirada


pelo rapaz do marketing e por Val, que tentava acalmá-la.
Nestor tinha sacado o celular e atendia ao pedido dela, o
que fez Sérgio se sentir duplamente humilhado. Agarrou o
aparelho do rapaz, o tacando no chão.

Val e Regina levaram Camila para a sala dela, onde


provavelmente ficaria até o pai aparecer.

Espantou o bando de assalariados que ainda o


encaravam: — O show acabou! Vão comer capim! — Pegou
o notebook, fugindo antes que aquele incêndio o
consumisse.
Nestor catava os restos do celular no chão. Na saída,
Sérgio passou por cima dos caquinhos, quase pisando a
mão do funcionário.

Passou o resto do dia no sofá de casa, sem ânimo nem


para preparar um sanduíche. Em minutos o vídeo da briga
tinha começado a circular no grupo da família. Sua mãe
tinha telefonado umas três mil vezes, seu pai
provavelmente já ficara sabendo do caso em qualquer uma
das mansões ou apartamentos à beira-mar em que estava.
Seus seguidores lotavam suas notificações e haters
compartilhavam o vídeo apontando a farsa do
conservadorismo apregoado por ele.
Sérgio suspirou, pensando em como aquilo era tão
pequeno, vazio.

Olhou para as fotos deles no celular. Ele e Camila


formavam um belo casal, pensava, esteticamente
agradável. Mas sentia alívio em pensar que tudo tinha
acabado enfim, principalmente depois de conhecer aquele
lado tão ciumento e intempestivo dela.
Se levantou de repente do sofá, percebendo que ela
não só tinha o número da placa de Leon, como sabia o
telefone e o nome antigo dele, provavelmente até o
endereço. E se ela tentasse lhe fazer mal?

Abriu o aplicativo de mensagens, procurando


depressa pelo telefone do dominador. Ligou.

Caixa postal, merda! Andava de um lado para o outro,


sem saber o que fazer. Poderia ir até o clube, mas temia ser
seguido por algum membro da famiglia. Pediria ajuda a seus
pais ou alguém de seu próprio círculo, mas além do
inconveniente de dar explicações sobre o que fazia,
também tinha o fato de estar queimado com eles. Ambos
queriam muito estreitar os laços com a família Gentile e
agora é que não o ajudariam.
De repente, Leon retornou a chamada: — Ah, graças a
Deus!

— Cuidado, Sérgio! É blasfêmia falar o nome do


criador à toa assim.

Sentiu um bolo se formando em sua garganta: —


Aconteceu tanta coisa hoje de manhã; a Camila terminou
comigo.
— Sinto muito.

— Foi até melhor. Aquela maluca me arranhou,


quebrou tudo que tinha na minha sala e gritou pra todo
mundo que eu traí ela com uma mulher.
Leon pareceu conter uma risada do outro lado.

— Você tá rindo é? Não foi nada engraçado. Ela


rastreou sua placa, cara.

— Putz, isso é sério. — ele disse e Sérgio continuou,


ainda trêmulo ao relembrar toda a situação:

— Os irmãos dela me cercaram no estacionamento da


minha empresa. Eles são perigosos, Leon. Tenho medo do
que podem fazer comigo ou... com você.
— Eles te machucaram?

— Me deram um soco, bem no estômago. Ainda sinto


falta de ar.

Ouviu o ranger de dentes quase imperceptível de seu


dominador: — Estou indo pra aí.
— Não, não! Eles podem te seguir, te fazer algum
mal!
— Mas você não pode ficar assim, sozinho. Eu vou até
aí cuidar de você. — Antes que repetisse sua preocupação,
ele desligou.

A agonia daquela espera se prolongou por uns vinte e


seis minutos. Vinte e seis minutos em que Sérgio ficou se
perguntando se Leon estava bem, se não poderia ter sido
raptado pelos irmãos e virado comida de peixe. Tentava não
pensar mais nisso, quando o viu pela câmera de segurança.

O recebeu e ele lhe deu um abraço. — Tudo bem,


cara?

— Agora que você chegou, sim. — respondeu, sem


pensar muito. Seu dominador ainda o abraçava e ele ficou
se perguntando como ele, que era pago para lhe bater e
punir, podia estar sendo o único a demonstrar alguma
compaixão por ele naquele momento. Uma lágrima escorreu
pelo canto do seu olho.
— Que foi? — Ele o encarou, com um sorriso
atencioso.

Fungou o nariz, sua voz embargada: — Você é o único


do meu lado agora.

Ele suspirou.

Pressentindo outra palestra a caminho, se adiantou,


limpando as lágrimas: — Tá, eu sei o que vai dizer: que você
é meu senhor e doutrinador, que eu sou uma posse sua e
submisso e você tem que zelar por mim, é isso?
Ele balançou a cabeça: — É, isso também. Mas eu não
te considero só uma “propriedade” minha: eu gosto de
você. Sei que não temos quase nada em comum além do
BDSM, e eu fiquei muito chateado com várias coisas que
você fez nos últimos dias. Mas sei lá, eu gosto de você. De
verdade.

Riu, sem saber o que responder. Nada mais em sua


vida fazia sentido. Sentou numa das pedras do jardim, com
a cabeça entre os joelhos. Sabia lidar com um Leon que
demandava obediência plena, mas um que falava de
sentimentos era quase como um ser alienígena na sua
frente. Chorou: — Tô muito fudido. Minha vida acabou.
Leon sentou ao seu lado no gramado, os tênis
encardidos dele contrastando com seus sapatos de couro.
Ele pôs a mão em suas costas. Era como da primeira vez em
que ele o surpreendera após toda a surra e aquelas palavras
brutas com um pirulito e outros cuidados.

Sérgio reclinou a cabeça sobre o ombro dele,


perguntando: — Por que eu te conheci só agora? Por que
não podia ter te conhecido antes, quando eu ainda era
descompromissado?
Ele ergueu o rosto para o céu, a barba curta
despontando do queixo: — São os mistérios da vida.
Voltou-se para ele, acariciando seu rosto: — Antes de
você ligar, eu tava planejando que castigo te daria pela
moto, mas tô vendo que chegaram antes de mim. Que tal
darmos uma olhada nesses arranhões?

Entraram e o coach sentou no sofá, com Leon o


amparando. Ele tirou a mochila do ombro, e Sérgio esboçou
um sorriso ao vê-lo com um pequeno frasco de álcool
antisséptico, algodão e curativos.

— Você sempre anda com essas coisas por aí?


Ele riu: — Pode-se dizer que faz parte da profissão.
Agora, deixa eu ver. — Ficou parado enquanto ele roçava os
dedos sobre as finas riscas em seu pescoço, arrepiando
ainda mais sua pele. — É superficial, nada sério. E o seu
estômago, ainda dói?

— Um pouco. — respondeu, ao que ele levantou sua


camisa, tocando de leve em sua barriga. Sérgio não
conseguiu evitar franzir o rosto quando ele apertou um
pouco o local.

— Sorte sua que você tinha trabalhado esse abdome.


Um soco nessa região pode até matar. Seria bom você ir a
um médico pra ter certeza de que está tudo bem. Teve
algum sangramento, falta de ar? Tontura? — ele falou, seu
semblante preocupado.

— Não, nada. Eu tô bem. É só que não tenho mais


coragem de botar o pé pra fora de casa. — Levou as mãos
até o rosto de novo.
— Covardes. — Leon murmurou, acariciando de leve
os cachos de seu cabelo: — Dois “brabos” pelo visto, e você
não pode denunciá-los, tô certo?
Sérgio olhou para ele, acenando com a cabeça: —
Meu pai tem lá sua influência, mas ele não vai querer me
ajudar nisso depois da Camila ter desfeito nosso noivado e
desse escândalo todo. Eu tô muito ferrado, Leon. E se
quiserem me matar?

O dominador suspirou: — Fique calmo. Você tá


assustado, é isso. A sua noiva pode ter reagido mal, mas ela
provavelmente não iria querer se indispor com a sua família.
Além disso, agora que vocês terminaram, pode ser que eles
te deixem em paz. — Ele pôs a mão em seu ombro: — Na
verdade, acho bem estranho você temer tanto eles, já que
iam fazer parte da mesma família. Não é você que se diz
totalmente contra criminosos e a favor de penas mais
duras?
Sérgio arregalou os olhos, como que percebendo em
míseros instantes o que talvez não perceberia em uma vida
inteira: — Nunca pensei que pudessem me atacar desse
jeito. Parecia que o meu nome, o meu dinheiro, nada disso
tinha importância.

— Você deixou um monte de gente zangada, não foi


sem motivo. Mas não adianta ficar assim agora. Você tem
tanto dinheiro, porque não contrata seguranças?
— Não posso, não confio em mais ninguém, Leon. Eu
estou sozinho. — De nada lhe adiantava o prestígio social,
os seguidores. Sua ilusão de segurança tinha sido quebrada
com aquele soco e ele percebera quão frágil era apesar de
todos os números que colecionava ao seu redor.
Leon sentou ao seu lado no sofá, abraçando-o: — Você
não tá sozinho. Eu tô aqui com você. — Ele o envolvia nos
braços musculosos, beijando de leve sua testa. Em
resposta, Sérgio o apertou um pouco mais, entrelaçando
suas mãos nas costas dele e descansando sua cabeça
naquele peitoral coberto por uma camisa da banda Os
Mutantes. Apontou aquele detalhe, e ele sorriu:

— Eu gosto. Até participei da rifa do Arnaldo Baptista.


Sabe, o Battle Dress, aquele casacão?

Levou a mão até a boca: — Nossa, meu! E ganhou?

— Não... — respondeu, rindo: — Mesmo se eu tivesse


ganho, o fã clube todo concordou em devolver o casaco pra
ele.
— Isso foi bacana.

— E você, gosta?
— Eu curtia algumas músicas deles. Às vezes, tocava
no rádio e a minha babá cantava pra mim. Tipo aquela,
“Mais louco é quem me diz, que não é feliz...”

— "Não é feliz...” — ele cantarolou junto.

— “E brrrrrruuuuuummmmmm!” — imitaram o
barulho sem nexo que o vocalista fazia.
— Adoro essa parte! — seu dominador disse, e Sérgio
se viu sorrindo. A mão de Leon saiu de suas costas e veio
para seu rosto, acariciando sua bochecha de leve.
— Está mais tranquilo agora. Já comeu alguma coisa?

Já era mais de uma da tarde. — Só uma fatia de ricota


com ovo e aveia, mais o café sem açúcar. Tava sem fome. —
Ele fez uma careta.
— Com um cardápio desses, eu também estaria. Mas
não tem problema, vou te preparar uma coisa. Mas antes,
acho que seria melhor eu te dar um banho, pra você
terminar de relaxar e lavar esses arranhões. — Leon dizia,
com um olhar que fez Sérgio questionar o real interesse
dele.

— Você, me dar banho? Não precisa, eu nem te


paguei pra isso.

Ele gargalhou: — Você é muito paranoico, né não? —


Ele pôs a mão sobre sua nuca: — Só quero te ajudar. Você é
meu submisso, afinal.

Se ele queria fazer aqueles joguinhos, tudo bem,


Sérgio decidiu. Subiram juntos pela escadaria ampla até o
segundo piso, onde ficava sua suíte. Leon assobiou ao ver o
tamanho dela: — É maior que meu apartamento inteiro.
Cabem duas famílias fácil aqui.
— Vocês, comunistas, adorariam ocupar isto, né? —
provocou-o.
— Geralmente a gente prefere terras improdutivas,
mas este lugar parece bem improdutivo pra mim. — O
sorrisinho dele e a mirada que deu no baixo ventre de
Sérgio o fizeram corar violentamente.

— O banheiro fica aqui. — O guiou pelo cômodo.

O piso todo de porcelanato os refletia conforme


andavam. Leon estalou os dedos: — Muito bem, pode ir se
despindo, querido servo.
— Ah, não era brincadeira? Você não vai mesmo me
dar banho, né?

Ele riu: — Vou sim, ora. Vamos, não faça manha.


Sérgio olhou para si mesmo, ainda vestido com toda a
roupa que saíra para o trabalho, sua camisa de algodão
egípcio, a calça igualmente cara e os sapatos de couro.
Olhou para seu dominador, que trajava uma bermuda tactel,
um tênis barato e a camisa dos mutantes: — Engraçado,
você já me viu nu um monte de vezes, mas nunca tira a
roupa na minha frente. Por quê? Tem medo?

Leon piscou, sua mandíbula parecendo se contrair de


leve. Ele segurou seu queixo, falando firme: — Eu sou o
senhor aqui. Eu decido se tiro ou não minha roupa, valeu?
Agora, tira já a sua, antes que eu mesmo tire.
Sérgio não podia mentir, estivera abalado antes, mas
agora aquela postura do doutrinador o atiçava. Queria que
Leon arrancasse suas roupas: — Tira, quero ver! Aposto que
nem sabe fazer isso sem estraga-las, seu pobretão.
Ele deu um suspiro, rindo: — Está tentando me
provocar pra ver o que acontece, mas saiba, Sérgio, que
existem outras punições além das físicas. Não quero te
punir hoje. Seja bonzinho e tire a roupa.
— Vem tirar. — disse, e seu doutrinador não demorou
para cumprir o pedido.

Ele o segurou pelo lado do corpo, prendendo seus


braços enquanto puxava sua camisa para fora da calça.
Depois, o prendeu contra a parede, desabotoando-a, as
pernas roçando em seu pau ainda retido pela gaiola do cinto
de castidade. Apesar do modo bruto como fazia tudo, ele
puxou a peça com cuidado, pendurando-a dobrada no
cabide próximo.

Depois, ele se abaixou, fazendo o mesmo com o cinto


que prendia sua calça, baixando-a de vez. Sérgio levantou
os pés para que ele a tirasse enquanto gemia pela
proximidade de seu pau com a boca de Leon. O bafejar
quente dele não tinha outra intenção a não ser deixa-lo duro
ali mesmo. Bateu de leve nos ombros dele, mas o homem
continuou a retirar seus sapatos e puxar as calças de seus
tornozelos, o deixando só de meias.

Ele observou sua cueca e o volume aumentado nela:


— Conseguiu se limpar?
Quase não pode responder, pois ele puxou a peça,
descobrindo-o de repente, o leve deslocamento de ar lhe
arrepiando inteiro. Suspirou, murmurando: — O meu senhor
não poderia, por favor, abrir isso?
— Ah, melhorou bastante o tom. Eu vou abrir o seu
cinto sim, mas é porque quero ter o prazer de te dar um
banho completo. Depois, vou colocar de volta. — Tirou o
cordão dourado com a chave do pescoço, levando-o até a
pequena fechadura sobre a virilha dele.
Sérgio resmungava contrariado. Ouviram o clique. Seu
dominador pegou um pouco de óleo nas mãos e lambuzou
suas bolas e seu pau com ele, puxando toda a armação de
metal e depois a argola. Sua pele tanto tempo guardada por
trás das finas grades agora exibia uma coloração rosa em
toda a área de atrito do cinto, que condizia com uma nova
sensibilidade aflorada.

Quando ainda voltava a se acostumar com a


liberdade, seu dominador o puxou mais para perto pelos
quadris e aprisionou seu pau entre os dedos. Sérgio gritou
de susto e de prazer, os movimentos ora rápidos, ora lentos
dele lhe proporcionando um êxtase inimaginável. Foi
instantâneo como uma faísca na pólvora: explodiu em três
jorros seguidos na mão daquele homem.

Recostou na parede do banheiro, retomando o fôlego.


Leon se levantou e com as mãos lambuzadas, passou-as
sobre sua boca e enterrou os lábios sobre os seus, num
beijo voraz. Provou do gosto amargo e picante de seu
próprio sêmen na língua daquele homem, enquanto ele
sugava e sorvia sua respiração.

Pararam frente a frente, o calor de suas respirações


arfantes se misturando com aquele orgasmo: — Você disse
que ia me ensinar autocontrole, mas você mesmo não se
controla.

— Digamos que você tem sido um desafio pra mim. —


respondeu ele, acariciando de leve sua bochecha: — É hora
do banho, meu servo.

Ele o guiou gentilmente pela mão até o box. Era


grande assim como o restante do cômodo e contava com
uma banheira do lado. Sérgio questionou porque ele não
preferia usá-la.
— Não tenho esse costume, acho coisa de burguês
banheira no Brasil. Além disso, seu corpo ficaria encoberto
pela água, e eu quero ver você todinho. — Ele lhe deu
aquele olhar, não apenas desejo, mas domínio sobre ele.

Abriu o chuveiro. A água desceu morna sobre seus


ombros, caindo em mil respingos para os lados e
consequentemente sobre seu mestre dominador. Ele nada
disse sobre isso, apenas virou-o de costas para si, pegando
o sabonete e a espoja.

— Por que você também não tira a roupa, meu


senhor? Vamos nos banhar juntos.

Ele deu um sorriso discreto: — Eu bem que deveria,


do jeito que você está me molhando, mas acho que tirar
minha camisa será o bastante por enquanto. — O
doutrinador procedeu em retirá-la e o rosto de Sérgio se
avermelhou ao se virar para ver. Era a primeira vez que via
seu mestre sem camisa. O físico dele era impecável, mas
ficava sempre resguardado por trás das roupas. Ficou um
bom tempo naquela posição desconfortável apenas para ver
o peitoral dele, belamente adornado com alguns pelos na
parte de cima, e duas cicatrizes no extremo inferior
daqueles músculos. Esticou a mão até ele, tocando-as
levemente e depois subindo para seu peito e seus pelos.

Leon continuou calado, bastante sério. Nem mesmo


durante as cenas Sérgio se lembrava de tê-lo visto assim.
Ele quebrou o silêncio com um pequeno sorriso: —
Impressionado?

— Não, é que eu nunca tinha tocado outro cara desse


jeito. É diferente pra mim, sabe.
— Entendo. — ele respondeu, buscando sua mão.
Entrelaçaram os dedos, o fluxo da água caindo sobre suas
costas e descendo corpo abaixo até o ralo. O que era aquilo,
aquele sentimento tão incrível, aquela alegria em estar ali?
Queria repetir aquele beijo, queria que Leon o levasse para
a cama, faria o que ele quisesse. Aproximou seu rosto
devagar, seus olhos ainda abertos, quando ele levou os
dedos até sua boca, parando-o.

— Vamos tratar do seu banho. — ele disse, e Sérgio


obedeceu, voltando a posição anterior. Leon pegou o
sabonete, esfregando-o nas mãos e levou a espuma para
suas axilas. Se encolheu, rindo com as cócegas. Ele
diminuiu o toque, passando para as laterais de seu tronco, e
então para o meio de suas nádegas.
— Opa, opa! Aí não... — Se contorceu, afastando a
mão dele.
— Eu tenho que lavar aí. Venha já pra cá!

Ficou no mesmo lugar. Aquele era seu modus operandi


e não pretendia mudar, pois adorava a reação dele.

Leon o puxou pelo braço, como se ele fosse uma


criança desobediente: — Ai, ai. O que você quer que eu
faça, meu servo? Se comportando assim... Não me faça
perder a paciência. — ele ameaçou, ainda o segurando pelo
braço enquanto tentava a todo custo, limpá-lo ali. Ficaram
assim por mais alguns minutos, até que ele declarou: —
Chega! Se continuar, vai apanhar.

Sérgio olhou para a expressão severa dele, desejando


perguntar se aquilo era mesmo uma promessa. Queria
manter a ilusão de que tudo o que fazia era impensado,
então repuxou a mão dele, fazendo de conta que sairia do
box.
Em resposta, Leon o deteve com um belo puxão de
orelha. A palmada certeira em sua bunda molhada fez um
plaft bem alto.

Choramingou: — Ai! Seu comunista!


— Seu liberal bunda suja, eu vou lavar esse cuzinho
sim, vem cá! — E enterrou a mão ensaboada entre suas
nádegas, esfregando aquele ponto entre elas. Sérgio
exultou com o toque: parecia que seu senhor estava a
apenas um passo (ou alguns centímetros) de dedá-lo de
novo, mas Leon foi bastante respeitoso e só fez o que tinha
prometido, deixando que a ducha do chuveiro terminasse de
enxaguá-lo.
Depois, esfregou suas costas com a escova em
movimentos circulares que o massageavam com as cerdas
e ensaboou seu peito e sua barriga com a esponja macia.
Apreciava aquele gesto relaxante, até que ele levar as mãos
ao seu pinto, assustando-o. Após todo aquele tempo sem se
tocar nem pra mijar, sentir as mãos de outra pessoa a tocá-
lo era uma sensação extasiante, mesmo após já ter gozado.
Apesar de seu incômodo, deixou que ele repuxasse a pele
devagar, lavando o entorno da cabeça do seu pau. Para
alguém que não tinha um, ele fazia aquilo bem, pensou.

Quando terminaram, Leon o acolheu com a toalha


limpa e macia, secando-o. Fez menção de toma-la para se
cobrir, mas ele a manteve em suas mãos até secá-lo de
cabo a rabo. O comunista a passava por detrás de sua
orelha, quando Sérgio teve a curiosidade de perguntar: — Já
foi boxeador por acaso? Quero dizer, você parece saber
bastante sobre o risco de levar um soco no estômago e tal.

Ele riu: — Não — Puxou o banquinho de madeira perto


da pia para ele. Sérgio se sentou, já vestindo um roupão e
seu dominador se pôs atrás dele, enrolando a toalha em sua
cabeça: — É só o básico que aprendi há uns cinco anos,
quando participava de um coletivo socialista. Já estive em
protestos, greves, ocupações. A gente precisa se proteger.
Não é fácil ser um homem trans, muito menos antes,
quando eu não tinha nem feito minha transição.

— Nunca tinha pensado nisso antes. Depois de tudo o


que aconteceu comigo, acho que eu até entendo.

Ele parou por um instante de secar seus cabelos e


ergueu as sobrancelhas, apertando seus cachos de leve
para tirar a água:
— Esse medo que você sentiu é uma fração do que
milhares de pessoas sentem diariamente para que gente
como você se sinta segura. Quantos jovens negros são
parados pela polícia e agredidos, quantas famílias nas
favelas vivem com medo de terem seus entes queridos
sequestrados em viaturas sem deixar qualquer rastro? Você
acha que entende, mas você não viu nada, Sérgio.

Piscou, indignado. Achou que ia morrer naquele


estacionamento e Leon só sabia falar como se quisesse
culpá-lo? Se levantou: — Fui ameaçado de morte por dois
brucutus! Minha noiva, ou melhor, ex, me agrediu e você só
sabe ficar aí militando?

Ele jogou a toalha de uma mão para a outra: — Não


foi minha intenção. Mas tudo que aconteceu é consequência
das suas ações. Quem enganou sua noiva? Quem se meteu
com milicianos, hum?
Cruzou os braços em silêncio e deixou que Leon
terminasse de secar seu cabelo, para logo em seguida o
puxar como se ele fosse um boneco enquanto o vestia com
seu pijama.
Desceram para o andar térreo.

— Acho que o que você precisa é de uma refeição


decente. Algo leve e nutritivo. — Ele mexeu nas diversas
panelas penduradas sobre a ilha da cozinha: — O que você
comeu no café da manhã?

— Só uma laranja e duas torradas com ricota. E ainda


bem, se não, teria vomitado tudo na calçada.

— Com um cardápio desses, não é de se admirar que


não tenha fome. Vou te preparar um almoço, que tal uma
macarronada? — Ele deu um sorriso maroto, organizando os
ingredientes: — Tem um queijo que é perfeito, aquele Grana
Padano. Tem aqui?
Pegou para ele. Leon assobiou: — Alta categoria,
hein?

Sérgio o observou ralar o queijo, os bíceps dele


bastante evidenciados no movimento que fazia. Salivava,
sem saber se era pela comida ou por ele. Depois de cozido o
macarrão, Leon quebrou um único ovo, separando a gema
da clara e misturando-a ao queijo e à manteiga no macarrão
quente, com a ajuda de uma colherzinha. Esperaram até
que a mistura derretesse e se transformasse no molho claro
e cremoso. Ele lhe ofereceu uma prova na colher.

— Hum, delícia!
— Receita da presidenta! — Serviram-se no balcão
mesmo. Aquele espaguete estava divino, o melhor que já
tinha comido.
— Tenho que admitir, ficou muito bom! Obrigado.

O dominador se inclinou, envaidecido com o elogio: —


Tem que ver a lula com chuchu que eu faço. A gente pode
comer um dia, no meu apartamento.
— Seria ótimo. — disse, ainda com o garfo na mão,
imaginando como seria conhecer o lugar em que ele vivia,
estar tão próximo dele. Estar com ele. Parou, encarando os
olhos castanho escuros emoldurados por aquele cabelo
curto e liso, a boca carnuda o fazendo relembrar aquele
momento no banheiro. Queria tê-lo perto de si de novo,
sentir o gosto daqueles lábios. Se inclinou sobre ele,
hesitante.

Felizmente, desta vez seu mestre correspondeu,


aproximando os lábios dos dele. Levou as mãos para tocá-lo
também, mas Leon as afastou de leve, segurando-as. Ele
estava no controle e Sérgio gostou disso. O queria ali, o
algemando, disciplinando e doutrinando para sempre.
Arfava quando se separaram.

Leon o levou para a cama, mas não exatamente da


forma como queria.
Ele abriu a mochila trazida consigo: — Pensei numa
sobremesa interessante pra você. Algo que o ajudará a
dormir. — Mostrou o que parecia ser apenas uma
mamadeira. Porém, no lugar de um bico comum, tinha um
pequeno pênis com testículos moldados: — Já viu uma
dessas?

— Já, nos grupos do whats, mas não achava que


existisse mesmo.

— A famosa mamadeira de piroca. Você e seus


amiguinhos bolsominions compartilharam tanto essa merda
na internet dizendo que a esquerda queria implantar o uso
delas em creches e escolas e agora diz que não achava que
existisse?
A pergunta de Leon fez Sérgio gelar na cama. Ele e
todos os deputados e políticos que compartilharam a notícia
falsa sabiam do caráter dela, mas o propósito era
exatamente esse: — Bem, é que eu não tava muito
preocupado em saber se era realmente verdade ou não, eu
só...

— Só queria sair por aí compartilhando difamações


contra seus opositores políticos, né?

Ficou quieto, pensando se Leon o castigaria por isso.

Seu doutrinador foi até o banheiro e voltou com o


cinto de castidade limpo nas mãos: — Sabe, Sérgio, uma
notícia falsa é algo quase impossível de reverter. Depois que
sai do controle, carreiras e até vidas são destruídas. Eu
quero que você pense bem seriamente sobre isso.
Ele vestiu as luvas de látex e passou o óleo de bebê
nas mãos. Então, sentou-se numa cadeira de frente para
ele. Com seu pênis na mão e o cinto na outra, mandou: —
Como tarefa, quero que escreva sobre o caso na sua coluna.
Como a mamadeira de piroca se tornou símbolo das fake
news da extrema-direita. Certo? — Estremecia conforme ele
prendia seu pau novamente na estrutura e fechava o
cadeado.

— Tudo bem, mas o meu editor não vai me deixar


publicar isso. Não pode ser só entre nós?

Ele sorriu, com a chave em mãos: — Não. Nem


importa se ele vai publicar, mas tem que me mostrar o e-
mail comprovando que pelo menos você tentou. Agora, vire-
se e fique de quatro na cama.
Sérgio obedeceu, sentindo quando seu dominador
ergueu o roupão de cima de sua bunda empinada. Ele não o
tocou por vários minutos, deixando-o a imaginar o que
estaria fazendo e principalmente, o que planejava: — Você
não tem hemorroidas, tem?

— Não que eu saiba. Por quê?


— Quero te dar uma coisa pra usar enquanto estiver
escrevendo o artigo.

— Que coisa seria essa?

Ele riu: — Na próxima te digo, agora levanta e sentar


aqui, no colinho do seu senhor!

Obedeceu, se acomodando. Sentia-se um pouco


pateta, especialmente por que Leon era um tanto mais
baixo que ele, mas a sensação de proximidade era muito
boa.
— Abre a boquinha pra tomar a sua mamadeira de
piroca! — Ela estava cheia de um líquido branco.
Provavelmente ele a fizera enquanto esperava o almoço.

— O que tem aí?

— Prova.

Hesitou um pouco até levar o bico de pênis aos lábios:


era leite mesmo. Sugou com mais de vontade ao notar que
estava adoçado.
— Coloquei leite condensado já que vocês,
bolsominions, gostam tanto. — Ele deu um sorriso
debochado enquanto segurava o fundo dela. Ocupado como
estava, não parou para retrucar, apenas semicerrou os
olhos sob as carícias dele.

— A mamata acabou de começar, hein? Que fome


você tem, meu servo.
Queria mandá-lo se foder, mas estava tão gostoso o
leite morninho e doce que teve de continuar até que
acabasse e ficasse apenas com o bico de pinto para sugar.

— Ah, acabou a mamata, bebê! Agora, vai arrotar e


escovar seus dentinhos, tá bom? — Ele puxou a mamadeira,
deixando Sérgio naquele vazio existencial que protagonistas
de alguns livros eróticos tanto sentem quando tiram a
piroca de seu domínio.
— Não posso ficar com ela? — perguntou,
inocentemente.
Leon foi firme: — Não, querido servo. A mamata
acabou, seu presidente mesmo disse. Conforme-se que da
próxima eu trago outra. — Ele deu um beijinho em sua
bochecha. — Agora, escove os dentes.

Continuou de braços cruzados e sentado no colo dele.


Não gostava de receber ordens, ainda mais de um
esquerdalha. Ele aumentou o tom, balançando-o sobre o
joelho.
— Alguém vai ficar de castigo se não obedecer. Quer
ficar de castigo, meia hora de pé, virado pra parede? Ou
prefere ajoelhar no milho? Eu vi no seu armário. Vai agora
escovar os dentes ou te mando buscar aquele milho.

Sérgio foi direto até o banheiro, já que não tinha a


menor intenção de sofrer um castigo chato como aquele.
Quando terminou, ele disse: — Vou te colocar pra
dormir.

— Não tenho sono agora.


— Ah, mas você passou por muita emoção hoje.
Precisa descansar.

— Me obriga! — Sérgio disse, sentado na cama.

— Pois pode apostar que eu te coloco pra dormir, meu


servo. — Ele o pegou pelos braços, abaixando o tronco dele
até deitá-lo. Rapidamente puxou o cobertor sobre ele,
prendendo-o firme nas laterais da cama.

— Que cê tá fazendo?! Me solta! — Sentia-se como


uma múmia enrolada.

— Será mais fácil se aceitar que não tem controle de


tudo. A vida é assim, Sérgio.
— Não quero dormir, tenho que checar o celular, meus
e-mails, as ligações, todo mundo deve estar doido!

Ele levou o indicador até seus lábios: — Shhh, chega!


Proibido falar agora, só vai me ouvir cantar baixinho, ó:
dorme neném, que o Lula vai voltar, papai votou 13, mamãe
foi expropriar...
Sérgio não aguentou aquela cantiga de esquerda
cirandeira por muito tempo. Assim que se distraiu,
adormeceu. Sonhou que o Brasil governado pelo Jair tinha
mesmo dado certo, que a inflação estava sob controle e que
Leon o enrabava pra comemorar.

Despertou empolgado. Ele cochilava numa poltrona do


lado. Com esforço, se soltou das cobertas e o cobriu com
um lençol sobrando. Voltou logo para a cama e para o sonho
daquele Brasil unido onde talvez até pudessem ficar juntos.
Duas horas mais tarde, Leon o acordou com um beijo
na testa. O esperava na Kama Sutra na semana seguinte,
ele disse: — Mesmo horário, mesmo lugar...

— Parece o Chapolin Colorado falando assim.


Combina, tudo vermelho.
— Quero aquele artigo. Me liga quando terminar. —
Ele se despediu, com mais um beijo em sua bochecha.
Sérgio levou a mão ao local. Como era bom receber
aquele carinho. Perto disso, se esquecia de tudo que tinha
acontecido na empresa. Obedeceu à recomendação dele e
permaneceu offline. O problema era que não podia tirar o
resto de sua vida da tomada: o porteiro do condomínio ligou
pra avisar que sua mãe estava ali. Deu permissão para que
ela entrasse (ela faria isso de qualquer forma).

Estranhamente, porém, ela parecia tranquila,


acendendo outro cigarro.
— Mãe, tá fazendo o que aqui? Acabou tudo entre eu
e a Camila.

— Deixa de besteira, moleque! — Ela lhe deu um


tapão na testa. Parecia que descontava tudo que não tinha
feito quando era pequeno: — Não respondeu minhas
ligações, mas eu consertei a merda que tu fez!
— A senhora o quê?

— Falei com aquelazinha lá umas três horas, mas ela


concordou em te dar outra chance então não desperdiça
isso!

— Mãe, a senhora não podia ter feito isso!

— Não podia o que, Sérgio? Tá doido? Um casamento


desse não é coisa que se joga fora. Depois, cê fica casado
com aquela tonta uns dois anos pelo menos, o suficiente pra
ter direito à partilha de bens e pronto! Pelo menos até seu
pai melhorar a barra dele com o pai dela. Depois se você
quiser separar, separa. Só não fode com a sua família, tá
ouvindo?
Levou a mão à testa, repetindo: — A senhora não
podia...

— Não podia por que?! — Não teve coragem de


responder.

— Apaixonou por alguma puta, foi? Só faltava essa!

— Não, mãe! Não tem puta nenhuma!


Ela inspirou fundo: — Eu vi as imagens da câmera
com o porteiro. Tá recebendo puto aqui, é? Pensei que fosse
droga, tô achando que é puto agora!

Não teve coragem de negar, nem confirmar. Se


encolheu ao ver Dona Glória quase lhe dar outro tapa, mas
ela levou a mão ao rosto, tentando não se enrugar mais: —
Os Gentile queriam seu sangue, menino! Te entregar pros
traficantes! Iam fazer a continuação do Tropa de Elite 2 com
você, tá ouvindo seu idiota?!!! — Ela o agarrou pelo rosto: —
Lembra desse filme, hein? Lembra do microondas?
— É difícil esquecer. Gostava mais do primeiro...

A mãe lhe deu outro tapa na cara: — Nem parece que


é filho do seu pai, até hoje não aprendeu como as coisas
funcionam! Te socaram no estacionamento e prometeram
que tu não vai ter paz enquanto não andar na linha! Tive
que argumentar um bocado com eles e não recebo nem um
“obrigado” por isso? PARA DE CHORAR, SÉRGIO!
Parou, limpando as lágrimas de hétero dos olhos.
Ela sussurrou: — Não me interessa o que tu faz com
esse puto, mas você vai casar com a Camila e ficar com ela
o tempo que for necessário pra eles saírem da sua cola. — A
socialite colocou de volta os óculos escuros. Entrou no carro
e saiu pela rua do condomínio.

Apesar das ligações e mensagens acumuladas no


celular, as coisas ficaram relativamente calmas no dia
seguinte. Ficou em home office e passou um tempo
editando alguns vídeos já gravados para o canal, mas nada
disso era o suficiente para distrair sua cabeça da loucura
que estava sendo sua vida. Preferia continuar como se nada
tivesse acontecido, mas o pensamento de terminar
queimado vivo numa pilha de pneus o atormentava.
Ao anoitecer, ainda não tinha ligado para Leon. Ficou
olhando a foto dele no celular, escondido por uma máscara.
Pesquisando, encontrou o outro perfil dele. Um cara comum,
estudante de sociologia, com uma moto e um cachorrinho.
Ainda recebia comentários e mensagens dos seguidores da
Enrique-se, perguntando pelo militante comunista que
merecia ter seu CPF cancelado. Essas mensagens passaram
a lhe dar tamanho medo e arrependimento que decidiu
printá-las. As levaria no dia seguinte para a delegacia,
registrando queixa e dando um extra para que o caso
tivesse prioridade com investigadores conhecidos seus.

Ainda naquela noite, procurou um amigo “brabo” de


seu pai para pedir proteção. Bulhões era um PM aposentado
e durão, em vários sentidos, pois vivia aceitando serviços e
tinha fama de não precisar de Viagra apesar da idade
avançada. Ele tinha mesmo cara de que daria um bom
dominador, pensou, se estranhando em admitir isso.

Explicou seu problema com os Gentile e deixou


explícito: — Se tiver que matar alguém pra me proteger,
faça.

Ele apontou o três oitão: — Devia arrumar um. Nunca


se sabe quando vai precisar.
— Isso eu já tenho. Não me serve tão bem assim: —
admitiu. Desde o assalto no clube de tiro que frequentava,
concluíra com relutância que armas provavelmente não
seriam suficientes para protegê-lo.

O homem recebeu o envelope e apertou sua mão: —


Nesse quesito, serei igual a um paraquedas com você: tô
contigo e não abro! — Sérgio franziu as sobrancelhas,
pensando onde mais teria ouvido algo assim.
Despertou revigorado pela manhã seguinte. Se
espreguiçou e tomou um café reforçado. Estava com uma
energia que fazia até parecer simples a tarefa de escrever
um artigo como o que Leon lhe mandara. Iniciou o rascunho
em casa e mandou o arquivo para seu senhor, recebendo
um emoji boquiaberto.

Leon:
começou cedo hein? Não termine antes de
eu te dar aquele presente que te falei. Bom
trabalho! ;D
Esperou ansioso e nem fez questão de esconder seu
sorriso ao revê-lo. Seu senhor sorriu também, lhe
estendendo uma sacolinha: — Preciso te explicar umas
coisas antes de prosseguirmos.

Sérgio pegou o embrulho de papel laminado. Nem era


seu aniversário e já tinha ganho dois presentes num espaço
de tempo tão curto. Seu pau continuava engaiolado, do
mesmo jeito que ele o deixara naquele dia. Já não estava
mais incomodado com aquilo, apenas excitado em ver a
chave no pescoço dele. E agora, Leon lhe oferecia mais um
item para deixá-lo louco de tesão. Abriu o embrulho, se
deparando com um objeto de borracha vermelho que mais
se assemelhava a um carimbo, numa embalagem plástica
com coraçõezinhos: — O que é isso?
O comunista safado sorriu com sua ignorância: —
Nunca viu um desses? É um butt plug. Um plugue anal, em
bom português. Serve para estimular antes do sexo ou
sozinho mesmo. — Ele passou os dedos sugestivamente
pelo brinquedo.

— Você quer me...


Ele riu, explicando: — A graça é que você pode
cumprir outras tarefas do dia a dia enquanto usa. Claro que,
se não quiser, eu devolvo pra sex shop e deixamos pra lá...
— Enquanto ele falava, Sérgio não se aguentou e lhe deu
um abraço. Um abraço de hétero, é claro.
Ele hesitou por um instante e alisou suas costas,
dando suaves batidinhas nelas. Sérgio por sua vez
envergonhou-se em ter reagido dessa forma, afinal, era
apenas um brinquedo sexual. Leon ia atochar uma coisa no
rabo dele e ele lhe agradecia com um abraço? A quem
queria enganar, já estava dominado por aquele comunista
safado desde o dia em que pisou ali. Saber que ele o
estimularia a distância agora era como avançar um passo
na relação deles.
— E quanto ao... — Apontou para baixo, se referindo
ao cinto de castidade que usava.

— Não muda nada, na verdade pode ser ainda mais


interessante, te dominar em duas frentes, né? Como os
russos fizeram com os nazistas na Segunda Guerra.

— Nossa, tudo tem que transformar numa palestra!


Cala a boca e me come, Leon!

Seu dominador rapidamente mudou a postura,


pegando-o pela mão: — Mais respeito aqui, você ainda é
meu submisso! Me chame de senhor!
— Sim, senhor. — falou de cabeça baixa.

Ele o soltou, amenizando o tom: — Vem, vou te


ensinar a usar isso. — E apontou a cueca de couro vazada.
Sérgio trocou de roupa ali mesmo e foram até o divã, onde
Leon mandou que ficasse de quatro nele.
O dominador terminou de abrir a embalagem de
plástico, tomando o cuidado de lavar o brinquedo com água
e sabão, assim como as próprias mãos.

Explicou: — Isso aqui é silicone, pode ver como é


macio. — Ele apertou o brinquedo, demonstrando: —
Também é um material não poroso e isso é importante já
que não queremos que isso aqui vire o Gabinete do Ódio
das bactérias, né? Por isso é bom preferir esses ou os de
metal.

Leon vestiu as luvas pretas de borracha e pegou um


grande tubo, espremendo-o na mão e sobre o brinquedo: —
O lubrificante também deve ser à base d’água pra não
corroer o material. Já te entreguei tudo que vai precisar
naquele dia.
Tinha achado um exagero a quantidade de gel que ele
lhe dera, mas agora, considerando que ele esperava que
usasse aquilo durante o dia, talvez não fosse. — E não tem
risco de me machucar?

— Não, porque ele não tem ponta afiada e a base é


bem larga, viu? — Ele mostrou o ponto em que o cone
afinava drasticamente: — O ânus tem a tendência de
“sugar” coisas pra dentro, é muito perigoso enfiar qualquer
objeto aí. Isso aqui não tem perigo porque é resistente, não
vai soltar e a base impede dele se “perder” dentro de você.
Agora, vamos experimentar?

Sérgio confirmou novamente, apertando o estofado do


divã, enquanto Leon afastava as bandas de sua bunda: —
Seguiu minhas recomendações? Foi difícil fazer a chuca?
Corou. Além de nunca ter feito aquilo antes, como um
eleitor leal do presidente ele seguia ao pé da letra a
recomendação de “fazer cocô dia sim, dia não”, então
precisou esperar pelo dia certo. Sentiu ele enfiando o dedo
ali outra vez, vistoriando sua propriedade privada mais
criteriosamente que um fiscal da receita.

— É, parece que tá limpo. Melhor assim, pra não


incomodar mais que o necessário. — Ele sorriu, espremendo
o tubo de lubrificante no brinquedo e sobre seu rego: — E o
dólar, vai como? Nem dá mais pra viajar pra Disney, né? E a
gasolina, hein?
— Leon, para...
— Só tô fazendo o aquecimento — Ele brincou,
encostando devagar a ponta do brinquedo nele, esperando
o reflexo natural do ânus, enfiando sem dó a partir daí.
Sérgio soltou um grunhido, sentindo o cu pulsar contra o
pequeno objeto. Era só um pouco maior que um polegar,
mas parecia bem maior dentro dele. Começava inclusive a
incomodar, apesar de ser gostoso também.

— Tira, Leon...
— Tenta ficar só um pouco mais com ele... ah,
esqueci! — ele se afastou indo até um caderno, de onde
tirou um adesivo com símbolo da foice e o martelo. Mostrou-
o antes de colar, fazendo Sérgio esboçar uma careta: —
Considere seu cu expropriado!
— Tá bom, mas agora tira, vai! — pediu, rebolando
ante aquela queimação. Leon lhe trouxe um espelho para
que admirasse seu cu tampado pelo adesivo socialista.
— Se quisesse realmente q eu tirasse daí, usaria sua
palavra de segurança, não?

Sérgio baixou o rosto. Sabia a palavra que precisava


usar, sabia que podia confiar em Leon para usá-la, mas não
queria. Por quê? Talvez porque quisesse agradar seu
dominador. Talvez porque quisesse ver até onde aguentava
ir. Pensava nisso quando ele pediu: — Tenta andar um
pouco, pra ver se vai se acostumando.

Se levantou devagar. Deu uma volta pelo quarto,


percebendo o brinquedo se mover ligeiramente a cada
passo dado. A sensação de caminhar com algo atochado
nele era um tanto humilhante, mas também interessante,
pois seria algo que só eles saberiam. Virou o rosto, vendo-o
de braços cruzados a admirá-lo. Ajoelhou aos pés do
dominador, suplicando: — Vai, Leon... me fode, cara!

Um tapa acertou em cheio sua face. Olhou-o com


lágrimas nos olhos e um sorriso disfarçado enquanto ouvia:
— É senhor Leon pra você! Não vai ter fodinha agora,
liberalzinho! Tá gostando, seu puto? Hum? — Ele o sacudiu
pelo cabelo. Gemeu, o pau preso naquele cinto, a chave no
pescoço de Leon. Tentou pegá-la, poderia explodir com
tanto gozo retido.
Leon desviou sua mão para baixo: — Só vai gozar
depois que completar a tarefa, servo! Agora fica de quatro
de novo pra mim, aí no chão mesmo!
Obedeceu, e o dominador arrastou o espelho para trás
dele. Podia se ver todo enquanto ele se abaixava sobre sua
bunda: — Vamos ver como ficou o seu furo.

Ele puxou o plug devagar até que saísse, deixando


seu cu aberto e exposto. Sérgio gemeu e sorriu sob a
exclamação dele: — Logo, logo, vai dar pra passar um boi e
até uma boiada aqui! Talvez eu possa usar meu packer com
você na próxima.
Se lembrou do pau monstruoso sob a cueca dele
naquele dia, arrepiando-se todo: — Ah, não senhor... —
dizia, apesar de mal conseguir esconder seu sorriso.

— Quero que use o plug por pelo menos meia hora


por dia. Pode começar com cinco minutos, depois dez e
assim por diante até a semana que vem. E quero que seja
enquanto estiver escrevendo seu artigo, entendido?

— Sim, senhor. — disse, olhando o brinquedo na mão


dele: — Não vai colocar de volta? Quero começar agora,
acho que consigo ficar um pouco mais com ele.

Ele deu um meio sorriso: — Você é uma figura! —


Reaplicou o lubrificante e o afundou de novo nele.
Uma sensação boa de preenchimento tomava conta
de si enquanto Leon lhe dava as últimas palavras de
conforto pós sessão. Vestiu as roupas e saiu, pensando em
como escreveria sobre o tema pedido sem despertar
suspeitas.
###

A coisa mais difícil sobre escrever é começar. Mesmo


já tendo o domínio do assunto, Sérgio procrastinava a hora
de ligar o computador. Teria demorado mais se ficar
andando de um lado para o outro não tivesse se tornado tão
desconfortável. Sentar também não estava sendo mais tão
agradável quanto antes: tinha voltado dirigindo com o
brinquedo espremido entre o banco e seu cu, causando
aquela pequena pressão parecida com quando se está
adiando a hora de ir ao banheiro. Já tinha se acostumado
com aquela sensação desde que ouvira as ordens de seu
presidente a respeito dos hábitos intestinais a serem
adotados pelos verdadeiros patriotas, mas teve de admitir
que ficar sentado com aquele plug comunista atochado no
cu era difícil.

Assim que chegou, o retirou e lavou. Guardou no saco


de algodão que vinha junto e trancou na gaveta da cômoda.
Depois, se pegou imaginando o que teria acontecido caso
tivesse sofrido um acidente a caminho de casa e o levassem
inconsciente a um hospital... Costumava rir das piadinhas
que alguns amigos médicos faziam ao atenderem desafetos
políticos, mas sabia que não teriam piedade dele. O cinto de
castidade não o preocupava tanto porque sempre poderia
justificá-lo de alguma maneira, mas o plug, isso não era
coisa de macho de forma alguma, pensou.
Por curiosidade, foi até o espelho do guarda-roupa e
se abaixou de quatro no chão para espiar o estrago: o anel
dilatado pulsava, parecendo o buraco sem fundo das contas
públicas depois da aprovação do orçamento secreto.
Salivou, imaginando Leon preenchendo todo aquele vazio
com a pica grossa dele. Se ao menos pudesse tocar
umazinha enquanto esperava por esse dia... Comuna
sádico!
Prosseguiu com a rotina, fazendo um sanduíche de
jantar e telefonou para Camila. Queria saber se por acaso a
dupla da pesada tinha topado com Bulhões ou se
planejavam algo. Tinham se falado no dia anterior e apesar
de ela ainda parecer triste, falava com ele como se nada
tivesse acontecido. Se sentia mal por ela, mas não sabia
como sair do enrosco em que sua mãe o metera
novamente. Se limitou a tentar extrair alguma informação
útil da noiva, porém, aquela cabeça de vento fraquejada
alugou seu ouvido por meia hora pra falar sobre as
dificuldades de sua difícil vida como herdeira e ter que
conciliar isso com os horários em que o shopping abria.
Estavam exigindo passaporte de vacina agora, olha só!

Sugeriu que ela falsificasse um, como ele próprio


tinha feito enquanto esperava a imunidade de rebanho
funcionar. Ela disse que era um abuso isso, ter que pagar
pra fingir que se vacinou e que sua liberdade estava sendo
tomada, ao que Sérgio só pode concordar: — É melhor
perder a vida que a liberdade, mas o povo não entende isso.
Foram todos se vacinar, o pessoal do curso. Com Pfizer é
claro! — dizia, se lembrando da tarefa a concluir: — Preciso
escrever um artigo agora, depois nos falamos.
Desligou, percebendo que não a chamara de “Paixão”
como costumava fazer. Era como se Camila tivesse se
tornado um peso em sua vida em vez de alguém a quem
estimasse.
Sentou na cadeira do pc, tentando se distrair daquele
pensamento. Abriu o processador de texto, dando pela falta
do principal. Abriu a gaveta e pegou o tubo de lubrificante.
Ficou uns bons minutos agachado no banheiro. Leon fazia
aquilo parecer tão fácil! Tentava se lembrar das dicas,
relaxar e fazer força como se fosse cagar, mas parecia que
ele e o plug comuna eram incompatíveis. Insistiu, enfiando
um pouquinho de cada vez até senti-lo deslizar todo para
dentro.

Admitir a existência do mínimo que fosse de


esquerdismo dentro de si era difícil, mas a ideia de o
governo interferir na economia não era de todo má,
principalmente se fosse para salvar o dinheiro de
investidores como ele. Era algo tolerável, concluiu, se
olhando no espelho. Ainda era ele, Sérgio, o liberal na
economia e conservador nos costumes. Ter um plug
comunista dentro de si era um mero detalhe.

Com o brinquedo o estimulando, digitou o título “Fake


News, o mal da atualidade”. Infelizmente, descobriria que
era impossível cumprir a tarefa: não dava pra mandar uma
coluna assim ao editor, mesmo se depois dissesse que tinha
sido um engano. Além disso, nunca admitiria escrever um
artigo que manchasse a imagem da direita e do
conservadorismo, muito menos ser favorável à esquerda.

Diante do impasse, decidiu pela saída dos covardes:


“Não é um mal nem de um lado nem de outro, mas sim um
fenômeno da pós-modernidade, que tanto ataca os valores
cristãos e morais. Com certeza algo planejado desde a
Comuna de Paris pela cabeça desvairada do Marx e daquele
pérfido Lenin.”

Após meia hora digitando, olhou com orgulho para sua


produção, finalizando: “A direita não pode ser culpada por
algo que os esquerdistas criaram. Fake News nesse país é a
justiça que soltou o Luladrão e já se prepara para colocá-lo
como candidato novamente. Cuidado os que acusam a
direita para não acabarem acordando no colo do PT!”
Mandou o artigo ao editor, que o parabenizou por sua
imparcialidade. Respirou aliviado. Aquela pressão em seu cu
o estava matando e ele só queria poder pegar de volta a
chave com Leon e se punhetar até não ter mais porra
nenhuma a ver com aquilo.

Nos dois dias seguintes, foi para o trabalho com o


plug. Tentava usá-lo sempre que possível e se surpreendia
com o próprio desempenho. Eventualmente, precisava tirá-
lo para ir ao banheiro, mas igual ao cinto, já se acostumava.
Agora, conseguia usá-lo direto por até duas horas.
Imaginava se Leon também ficaria contente com seu
progresso e mal podia esperar pela reação dele ao ler seu
artigo.
Logo de manhã, no dia da publicação, mandou o link
da coluna online para ele pelo whats. Leon o respondeu
pouco depois:

Leon:
Não dá pra ler, tem uma barreira só pra
assinantes.
Sérgio:
Eu te pago a assinatura
Leon:
Que isso, não precisa não! Vou usar um site
aqui. Guarde esse dinheiro pra doar pra
uma ONG q eu vou te indicar depois, ok?
Vamo ver essa produção, seu puto
Sorriu, esperando. Recebeu um monte de
interrogações e um gif de personagem de anime irritado.

Leon:
Não foi isso que eu mandei vc fazer! Está no
seu escritório?
Sérgio:
Sim, pq? Vc vem aqui me dar uma coça, é?
Leon:
Vc bem que merece, liberal safado
Sérgio:
Vem, comuna de merda
Leon:
!!!
To indo
Levou a mão à boca. Será que tinha ido longe demais,
tal qual a Pabllo Vittar, aquela militante petista? Leon nem
sabia onde ficava seu escritório, mas não seria difícil achá-lo
pela internet... Paralisou na cadeira, sem saber o que fazer,
até finalmente se decidir. Recolheu as coisas depressa e
procurou a secretária no corredor.
Não encontrando Regina, chamou a outra: — Val,
cancela meus compromissos por hoje!

— Senhor, espere! — A funcionária cheia de pastas


nas mãos e o telefone encaixado no ombro, apontou para o
lado. Leon surgiu de trás da porta.
Ele usava um conjunto completo de terno, parecendo
até um executivo. Perdeu a noção do que fazia, Val tentando
inutilmente chamar sua atenção.

— Le... — falava, mas ele caminhou em sua direção,


fazendo-o se calar.

Regina veio atrás dele: — Desculpe, patrão ele veio


entrando e não quis esperar ser anunciado!
— T-tudo bem, eu assumo daqui! — disse, trêmulo.
O dominador sorria com as mãos nos bolsos, o volume
em sua calça ainda mais enfatizado.
Engoliu em seco. Ah, Leon, que custava deixar isso
pra quando estivessem sozinhos? As salas ao lado estavam
todas cheias. O que ele pretendia? Fechou a porta,
imaginando que teriam de ter uma conversa.

— O que você quer, me foder?


— Não, nem perto. — Ele cruzou os braços: — Estou
aqui pra falar das suas últimas ações, Sérgio. Você não só
me desobedeceu como me desafiou também! Isso merece
uma punição.

Engoliu em seco. Ele não pretendia fazer isso ali,


pretendia?

— Que doideira é essa, Leon? Não vamos fazer nada


aqui não, porra!

O tapa que ele deu na mesa tombou o porta-lápis. Se


encolheu, seu dominador sussurrando: — Você tem se
comportado mal, servo. Acha que é aceitável falar naquele
tom comigo?
— Escrevi o artigo, tá bom! Fiz o que você mandou!

— O seu artigo e um monte de bosta são a mesma


coisa! Você falou das fake news, mas “esqueceu” de dizer
que quem mais fabrica, propaga e se beneficia delas é a
extrema direita e principalmente, o seu presidente! Que
conveniente, não?
— Ah, mas você queria o quê? Se eu escrevesse o que
me pediu e mandasse pro editor ele não ia nem ler...

— Não interessa! Você tinha que cumprir a minha


tarefa, não me importava se seria publicado ou não,
contanto que fizesse o esforço, mas nem isso você fez! —
Ele o pegou pelo rosto, apertando suas bochechas: — Eu te
dei um presente, ou melhor, dois, e em resposta você
escreveu mais uma dessas colunas fascistóides e dedicando
a mim ainda por cima! A mim, seu facistinha de merda! —
Sacudia-o. Tinha desapontado seu senhor e podia ver isso
na expressão dele.

O dominador levou as mãos grossas até o cinto,


enrolando-o em sua mão: — Dessa vez não é uma surra de
brincadeira, mas uma punição. Abaixe as calças e coloque
as mãos na mesa, Sérgio.
— Que isso, Leon, tá maluco? — Tremia, olhando a
porta. Trancou-a, apavorado: — Não dá pra fazer isso aqui
não, eu tô com o prédio lotado, tem clientes e funcionários
meus aqui! — sussurrava.

— Trancou a porta? Ótimo. Não se preocupe, tenho


uma entrevista do Lula pra um podcast famoso. Vou colocar
em volume alto e pode ser que ninguém ouça meu cinto
batendo na sua bunda. De quebra, talvez você ainda
aprenda algo. — Ele deu play no vídeo. — Agora tire a calça
e se apoie aí.

Sérgio estendia as mãos abertas para ele: — Você tá


irritado comigo, mas não precisa! V-vamos lá pra Kama
Sutra, onde você vai poder me surrar à von...
Leon bateu com o cinto na mesa. — Acredite, você
não me viu irritado ainda. Não é você quem decide onde e
quando será punido, mas eu! Agora me obedeça.

Sérgio sabia que tinha a palavra de segurança. Por


outro lado, ver Leon ali, vestido como um executivo e
prestes a dar uma surra de cinto nele, e em sua própria
sala... O medo de serem pegos só aumentava seu tesão.
Seu pau pulsava e umedecia dentro da gaiola, o cu
apertando e soltando o plug. Não podia desperdiçar aquela
chance.
— E se eu não concordar? Vai me obrigar? Esse é o
meu escritório! Vai bater uma panela, vai... — falava,
esperando que Leon entendesse a deixa para começar seu
trabalho.

Como esperado, ele não o desapontou: pegou-o pela


gravata, acariciando seu cabelo: — Ah, meu servo, é tão
rebelde. Espero que entenda, não estou zangado com você.
A resistência a admitir que errou é esperada, mas você
precisa entender, de uma vez por todas. Vamos terminar
logo com isso.
— Tira esse ladrão de nove dedos daqui! — Pegou o
celular da mesa e correu pra colocar um vídeo do MBL.

— Seu bostinha, tira os cascos do meu celular! — Ele


o puxou pela gravata, plantando três palmadas em sua
bunda ainda vestida. Então, o arrastou de volta pra onde
queria e colocou a entrevista pra tocar novamente.
Posicionou o submisso logo abaixo de si, o pau
roçando nele: — Você tá querendo pica, eu sei, mas hoje
não tem! Só tem cintada nessa sua bunda apoiadora de
milico! — Empurrou sua cabeça e ombros para a mesa.

O coração de Sérgio batia forte. Queria que ele


simplesmente tirasse seu plug bem ali e o fodesse logo,
mas Leon continuou ordenando: — Abaixa a calça. Só está
nos atrasando, servo. — Ele bateu com o cinto de leve em
sua coxa encoberta e já foi o suficiente para sentir dor. Não
queria imaginar como seria o castigo em si.

Chorou, pedindo: — Me desculpe, Leon! Eu prometo


que não faço mais...

— Tudo bem, mas agora temos que ir em frente. O


que está feito está feito e você tem que lidar com as
consequências disso. Não dá pra simplesmente eleger um
maníaco e dar as costas a um país destruído.
— Isso é com aquele ladrão ali, ó! E a autocrítica de
vocês?
Leon mostrou o cinto a ele: — Tá aqui a sua
autocrítica! Agora vai, abre a calça. Se eu tiver que fazer
isso, juro que tiro seu plug junto e você fica sem ele pelos
próximos dias.
— Ah, não! Aí é golpe sujo! — Obedeceu, desnudando
sua traseira e virando-se para ele.
Leon retirou gentilmente o plug e o deixou na mesa, o
cinto enrolado na mão esquerda.
— Por que vai apanhar, Sérgio?

— Escrevi uma coluna que o senhor não gostou.


— Não, não é por isso. — O aborrecimento dele era
perceptível.

Soluçou, a voz embargando: — Por que eu escrevi


uma coluna mentirosa...

— Sim, isso mesmo. Agora, cale-se!

Sussurrou, apreensivo: — Quantas vão ser?


— O suficiente, espero.

Se calou. A primeira cintada desceu firme, jogando-o


para frente de susto. Conteve o grito mordendo o dedo
indicador. Uma impressora trabalhava ao lado, assim como
uma copiadora, funcionários e clientes falavam ao telefone.
E claro, o Luladrão ao fundo, a voz rouca dele soando não
tão alta quanta gostaria. Imaginou se lá fora o ouviam de
alguma forma.
A segunda já veio queimando e não conseguiu evitar
um gritinho. Levou a mão para trás, mas Leon a retirou da
frente, esperando um pouco para dar a terceira, que
arrancou um grito mais agudo e alto dele. Apoiou o rosto na
mesa. Tinha uma revista com o Mito na capa. Olhava para
ele, pedindo forças para aguentar aquilo quando o couro do
cinto bateu mais uma vez em sua bunda. Sua pele ardia,
sem sinal de parar logo e o pior de tudo era que não tinha
para onde se desviar, já que a mesa era um obstáculo que
detinha qualquer possível fuga, só restando a ele manter
seu traseiro empinado e aguentar o que viesse de seu
senhor.

Leon continuou o sermão: — Pensa que eu sou um


idiota, é? Eu te passei uma tarefa simples, dizer a verdade,
e você mais uma vez aproveitou o espaço que tem num
jornal de grande circulação pra continuar espalhando
mentiras! — Uma nova cintada atingiu a parte inferior de
suas coxas.

Sérgio uivou: — Só escrevi sobre polarização, qual o


problema?
— Polarização? Meu pau na tua mão! — berrou, o
couro deixando mais duas marcas novas na pele clara que
nunca ficara exposta ao sol sem uma sunga.

Choramingou. Não era justo apanhar tanto por algo


que era de conhecimento geral: — A esquerda também cria
fake News!
Se espantou quando Leon parou de erguer o braço,
falando sério e de cabeça baixa: — Sim, mas nenhuma pode
ser comparada com o que o seu Mito e os detestáveis
ministros dele fizeram: desviaram recursos pra comprar
Viagra e próteses penianas pra velhos broxas! Venderam
remédios pra verme como se fosse a cura pro coronavírus,
falaram que vacina causava Aids... Eu não encontro
palavras para classificar esse tipo de coisa! — O servo
pensou nos noticiários que costumava assistir quando
falavam mal do PT, mas que terminara por ignorar
completamente conforme as críticas caíam sobre seu ídolo.
Teve pouco tempo para refletir sobre isso, pois logo
Leon voltou a erguer o braço, o cinto estalando alto ao
atingir uma nádega e depois a outra, deixando uma série de
pontadas junto com as marcas vermelhas. Levantava e
baixava os pés conforme os golpes o atingiam, gemendo
baixinho com o rosto escondido entre os braços dobrados e
fazendo o possível para não gritar apesar da dor
excruciante.

Leon parou por um momento, avaliando o estado


dele.

Por acaso, tinha um espelho bem ao lado da porta e


outro atrás da mesa por onde Sérgio podia ver o progresso
daquele castigo: sua bunda estava coberta de marcas
retangulares. Permaneceu com os braços estendidos sobre a
mesa, a face tomada por lágrimas.

— Me desculpe, senhor... — murmurou, de cabeça


baixa.
— Está tudo bem, servo. Mas ainda não terminamos.

— Eu não suporto mais, Leon. Em nenhuma das outras


vezes você me bateu tanto assim, não vou conseguir me
sentar por dias!

Ele sorriu, lhe acariciando o cabelo: — Assim espero.


— Pigarreou: — Acontece que só tem um tipo de pessoa que
eu detesto mais do que os radicais da extrema direita, e é
quem fica em cima do muro enquanto o restante do mundo
queima abaixo de si! Os isentões são os piores: todos uns
liberais envergonhados querendo pagar de conscientes do
rolê! É sempre uma “escolha difícil” pra eles, sempre tem
que olhar “os dois lados da questão”, como se não estivesse
claro o suficiente pra qual lado pende a balança! Esses
merecem exatamente o castigo que Dante prevê aos
indiferentes na Divina Comédia. Já leu esse?
— Não. — murmurou, limpando o rosto.

— Por terem passado a vida toda apenas olhando o


vento soprar sem tomar partido por nada, no além vida os
indiferentes são perpetuamente perseguidos por vendavais
que os destroçam, sem nunca serem aceitos nem pelo Céu
e nem pelo Inferno. Interessante, não?

Engoliu em seco. E ele pensando que agradaria seu


senhor com aquela coluna.

— Eu chamaria de justiça poética. Agora, precisamos


terminar isto. — Ele se dirigiu à mochila, retirando o que se
assemelhava a uma placa de madeira. Contraiu as nádegas
ao reconhecer: era a palmatória que ficava exposta na
masmorra dele.
Tropeçou nas próprias calças, implorando: — Não,
Leon, eu já aprendi a lição! Eu escrevo outro artigo, digno
de um Quebrando o Tabu, mas por favor, não faz isso!
— Vamos, Sérgio! Sei que prestará mais atenção de
agora em diante, mas é o justo. Você precisa memorizar
bem esse conceito ou tudo será em vão. Em você dói agora,
mas e em todas as famílias que perderam seus entes
queridos durante a pandemia? Essas perdas poderiam ter
sido evitadas se não fosse pela sua teimosia e a de tantos
outros que votaram nele e que provavelmente votarão de
novo daqui a poucos meses!

— Tá certo! Prometo que vou pensar no assunto! Se o


Amoedo se candidatar eu posso votar nele de novo! —
falava, mas seu dominador cerrou os dentes, o colocando de
volta na posição.

— Não podemos deixar essa tragédia se repetir. É


uma lição dura, mas que precisa ser aprendida. — Ele pegou
a palmatória, ensaiando o golpe. Diferente do
Impeachment, esse desagradou bastante a Sérgio. A
superfície plana e larga de madeira o atingiu com todo seu
peso, lhe arrancando um urro que repercutiu pela sala e
além.
Ouviram batidas na porta e a voz preocupada de Val:
— Senhor, algum problema aí? — Leon pausou o vídeo para
que ele respondesse.

— N-não! Tudo bem, Val! Pode ir, só estava gritando


de raiva desse ladrão safado em se candidatar de novo!

— Está bem, doutor! Qualquer coisa, avise. — Os


sapatos de salto batiam no piso conforme ela se retirava.
Leon se voltou para ele, sussurrando: — A propósito,
você tomou mesmo a vacina, não tomou?
Já tinha apanhado tanto apenas por aquele texto, teve
medo do que sua resposta acarretaria: — Tomei, claro! Se
tive até que mostrar o comprovante na entrada do clube.

Leon ergueu uma sobrancelha desconfiado, mas


retornou para seu lugar, pondo a mão em suas costas e
forçando-o levemente contra a mesa.
— Perguntei só pra confirmar e espero realmente que
não esteja mentindo. Se faço isso é por que me preocupo e
me importo com você, Sérgio. Gostaria que entendesse e
aceitasse isso.

Ele falava com tamanha candura que por um


momento até se esqueceu da ardência atrás de si e se
arrependeu de mentir outra vez, mas já estava feito. Dizer a
verdade só pioraria as coisas para ele e Leon continuava
segurando a palmatória: — Comece a contar.
Por treze vezes o doutrinador ergueu o instrumento
sobre a pele já marcada, e por treze vezes Sérgio gritou
dentro do escritório como nunca gritara antes, nem mesmo
durante a briga com Camila naquele dia. Por mais alto que
estivesse o volume do vídeo, a voz rouca do ex-presidente
não era páreo. Leon não o poupou de nenhuma forma.

— Pronto, acabou.

Terminou debruçado na mesa, o rosto vermelho e


encharcado de suor e choro. Seu pau latejava entre as
grades do cinto de castidade e ele tremia, tanto pelo
cansaço de ficar naquela posição quanto pela dor em seus
glúteos. Toda a extensão de sua bunda e coxas se
encontravam mais vermelhas do que uma reunião da UNE
(em sua imaginação, pelo menos).

Soluçou. Leon massageou seus ombros gentilmente


por sobre a camisa formal que vestia, a puxando um pouco
para cima. — Acabou, Sérgio. Tudo bem?

— Hum-hum — respondeu, sem conseguir falar.


Queria chorar e queria que Leon o pusesse no colo dele e o
abraçasse. Seu senhor acariciou sua nuca com um beijo
suave.
— Espero que tenha aprendido sua lição, meu servo.

Um arrepio cruzou seu corpo. Sorriu, fungando o nariz.


Acenou com a cabeça: — Sim, senhor.

Leon sorriu em retorno, se abaixando ao lado dele e


roçando os dedos por seu couro cabeludo. Contornou sua
mandíbula e lábios: — Meu servo mais rebelde, mas
também o mais leal.

Beijou o dedo dele, mas o dominador permitiu apenas


isso, pois logo se virou para pegar alguma coisa. Era uma
necessaire, de onde tirou um chumaço de algodão e um
vidro de álcool 70%.
— Tem alguns arranhões na sua pele, normal pro tipo
de punição que apliquei em você. São pequenos, mas
precisam ser limpos. Acho que não vai precisar de curativos.
— falava, passando o algodão com álcool nele, até ouvi-lo
rir. — Cócegas?

— Não — O álcool era geladinho e ardia de leve, mas


não era isso: — você falando, parece até um enfermeiro, ou
médico.

— Ah, é? — Viu o sorriso dele pelo espelho.

— Um médico cubano.

— Ah, sim! Que falta fazem... — Ele descartou o


algodão na lixeira, pegando o gel de arnica e passando por
toda a extensão de suas nádegas. — Faça isso pelos
próximos dias. Essas marcas vão levar uma semana ou mais
pra sarar, um pouco mais do que está acostumado. Espero
que sirvam como um lembrete do que você não deve fazer,
certo?
Acenou com a cabeça em silêncio, apreciando o modo
como o gel acalmava a ardência em sua pele. Esperou
pacientemente ele terminar e vestiu a calça, abotoando o
próprio cinto: — Se vestiu assim só pra vir aqui me bater,
foi?

O dominador riu: — Tava saindo do batizado de um


sobrinho quando recebi sua mensagem. — Ele baixou o
rosto, com as mãos nos bolsos e Sérgio viu que ele
ruborizava. Achou tão fofo.

— Não é que eu me ache especial, é que você sempre


se veste... meio largado.
— Ah, sei. Nesse calor, vou dar graças a Deus quando
chegar em casa e tirar essa roupa! — Pegou a parte de cima
do terno pendurado na cadeira: — Me deve outro artigo. Vai
tentar tê-lo publicado, e se o editor recusar, vai colocá-lo no
seu blog, com links visíveis em todas as suas redes sociais.
— Você é tão exigente... — resmungou baixinho,
andando com dificuldade até a porta. — Olha o que me fez,
como volto pra casa agora?

— Posso dirigir pra você se quiser, vim de carona com


um amigo. — ele disse, oferecendo um apoio para chegar
até a porta: — Está muito dolorido? Aqui, talvez precise de
um hoje. — Ele lhe entregou uma cartela de analgésicos.

— Obrigado. Não se preocupe, eu vou... — Só a


manobra de girar a chave na fechadura e abrir já estava
exigindo tudo dele. Respirou fundo, olhando para o alto e
tentando disfarçar seu constrangimento.

— Não é vergonha aceitar ajuda. Também não precisa


aguentar calado se sentir um desconforto maior do que
pode suportar. Você deve dizer a palavra de segurança,
Sérgio, mesmo sendo uma punição. Precisa me dizer
quando eu tiver ultrapassado um limite.

— Não é isso, é que... Eu tô cheio de trabalho aqui.


Pode ir.

O doutrinador pôs a mão em seu ombro, envolvendo-o


num abraço. — Tudo bem. Por favor, me liga quando chegar
em casa. Ou melhor, eu mesmo ligo.
Abriu a porta para ele, dando de cara com Regina, Val
e Nestor abaixados. Os três os encararam com olhares
constrangidos enquanto Sérgio esbravejava: — Que pouca
vergonha é essa?!
— Aí, tava aqui o meu brinco, Nestor! — disse Regina,
se abaixando perto do vaso de planta.

— E a gente procurando o danado esse tempo todo...


— falava Val, com um sorriso nervoso. — O senhor quer que
eu o acompanhe até a saída?
— Tudo bem, já sei onde fica. — Leon saiu com as
mãos nos bolsos.

De repente não era mais sua bunda que queimava,


mas seu rosto. Despistou os funcionários e pegou uma água
gelada no frigobar do escritório.

Regina trazia os relatórios trimestrais para a mesa


dele. Sérgio, que tinha se esquecido do plug de silicone
jogado ali, o catou e guardou depressa no bolso, disfarçando
enquanto ela falava:

— Aquele moço que veio aqui, ele é diferente, né?

— Diferente como?

— Ele é meio “assim”, né? — e mexeu o pulso como


se desmunhecasse.
— Ah — Olhou para baixo, sem saber o que dizer. Se
fosse qualquer outro, falaria a primeira merda que surgisse
na cabeça, mas Leon... — É um colega de faculdade. A
gente tava praticando uns exercícios de crossfit no Luladrão
— Apontou para o boneco inflável do ex-presidente vestido
de presidiário ao lado da estante.

Ia sentar, percebendo a tempo que não seria uma boa


ideia naquele momento.

A secretária ainda o olhava com aquela cara: —


Desculpe, doutor Frazier, é que ouvimos uns barulhos
estranhos e um som alto...

Ergueu as mãos para o alto: — Tá, tá! E o que mais


vocês ouviram, hein? O pum do palhaço?

— O senhor, parecia que tava berrando... de dor.


Sua mandíbula vacilou por um breve momento, então
falou rápido: — Eu tava descarregando a raiva de ver esses
relatórios, esses números péssimos! Vai, pode ir Regina! —
Ela finalmente o deixou sozinho.

Suspirava aliviado, até se distrair e sentar na cadeira


da chefia.

À noite, Leon telefonou: — Já tomou o remédio? Não


deve passar muito tempo sentado por esses dias.

— Não diga! — respondeu de bruços na cama. Tirara


até mesmo a cueca, pois o mero contato com as roupas lhe
incomodava: — Mudei de ideia sobre essa coisa toda. Não
quero mais ser o seu...

— Submisso?
— Isso. Gosto das brincadeiras, mas você pegou
pesado. Não quero ser punido. Só quero que me foda,
apenas isso. — falava, recebendo um longo silêncio em
resposta.
— Tudo bem, mas eu não funciono assim. Não sou um
garoto de programa. Não que eu tenha algo contra, é que
eu só fico excitado se for nesse esquema,
dominador/submisso. Fora disso, não é minha praia, saca?

— Se for dinheiro o que você quer, não é problema.

— Não tem nada a ver com isso, cara! — Ele suspirou,


voltando ao tom normal: — Pô, eu tava curtindo o nosso
lance. A gente pode conversar sobre punições não-físicas,
não precisa...

— Não quero conversar, Leon, só quero que me coma!


Você tem um pinto de borracha, não tem desculpa pra não...
— falava, quando ele desligou. Tentou retornar a chamada,
mas ele não atendia.
Droga, pra que tinha dito aquela merda? Devia ter
imaginado que por mais esquerdista que ele fosse, não ia
levar na boa. Virou na cama, encostando a bunda nos
lençóis como uma espécie de auto punição enquanto
pensava no que poderia fazer para se desculpar com ele.
Capítulo 06 - Vermelho
 
Descarregando outra caixa com mantimentos e
materiais de limpeza e higiene na frente da ONG, Sérgio
refletia sobre as palavras sábias de seu finado guru: “A
mera pretensão de que a consciência é causada pelo
cérebro deve ser rejeitada como uma simples estupidez,
uma lenda, crendice”. Devia ser verdade, afinal, ter um
cérebro não levava ninguém a ter consciência,
necessariamente. Se nunca tivesse conhecido Leon, talvez
nunca parasse pra pensar nos sofrimentos a que pessoas
como ele ficavam expostas.

Lembrava-se da conversa naquele dia em que


comeram o macarrão com grana padano: Leon não somente
se desnudara num sentido físico, mas também num outro,
maior. Após duas semanas ligando sem que ele lhe
respondesse, Sérgio caiu em si: tratá-lo como um objeto
para a realização de seu fetiche era um erro que aos poucos
ruía a relação entre eles.
Relação, podia chamar o que tinham de relação?
Mesmo relutante, precisava admitir que Leon sempre o
tratava bem, com um carinho e consideração que não se
lembrava de já ter tido na vida. Pensava nisso, quando a
ligação o pegou de surpresa:

— Podemos conversar?
— C-claro! O-onde...

— Pode ser aí mesmo. Você ainda tá aí? — confirmou


o endereço que lhe mandara horas antes. Ele desligou e
Sérgio voltou ao que fazia.

Leon chegou quando terminava de descarregar. Sérgio


inspirou fundo ao vê-lo depois de todos aqueles dias, horas
e minutos. Ele deixou o capacete no assento da moto e
veio, olhando para as caixas empilhadas na frente do
casarão que servia de abrigo para LGBTs, em especial trans
e travestis. Voluntários carregavam as doações para dentro.

Leon cruzou os braços, com um sorriso de canto: —


Quando a Soraya me disse que você tinha vindo aqui
semana passada, eu não acreditei. É assim que você acha
que consegue o que quer? Se fazendo de bonzinho?

Sérgio baixou o rosto. Pensava que tinha arrasado


com as doações ao longo daquele mês inteiro. Pesquisara
todas as ONGS do estado, doando dinheiro para as mais
distantes e indo pessoalmente às mais próximas. Achava
que o boca a boca levaria a informação até Leon em algum
momento. Como ele não respondia suas mensagens, apelou
para fotos com pedidos de desculpas e convites para
conversarem. Passara aquele tempo todo imaginando o que
diria naquele momento. Aquelas palavras soavam como um
balde de água fria.

— E o que mais preciso fazer pra ter o seu perdão?


Ele pôs as mãos nos bolsos e balançou a cabeça para
os lados: — Você se arrepende mesmo? Por que vir aqui
encher o lugar de doações não é o mesmo que admitir o seu
erro e aprender com ele. Não sou um brinquedo que você
usa e guarda na gaveta quando quer. Você realmente me vê
como uma pessoa? Ou sou só um meio de satisfazer o seu
fetiche?

Sérgio baixou os olhos, envergonhado. Não tanto por


falarem daquilo em público, mas também por Leon pensar
isso dele. E será que ele estava errado? Que motivos dera
para ele pensar de outra forma?

— Tem razão. Eu te tratei exatamente assim. Você


sempre me trata com consideração e eu... — Meneou a
cabeça, o corpo baixando até sentar de vez no meio-fio.
Levou a mão ao rosto: — Eu não te mereço, cara.

Leon o deixou ali por uns bons minutos, até


finalmente pousar a mão em seu ombro: — Levanta daí, vai.
Olha só pra você, chorando numa sarjeta com essa roupa
cara. Vem, digestão bem feita de São Paulo! — Precisou de
algum esclarecimento pra se lembrar do célebre poema de
Mário de Andrade.

Sentaram lado a lado na caçamba da Saveiro alugada.


Leon jogou a cabeça para trás, suspirando: — E se a gente
recomeçasse? Do jeito certo dessa vez?
— Como?
Ele lhe estendeu a mão: — Prazer, Leon das Dores dos
Santos.

Conteve uma risadinha.

— Que foi? É o meu sobrenome. Meu pai se chama


Lenin, meu irmão se chama Ernesto...

— E a sua mãe?

— Se chama Joana mesmo. — Riram. Leon o encarava


daquele jeito, tão encantador, que quase nem o ouviu
perguntando.

— E você?

Revirou os olhos: — Sérgio Cavalcanti Frazier.

— Tipo aquele artista.

— Qual?

— Aquele que... como era mesmo? Tem a ver com


gado. Ou berrante, sei lá!

— Ah, sei qual. — E seguiram a conversa, com Leon


lhe contando mais particularidades:

— Meus pais também são do meio, tem vários cursos


e certificados. Bondage, shibari, cera quente...

— Mas você sabia desde criança?

— Bom, não exatamente. Eles diziam que faziam as


pessoas se sentirem bem. Eu achava que eles fossem uma
espécie de terapeutas. — Ele deu aquele sorriso maroto,
jogando a cabeça pro lado.
— E na escola?

— Normal. Quando perguntavam, eu só repetia que a


gente vivia de aluguéis, o que não deixava de ser verdade.
Hilário foi quando a gente recebeu umas caixas e a vizinha
perguntou o que era. Eu respondi todo inocente que minha
mãe fazia um curso de velas aromáticas... Ela ficou nos
procurando a semana toda querendo uma! — Ele inclinou a
cabeça, limpando as lágrimas que saíam do canto dos olhos
de tanto gargalhar.

Ria também, admirando a expressão de Leon. O jeito


despreocupado com que ele falava da infância levou Sérgio
a pensar na sua própria, mas ela não era tão feliz nem
engraçada como a dele.

— Cê ficou quieto de repente. Que foi?

— Nada, é só... deixa pra lá.

— Ah, fala! Hora de abrir o coração — Ele brincou, o


sacudindo de leve. — Você se coloca numa couraça, sabe.
Naquele dia, da camisa dos Mutantes, você me deixou ver
um pouco mais do Sérgio. Mas eu entendo. Às vezes é
melhor, pra se proteger.

Inspirou fundo: — Não quero te aborrecer com isso. É


uma coisa sem importância.

— Já me aborreci com coisas piores. Vai em frente.

Suspirou: — Sabe, acho que não tenho nenhuma


memória de algum momento em que meus pais tenham
ligado pro que eu sentia. Eles só estavam ali, nas festas, no
café da manhã, mas não me lembro de algum momento em
que tivessem prestado atenção em mim. Nem mesmo pra
me dar broncas.

— Acho que você disse isso naquele dia.

— Eu disse? É, acho que foi. — Se lembrou da ocasião,


quando Leon o deixou virado para a parede. — Se eu tive
algum carinho e atenção nessa época, foi das babás. Meus
pais as demitiam por qualquer motivo, mas a Sônia
principalmente foi a que ficou mais tempo comigo. — Sorriu:
— Ela me chamava de Serginho, me paparicava, ouvia as
minhas bobagens de criança... E as broncas, nossa! Ela me
olhava e eu obedecia. Só que um dia, eu deixei minha mãe
fula da vida.

— Por quê?

— Chamei a Sônia de mamãe. E não só isso, mas


depois de ela brigar comigo pelo meu engano, eu ainda
respondi que preferia ela como mãe. Meus pais brigaram,
fizeram as pazes, me levaram a psicólogos. E eu só
perguntava pela Sônia. Só depois soube da demissão dela.

— Nossa!

Ergueu as sobrancelhas, conformado: — Coisas de


rico. White people’s problems, é assim que chamam, né?

— Tá mais pra falta de conselho tutelar problems. Que


merda!

Ficou em silêncio, os olhos lacrimejando. Será que era


por isso que não se sentia bem em admitir que gostava de
Leon? Por que achava que no momento em que isso
acontecesse, ele lhe seria tirado?

Como se tivesse lido seus pensamentos, ele


comentou: — Bom, isso explica porque você é tão dodói da
cabeça.

Fez uma careta, mas tinha que concordar.

— E aí, tem planos pra agora à tarde? — ele


perguntou, com aquele sorriso sugestivo.

— Não, e você?
— Acho que vou comer alguma coisa leve e ir pra
Kama Sutra. Comprei um gel que queria testar. Pode ser que
apareça algum cliente antigo.

— Ah, não! Testa em mim, porra!


Ele o cutucou: — É ciúme isso?

— Não... Só fiquei curioso.

— Ah, tá bom.
Almoçaram juntos e mataram o tempo olhando discos
num antiquário. Ofereceu comprar uma edição especial de
Raul Seixas pra Leon. Ele tocou de leve a capa dela,
suspirando: — É mesmo uma relíquia, mas eu nem tenho
toca-discos, doido. E olha o preço!

— Te compro um também depois. Você já me deu dois


presentes e eu nenhum. — respondeu e após alguma
insistência, ele aceitou com um sorriso que não cabia no
rosto.

Depois de tantas sessões com ele, Sérgio já se sentia


praticamente em casa ao adentrar a masmorra. Se aprontou
no banheiro e trocou a camisa polo e a bermuda com meias
brancas pela cueca de couro. Acompanhava os preparativos
do dominador, até ver a embalagem sobre o frigobar. —
“Gel hot”. É lubrificante?

— Sim, aquele que eu falei. Dá sensação de quente ao


ser aplicado. Mas acho melhor usarmos outra coisa, isso aí
pode dar ruim. Começa a esquentar e arder muito.

— Eu gosto de ardência.

— Sei, mas ainda acho que...


— Ah, para, Leon! Meu deus, que chato você é, hein!
Se não queria usar em mim, pra que falou nisso?

O dominador cruzou os braços.


— Tá, você quer, então vamos usar! — Ele gesticulou,
tirando a própria camisa e revelando aquele peitoral
torneado que o fazia salivar. Ele pegou uma corda não muito
grossa nem fina: — Que tal se eu te amarrar? Te deixar sem
defesa nenhuma? O que acharia disso, meu servo?

Sérgio baixou a cabeça, mentalizando a cena sem


esconder seu sorriso de empolgação: — Acho que seria
muito bom, senhor.
Leon balançou a cabeça: — Primeiro, faça um
alongamento. É só repetir o que eu fizer. — Demonstrou a
ele e, apesar da vontade, não questionou a ordem. Era
óbvio que a preocupação dele era a de que não saísse dali
direto para a fisioterapia. — Ótimo. Tira a roupa e deita!
Fez o que ele pediu, ficando bem parado. O
doutrinador se aproximou pelos pés da cama, erguendo
seus tornozelos. Exclamou, pego de surpresa. Era excitante
ter seu dominador tão perto e com acesso total a ele.

— Dobra os joelhos. — Ele os forçou um pouco até que


encostassem em seu peito. Seu cu piscava em expectativa.
Seria aquele o dia em que Leon finalmente o comeria?
Soltou um gemidinho de apreensão enquanto ele amarrava
seus tornozelos um no outro.

— Nem comecei, tá doendo?

— Não, eu só... eu queria...

— Queria o que, servo?

— Me fode, vai. Só uma vez. Me come, me estatiza,


sei lá que merda você queira chamar, só acaba com esse
tormento... — Ele levou o indicador até sua boca, calando-o.

— Sou eu quem decido se e quando vou te comer,


liberalzinho de merda. Agora, me dê as mãos.

Esticou os braços, e ele as amarrou atrás dos joelhos,


uma posição que duvidava que conseguiria manter por
muito tempo. Leon ajeitou os travesseiros para ampararem
melhor sua nuca e costas.
— Você tá doido pra ver a perestroika entrando, né? —
O comunista pegou a chave, destrancando o cinto de
castidade dele. Estremeceu, reclamando baixinho, à revelia
das carícias dele. Depois, foi a vez do plug.

Leon fez uma careta: — Ué, outro? — Devagar, ele


retirou o brinquedo de metal, quase do tamanho de uma
ameixa.

— Enquanto você não voltava a falar comigo, quis


experimentar. Só não foi legal quando me esqueci e tentei
pegar um voo com ele. — Tinha ido a Curitiba assistir uma
palestra sobre a Lava Jato, mas o detector de metais o
acusou e só conseguiu pegar o voo depois de ir escoltado
por um guarda ao banheiro para retirá-lo. Praticamente uma
condução coercitiva, concluiu indignado.

Seu senhor meneou a cabeça: — Precisa se lembrar


disso da próxima. — Colocou o plug num canto, calçou as
luvas pretas e abriu uma camisinha vermelha: — Essa é
sabor morango. Gosta?

Sérgio balançou a cabeça. Vindo de Leon, poderia ser


qualquer sabor, mas ele separou também uma com o rótulo
verde e amarelo: — Vi essa numa feira especializada e achei
a sua cara.
Sorriu, encantado com a consideração.

Ele cortou uma das camisinhas do pacote e abriu


como um quadrado vermelho e semitransparente. Foi lhe
acariciando entre as coxas, bem devagarinho.
Entre cócegas, o submisso acompanhava ansioso,
vendo-o posicionar a camisinha aberta, esticando-a com os
dedos sobre seu cuzinho. A umidade dela e a sensação de
geladinho fizeram-no se remexer. O dominador se abaixou e
o atacou com a língua, deslizando e se afundando entre
suas pregas, aumentando seus gemidos. O penetrava com a
pontinha dela e depois rodeava as bordas.

Apertava os dedos das mãos e dos pés uns contra os


outros, abrindo e fechando os olhos. Ele parou, buscando
algo da gaveta. Eram grampos, de emborrachado cor de
rosa e transparentes.

— Queria usar em você, só não encontrava


oportunidade. — ele disse, e Sérgio abriu um sorriso.
Leon brincou, deslizando-os devagar por seu peito,
fazendo seus mamilos se eriçarem. Prendeu um mamilo e
depois outro, dando pequenas batidinhas neles, tirando
gritinhos do liberal na economia e conservador nos
costumes.

A esta altura, o pau endurecido de Sérgio escorria


sobre sua própria barriga, até Leon o envolver com a
camisinha verde e amarela e logo depois com a própria
boca. Arfou e grunhiu de prazer, acariciando o couro
cabeludo dele com a ponta dos dedos dormentes enquanto
o dominador lambia e o chupava até as bolas. Estava tão
bom que ignorou totalmente a recomendação dele de avisar
se sentisse dormência ou formigamento.
Leon o soltou e se virou para pegar um tubinho fino
semelhante a um canudo. Então, tirou a bermuda,
revelando o monumento que era seu packer ereto, mais
bonito aos olhos de Sérgio do que o touro dourado de isopor
da bolsa de valores. Ele pôs a camisinha vermelha e se
encaminhou na direção de seu rosto. O agarrou pelas
bochechas, esfregando o pau em sua cara e mandando: —
Me chupa, seu puto fascista!

Caiu de boca no volume dele o quanto podia, mas era


tão grande que mal passava da cabeça. Leon se divertia: —
Da próxima, coloco um menor pra facilitar!

Olhava pra ele, deslizando a língua sem saber se fazia


direito, se ele podia sentir alguma coisa. Talvez fosse mais
pela parte visual do que tátil, pensava, parando um pouco.
Leon o encorajou: — Assim, mais rápido!

Sérgio o obedeceu, mexendo o pescoço do melhor


jeito que podia naquela posição. O dominador segurou a
cabeça dele, impedindo o pau de escorregar de sua boca e
o submisso conseguiu ouvir os primeiros gemidos de seu
senhor. Saber que lhe dava prazer era mais satisfatório
ainda. Continuou, até ele estremecer, as pernas
bambeando.

Ele saiu de sua boca e se ajoelhou para beijá-lo, as


línguas se unindo mais que o Centrão com o governo. Se
lembrou do gel: — Você prometeu... — reclamou baixinho.
— Tá. — Ele pegou um punhado nas mãos enluvadas,
passando nos mamilos do bolsominion, já bastante sensíveis
pelos grampos. Logo aquele calor se estenderia ao buraco
que Leon invadiu sem dó com os dedos.

— Ah!... — Exclamou, ardendo mais que o Pantanal


durante a gestão do presidente: Colocaria a cara no fogo
por Leon, mas o que parecia apenas um ardor normal
evoluía para uma queimação insuportável, como se
tivessem enfiado uma pimenta em seu cu. Gritou: — Ai, tá
queimando, porra! VERMELHO!
Na mesma hora, Leon parou o que fazia e cortou as
cordas de seus pulsos e tornozelos: — Vamos pro banheiro!
— Ele o ajudou a sentar. Seus pés e mãos estavam um
pouco dormentes pelo tempo que ficara naquela posição.

— Sabia que ia dar nisso! — A bronca dele não o


aborrecia tanto quanto a quentura abaixo de si. Arrancou os
grampos no caminho, choramingando enquanto ele o
amparava até o box, onde usou o chuveirinho para controlar
aquele incêndio: — Chama o boi bombeiro!

— Cala a boca! — Não tinha muito o que fazer. Leon


tentou tirar o gel, mas parecia que só espalhava mais
aquele ardume.
— Calma, se esfregar é capaz de piorar. Lava mais um
pouco e vem. Vou te passar uma pomada. — Só aquelas
palavras o humilhavam mais que o ocorrido. Em vez de
terminar a sessão empalado na pica dele, agora tinha o
dominador lhe passando pomada proctológica. Suas
lágrimas de hétero rolavam enquanto ele fazia isso,
forçando Leon a parar.

— Ah, Sérgio, não fica assim! Tá tudo bem. Não vai


nem precisar passar na emergência... eu acho.

— N-não, não é isso. É só que...deu tudo errado!


Ele parou, o encarando. Deu de ombros: — Bom, não
foi como a gente queria, mas pelo menos você confiou em
mim o bastante pra experimentar algo novo e mais ainda
quando usou sua palavra de segurança. Na verdade, achava
que você já devia ter usado ela há muito tempo, fiquei até
mais aliviado agora.

— Cê tá aliviado é? Que ótimo.


— Eu tava com medo de que você estivesse fingindo
gostar de tudo o que eu te fazia só pra me agradar. Esse
tipo de coisa acaba com muita relação por aí. — Ele lhe
sorria, espalhando a pomada.

Relação. Então, eles tinham uma? Sérgio se pegou


questionando.

— Você chupa bem, até gozei. É bem difícil eu gozar


com o packer.

— Tava me perguntando isso. Ela parece tão realista.


Leon fechou a embalagem, lhe entregando: — Dá pra
sentir bastante, dependendo de como usa. Sexo não é só
estímulo físico, é mental também. A gente pode gozar com
qualquer parte do corpo, até o dedo mesmo. Acho que gosto
mais de te dedar do que usar esse negócio, na verdade.

Sérgio teve que concordar, ele era ótimo nisso.

O dominador se afastou, tirando o packer da cueca


vermelha que usava como suporte: — Relaxa, ainda como
esse teu cuzinho com ele um dia, pode deixar. — disse,
puxando a vértebra de dentro da prótese.
Sérgio virou o rosto, com medo de ele achar que o
encarava.

Leon guardou a peça, rindo: — Aí, até broxei com essa


pieguice toda!

Sorriu, ainda olhando para o chão com timidez. Afinal,


era ele quem estava com a bunda cheia de creme ali. A
queimação já tinha diminuído, então vestiu-se. Leon tirou as
luvas e recolocou a camiseta e a bermuda.

Ficaram a se olhar, cada um encarando a existência


que tinham em mundos totalmente diferentes: um parecia a
recriação do playboy do meme “com licença, senhor”; o
outro poderia facilmente ser cosplay do sindicalista
carregando a estrela gigante do PT. Nada havia mudado
neles, mas entre eles, tudo. Quanto tempo aquilo duraria
era um mistério maior que o orçamento secreto com sigilo
de cem anos, Sérgio concluiu, se despedindo.
— Semana que vem na mesma hora, tá?

— Tá. — Saía, voltando depressa ao lembrar do plug.


— Vou lavar pra você! — Ele foi até o banheiro,
retornando: — Aqui. — O entregou numa sacolinha de papel
fechada.

Ao pegá-la seus dedos encostaram de leve. Se


detiveram assim por alguns instantes, até Leon soltá-la,
com um sorriso tímido.

— Obrigado. — Sorria, sem saber o que dizer. Deveria


dizer alguma coisa?
Ele já dava “tchau”, fechando a porta.

— Leon! — chamou de repente, sem saber direito por


quê.

— Que é? — O dominador o olhava, os olhos escuros


brilhando como estrelas. Ficou a encará-los, a sacolinha nas
mãos.

— N-nada! Já vou indo.


— Tá. — Ele fechou a porta.

Se virou em direção à escada, os pensamentos


descendo junto com ele. “O que mais você queria, imbecil?”
dizia uma voz parecida com a do Mito em sua cabeça: “Esse
cara vive de comer gente, você é só mais uma fodinha dele,
talkey?”
“Não”, ousou retrucar mentalmente. “Leon sempre me
trata com carinho, até cuidou de mim quando os Gentile me
pegaram no trabalho. Ele gosta de mim, ele mesmo disse”.
Retirava o carro do estacionamento. Dois homens
espreitando numa moto não o assustariam tanto quanto
aquela voz que recusava calar-se: “Claro que aquele petista
gosta de você, tá rachando de ganhar o teu dinheiro, seu
boiola!” Quase bateu na mureta de segurança da pista: —
Merda!
Chegou em casa a duras penas. Deixou a sacola na
gaveta e pegou o celular: era uma mensagem dele,
perguntando se tinha chegado bem. Não respondeu.

Logo abaixo, várias mensagens de Camila,


perguntando o que achava desse ou daquele prato de
buffet. Também não respondeu.
Tirou os sapatos e deitou na cama sem trocar de
roupa, olhando a tela brilhante no escuro. Deslizou até o
número de Leon, ensaiando uma resposta.

Desistiu.
Deixou o celular no silencioso. Faltavam cinco meses
para o casamento. Leon achava que tinham terminado.
Continuava mentindo pra ele. Será que ele se importava?
Ou só queria pagar de consciente?

Encarou o teto. Por que fazia diferença? Só queria


uma putariazinha no sigilo, não era? Hã? HÃ?!

Leon tinha sido atencioso com ele durante toda a


cena, como sempre. Dizia que gostava dele, se preocupava
com ele, mas... Ele não lhe dera um beijo ao se despedirem
na porta, percebeu.
Era isso o que queria, um beijo? Um simples beijo?
Ele o beijava nas cenas, mas nunca fora delas. Dizia
que gostava dele, mas sempre recebia o dinheiro com
antecedência. Lhe dera dois presentes, mas eram coisas
que só serviam pra sexo.

Então era esse o problema, estava confundindo as


coisas? Levou a mão à boca, rindo. Justo ele, que sempre
dizia a Leon que não queria se envolver, nem conhecê-lo?
Puxou o lençol sobre si, aquele pensamento soando
assustador. Leon era um comunista, um pervertido da pior
espécie e petista ainda por cima. Nunca poderiam... Nunca
iria...
Fechava os olhos, mas só conseguia ver Leon
fechando a porta. Lhe dando “tchau” com aquele sorriso tão
formal, como se tivessem tido uma reunião de negócios.
Como se ele fosse só mais um cliente qualquer.
Chorou. Não lágrimas de hétero, mas de tristeza
mesmo.
Capítulo 07 - “Seu comunista!”
 
Leon (11 de junho de 2022):
oi, cara, chegou bem aí? fiquei preocupado.
me liga quando puder
Leon (18 de junho de 2022):
tá aí, Sérgio? Te liguei de manhã e de tarde,
mas vc não me atendeu. Tá tudo bem? Vc
faltou ontem, fiquei preocupado
Leon (25 de junho de 2022):
olha, se vc não quer mais vir, tudo bem.
Mas podia pelo menos falar comigo?
Leon (13 de agosto de 2022):
vou colocar outra pessoa na sua vaga, pode
ser? Vc ñ me responde, faz semanas q ñ
tenho notícias suas. Se tá com algum
problema eu vou entender, mas vc tem que
me dizer
Leon (24 de setembro de 2022):
já preenchi a sua vaga, se quiser marcar
outro horário é só falar com a Soraya, tá?
Leon (Hoje - 1 de outubro de 2022):
poxa, cara, me desculpa. se eu soubesse q
vc ia ficar tão mal assim, nunca teria usado
aquela porcaria em ti. Fica bem, tá? Tudo de
bom
Debruçado na mesa, Sérgio perdia a noção do tempo
encarando a última mensagem recebida. Era como um
portal onde podia vislumbrar o que poderiam ter sido se as
coisas não fossem como eram. Tinha estragado tudo
confundindo gentileza com carinho e carinho com amor. Até
duvidava da existência de tal sentimento. Na verdade,
queria até que não existisse porque era doloroso demais
pensar que pudesse ter estado tão perto dele.

Tocou a caixa de texto.

Sérgio:
...
Terminou digitando três palavras, tão imbecis e tão
bobas e tão... verdadeiras. Seriam mesmo? Era isso o que
sentia, ou só usava aquilo para se sentir menos sozinho e
incompreendido no mundo? Mas não era pra isso que
serviam essas coisas? E Leon? Será que ele...

A quem queria enganar, aquilo era tortura. Após meio


minuto encarando a tela, apagou tudo e fechou o aplicativo,
voltando ao trabalho.

Outubro havia chegado e as bruxas andavam à solta,


não pelo Halloween: do nada, vídeos e mais vídeos com
declarações bizarras do presidente começaram a circular.
Coisas que Sérgio não se lembrava de ter visto antes, e ele
já tinha visto muita coisa nos grupos do Zap enquanto
testava as narrativas que melhor funcionavam entre seus
seguidores e repassava a informação para os produtores de
conteúdo maiores. Homofobia era fácil de ser desculpada
por eles, mas canibalismo e pedofilia, Capitão? Aí você me
fode, suspirava, passando a mão no rosto.
Em sua live, declarava: — É Bolsonaro ou nada!
Cuidado se não o PT volta! — As doações dos membros
entravam em tempo real, os números subindo na tela. Mas
nada daquilo lhe tirava o menor sorriso. O boca-a-boca que
fizera Leon saber de suas doações às ONGs para LGBTs
também chegara aos seus inscritos. Respondia que era uma
estratégia para angariar votos pro mito que, é claro, nunca
foi realmente homofóbico, só se expressava mal. Mentiras
atrás de mentiras.

Olhou o retrato dele com Camila na mesa. Iam se


casar dali a um mês, logo depois das eleições. Se
perguntava o que Leon fazia, se tentava virar votos na rua
oferecendo bolo e café aos passantes, ou se tinha
encontrado alguém melhor que ele pra chicotear. Talvez um
cirista. Nada disso melhorava seu humor.

Abriu a gaveta, buscando o exemplar de


“Fenomenologia do Espírito”. Virou a capa, tocando de leve
o nome que escrevera por cima do outro, quando sua noiva
gritou da porta:
— Tudo pronto, Mozão?! Bora pra carreata? — Ela
vestia verde e amarelo dos pés à cabeça, incluindo uma
pintura facial que a deixava parecendo um limão siciliano.
Fechou depressa a gaveta.

— Nossa! Você tá bem... patriótica. — Se recuperava


do susto ao vê-la.

— Brigada, Mô! — Ela fez arminha com a mão na


cabeça dele, sem perceber seu incômodo com o gesto.

— Vou me trocar e já vamos! — Se levantou para


pegar sua camisa da CBF pendurada no cabide de escritório.
Seu reflexo no espelho, porém, não lhe trazia mais aquela
energia febril de lutar pelo mito, mas o fazia se lembrar de
quando Leon o espancara com o cinto bem em sua mesa,
das conversas e debates que tinham. Controlou o impulso
de pegar o celular novamente e saiu com Camila na BMW.

Tensionava as mãos sobre o volante, tentando sentir


aquela euforia contagiante do jingle de seu candidato em
meio às buzinas e saudações dos demais patriotas.

— Mito, mito, mito! — A mulher gritava do lado dele


com a janela aberta: — Vai Mozão, buzina, buzina! — Batia
em seu ombro, fazendo coro com a barulheira do lado de
fora.

— Dá pra parar?! — Seu berro a calou na mesma hora.


Bufou, apertando o volante: — Desculpa, Paixão. Tô com dor
de cabeça.
Ela fez um bico, magoada. A confusão em Sérgio só
aumentava. Ele e Leon nunca dariam certo, eram muito
diferentes. Mas já não achava que poderia ser feliz com
Camila: por mais que tivessem tudo a ver, a via mais como
uma amiga do que como uma esposa. Nem sabia mais se
realmente queria uma esposa, pra começo de conversa. Só
conseguia pensar nele. Na falta que lhe fazia.

A carreata seguia até ser bloqueada por uma


concentração de militantes esquerdistas, com faixas e
bandeiras de diversos partidos e causas. Pararam o carro
junto com os demais ao verem a polícia.

— Esses corruptos desgraçados tinham que aparecer!


— reclamou ela, mas Sérgio mal lhe dava ouvidos: corria os
olhos por entre a multidão vestida de vermelho: um grupo
de jovens enfrentava a PM, que os ameaçava com escudos,
cacetetes e balas de borracha. Do outro lado, palavras de
ordem e faixas. Com a cabeça para fora do carro, Sérgio
reconheceu bem ali, entre os manifestantes. Ele.

De repente, uma pedra atingiu o escudo. Um dos


policiais ergueu o braço atirando e os outros o seguiram,
partindo pra cima do grupo que debandava em pânico.

— Aonde você vai?!— Ignorando-a, abriu a porta e


correu na direção em que o vira.

Os gritos e relinchos o faziam titubear, mas não parar.


Se acotovelava, tentando achá-lo entre esbarrões e correria.
Os cavalos avançavam e já não sabia mais onde estava no
meio da fumaça das bombas de efeito moral. Erguia os
braços, tentando se proteger.
Um PM o puxou pela camisa: — Tá maluco, idiota?

— Não, você não entende! Me larga! — Tentava


argumentar, mas outro PM o arrastou para fora do tumulto.

— Volta pro carro, playboy! Já vamos limpar seu


caminho! — ele disse, com um sorriso. Sérgio levou a mão à
boca, assistindo a dispersão, feridos carregados pelos
colegas em fuga enquanto outros eram jogados em viaturas
com toda truculência.

Camila precisou chamá-lo várias vezes até perceber o


trânsito liberado. Mal se mexia no banco enquanto os
demais patriotas buzinavam e xingavam. Andou com o carro
em silêncio fixo no horizonte.

A noiva o encarava, aturdida: — Tá doido, é? Por que


fez isso?

Continuou dirigindo.

— Cruz credo. Tinha algum cliente da empresa ali, é?


Pior pra ele. Quem manda ser petista? Tem que meter bala
nessa corja mesmo...

— CALA A BOCA!
— O quê?

— Só fica quieta!

— Mas...
— Não aguento mais te ouvir falando, Camila!

Ela cravou as unhas verdes sobre a bolsa de grife,


emudecida. Pegou um desvio para deixá-la em casa. A
pintura facial dela escorria com as lágrimas. Ao chegarem,
ensaiou um pedido de desculpas, mas ela desceu do carro e
bateu a porta.

Esmurrou o volante. Não queria ter falado daquele


jeito com ela. Empurrava com a barriga todos os
compromissos que tinham e aquele momento só deixava
mais claro como o noivado não ia bem. Pensava nas
palavras do mito sobre amizades e parcerias: “São como um
casamento”, ele definia. Se o casamento deles seria como
aquele noivado, era melhor nem ter começado, concluiu.
Se lembrou das ameaças dos cunhados e voltou
depressa para o condomínio. Pegou o celular, encarando o
contato dele no aplicativo, sem ter coragem de ligar. Discou
para seu homem de confiança:

— Bulhões, tá na delegacia agora? Me faz um favor,


se aparecer algum Leon ou ***** por aí, você me avisa, tá?
E pode dizer que eu pago a fiança! E não é pra colocarem
em cela compartilhada! Na verdade, se ele puder ficar fora
de uma é muito melhor. Sim, advogados, também! Não
deixa encostarem um dedo nele, ouviu? Obrigado. —
Suspirou, se sentindo um pouco mais tranquilo, até
perceber que pior do que uma delegacia poderia ser um
hospital.
Segurou as lágrimas, pensando naquela possibilidade.
Tinha muitos hospitais na região. Leon provavelmente não
tinha plano de saúde. Ligou para os colegas que
trabalhavam nas principais emergências.
Depois ficou deitado, olhando o teto. A live que tinha
programado, os posts nas redes sociais, deixou tudo de
lado. Pensava no rosto apavorado dele, correndo de policiais
armados, se acotovelando para não apanhar como um
animal.

— Deus... — Levou as mãos ao rosto molhado. Apesar


de se dizer cristão, era a primeira vez que rezava desejando
o bem de alguém.

Ligou a tv tentando se distrair, mas as imagens de


seu então ídolo fazendo arminha com as mãos agora o
deixavam enojado. Desligou o aparelho, aquelas cenas de
violência tão próximas o fazendo repensar o que acreditava
até ali.

Procurava alguma coisa pra ler, quando se lembrou de


que esquecera o livro que Leon lhe dera na gaveta do
escritório. Aquele também tinha sido um presente dele e
nem se lembrara, provavelmente porque não era do seu
gosto. Mesmo assim, era um presente e não tinha a ver com
sexo, mas com o momento que partilharam. Um presente
de despedida que rejeitara o quanto pode.

As horas passavam. Queria ir à Kama Sutra ou a


qualquer lugar onde pudesse encontrá-lo, mas não tinha
coragem. Não tinha coragem sequer de mandar uma
mensagem perguntando. Se lembrava do P.M. lhe dizendo
que iam limpar seu caminho, como se fossem cúmplices. De
repente, várias das opiniões de Leon faziam-lhe sentido e
doíam em seu peito.

Anoiteceu e ninguém lhe telefonou, mas Sérgio só


conseguiu dormir depois de confirmar que ninguém o vira
mesmo. Acordou com o celular no colo. Olhou o aplicativo,
com um sorriso de alívio. Leon tinha estado online às cinco
da manhã.

— Obrigado, Senhor! — Cochilou mais um pouco até


as nove horas.
Comeu qualquer coisa e se olhou no espelho. Olheiras
cobriam seus olhos e seu desodorante tinha vencido. As
notificações lotavam a tela do celular, clientes e amigos
perguntando da live e o que ele fazia que não tinha postado
os vídeos e propagandas combinadas. Limpou a tela e foi
tomar um banho, tentar se parecer com um ser humano
minimamente composto. Leon estava vivo e provavelmente
bem, dizia a si mesmo. Era domingo de eleição, precisava
comparecer, mesmo que fosse tudo uma fraude, como dizia
o presidente.

Uma fraude; Sou Sérgio Frazier, empresário de


sucesso e uma completa fraude, disse, sem conseguir
ajeitar a gravata, o aperto dela despertando a lembrança
dos momentos de intimidade.

Sua sessão eleitoral costumava ficar num colégio


próximo, mas tinha sido mudada com a pandemia para
outro um pouco mais longe. Colocou a máscara no queixo,
se banhou com o álcool gel do totem e esperou na fila,
encarando aqueles desenhos mal feitos de personagens
infantis que costumam enfeitar os murais das escolas.

A maioria dos eleitores ali era do mesmo bairro dele.


Um pessoal diferenciado que estudara nos melhores
colégios, formados em medicina, direito ou engenharia.
Gente de bem, com um adesivo igual ao dele. Diante de
tamanha uniformidade de pessoas, qualquer adereço
vermelho o atraía igual um touro de desenho animado.
Ficava imaginando se algum dos esquerdistas na fila
conhecia Leon, se poderia lhe dizer qualquer coisa sobre o
protesto, ou se ele chegara bem em casa. Com aquele
adesivo do mito, seria muito difícil que lhe respondessem.

Arrancou-o do peito e o encarou, pensando por que


vira naquele homem um exemplo por tanto tempo. Talvez
enxergasse nele a figura paterna que lhe faltara,
prometendo ser o messias do país. Talvez por que ele era
contra o PT e sempre lhe diziam desde criança que o PT era
mau. Talvez por que ele fosse um liberalzinho de merda,
como Leon dizia. Amassou o adesivo e o jogou fora, se
virando para a mocinha à frente dele, com um diadema de
estrelas vermelhas nos cabelos escuros e cacheados.

— O protesto ontem foi difícil... O pessoal não se


machucou muito, né?

— A gente não tava lá, mas foi bem feio mesmo.


A amiga de cabelo colorido se virou para ele: — Vem
cá, cê não é aquele palestrante que tentou dar uma de
machão pra cima da minha amiga na faculdade?
Ela confirmou e Sérgio sorriu, sem graça. Antes que se
afastasse, um pisão da garota mais alta o fez ver estrelas
fora das tiaras delas.

— Obrigada! — disse Rafaela.


— De nada! — respondeu a outra, com um beijinho no
rosto dela.

Se encolheu contra a parede, xingando baixo.


Um mesário saiu da sala, pedindo: — Gente, não
embola muito por favor! Olha o corona!

Aquela voz... Ergueu o rosto depressa.


Era ele, o doutrinador, seu dominador, com crachá de
mesário voluntário.

Ele também ficou a encará-lo, mas logo voltou para


dentro da sala.
Seu coração batia mais que o grave do som da
carreata. Apertava os documentos, erguendo a cabeça para
espiar sobre os ombros alheios, mas precisou esperar um
bocado para finalmente chegar na porta, a pressa que
costumava ter nessas ocasiões ganhando outro sentido.
Leon, vivo e inteiro na frente dele, com aquela camisa
branca tão linda, agarradinha em seus muques. Deus era
bom, Deus era fiel.
— Bom dia! — disse com todos os dentes, sem se
aguentar de animação.

— Bom. Dia. — ele respondeu.

Mostrou a identidade e o título, acompanhando como


um cão quando ele conferiu e apontou o campo da
assinatura. Encarava os dedos dele, aquele indicador
mágico que podia fazer tanta coisa... Riscava o papel,
tentando olhá-lo nos olhos, mas o mesário dominador virou
o rosto para o lado, digitando seu número de identificação
no microterminal com impaciência.

Mesmo enrolando, acabou a assinatura. Leon pegou o


caderno de registro e apontou a urna com a caneta: — Pode
ir, senhor. — disse, sem nem o olhar na cara.

Sabia que tratá-lo daquele jeito não podia produzir


outro resultado, mas por que ainda ontem Leon tinha
mandado aquela mensagem e agora o tratava com tanta
frieza? Passou a mão sobre o nariz, se dirigindo à urna. Fez
o que tinha de fazer e voltou. Pegou o comprovante
destacado, sem sair da frente dele. Não conseguia.
— L-Leon...

Uma madame de óculos escuros reclamava do lado de


fora da sala. Sérgio continuou onde estava, segurando o
título. Não conseguia dizer uma única palavra, mas torcia
para ele entender que não o ignorara por mal, mas...

— Próximo! — Leon disse, enquanto outro mesário


pedia que saísse.
Deu uma última olhada para trás, esbarrando nas
pessoas da fila.

Foi ao hipermercado comprar os itens que faltavam


para o obrigatório churrasco na casa da futura sogra.
Mesmo se a carne estivesse barata, Sérgio não sorriria.
Como praticamente tudo tinha preços impraticáveis até pra
eles, só colocou no carrinho o essencial, isto é, um galão de
água e uma caixa de balas calibre 38. Seguindo para o
caixa, se deparou com um homem de boné vermelho o
encarando de cima a baixo. Olhou para os lados, pensando
se os Gentile tinham escolhido aquele lugar para dar cabo
dele, até o estranho murmurar:

— É muita cara de pau.

— Tá falando comigo?

— Tô sim! — Ele se virou, com o pacote de salgadinho


na mão: — Como é que você faz uma coisa dessa com o
meu menino, seu traste?
Piscou, sem entender nada: — Que? Cara, do que cê
tá falando?

— É do Leon que eu tô falando! Até o nome você já


esqueceu! — falava, quase tombando tudo no chão.
Reparou na voz, entendendo: — Soraya? Não te
reconheci sem todo aquele... — Gesticulava se referindo aos
seios e peruca da drag.

Ela ergueu as sobrancelhas, fazendo um biquinho


enquanto mastigava, batendo o All-Star no chão: — Prefiro
que não me reconheça mesmo!

Baixou a cabeça, passando a caixa de balas de uma


mão para a outra, sem se dar conta: — Eu vi ele agora, na
sessão. Ele parecia bem, nem quis falar comigo.

Ela se afastou, olhando da caixa para ele: — Não


falou, é? Tem mais que não falar mesmo! — Pegou o pacote
vazio e colocou na própria cesta pra pagar: — Ele fica lá,
sozinho naquele apartamento, ouvindo Raulzito até tarde da
noite! Tudo porque o submisso que ele mais gostava de
repente sumiu e não deu nenhuma satisfação!

Nesse ponto, os clientes das outras filas já se viravam


para acompanhar aquela novela. Porém, Sérgio se perdia na
fala dela: Leon, sofrendo... por ele?

— É verdade isso?
Soraya passava as compras: — Você duvida porque
não liga de verdade pra ele! — murmurou, tirando o
dinheiro da carteira e ignorando a expressão da atendente
ao dizer: — Você só lembra dele quando quer alguém pra
chicotear esse teu cu e te enfiar uma piroca. Se ligasse
mesmo, teria respondido!

— Eu queria, mas...
— Mas tu é frouxo! Igual a todo bolsominion. Eu sei, tu
nunca ia trocar a sua vidinha de luxo e hipocrisia por uma
de verdade com o Leon. Você não merece ele. — Ela saiu
com as sacolas nas mãos, deixando-o com aquelas
verdades difíceis de engolir.
Entregou as compras na casa da mamma de Camila.
Ia embora assistir a apuração dos votos na casa de amigos,
mas como sua mãe e seu pai estavam ali, inclusive Bulhões,
sentiu-se mais seguro para ficar.

A noiva ainda o olhava de lado, sentada na ponta


extrema do sofá. Na mesa de centro da enorme sala da
mansão dos Gentile, diversos petiscos e aperitivos com as
cores da bandeira brasileira eram servidos, combinando
com os copos térmicos das mesmas tonalidades. Apesar da
insistência, Sérgio não bebia nem comia nada oferecido,
vigiando os irmãos que circulavam pela sala se divertindo
com sua paranoia.

Ficar lá só não era uma aflição maior que acompanhar


a apuração; enquanto todos vibravam a cada vantagem ou
porcentagem alcançada do mito, o coach juntava as mãos
sobre a boca. Ter um segundo turno significaria mais que
uma chance extra para os candidatos: era uma nova chance
de rever Leon, de quem sabe, reparar seus erros com ele...
Se o mito fosse reeleito, talvez o dominador nunca mais
quisesse vê-lo nem pintado de carmim.
Conforme ficava clara a vantagem do adversário, os
risos na sala diminuíam, a tensão aumentando. Os parentes
acompanhavam mais ansiosos os números do primo Beto
para governador. Sérgio olhava de longe seu pai abraçado
com ele. Desde criança o achava um babaca, agora o
sentimento só aumentava.
O resultado fez a sala inteira vibrar em comemoração
enquanto permanecia sentado acompanhando a apuração
presidencial, dedos cruzados e torcendo.

Seu pai lhe pousou a mão sobre o ombro, satisfeito: —


Calma, Sérgio! O importante é que Betão já ganhou! Tá
difícil pro capitão, mas logo tudo se ajeita. Daí você casa
com a Camila e ficamos todos em família! — Ele o deixou
lhe dando um tapinha nas costas.

Continuou atento ao telão, imaginando se Leon


também pensava nele ao ver o petista em vantagem. O
anúncio do segundo turno não provocou tantas reações
amargas, visto que grande parte do fundo partidário
continuaria sendo usado pela família de qualquer maneira.
Sérgio baixou a cabeça e soltou um suspiro. Com as mãos
no rosto não dava pra ver seu sorriso, o que foi bom, pois
Camila logo veio, apiedada: — Não fica assim, Mozão! Ainda
tem o segundo turno!
— Sim. — Sorriu, desejando que ela descobrisse tudo
de algum modo e o largasse de uma vez.

— A gente vai sair vitorioso dessa, vai ver. — Ela lhe


deu um selinho e pegou sua mão: — Sei que a gente não
tem tido momentos bons, mas vamos nos ajeitar. Todo casal
passa por isso.
— Camila... a gente precisa conversar.

— Claro, pode falar!


— Você é uma moça muito decente, não merecia que
eu gritasse com você, nem te maltratasse. Esse noivado,
acho que foi meio precipitado, né? Parece que nossos pais
querem isso mais do que nós dois e... — Ia falando,
tentando não partir ainda mais o coração dela e nem acabar
com os miolos estourados.

— Mas eu quero me casar com você, Sérgio! Não


importa se você me traiu ou não, eu te perdoei! Já fizemos
todos os preparativos, convidamos todos os nossos amigos,
incluindo todos os coachtubers conhecidos, as colunas
sociais! — Ela segurava sua mão, sorrindo e limpando uma
lágrima: — É o meu sonho. O nosso sonho.

Franziu a testa, sem saber mais o que dizer: — Mas...


Os olhos azuis de descendente de italianos o
encararam: — Sabe, quando eu tava no ensino médio, tive
um namoradinho que se achava muito esperto. Ele me traía,
eu descobria e chorava, mas perdoava toda vez. Meus
irmãos me viam sofrendo e ficavam muito tristes e muito
bravos. De repente, ele parou de frequentar a escola e eu
descobri que ele teve que se mudar de cidade. Tinha até
passado em medicina, mas desistiu da vaga. Simplesmente
foi embora, não é incrível? — enquanto falava com aquela
vozinha de menina, um estrondo o sobressaltou: eram Gian
e Giovani praticando tiro do lado de fora.

Ela deu um risinho triste: — Meus pais dizem que eu


tenho dedo pobre. Sempre me apaixono por covardes. —
Outro pipoco estremeceu as vidraças junto com ele.
Continuou calado, um calafrio tomando seu corpo ao
vê-la pegar o revólver largado entre os aperitivos. Ela puxou
a mecha de cabelo loiro recém-alisado da frente do rosto: —
Não quero que seja assim com você, Sérgio. Eu gosto de
você. Quero ter filhos com você. Ser a sua esposa, bela,
recatada e do lar.

Uma série de tiros se seguiu à fala dela. Se agarrou ao


braço do sofá.

Ela pegou sua mão, segurando a arma: — Acho que


vou lá fora praticar com os maninhos. Você vem?
Engoliu em seco: — A-acho que vou pra casa, pensar
na decoração do nosso casamento.

Camila abriu um sorriso, mostrando os dentes de


coelhinha e saiu em direção à varanda gourmet.

Sérgio se levantou, conferindo se o veludo do sofá


abaixo de si continuava branco e se apressou, cada pipoco o
sobressaltando no caminho até o carro estacionado.

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As semanas entre um turno e outro geralmente são
decisivas para carreiras e vidas de muita gente nos
próximos quatro anos, mas para Sérgio significava mais.
Pela primeira vez desejava algo por si mesmo mais do que
tudo. Mais que a idolatria por um mito, seu coração ansiava
pelo que o tirava do chão, algo que muita gente leva a vida
inteira para encontrar, ou morre procurando. Abandonou
seus compromissos para ir ao comício do partido opositor.
Tal como no dia da manifestação em frente à carreata,
centenas de pessoas lotavam a praça.
O candidato discursava sobre o palanque coberto,
recebendo aplausos do público diverso cujas cores das
roupas e bonés contrastavam com seu terno bem asseado.
Passava por um assessor perdido no meio do povão,
tentando identificar entre eles aquele que era o motivo de
estar ali, tal qual um Cid Gomes no meio de uma reunião
petista. Andou por todo o lugar, sabendo que aquele seria
um dos últimos grandes eventos permitidos.

Não aguentava mais andar. Parou com as mãos nos


bolsos. O homem discursava acima dele sobre quem
realmente detinha o poder no país, os bancos e toda a
retórica conhecida. Ficou ali, ouvindo e sonhando de olhos
abertos com Leon, imaginando que ele aparecia no palco
vestido de dominador e que o chamava pelo microfone pra
receber uma boa coça diante dos companheiros.
— Ali, teu sub! — ouviu de repente, mas assim que se
virou na direção deles, Leon se afastou.

— Espera, por favor!


Ele parou, os ombros tensos. Lentamente se voltou
para ele.

O grupinho de amigos cercou Sérgio, repuxando seu


terno: — Olha só, o empresário bolsominion tão respeitável
aqui no meio dos petista...

— Vai uma birita aí, tio? Ou uma cloroquina?


— Para, gente! Já chega! — disse o doutrinador e os
colegas se calaram.
— Leon, podemos conversar? A Soraya me disse que
tu ficou mal por minha causa.

Ele deu um risinho, chutando o chão e o encarando


em seguida: — Ela disse, foi? Tá bom.

— Eu não quis te ignorar, é que eu não sabia o que eu


sentia e...

— Olha, Sérgio, eu tentei falar com você por esses


meses todos e você não me mandou uma mensagem
sequer! Não quero mais ser feito de palhaço.
— Me deixa explicar... — Tocou o ombro dele.

O doutrinador empurrou sua mão para o lado: — Eu te


vi naquela carreata! E você tava com ela, sua noiva! Vocês
não terminaram coisa nenhuma, tu tava de sacanagem
comigo esse tempo todo, mano!
Tremia frente a ele: — Eu fiquei doido de te ver
correndo no meio daquele monte de arruaceiro! Liguei pra
delegacia, pra hospital, tudo com medo de...

— Medo de quê, de me perder? Eu, um homem trans,


esquerdista e arruaceiro? Ah, Sérgio. Para, né? — Ele se
afastou.
— Não, não! —Tentava alcançá-lo, mas os amigos
formaram uma barreira entre eles, batendo palmas e
gritando: — OLÊ, OLÊ O LÁ, LULA, LULA! — O enxotaram
como o invasor bolsominion que ele era naquela convenção
de esquerdistas. Saiu dali, observando Leon pegar o ônibus
com eles.
Sentou no meio-fio, com as mãos no rosto. Pegou o
santinho da calçada, encarando os números nele. Só lhe
restava...

No dia 30 de outubro, os seguidores que por acaso, já


não estavam a par de todas as situações inusitadas que o
dono do canal se envolvera, passaram a prestar atenção ao
verem as fotos dele. Amplamente compartilhadas, elas
mostravam Sérgio Frazier, o filho do ex-senador e orgulhoso
bolsominion caminhando pelas ruas da zona eleitoral,
vestindo nada menos que uma camisa vermelha com uma
estrela branca nas costas escrito “PT” e na frente “LULA
2022”.
Não só isso, mas ele também carregava a lendária
estrela gigante de papelão, algo que lhe teria consumido
dois dias inteiros para fazer se não tivesse pago as crianças
do condomínio pra isso. Como se já não fosse o bastante,
pregara um bottom do partido no bolso traseiro da calça
jeans e arrumara um par de sapatênis vermelho. Metade
dos seguidores achava que era uma pegadinha a ver com o
halloween e outra metade pensava se tratar de uma aposta.
Sérgio não se deu ao trabalho de explicar nada, mesmo que
tirassem fotos na sua cara.

Alguns moleques que deviam ser anarco-capitalistas


da sua fanbase o cercavam como repórteres, exigindo saber
o que ele fazia fantasiado daquela forma. Inspirou fundo, a
estrela no ombro como a cruz de um pagador de
promessas: — Algumas vezes, fazemos coisas que não tem
sentido, mas bem lá no fundo, tem. —disse, deixando-os
abismados com sua sabedoria além da compreensão.
Felizmente, Camila e os Gentile votavam em outra
zona e ninguém de sua família viria naquele horário, já que
não tinham hora pra acordar e muito menos trabalhar. Se
espremeu no corredor com aquela estrela. Seria impossível
Leon não perceber seu esforço, seu sacrifício, sua entrega.
Arrumar aquela camisa numa lojinha popular tinha sido
como comprar drogas numa boca de fumo: um desespero
para conseguir e outro para esconder que tinha.

Assim que o viu na porta da sessão, Leon arregalou os


olhos. Daí virou o rosto, tossindo. Sérgio podia ver
perfeitamente que ele ria, mas logo o mesário pediu para ir
no banheiro, deixando outro em seu lugar.
Suspirou. Tinha se esforçado tanto na indumentária...
Assinou o caderno e cumpriu seu dever conforme o
planejado. Esperou alguns minutos no corredor, mas parecia
que o dominador tinha simplesmente pegado um avião sem
volta pra Ratanabá.

Perambulou por algum tempo no centro. Depois de


tudo a que se sujeitara, não queria simplesmente voltar pra
mansão e assistir à apuração sozinho, e nada no mundo o
faria voltar à casa de Camila. Em vez disso, foi até a praça
que não era apenas o reduto conhecido de esquerdistas em
que o fatídico comício se dera, mas também o lugar onde
ele e Leon tinham passeado naquele dia. Sentado no
banquinho com a estrela gigante do lado, olhava o
restaurante japonês onde tinham almoçado e a lojinha de
discos em que achara o “maluco beleza” para ele.
Suspirava, pensando porque complicara tanto uma coisa tão
simples. “Eu te amo, cara” era só isso o que precisava ter
dito antes que aqueles urubus vermelhos os cercassem.
Por questões da recente pandemia a prefeitura não
tinha instalado o telão onde os passantes costumavam
acompanhar a apuração dos votos. Apesar disso, as pessoas
se aglomeravam, algumas de máscara, a maioria vestindo
camisas como a dele, até mesmo enroladas em toalhas com
as faces dos candidatos. Os bares enchiam, eleitores
acompanhando tudo pelas televisões como um ensaio para
a Copa do Mundo no mesmo ano. Companheiros e
militantes o cumprimentaram e pediram pra tirar uma foto
com ele achando que fazia uma homenagem.

Fazia um “V” de vitória do lado de uma adolescente


no momento em que o abordaram com um cutucão: — Tá
fazendo o que aqui, petistazinho de merda? Corrompendo a
juventude, seu comunista?! — O homem vestido de verde e
amarelo era maior que a lista de crimes do mito e batia o
punho fechado na mão, se aquecendo pra bater nele muito
mais do que Sérgio gostaria. Ele também tinha tatuagens
que o submisso preferia fingir nunca ter visto em
simpatizantes do governo.
Recuou: — Ô, meu, que isso! Eu não tô fazendo nada
não!
— Tá achando que vai colocar presidiário na
presidência? Ele vai voltar pra cadeia, seu babaca! —
falava, o cercando.

— Eu não sou petista, não meu! Não me bate! — Fez a


estrela de escudo, recebendo o soco através dela.
Caído no chão, o neonazista o chutava com tudo,
pisoteando suas costelas e barriga. “É agora”, pensava.
“Vou morrer, vou morrer, já morri...”
— Pega ele! — Alguém agarrou o homem com um
mata-leão e o arrastou para longe. Um segundo chutou o
rosto do nazista e uma terceira as bolas. Um quarto chamou
a polícia, que demorou a vir e acabou deixando o criminoso
escapar.
Nesse tempo todo, o coach permanecia dobrado sobre
si mesmo como um ouriço acuado, as mãos e braços sobre
a cabeça. Continuou firme no chão, mesmo depois que
vozes preocupadas perguntavam se estava bem. Só teve
coragem de responder ao ouvir uma delas: — Sérgio?

— L-Leon? — Sentou no chão, a dor dificultando seus


movimentos. Notou os amigos dele, que apesar dos
deboches anteriores, não pestanejaram em bater naquele
nazista. Agradeceu.
O doutrinador o ajudou a se reerguer, olhando-o dos
pés à cabeça: — O que cê tá fazendo parado perto de um
bar de bolsominion, tá querendo se matar?
Por mais feliz que estivesse em vê-lo, lembrava-se do
desprezo anterior. Baixou o rosto, contendo o choro: — Até
que não seria tão ruim. Você não quer mais falar comigo.

Leon o pegou pelos braços: — Para de besteira! Vem,


vamos tomar alguma coisa. — Ele deixou os amigos e o
levou para um barzinho do outro lado, onde provavelmente
estariam seguros. Pediu duas águas e um punhado de gelo.
Enrolou um cubo no lenço, colocando no rosto dele.
— Obrigado.

— De nada. — ele disse, e ficaram em silêncio por


algum tempo.

Seus olhos se encaravam, os terrosos dele e os


aquosos de Sérgio. O bolsominion os limpou, se debruçando
sobre a mesa: — Desculpa, eu...

— Respira. Aqui, olha pra mim — ele segurou sua


mão: — Enche o pulmão, só pelo nariz e solta devagar,
assim — O dominador demonstrava, inspirando fundo e
soprando o ar pela boca depois.
Sérgio fez aquilo duas vezes e parou, pedindo: —
Leon, me deixa falar, por favor! Por favor, senhor.

— Tudo bem, mas não me chame assim. Não estamos


numa cena.
— Eu queria tanto falar com você! Por que me deixou
falando sozinho naquele dia, nem me deu a chance de
explicar...
Ele olhou para os lados, balançando os joelhos.
Claramente se controlava para não se exaltar: — Eu te liguei
umas quinhentas vezes, você nunca respondia, o que eu
podia pensar disso?

— Você devia ter ido atrás, procurado saber!


Ele arregalou os olhos, o apontando: — Daí eu seria
um maluco, né? Ir atrás de um bolsominion cercado de
miliciano?!

Aquela fala o magoava, apesar de ser verdade,


porque fazia o submisso se lembrar: — Mas você disse! Você
disse naquele dia... Que eu não tava sozinho. Que você tava
do meu lado.
Leon suspirou, se recostando na cadeira de plástico do
bar. Era uma daquelas cadeiras confortáveis, onde poderia
ficar em silêncio por toda a eternidade antes de responder.

Ele deu um sorriso condescendente: — Pô, cara. Mas


você parece o pessoal do centrão, uma hora tá de um lado,
outra hora do outro! Do nada você some e depois reaparece
me stalkeando igual um cachorro no cio. — Ele voltou a ficar
sério, o olhar um tanto melancólico: — Pensei que tinha sido
pelo que aconteceu naquele dia, com o gel. Cê tava
curtindo tanto que eu me deixei levar e esqueci de dar um
tempo pra ver se você não ia ter uma reação ruim. Fiquei
tão nervoso pensando se tinha sido por isso que você não
falava mais comigo, mesmo você saindo tão feliz naquele
dia. Depois me ignorou igual um bolsominion ignora o
pessoal da Fiocruz!

— Eu queria falar, mas...

— Mas não fez! Me deixou mais esquecido que um


Suplicy! Foi mais falso que padre de festa junina!
— Leon, para! Tô ficando perdido no meio de tanta
referência. Eu queria te falar. Que eu... — As palavras
congelaram em sua boca.

O doutrinador pegou o gelo que segurava em sua mão


já avermelhada pelo frio. — Cê devia fazer um B.O. Talvez
eles não te atendam muito bem com essa camisa, ainda
mais em dia de eleição, mas aposto que você tem
conhecidos na polícia. Não deve ser um problema pra você.
— O tom dele fazia Sérgio se sentir ainda pior.

— Você tá me julgando sem saber, cara. Eu tentei


terminar com a Camila, eu juro!

— E o que, ela colocou uma arma na sua cabeça?

— Não, mas quase. Ela vai me matar se eu não casar


com ela!

— Entendi. E mesmo assim, você teve coragem de se


vestir igual um tomate pra me ver?
— É, Leon! Eu tô me arrastando, me ajoelhando por
você, será que você não vê?!

Ele se levantou, chamando o garçom. Pagou a conta e


saiu, com as mãos nos bolsos da jaqueta de couro. Sérgio
foi mancando até ele. Ao perceber o esforço que fazia, ele o
esperou.

— Eu preciso casar com a Camila, mas...

— Acho melhor você não terminar essa frase. — ele


disse, se preparando para lhe dar as costas de novo.
Mesmo assim, Sérgio segurou as mãos dele, aquelas
mãos que lhe fizeram sentir tanta coisa que nem imaginava
ser possível: — Mas eu preciso! Preciso te dizer que eu te
amo, cara. Tu é sim, um desgraçado de um homem trans
esquerdista, petista e arruaceiro. E eu sou um desgraçado
de um homem “normal” e bolsominion, direitista e cagão.
Mas eu te amo sim, e daí?

— É cis.
— O quê?

— Quem não é trans.

— Ah. — disse. Apesar da correção, o dominador


ainda o deixava segurar suas mãos e Sérgio se prendeu a
elas.

— É difícil acreditar nisso depois de tudo o que eu vi.


Principalmente aquela carreata.

— Eu fui nela, mas minha cabeça só tava em você! Eu


cheguei a sair do carro quando te vi correndo, mas o policial
me puxou de lá!
Ele não acreditava. Sérgio sacou o celular e mostrou
as fotos que seus seguidores tiraram do evento.
Leon pareceu se convencer um pouco, mas
continuava a duvidar: — E se for fake?

— Fake, é? Então olha! — Mostrou a filmagem que


fizera na urna, aquela de que se envergonharia pelo resto
da vida, que graças aos Gentile, poderia ser bem breve.

Leon segurou o celular: — V-você, fez isso?

Ainda se lembrava da sensação terrível ao ver a cara


do sapo barbudo sorrindo naquela foto colorida da urna.
Nunca pensara em apertar um número como aquele, ainda
mais a tecla “confirma” logo depois: — Fiz! E faria de novo,
se precisasse.

O dominador continuava a encará-lo, tapando a boca:


— Não acredito...

— Porra, meu! O que mais você quer? Se até me


arrisquei a ser preso e pagar multa! Se fosse uma selfie,
você podia achar que eu só fiz de conta, mas tá gravado!
Satisfeito?

Falava, quando Leon o agarrou de repente, num


abraço igual ao de um ministro no mito antes de ser
demitido pouco depois. Só que diferente do inominável,
Sérgio sentiu milhões de coisas boas ao ter os bíceps do
dominador em volta de si. Seu dominador.

Ele o ergueu no alto e girou, parando depois, os dois


um pouco mais tontos do que já eram. Se olhavam e riam.
Ao longe, as primeiras estrofes de “Vermelho” tocavam num
carro de som. As mãos dele tocaram seu rosto, e Sérgio as
segurou. Tudo parecia girar ao redor quando seus lábios se
tocaram, o gosto de Leon em sua boca e o refrão ecoando
junto com os fogos:
 

“Vermelhou o curral
A ideologia do folclore avermelhou
Vermelhou a paixão
O fogo de artifício da vitória avermelhou”
 
Se beijavam em meio a centenas de mãos erguidas na
Avenida Paulista, batendo palmas e acompanhando a
música. Devagar, abriu os olhos, ainda nos braços dele.
Olhava ao redor, com medo, mas tudo era alegria e os que
não aguentavam tinham saído muito tempo antes.
Caminharam de mãos dadas, parando perto do bar onde
tinham estado há pouco. O pessoal vibrava olhando a
televisão.

— Quer ir ver?

Ele riu. — Quer conhecer meu apartamento?

Pegaram um ônibus, algo que nunca em sua vida


tinha feito e seu doutrinador achou que seria uma
experiência instrutiva. Sentados do mesmo lado, foram
ouvindo o motorista e o cobrador cantando “Lula lá, brilha
uma estrela”. As estrelas realmente brilhavam entre os
prédios ao longe. Leon sabia de cor quais eram ocupações e
apontava os que poderiam ser no futuro.

— O seu apê deve estar bem ajeitado com o dinheiro


que já ganhou comigo. — comentou, só para ver a resposta.

— Fica olhando que eu vou te dizer onde tá o seu


dinheiro — ele disse e Sérgio ficou encarando a vidraça do
ônibus até ele apontar: — Ali!

— O que era? Passou muito rápido!

— Uma das cozinhas solidárias do MST. Usei pra


comprar o gás. Também gastei numa ocupação que
precisava de reparos nos canos d’água.
— Sério? Mas você não ficou com nada! — disse,
revoltado.

— Fiquei sim, com o dinheiro da condução. Era meu,


faço o que eu quiser com ele. Na verdade, eu ficava meio
mal de receber quando a gente começou a fazer coisas por
fora, mas era difícil recusar o dinheiro sabendo que podia
dar comida e teto pra tanta gente.
Sérgio olhou para o piso de metal, constrangido: — Me
desculpa ter pensado mal de você. Você é um homem bom.
Doou tudo pra caridade.

— Não é bem caridade, é uma ação coletiva. Tem


umas diferenças, mas você vai aprender. Vou te levar lá um
dia desses.
Desceram no ponto e caminharam até o prédio
popular onde ele morava. A fachada era bem comum
daqueles condomínios do programa “Minha casa, minha
vida”. Foram subindo as escadas até o segundo andar, já
que o elevador estava quebrado. — Quer que eu te
carregue? — Ele brincou.
— Se você puder, não vou recusar não. — Riu, se
escorando no corrimão.

Leon abriu a porta: — Não se assusta com a bagunça.


Tive que acordar cedo hoje pra fraude... Cê sabe. — falava e
Sérgio tinha a impressão de nunca ter visto seu dominador
tão bem humorado. Ele acendeu a luz, o convidando a
entrar. O apartamento era cheio de red flags, num sentido
literal: tinha retrato do Che Guevara, retrato do Stalin, e
curiosamente nenhum do Trotsky, o que Sérgio achava
muito incoerente com a persona que montara dele em sua
cabeça, mas preferiu não comentar. O cachorrinho dele
acordou, correndo para o dono e depois para os pés de
Sérgio.

—Laika, não! Ele é liberal, mas não é sua comida hoje!

O coach balançava a cabeça, olhando os arredores.


Apesar de toda a cara de apartamento de twitteiro que não
toma banho, o de Leon era limpinho até mesmo na bagunça
que ele jurava que tinha. — Eu pensava que comunista não
limpava a casa. Só expropriava.
— Pois tá na hora de você ver o que comunista faz. Na
cama, por exemplo. — Ele tirou a jaqueta, mostrando os
músculos do peitoral saltado debaixo da camiseta preta.

De repente, Sérgio teve um ataque de riso. Tentava se


controlar, mas não conseguia. Leon olhou desconcertado
pra ele: — Que foi?

— É que a sua... ela tá olhando a gente eu juro... —


Apontava a vira-latinha branca com uma mancha preta no
olho. Leon a pegou no colo, dando um beijinho na cabeça
dela e recebendo uma lambida no rosto.

— Tá na hora da filhotinha dormir! Vai! — Ele a


colocou de volta na casinha. Fechou o cercadinho e depois
uma cortina, separando o espaço dela do restante do
cômodo. O dominador sentou numa poltrona velha do lado
da cama de solteiro: — Ela vai latir um pouco porque tá te
estranhando, mas já, já ela dorme.

Continuava observando o quarto, até parar na capa


do disco do Raul Seixas. — Ah, ali ele. Você ainda tem.

Leon se levantou, pegando-o: — Eu quase arremessei


ele pela janela naquele dia, do primeiro turno. Mas o
Raulzito não merecia esse tipo de coisa.

Sérgio desviou o rosto, um pouco envergonhado. — E


cadê o toca-discos? A Soraya disse que você ouvia ele...
— Só ouço pelo celular mesmo. Tenho baixado aqui.

— Então toca — murmurou, sorrindo: — toca Raul.

Ele pegou o celular já com a bateria fraca. Encaixou o


carregador na tomada e selecionou a primeira faixa.
Conforme a melodia começava, os dedos dele saíram de
cima do disco e foram para sua coxa. Sérgio se remexeu na
cama, encarando o rosto que pedia proximidade com o dele.
Se beijaram novamente, dessa vez com mais intensidade, a
língua passeando pela dele, os lábios rosados se chupando
e se envolvendo com vontade enquanto as mãos
seguravam firme em suas costas, cada vez mais sobre ele
até que terminassem deitados. Ele parou, o sorriso tímido se
ampliando.
Sérgio queria sorrir também, mas em vez disso,
arfava, o coração cada vez mais acelerado. Suas mãos se
mantinham no peitoral de Leon, ora explorando-o, ora
impedindo-o de avançar mais. Piscou, baixando os olhos dos
dele, como se suas almas ameaçassem se fundir a qualquer
momento.

— Tá nervoso?
— É que eu nunca... você sabe, com um...

— A gente já fez algumas coisas.

— É, mas... é sempre comigo amarrado. Assim, desse


jeito, é meio...

— Assustador?

Balançou a cabeça, tremendo.

— Tudo bem, não tem pressa. A liberdade pode ser


mesmo assustadora. É mais fácil se deixar levar, que outros
façam suas escolhas por você. — Ele beijava suas mãos e
clavículas, lhe arrancando um suspiro.
— E-eu ainda quero, Leon. Eu quero você. Só não sei
como... — falava num quase gemido ao tê-lo em seu
pescoço.

Ele mordiscava sua orelha, sussurrando: — Você


sempre foi livre, Sérgio. É tudo faz de conta. Mas se você se
sente melhor assim, eu posso te vendar, que tal? Como se
sentiria, não podendo ver, apenas os meus toques e os seus
para guia-lo? Confia em mim pra isso?

— S-sim, senhor. — respondeu, suplicante.

Leon pegou o lenço vermelho que usara no bar.


Estava um pouco úmido do gelo, mas não reclamou.

— Qualquer coisa é só falar. Pode ser um “não”


mesmo ou sua palavra de segurança. Quantos dedos tem
aqui? — Ele estendia as mãos em sua frente.
— Nove?

— Palpite fácil. De novo. — Após errar, ele se


convenceu. Sem enxergar nada, Sérgio esperava o contato
dele. Ouvia Leon jogando a camiseta de lado, e depois os
botões da calça jeans sendo abertos. Ele tombou alguma
coisa, xingando.
Riu, sentindo as mãos dele perto de sua cintura: —
Teve trabalho pra achar essa camisa? Levou por quanto?

— 65 conto.

— Ih, te roubaram. — Ele a puxou por cima de sua


cabeça. Sérgio endireitou a venda, se encolhendo com as
mãos quentes dele sobre seu peito gelado de suor. Ele
acariciava devagar sua barriga e cintura, indo até o quadril.

— Pode me tocar também se quiser... Você só tá


vendado, não amarrado. — A voz brincalhona dele o ajudou
a relaxar.

O coach erguia as mãos no ar, tateando com medo de


bater no olho dele sem querer. Esbarrou no nariz, depois no
queixo. A cada tentativa falha o dominador ria um pouco.
Descobriu o ombro dele quando Leon já abria sua calça: —
Estica as pernas. — Ele a tirou para o lado, fazendo o
mesmo com as meias. De repente, um geladinho no pé o fez
erguer a perna de susto: — Ai! Leon?

— Sai Laika! — ouviu o trinco do cercadinho de novo e


as cortinas. — Desculpa.

— Tudo bem. — Segurou a risada, tentando não cortar


o clima.

Leon também não perdeu tempo: as mãos grossas


dele vieram passeando por suas coxas e se enfiando em sua
cueca, arrepiando sua pele. Pontinhas afiadas puxavam o
tecido dela. Rezava para não ser a cachorra, quando Leon
confirmou que era mesmo ele, a respiração tão próxima de
si. O som do pacote de camisinha sendo aberto, as mãos
experientes dele a desenrolando sobre seu pau ereto.
Então, aquele instante em que ele o tomou quase que por
inteiro na boca. Prendia o ar, agarrado ao forro do colchão, a
chupada quente e úmida num vai e vem constante. Gemia,
primeiro baixo e depois aumentando a voz de acordo com o
ritmo com que ele subia e descia com a boca toda,
segurando suas coxas. Estava prestes a gozar quando ele
parou.

Respirava sonoramente, na mesma frequência


acelerada com que seu coração batia. De repente, Leon o
pegou pelos ombros, sussurrando em seu ouvido: —
Liberalzinho de merda. — E deu um beijo úmido em sua
orelha.

Ficou imaginando o que ele faria depois, se mandaria


chupá-lo também, mas ele apenas o fez sentar e o colocou
num cantinho da cama. Sentiu o colchão afundando do lado,
um pé roçando de leve em sua cintura, o que deu a
impressão de ter sido sem querer.

Continuou sentado, o pau ainda duro e pingando. O


celular tocava em repetição as músicas, mas quase não
tinha prestado atenção nelas até aquele momento. Se
aborreceu ao perceber que ele não se mexia mais, como se
quisesse fingir que tinha saído. Pensava em tirar a venda,
mas não quis estragar a coisa.

Tateou, encontrando o pé dele. Ele o balançou um


pouco, rindo. O segurou, abocanhando o dedão. A princípio
sentiu gosto de pele salgada, o cheiro de suor, mas nada
tão horrível quanto imaginava. Ele não se mexeu mais, nem
esboçou reação contrária. Chupou o dedo, depois
mordiscou, tentando tirar alguma reação dele.

Finalmente, os braços dele encostaram em sua pele


nua, o puxando para junto de si. Ele deu um resmungo
baixo conforme deitava sobre ele, tendo o cabelo acariciado
e beijado. — Sem pressa, meu servo. Me ama? Mostra.

Entendeu como um convite para fazer o mesmo nele,


começando pelo peito. Beijava-o, sugando o perfume e o
suor dele misturados ao gosto da pele salgada. Os pelos
dele esbarravam de leve em seu nariz e lábios, mas isso o
divertia. Lambeu os mamilos dele, circulando a aureola e
sentindo-os mais protuberantes conforme passava a língua
repetidas vezes.

Ele o segurou pela bunda, lhe dando um tapa. No


susto, quase o mordeu, mas Leon pareceu gostar do risco.
Ele acarinhou sua pele arrepiada, deslizando os dedos de
leve por seu rego.

Voltou a beijá-lo, pedindo: — Vai, Leon. Você não quer,


me arregaçar?

— E você dá conta?

— Eu dou.

O beijou de novo na orelha, a respiração ofegante em


seu pescoço: — Dá?
— Dou...

As mãos saíram de cima dele por um momento,


retornando com os dedos úmidos de lubrificante. Leon o
espalhava devagar, primeiro em volta e depois afundando.
Gemeu um pouco.
— Parou de usar seu plug?
— Não... tinha... ânimo. — respondeu, sôfrego.
— Temos que ir mais devagar. — ele disse, pegando
mais gel e afundando mais um dedo nele. Mexia um pouco,
se afastando e fazendo Sérgio ter de acompanhá-lo,
recuando e se empinando para ele.

— Quem quer, corre atrás — provocava.


— Para... — choramingou e ele voltou a acaricia-lo ali,
enfiando três dedos de vez.

Perdeu o ar. Era uma pequena amostra de como seria


ter a piroca dele dentro de si. Apesar do treino com o plug,
Sérgio duvidava que aguentaria. Fechou os olhos, lágrimas
escorrendo por sob a venda.

Leon percebeu e a retirou. — Cê tá chorando?

— N-não, pode continuar... — respondeu, escondendo


o rosto no ombro dele.

Ele limpou suas bochechas molhadas: — Ô, meu


gadinho, não fica assim. Vamos mudar de posição, de lado é
mais fácil.

Apoiou a cabeça no travesseiro, querendo brigar por


ter sido chamado assim, mas do jeito que ia, estava quase
fazendo "mu" pra ele. Sentiu novamente uma fisgada
quando ele voltou a penetrá-lo, a cabeça daquele pau
enorme abrindo caminho como uma transamazônica na
mata fechada e virgem.
Gemia, apertando o forro do colchão e a fronha. Leon
parou, segurando sua mão trêmula, o braço musculoso por
sobre o dele. Ele beijava sua nuca e orelha, o calor de seu
corpo aquecendo suas costas. Começava a relaxar quando
ele empurrou um pouco mais, devagar, mas constante. Se
expandia, sentindo o packer dele até pulsar, de tão excitado
que estava.

O dominador esfregava sua mão com o polegar,


sussurrando: — Quero te dar muito prazer, Sérgio. Quero
você urrando o meu nome, pra todos os meus vizinhos
ouvirem. Pra todo mundo saber como você me adora.

— S-sim, senhor — disse, e ele começou a se


movimentar, rebolando o quadril até se encaixar por
completo nele. Leon o envolveu num abraço por trás,
beijando sua nuca e acariciando seu peito e mamilos, ainda
parado e totalmente dentro dele.

Sérgio virou o rosto para vê-lo. Ele sorria: — Não te


disse?

Enquanto o celular carregava, Metamorfose


Ambulante tocou na playlist. Sérgio voltou a apoiar a
cabeça, segurando os dedos entrelaçados do dominador
enquanto ele voltava a se mover no ritmo da música.

“Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante


Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Sobre o que é o amor
Sobre que eu nem sei quem sou
Se hoje eu sou estrela, amanhã já se apagou
Se hoje eu te odeio, amanhã lhe tenho amor
Lhe tenho amor
Lhe tenho horror
Lhe faço amor
Eu sou um ator”
 
Gemia quando ele aumentou o ritmo das estocadas, o
quadril batendo contra sua bunda e produzindo aquele som
maravilhoso. A dor já tinha aliviado e apenas ficava a
sensação de ser preenchido e enrabado por aquele
comunista.

Sérgio pegou no próprio pau com a mão livre, a outra


retida por Leon na cama. Sabia que ele devia estar sendo
gentil por que era sua primeira vez, mas não queria tanto
assim que ele fosse gentil.

— Me domina, Leon! Me fode como o mito fodeu o


nosso país!
Ele fez uma careta: — Tem certeza?

Concordou e ele o virou de bruços na cama, os braços


grossos o prendendo enquanto o relembrava da palavra de
segurança.
Sérgio assentiu, um pouco chateado dele ter saído de
dentro de si, mas curioso pelo que viria a seguir. O
dominador se abaixou, buscando algo debaixo da cama: era
um chinelo Rider. Vermelho, é claro.

Continuou imóvel enquanto ele passava a sola por sua


bunda, em movimentos circulares: — Se eu fizesse o que
me pediu, você ia parar no hospital e você já teve emoções
demais por hoje. Espero que isto seja o suficiente para o
meu servo.

Ele puxou suas mãos para trás, mantendo-as sobre


suas costas. Logo a primeira chinelada veio como fogo nele.
Exclamou com o choque. Em seguida veio outra, e mais
outra sobre sua carne desprotegida. Se remexeu, virando
um pouco o rosto. Leon tinha a expressão tão serena
enquanto fazia aquilo.

— Tá arrependido, bolsominion?

Sorriu, balançando negativamente a cabeça. Se não


fosse por toda a discordância ideológica entre eles, talvez
nunca tivessem se conhecido.

— Nem um pouco!

Ele deu um sorriso de canto, ainda segurando suas


mãos contra as costas: — Seria chato se você se
arrependesse totalmente. — E desceu com a rider nele, o
golpe estalando na pele enrubescida. O calor se espalhava
por sua bunda, fazendo seu cu piscar em expectativa por
receber de novo aquele pau enorme.
Se remexeu, tentando aliviar o ardor, mas Leon só
parou na décima sétima chinelada. — E agradeça que estou
usando o número antigo dele. — A sandália estalou ao ser
jogada no chão enquanto Leon voltava para a cama.
Ele não esperou nada além de reaplicar o lubrificante
no próprio pau e já foi metendo de novo, fazendo o
submisso soltar um gemido debaixo de si. Ao mesmo tempo
em que metia, o segurava pelos braços, apoiando todo o
peso sobre suas costas. — Melhor já ir se acostumando,
Sérgio. Queria ser a putinha do Bozo? Agora é minha
putinha, só minha, ouviu?

Gemia em resposta, cada estocada dele renovando a


ardência das chineladas. Com a cabeça praticamente
enterrada no colchão sob o corpo musculoso dele, Sérgio
babava com os dedos do dominador enfiados em sua boca,
como os arreios de um boi de carga. Se sentia usado,
invadido e totalmente humilhado. E que delícia era.
Não fosse todo o tempo que passara usando o cinto
de castidade, já teria gozado na cama. Antes que
acontecesse, Leon o virou de lado mais uma vez,
levantando sua perna esquerda. O encarava e ele lhe deu
um tapa no rosto, seguido por uma cuspida: — Tá feliz
agora, fascistinha? Tá feliz com o tanto de estrago que
quatro anos desse governo causaram? — A mão dele o
atingiu novamente na bochecha molhada de cuspe, fazendo
Sérgio gemer.
Leon ergueu mais sua perna, ampliando o acesso e as
investidas contra seu cuzinho. Estava quase gozando,
quando ele pegou seu pau, pressionando-o pela base: —
Grita pra todo mundo ouvir quem tá te fodendo agora!
Implora, servo!
— Ah, m-me deixa go... — tentava falar.

— Mais alto! — Ele continuava metendo e segurando


seu pau, impedindo qualquer alívio.
— LEON! ME DEIXA GOZAR, AAAAAAH... — Seu corpo
se contraiu, a visão ficando nublada. Seu cu pulsava sobre
aquela tora, se expandindo e se contraindo várias vezes,
numa onda de prazer tão forte que nunca havia
experimentado antes.

Leon foi afrouxando o aperto sobre ele, deslizando os


dedos úmidos e deixando enfim que jorrasse, gotas claras
sobre sua própria barriga. Ele brincou em seu gozo,
lambendo-o. Depois, foi saindo dele e cuspiu tudo lá dentro.
Retesou com a saliva escorrendo por seu cuzinho tão ardido
e abusado. Virou a cabeça para cima, encarando o teto.
Leon deitou ao seu lado, arfando também. Ele passou
o braço por sobre o de Sérgio, segurando sua mão.

— Te amo, liberalzinho de merda.


— Também te amo, petista safado.
Capítulo 08 - “País de maricas”
 
Acordou com uma mordida em sua orelha: — Ai, Leon!
— Ergueu a mão, ouvindo um latido. A vira latinha
balançava o rabo, farejando e lambendo seu rosto. Repuxou
o lençol que estava sobre si, tentando mantê-la afastada: —
Sai, Laika!

— Já estão se conhecendo melhor? — Leon apareceu


de cueca vermelha, armando a mesinha de metal dobrável
na cozinha. O apartamento era tão pequeno que de onde
estava Sérgio podia vê-lo e vice e versa.

— Bom dia — disse, encantado com a visão dele de


manhã: o cabelo preto e liso um pouco despenteado e
úmido cheirava a sabonete Phebo de rosas. Ele pegou a
cachorrinha no colo, dando-lhe um beijinho: — Ela gosta de
ti, olha só! Acho que deixei meu cheiro de comunista em
você.
Sérgio enrubesceu. Encontrou suas roupas arrumadas
num canto da cama. Leon provavelmente as catara e
dobrara enquanto dormia. Pediu: — Posso usar o seu
banheiro?

— Claro, à vontade! — ele respondeu, levando a


cachorrinha para a sala, o que Sérgio achou ótimo, visto que
continuava nu e com restos de sêmen e cuspe em seu
corpo. Ao sentar na cama, uma pontada o lembrou de tudo
o que tinham feito na noite anterior. Sorriu, vestindo a
cueca e levando as roupas para o banheiro. Pendurou elas
no cabide para fazer xixi.
Levantava a tampa do vaso quando reparou na pia: do
lado de cremes e shampoos, estava o pau de Leon, bem ali,
secando sobre uma toalhinha do flamengo. E pensar que
tudo aquilo tinha estado dentro dele. Virou o rosto: era falta
de educação olhar pra outro pau que não o dele enquanto
urinava. Se concentrou no que tinha de fazer e foi até o box
se lavar.

Usou o sabonete líquido que tinha o mesmo cheiro


que sentira nele, percebendo que se esquecera da toalha.
Bom, àquela altura não podia continuar tendo vergonha de
coisas simples. Pediu e ele lhe trouxe uma, com a estampa
do Lula, é claro: — Essa serve?

Pegou: — Ah, que engraçado!

Leon apontou pra prótese na pia: — Já deu bom dia


pra ele?

— Quase mijei fora do vaso quando vi. Sei lá, pensava


que você usasse o tempo todo.

— Posso usar quase o dia todo, mas tenho que lavar,


né. Em casa é confortável ficar sem. — falava e Sérgio
percebeu a ausência de volume ali. Não ficou encarando e
voltou a se secar com a face do novo presidente do Brasil.
Leon o assistia de braços cruzados, apreciando cada
segundo daquilo. Daí, retornou para a cozinha.
Ao terminar, pendurou a toalha e se vestiu com a
mesma roupa com que tinha estado no segundo turno. Ia
saindo, quando passou novamente pelo pau dele. Ficou
olhando os detalhes de veias e glande, pensando como
eram bem feitos. Tocou de leve, sentindo a textura que
imitava a pele.

— Vou fazer um misto quente, quer um? — Ele o


surpreendeu. Tirou a mão depressa dali.

— Desculpa, eu só...

— Tudo bem. Você tá curioso. Eu entendo.

— Eu não devia, né?

— Não, mas eu deixo passar. Afinal, foi a sua primeira


vez. — falava, colocando a mão em seu ombro. Sérgio
baixou o olhar. Parecia que sua desinibição na hora do sexo
o abandonava assim que terminavam.

— Deve ser estranho pra você ficar sem ele entre as


pernas. — comentava até se dar conta. Merda, será que
nunca aprendia? — Desculpa, cara.

Leon no entanto, pareceu não se aborrecer: — Pra


mim não é estranho. Eu gosto de usar, mas não vou morrer
se não estiver com ele. É normal. Olha só! — E baixou a
cueca.

Sérgio encarou o emaranhado de pelos da virilha e


coxas dele. Bem no meio estava um senhor grelo, o maior
que já tinha visto.
Leon o encarava com um sorriso que parecia esconder
alguma apreensão: — Acho que se vamos namorar, é
normal você saber como eu sou e vice-versa.

O fitava de volta, surpreso e enternecido pela


confiança depositada em si. Ao mesmo tempo, a expressão
dele lhe dizia que todo aquele bom-humor e as tiradinhas
eram em parte uma tentativa de camuflar seu medo. Seu
dominador, um homem tão seguro de si, tão imponente.
Não achava que ele pudesse ter medo de alguma coisa,
mas começava a entender. E o que mais ele tinha dito,
hein? Tinha ouvido direito?
Ele puxou a cueca pra cima: — Não preciso que goste
de mim por pena. Se for pra dizer algo do tipo, não precisa
continuar. Não quero que me diga que eu não preciso ter
medo de ser rejeitado porque eu até pareço um homem. Eu
sou um homem. Independente de ter um pau e duas bolas
no meio das pernas, mesmo quando eu ainda tinha seios.
Eu sempre fui e sempre serei um homem.

— Não, Leon. Não era isso que eu tava pensando —


disse, olhando para ele e sorrindo: — É que você falou em
namorar... foi isso mesmo? Cê tá me pedindo em namoro?

Ele o pegou pela cintura: — E eu preciso pedir?

Se viu derretendo nos braços dele. Namorar?

Ouviram um barulho.

— Opa, é a cafeteira. — Ele foi ver. Sérgio suspirou,


em parte aliviado e em parte ainda em choque.
Leon colocou o bule na mesinha. — Vai provar o
melhor café da manhã da sua vida!

Obedeceu, puxando a cadeira. Assistiu atento ele


pegar a baurutex do armário, untando-a com óleo e
colocando duas fatias de pão nela: — Queijo com mortadela,
pode ser? Acabou o presunto.

— Pode ser — respondeu, sem tirar os olhos dele.

Leon o serviu e sentou para comer o próprio


sanduíche. Ele lhe serviu o café também, mostrando uma
lata de leite condensado: — Não sei se você gosta, mas tá
aqui.

— Ah, no café da manhã? Não — Riam, olhando um


para o outro. O dominador acariciava sua bochecha,
tirando-lhe um sorriso tímido. Segurou a mão dele sobre a
mesa, alisando-a com o polegar. Parecia um instante tão
mágico aquele que estavam tendo. Sem palavras, sem
dúvidas, sem rixas. Nada para atrapalhar. Seria tão bom se
continuasse assim para sempre, pensava.

— E aí? Como fica?

— Hum?

Ele se ajoelhou na sua frente:

— Sérgio Frazier, quer ser meu namorado? Vai, não


me faça cometer essa breguice de novo.

Continuou sentado e imóvel. Leon o queria como


namorado? Ele nem sequer sabia se era homossexual...
como eles iam namorar?

— E-eu não sei... quero dizer, acho que não dá Leon.


Você é um homem e eu também... Isso faria de nós dois um
casal.... gay?

— É, um casal gay, sim. Ou aquileano, já que eu sou


bi.

— Mas, Leon... e se eu não for gay? Quero dizer, eu


nem gosto de Britney Spears.

Ele o olhou com aquela cara. O puxou para junto dele,


lhe beijando a testa: — Tu não precisa gostar de Britney pra
isso! Tu também não precisa ser gay pra gostar de homem!
Pode ser bissexual, ou pansexual.

— Vai com calma, Leon. Até ontem eu nem sabia que


era cis! Não sei, e se eu não for bom pra você? Eu falo
besteira toda hora. E se eu te magoar?

— Não sou criança, Sérgio. Se você me magoar, vai


ficar sabendo, pode ter certeza.

— Os seus amigos, eu lembro daquele dia, de como


me expulsaram do comício. Eles não vão me aceitar. Você,
com um bolsominion...

— Eles não têm que achar nada. Só a gente que tem


que achar alguma coisa. — ele fez uma pausa, entrelaçando
seus dedos: — E você? Tá preocupado com o que os seus
amigos vão achar? Você, com um homem trans... e petista.
Desviou o rosto, olhando para o próprio colo e depois
de volta pra ele: — Poxa, Leon. Eu quero namorar com você
sim, eu te amo. Mas você tá me pressionando. Eu dei o cu
pra você ontem. Ainda nem entendi tudo o que aconteceu e
você já quer que a gente saia por aí de mãos dadas e que
eu me assuma?

— Não, cara. Eu só tô te dizendo pra você começar a


pensar a respeito. Tô colocando as cartas na mesa. Me
desculpa, é só que eu não quero ser uma figura oculta na
sua vida. Alguém que te dá amor, mas só às escondidas, no
sigilo. O meu trabalho pode ser no sigilo, mas minha vida
pessoal não. Eu não tenho vergonha de quem eu sou. Quem
estiver comigo também não pode ter.

Os olhos castanho escuros dele o encaravam e Sérgio


desejou ser uma pessoa diferente, alguém que não tivesse
todas as pressões familiares que tinha, toda aquela carga
sobre si. Filho de um ex-senador, noivo da irmã de
milicianos conhecidos, sócio de uma das principais
empresas de consultoria financeira do estado. Se pudesse,
trocaria todo o dinheiro que tinha pra que nada daquilo
fizesse diferença.
— Acho que não posso ser essa pessoa, pelo menos
não agora.

— Você é adulto, Sérgio — Deu uma risadinha: — Eu li


seu livro. Você é Sérgio Frazier, tem 32 anos, e um
patrimônio de.... hum, quanto era mesmo?
— 23 milhões, mais ou menos. — respondeu,
pensando quanto daquele dinheiro realmente lhe pertencia
e quanto dependia da vontade de seus pais.

— E o que é que te falta pra você viver sua vida livre,


sem culpa?

— Coragem, eu acho. — E Leon? Continuaria a amá-lo


se não tivesse mais um tostão furado?
Ele pegou sua mão, suspirando: — Não é fácil se
assumir, eu sei. Cada cicatriz em mim, cada documento,
tudo foi à custa de muita dúvida, muito sofrimento,
incompreensão. Mas eu sou feliz. Não consigo nem imaginar
como estaria se tivesse continuado do jeito que estava. —
Sérgio reparou nas pequenas marcas nos braços dele.

Leon tinha sido corajoso pra ser quem era. Pensava se


com ele poderia ser igual, se poderia ter pelo menos um
pouco da coragem dele.

— É que você é tão bom pra mim. Tenho medo de não


ser bom pra você.

Ele deu um sorriso fechado: — Não tenha medo de


não ser bom. Tenha coragem de aprender a fazer o certo. —
Sérgio assentiu, olhando para o próprio sanduíche meio
comido. O que tinha feito de bom para ele? Tinha mentido e
continuava a mentir.
— De qualquer maneira, não se assuma por mim. Faça
isso por você mesmo, por que você quer. E você não precisa
de um rótulo, só entender que enquanto estivermos juntos,
seremos um casal de homens. Com tudo que isso implica.

Continuava a refletir, quando Leon olhou pro celular:


— Xi, tô atrasado pra aula! Pode deixar a chave com a Dona
Neusa da portaria, tá?

Ele vestiu uma camisa preta, pegou a mochila e se


abaixou, lhe dando um beijo na bochecha: — Pensa no que
eu te falei. — Se despediu de Laika e saiu.

Sérgio correu até o banheiro e depois gritou da porta:


— Leon!

Ele parou na escada, confuso. Mostrou o packer a ele.

— Dá isso aqui! — Ele o pegou, disfarçando o riso


enquanto ia até o banheiro. Se despediram com outro beijo.

Terminado o café, se levantava para ir embora


também, até perceber a louça suja. Se estivesse em casa,
esperaria a diarista aparecer, mas Leon não devia ter uma.
Pegou tudo, jogando uma quantidade reprovável de
detergente em cima e limpou com a ponta dos dedos
usando a última esponja nova que encontrou no armário.
Leon podia começar a gastar um pouco mais, ora. Se
estivessem juntos, dinheiro não seria problema para eles.

Laika latia atrás dele, roendo um brinquedo e dando


corridinhas.

— Seu dono gosta mesmo de mim. O que eu faço?


Ela latia, correndo e voltando. Fez carinho nela: — Eu
gosto dele, mas não sei se tô pronto pra mudar toda minha
vida assim. Isso se eu continuar vivo, né? — concluiu,
arrepiado.

A camisa do PT que vestia podia não ser muito segura


depois daquele resultado. Pegou emprestada outra do
guarda-roupa. Parecia que Leon só tinha camisas em tons
de vermelho. Sorriu ao ver a dos Mutantes e relembrar
aquele dia em sua casa. Vestiu, deixando a outra com um
bilhete em cima da cômoda. Conferiu se Laika estava no
cantinho dela e trancou o apartamento.

Passou pela tal Dona Neusa, que jogava carteado com


o servente. Entregou as chaves e a idosa lhe deu um
sorrisinho: — Ah, quer dizer que o Leon vai finalmente dar
um descanso pro Raulzito?

Corou, se lembrando da transa deles. Se Leon


quisesse ouvir enquanto faziam, não ia ser ele a reclamar.
Sorriu: — Que isso, minha senhora. Música boa é pra ser
ouvida mesmo. — Saiu, deixando a mulher admirada.

Foi uma experiência pegar um ônibus de volta pra


casa. Já era quase uma da tarde quando finalmente chegou
ao condomínio depois de passar por lugares que só ouvia
falar no noticiário. Porém, nada disso o amedrontava mais.
Só conseguia ver tudo pelas lentes cor de rosa da paixão,
ou melhor, vermelhas.

“Leon gosta de mim. Eu sei disso agora.”


“E a Camila, hein? Os irmãos dela vão te fuzilar,
talkey? Teu cadáver vai aparecer lá na Ponta da Praia!”
Ignorou aquela voz e quanto mais a ignorava, mais
feliz voltava a se sentir. “Panis et Circenses” tocava em sua
cabeça enquanto dançava pelo caminho, apesar de nunca
ter entendido bulhufas daquela letra.

 
“Eu quis cantar minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
Mandei fazer de puro aço luminoso um punhal
Para matar o meu amor e matei
Às cinco horas na avenida central
Mas as pessoas da sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer”
 
Cumprimentou o porteiro do condomínio com um
abraço apertado e esfuziou até em casa. Tão distraído
estava, tropeçou na pilha de tochas em seu quintal.

— Quem pôs essa merda aqui?


— Sérgio! — o grito estridente de Camila o fez tampar
os ouvidos. Ela veio correndo de moletom preto, com uma
máscara do Jason pendurada no pescoço. O encarava com
olhos inchados como se tivesse chorado rios de lágrimas: —
É horrível, não? O Mito está em choque! Estamos nos
reunindo pra protestar hoje!
— Protestar... — Olhou em volta, percebendo a
multidão em seu quintal.

— Vamos pra Brasília! Sua mãe tinha a chave daqui,


pedi emprestada a ela. Você não atendia o telefone,
imaginei que fazer da sua casa a nossa sede seria uma boa
ideia.

—Ah, sim — Balançava a cabeça devagar para as


trinta pessoas mascaradas reunidas com bastões e
acendendo tochas. Caramba, será que tinha trancado a
gaveta do plug?

— Separei pra você. — Camila lhe entregou a máscara


do assassino do Pânico e Sérgio achou que ela representava
bem seus sentimentos naquele momento.
— Olha, eu tô com dor de cabeça... Acho que hoje não
vai dar não.

— E onde você estava ontem? Nosso Mito sofrendo


essa fraude nas eleições, só Deus sabe como está tendo
forças pra aguentar a terrível injustiça cometida contra ele,
contra o país! E você só sabe falar da sua dor de cabeça,
Sérgio? Cadê aquele patriota? Cadê? — Ela o chacoalhava, o
encarando com aqueles olhos inchados cheios de rímel
endurecido e maquiagem escorrida.

— Meu Deus, me deixa em paz! — gritou, se soltando


dela e fechando depressa a porta atrás de si.

Encontrou um Michael Myers com uma garrafa de seu


uísque importado nas mãos e afanando suas cervejas da
geladeira. O puxou pela gola, lhe dando um chute: — Cai
fora!
O moleque tropeçou no balcão e correu. Olhou em
volta: a casa tava uma verdadeira zona de guerra, com
caixas de balas por todo lado e até artefatos explosivos na
mesa em meio a garrafas abertas. Foi tirando uma a uma,
assistindo a pequena multidão de conhecidos se enfiando
em vans alugadas.

Camila o encarava com aquele beicinho murcho: — Cê


não vem mesmo, Mozão?

— Não! — disse, sentindo-se esvaziar enquanto ela


vestia a máscara de volta e embarcava na van. Era uma
sensação boa. Olhou para baixo, pra confirmar que não
tinha sido sua bexiga. Sua “noiva” acenou de dentro do
carro e Sérgio se sentiu um pouco culpado por ainda manter
aquela mentira.

Repensou, considerando um alívio que estavam indo


para Brasília e Leon não correria risco de se meter numa
confusão com eles.
Terminada a limpeza, tirou a camisa emprestada,
cheirando-a: apesar de tê-la tirado do guarda-roupa, achava
que tinha o cheiro dele e o seu próprio misturados.
Considerou “perdê-la” em casa, mas acabou por separá-la
para a lavanderia. Assim tinha um motivo para voltar a vê-
lo, pensou, ainda sem acreditar em tudo que tinham feito.
Deitou, abraçado a ela.
###

Um dos talentos de Soraya era o de ler tarô para os


frequentadores da Kama Sutra. Ela tinha uma versão erótica
do baralho e sempre que alguém pedia, ela lia a sorte da
pessoa, tirando um por fora. Às vezes também fazia para o
dono, como cortesia e em nome da antiga amizade que
tinham. Leon sempre esperava ansioso pelas leituras dela,
mas naquela tarde, era diferente. A amiga se encontrava
toda montada como sempre, mas parecia ter deixado a
simpatia em casa quando sentou com ele:
— Eu tô tão feliz! Ele fez toda essa loucura por mim,
Sô!

— Sei...
— A gente não tem praticamente nada em comum,
mas sei lá, eu gosto dele! Acho que amo de verdade. Ele é
equivocado? Muito, mas é tão fofo e aprende tão rápido! E
ainda assim continua igual quando começamos. Ele entende
o jogo e adora, Sô!

— Hum-hum.
— Se não fosse essa noiva miliciana dele, a gente
podia já tá junto.

— É.

— Vai, Sô! Lê pra mim, que não me aguento de


esperar! Quero saber se o meu servo vai enfim decidir o que
ele quer pra vida dele.
— Cê sabe que essas perguntas são muito específicas
e eu tô lendo a sua sorte, não a dele. Acho que a pergunta
melhor é aonde que essa sua paixão pelo Sérgio pode te
levar.

Ergueu os olhos para ela: — Cê não gosta muito dele.

— Eu vi como você ficou por ele e não me entra na


cabeça. Você, um cara tão inteligente, tão simpático...

Riu: — Assim vou achar que tá querendo um aumento.


Ela fingiu se ultrajar: — Seu bobo! Aqui — Tirou as três
cartas do baralho cortado por ele, colocando-as em sua
frente ainda viradas para baixo e as revelou: “Os amantes”
saiu invertida, enquanto “A torre” e “A morte” saíram em pé.
A amiga olhou para ele, com cara de “não avisei?”.

— As cartas não mentem, ele vai te trazer mais


problemas! Melhor se afastar enquanto há tempo!
Leon balançava a cabeça, sem querer acreditar.

— Não, Sô! É só o jeito que cê tá interpretando, com


toda essa má vontade.
Ela arregalou os olhos maquiados para ele, pegando
as cartas uma por uma, num tom professoral: — Ah, é má
vontade minha, né? “Os amantes”: invertida mostra
desunião. “A torre”, tem um desastre por vir aí. E “A morte”,
bem, pode até não ser uma morte em si, mas é uma grande
mudança e ao julgar por todo o conjunto eu só digo uma
coisa: pica a mula, manda esse bolsominion pas-tar! Tu tá
se metendo com gente de milícia, homem!
Leon não respondeu nada, só entrelaçou as mãos na
mesa e ficou a encarar a rua e os passantes enquanto ela
guardava as cartas. Suspirou: — Sô, eu tô com 30 anos.
Sabe quanto eu esperei por alguém que eu gostasse e que
também curtisse o que eu curto? E ele poderia ser alguém
tão melhor, se tivesse incentivo. Ele poderia resolver muita
coisa, com o apoio certo. Tanta gente que poderia ser
ajudada...

— Mas tu quer abrir uma ONG ou namorar esse


traste?
Ficou sem jeito com a fala dela: — Não tem nada de
errado em influenciar alguém a fazer o certo. Eu gosto do
Sérgio. Ele ter dinheiro é um grande complemento à
personalidade de bosta dele, admito. Mas eu gosto. Não sei
explicar o porquê. E ele parece que gosta de mim. De
verdade.

— Ele gosta é de te fazer de otário! — ela murmurou.

— Gratidão, Sô. — Se levantou, fingindo não ter


ouvido nada.
###
Depois de passar a tarde no clube, Leon voltou para o
apartamento. Entardecia. Cumprimentou Dona Neusa,
pegando a chave que Sérgio deixara e ouvindo-a comentar
pelos lábios rubros: — Tá ficando sério é? Ele saiu com uma
camisa sua.

Ergueu as sobrancelhas, sem esconder o sorriso. —


Valeu, Neusinha!
Suspirou em alívio ao encontrar o apartamento
praticamente do mesmo jeito que tinha deixado. Laika veio
pulando até sua barriga e latindo. Pegou-a no colo: tava
tudo limpo. Então, reparou no vidro de detergente
praticamente pela metade e a esponja nova, tudo só pra
limpar dois copos e um prato.

—Ai, Sérgio... — Precisavam ter uma conversinha


sobre recursos naturais, pelo visto. Sentou no sofá
pensando em quantas conversinhas precisariam ter para
chegarem numa boa convivência, caso ficassem mesmo
juntos. Ele gostava da brincadeira na hora do vamo ver,
mas dificilmente aceitaria tanta interferência em sua vida. E
Leon mesmo não queria ficar num papel de disciplinador o
tempo todo, dizendo o que ele deveria ou não fazer.
Ninguém aguentaria isso.
Laika pulou de seu colo de repente. Ela sempre fazia
isso quando vinha vindo gente pelo corredor. Ouviu a
campainha e a voz dele o chamando.
O coach financeiro apareceu com um embrulho nas
mãos e balões de coração no outro braço: — Surpreso?
Leon juntou as mãos na frente do rosto, escondendo a
risada. — Entra.

— A sua camisa! Mandei pra lavandeira, lavagem


rápida.
— Obrigado. — Deu-lhe um beijo no rosto. Colocou o
embrulho na mesa, tentando não achar tudo tão ridículo.

— Pra você! — disse, desamarrando os cordões do


braço. Ou tentando.
— Obrigado de novo — O balão bateu em sua testa,
enquanto o recebia. Apesar de inusitado, achou fofo o
gesto: — Hum, bonitos!

— Ia trazer chocolates, mas a loja estava fechada. São


vermelhos, achei que gostaria. — Ele sorria, as bochechas
quase iguais à cor do presente. O suor em sua camisa
mostrava que ainda não tinha decorado totalmente o
caminho até sua casa.
— Quer um copo d’água, um suco... refrigerante?

— Aceito água. Foi uma boa caminhada do


estacionamento até aqui.

Amarrou os balões na cadeira e foi buscar,


comentando: — Tem um mais perto, no supermercado.
— Eu vi, enquanto andava. — Ele ainda arfava.
— Senta aí — Apontou a poltrona do lado do sofá.
Laika cheirava os pés dele e assim que Sérgio sentou, ela
pulou em seu colo.
— Sua bobona! — O dono tentava espantá-la.

— Ah, deixa, Leon! Que fofinha, gente! — Ele a


segurou pelas patinhas, lhe dando um beijinho e quase
recebendo uma mordida.

— Você já teve cachorro pelo visto.

— Minha mãe me deu um de aniversário, dizendo que


tinha resgatado da rua. Era um pastor grandão e branco,
lindo. Uma semana depois a gente descobriu que ele era do
vizinho e teve de devolver.
— Ah, que pena. Pelo menos ele voltou pro dono, né?

Concordou, recebendo outra lambida na cara.


Entregou o copo d’água, pegando a cachorra no colo.
Tinha alguns chicotes e paddlers espalhados no sofá. Os
empurrou para o lado, ao que o submisso apontou.

— Cheguei em má hora? Vai receber alguém?


— Não, tava só limpando. Na verdade, eu ia estudar a
lição de hoje. Faculdade, sabe como é.
—Sei, sei. — ele falava, com um riso meio
constrangido.

Colocou Laika no chão. Passada aquela euforia toda


de manhã e com a lembrança da previsão do tarô, Leon
voltou a encarar a situação com a seriedade que pedia: —
Pensou na nossa conversa?
— Pensei. Tô terminando com a Camila.

— Tá terminando, ou já terminou?
Ele fez aquela cara de cão sem dono, e Leon já sabia o
que ouviria: — Tá difícil, não tenho praticamente nenhum
controle nisso. Meus pais me empurraram pra esse
casamento. Os irmãos dela já quase me mataram no meu
trabalho e...

— E isso se tornou a desculpa perfeita pra você não


fazer nada! — explodiu. Não era possível que ele não
tivesse um guarda-costas sequer.
Sérgio se defendeu: — Mas eu fiz! Falei com o
Bulhões. Ele é homem de confiança do meu pai. Vou fazer
um acordo pra proteger a nós dois quando chegar a hora. —
falava, buscando seu rosto.

Leon continuava de braços cruzados, tentando não


desfazer a cara de bravo, mas os beijos dele o amoleciam
pouco a pouco. O segurou pelos pulsos, encarando-o: — Não
brinca com o meu coração, Sérgio. Quero colocar uma bela
coleira nesse teu pescoço de cadelinha de milico, mas tu
tem que facilitar as coisas pra mim!
Ele o encarou de volta: — Você é que tem que parar
de ser frouxo, Leon! Se me quer tanto, porque não me pega,
hum?
— Tu provoca e depois pede arrego... Vem cá. — O
prendeu contra seus bíceps trabalhados, chupando a pele
ao redor do pescoço branquelo dele. As marcas ficariam
roxas logo, o que seria bom pra passar o recado à noiva
bolsominia teimosa.
Ele deu um gemidinho sem vergonha que só o fazia
ficar mais excitado. Foram para o sofá, onde ficaram a
acariciar um ao outro por baixo das camisas. Estava doido
para meter o pau naquela boquinha faladora de bosta, até
se lembrar:

— Droga — resmungou: — O packer tá secando na pia


ainda. — Não era necessário, mas querer usá-lo e não tê-lo
disponível o frustrava. As dores de ser trans e pobre.
—Não precisa. — Sérgio respondeu, se abaixando. —
Só me diz como fazer.

Leon parou, hipnotizado com a visão do rosto dele tão


próximo de sua virilha. Pegou o dedo, passando pela boca
dele e afundando: —Só chupa, assim. Me lambe, beija, tudo,
menos enfiar a língua ou dedo. Me broxa totalmente.

— Tá bom — ele disse, abrindo o botão da bermuda.


Leon o deixou livre para explorar. Sérgio a puxou para fora,
encontrando sua cueca já úmida.

Estava num tesão doido, porém o pensamento de ser


a segunda vez que o submisso o olhava sem o packer e
ainda mais naquele ângulo fez Leon se sentir numa posição
desfavorável. Temia que no momento em que tirasse o
tecido da frente, ele faria a cara de nojo ou de pena que já
tinha visto tantos caras fazerem, mesmo quando se diziam
tranquilos com relação a isso. Mesmo assim, não queria
voltar atrás. Achava que precisava demonstrar
autoconfiança, do contrário dificilmente continuaria se
achando digno de respeito.
Num reflexo, agarrou a almofada atrás da cabeça
quando ele finalmente puxou sua cueca. Quase não via a
expressão de Sérgio, apenas o topo da cabeça de cachinhos
castanho claros se movendo enquanto apartava os pelos
que Leon não raspava, segurando sua coxa e a acariciando.
O rosto afundava escondido embaixo de si e Leon suspirou
ao sentir a língua dele deslizar quente de baixo para cima. A
animação do submisso compensava a falta de experiência.

— Filho da puta, liberal sacana... — murmurou.


Sérgio parou com a língua bem em cima de seu grelo,
os olhos verdes piscando pra ele.

— Pode continuar, servo. É que... cê tá chupando


bem. Treinou com alguém antes?

— Tentei chupando laranjas, mas acho que não tem


nada a ver com isso aqui.

Sorriu: — Vocês bolsominions adoram uma laranja,


né? Chupa bem esse grelo duro, seu puto.
— Não sabia que homens também tinham o grelo
duro. Que bom. — ele dizia, praticamente patinando com a
língua por ele. Seu submisso o tocava de leve, com aquele
olhar de curioso abestalhado, para logo depois beijá-lo e
chupa-lo, com a mesma energia que usara ao ter uma
piroca empurrada em sua cara.

Leon passou as pernas musculosas sobre as costas


dele e o segurou pelos cabelos, gemendo e fazendo com
que aumentasse o ritmo das chupadas e lambidas.

— Essa sua língua é melhor chupando que dizendo


mentiras, seu safado. Chupa o grelo do seu senhor, vai! —
gritava, o que fazia Sérgio ficar ainda mais à vontade para ir
por entre seus grandes e pequenos lábios. A onda de prazer
veio de uma vez só. Gemeu e gozou rápido, a boca do
submisso a recobrir todo seu grelo inchado e pulsante.
Acariciou o couro cabeludo do servo ainda a mamá-lo, como
se achasse que poderia fazê-lo ter mais orgasmos.
— Pode parar! Estou satisfeito.

Sérgio saiu dali e se acotovelou no sofá para beijá-lo.


Se deliciou com o sabor na boca dele, feliz com aquela
iniciativa. Para alguém que tinha de ser amarrado para
experimentar algum prazer, ele estava se revelando um
excelente discípulo. Acariciou seu rosto, totalmente
esquecido de qualquer cobrança a ser feita, noiva e o
escambau. Era tão difícil conseguir uma boa chupada. Não
queria se iludir de novo, mas ele era apenas um rapaz
latino-americano e romântico. Era muito difícil não se
apaixonar naquelas circunstâncias, mesmo sabendo que o
cidadão de bem poderia o estar passando pra trás de novo.
“Não se deixa dominar por baixo: tu que é o senhor aqui,
não o contrário”, repetia para si mesmo.

Deu um tapinha nas costas dele para que se


levantasse e lhe desse espaço. Vestiu a cueca e depois a
bermuda, encarando-o de queixo erguido: — Quando tiver
uma resposta pra me dar sobre o seu noivado a gente volta
a conversar sobre a sua coleira, valeu? — Teve que se
conter muito para dizer isso e não “Que chupada deliciosa,
quero você agora, seu puto! Casa comigo!” Era melhor
assim. Não queria se enganar outra vez com promessas.

Ficaram deitados mais um tempo no sofá. Era


pequeno, mas apesar de ser uns dez centímetros mais alto,
Sérgio não era corpulento, então podiam ficar encaixados
lado a lado. Com a mão sobre o braço dele, o acarinhava
enquanto o submisso descansava a cabeça em seu peito.
De repente, se tocou do que tinha acabado de acontecer: —
Droga, a gente esqueceu da camisinha.
— E eu tenho motivo pra me preocupar com isso?

— Bom, não exatamente. Fiz exames mês passado e


tá tudo bem comigo, mas o meu trabalho me coloca num
grupo de risco pra ISTs. Eu uso luvas e preservativo, mas
sempre existe a chance de furar ou coisa assim. Por isso,
faço exame direto e vou na gineco.

— Deve ser chato pra você, né? Entrar num


consultório cheio de mulher e ficar sendo encarado...
— Nem tanto. A maioria fica achando que sou
acompanhante e se espanta quando sou chamado, mas
evito isso marcando em horários menos movimentados. Já
tive péssimas experiências com gente despreparada, mas a
Carla é maravilhosa. Rezo pra ela demorar a aposentar. —
falou, pensando se não era ele quem deveria se preocupar:
— E você? Já fez algum exame pra IST?
Ele admitiu que não: — Mas eu praticamente não
transei com mais ninguém. Minha última transa foi aos 18,
com uma tal de Karen. Ou era Vania, nem sei mais. Foi
quando meu pai me levou num puteiro pra “virar homem”.

Ficou chocado: — E foi como?


O coach fez uma careta: — Prefiro não comentar.

— As primeiras geralmente são ruins. Ainda mais


desse jeito.
Ele o olhava com aquele sorriso besta: — A nossa foi
boa.

— Foi né? — Acariciava os cabelos dele, parecendo


nunca se cansar disso. Quem visse Sérgio quando apareceu
no clube da primeira vez, agora veria outra pessoa: ele não
passava de um bobalhão carente, fechando os olhos com
seu cafuné. Não queria tratá-lo com tanta condescendência,
mas era difícil não o ver como um inocente mal
encaminhado.
Beijou o topo da cabeça dele, lhe dando um cheiro: —
Por favor, lembra de marcar seus exames, tá. É um cuidado
com a sua saúde.
— E se eu tiver alguma coisa?

— Aí, a gente trata, se protege. Tá bom?

Ele voltou a repousar sobre seu peito, mais calmo.


Virou o rosto, observando os porta-retratos no rack da tv.
Estendeu o braço e alcançou um deles. Era a foto que Leon
tirara no abrigo de animais, ao adotar Laika.

— Faz tempo?
— Foi durante a pandemia. Não dava pra chamar
ninguém pra dormir aqui, a Kama Sutra tava fechada. Devia
me ver pedindo empréstimo no banco e tentando explicar a
finalidade.

— A putaria não pode parar. — ele disse de repente.

Riu: — Até a putaria teve que parar. Ninguém quer


morrer.

Ele pegou outro porta-retrato, apontando: — Que fofa,


quem é?

Inspirou fundo, as lembranças daqueles dias difíceis


passando bem rápido pela mente.

— Minha sobrinha, a Dani. Ela quase morreu de covid.

— Sério?

— É, foi pro CTI e tudo. Escapou por pouco. —


Suspirou.
Sérgio devolveu depressa o porta-retrato. Vendo que o
clima ficara pesado, tentou tranquilizá-lo: — Agora ela tá
forte, até já tomou a vacina. A propósito, quando você
tomou a sua?
— Ah, eu tomei, da Pfizer, assim que saiu... março do
ano passado eu acho.

— Março, é? Engraçado, ela só chegou aqui em Abril.


Precisava de armazenagem em baixas temperaturas, além
de ter sofrido boicote desse governo de merda. Quatro
meses de atraso, lembra não?
Ele engoliu em seco, arregalando os olhos: — Ah, é
mesmo!

— Deve ter se confundido — Franziu a testa: —


Quantas doses você tomou?

— Uma só, é claro. — falava, até ver sua expressão: —


Não era dose única?

Juntou as mãos sobre o rosto, inspirando fundo: — Me


diz que você tomou mesmo essa vacina, Sérgio...

Ele se levantou, gesticulando: — Tomei, Leon! Juro! A


Soraya tá de prova!

— Mostra o comprovante então.


O submisso puxou o cartão de vacinação da carteira e
estendeu a ele.

Leon o examinou com atenção, reparando no local


anotado na parte debaixo do cartão: — Por que tá escrito
“prefeitura de Mesquita” aqui?

Ele passou a mão no rosto, titubeando: — É-é que eu


tava no Rio nesse dia, no Leblon. Tenho um apartamento lá.

Franziu as sobrancelhas, rindo com a cara de pau


dele: — Tu quer mesmo que eu acredite que tu saiu do
Leblon pra ir se vacinar em Mesquita, Sérgio? Estapeou o
encosto do sofá: — Porra, tu acha que eu sou o quê, hein?
— Preconceito da sua parte achar que eu não podia ir
até lá.

— Sérgio...

— Mas não tem comprovação de que eu tomei, nem


de que eu não tomei! — Ele baixou o rosto, provavelmente
envergonhado por ter sido pego. Falou, naquele tonzinho
sacana, de quem ainda tenta se fazer de coitadinho: — Cê
vai me bater, é?

O olhava de lado, controlando a vontade de dar um


safanão nele: — Você bem que merece, mas é capaz de
gostar então o seu castigo vai ser outro!

O submisso arregalou os olhos, parecendo assustado


com aquela reviravolta. Ótimo. A última coisa que queria
era que ele se achasse no controle da situação. Pegou o
celular e fez algumas ligações, primeiro para uma colega
que trabalhava no posto e depois para Soraya: — Cê ainda
tem aquela fantasia? É, essa mesma. Valeu, passo aí daqui
a pouco pra buscar! Tchau!
Ele o encarava, cheio de perguntas. Adorou ver como
ele estava apreensivo com tudo aquilo.

O pegou pelo colarinho da camisa polo: — Amanhã,


quero você aqui bem cedinho, antes das oito. Traz uma
garrafinha d’água, uma cesta básica e tome um café
reforçado, pode ser que tenha fila. E não esquece da
máscara! Pode usar essa no caminho pra casa. — Entregou
uma pff2 nova pra ele.

— Vai me levar pra vacinar? É esse o grande castigo?


— perguntava, quase em zombaria.

— Eu devia era lavar essa sua boca com sabão pra ver
se para de dizer mentiras! Ainda não acredito que teve a
coragem de mentir sobre isso. Sabe o risco que se expôs e
aos outros? Era pra você levar muita, mas muita chicotada
nessa tua bunda de negacionista, mas eu não quero
comprometer a sua integridade física por enquanto.
Amanhã você vai aparecer aqui, bem disposto e nós dois
iremos até o postinho pra consertar isso.

— E pra que a fantasia? É pra mim?

Segurou-o pelo queixo: — Não está em posição de


fazer perguntas, servo. Apenas de me obedecer, caladinho.

— E se eu não quiser aparecer? Não pode me forçar a


nada! Ninguém pode me forçar a tomar essa vaChina!

Lamentava a mistura de ignorância com xenofobia,


mas precisava confrontar uma coisa de cada vez: — É, não
posso te obrigar. Mas também não terei nenhum submisso
antivax, muito menos namorado! A Kama Sutra é só pra
vacinados. A escolha é toda sua, Sérgio.
Como previa, ele rapidamente armou uma birrinha,
andando de um lado para o outro do apartamento, sentando
de costas para ele e encarando a janela como se tivesse
feito algum pedido inaceitável. Era incrível como mesmo
tendo chegado a votar no candidato adversário ele ainda
conservava os resquícios da pesada lavagem cerebral que
sofria e fazia em outros.

— Pode ir, servo. Só volte se for pra me obedecer. —


falou firme, abrindo a porta.
Sérgio o olhava com aquela cara de ressentimento: —
A minha chupada tu não recusou.

— Se eu soubesse, cê nem pisava mais aqui!

Ele balançou a cabeça, com as mãos nos bolsos: — Eu


não tô com pressa...

Leon queria era pegá-lo e sentar tapa atrás de tapa


naquela bunda, mas não ia fazer o gostinho dele. O pegou
pelo braço e o conduziu pra fora, como no dia da entrevista.
Fechou na cara dele, sem dizer mais nada.

Mais tarde, buscou a fantasia. Soraya reclamava: —


Se soubesse que era pra isso, nem emprestava! Cê vai
desinfetar depois!

Sorria, imaginando seu submisso nela. Selecionou os


acessórios que precisaria, desejoso pelo dia seguinte.
###

Quando chegou ao apartamento de Leon, Sérgio o


encontrou com uma seringa na mão enluvada. Levou
tamanho susto que seu rosto ficou mais branco que a carga
de aviões do exército brasileiro.

— Vai ser aqui, na sua casa? Não era no posto?

Ele riu: — Não, isso é hormônio. Tenho que aplicar a


cada três semanas. — E voltou a se posicionar na poltrona,
passando um algodão com álcool na parte superior da coxa
esquerda. Ele deu alguns petelecos na seringa,
posicionando-a reta sobre a perna e penetrando a pele com
a ponta.

Virou o rosto para o lado. Lhe dava gastura só de


olhar.

Leon afundava bem devagar o êmbolo: — Que foi?


Tem medo de injeção?

— Era isso que eu queria te falar — dizia, sem


coragem de encará-lo: — eu morro de medo de agulha.
— E por que não disse?

— Achei só te irritaria mais.

— Ah, Sérgio... Você pensa tão mal assim de mim?


Será que eu sou um carrasco pra você?
— Não. É só que... Tô morrendo de vergonha.
— Medo de injeção é bem comum. Tem gente que até
passa mal só de ver. Não sabia que era o seu caso. Então,
vai fazer o quê?
— Ora, é você quem tá me obrigando a isso! Seu
comunista sem vergonha!

— Mas você tem que tomar a vacina.

— Mas eu não vou aguentar, é capaz de eu desmaiar!

— Vamos, olhe pra mim — ele pediu. Obedeceu,


vendo que ele ainda tinha a seringa espetada na perna.

— Não... — Voltou a tampar os olhos e virar de costas.

Leon suspirou: — Vamos, Sérgio...

— Termina de aplicar essa coisa logo!

— Tenho que empurrar bem devagar, é um óleo


espesso. Tomo com indicação do endócrino, mas é chatinho
mesmo. Cê vai ter que esperar.
Aos poucos, o coach foi se deixando vencer pela
impaciência e voltou a olhá-lo. Sentou no sofá, as mãos
fechadas junto à boca. Era penoso ver a agulha espetada na
coxa musculosa de seu dominador, mas a expressão serena
dele o convencia de que ele estava bem e não sentia tanta
dor como imaginava.

Leon puxou a seringa vazia, sorrindo: — Viu? Acabou.

— Ai, não vou conseguir!


— Vai sim. Calma. — Ele descartou a agulha numa
embalagem própria e colocou um curativo na coxa: — Já viu
sua fantasia? Cê tava tão curioso ontem...

Viu a roupa estendida bem ao seu lado no sofá. Era


um colant verde de duas peças, com uma cabeçona enorme
de jacaré.

— Que porra é essa?

— Tua roupa, ué. Seu presidente não disse que quem


tomasse vacina virava jacaré? Então.

— Ah, mas aí é sacanagem, Leon! Cê tá doido que eu


vou andar na rua com isso.
— Poxa. Tava ansioso pra ter ver nesse colant
apertadinho. Aposto que realça bem seu corpo. — Ele lhe
deu aquela encarada de comer com os olhos.

— Vou experimentar. Só pra ver como fica, né?

Carregou a parte de cima e a de baixo até o banheiro.


Voltou com o rabo da fantasia esbarrando em tudo quanto
era canto. Assim que o viu, o dominador mandou que desse
uma volta. A fantasia o cobria do pescoço aos pés. Ajeitou
os dedos nela, imaginando como conseguiria descobrir o
braço para a enfermeira. O tecido pintado de escamas era
bem coladinho mesmo e acentuava sua virilha. Aquele tinha
tudo pra ser o momento mais vergonhoso de sua vida.

Leon o olhava por todos ângulos, inclusive brincando


com sua cauda: — Que beleza. Agora coloca a cabeça.
— É uma canalhice o que vocês fazem! Pelo menos
tem a máscara pra esconder minha cara.
Ele assobiou depois de pegar algo da mochila: — Aqui.
— Estendeu a argola pendurada nos dedos. Era uma coleira.
Sérgio a pegou nas mãos, sentindo o couro. E tinha uma
guia. Tudo vermelho, obviamente.

— Pra mim? — Tinha pesquisado recentemente sobre


as coleiras no contexto do BDSM e seus olhos lacrimejaram.
Era como receber uma aliança. — Ah, Leon...

— É uma coleira de treinamento. Pra usar em pet play.


Ainda não é uma coleira de compromisso, mas espero que
ela venha logo.

Seu sorriso se desfez depressa. Baixou a cabeça


gigante de jacaré. Felizmente, a máscara escondia sua
decepção.

Leon não disse nada, só abriu o fecho da coleira: —


De joelhos.

Obedeceu e suspirou com as mãos grossas do


dominador sobre si.

— Só eu posso colocar e tirar ela de você. Lembre-se


disso. — Ele a fechou, os dedos ainda em seu pescoço.
Segurou as mãos dele, querendo um afago, mas seu senhor
o repeliu, encaixando a guia e mandando: — Levante-se,
meu servo. Vamos passear.

As caras de espanto conforme andavam pela rua


eram previsíveis. O que não previa era como se sentiria ao
ser conduzido como um pet pelo dominador: ao mesmo
tempo que a máscara de jacaré lhe dava certa privacidade,
ela restringia sua visão, então precisava andar com cuidado
para não tropeçar nas calçadas. Leon o alertava quando
tinha algum degrau ou obstáculo, mas ele pouco fazia de
contato visual, apenas o puxava pela guia. Em retribuição,
Sérgio o puxava de volta, empacando no lugar.

— Vou te transformar em bolsa, tamanho família!

— Dá pra ir mais devagar?

— Jacaré não fala, que eu saiba. — Ele puxava a guia,


até fazê-lo se encurvar, sentindo dor no pescoço por sua
própria resistência. E foi cantando pelo caminho: — “Vou te
bater uma real, vou dizer que sou o tal... Bater um papo no
café, é papo de jacaré...”

Tudo fazia parte da brincadeira, mas Sérgio desejou


ser mesmo um jacaré para abrir a bocarra e dar um belo
susto nele. Outra parte que incomodava era o rabo: ele
balançava de um lado para o outro enquanto andava, sem
controle nenhum. Curiosos que passavam queriam meter a
mão, agarrar. Avançou contra um grupinho de adolescentes,
fazendo Leon ter de contê-lo, puxando a guia: — Para,
Lacoste! Cuidado que ele não vacinou ainda!

Dezenas de crianças e jovens esperavam de pé na fila


do posto, sob o sol temporariamente brando da manhã.
Conforme se achegavam para pegar a senha, a criançada
apontava e Sérgio se divertia sendo o centro das atenções.
Como num carnaval, com a diferença de ser o único
fantasiado e não estar bêbado.

Leon parou com ele numa sombra e abriu a garrafinha


d’água: — Bebe, tá calor.

Teria que tirar a máscara, então recusou, balançando


a cabeça.

— Tem certeza? É um animal aquático, precisa se


hidratar.

“Preciso é tomar vergonha na cara”. Observava com


aflição os mais adiantados tendo a vacina aplicada. A
maioria até olhava a agulha, sem nem tremer. Se virou para
o dominador, que apesar da fantasia, entendeu seu
sentimento pelo seu encolher de ombros.

— Coragem, Sérgio. Vou segurar sua mão e você olha


pro outro lado.

Concordou com a cabeça, sem falar nada.


Chegada sua vez, as enfermeiras receberam a cesta
básica que Leon trouxera no braço como doação e pediram
que Sérgio arregaçasse a manga. Se deu conta que a parte
superior da fantasia era inteiriça, não tinha manga pra
arregaçar. Teria que tirar ela toda pra mostrar o braço. Se
voltou para o dominador em busca de uma solução.

— E quem falou que tem que ser no braço? Pode dar


no rabo mesmo.
As enfermeiras riram. Aparentemente, ele não era o
primeiro a aparecer com uma fantasia assim, e muito
menos a tomar injeção ali.

Protestou, segurando a cauda por reflexo: — Não,


Leon! Tá todo mundo me olhando!

— Difícil não olharem com essa fantasia — Ele o


puxou pela coleira para mais perto da mesa: —Bora,
Lacoste! Olha o tamanho da fila atrás da gente.
Ficaram nesse pequeno embate, até Leon o abraçar
enquanto a enfermeira baixava a parte inferior do colant,
expondo sua nádega.

— É até melhor pra você não ver e se assustar. Pode


deixar que o rapaz tira a foto pra você! — Ele apontou o
auxiliar de limpeza com o celular.
— Você me paga, comunista desgraçado... —
murmurou.

O algodão molhado de álcool roçou sua pele. Suou


frio, entrando em pânico ao ver a seringa cheia passando na
sua frente. Suas pernas bambearam e sua visão escureceu.

— Ele tá passando mal, segura! — alguém falou ao vê-


lo despencando.

Leon retirou sua máscara, deitando-o no colo e lhe


dando tapinhas no rosto: — Sérgio? — O chamava
repetidamente. Ele passou um pouco de água sua testa e a
enfermeira lhe deu um algodão com álcool para cheirar, o
que só lhe causou mais repulsa. Nunca devia ter concordado
com aquilo, tinha sido um erro. Mediram sua pressão e
esticaram suas pernas num banquinho com uma mochila
para ficarem um pouco mais altas em relação ao tronco.

— Calma, Sérgio. Tá tudo bem.

— Já acabou? Já tomei? — perguntava.

— Tu desmaiou. Devia ter te escutado. Acho que cê


precisa de um psicólogo.

— Não, Leon. Depois de tudo isso, eu tenho que


conseguir. Você toma injeções a cada três semanas. Sou
uma vergonha de submisso. — Choramingou, enterrando a
cabeça entre as mãos.

— Ah, vamos. Cê tá indo bem! Chega dessas lágrimas


de crocodilo — dizia, brincalhão.

Teve ainda mais vontade de chorar, mas Leon logo o


pôs de pé de novo.
—Pronto? — Ele segurava sua mão com firmeza.
Inspirou fundo e acenou com a cabeça, tentando se
concentrar apenas no rosto dele enquanto as enfermeiras
faziam o trabalho.

Tão logo a agulha entrou no músculo, Sérgio


arreganhou a mandíbula em dor, os olhos fechados
despejando água igual comporta de hidrelétrica.
— Pronto, já foi... — Leon o abraçou, alisando suas
costas.
— Coloca um gelinho em casa. — aconselhou a
enfermeira enquanto colava um curativo em seu popô e
arrumava a fantasia de volta.
Se afastaram da fila e Leon recostou numa parede,
deixando que chorasse o quanto quisesse em seu ombro.
Ele puxou algo do bolso: — Aqui — Desembrulhou um
pirulito para ele, igual ao que tinha ganho em seu primeiro
dia como submisso. Ele o colocou em sua boca, lhe fazendo
um cafuné.

Chupava o doce, tentando se acalmar. Ainda


abraçados, ele cantarolou: — “Eu não sou besta pra tirar
onda de herói, sou vacinado, eu sou cowboy. Cowboy fora
da lei...” — O balançava um pouquinho, no ritmo.
Um garotinho da fila os olhava e perguntava pra mãe
se ele também ia ganhar um pirulito.

A mãe o sacudiu pelo braço: — Tu vai é ganhar uma


bofeta se não parar de olhar! — Ela os encarava fixamente,
puxando o filho pra longe: — Esquisitões...
— Vamos — Leon o conduziu, puxando o refrão de
“Maluco Beleza”. Colocou de volta a máscara de jacaré, o
olhar de raiva daquela desconhecida o perseguindo. — A
gente não tem muito o que fazer. Tem quem leve na
esportiva, quem fica com medo, raiva. Mas é bom ter
cuidado em público.

Chegando no apartamento, tirou a fantasia. Só andar


já doía, levantar a perna ou agachar então, era pedir pra
morrer. — Que merda, que merda, cara...

— Foi da Pfizer, não era o que tu queria?

— Sim, mas não na bunda, porra! Agora não vou


conseguir fazer mais nada.

— Daqui a pouco passa. Aqui. — Ele lhe deu uma


sacola com gelo enrolada num pano.

— Valeu! — Deitou de cueca no sofá, colocando o


gelo, quando sentiu um ventinho atrás.
— Sai, Laika! — Espantou a cachorra.

Ficou descansando de bruços com a cabeça apoiada


nos braços dobrados enquanto observava seu quase
namorado fazer anotações sobre a pilha de livros na mesa.

— Tão inteligente...

— Nem acho.

— Quantos livros tem aqui? — Apontou o apartamento


todo, onde pilhas sem estante apareciam aqui e ali.
— Deve ter uns quarenta, mais ou menos.

— De arma, meu pai deve ter quase essa quantidade.

— Tem lido algum, recentemente?

— Fora aquele que você me obrigou, não. Ah, o


manual do CAC!

— Seu alimento intelectual está escasso, servo!


Precisa ver isso aí.
Sem ter muito o que fazer enquanto esperava a
bunda parar de doer, Sérgio esticou o braço e puxou um
livro. Era infantil, com uma menina de chapéu na capa. —
“Chapeuzinho Amarelo”...
— Esse é ótimo!

— É de criança.

— É pra qualquer idade.

Folheou, olhando os desenhos. Eram bonitos,


coloridos. Só depois reconheceu o cartunista famoso e o
autor também famoso: — Livro de comunista! —
Sentenciou.

— Bem, eu sou comunista. Mas se não quer ler, é só


devolver.

Não só não devolveu, como foi lendo e se encantando


com a história da garotinha que tinha medo de tudo e mais
um pouco: não brincava no quintal pra não se sujar; não
tomava sopa pra não se ensopar; não tomava banho pra
não descolar; não falava nada pra não engasgar, e assim
por diante. Mas o que ela mais temia, era claro, o lobo. Lia,
apreensivo com a parte em que ele finalmente aparecia.
Laika o lambia no rosto quando chegou ao desfecho: —
Bolo! Isso é genial!
Leon sorriu com a caneta na mão: — Ela superou o
medo, igualzinho você. Se quiser, pode ficar.

— Não faz falta?


— Já aprendi tudo que precisava dele.

Agradeceu e se vestiu. Apenas nesse instante reparou


no celular, com centenas de notificações não lidas. Olharia
com calma depois. Baixou a cabeça: — Posso ir, senhor?

— Sim, meu servo. — respondeu, o puxando para um


beijo de língua: — Agora você pode ir.

Saiu com o livro na mão e o celular na outra.

###
A derrota do mito dividiu o público de seu canal entre
os que acreditavam em teorias conspiratórias e os
conformados, mas todos esperavam por sua opinião. Porém,
isso tinha sido um dia antes, enquanto buscava a camisa de
Leon da lavanderia. Se tivesse olhado naquela hora, não
teria se assustado menos quando viu a foto compartilhada
por todas as redes sociais.

Deitado de bruços na cama, encarava a manchete de


um jornal popular, sem reação. Eram ele e Leon, se beijando
na comemoração da vitória do Lula. Abaixo, se lia: “O amor
venceu”.
Levou a mão à cabeça: Que tá acontecendo, porra?
Logo abaixo, seus fãs discutiam:

“É só um cara parecido. O Serjão NUNCA faria


isso!”
“Sei não, ele tava vestido de petista naquele
dia...”
“É só pra gerar view, gente. Deixa esse
palhaço pra lá e concentra no Mito”
Inspirou fundo, ameaçando digitar. Que era tudo
verdade. Que tinha mesmo beijado um petista. Seria tão
bom, acabar com aquela canalhice de uma vez. Abaixo,
mensagens homofóbicas se concentravam, cada vez mais
ameaçadoras. Nunca se sentira tão acuado quanto ao ler
aquelas palavras vindas de gente que nem conhecia. Deus,
o que iam fazer agora?

Saltos altos e barulhentos se anunciaram no corredor


até o quarto. Se levantou, se deparando com uma figura
diferente da que deixara seu quintal no dia anterior: — C-
Camila?
Mal pensara na ainda noiva, muito menos no fim que
levara a manifestação dos amigos pedindo intervenção
militar. Se lembrou de relance das imagens na televisão
mostrando a correria dos gatos pingados de verde e
amarelo.

O salto dela não estava realmente inteiro, só colado.


As roupas rasgadas, e o rosto sujo e avermelhado por gás
de pimenta, imaginava. Ela trazia o jornal estendido entre
as mãos de unhas verde e amarelas compridas. Seus
cabelos geralmente bem cuidados no salão estavam
arrepiados e com as pontas queimadas, como se ela tivesse
passado por um território de guerra: — QUE-PORRA- É-
ESSA?
Se levantou, fazendo o travesseiro de escudo: — Já
voltou de Brasília?

— Eu voltei sim, pra ver isso! — Ela jogou o jornal


nele. Depois, foram os sapatos de alta costura. Ergueu as
mãos para se defender, o salto batendo nelas e quase
cortando.

— Para, Camila! Deixa eu...


Ela veio pra cima, as garras mirando seus olhos
enquanto seus gritos agudos machucavam seus ouvidos: —
Sabia que tu tava me traindo, mas com um homem,
Sérgio?! UM HOMEM??!!
— Para de me sacudir! Tomei vacina, poxa.
Ela arregalou mais os olhos: — Vacina???

— Eu quis dizer faxina. Fiz faxina hoje, tô moído.

Camila balançava a cabeça, resmungando baixinho,


incrédula: — Tomando vacina, beijando petista... Não, esse
não é você... Fizeram uma montagem, muito da mal feita
por sinal! — Os olhos claros dela o encaravam, buscando a
comprovação de suas teorias absurdas.

Sérgio inspirou fundo. Estava aí, a chance. Se queria


ter um futuro com Leon precisava encerrar aquela história.
Tirou o travesseiro da frente e se levantou com o jornal: —
Não, Camila! Sou eu sim, na noite em que o mito perdeu!
Sou eu nessa foto.
Ela levou as mãos à boca. Dava voltas em torno de si
mesma no quarto, berrando até a voz ficar mais e mais
rouca, como se finalmente se desse conta da própria
aparência e de seus ferimentos.
Sentia pena dela: — Não, não faz assim...

Ela o esmurrava no peito: — NÃO, NÃO! Você é


hétero!
— Eu pensava que era, mas não sou! Camila, me
desculpe...

Sua afirmação só a fez reagir com mais intensidade,


como se de repente a mocinha de 25 anos fosse uma
retroescavadeira avançando sem parar: — Tu tava me
traindo enquanto eu levava fumo pelo nosso Mito, SEU
DESGRAÇADO! — Ela veio batendo nele até fazê-lo cair na
cama.

Recuou, amedrontado. Ela arfava, voltando às


conjecturas malucas: — Foi o golpe no Mito, bagunçou sua
cabeça! Fica calmo, nós vamos buscar ajuda! Conheço
psicólogas muito boas que podem...

— Não, presta atenção — As palavras saíam


atropeladas, mas ela teria que entender de uma vez: — e-
eu, eu amo esse homem. E, se ele quiser, vou me casar com
ele.

Num primeiro momento ela permaneceu estática.


Depois, a face se contraiu numa careta enojada: — Cê tá
maluco! Seu pervertido, seu nojento, seu... VIADO!
— Sou — disse, sem recuar apesar de todo medo que
ainda sentia: — Sou viado mesmo!

Ela pegou o celular da bolsinha pendurada no ombro:


— Eu vou ligar pros seus pais, você não tá batendo bem!
Quando o Mito retomar o poder, você vai voltar a si.

Agarrou-a pelos braços, sacudindo como ela lhe fizera


tantas vezes: — Camila, ele perdeu! Perdeu, acabou! O
nosso noivado também, já faz tempo!
Ela fechava os olhos, chorando convulsivamente: —
Não é verdade!

— Cê quer a verdade, aqui vai: eu não te amo. Me


desculpa. Eu gosto desse homem, ele me fez experimentar
coisas que eu nunca tinha feito antes, me ensinou a viver
de um jeito que eu não achava ser possível! Eu adoro
transar com ele e adoro quando ele me bate, me cospe e
me chicoteia, e tu nunca vai saber o que é isso, porque tu é
uma patricinha mimada que só pensa em si mesma e nunca
quis saber dos meus desejos! E agora eu vejo que nem
mesmo se tu fosse uma dominadora fodona eu ia dar pra
você PORQUE TU É CHATA PRA CARALHO, MEU!
Ela piscava, provavelmente confusa com o que tinha
escutado.

— Como eu fui gostar de você? Como deixei um


doente igual você me beijar? Quem sabe onde você colocou
a boca, se você tem AIDS...
— HIV não passa através de beijo, até eu sei disso.
— Fica longe de mim! — Ela apertou a bolsa contra si,
correndo e derramando um rastro de lágrimas no caminho.

É isso, pensou. O fim. Ela finalmente o deixaria em


paz agora. Ou talvez...

— Camila, espera! — Tentou alcançá-la. Se os Gentile


quisessem vingá-la, nem uma cartinha do Temer o salvaria.

Tropeçou na escada. Apertava o dedão do pé, vendo a


ex-noiva sumir no carro. Era o fim daquela farsa. E talvez o
dele também.

Trancou as portas e janelas. As câmeras de segurança


estavam todas ligadas. Fez uma barricada, empurrando o
pato inflável gigante junto com uma caixa cheia de cornetas
verde-amarelas que comprara pra Copa.

Ligou pro porteiro: — Não deixa ninguém entrar! Se te


oferecerem dinheiro, eu pago o dobro pra tu dizer que eu
sai, tá ok?

Subiu e destrancou a gaveta. Suas mãos tremiam ao


pegar o revólver e carregá-lo. O deixou em cima da cômoda
e guardou o resto da munição com o plug no fundo da
gaveta. O metal dele refletia sua face amedrontada.
Tinha tanto medo de quê? De morrer? De já ter sido
morto? Leon tinha razão: um Sérgio tinha morrido e outro
nascido, só não tinha se dado conta.

Pegou o celular, respondendo a postagem sem enviar.


Queria tanto dar uma banana pra todo mundo. Poderia
comprar duas passagens pro Caribe. Leon com certeza
adoraria passar por Cuba, apesar dele próprio preferir
Miami.
E quando retornassem? Teria uma dupla de milicianos
esperando por eles. Deitou na cama, sem ligar se o local da
vacina formigava e doía. Segurava o revólver deitado sobre
sua própria barriga. O celular vibrava do lado.

Era Leon. Atendeu depressa. Pelo tom dele, já sabia o


que era.
— Você já viu então?

— Já. E a Camila também.

— E aí?

— A gente terminou.

— Quer que eu vá aí?

— Melhor não. É perigoso.


— Mas você tá bem? Sérgio?

— Tô, tô sim. Agora eu tô.

— Eu te amo.
— Também te amo.

— Eu vou pra aí.

— Não, não! Ela saiu virada daqui, e ela sabe atirar.

— Mas não posso te deixar aí sozinho!

— Tá tudo bem, eu tô armado.


— Mais um motivo pra me preocupar.

— Não, Leon! Não venha! Alguém pode te fazer uma


maldade.

— Mas...

— Acho que ela ficou com nojo de mim. Ela é


orgulhosa, vai fingir que me deu o fora e deixar por isso
mesmo. Provavelmente já nem me vê como homem mais,
acho que não preciso me preocupar.

— Sei não... — Ele com certeza devia estar lembrando


do episódio da moto.
— Confia em mim. Eu tô bem. Vamos deixar a poeira
baixar.

— Significa que eu posso ir escolhendo sua coleira?

Fechou os olhos, respondendo com satisfação: —


Pode.

— E quando a gente volta a se ver?

Olhou para o jornal largado no chão. Não fazia a


menor ideia de quando a poeira baixaria. Talvez nunca. Por
que assim que beijou um petista, não tinha volta. Para as
pessoas do outro lado da tela, além de gay, era tão
comunista quanto quem o beijava. Para elas, era tão traidor
quanto outro Sérgio mais famoso. Não tinha mais volta.
— Amanhã a gente vê como fica. — respondeu,
desligando.
Pegou o celular e enviou sua resposta. Depois foi para
a janela do quarto, com o 38. A faixa com a imagem do mito
continuava caída no jardim da frente, naquela pose clássica
fazendo arminha com as mãos.
Baixou o revólver, sorrindo: —Tchau, querido! —
Descarregou, gargalhando.

Exceto pelo alvo inusitado para a vizinhança, tudo


continuou como uma terça normal.
Capítulo 09 - Golden shower
 
Passar um tempo offline tinha boa serventia, Sérgio
concluiu. Pela primeira vez se dava conta de algumas
coisas, dentre elas que seus pais não estavam tão
preocupados assim com sua orientação sexual como
imaginava. Na verdade, eles sequer ligaram para perguntar
o que estava acontecendo com ele, mas sim por que tinha
terminado com Camila.

“A festa já está marcada, o salão já está reservado, as


viagens compradas”, e assim ia a cantilena. Ele não querer
se casar era como uma nota de rodapé. Sua mãe berrava ao
telefone: — Tá maluco, idiota? Quer que te passem o ferro?
— Não vou casar com aquela pirralha! Não vou
continuar vivendo como vocês querem!

—Tu vai se matar assim, otário! Agora cala a boca e


escuta...

— Não, escuta você! Vocês nunca nem se importaram


comigo! Sou uma moeda de troca, um capital político pra
vocês usarem! Vocês nunca nem quiseram saber como eu
estava a minha vida toda!

A voz dela se tornou mais estridente: — Depois de


tudo que eu fiz por você, seu ingrato! Que Deus tenha pena
da sua alma! Como você fala assim com a sua própria mãe,
Sérgio?!
— Você não é minha mãe, nunca foi! Quem realmente
se importava comigo vocês demitiram anos atrás! Nem o
FGTS dela devem ter pago! — desabafou, finalmente
encontrando forças pra dizer o que ficara retido tanto
tempo.

O tom dela caiu para o deboche: — Ah, é tudo por


causa disso? Por causa de uma birrinha de criança? Você
não acha que já está muito grandinho pra chorar por causa
de uma empregada? Uma mulher que nem sequer deve
lembrar que você existe.

Engoliu em seco, aquelas palavras o levando de volta


à época em que tudo o que podia fazer era ficar sozinho no
playground, pensando por que Sônia o tinha deixado. Por
muito tempo tentara isolar a imagem do menino gordinho e
triste e construir outra, de alguém realizado e
autoconfiante, que não precisava de ninguém. Leon lhe
mostrara como aquilo era pura fachada e no fundo
continuava sendo o mesmo menino carente de amor. Não só
isso, mas lhe mostrara que ele podia sim, ser bom. Podia
amar e ser amado de volta.

— Ela pode até não lembrar de mim, mas eu me


lembro dela. Ela cantava pra eu dormir. Ela me ajudava com
o dever de casa, ela me dava banho e fazia a comida que
eu gostava. Eu sempre vou me lembrar dela, SUA BRUXA
DESGRAÇADA! Tu só me pariu, mas quem me criava era ela
e a porcaria que eu sou hoje em dia devo a vocês dois que
me tiraram o que eu tinha de mais importante e jogaram
fora igual um lixo! Se os Gentile me matarem a culpa é toda
de vocês! — disse, tomado pela raiva ignorada há anos.
Ela desligou, deixando Sérgio sozinho novamente,
com o rosto molhado. Abriu o livro que Leon lhe dera por
último, encarando a figura enorme do lobo de focinho
aberto diante da Chapeuzinho. Olhou as mensagens
acumuladas em suas redes sociais, todas o xingando. Se
lembrava de como costumava falar igual e era horrível ver
isso se voltando contra si. Se não eram bolsominions o
xingando, eram os petistas e LGBTs rindo e apontando sua
hipocrisia.

Estava tão sozinho.


Como gostaria que Sônia estivesse ali com ele agora,
pensava. Um calafrio o assaltou ao pensar que ela poderia
nem estar mais viva àquela altura, principalmente depois
daquela pandemia... Não sabia nada dela além do nome e
sobrenome e que trabalhara com eles em Brasília até o ano
2000.

Fez algumas pesquisas no Facebook, usando uma


conta falsa. Muitas Sônias da Silva Lima, umas dez páginas
de mulheres das mais diferentes. Apesar do tempo que
passara, conseguia se lembrar da fisionomia dela: era uma
mulher baixa, na época devia ter uns quarenta anos, negra
retinta com o cabelo sempre preso na touca do uniforme,
mas quando era hora de dormir, ela às vezes acabava tendo
que sair de seu quarto pra fazer um mingau pra ele, ou um
remédio caseiro para dor de barriga. Nessas ocasiões, via
seu cabelo solto, era bastante armado e crespo. Sua mãe
berrava tanto com ela, nunca entendia o porquê.

Lembrar disso o deixava com raiva e se sentindo um


merda por ser causador de tanta aporrinhação à coitada.
Mas o que ele poderia fazer com seis, sete, oito anos? Os
olhos dela eram de que cor mesmo? Castanho claros ou
escuros? Pensou em todas as vezes em que pedia o bolinho
de feijão com salsicha e ela brincava: “Vai ficar laranja de
tanto comer salsicha, Serginho!”, era sempre assim que o
chamava, mesmo quando já estava com quase dez anos.

Se lembrava do episódio, quando sua mãe bebia o


uísque noturno: Sônia não estava. Ela geralmente dormia
num quartinho do apartamento, mas naquele dia tinha ido
pra casa e ele não sabia o motivo: — Quero ir na casa dela!

— Não, você não vai na casa daquela... — o nome que


sua mãe a chamara parecia ter sumido de sua cabeça,
tamanho seu choque ao ver alguém que amava tanto ser
chamada assim. — Ela não é nada sua, Sérgio! Eu sou sua
mãe!
— Ela é sim! Mais mãe do que VOCÊ! — gritou de
volta, e se enfiou no quartinho de Sônia pra dormir
enquanto sua progenitora tombava o copo e caía no chão,
chorando.
Quando soube que ela não ia mais voltar, ficou dias
sem falar com os pais. Eles retrucavam ante seu silêncio na
mesa, sendo servidos pela nova empregada: — Seu bobo!
Chorando enquanto ela já nem lembra mais de você!
Com o tempo, teve de parar. Afinal, se ela nunca mais
voltara, era porque não ligava mesmo, pensava. Agora,
procurando por todos aqueles perfis aquela dúvida
retornava: E se ela realmente não se lembrasse mais dele?
Era perfeitamente possível que ela preferisse nem lembrar,
pelo modo como a tratavam. Topou com um rosto que
lembrava o dela, apesar da passagem dos anos: os cabelos
pretos estavam grisalhos e ela sorria para a foto, com
agulha e linha de crochê nas mãos. Poderia ser ela?

Era um perfil para vender peças artesanais e roupas,


ela era costureira. Sônia da Silva Lima. Conferiu o horário:
com as janelas e cortinas fechadas já não tinha mais noção
se era dia ou noite. Já eram três da manhã. Passou a mão na
testa. Que tipo de maluco entraria no perfil de uma
senhorinha pra perguntar coisas pessoais num horário como
aquele? Seria melhor esperar, pensava, até se deparar com
uma postagem mais recente dela: era um pedido de ajuda.
Leu, aflito:

VAQUINHA DA DONA SÔNIA


“A pandemia levou, além dos meus clientes, o
meu filho e minha nora e me deixou dois netos pra
cuidar. Minha máquina antiga quebrou e tive que
comprar uma nova, mas não tá dando pra pagar
ela. Minha geladeira tá mais vazia a cada fim de
mês e o trabalho infelizmente não tenho tido.
Qualquer ajuda é bem-vinda, com a fé e a força do
Senhor, ei quitar essa dívida e pagar o aluguel! Não
gosto de ter que pedir, mas não tenho escolha. Por
favor, me ajudem!”
Milhares de pedidos como esse chegavam em sua
caixa de comentários diariamente, mas Sérgio apenas
ignorava. Agora, não conseguia conter o choro nem mesmo
pra tentar digitar o valor do Pix. Doou dois mil reais pra ela
e mandou a mensagem: “A senhora fica com Deus”.

Ficou remoendo aquele texto, pensando em como


poderia falar com aquela senhora depois de tudo. Como ia
ter a cara de falar com ela depois do que tinha acontecido?
Não sabia o que poderia ser pior, a lembrança dos anos de
trabalho infelizes que ela deveria ter tido com seus pais ou
sua imagem agora de ex-bolsominion procurando pela
antiga empregada como se ela lhe devesse algum afeto.
Jogou o celular na cômoda e deitou no chão, se enroscando
como costumava fazer quando criança.

Acordou com a campainha. Olhou a câmera de vídeo


pela central da tv no quarto e quase teve um mal súbito:
era o porra louca do Leon!

Desceu depressa as escadas, se atirando na porta.


Arrastou os móveis da barricada, abrindo-a e o puxou pra
dentro: — Seu doido, o que tá fazendo aqui?

— Um cidadão do bem não pode mais ver seu


namorado de madrugada?

— Ai, Leon! Mandei o porteiro não deixar ninguém


entrar, como foi que...
— Ah, não era o Juvenal que tava, era o Paulinho. Ele
deve ter se esquecido de passar seu recado. — Leon se
voltou para ele, arregalando os olhos: — Que te fizeram?

Ele apontava as marcas de unha em seu braço.

— Isso não é nada. O pior é o que eu fiz! — Mostrou a


pesquisa no celular.

— Olha só, então você a achou! É ela?

— Tenho quase certeza, mas não tenho coragem de


falar com ela. Minha mãe tá certa, ela nunca vai lembrar de
mim. Eu era só o pirralho que ela tinha que cuidar enquanto
negligenciava os próprios filhos. Sou um desgraçado, Leon!
— Bom, admitir é o primeiro passo. Mas por que tem
tanta certeza? Se você chegou a chamar ela de mãe, isso
com certeza deve tê-la marcado de alguma forma.

— Você acha?
— Claro. Mas e aí, o que você gostaria de dizer a ela?

— Eu perguntaria se ela é mesmo a Sônia que


trabalhou na casa do senador Ronaldo Frazier nos anos 90 e
se ela se lembra... Leon, QUE CÊ TÁ FAZENDO? — Tentou
pegar o celular de volta, mas era tarde:

— Enviado!
— Seu desgraçado!

— Meu Deus, Sérgio. Qual a pior coisa que pode


acontecer?
— Ela me odiar.

— E porque ela te odiaria?

Encarava a tela desligada do notebook: — Quando o


mito disse que a economia não podia parar, eu apoiei ele.
Tem uns trezentos vídeos meus defendendo cada fala dele,
cada brincadeira. E ela perdeu o filho por culpa dessa
doença! Por culpa minha, Leon!
— É, isso é complicado. Mas você não pensa mais
assim, né?

— E isso muda alguma coisa? O filho e a nora dela não


vão voltar. A sua sobrinha quase morreu. Se você nunca
mais quisesse falar comigo eu ia entender. Acho que minha
mãe tem razão. Eu mereço ir direto pro inferno.
— Ô, Sérgio. Você não tem pena do capeta, não? Um
monte de babaca que ele vai ter que aturar pelos próximos
milênios e você ainda quer engrossar a fileira dele?

— Você tem um jeito estranho de consolar as pessoas.


— Às vezes eu quero te bater, mas nesse caso acho
que você só precisa de um empurrãozinho. Cê fez uma coisa
muito boa, mano. Cê doou um dinheiro pra ela se ajeitar.

— Mas não foi nada, dois mil reais.

— Pra quem nunca teve que ralar, é um troquinho


mesmo. Mas se ela for a sua babá, você não vai querer falar
com ela? Visitar ela?
— Vou parecer um esquisito.
— E qual o problema? Você me achava bem esquisito
e tem vídeo seu provando. Agora, você me ama. Até votou
no Lula por mim!

— Tem que ficar lembrando disso toda hora?

Ele apontou o celular em sua mão: — Ué, ela tá


respondendo?

“Abençoado seja, @mito1717! Que


Deus te dê em dobro!
Trabalhei sim pro senador Ronaldo
Frazier. Foi uma época bem ruim, não gosto
de lembrar! Me demitiram sem justa causa
e nenhum abono, empregada não tinha
direito a nada nessa época! Por que a
pergunta?”
Leon suspirou e Sérgio sentiu um bolo enorme em sua
garganta ao ler aquela resposta. Tremeu e suou frio.

— Você era só uma criança, ela vai entender.


— Não, Leon! Eu sou o culpado. Se eu não tivesse
brigado com a minha mãe, nada disso teria acontecido.

— Você queria ter alguém que cuidasse você, que


gostasse de você. Cê não teve culpa.
— E agora? Não tem motivo pra ela gostar de mim, eu
sou um bostinha que fez ela ser demitida. É só o que eu
sou.
— Olha, ela voltou a digitar! — A mensagem apareceu
diante deles.
“A única lembrança boa que eu tenho
de trabalhar pros Frazier era o menininho
deles. Tinha umas bochechas grandes, boas
de apertar e vivia brincando e me pedindo
pra fazer bolinho de feijão. Nossa, ele comia
tanto que ficava até com dor de barriga. Era
Serginho o nome dele.”
— Ela lembrou, cara! Ela lembra de você! — Leon lhe
dava tapinhas no ombro, comemorando.
Sérgio mal piscava, lágrimas saindo de seus olhos
conforme lia:

“Até me chamava de mãe, o


coitadinho. Me deu uma dó danada de ir
embora e deixar aquele pinguinho de gente,
mas me demitiram e meu filho tava doente
precisando de mim no hospital. É a vida! Às
vezes eu lembro dele e fico pensando como
ele tá agora, se faz o que da vida.”
Ler aquelas palavras lhe devolveu a coragem. Apertou
o botão da chamada de vídeo. A imagem dela demorou a
aparecer, borrada pela conexão ruim, mas assim que a viu e
ouviu, não teve dúvidas.

No cômodo escuro com a luz do celular e de velas, ela


levou as mãos ao peito, exclamando: — Serginho?!
— Eu tô aqui, mãe! — falou com os olhos marejados
em frente à câmera.
Ela exclamou, com as mãos na boca: — Eu tava
orando com fé mesmo, pensando “amanhã não tenho o que
dar pras crianças no almoço”. Elas comem na escola, mas o
dia que não tem aula... Aí eu vi sua doação e achei que tava
enxergando mal, que tava ficando doida, mas não! — Ela
sorria e chorava de emoção: — Obrigada, meu filho!

Ouvir aquilo o fez limpar suas próprias lágrimas e


sorrir também: — Eu tô tão feliz de ter te reencontrado!
Pensei que não desse mais!

— Ah, Serginho! Você tá tão crescido, meu Deus! Nem


dá pra reconhecer, você era fortinho, né? Agora tá igual
aqueles artistas da televisão! — Enrubesceu com a
presença de Leon do seu lado.

— E quem é esse outro galã aí?


— É o Leon, é um amigo! — respondeu, virando o
celular pra mostrá-lo. Não sabia como Sônia poderia reagir,
achava que deveria ir devagar com as apresentações: — Eu
vi o seu pedido de ajuda e fiquei preocupado!

— É, como eu disse, a vida não tá fácil. Mas devagar,


a gente vai indo.
Pegou um bloco de anotações: — Onde estão
morando? Eu vou aí te visitar!

— Eu saí de Brasília há muito tempo, logo depois que


o Cleiton sarou. Aí a gente foi pra Araraquara e depois veio
aqui pra Atibaia. Morei em Caetetuba até ter a enchente,
levou tudo. Assim que consegui um dinheirinho, tavam
construindo umas casinhas populares, me cadastrei no
programa e me mudei. — Ela indicou a rua e pontos de
referência. Sérgio tentava anotar, mas a euforia o
atrapalhava tanto que Leon teve de ajudá-lo com isso.
— Amanhecendo eu pego um ônibus e vou aí ver a
senhora!

— Calma, Serginho! Não tem pressa eu não vou sair


daqui não! Dorme bem, descansa. São quase quatro horas
da manhã, eu nem dormi meu Deus! Meus netos vão pra
escola cedo, mas daqui a pouco eu vou na padaria comprar
as coisinhas pro café da manhã, eles vão ficar tão felizes!
Olha como você já me ajudou!
— Eu te amo, mãe.

— Dorme com Deus meu filho. Nem era pra eu ser


chamada assim. Você ainda tem mãe, não tem, Sérgio?
— Eu tenho sim, mas ela não se importa comigo.
Quase morri e ela só piorou tudo.

— Ah, meu Deus... se acalma, a gente tem muito o


que conversar. Só não guarda mágoa da sua mãe, não. Ela
ainda é sua mãe. A Bíblia fala que tem que honrar pai e
mãe.
— Mas a senhora é que é minha mãe!

— Tá bom meu filho. Vai em paz, pode vir amanhã


com seu amigo que eu tô esperando vocês! — Ela se
despediu beijando a mão e passando os dedos na tela,
como se pudesse transferir seu carinho através ela. Sérgio a
tocou em resposta, sem conseguir conter o choro de novo.
Sentou, o celular na mão.

— Conseguiu. — Seu namorado disse.

— É.

— Parece que a gente vai pra Atibaia no fim das


contas.

Olhou pra ele, percebendo que a mãe o incluíra no


convite. Não retrucou porque não se sentia em condições de
fazer aquela viagem sozinho.

— E a Laika?

— Tudo bem, deixo ela com a Dona Neusa, elas tão


acostumadas uma com a outra.

— Tá, mas antes tenho que ir ao supermercado. Será


que dá pra embarcar com comida no ônibus?

— Ah, depende. Tem que caber numa caixa ou sacola.


Ou várias. Vai levar cestas básicas pra ela?
— Se eu pudesse, mandava um caminhão logo!

Ficara tão animado com aquele reencontro que nem


pensava mais nos Gentile, nem em como Camila reagiria a
tudo. Precisava saber com Bulhões como estava o cenário.

Raiando o dia, telefonou para ele, que avisou: — Os


irmãos viajaram pro exterior, a negócios. Só voltam no ano
que vem.

Suspirou, em alívio. Podiam fazer a visita sem susto e


depois aproveitar a vida. Talvez Cuba fosse um bom refúgio.
Nunca ouvira falar de milicianos por lá, pelo menos.

Foram juntos ao supermercado e Leon o ajudou com


uma lista dos produtos mais vitais: — Talvez ela já tenha
comprado com a doação, então não pense em quantidade,
mas em durabilidade. O básico você sabe: feijão, arroz,
açúcar, farinha, macarrão. Coisas que estragam a gente
deixa pra comprar lá. Aqui, pega umas bolachas pras
crianças e uns doces também.

Olhou as caixas, que pareciam ser de leite,


empilhadas e bem mais baratas. Só ao ler que entendeu o
porquê: — Soro de leite? Que porcaria é essa?

— Bem-vindo ao mundo pós mito! É isso o que as


pessoas estão dando pros filhos com essas políticas
econômicas desastrosas. — Leon o ajudou a pegar um fardo
de leite integral. Continuava olhando as prateleiras tão
cheias de variedade de marcas e ao mesmo tempo tão
vazias de critério:
— Mistura semelhante a queijo ralado, ossos bovinos,
pés de galinha... Meu Deus, o Brasil virou uma Venezuela?
Como isso aconteceu?

— Injusta sua comparação. Lá eles sofrem embargos


dos Estados Unidos enquanto aqui o embargo é do próprio
governo mesmo que quer que o pobre morra de fome
enquanto o agro faz a festa no exterior. Bora, recolhe o
queixo e vai lá pagar essa sacanagem federal!

Pagou sem nem olhar o valor. Embarcaram no ônibus


com caixas de óleo e mantimentos, quase extrapolando o
limite permitido. Sentou ao lado da janela, e Leon ficou no
corredor. Observava paranoico a rodoviária, imaginando que
Gian e Giovani apareciam e miravam neles da calçada, mas
nada disso aconteceu.

O motorista deu a partida e lá se foram, rumo ao lugar


onde seus espectros políticos se cruzavam por bizarras
coincidências do destino. Leon lhe deu a mão e Sérgio sorriu
nervoso pra ele. A viagem foi longa, cerca de quatro horas.
Entardecia quando avistaram a placa na entrada da cidade.

Sérgio se inclinou na poltrona: — Será que dá pra ver


o sítio do Lula daqui?

—Não, mas tô vendo a casa do Queiroz...


— É? Onde?

— Aqui, ó — Ele deu um tapinha em sua cabeça,


fazendo sua testa bater no vidro. Revidou, o que fez Leon
segurar seu braço, murmurando:

— Olha o respeito com o seu senhor!

— Ah, tá, que medo! Vai fazer o que, me bater aqui


dentro?
— Espera a gente descer pra você ver... — ele falava
num tom de brincadeira. Não podia negar, estava sentindo
falta disso.
Desceram e pegaram um táxi. O motorista fez uma
careta ao ver o tanto de bagagem, mas Sérgio pagou um a
mais pro combustível. Do jeito que ia, em breve acabaria
falido, pensou consigo mesmo enquanto Leon puxava
conversa com o taxista.

O bairro em que Sônia morava era bem pobre, com


lotes de casas populares que mostravam sinais do domínio
de milícias. As ruas quase não tinham pavimentação e a
suspensão do carro sofria com os buracos cheios de lama
empoçada. Já estavam quase em dezembro, Sergio se
abanava com o vidro aberto. Vir todo paramentado com sua
melhor camisa social e terno não tinha sido uma boa ideia.

— Eu avisei...

— Cala a boca — Queria causar a melhor impressão e


não ia ser vestido igual um adolescente que isso
aconteceria.
— Aposto cem que ela vai achar que você é pastor.

Suspirou. Como tinha se apaixonado por alguém chato


assim? Questionava, até enxergarem o primeiro ponto de
referência do endereço: — Ali, o mercadinho!

O taxista ajudou a descarregar. Mesmo fazendo


crossfit, sentiu dificuldade de seguir com as caixas pelas
vielas enlameadas. Pararam no portãozinho de madeira com
a placa “Sônia costureira” e o telefone.
Junto com as compras, trouxera um perfume francês e
uma joia para ela. Também escrevera um cartãozinho.
Segurava os presentes, pensando se a agradaria. Tinha
tanta coisa que nem sabia sobre ela, mas se lembrava que
ela gostava de perfumes, pois sempre tinha na penteadeira
uma colônia da Avon, daquelas de vidro antigas.

Se espantou com Leon batendo palmas: — Ó de casa!

— Comunista intrometido, era pra eu ter feito isso! —


Mandava-o parar, até ouvir:
— Serginho!

Ela abriu o portão que nem estava fechado realmente


e foi logo lhe dando um abraço de quebrar as costelas: — Ô,
meu amorzinho, deixa eu te dar um cheiro! — Fungou seu
cabelo, lhe dando um beijinho de cada lado do rosto.

Sérgio não lembrava de ter tido tanto contato físico


em sua vida adulta desde Leon. A abraçou de volta com a
sacola de perfume na mão, chorando.

— A senhora me perdoa?
— Meu filho, mas você não fez nada!

— Ah, mãe... eu nem sei se eu posso mesmo chamar


a senhora de mãe, eu... — Passava a mão no rosto molhado,
sem jeito.
— Você eu deixo. Pobrezinho, vindo de tão longe só
pra vir aqui ver essa velha!

— A senhora nem tá velha...


— Já começou bem, continue assim! — Ela riu, abrindo
os lábios e levando as mãos ao rosto, espantada: — É pra
mim? Que coisa mais linda! Não conheço essa marca, mas o
cheiro é bom. Esse é do bom! — Ela experimentou ali
mesmo, aplicando um pouco no pescoço. Então,
cumprimentou Leon com um abraço: — E esse moço
galante, não me diga que vocês são namorados?

Sérgio quase deixou cair o fardo de leite.

Leon o segurou depressa: — A senhora é rápida no


gatilho, hein?
Ela ergueu as sobrancelhas: — Quando eu vi vocês
dois, tão juntinhos... pensei “nesse mato tem coelho”. Num
fica assim, Serginho! Aqui tá cheio, ó! Vocês são um casal
bonito.

Sua boca entreaberta se fechou e fez uma curvinha


para o lado enquanto sua mente fugia pra longe. O
dominador não perdeu a oportunidade: — Ih, acho que o
Bozo comeu a língua dele.
— Falando em comer, tô com tanta saudade daqueles
bolinhos de feijão com salsicha que só a senhora sabe fazer!
— disse, pra acabar com aquele constrangimento.

— Ah, não precisa pedir não! Já preparei, olha aqui! —


Ela foi na cozinha e voltou com uma bacia enorme, daquelas
de lavar roupa, cheia de bolinhos enrolados.

Arregalou os olhos: — Tudo isso, mãe?


— Hum, e você acha muito é! Eu lembro, você tinha
um apetite que só! Nada satisfazia.
— Imagino... — alfinetou, Leon.

— Hoje em dia eu sou fitness, mãe! Sigo uma dieta


balanceada. Mas aceito um bolinho. — falava, estendendo a
mão para pegar um quando ela afastou a bacia, rindo:

—Tá congelado, meu filho! Ainda não fritei! — Parecia


tão feliz. Sérgio ria também, contente em estar ali e ver
como ela se importava.

Colocaram as caixas no chão da cozinha, a senhorinha


o tempo todo repetindo que não precisavam ter se
incomodado com aquilo. Porém, era visível que a
preocupação tinha fundamento: fora os pouquíssimos
eletrodomésticos, quase nada havia na mesa e prateleiras,
nem na geladeira e armários.

O pouco que tinha de comida parecia ter sido


comprado naquele dia mesmo, pois ainda estava em
sacolinhas de plástico, na mesa.

— Foi uma correria! Pedi ajuda à vizinha que sabe


essas coisas de aplicativo. Dei café da manhã aos meninos
e fiz os bolinhos, não quis nem saber! Todo mundo falando
pra eu guardar o dinheiro pra mim, que você nem vinha,
mas você veio! — Ela o abraçava de novo.
Sérgio sentiu um bolo na garganta ao pensar na
importância que ela dava a sua visita e na situação que via.
Pelo cheiro no quintal, parecia que a casa não tinha sido
conectada ao esgoto, que corria nos fundos, entre as
demais residências. Ao lado do fogão limpo com o botijão
coberto cuidadosamente por uma capinha de crochê, tinha
uma lata de óleo cortada e cheia de papel queimado em
cima da pia.
— Ah, esqueci de jogar isso fora! Agora que comprei o
gás, não tem mais necessidade. — Ela se desfez da
gambiarra, como se fosse algo trivial.

Sérgio a encarou: — Mãe, a senhora tava cozinhando


nisso aí?
— Eu usava um fogão de lenha no quintal, mas tava
chovendo esses dias, então... — falava, de cabeça baixa.

Olhou do lado de fora e enxergou apenas uns tijolos


empilhados com uma chapa torta de metal por cima.
Enquanto isso, Leon desempacotava as compras,
perguntando onde guardá-las.

— Espaço é o que não falta! Aí, meu filho... —


Caprichosa, ela indicava com a escumadeira onde colocar
tudo.
O coach ficou em silêncio, espiando a sala: um
daqueles racks antigos dos anos 2000 sustentavam várias
capinhas de crochê. Sobre elas apenas alguns livros e CDs
antigos. Um rádio pequeno, uma tv de tubo riscada dos
lados. As mochilas das crianças com os personagens da
moda estavam guardadas nos espaços vazios do móvel com
zelo. Apesar de já terem sinais de gastas, estavam bem
conservadas em comparação com as paredes e o piso.
Retornou depressa, arrependido de bisbilhotar e
incomodado por tudo o que via.
Mal pisou na cozinha, Sônia já foi lhe enfiando um
bolinho na boca: — Cuidado que tá quente!

Apesar da língua queimada, seus olhos lacrimejaram


de alegria ao relembrar aquele sabor tão saudoso de sua
infância: — Que delícia, mãe! É igualzinho ao que me
lembro!

Ela passou o braço no dele, o levando para a mesa: —


Senta filho, quero ver você comendo direitinho! Tá tão
pálido, precisa se alimentar! Leon disse que você não come
nada.

— Não confia em tudo que ele disser, mãe. Ele é


comunista! — sussurrou.
Ela ergueu as mãos pro alto: — Ah, que bobagem!
Vocês não se amam? Tem que confiar um no outro.

Leon puxou uma cadeira também, se servindo: —


Dona Sônia, a senhora é a sabedoria em pessoa! Tô muito
feliz de te conhecer. E seus netos?
— Eles já jantaram! Tão na casa dessa minha vizinha,
a Lucilene. Queriam brincar na rua, mas não deixei. Outro
dia, mataram um do lado do mercadinho! Seis da tarde,
cheio de gente passando. Olha... — ela falava, com a mão
no peito.
Sérgio se levantou da cadeira: — Mãe, a senhora tá
bem? O Albert Einstein fica aqui perto, eu posso...
— Tô meu filho, é só o desabafo! Se eu fosse morrer
por qualquer coisa...

Voltou a sentar, em silêncio. Do lado de fora a noite


caía. Apesar de sua insistência, Dona Sônia os deixou para
buscar os netos. Ficaram sozinhos, com a tigela de bolinhos
fritos e os copos de suco ainda cheios.
Leon comia, o encarando de vez em quando: —
Perdeu a fome?

— Meu Deus! Como ela pode viver nessas condições...


— Do mesmo jeito que milhões de pessoas neste país.
Do jeito que dá.

Engoliu o suco, sem conseguir desfazer aquele mal


estar. Tudo o que queria era arrancar aquela mulher dali e
levá-la pra sua casa, onde lhe daria toda a assistência que
pudesse.

Ela retornou com as crianças, apresentando-as: —


Essa é a Juliana e esse é Rafael, o menorzinho. — Os dois
olhavam espantados pra eles.

— Quem morreu, vovó?


— Ninguém, ué! Por que tá perguntando isso, Juliana?
— E esse papa defunto aí? — A garota o apontava.
Leon gargalhou tanto que quase caiu da poltrona.
Dona Sônia ficou brava: — Que papa defunto o quê!
Esse é o Serginho, eu cuidava dele.

O menino ria, exclamando como só uma criança é


capaz: — Aaah, então esse é o “Serginho Cu”!

Sérgio piscava, duvidando do que acabava de escutar:


— O quê?
—Olha a boca, Rafael! — Dona Sônia repuxava as
próprias mãos, sorrindo sem graça: — É que o Cleiton, meu
caçula... Quando criança, às vezes eu voltava pra casa e
trocava o nome dele sem querer pelo seu. Daí ele me
respondia: “Serginho é o...!”.

Repuxou os próprios lábios diante de novas risadas


das crianças. Não sabia como reagir. Pensara por anos que
ela sequer se lembrava dele e de repente, havia toda uma
cultura de xingá-lo naquela casa.
Sônia pegou o álbum de fotos do móvel e sentou no
sofá perto dele, ainda envergonhada: — Eu não tinha com
quem deixar o Cleiton, não tinha creche. Eu deixava ele
com minha mãe. Só não ficou pior porque ele ia pra escola.
Depois se endireitou, virou policial. — Ela suspirava,
sorrindo e acariciando a fotografia: —Olha ele. Era um rapaz
tão lindo... Tão inteligente. Ficava tão bonito de farda, não
é?

— É sim. — Ele era bonito mesmo. Era estranho


pensar que haviam se odiado tanto quando crianças, sem
nunca nem terem se visto.
— Bom, você desculpa o meu filho. Se o Cleiton
estivesse vivo, ia agradecer a sua ajuda. Ele não ganhava
muito, mas dava pra passar o mês. Agora...

— Mas eu vou te ajudar, mãe.

A menina fez uma careta, o apontando: — Mãe? Mas


tu é filho dela, é?
— Eu que não quero tio com nome de cu!

— Mas você para, ô menino! Tá terrível! — Ela


ameaçou bater nele.

Leon interveio: — Não faz isso, Dona Sônia! Ele tá só


brincando.

Sérgio se curvou, as mãos entrelaçadas na frente da


boca: — Eu nem ligo. Também tinha raiva dele quando
criança. — confessou, se segurando pra não dizer quantas
vezes desejara que aquele outro menino não existisse pra
que pudesse tê-la somente para si.
Os filhos do outro menino o olhavam com
desconfiança merecida. A avó deles fechou o álbum: — Não
adianta ficar pensando nisso agora. Águas passadas.

Diante do clima pesado, Leon buscou uma sacola da


cozinha: — Já que as crianças jantaram, podemos comer a
sobremesa, vó? — Pegou um pacote de bolacha recheada.
Mal mostrou a embalagem, os garotos pularam em cima
dele.
Dona Sônia puxou a orelha dos netos: — É presente
do Serginho! Parem de xingar ele e agradeçam!
— Valeu aí, tio! — o menino disse, com a boca cheia
de migalhas e um sorriso que fez o coach se esquecer dos
comentários anteriores. Comeu outro bolinho, tentando se
alegrar apesar de toda a confusão que sentia.

— Comendo tanto bolinho de feijão assim, ai de quem


dormir perto de você hoje! — Leon comentou, o cutucando
de leve com o pé calçado de chinelo.
Sônia se levantou: — É, Serginho, agora você me
pegou. Só tenho esses colchonetes, não tive tempo de me
preparar melhor.

— Tá perfeito, Dona Sônia! Vamos dormir igual certos


políticos na câmara dos deputados. — o dominador
comentou.
— Obrigado, mãe! A senhora fez mais que o bastante.

— Ah, meu filho. — Ela acariciava seu cabelo, ainda o


olhando como se procurasse ver no homem já crescido o
menininho que conhecia: — Eu lembro quando te dava
banho, você adorava que eu cantasse aquela música que
tocava no rádio... Como era mesmo?

—Mais louco é quem me diz, que não é feliz...

Ela completou: — E tchuuum! — Cantaram juntos.


Depois ela os chamou para jantar e mostrou as
panelas cheias de galinhada. Apesar de já terem se
empanturrado com os bolinhos depois daquela viagem
estafante, não recusaram. E assim como a comida parecia
que não acabava, chegavam mais e mais convidados,
recebidos com fartura: — Aqui, meus vizinhos: o Seu Gilmar
da padaria, que me ajuda quando falta coisa aqui em casa,
a Dona Margarida... — Ela ia apresentando todos que
chegavam curiosos com a movimentação. Parecia até que
um apresentador de tv tinha vindo parar ali.

— E esse é o Serginho, o menino que eu cuidava em


Brasília. — Ela sorria, alisando seu ombro. Nunca na vida
tinha sido tão bem tratado. Ao mesmo tempo, lhe causava
desconforto lembrar que ele não era realmente seu “filho”
mas um dos muitos meninos que aquela mulher teve de
criar ao longo da vida.

— E o moço de Brasília faz o quê? — perguntou a


Dona Jurema do mercadinho.

— Me formei em economia, sou consultor financeiro.


— falava, com o pedido implícito em seu olhar para que
Leon se mantivesse calado.

Os olhos de Dona Sônia brilharam: — Ah, igual


aqueles moços da televisão que ensinam a abrir um
negócio?

Corou: — É, tipo isso.

— Então me ajuda, Serginho, por favor! Meu ateliê tá


mal das pernas.
Sentado à mesa com ela e os demais, explicou: —
Bem, primeiro temos que começar com o básico. Quanto a
senhora tem de capital de giro?
Ela franziu as sobrancelhas: — Capital de quê?

— É uma reserva de dinheiro pra senhora investir no


seu negócio.

— Ah, eu não tenho um tostão furado. O que eu tinha,


usei pra comida e pras roupas dos meninos.

Inspirou, sorrindo: — Bom, a gente vê isso com calma


amanhã.

— Minha padaria também tá mal das pernas! —


comentou o Seu Gilmar e a dona do mercadinho fez a
mesma queixa, apesar de já terem alguma noção do que
era o tal capital de giro.

Aos poucos o coach percebia que talvez tivesse


ignorado como era difícil investir enquanto cortava de onde
não tinha pra manter o pouco que restava. Preferia que
aquele encontro fosse apenas entre eles, mas não podia
fazer feio na frente dos amigos da mãe de criação, então
ficou por uma hora e meia tentando resolver os problemas
deles. Só que, quanto mais ouvia, mais ficava claro que o
problema ali não era falta de esforço ou trabalho, mas sim
de dinheiro.

Por mais contraditório que fosse, aquelas pessoas


trabalhavam de sol a sol, mas os ganhos nunca eram
suficientes para investir em melhorias. Isso quando não
estavam desempregadas e daí acabava-se a chance de sair
do buraco. Oferecia todos os conselhos de seu livro, mas um
a um eles caíam diante do que a realidade mostrava. Por
mais que eles também acreditassem no valor do mérito e
do trabalho, alguma coisa simplesmente não se encaixava
ali.

Passou a mão sobre o rosto. Achava que a única


solução possível seria dizer “pare de ser pobre”, mas isso
não seria educado e ainda comprovaria o fracasso de suas
teorias. Leon ora ou outra comentava, empatizando com
eles, mas se mantinha quieto a maior parte do tempo,
esperando junto dos demais. Esperando o moço de Brasília
dar uma solução.

Colocou as mãos na mesa, suspirando.

Dona Sônia acarinhou seu rosto: — Ô filho, tá


cansado, né? Veio de ônibus só pra me ver, coitado! — ela
repetia sem parar aos amigos.

Sérgio deu o melhor sorriso que podia, tentando


retribuir a fé que ela depositava nele: — Bem, os senhores
podem voltar amanhã, prometo examinar seus casos. Ah,
lembrem de anotar os gastos e as receitas!
A dona da casa foi despachando todo mundo. Depois
que colocou os netos pra dormir, foi a vez deles. Ela trouxe
roupa de cama e travesseiros que pareciam novos: — Os
colchonetes são velhos, mas o resto comprei hoje mesmo!
Encarava-a, comovido que Sônia tivesse gasto aquele
dinheiro com mais generosidade do que seria bom pra ela.
Sua mãe arrumou os colchonetes bem encostados um no
outro, fazendo Leon ter uma mini crise de riso e Sérgio ficar
mais vermelho que depois de uma sessão com ele.

— Prontinho! Boa noite, meninos! — Ao deitarem para


dormir, ela lhes deu beijinhos na testa, para seu espanto e
divertimento.

— Boa noite, mãe! — falou com o cobertor quase no


pescoço, inundado por aquele sentimento que achava que
tinha perdido ao longo da vida.

Fechou os olhos. Mesmo se sentindo mais seguro ali


do que em sua casa enorme e vazia, era difícil relaxar com
tanta coisa num só dia. Se pegou pensando em como
voltaria para casa tranquilo deixando-a ali. Poderia levá-los
pra casa? Como seus pais reagiriam? Querendo ou não, ele
ainda era o mesmo Sérgio na mira dos Gentile. Por pior que
fosse aquele lugar, parecia mais seguro que o ninho de
cobras onde vivia.

Se levantou, indo até o banheiro. Ao voltar, viu a luz


do abajur no corredor, a porta do quarto de Dona Sônia
entreaberta. Se aproximou, os soluços mais audíveis. Era
ela quem chorava baixinho, abraçada ao álbum de fotos do
filho.

Tudo o que tinha ouvido, o rosto dela sempre


sorridente desde que chegaram até o último instante em
que se recolheram para dormir... A dor que aquela mulher
guardava dentro de si, não podia imaginar. Achava que
precisava de colo e amparo, mas era ela quem precisava
muito mais disso. Queria ignorar aquela verdade com a qual
não sabia lidar, mas simplesmente não podia. Empurrou a
porta devagar.

— Ô, Sérgio...— Ela fungou o nariz, a voz embargada:


— V-vai dormir, tá tudo bem.

Sentou ao lado dela na cama, segurando-lhe a mão:


— Não tá tudo bem. A senhora tá chorando.
— Não é nada não! É só que, desde que você
reapareceu, eu... Acho que comecei a pensar muita coisa. —
Deu um suspiro pesado, com a mão sobre o rosto.

Sérgio segurava a outra mão dela, a abraçando. Não


disse nada, não por medo de dizer algo errado, mas por não
saber o que dizer. Sua própria infância e o cotidiano violento
que aquela mulher sofria no trabalho eram indissociáveis e
até mesmo ele percebia isso agora.
— Ai, Cleiton! — Chorando, ela expressava o luto que,
de outra forma, não se permitiria na frente deles. Querendo
ou não, eram praticamente desconhecidos. O Serginho que
ela conhecera era um e ele outro. A Sônia de sua infância
tinha sido a figura materna borrada de sentimentalismo e
mãe da Sônia desconsolada em seu ombro. A mulher que o
criava e deixava o próprio filho para que outros criassem.
Que chorava a morte dele após ter perdido quase toda sua
infância.
Amparou o rosto dela, a acolhendo: — Eu tô aqui! A
senhora não tá sozinha!

A abraçou forte e ficou até que ela dormisse, como


Sônia fizera tantas vezes por ele naquele quartinho em
Brasília, onde a luz do sol quase não entrava pela janela de
dia.

###

Uma das coisas para as quais não estava preparado


era a experiência de tomar banho quando não se tinha uma
ligação de água funcional:

— Tá morninha, filho! Aqui — Ela lhe entregou a


caneca de louça ágata.
— Obrigado? — respondeu, olhando o balde no piso
do banheiro, apenas uma cortina de plástico separando o
vaso sanitário, cuja descarga também não funcionava e
precisava de outro balde pra fazer o serviço. Olhava em
volta, o relevo gasto do piso lhe dando aflição. Se apressou
pra não deixar a água esfriar.

Se ensaboava quando Leon abriu a porta e entrou.


Puxou as cortinas: — Tá maluco, sai daqui! Não vai profanar
a casa da minha santa mãezinha com as suas putarias de
comunista!
—Nossa! Bom dia pra você também. Achei que talvez
precisasse de ajuda... Não é um costume burguês, tomar
banho de canequinha.

— Não, obrigado! Me viro muito bem sozinho!


— Se precisar, me chama. — Ele saía, quando de
repente, Dona Sônia reapareceu:
— Serginho, esqueci a sua toalha!

Se enrolou na cortina: — Mãe! Eu tô...

— Ah, me desculpe! — Ela desviou o rosto, mas


continuava ali, para seu desespero: — Olha, o seu
namorado está aqui pra te ajudar! Que bom, assim fico
menos preocupada.

Ela fechou a porta. Ficou agarrado à cortina do


banheiro, o rosto corado olhando o nada. Seria impossível
passar uma vergonha maior que essa na vida. O episódio da
fantasia de jacaré tinha sido totalmente destronado.

Leon o assistia com o sorriso mais sem vergonha.


Nem mesmo se tivessem anunciado uma reforma agrária
pro próximo mês ele teria se alegrado tanto.

Uma vez limpo e recomposto, pegou o notebook que


trouxe na mochila e começou a montar as planilhas com
ela: — Bom, a senhora precisa pagar a dívida primeiro. E
sendo com agiotas, é melhor pagar o quanto antes.

— Já pensei nisso: agora que o governo liberou usar o


auxílio pra pedir empréstimo, pensei em ir no banco e...

— Não, mãe! Vai levar anos pra pagar com essas


taxas de juros exorbitantes! O dinheiro do auxílio é pra
alimentação de vocês. Eu acho melhor...

— Mas o governo disse que podia! Na tv, também...


Queria arrancar os próprios cabelos, mas se lembrava
de quantas vezes defendera ideias assim como se fossem
razoáveis: — Disseram errado, mãe! É uma armadilha! Não
se faz uma dívida pra pagar a anterior! O governo sabe que
os bancos vão receber de qualquer maneira e ainda assim
mantiveram essas taxas de juros escabrosas, os filhos da...

Ela suspirou de cabeça baixa, as mãos estendidas na


mesa: — Fiz besteira, né? Não tinha mais a quem recorrer,
peguei com agiota porque já tinha feito o consignado. —
Parecia prestes a chorar.

Se apressou em confortá-la: — A senhora não tinha


como saber.

— Mas o que eu faço?

— Primeiro, vamos cuidar dessa dívida. O valor é um


tanto alto, mas eu posso pagar.
— Ah, Serginho! Você é um anjo! — ela falava, e ele
só desejava não se tornar um no sentido literal da palavra.

— Só preciso fazer umas movimentações, isso leva


um ou dois dias. — disse, já discando para sua gerente no
banco.
— Mas o dinheiro é seu mesmo, né? E você fez
sozinho, sem a ajuda de ninguém? — Já tinha respondido
perguntas assim de estudantes arruaceiros de faculdade,
mas não dava pra mentir pra ela.

— Eu tive um certo investimento do meu pai e...


— Ah, então não quero!
— Mãe! — Olhou para Leon em busca de ajuda, mas
ele continuava tranquilamente tomando o café da manhã. O
infeliz nunca calava a boca e justo agora que precisava, ele
não dava um pio!

Dona Sônia deu um suspiro, retirando a própria xícara


e o pires da mesa: — Com todo o respeito, o seu pai nunca
foi um político honesto, nem como patrão, aliás. É dinheiro
sujo!

— Não, mãe! Esse dinheiro não é sujo porque agora


ele é meu, entende? Eu trabalhei pra ganhar! — Tinha
trabalhado para convencer o pai a lhe dar o dinheiro. Ser
promovido foi merecimento, ora.

Ela retorcia as mãos: — Olha aqui, Sérgio: não é


porque eu sou pobre que vou aceitar dinheiro de falcatrua!
Se for assim, prefiro que não me dê nada. Eu ei de trabalhar
e pagar esses marginais!

— Não é, eu juro! Não tenho os informes comigo, mas


posso te mostrar pelo celular. — Procurava o sinal quase
inexistente por ali.

— Olha lá, hein? Não tenta me enganar, eu lembro


direitinho de como você fazia quando tava aprontando!

Precisou de mais uma hora pra explicar à mãe como


seus investimentos na bolsa de valores funcionavam. No
fim, ela se convenceu, o parabenizando: — Meu filho, é tão
esforçado, tão inteligente! Tenho tanto orgulho de você! Um
homem formado e trabalhador!

Sua boca ficou seca. Se antes vivia dizendo aquilo na


frente do espelho, agora era como se esfregassem um
monte de areia em sua cara. Afinal, que tipo de trabalhador
ele era? Nem de longe trabalhava como ela ou qualquer
outro dali. Não tinha realmente se formado e desde que
conhecera Leon, seu canal sofria com inúmeros hiatos, mas
suas contas quase não sofriam dano algum. Se quisesse
dormir e não trabalhar nunca mais, não mudaria nada em
sua vida: — Acho que não mereço tanto elogio, mãe.

— Merece sim! Como não? — ela perguntava, quando


os netos vieram correndo do quarto com o celular dela.

— Vó, olha isso! — E mostraram um vídeo do agora


deletado canal da Enrique-se. Nele, Sérgio esbravejava
contra as vacinas e defendia os deboches do ex-presidente
com os mortos e doentes da covid.

Dona Sônia assistia ao vídeo, paralisada. Tentou pegar


o celular da mão dela, mas seu grito foi o suficiente para
desistir. Levou os punhos à boca, aterrorizado. Até Leon
parou a arrumação que fazia.

A mãe o encarava com olhos lacrimosos. As crianças


de braços cruzados, as caras de “quando esse bicho papão
sai da nossa casa?”

Engoliu em seco, baixando a cabeça: — M-mãe, não...


E-esse vídeo é antigo, eu...
Ela ficou em silêncio, sentada no sofá. Teria preferido
que ela gritasse com ele, brigasse, qualquer coisa. Ficou
parado e quieto, a espera o angustiando.

A senhorinha balançou a cabeça, limpando os olhos e


coçando a orelha. Ela olhava para o chão e para as próprias
mãos: — É, Sérgio...

Sentou na cadeira. Estava acabado. Sua mãe agora o


odiava. O motivo tava bem ali pra todo mundo ver, não
tinha como deletar, por mais que tentasse. Então, ela disse:

— Eu também me decepcionei com ele.

Levantou a cabeça. Tinha ouvido direito?

— Hã, ele? Não seria comigo?

— É, eu também votei nesse coisa-ruim! Meu filho


disse pra eu votar. O pessoal que manda aqui também falou
pra gente votar, e era pra obedecer, né? — Se atentou para
os adesivos colados nos postes: só se via propaganda de
candidatos favoráveis à milícia por ali.
— Ele dizia que era a favor da família, que era cristão.
Pensei que traria alguma mudança. — Sônia passava as
mãos calejadas sobre os olhos, as rugas macias do rosto se
aprofundando. Ela se culpava, mas ele era mil vezes pior
por saber exatamente que tipo de gente o mito era e se
identificar com aquele discurso.

— Depois da morte do Cleiton e da Janete eu me senti


a pior mãe do mundo. Sei que a culpa não é só minha,
mas...Se tivesse tido vacina mais cedo... Será que eu matei
meu filho?
— A senhora não pode se culpar assim! Eu doei
dinheiro pra campanha dele, convencia os clientes e
inscritos a votarem nele... Eu ganhava dinheiro com o ódio
dos eleitores dele! Se esse monstro foi eleito, foi muito mais
por minha culpa do que sua! — tremia: — E eu menti, mãe.
Não me formei em economia. Sou só um coach. M-me
desculpa — desabafou, deixando as lágrimas escorrerem.

Ela o encarou ultrajada, provavelmente percebendo


enfim que ele não era o trabalhador honesto que
acreditava.

Permanecia parado, esperando tudo. Um tapa, uma


acusação, um xingamento. Sua mãe em São Paulo com
certeza faria as três coisas de uma só vez.

Ela acariciou seu rosto: — Tudo bem, meu filho. Eu te


perdoo.
Chorava confuso. Ela tinha todos os motivos pra odiá-
lo, mas o perdoava. Sem recriminações, sem gritos. Só
perdão. Caiu, soluçando. Abraçava os joelhos dela, igual se
fosse um menino de novo. Era ridículo, mas não conseguia
se controlar. Temia perder o amor mais verdadeiro que
conhecera na vida. Uma vez já tinha sido demais.

Sônia acarinhava seus cabelos, sem pressa: — Não vai


mais me ajudar com as finanças?
Ergueu a cabeça depressa, fungando o nariz: — Claro
que eu vou! Só não tenho um diploma como fiz a senhora
acreditar.

Dona Sônia o levantou: — Ah, meu filho... Pra que


mentir?

— Queria que a senhora se orgulhasse de mim... —


Limpava o rosto na manga da camisa.

— Não precisa de diploma pra isso! Você veio me ver,


me ajudar! Isso não é bom? Vou ficar ainda mais orgulhosa
quando você aprender a lavar a louça! Cê gastou o litro todo
de detergente, menino!

Riu, limpando o rosto. Refez o convite: — Vem comigo


pra capital, mãe. Eu vou te colocar numa casa boa, com
piscina, com quintal, empregados, tudo que vocês
precisarem! Tem escola pras crianças, hospital, tudo!

— Ah, meu filho. A gente gosta daqui, conheço todos


os meus vizinhos, as crianças também tem os amiguinhos.
Não quero me mudar, já basta tudo que eu passei pra ter
essa casa. Quero continuar sossegada, no meu cantinho. —
Os netos a abraçavam em silêncio, acompanhando a
conversa.

— Mas e as crianças? Tem boas escolas no Morumbi.

— Eu conheço esses lugares em que você vive, não


fazem a minha cabeça! Meus netos se sentiriam peixes fora
d’água lá. A escola deles é pública e tem aula de música,
inglês, tudo. Só precisava de mais investimento.
Ficou um tanto desorientado com a recusa. Achava
impossível alguém gostar de viver numa vizinhança como
aquela, onde o parque mais próximo parecia prestes a virar
uma boca de fumo.
— Mas eu tenho que fazer alguma coisa, não posso
deixar vocês vivendo desse jeito — Pensando na situação
geral da casa, cujo gato d’água só chegava na cozinha, fez
uma série de ligações para Regina e Val: — Manda trazer o
material e um engenheiro pra cá, pra Atibaia! Melhor,
providencia uma equipe logo! Urgentíssimo! E também
entra em contato com o proprietário pra agilizar a compra.

— Pra que tudo isso, meu filho? Aqui mesmo tem


pedreiro, só me faltava o material e um jeito de pagar as
contas.
— Tudo bem, chama eles que vamos colocar isso aqui
nos eixos! Enquanto isso, vou pagar um bom hotel pra nós.

Enquanto Dona Sônia e os netos relaxavam na área


de lazer do Grand Hotel cinco estrelas, foi com Leon pagar a
dívida. Levaram toda a tarde para sacar a quantia. Só
conseguiu uma parte do dinheiro em espécie, o restante
vindo das mãos da gerente na forma de cheques. No fim,
carregaram as caixas de dinheiro lacradas num carrinho de
mão até o sobrado.
De frente para a televisão, o agiota se espantou com
a presença deles. Não fez muitas perguntas, só exigiu: —
Confere se tá tudo aí.
Ficaram contando cédulas até começar a novela e o
homem se cansar: — Vocês são malucos? Isso era uma
piada! Se faltar alguma coisa, eu sei de onde cobrar!

Sérgio lambeu o dedo com o pouco cuspe que ainda


tinha, continuando: — Quinze mil e quinhentos... — Não
queria deixar sua mãezinha refém daquele vagabundo. Já
estavam no telejornal da meia-noite quando acabaram a
contagem e o homem os enxotou.

Caminhavam de volta, conversando, Sérgio ainda


muito impressionado: — E pensar o tanto que essa gente
sofre e se arrisca apenas por não ter as informações certas.
Se ao menos tivesse um jeito de regular isso...

— Parabéns, meu servo! Está começando a entender


o x da questão!

— Tá, Leon! Eu admito. Se dependesse dos bancos,


minha mãe estaria na rua!

— Isso! Temos um novo militante?

Balançou a cabeça: — Não se anime tanto. Se


estivéssemos num regime comunista, ela além de pobre,
sequer poderia se queixar disso.
— E no que você se baseia pra afirmar isso?

— Ora, nos inúmeros relatos de pessoas que fugiram


desses países! Será que você não enxerga?

Ele deu de ombros: — Propaganda financiada pela


CIA.
Riu: — Tudo que vai contra vocês foi financiado pelos
EUA...
— E não foi? Vários golpes... — ele disse, com as mãos
nos bolsos.

Teve de admitir que sim, mas não importava. O jogo


era o que importava, e se fosse com Leon, queria continuar
jogando pra sempre.

No hotel, esperava encontrar Dona Sônia e os netos


dormindo no quarto, mas ao chegar no enorme salão, se
deparou com eles sentados numa das poltronas, as roupas
de banho que estavam molhadas quando saíram já secas.

— O que estão fazendo aqui?

— Quero ir embora, Sérgio!

— Hã? Mas por que...

—Não era pra gente estar aqui!

Tentava entender o que tinha acontecido, mas ela só


balançava a cabeça e chorava, nervosa. Leon pediu um
copo d’água pra ela.
— Ô, mãe, fica calma! Por que a senhora tá assim, o
que houve?

— Aquele moço disse pra eu usar o elevador de


serviço — Ela apontou para o concierge, um homem branco
de cabelo ruivo. — Eu reclamei e ele perguntou em que
quarto eu estava. Esqueci o número e disse que era no que
você tinha pago, mas ele não acreditou... Eu tô com muita
vergonha, só me leva embora daqui, Sérgio! Por favor!
— Tá bem, mãe — falava, atordoado. Pediu a Leon que
a levasse com as crianças pra fora. Murmurou entredentes:
— Eu vou quebrar esse lugar.

— Não faça algo que eu não faria. — ele disse,


levando os três para o ponto de táxi.

Esparramou as mãos no balcão, assustando o


concierge.

— Senhor Frazier, que prazer! Já é a quinta vez que o


recebemos em nosso hotel. — A cara dele piorou ao
examinar o registro do check in.
— E é a última vez que fico nesta espelunca! Como
vocês se atrevem?

— Ah, perdão! Aquela é sua empregada, então...

— A MINHA MÃE! Você constrangeu e insultou ela, seu


infeliz! — Esmurrou o tampo de granito, fazendo o homem
saltar pra trás.

Ele arregalava os olhos: — A sua mãe? Não seria a


senhora...

— Não interessa! Mesmo se ela fosse a minha


empregada, ela não tinha obrigação nenhuma de usar o
elevador de serviço, onde é que nós estamos, senhor? Ela é
uma mulher idosa, com crianças e vocês a deixaram aqui,
esperando?
O funcionário se desesperou: — Me desculpe, por
favor... Eu não imaginava, não tinha como saber que eram
da mesma família!
— Ah, não tinha é? Por quê? Por que ela é negra e eu
branco? É isso?

A voz dele falhava: — P-podemos compensar essa


situação...

— Não quero compensar porra nenhuma! Aquela


mulher me criou e está lá fora agora, chorando! Eu vou é
denunciar você na primeira delegacia que eu encontrar, SEU
RACISTA VAGABUNDO! — Sacou o celular fotografando o
crachá dele.

O homem engoliu em seco, baixando os olhos e dando


uma risada forçada: — Muito bem. Faça o que quiser. Eu não
sou racista... Só cumpro ordens.

— Ordens? Que ordens?! Não deixar os hóspedes


circularem onde bem querem?

O homem colocou a mão em seu ombro: — O Grand


Hotel é pra pessoas refinadas. Não é qualquer tipinho que
pode se hospedar aqui, o senhor entende — Ele
arreganhava os dentes, num sorriso de cumplicidade.

O punho fechado de Sérgio desceu nele com a energia


dos bíceps trabalhados cinco dias por semana na academia.
Sacudiu a mão, olhando as marcas vermelhas nos nós dos
dedos. — Ai! — Aquele homem era bem dentuço.
Os demais funcionários levantaram o criminoso do
chão e terminaram o check-out. O gerente implorava que
não fizesse a denúncia, oferecendo estadias gratuitas entre
outros benefícios: — Ô, Serjão, faz isso comigo, não! Seu pai
não ia gostar de um escândalo desses! — Ele olhou a folha
de registro, falando: — E a sua garota, a *****? Conversa
com ela...

Sérgio o empurrou no mesmo instante: — O NOME


DELE É LEON! Nem o nome dele vocês colocaram direito! Eu
nunca mais piso aqui, SEUS VERMES! Passar mal, racistas!
— Puxou a porta de vidro de tal forma que ela trincou ao
fechar.

Pegaram um táxi, as crianças bocejando no colo da


avó e de Leon: — Aonde a senhora quer ir, mãe? Tá muito
tarde, a gente vai ter que procurar outro hotel.

— Não, vamos pra casa da Lucilene, ela sempre


recebe meus netos, vai nos receber muito melhor! Ela tá
doidinha que você ajude com as finanças do mercadinho! —
No percurso, Dona Sônia desfiava as fofocas da amiga, só
coisas boas, obviamente.

Já desmontavam de sono quando chegaram. A casa


era maior que a de Sônia e aconchegante, mas a dona do
mercadinho teve trabalho pra acomodar todo mundo: — Só
tem dois colchões, pra você e as crianças. Os meninos
dividem esse edredom forrando o chão? Pelo jeito, dividem
sim...ô se dividem!
Se entreolharam e Sérgio desviou o rosto, querendo
sumir. Leon segurava sua mão, dando beijinhos nela.

A reforma se encerrou ao fim da semana, deixando a


casa não só renovada em toda sua estrutura básica, como
também no acabamento: o telhado novo reluzia, com uma
nova meia água para a varandinha da área de serviço,
máquina de lavar nova, uma churrasqueira e forno à lenha
de verdade que, Sérgio acreditava, seria usado apenas em
ocasiões festivas, nunca por necessidade. No quintal, grama
recém-plantada cobria o chão até o espaço reservado para
a hortinha que Dona Sônia vinha cultivando durante a
pandemia e que agora tinha uma cerquinha e todos os
materiais necessários para prosperar.

Dentro de casa, o ateliê até então parado pela falta da


máquina, foi o que mais emocionou a dona. Manequins,
rolos de linha, enfeites mil esperavam em seus lugares pelo
devido uso. Os tecidos empilhados sobre caixotes agora
estavam todos organizados e seguros em prateleiras. As
máquinas novas eram três e mais uma para bordados. Para
a inauguração, uma placa nova do lado de fora: “Ateliê da
Dona Sônia: encomendas, consertos e bordados”.
Entregou as chaves a ela: — Fiz uma previdência
privada pra senhora e as crianças e uma conta
especialmente pro capital de giro inicial do negócio! A
senhora deveria chamar alguém pra ajudar aqui! Nem
precisa assinar carteira logo de cara — comentava, ao que
Leon lhe fez uma cara feia. Sussurrou: — Ela está
começando, precisa de incentivo.

Na verdade, pensava em comprar uma confecção


inteira pra ela, mas achou que talvez fosse melhor esperar o
ateliê se recuperar da crise.

— Nem sei como agradecer, meu filho! Que coisa


mais linda! — As lágrimas de felicidade passeavam pelo
sorriso dela.
— A senhora merecia muito mais!

— Mas já tá muito bom assim!

As crianças corriam pra lá e pra cá com os brinquedos


e bicicletas novas que deixara no quarto. O menino pedalou
por cima do seu pé enquanto viravam no corredor. — Ai,
tenha mais cuidado!

—Desculpa, tio.

— Tudo bem, Rafael. — Sorriu. Apesar do pai ter


casado mais duas vezes, não convivia com os irmãos e
sobrinhos. Era estranho de repente ser chamado assim.
Juliana passou com o tablet na mão, muito focada numa
dancinha de TikTok.

— Vocês gostam de uma tecnologia, né. Por mim,


criança não teria celular, o mundo virtual é muito perigoso...

Leon se meteu na conversa: — Já contei que a gente


se conheceu pela internet?
Engoliu os próprios lábios, arregalando os olhos pra
ele. Sussurrou entredentes: — L-Leon, para...

Dona Sônia bateu palma: — Hoje em dia todo mundo


se conhece assim! O primeiro encontro de vocês deve ter
sido muito romântico.

— Foi num sushi bar. O Sérgio ficou todo vermelho...

Interrompeu logo: — AH, EU ME ESQUECI DE BOTAR


UMA PISCINA NO QUINTAL! Que tal se sairmos agora e
comprarmos uma daquela de mil litros, hein? Que me
dizem?!

Pelas horas seguintes, se encarregou de encher a


piscina com a mangueira. Não era grande como a do hotel,
mas garantiu a diversão da criançada da rua. Até Leon
pulou de roupa e tudo com Dona Sônia. Espirrando água, o
chamava pra se juntar a eles.

— Vai quebrar a piscina, mano! Nem tem espaço


mais!

— A gente fica apertadinho, juntinho!


Recusava, mas Leon veio tentar pegá-lo no colo. Ele
escorregou e os dois caíram de cabeça no meio da turma,
água inundando o quintal. Ficaram nela até os dedos
enrugarem, e as crianças os expulsarem por jogarem quase
toda a água pra fora.

No meio tempo em que esperavam a casa ficar


pronta, quase deu uma “forcinha” pra acelerar o processo
contra os crápulas do hotel cinco estrelas, mas Leon lhe
dissera que seria um mau exemplo para as crianças, então
não o fez. Seria aquela uma corrupção do bem?
Paralelamente, a casa de Lucilene se tornou o “feirão da
consultoria financeira”.
Permanentemente instalado na mesa metálica de bar
no quintal, Sérgio calculava de quanto cada um dos vizinhos
precisaria para sair do buraco. A cada resposta que se via
obrigado a dar, mais um rosto desalentado surgia a sua
frente. Buscava alguma opção de crédito que parecesse
mais viável, o problema era que os bancos não
colaboravam. No fim, terminou fazendo empréstimos
pessoais a todos, com juros impraticáveis no mercado,
menores que os de qualquer cooperativa de crédito ou
fintech.
Leon o espiava por cima do ombro: — Você tá sendo
um agiota ao contrário, se é que isso é possível. Sabe que
ninguém vai te pagar, né?

— Cala a boca. — Por precaução, recomendou ficarem


de boca fechada, temendo uma vingança contra a quebra
do monopólio dos endividados do bairro.

Por mais que tivesse melhorado muito a situação


geral da comunidade que depois daqueles dias se tornara
seu lar também, Sérgio suspirava, olhando o contraste entre
a casinha reformada da mãe e o restante do bairro.
— Você não pensou que seria igual um daqueles
programas de tv dominicais, pensou?
— Eu poderia talvez reformar o restante da rua... E
mandar uns colegas do meu pai expulsarem os milicianos e
traficantes, e...

Leon o sacudiu pelos: — Tudo bem, Sérgio! Sei que


quer ajudar, já fez muito, mas não adianta. Pode gastar todo
o seu dinheiro aqui, os problemas vão continuar porque eles
são estruturais, criados e mantidos pelo capitalismo.

Olhava pra ele com raiva. Por que a mãe dele não
podia aceitar ir pro Morumbi, onde tudo seria mais fácil?
Limpou os olhos: — Vocês comunistas não tinham a solução
pra tudo? E aí, CADÊ?

— Não existem fórmulas mágicas. É preciso tempo e


esforço pra superar tanta desigualdade, mas é possível. Só
não do jeito que você acredita.

— Como assim?

— Você pensa que o problema é que essas pessoas


não tem dinheiro pra viver com segurança e dignidade. Eu
penso que o problema é todo esse sistema que promove a
desigualdade. Esse sistema que precisa ser destruído e
substituído por um em que todos tenham condições dignas
de viver e não haja exploração. É nisso que eu acredito.

— É bastante utópico, nunca daria certo. Pessoas são


imperfeitas, Leon. Sempre vai ter alguém pra explorar
outrem. Por pior que seja, o capitalismo é o melhor sistema
possível.
— Ah, é? Olha o que estamos fazendo com o mundo!
Esse sistema não é viável, nunca foi. E o comunismo não é
utópico só porque você acha que não funciona. Toda a teoria
marxista é baseada na realidade.
— E por que não funcionou até agora?

— Talvez porque ainda estejam ocupados em arrumar


desculpas pra manter tudo como está em vez de aceitar
que uma mudança precisa ser feita. Você viu lá o quão
desconfortável foi pra você. Gente que sempre sugou o
trabalho dos outros nunca vai aceitar perder seu status
docilmente.
Suspirou: — Tudo bem, Leon. Não concordo
totalmente, mas respeito o seu ponto de vista.

Ele sorriu, cruzando os braços: — Então eu não sou


mais um comunista sanguinário comedor de criancinhas?

Sorriu de volta, franzindo a testa pelo sol no rosto: —


Você é idealista e radical, mas tem um bom coração.

— Cuidado pra não acordar na URSAL amanhã.

— É mesmo, falta pouco pra posse presidencial, né? —


comentou, ainda sem acreditar. Tinha ajudado a reeleger o
Luladrão, mas quem roubara seu coração andava à solta e
bem armado.
Sentaram-se no banco de cimento da pracinha quase
vazia, a admirar o pôr do sol. Leon aproveitou para passar o
braço por suas costas: — Estive pensando, tá na hora da
gente planejar a nossa cerimônia, isto é, o seu
encoleiramento. O que acha, meu servo?

— Já? De verdade?

— Depois de tantos momentos juntos, tava mais que


na hora, não?
Retorceu as mãos sobre o colo, corando: — Li um
pouco sobre o assunto na internet. É como um casamento?

— É parecido, mas um casamento é uma união entre


duas pessoas em pé de igualdade uma com a outra. Quando
um dominador encoleira seu submisso, é porque ambos
querem realizar as fantasias um do outro, mas a relação
continua sendo de domínio/submissão, entende? A gente
não precisa ter uma relação 24 horas por dia, 7 dias por
semana. Cada dupla decide junto como quer fazer.
— E muda alguma coisa?

— Não muita na prática. É uma forma de mostrar às


pessoas do meio quem é seu dono. De marcá-lo como meu.
Gosta disso?

— Sim, senhor. E como seria essa cerimônia?

— Na Kama-Sutra, num evento fechado para as


pessoas mais chegadas do meio. Te apresentarei a todos e
vamos planejá-la juntos.
— E os seus pais? Vai chamá-los?

— Meus pais ainda estão nos EUA, teremos que


providenciar uma chamada de vídeo pra eles
acompanharem tudo.
— Comunista e com pais nos EUA. Depois não quer
ser chamado de hipócrita... Ai! — Leon lhe deu um beliscão
no braço.

— Que foi, não tem praticantes de BDSM em Cuba? E


na Coreia do Norte, já foi procurar lá?
Ele o sacudiu de leve: — É por isso que eu te amo,
Sérgio. Você é um liberal safado e sempre será, pra
satisfação do meu chicote.

— Não é difícil te provocar, esquerdista é tudo raivoso


e mimizento!
— Não pense que só por estarmos numa cerimônia eu
não posso te punir. Faço na presença dos convidados se
preciso.

Sorriu, arqueando as sobrancelhas: — Quero ver você


ter coragem.
— Vai ser adorável ter você gritando na frente de todo
mundo. — Seu rosto corou ao imaginar-se em tal situação. O
instigava a pensar em como seria, pertencer a ele como
submisso. Como seria, se morassem juntos? Sua casa era
tão vazia em comparação ao apartamento dele. Poderiam
se mudar para o exterior, quem sabe? Bastaria pegar o
dinheiro da conta na Suíça. Seu pai com certeza não
precisava tanto assim. Além de ser melhor pra segurança
deles, refletia, se perguntando se àquela altura os gêmeos
teriam voltado do Rio ou não.
De repente, uma notificação no celular. Era a outra
mãe, de São Paulo. Ignorou.

— Posso ficar dias sem falar com ela, mas foi só notar
o dinheiro diminuindo que rapidinho se lembrou de mim. —
comentou, olhando pro alto. Riu: — E se eu fosse pobre,
Leon? Ainda ia me querer como namorado?

— Bem... — A demora dele em responder o irritou.


— Vai se foder! — Ia embora quando ele o puxou pelo
braço:

— Que boquinha suja, meu servo! Vai lavar com sabão


quando voltarmos pra casa.

Se soltou dele: — Para, é sério.

— Tá, Sérgio. Você ainda acha que eu só te amo por


causa do seu dinheiro. Se me deixasse terminar de falar —
Ele suspirou: — Você é sim, um liberal boca suja, ignorante,
não sabe fazer um serviço doméstico bem feito, nem me
ouvir sem interromper. Mas sabe de uma coisa? Eu gosto de
você assim. Não mudaria nada em você. Mesmo se você
estivesse morando debaixo de uma ponte agora, eu
continuaria te amando.
— Seu petralha! Me beija! — O puxou pela gola,
unindo os lábios nos dele. Estava tão focado em ter cada
centímetro daquela língua em sua boca que mal notou o
grupo de crianças atrás da cerca viva.

— Não falei? Vai, paga! — A sobrinha recolhia o


dinheiro de um bando de garotas pré-adolescentes
fotografando e filmando aquele momento íntimo,
praticamente montando um kit gay com a imagem deles em
plena luz do dia.

Avançou, ameaçando tomar os celulares: — Suas


pirralhas! Venham aqui, eu vou contar pros pais de vocês!
— Elas saíram em disparada.

Leon foi até a menina contando o bolinho de cédulas:


— Ganhando uma graninha com as fujoshis, Juliana? Olha
quanto dinheiro! Sua sobrinha tem tino pros negócios.
Sérgio pegou as notas da mão dela.

— Ei!
— Direitos de imagem, é bom se acostumar. Toma,
guarda pra você. — Devolveu exatamente um terço do total
a ela e a levaram de volta pra casa.

O dominador deu um sorrisinho, murmurando: —


Achei que ia devolver o dinheiro e mandar apagarem as
fotos.

— Ia, mas não queria matar um espírito


empreendedor. — explicou.

A despedida foi no domingo de manhã. Dona Sônia


preparou outra bacia de bolinhos para comerem e levar
consigo. Sérgio a abraçou forte. Não queria partir. Sua casa
podia ser em São Paulo, mas o lar estava ali e era uma pena
ter de se separar deles justo quando começava a se
acostumar com as manhãs barulhentas de acordar numa
casa cheia em vez de ter apenas o despertador e a voz da
diarista uma vez por semana.
— Estamos pensando em viajar, mas assim que
voltarmos, vou entrar com um pedido de maternidade
socioafetiva. A senhora será legalmente minha mãe e
ninguém mais vai poder falar nada! — Lágrimas rolavam
enquanto desfaziam devagar o abraço. Tinha medo de não
voltarem a se ver. Acenaram para ela e as crianças de
dentro do ônibus.

Leon comentou: — Tá tranquilo em ter duas mães na


certidão de nascimento? Quero dizer, família tradicional,
conservadora...

— Tá, Leon! Não posso riscar meus pais do


documento, então fico com as duas. Se ajudei, foi em parte
com o dinheiro deles.

— Você mentiu pra Sônia? — Ele estalou os lábios: —


Que feio, meu servo. Mais um pra sua lista.
— Ora, é como uma indenização pelo que a coitada
passou.

— Assim que se fala! Espero que suas diaristas e


empregas domésticas estejam com as carteiras assinadas
também. Do contrário, assino seu lombo com o meu
chicote.

Resmungou, se reclinando no assento e colocou os


fones de ouvido pra ouvir Pink Floyd.

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Assim que chegaram, Leon fez uma lista de itens para
a festa: copos descartáveis, pratinhos de bolo, balões de
festa, tudo nas cores preta, vermelha e amarela. Sérgio
comprou tudo pela internet e mandou entregar na casa de
BDSM, já que preferia evitar sair na rua por questão de
segurança.
Sua caixa de e-mails e redes sociais continuavam
lotadas, já que não tinha coragem de olhá-las. Seu
namorado o aconselhou a guardar tudo para eventuais
boletins de ocorrência, mas que não perdesse tempo lendo
pra manter sua saúde mental. Encarava mortificado a tela,
descansando na cama dele.

— É horrível. Eu não tinha ideia.


— Eu sei. — ele disse, encostando sua testa na dele e
Sérgio se lembrou de quando tudo aquilo começara.

— Estou te colocando em perigo.


— Você não me colocou numa situação em que eu já
não estivesse. É que agora você se importa.

— Ai, Leon! Eu me arrependo, tá legal? Já deletei o


meu canal, o que mais posso fazer? Só queria que as
pessoas me deixassem em paz...
— Acho que não depende só de você, mas fico
orgulhoso de qualquer forma. Só estou dizendo a verdade:
tudo começou porque você se apaixonou por mim.

— Eu acho que foi você quem caiu de amores por


mim, pelo que me lembre!
— Mas é você quem fica de joelhos.

— Só porque eu quero.

— Touché! — Ele riu e brincou com seus cachos. Laika


pulou entre eles, latindo e lambendo.
Passou o Natal e o Ano-novo no apartamento de Leon
e com os amigos dele. Se por um lado tinha perdido
seguidores e amigos, por outro começava a descobrir novos
amigos fora de sua bolha ideológica. A decisão quanto a
melhor data para a cerimônia não podia ser outra se não o
dia da posse.

No clube, todos pararam de decorar o salão para


assistir o novo presidente do Brasil subir pela rampa do
planalto. Ele e Leon partilhavam a caixa de lencinhos no
balcão, por motivos diferentes.

— Arrependido de não ter votado na Simone? — seu


dominador comentava.

— Cala a boca.
Os “companheiros” também assistiam à posse, todos
com plena concentração. Diferente do usual, o candidato
perdedor não compareceu à cerimônia, repetindo a falta de
esportividade do militar ditador em 85. Assim que o
sucessor colocou o adorno verde e amarelo no peito, todos
se levantaram e bateram palmas. O namorado apertava sua
mão e a erguia para o alto, contente como nunca o vira. A
comemoração foi grande, só não foi maior porque Leon
queria todos sóbrios para aquela noite. Cantaram “Lula lá”,
almoçaram comidas leves, terminaram a decoração e
descansaram.
— O que é isso? — Sérgio apontou um monte de
canos empilhados e cobertos por uma capa.

— Surpresa! — Leon o afastou dali, sorrindo com a


curiosidade dele.

—Ah, conta vai... — Ele tinha explicado toda a liturgia


do ritual, mas deixara de propósito algumas lacunas que
causavam mil especulações em sua cabeça.

— Espero que tenha lembrado de usar seu plug esses


dias, servo. Fez a chuca?
— Não é da sua conta, esquerdista sem vergonha! —
resmungou, ganhando uma palmada dele.

O Camarada Stalin se aproximou cheio de risinhos: —


É, Leon! Se aliar com liberais dá nisso.

— Alguém te perguntou? Vai procurar alguma coisa


pra se engasgar e me deixa em paz.

Ele deu outro sorrisinho, apontando o martelo que o


dominador segurava: — Cuidado pra não pegar na cabeça!
Sérgio não disfarçou a risada com o comentário.

Seu senhor lhe puxou a orelha: — Tá achando graça,


é? Se eu te entregar pra ele, vai parar de rir num instante.
Você será meu e de todos esta noite. Afinal, não é só uma
peça, mas um meio de produção e deverá ser partilhado
como tal.
— Pensei que me quisesse como sua propriedade
privada, senhor.
— Nós abolimos a propriedade privada. Só há
propriedade particular e meios de produção, meu servo. E
você é um pouco dos dois.

— Meio de produção de quê? — Tinha passado algum


tempo com os colegas dele e estava confortável e ansioso
com aquela ideia.

Diante da pergunta, Leon adentrou sua calça com a


mão. Enfiou o dedo em seu cu e o fez gemer ali mesmo,
agarrado ao balcão, diante de quem estivesse passando no
salão com enfeites e bolas de festa.

— O que você produz? O que você me dá, servo?


— P-prazer...

Tirou o dedo de dentro dele, limpando-o na roupa de


grife que Sérgio usava. O coach suspirou, se recuperando e
imaginando como aguentaria aquela noite. Seu senhor
planejara tanta coisa que não sabia se daria conta.
Uma hora antes do evento, a companheira Rosa veio
ao seu encontro na masmorra de Leon. Ela vestia um
espartilho vermelho que erguia seus seios cobertos pelo
sutiã preto de renda e uma saia de couro combinando com
os sapatos. Maquiada e com os cabelos presos num coque à
moda do começo do século XX, trazia uma escova de cabelo
e parecia disposta a usá-la para mais do que o pentear se
fosse necessário: — Está na hora, servo! Tenho permissão
do seu senhor para levá-lo e espero que esteja pronto.
Tinha cochilado até aquele horário. Se espreguiçou,
sentado na cama, ainda de cueca. As calcinhas que Leon lhe
dera de presente continuavam na caixa, assim como as
botas pretas e os braceletes de couro.

Ela o puxou pelos pulsos, o acertando atrás com a


escova: — Que submisso desrespeitoso você é com seu
senhor! O trabalho que vocês, liberais, dão aos outros
parece que nunca termina!
Ria, até ela pegar o kit de enema.

— Dá pra sair um pouco enquanto eu...

Ela puxou sua mão, batendo na palma: — Tem que


fazer na minha frente! É meu dever fiscalizar o estado da
peça antes de entregá-la.

Ter que fazer a chuca na frente de uma dama era


constrangedor pra dizer o mínimo. Quase chorou de tanta
vergonha, mas conseguiu completar a tarefa.
Se limpou e ela lhe deu um banho, esfregando todo
seu corpo: — Que porquinho! Se tivesse se arrumado logo,
não estaria passando por isso!

Aguentou firme a esfregada enérgica dela e


agradeceu quando ela terminou.
— Vista-se! — Ela entregou a caixa com a calcinha
verde fio dental. No cós traseiro dela havia “Bolsonaro”
escrito com letras de metal no enfeite. Apesar de já não
querer ter nada mais a ver com o mito, Leon decidiu que
teria de usá-la na cerimônia. Era pequena e apertada,
deixando-o desconfortável com o volume que ameaçava
escapar dos lados. Calçou as botas brilhantes e os
braceletes e se olhou no espelho: O fio dental deixava sua
bunda toda descoberta, e ela já estava um pouco
avermelhada com os golpes de Rosa. Pensou se aguentaria
todos aqueles comunistas fazendo a festa nele e o quão
prazeroso seria.

Ela borrifou perfume nele e conferiu seu hálito após


escovar os dentes. Arrumou um pouco os cachos no topo de
sua cabeça: — Perfeito! Venha, servo. — Lhe deu a mão e
pegou a outra caixa, ainda fechada.

Às oito horas, Soraya recebia os convidados no salão,


montada com um traje vermelho e amarelo de lantejoulas e
uma capa que ia até o chão com os saltos agulha. O cabelo
colorido e modelado da peruca imitava uma foice e um
martelo, algo que Sérgio jamais pensou que pudesse ser
possível fazer com laquê. A espiava de trás da cortina que
separava a escada do restante do lugar. Tudo tão enfeitado
para que Leon pudesse humilhá-lo não só com a vitória de
seu candidato, mas também com sua submissão total a ele
e aos companheiros. E tudo no primeiro dia do ano.
Ela o deixou com ordens para que se mantivesse ali e
foi procurar os demais. Sérgio controlou o impulso de sair
andando: o salão estava cheio de dominadores e submissos
e ele não usava uma coleira. Se saísse assim, poderia ser
confundido com uma peça sem “dono”.
Apesar desse receio, colocou a cabeça para fora da
cortina, se esticando para olhar melhor. O Companheiro Che
(que não era o Ernesto, irmão de Leon. Esse era funcionário
público apenas) cuidava do churrasco e dos refris, enquanto
o Camarada Mao atacava de DJ, tocando clássicos como
“Moscou” e “Rasputin” e os últimos sucessos do Juliano
Maderada. Via todos os companheiros ali, menos seu
dominador. Na certa ele ainda se arrumava, tão nervoso
quanto ele. Suspirava até se assustar com dedos roçando o
topo de sua cabeça.

— Olha só quem apareceu... — O Camarada Stalin o


encarava, se apoiando na parede, aquele bigode cheio de
malícia. O traje militar simples que ele usava era uma cópia
fiel do pertencente à figura histórica e os detalhes em
vermelho contrastavam com o tom acinzentado do casaco.
— Oi...— O cuzinho de Sérgio trancou.

O dominador o puxou pelas bochechas, acariciando


seus cachinhos: — Tô ansioso pra dividir você com o chato
do Leon. Ele te aborrece muito com aqueles discursos?
Espantado e com as bochechas ainda entre os dedos
dele, falando do jeito que conseguia: — U-um pouco...
senhor...

— Eu não sou de falar, sou de fazer. Se quiser, a gente


dá um jeito nisso. Tenho uma coleira novinha no carro:
coloco ela em ti e o Leon não vai poder dar um pio. Quer?
Paralisou diante de uma proposta tão inescrupulosa,
depois de toda aquela semana de preparativos. Os dois
camaradas não se davam bem, mas que tipo de gente ele
pensava que era?

Antes que respondesse, alguém puxou sua mão. Em


traje de guerrilha e boina igual ao do Che Guevara, Leon
gritou ao outro dominador: — Some daqui!
Stalin nem se moveu: — Ele ainda não respondeu a
minha pergunta.

O dominador o encarou, o olhar fuzilante.

Tremia todo, sem saber o que dizer diante daqueles


dois tiranos vermelhos: — N-não. Minha resposta é não,
senhor Stalin! Eu já sou o servo do senhor Leon.

Seu dominador lhe deu um pequeno sorriso e tombou


o quepe do adversário: — Se manda, Tatá!
Ele pegou o boné do chão e o colocou de volta na
cabeça, erguendo o queixo: — Manda teu sub manter o
pescocinho longe do salão, Lelê.

Assim que ele se afastou, Leon o pegou pelo braço até


a escada: — A Rosa não te mandou ficar aqui? Era aqui que
deveria estar! Se ficasse no seu canto, ninguém te
perturbaria.

— Desculpe, senhor.
— Tudo bem. Não é de hoje que o Camarada Stalin
tenta roubar um sub meu. Ele adora fazer isso — disse,
acariciando seu cabelo: — Você está bonito. E cheiroso... —
Aspirava seu perfume, beijando sua nuca e pescoço.

Sérgio fechou os olhos, murmurando baixo, mas ele


logo se deteve: — Fique atrás da cortina, vou chamar a
Rosa. Ah... — E voltou, lhe dando um tapão na nádega
descoberta.

— Aai! — Leon deixou a mão ali por alguns instantes,


deslizando os dedos por toda a extensão antes de soltá-la.
— Só saia daqui com ela! — Avisou, se retirando.

Dali a pouco, Rosa retornou: — O deixei por poucos


minutos e já arrumou confusão? — Ela também lhe deu um
tapa, no rosto. Não forte para marcar, apenas como aviso.

Baixou a cabeça: — Me desculpe, senhora. Será que


dá azar a gente ter se visto antes da cerimônia?

— Não, não. Isto aqui não é casório de baunilha. — ela


falava, checando os detalhes nele: — Nervoso, servo?
Acenou positivamente, alisando a própria bochecha.

— É compreensível. Dominadores tem vários


submissos, mas um submisso só tem um dominador por
vez. Imagino que ele te instruiu sobre o que deve fazer. —
Ela repassou todas as instruções conferindo se tinha mesmo
entendido: — Você é inteligente pra um bolsominion.
Vamos.
Ela uma corda vermelha e fina por seus pulsos e o
conduziu consigo. Atravessaram as cortinas. Os convidados
se reuniam agora em duas fileiras distintas, saboreando os
refrigerantes, salgadinhos e churrasco com opções veganas.
Reconhecia alguns dos frequentadores da casa, como a
mulher-pônei e os outros dois subs de Leon, vestindo
arneses e exercendo suas funções como na masmorra.
Queria cumprimentá-los, mas Rosa lhe mandou baixar a
cabeça. No meio do corredor formado pelos dois grupos,
Leon o aguardava diante de um círculo riscado com giz
branco.

A dominadora o conduziu ao cercado feito com grades


de isolamento, igual aquele usado para apartar os fãs mais
ardorosos do mito. Se lembrou da estrutura que vira
escondida e sorriu. Leon tinha mesmo pensado em tudo.

Ela fechou a grade com ele dentro: — Ajoelhe-se.


Obedeceu, recebendo uma cuspida no rosto. Os
demais convidados se aproximaram, repetindo o gesto.
Alguns sequer o acertavam, mas ter de ficar ajoelhado com
as mãos para trás e de cabeça baixa enquanto praticavam
cuspe ao alvo, era uma sensação maravilhosa por si só.
Sorria, sentindo a saliva escorrer pelos lados do rosto e
têmporas. Permaneceu do mesmo jeito enquanto todos
voltavam aos seus lugares.

Ao som dos tamborins, o tenor especialmente


contratado por Leon cantava a Internacional Socialista. Bem
afinado, precisava concordar.
Pela terceira estrofe, Rosa abriu a porta do cercadinho
para ele e lhe entregou a caixa decorada. A recebeu ainda
de cabeça baixa e mãos estendidas, na posição ensinada.
Apesar do verso “De pé, não mais senhores”, Sérgio se
lembrava bem do açoite de Leon em suas pernas e bunda
toda vez que se confundia nos ensaios e se mantinha de
joelhos rastejando até ele, ao som da canção:
“Crime de rico a lei encobre
O Estado esmaga o oprimido
Não há direitos para o pobre
Ao rico tudo é permitido
À opressão não mais sujeitos
Somos iguais a todos os seres
Não mais deveres, sem direitos
Não mais direitos, sem deveres
 
Abomináveis na grandeza
Os reis da mina e da fornalha
Edificam tal riqueza
sobre o suor de quem trabalha
O produto de quem sua
A corja rica o recolheu
Querendo que ele o restitua
O povo só quer o que é seu.
 
Fomos do fumo embriagados
Paz entre nós, guerra aos senhores
Façamos greve de soldados
Somos irmãos trabalhadores
A corja vil e cheia de galas
Nos quer a força, canibais
Logo verá que as nossas balas
São para os nossos generais”
Seus joelhos já doíam quando finalmente ultrapassou
a linha do círculo, ficando inteiro dentro dele com seu
senhor. A canção cessou e todos permaneceram em
silêncio, o refletor apontado sobre eles. O calor da luz
aquecia sua pele seminua. Suava a calcinha fio dental de
tão nervoso. Do telão, os pais de Leon vestidos a caráter (ou
seria em couro?) os assistiam direto dos Estados Unidos,
graças a Soraya que transmitia tudo em vídeo chamada.

Estendeu a caixa com a coleira ao dominador.


A cerimonialista leu o juramento: — Este ato de
entrega não é movido pela paixão ou interesse na pessoa
do dominador, mas somente pelo seu livre desejo de viver o
BDSM e o prazer de se submeter a ele?
— Sim... Senhora. — acrescentou depressa o pronome
de tratamento.

— “Jura sempre obedecer e servir incondicionalmente


a seu senhor e dono? Jura, em hipótese alguma,
desrespeitar a hierarquia do BDSM, a menos que sua
posição de submisso com coleira seja desrespeitada? Jura
nunca se aproximar de outra pessoa com alguma intenção
que não seja por amizade, tanto no meio BDSM como no
baunilha, sem a devida permissão do seu senhor e dono?
Jura estar totalmente consciente da liberdade do seu senhor
e dono de possuir outros submissos e encoleirar um ou mais
deles? Jura do fundo da sua alma, que seu senhor e dono, se
assim desejar, poderá emprestá-lo para outro dominador ou
dominadora, que ele ache digno de tal, e que irá tratá-lo
como se o mesmo fosse o seu próprio dono?”

Respondeu, sem titubear: — Eu juro, senhora.


— Entende que é livre pra devolver honrosamente
esta coleira após explicar o devido motivo e que seu senhor
e dono pode retirá-la sumariamente caso ache que você não
tem mais dignidade para usá-la?

— Sim, senhora.

Ela continuou com o microfone abaixado para que


pronunciasse seus votos. O protocolo pedia que ele o fizesse
de cabeça baixa, mas Sérgio o quebrou. Se ia entregar sua
obediência a ele, queria olhá-lo nos olhos. Leon sorriu,
aceitando aquele resquício de rebeldia.
— Deste momento em diante eu, o Servo Sérgio,
entrego em tuas mãos minha vida, meu prazer e minha
sexualidade. Prometo obedecer a todas as tuas ordens e
usar com orgulho a tua coleira.
Assim que terminou de pronunciar os votos, Leon
retirou o acessório da caixa, mostrando-o: era vermelha e
trazia o nome do dominador gravado em letras prateadas,
com um cadeado pequeno pendurado junto a um pingente
de estrela. A chave ficou na corrente que Leon usava, junto
da que abria seu cinto de castidade.

Ele ergueu a coleira sob o olhar de todos os presentes


e fez seus votos ao microfone diante do submisso
ajoelhado, os olhos escuros repletos de doçura ao olhá-lo do
alto: — Deste momento em diante eu, Leon das Dores dos
Santos, o aceito como minha posse. Prometo te proteger,
cuidar e guiar, meu servo.
Após estas palavras, ele a colocou em seu pescoço,
fechando o pequeno cadeado com a guia, uma corrente fina
e prateada segura em suas mãos. Uma lágrima escorreu
dos olhos do submisso. Ousou erguer a cabeça para olhá-lo,
baixando-a logo em seguida. Seu dominador sorria. Ele
secou seu rosto com o dedo e lhe ofereceu a mão para que
se levantasse.

De pé e de frente para ele, Sérgio permaneceu parado


enquanto ele agarrava o cós de sua calcinha de
bolsominion, cortando-a com uma pequena tesoura trazida
por Rosa. Estremeceu, nu perante os convidados. Leon lhe
entregou a outra calcinha da caixa, a vermelha, com o
nome “LULA” escrito atrás. Assim que terminou de vesti-la,
ele lhe deu uma palmada na nádega direita.
O submisso fechou os olhos, apreciando aquele
momento: — Obrigado, meu senhor. — Se abaixou até os
pés dele, beijando-lhe a bota esquerda.

Os convidados aplaudiram. Leon puxou a guia, o


conduzindo de quatro numa volta por todo o salão.
Engatinhava, se esforçando para fazer o seu melhor. Por
mais que gostasse de desafiar seu senhor de vez em
quando, ver o quanto de atenção e preparação ele lhe
devotara para realizarem aquele momento juntos criava em
Sérgio o desejo de sempre agradá-lo e honrá-lo diante dos
demais. Todos aqueles dominadores e submissos os
assistindo com olhares que esboçavam admiração e até
inveja pela sinergia entre eles o envaidecia. Por mais que
Leon tivesse outros submissos e mais dois encoleirados,
sabia que era ele quem mais o provocava por ser
exatamente um exemplar do puro suco capitalista.

Quando terminou de desfilar, ele lhe retirou a guia,


entregando-a para Rosa e lhe ofereceu a mão novamente.
Se levantou, conforme Stalin afastava os convidados do
meio do salão. Leon pegou suas mãos, sussurrando: —
Estou gostando de ver, meu servo. Fez tudo direitinho.

Baixou o rosto, corando.


— Preparado?
Inspirou fundo, pensando em todo o esforço que tivera
pra aprender a coreografia: — Sim, senhor. — Se
posicionaram lado a lado na pista de dança.

Ao sinal de Leon, o DJ Mao botou “Pagode Russo” do


Luiz Gonzaga pra tocar:

“Ontem eu sonhei que estava em Moscou


Dançando pagode russo na boate Cossacou”
Deslizavam os pés em sincronia, dando pequenos
tapas nas próprias botas ao som das palmas dos demais
camaradas. Viravam os calcanhares para dentro e para fora,
dando voltas em torno de si mesmos, passando de um lado
para o outro com piruetas, seus olhares de cumplicidade se
cruzando.

Leon se agachou e chutou o ar, bem no estilo de


dança cossaca enquanto ele batia palmas e o pé esquerdo
no chão. Depois, foi Sérgio quem executou o passo,
estendendo os braços para a plateia, o sorriso saindo
espontaneamente com a adrenalina daquela dança
enérgica.

“Parecia até um frevo, naquele cai e não cai


Parecia até um frevo, naquele vai e não vai”
Se colocaram na frente um do outro com as mãos
estendidas como se fossem começar uma valsa. Em vez
disso, viraram de costas e deram-se os braços. Agachados
juntos, executavam o passo mais difícil da coreografia,
chutando o ar rapidamente a tempo de colocarem os pés de
volta ao chão e repetir tudo de novo, girando um pouco a
cada pisada.

Seu coração parecia pular pra fora quando enfim se


puseram novamente de pé, os braços dados e as mãos
voltadas para o público. Os rostos suados e arfantes se
encaravam enquanto a música dava lugar aos aplausos.

Cortaram o bolo e o serviram. Seu senhor sentou


numa cadeira acolchoada e ele no chão, recostado na
parede, as pernas doloridas esticadas. Segurava o pratinho
de bolo enquanto comia, quando Stalin veio cumprimentar
Leon: — Deveria fazer esse liberal comer no chão como
manda o protocolo, camarada.
— Cuida da tua vida, Tatá.

O dominador foi se divertir na pista. Olharam um para


o outro: estavam exaustos. — Quer que eu coma no chão,
senhor?
— Não, fique à vontade. Sou eu o seu dono, não ele.
Tua cara tá vermelha igual um camarão. — Riu, recebendo
um carinho dele.

— Quero dormir, meu senhor. Estou morto e fuzilado.

— Com certeza, meu servo. Vamos esperar só mais


um pouquinho. — dizia, o puxando mais perto.

Recostou a cabeça na coxa dele. Acordou babando


nela, com Leon o cutucando: — Sérgio, acorde!
Lutou para abrir os olhos: — J-já foi todo mundo
embora?
— Já.

— Mas eu nem me despedi! E a gente não ia fazer


aquele negócio depois? — perguntava, se referindo à
tomada dos meios de produção, no caso ele. —Devem me
achar um péssimo submisso!

— Não, todo mundo entendeu. Você tava caindo de


sono, todo mundo cansado, mas não tem problema:
amanhã teremos tempo e tranquilidade o suficiente. Quem
quis se despedir veio, falou comigo e foi embora.

— Mas como, nem percebi você se levantar...


— Não levantei — confessou, incrédulo: — Achou
mesmo que eu ia conseguir ficar de pé depois daquele
espetáculo? Haha! Por mim, ficaria nesta cadeira mais
tempo até que o camarada Fidel!

Ao vê-lo assim, Sérgio entendeu o que o encantava


nele: Leon não estava interessado em seguir protocolos,
mas em se divertir; ele não precisava se exibir com
demonstrações contínuas de dominação: tê-lo ali, babando
em sua coxa depois de uma dança extenuante que ele
nunca dançaria em outro contexto era mais que o
suficiente.

— Vamos pra casa? — Sérgio perguntou.

— Ai, não aguento andar.


— Nem eu.
— Vamos dormir aqui então?

Leon esticou o pescoço: — Na masmorra. Ah, mas tem


a escada!
— E a Laika?

— Deixei ela com a Dona Neusa. De repente a gente


pode pegar aqueles pufes e juntar todos... E fazer a nossa
Kolkhoz.
Fizeram isso e descalçaram as botas, deitando nos
pufes agrupados.

— Tá uma bela Cocó — disse, gargalhando com ele.


Abraçados, bocejava; poderia dormir por mil anos agora. Por
mais que estivesse acostumado a danças complexas como
a do impeachment, a kazachok tinha sido um verdadeiro
desafio.
Leon tirou a jaqueta verde de guerrilheiro e o cobriu
com ela.

— Boa noite, camarada.


— Boa noite, arruaceiro. — disse, descansando no
peitoral amplo dele.
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Sérgio vestiu o arnês, levando algum tempo pra


acertar os buracos onde enfiar as pernas e braços. As tiras
de couro preto contornavam seu peito e desciam pelo
umbigo, deixando um espaço de onde saía seu pênis e
bolas. As coxas eram contornadas por ele na virilha, mas as
nádegas e todo o espaço entre elas ficavam livres.

Rosa o admirava: — Teve sorte em ser encoleirado por


um senhor como o Leon.

Sorriu, assumindo a postura de espera, com as mãos


sobre o genital. Tinha de fazer isso na presença de uma
dama, seu dominador lhe explicara ao apresenta-lo para
seus irmãos de coleira, uma semana antes do evento.
A serva June e o servo Douglas eram posses de Leon
já fazia cerca de cinco anos. Assim que o dono entrou na
sala, os dois assumiram suas posturas, June de vaquinha, de
quatro, comendo uma salada num pratinho disposto no
chão com um sino tilintando na coleira, enquanto Douglas
servia de banco, onde Leon esticaria os pés ao sentar na
poltrona. Ficou observando os dois, sem acreditar em como
suportavam tamanho tédio. Leon lendo “O Capital” em
silêncio, os pés nas costas do homem, a outra mugindo.

Se dirigiu a ele: — Senhor, com todo o respeito, o que


estamos fazendo?

— Já conheceu seus irmãos de coleira? É isso o que


eles gostam de fazer.

— É, mas, quando começa realmente? Quando vamos


fazer alguma coisa?
— Meu servo, se não me interrompesse toda hora, já
teria lhe explicado: é assim que eles me servem. June é
minha vaquinha de estimação. Já o Douglas é o meu
banquinho. Converti eles de carnista para vegana e de ateu
para budista.
— Tá, mas nós vamos ficar parados aqui? Isso é muito
chato!

— Servo, na minha masmorra sou eu quem decido o


que é chato ou não. Eles concordaram em me servir e é
exatamente assim que eu os quero. Quanto a você, é o que
chamamos no meio de “brat”. Um pirralho. Você se
comporta mal de propósito. Esse é o seu fetiche. Respeite o
dos seus irmãos de coleira. — E voltou os olhos para o livro.
— Mas e eu? Vai me deixar parado aqui?

— Pode continuar onde está, mas de pernas fechadas.


Temos uma dama no recinto.
Obedeceu, mas depois de alguns minutos aquela
tarefa se provava mais entediante do que poderia aguentar.
Se voltou para a vaquinha: — Psst, ei! Vai fazer o quê depois
daqui?

Leon o interrompeu: — Shhhiu!

Voltava a fazer silêncio, mas sua curiosidade falou


mais alto: — Ei, você era ateu, é? E como foi sua conversão?

O dominador levantou a voz, sem tirar o rosto do livro:


— Sér-gio! Cale-se! Estou lendo.
— Ele é chato, né, meu? Ainda não me acostumei. —
comentou com o móvel.
— Não me faça perder a paciência!
— Nossa, que medo dele...

Leon deixou o livro na cômoda: — Pelo jeito você não


entendeu o que eu quis dizer com “calado”. Vamos ver se
agora você entende... — Ele foi até a parede cheia de
palmatórias, chicotes e paddlers. Sérgio acompanhava,
apreensivo. Ele voltou com uma bolinha vermelha com tiras.

— Sabe o que é isto, servo?

Sorriu, apontando: — Ah, vamos jogar pingue-pongue?


Ele riu, erguendo as sobrancelhas: — Isto é uma gag-
ball, uma mordaça. Eu te colocar ela pra ver se você
aprende a respeitar o espaço dos outros.

— Mas e se eu quiser falar a palavra de segurança?


— Aí pode fazer esse sinal — Fez um “L” com o
indicador e o polegar: — Ou dar três grunhidos seguidos.

Sérgio aceitou, recebendo a bolinha na boca.

— Acabei de tirar da embalagem. Vou guardar no


armário com suas coisas, você provavelmente terá de usá-la
várias vezes até aprender a fazer silêncio. — Ele terminou
de prender as tiras atrás de sua cabeça.
Parecia apertado, mas não era exatamente, só muito
incômodo. Sua língua ficava comprimida e a bolinha
machucava o céu da boca. A baba escorria dos lados dela, e
após algum tempo, sua mandíbula pesava e doía por ficar
assim. Era impossível fechar os lábios, que começavam a
ressecar. Olhava Leon recostado na poltrona, sem a menor
pressa em tirá-lo do castigo.
June tinha acabado a salada e bebia água de um
potinho no chão. Levou um susto quando ela mugiu baixo.
Douglas continuava firme na mesma posição, olhando-o e
dando uma risadinha.

Ora, se ele não podia fazer nada, esse tal de Douglas


também não! Se levantou para reclamar, ao que Leon o
mandou vir de joelhos. Revirou os olhos, mas obedeceu.
Puxava a calça dele, apontando o banquinho sem vergonha.
— Não entendo uma palavra do que diz, servo. Tem
que esperar eu terminar esse capítulo e desse jeito, levarei
a cena inteira para isso.

Levou a mão até a tira, mas Leon o impediu: — Não


tira — Insistiu, recebendo um tapa na mão: — Não, servo!

O tapa nem foi forte, mas só por não poder falar, tinha
vontade de chorar. O Douglas sorria cada vez mais.

Puxou de vez a mordaça: — Olha aí, ele tá se


acabando de rir de mim!
— Sérgio!
— O que foi?
— Mandei você não tirar isso!
— Mas ele tá rindo, olha! Ela também!
— Eu me entendo com eles depois, mas você...
Mandei você ficar com essa mordaça por um motivo,
bolsominion teimoso! — Ele o pegou pela mão.

— Me larga, Leon! Eu não fiz nada! — Tentava se


soltar, mas isso só fez com que ele o sacudisse mais:

— Eles estavam se comportando bem até você


chegar! Não só atrapalhou a minha leitura, como também a
imersão deles! É por isso que vou ter que te punir.
Arregalou os olhos: — Mas não é justo! Eu tava
quietinho na minha até esse otário...

— Chega, servo! Não vou tolerar você xingando os


seus irmãos de coleira. Venha! — Numa distração, Leon o
soltou. Aproveitou e correu até a porta.
Os outros dois ficaram olhando, como se esperassem
vê-lo apanhar. Se fosse apenas isso, tudo bem, mas não
queria ser a chacota deles.

— Vou ter que ir aí te buscar?

Abriu a porta e saiu de cueca de couro. Os


frequentadores do bar lotado o encaravam. Se escondeu
atrás de uma mesa, torcendo para Leon deixar aquilo pra lá
e só fazer o que tinha de fazer depois que aquele encontro
de submissos acabasse.

Para seu terror, o dominador veio pisando firme no


salão, o chamando. Continuou agachado, até reparar na
bota de couro ao seu lado. Era do companheiro Stalin.
— Olha, um sub perdido! — Ele o ergueu pelo braço:
— É seu, Leon?
— Me dá! — O jeito como falavam dele, como se fosse
um objeto o excitava. Baixou os olhos para o chão conforme
era jogado de um lado para o outro.

Stalin alisava o próprio bigode: — Tem que cuidar


melhor dos teus subs. Estão fugindo de você...

— Vai te catar! — O dominador respondeu,


empurrando o submisso pela escada acima.

Olhava-o, fazendo sua melhor cara de coitado: — Por


favor, Leon...
— É senhor! Me chama de senhor, entendeu! — Ele o
arrastou pela orelha por todo o caminho e fechou a porta da
masmorra com uma pancada.

Esfregava a própria orelha. Parecia que o comentário


do outro dominador só deixara seu senhor ainda mais
bravo: — Estou desapontado, servo! É assim que pretende
me honrar?
Engoliu em seco e baixou a cabeça: — Não. Me
desculpe, senhor... — Estava a ponto de chorar.

Leon passou a mão pelo rosto, inspirando fundo. Ele


dispensou Douglas, que sentou em posição de espera do
outro lado, fingindo olhar o teto. June se deitou agachada
onde estava, fingindo fechar os olhos.
O dominador ordenou: — Venha.
— Não, Leon! Na frente deles não...
— Na frente deles sim! Você me desobedeceu na
frente de todo mundo! Pensa que era pra eu tá catando
submisso meu na minha própria casa?

— Me perdoa! Eu tô arrependido!
— Ah, tá. Agora é hora da sua bunda se arrepender
junto! — Ele pegou uma vareta do porta guarda-chuvas.
Tinha todo um suprimento de bengalas e varas e aquela
estava longe de ser a mais ameaçadora dali, mas Sérgio
não queria saber. O que ele e Leon faziam na masmorra não
tinha que ser da conta de mais ninguém, muito menos pra
risada alheia.

— Não, por favor! Não dá!


— Sérgio, é a última vez. Se você não vier, eu vou te
buscar e você vai apanhar o dobro.

— VERMELHO! — gritou e correu para o banheiro,


fechando a porta. Ficou lá, abraçando os próprios joelhos e
chorando.
Agora Leon com certeza o dispensaria, ele era um
submisso tão ruim que nem aguentava ser castigado na
frente dos outros. Que tipo de submisso poderia ser? Leon
nunca lhe colocaria uma coleira. Cercado por aqueles
pensamentos, estremeceu com a voz dele o chamando e
batendo na porta.

— Sérgio? Podemos conversar?


— Se for pra me bater, não.

— Não, não é pra isso. Você usou a palavra de


segurança. Queria saber como você está.

Deixou que ele entrasse. O dominador o tocou


suavemente no ombro: — E aí, cara? O que aconteceu?
Engoliu em seco. Se contasse, ele talvez nem o
quisesse mais como sub e menos ainda de coleira: — Eu
tava com dor de barriga. É, isso.

Apesar da braveza dele na cena, Leon falava de


maneira calma e controlada agora: — Mentira. Se fosse o
caso, você teria dito. Você tá chorando e com medo que eu
te bata. O que foi? É porque eles estão aqui?

Desabafou: — Não é justo, Leon! Eu quero ser seu


sub, mas não quero que riam de mim. Não quero ser um
idiota que levou a pior pra eles rirem!

Ele sorriu: — É esse o problema? Vem, senta aqui


comigo. — Ficaram lado a lado no piso do banheiro: —
Lembra do que a gente tinha conversado nas primeiras
sessões?
— De como eu odeio suas palestras e não te deixo
falar?

— Não, quer dizer, isso também. Mas o que eu tinha


falado era sobre limites. Todos nós temos que respeitá-los
aqui. É natural não saber ainda quais são os seus, mas você
já sabe alguns a essa altura, hum?
— Gel hot e injeção.
Ele balançou a cabeça: — E agora tô vendo que você
não gosta de ser castigado na presença dos outros.

— Eu não ligaria se fosse na frente de alguém como o


Stalin, mas eles... eles ficam parados o dia todo e querem
me julgar! Me acham um idiota porque vou apanhar.
Ele cruzou os braços: — Ah, Sérgio...

— Me desculpa, meu. Acho melhor pararmos. Melhor


eu desistir. Eu te envergonho. Os outros dominadores riem
de você por minha causa.
Ele balançou a cabeça negativamente e segurou seu
queixo: — Eu não ligo pro que os outros pensam. O Stalin tá
sempre me enchendo o saco, faz parte da nossa dinâmica.
Eu exijo sim, submissão de vocês, mas não ao ponto de
ultrapassar seus limites. Você fez muito bem em não me
deixar te castigar na frente deles, se isso te faz mal. Eu
nunca vou querer que você se force a algo só pra me
agradar.

Suspirou: — Tudo bem você me castigar. Só queria


que eles não rissem.

— Hum, acho que tenho uma solução pra isso. —


disse, lhe explicando bem baixo para que não os ouvissem.
Foi sua vez de rir com a ideia, aprovando-a.

Leon girou a maçaneta: — Espera... — Ele entreabriu a


porta: Douglas e June voltaram correndo para seus lugares.
Esperaram até que os submissos se reposicionassem. Sérgio
voltou a ajoelhar entre eles.
Leon se dirigiu aos três de pé, batendo com a vareta
na mão:

— Novas regras aqui: agora que o Sérgio será minha


posse e o novo irmão de coleira de vocês, quero que saibam
que se estiverem na mesma sessão que ele e meu servo
precisar, vocês apanham junto. Quero os três enfileirados
ali! — Ele apontou pro sofá: —AGORA!

No mesmo instante, as caras de June e Douglas


murcharam. Os dois deram olhares sentidos para o
dominador, indo de joelhos até a cama. Sérgio ia de pé, até
Leon o lembrar de ajoelhar com uma varetada na bunda.
Obedeceu, sorrindo. Voltou a ficar sério assim que o
dominador mandou que se debruçassem sobre o móvel, os
bumbuns empinados.

— Eu não sei por que vocês pensaram que logo eu,


um comunista, não trataria minhas posses de maneira
igualitária!
Os dois tremiam igual vara verde. Era hora de brilhar:
— Vamos, irmãos! Temos que nos revoltar contra essa
tirania ideológica!

A vareta bateu com tudo nele. Logo depois, pegou em


June e Douglas. Leon fazia tudo tão rápido que ninguém
tinha tempo nem de pensar: — Sejam um só agora, na dor!
Insistia, tentando de verdade levantar o moral dos
irmãos: — Vocês deviam se rebelar contra esse ditador
comunista! Ele não pode bater em nós três ao mesmo
tempo!
— Não posso, é? — E tome mais fustigadas. Leon
encerrou tudo com chineladas que deixaram os três em
lágrimas.

June mugia, desconsolada. Douglas parecia um tapete


esquecido na cama em vez de banquinho, debruçado todo
mole. Nenhum dos dois gostavam de dor como ele,
percebia, se sentindo mais que vitorioso ao se manter na
mesma posição, só com o rosto molhado.
— Podem deitar os três. — Leon pegou o gel de arnica
e foi de um a um passando em movimentos circulares.

Na sua vez, ele disse: — Não pense que pode fazer o


que quiser e não terá um castigo proporcional. Eles
apanharam, mas você vai ficar com essa gag-ball até
aprender a não interromper minhas leituras e as cenas
deles. — Ele a recolocou e Sérgio teve de ficar parado mais
quinze minutos com ela. Pelo menos, os outros dois tinham
voltado para suas imersões sem a menor vontade de rir
dele de novo.
Se lembrar disso o fazia ter a certeza do que Rosa
dizia: tinha mesmo sorte em ter Leon como senhor. Ele era
justo. Tinha entendido sua dificuldade em lidar com cenas
em conjunto. Agora, esperava agradá-lo naquilo que em sua
mente, seria uma orgia. Levantou o braço, checando se o
banho tinha mesmo sido suficiente, quando a dominadora
retornou: — Vamos, servo!

Seu cinto de castidade balançava conforme andavam,


os braceletes nos pulsos presos com a corda na mão dela.
Atrás, o plug vermelho que Leon lhe dera tendo o mesmo
efeito de lembrá-lo de por que estava ali, naquela tarde. O
pôr do sol dominava o céu quando chegaram à masmorra.

Sérgio costumava pensar em comunistas como


conspiracionistas que se reuniam em universidades e
reuniões secretas financiadas por milionários com interesses
escusos. Ver o grupo de dominadores que Leon chamava de
“Os marxistas” reunido numa lanchonete símbolo do
capitalismo para confraternizar antes do evento foi uma
experiência um tanto reveladora. Diferente do que pensava,
estavam longe de serem uma massa uniforme: enquanto
discutiam o que cada um faria na cena, eles se entendiam,
mas quando o assunto eram as diferenças ideológicas de
cada um, parecia que nenhuma conciliação seria possível.
— Calado, agente do imperialismo! — Com o bigode
sujo de mostarda, Stalin tentava tomar as batatinhas da
mão de Leon.

Ele puxava de volta: — Traidor da revolução!

Rosa reclamava, a boca cheia de cheeseburguer: —


Vocês são tão infantis!

O companheiro Che cutucava Mao: — Mira! Por eso no


tengo paciencia! — Mao concordava, olhando para os lados
quando Sérgio se inclinou para pegar um guardanapo, como
se esperasse um ataque dele.
— Seu trotskista! — gritou o cosplayer de ditador.

— EU-NÃO-SOU-TROTSKISTA! — Sérgio assistia seu


dominador bater na mesa, irado.

Franziu a testa: — Mas e o seu nome?

— Gosto da sonoridade, só isso.


O rival cruzou os braços: — Claro, Leon...Trotsky!

— CALA A BOCA!
— Militante do PSTU! — Ele agarrou o outro pela gola
da jaqueta e só pararam quando o gerente apareceu. Todo
mundo falava ao mesmo tempo e Sérgio assistia
envergonhado e em silêncio aquela reunião que não tinha
nada da camaradagem que imaginava existir entre os
déspotas vermelhos. Talvez o único ponto de concordância
era o que fariam ao bolsominion arrependido.

Adentrou a sala bem maior que a masmorra de Leon.


Ao fundo, os participantes aguardavam nas cadeiras
dispostas em semicírculo, caracterizados como seus
respectivos personagens históricos. Sérgio inspirou fundo.
Diferente das primeiras cenas com Leon, tinham planejado
tudo com calma, mas ver todos aqueles comunistas o
esperando como se fosse um inimigo capturado fazia seu
tesão subir mais que o índice inflacionário.
Rosa o levou para o meio deles, onde ficou de joelhos.
A dominadora sentou na cadeira vazia da ponta. Leon, que
estava diretamente de frente para Sérgio por detrás de uma
mesinha, se levantou: — Bem-vinda, Camarada Rosa. O
Camarada Tito não quis vir porque soube que o Camarada
Stalin estaria aqui, mas mandou lembranças. Agora que
estamos todos presentes, camaradas e companheires,
daremos início à assembleia de tomada e divisão da peça —
Ele evitava olhar o submisso diretamente, se dirigindo aos
demais: — Camarada Rosa, pode começar.
Ela pegou um marcador vermelho do porta-lápis na
mesinha e foi até Sérgio. Deu uma volta, o avaliando.
Segurou-o pelo queixo, erguendo sua cabeça e marcou dois
riscos em volta de seu pescoço, escrevendo algo em sua
testa. Não tinha como ler, então Leon pediu: — Camarada,
qual o título da vossa Oblast?

— PUTO. — respondeu, sorridente.

Todos bateram palmas. Depois foi a vez do Camarada


Mao.

— Levante-se! — ordenou. Sérgio obedeceu, se


controlando para não rir com as cócegas que a caneta fazia
ao riscar suas costas. Ele também reivindicou seus pés.
Leon também pediu a ele que lesse:
— PARASITA. — declarou, parecendo orgulhoso com a
própria caligrafia: a palavra cobria suas costas de ponta a
ponta.
Foi a vez do Companheiro Che. O gaúcho mandou que
continuasse de pé e retirasse as mãos da frente do genital.
Hesitou, mas obedeceu. O dominador de charuto na boca
passava a caneta bem devagar sobre a região depilada de
sua virilha e acima. Poderia ver o que ele escrevia, mas
estava concentrado demais em se manter parado para isso.
Ele leu, sem tirar o charuto da boca: — CERDO CAPITALISTA!
Assim que o guerrilheiro voltou a sentar, o Camarada
Stalin se levantou e pegou o marcador, cantarolando: —
Como é bom, como é legal, comer cu de liberal...

Leon o parou, com o chicote na mão: — Que pensa


que tá fazendo, camarada? Eu não te chamei ainda.
Ele balançou a cabeça com o quepe, rindo: — E quem
disse que eu tô esperando me chamarem, Lelê?

Vestido como um comandante do exército vermelho, o


dono da peça passou o chicote de leve no bigode dele: —
Coloca o marcador na mesa, Tatá, ou o caldo vai engrossar.

Sérgio via a tensão entre eles, mas nunca tinha


perguntado ao dominador o que acontecia. Mantinha a
cabeça baixa, aguardando ansioso.

Stalin entregou o marcador a ele, resmungando: —


“Misericórdia com o inimigo que se converteu” ... Aff!
Leon levou a mão ao ombro de Sérgio, o virando de
costas para os demais. Parado, o submisso tentava em vão
conter o riso das cócegas que sentia ao ter as nádegas
circuladas.
Stalin se levantou da cadeira: — Eu protesto! Como
secretário geral, tenho direito à metade dessa bunda!
Leon riu: — Não aceito seu protesto!

— O Lenin aceitaria! Eu governava a porra toda


enquanto tu comia a Frida...
— Vai cagar, coveiro da revolução! — esbravejou,
terminando de escrever. Declarou, apontando a letra bem
feita: — GADO.

Stalin ria, de braços cruzados: — Isso lá é ofensa?


— Faz melhor então. — Ele lhe entregou a caneta, o
deboche indisfarçável no rosto. Fosse como fosse, Leon se
sentia vitorioso porque era o nome dele que constava na
coleira do submisso.

Ele terminou, anunciando com grande destaque as


letras garrafais a cobrir todo o espaço permitido na outra
nádega: — PIPI MOLE. Te lembra alguma coisa, Lelê? Uma
certa carta...

Todos riram daquela referência histórica, até Leon: —


Cala a boca e sai daí!

— Depois eu que censuro os outros! — Sérgio achava


que ele ia se sentar, mas o dominador bigodudo enfiou as
mãos entre suas nádegas de surpresa e contornou todo o
entorno de seu cu com a caneta.
Leon riu: — Obrigado por marcar minha oblast,
Camarada.
— Não é desse jeito que eu vejo. Todo território
precisa de uma capital, e esta deverá ser dividida: metade
da bunda dessa peça é minha e metade desse cu é meu.
— Sou eu quem vai tomá-lo hoje!

— Eu digo o mesmo! — Recomeçaram o bate-boca.

Sérgio, que já estava com os joelhos doendo no chão,


reclamou: — Quanto blá blá blá! Quando vocês...

— SILÊNCIO, SERVO! — Leon brandiu o chicote a


centímetros da coxa dele.
Tremeu, se recompondo logo. Já estava de saco cheio
da necessidade de assembleias que esquerdistas tinham.

Stalin alisou o bigode: — Acho que ele esquece o tipo


de tratamento que vocês, imperialistas, gostam. Se me
permitir, posso fazer uma demonstração. — Estalava os
dedos.
Leon deu um sorriso fingido: — Obrigado, mas
dispenso. Mao! Dá umas varetadas nos pés dele.

O dominador com túnica chinesa agradeceu,


mandando aos gritos que o submisso se levantasse e se
apoiasse na cadeira. Virou o rosto para vê-lo pegar a vareta
de bambu e um calafrio o tomou ao pensar na dureza dela.
— Pé direito! — gritou ele.
Sérgio obedeceu e o bambu assobiou pouco antes do
impacto final no meio da parte macia de sua sola. Apertou o
encosto da cadeira, se amaldiçoando ao tentar pisar
novamente no chão. Encarava seu dominador com
arrependimento, mas Leon permaneceu com os braços para
trás, assistindo o colega mandar erguer seu outro pé.
Obedeceu, recebendo a pancada. Nunca imaginou que
pudesse doer tanto.
— Não vai dar um Grande Passo à Frente sem se
lembrar de mim agora! — declarou Mao para sua face baixa.

Sérgio fungou o nariz, se ajoelhando.


Ao ver isso, seu dominador comentou: — Agora você
se ajoelha rápido. Irá nos interromper novamente, servo?

Balançou a cabeça, encarando o chão: — Não, senhor.


— Deixava as lágrimas escorrerem, torcendo pra que
tivessem pena e maneirassem.

Eles voltaram a falar entre si, o ignorando totalmente.


Isso era reconfortante porque dava-lhe tempo pra se
recuperar da dor nos pés.

O doutrinador desfez a roda e anunciou: — Agora, a


peça nos lerá um trecho do Manifesto, camaradas! — Ele
empurrou o panfleto contra o nariz do submisso ajoelhado.
— Lerá de forma clara e em bom som. — acrescentou diante
do seu suspiro de tédio.
Encarou o texto, notando uma série de mudanças
feitas com corretivo e caneta. Soltou um risinho.

— Que foi, servo? Acha que estou pra brincadeira


aqui? Se rir, vai apanhar de novo. Agora, leia em voz alta.
Obedeceu, tentando se controlar: — “Um espectro
ronda MEU CU. O espectro do comunismo.”

Todos gargalhavam. O texto marcado não era muito


longo, mas quanto mais eles riam, mais difícil ficava se
manter sério. Mao segurou o panfleto para que continuasse
lendo conforme o erguiam pelos braços e pernas, o
suspendendo de bruços com correntes penduradas no teto.
Seu coração batia rápido, mas não queria parar aquele
espetáculo por nada no mundo: — “Os comunistas repudiam
todo e qualquer ocultamento de suas posições e EREÇÕES.
Eles declaram abertamente que SUAS GOZADAS só podem
ser alcançadAs mediante a derrubada pela força de TODO
GADO BOLSOMINION. Que as classes dominantes tremam
ante a revolução FETICHISTA. Trabalhadores de todo mundo,
FODAM-ME! — Assim que terminou de dizer, os
dominadores agarraram suas respectivas oblasts, tudo ao
mesmo tempo.

Sérgio gemia, fechando os olhos ao receber o tapa de


Rosa, arranhões de Mao em suas costas, beliscões de Che
em suas bolas. Stalin mordeu sua nádega direita,
arrancando um grito dele. Leon chicoteou a outra assim que
ele e Che se afastaram. Inspirou fundo, sentindo todo o
controle escapar dele. Leon cedeu a chave ao guerrilheiro,
que rapidamente o destrancou, puxando seu pau para fora.
Quase no mesmo instante, Stalin desenterrava seu plug,
cuspindo no buraco exposto. Sabia que tinha sido ele
porque Leon o empurrou, xingando e cuspiu por cima.
Estremeceu, com medo deles se empolgarem demais na
briga, mas tinha mais com que se preocupar porque Mao
começara a acender velas coloridas em suas costas,
pingando devagar a cera quente em sua pele.
Gritou, levando outro tapa de Rosa: — Chupa minha
buceta, seu verme! — Ela empurrava a genitália contra seu
rosto. Lambia a camisinha dela, quase mordendo a própria
língua quando percebeu Stalin e Leon a abri-lo juntos, cada
um com um dedo enfiado nele.

— Vamos ver quem vai fazer esse liberal suplicar! — O


rival de seu dominador provocava.
Tanta coisa acontecia nele que a punheta com cubos
de gelo do Companheiro Che quase passou despercebida,
até Sérgio olhar para baixo e perceber que ele fazia isso
com os próprios pés.

— Las manos do Che são uma coisa à parte,


literalmente — comentou Stalin: — Só los mejores as
merecem. Mas tu tá punhetando fraco ele, Companheiro!
— Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura! —
Che respondeu, se movendo mais, deslizando o espaço
macio da sola dos pés em sua pica. Era delicado apesar de
bem pouco ortodoxo. Ele aproveitava para lamber a cabeça
de vez em quando, puxando e torcendo suas bolas de leve.

Gemia quando Stalin veio enfiar a língua em seu


ouvido. Inclinou a cabeça, ouvindo-o perguntar enquanto
mordiscava seu lóbulo: — Tu quer a “revolução decadente”
do Leon, ou o “comunismo todo num só cu”?
Sérgio olhou para o dono: — Meu senhor saberá o que
é melhor pra mim.
— Como eu disse, não sou trotskista, aliás eu nunca
fui realmente!

— Ah tá. — Stalin comentou.


— Eu tava sendo cooptado!

— Conversa...

— Escolho “Comunismo num só cu”, é claro!

— Porra, Leon! — Sérgio exclamou. Só porque tinham


combinado, não significava que não reclamaria. Rosa e Mao
deram licença para que o companheiro Che saísse debaixo
dele, deixando-o já duro. Os outros dois empurraram uma
espécie de divã para baixo do corpo suspenso do submisso.
Leon deitou nele, ficando de frente para Sérgio e o
trazendo para junto de seu peito: — Tá na hora de ver a
boiada passando, meu servo! — comentou, alisando seu
rosto suado e tomando seus lábios.

Com as mãos ainda suspensas e esticadas assim


como os pés, o submisso sorriu, oscilando da surpresa à dor.
Leon meteu primeiro, a maior prótese que tinha. Grunhiu e
inclinou a cabeça, apoiando-se no ombro dele.

Leon se movia devagar, as mãos agarrando com força


suas costas doloridas pelas queimaduras com cera,
pedacinhos dela caindo conforme se moviam.
A Camarada Rosa agora masturbava o Companheiro
Che, que fazia o mesmo com o Camarada Mao, se
revezando entre as carícias e os beijos. Sérgio já voltava a
arquejar de prazer, quando Stalin se posicionou atrás dele,
segurando suas nádegas machucadas. Ele apertava bem o
local da mordida e da chicotada, pincelando o pau em seu
rego já preenchido por Leon.
O pau de seu dono era grande, mas o de Stalin não
ficava atrás... Berrou como um bezerro no matadouro. Sabia
de tudo isso, tinha concordado, podia usar a palavra de
segurança, mas nada disso lhe vinha à mente. A consciência
era uma ideia vaga quando se tinha dois caralhos enormes
tomando cada centímetro do cu dele. Fechava os punhos
presos, os pés esticados e tremendo: jorrou na barriga de
Leon, o gozo morno escorrendo entre eles.

De olhos fechados e arquejando, sentia o beijo dele


em sua testa, mas ele logo parou e gemeram juntos com as
investidas de Stalin. Ele metia rápido, comprimindo ainda
mais o pau do outro dominador contra o cu do submisso.
Não demorou para que ele urrasse de forma um tanto
teatral, a reclamação de Leon vindo logo depois:
— Goza nele, porra, não em mim!

— Gosto de marcar o que é meu. — ele disse,


sacudindo o pau perto do rosto do colega deitado.
Sérgio suspirou aliviado por ele ter saído, apesar de
desejar que tivesse durado mais. Encarava os dois,
pensando como seria uma cena entre aqueles dois
comunistas safados. Eles não deixaram para sua
imaginação: Leon beijou seus lábios trêmulos e cheios de
baba, saindo de dentro de si e indo até o outro dominador.

Eles se atracaram na sua frente, o Doutrinador


chupando a língua do Ditador, que agarrava a bunda dele e
as coxas. Leon o puxava pelo saco, e Sérgio assistia a tudo
dependurado, todos os membros dormentes. Era como se
estivesse fora de seu próprio corpo, mas também conectado
a ele como nunca antes. Como um bicho, mente e corpo
unos.

No colo de Stalin, Leon ordenou a Rosa, Che e Mao


para soltá-lo. Devagar, eles o baixaram até deitar
completamente no divã. Soltaram suas mãos e pés, os
massageando e aplicando outros cuidados. Rosa perguntou
se ele estava bem, se precisava de algo.
— D-dormir. — Só conseguia dizer isso. Ela o apoiou
gentilmente no colo, lhe fazendo um cafuné e alisando suas
bochechas com as marcas dos dedos dela ainda aparentes.
Mao fazia o mesmo em seus pés com um pouco de óleo,
enquanto Che o passava por suas costas para remover a
cera endurecida. Era como um Pietá completamente
deturpado e pornográfico. Em cada cuidado deles, sentia a
compaixão e a entrega.

Leon e Stalin pararam de se agarrar e cada um pegou


um chumaço de algodão e álcool para limpar os ferimentos
nele. Stalin contemplava a porra que ainda escorria de sua
barriga, passando a língua nela antes que Leon a limpasse.
A competição entre eles parecia nunca acabar.
— Chega, estão me torturando! — reclamou das
cócegas que lhe faziam durante a limpeza.

— Que liberal fresco, meu Deus! — Stalin lhe roubou


um beijo dos lábios, o bigode grosso arranhando seu nariz e
lábio superior.

Leon o empurrou para o lado, fazendo questão de


beijar o submisso logo em seguida. A barba por fazer dele e
o espetava também, mas Sérgio concluiu que, com certeza,
preferia ela. Ele fez carinho em seu rosto cansado,
refazendo todos os elogios e palavras de apoio: — Você teve
tanta confiança em mim, servo. Está feliz?

Meneou positivamente. Ele lhe ajudou a sentar e lhe


deu água e um isotônico. Depois o deitou em seu colo,
acariciando e brincando com seus cachinhos. Descansaram
por cerca de meia hora.
— Você tá suado, meu querido servo. Precisa de um
banho. — Leon afastava sua cabeça cuidadosamente de
cima dele, se levantando.

Sérgio olhou para o cooler cheio de bebidas ao lado e


para duas as garrafas de água vazias. O dominador se
movia devagar e sabia o porquê. Stalin tentava dar um
susto nele, fingindo que o acertaria na barriga, mas Leon o
ignorava, esperando que o submisso terminasse de sentar
no divã.
— Pronto? — perguntou.
Concordou, sendo puxado por Stalin: —Vai começar a
Operação Leva Jato! — O levaram para o box, espaçoso
como um banheiro coletivo.

O Camarada segurava sua cabeça no instante em que


Leon se colocou à sua frente, esfregando aquela piroca
acima de sua testa: —Ah...
Sérgio fechou os olhos, recebendo aquele jato grosso
e amarelo claro dele, a urina de Leon caindo como uma
chuva dourada e quente sobre si. Stalin lhe puxava os
cabelos, fazendo com que abrisse ainda mais a boca.
Lambeu os lábios, saboreando-a. Era salgada, mas a
sensação superava qualquer desconforto que pudesse ter.
Tremeu, o cheiro de Leon se impregnando nele, marcando-o.
De cabeça baixa, sorria sob os aplausos dos demais
dominadores.

Seu dominador o envolveu numa toalha do atual


presidente eleito.
Fez menção de abrir o chuveiro. Ele segurou sua mão:
— Bebi uns cinco copos d’agua por você. Quero que vá pra
casa com meu cheiro, que durma com ele e só tome banho
amanhã.

Sérgio suspirou, totalmente tragado pelo olhar dele e


pela forma como o dominador mantinha seu pulso apertado
entre os dedos. Sabia que poderia fazer exatamente o
contrário assim que chegasse em casa, mas ter a urina
daquele homem sobre si, marcando-o por todo o caminho
que teria do estacionamento até lá, era excitante demais
para desobedecer.

— Sim, senhor. — Se enxugou, trêmulo. Vestiu a


camisa formal e a calça guardadas previamente e penteou
os cabelos, o cheiro saindo deles toda vez que se mexia.

Leon se aproximou para tirar sua coleira e substituí-la


pela versão baunilha, uma corrente de ouro simples, mas
Sérgio recusou, mostrando que a gola da camisa, quando
abotoada, totalmente a escondia.
— Você sempre me surpreende, gadinho gostoso. —
ele murmurou, passando os dedos por seu pescoço
aprisionado.

Pegou o celular do tripé, conferindo a filmagem. Tinha


ficado ótima. A princípio, Leon o aconselhara a não
gravarem, mas Sérgio insistiu; se ia fazer um surubão
daqueles, queria ter ao menos uma recordação pra olhar
depois.

— Coloca uma senha e criptografa o celular pra ficar


mais seguro. — Leon instruiu.

Stalin mostrou como se fazia: — Agora, só se você for


burro e esquecer o celular com a tela aberta por aí! — o
ditador comentou.
— Sem chance. Tá proibido vazamento! — disse,
tirando risos do grupo.
Ajoelhado, se despedia dos senhores beijando as
mãos de cada um. Leon o fez se levantar, seus pés ainda
doloridos. Ele lhe deu um beijo de língua e depois vários
chupões no pescoço. Como ele tinha coragem de fazer
aquilo depois daquele banho de xixi, não sabia, mas curtiu.
Colocou os óculos escuros e saiu do clube, olhando os
arredores. O carro que viria buscá-lo estava a caminho,
porém sempre que alguém passava perto, sentia um
friozinho na barriga, imaginando se poderia sentir o cheiro e
saber... que ele era de alguém. Era de Leon.

— Boa noite, Seu Frazier! — O vigia do


estacionamento ao lado o cumprimentou, apontando a
lanterna para seu rosto e levando um susto.
Se lembrou dos insultos riscados nele e tapou a testa,
cumprimentando-o de volta: — Essa rapaziada sem noção...
A gente não pode nem ter um porre que eles aproveitam e
fazem o diabo. Escolha seus amigos com sabedoria!

O homem lhe dava um sorriso amarelo enquanto


Sérgio finalmente abria a porta do uber. Repuxou o capuz do
moletom e os cachos de cabelo para que o motorista não
visse a palavra, torcendo pra que também não tivesse
olfato. Ele abriu as janelas: — Noitada, né?
— Ah, sim. — Colocou a mão na testa, pensando que
tinha feito merda em não esperar Leon ir embora com ele.

—Dor de cabeça? — ele perguntou.

Respondeu depressa: — Sim.


— Pior vai ser amanhã! — ele disse, casualmente.
Sentado do jeito que dava, Sérgio teve que concordar: a
ressaca seria homérica.
Suspirou ao passar pelo portão do condomínio.
Pensava apenas em dormir dois dias seguidos e nunca mais
tomar banho, até que a visão do carro de Camila
estacionado na frente de sua casa o tragou de volta para a
realidade.
Capitulo 10 - A fraquejada
 
Teve medo, muito medo. Droga, porque sua mãe tinha
que ter dado a chave àquela tonta? Meu Deus, e se fosse
uma armadilha dos irmãos dela? Se confundia ao pagar o
motorista. Ela com certeza o via pelo circuito de segurança.
Pensou em ir embora, largar tudo. Mas até quando ficaria
fugindo?

Entrou devagar, não encontrando, porém, nenhum


miliciano entocado na sala nem nos demais cômodos. Subiu
e se deparou com ela, debruçada no vão da porta do seu
quarto, numa camisola e lingerie verde e amarela.
Bradou: — Camila, saia agora! Cê tá invadindo minha
casa!

— Que isso, Mozão? Não tá feliz em ver sua Totosa? —


Ela se jogou sobre ele, tentando beijar seu pescoço e boca.

— Para, Camila! — Empurrava-a, mas ela insistia:


— Perfume novo, é?

Sérgio lhe deu um sorrisinho, segurando firme seus


pulsos: — Acredite, não vai querer saber. Agora, devolve as
minhas chaves!

— Vem pegar! — Ela as enfiou no meio do decote de


plumas verdes.
Suspirou, cansado e sem paciência pra aquela
palhaçada: — Me dá, Camila, ou chamo a polícia!

— Chama a polícia, Mozão! Aqui a polícia! — Ela


colocou um quepe na cabeça e Sérgio reparou no monte de
brinquedos sexuais jogados em sua cama. Tinha todo tipo
de coisa ali, objetos que ele nem sabia pra serviriam,
inclusive uma pirocona verde e amarela inflada. Gigante
pela própria natureza, ela batia no teto do cômodo.

— Resolveu deixar de ser santa? Para, vai! Você não é


assim!

— Mas eu posso ser! Por você, Mozão! Me fode! Faz o


que você quiser comigo! — Ela se esfregava em seu peito
como uma gata possessiva.

Segurou as mãos dela, pedindo num tom quase


carinhoso: — Vai pra casa, vai. Seus pais devem estar
preocupados.

Ela o puxou pela roupa, gritando: — NÃO, NÃO! —


Àquele ponto, Sérgio teve certeza que ela estava bêbada.
Se envergonhava por vê-la num estado tão deprimente. No
esforço de apartá-la de si, ela rasgou sua camisa, revelando
a coleira em seu pescoço e o nome gravado nela.

— Leon? É esse o veadinho? Que foi, a piranha da


***** não foi o suficiente?!
Reagiu: — É Leon o nome dele, não esse!

A ex-noiva voltou a unhá-lo: — Tu tá me traindo com


um travesti, Sergio? Um travesti?!!!
A conteve com esforço: — Ele é um homem e você vai
respeitá-lo! Não temos mais nada entre nós, Camila!

O rosto bravio dela vertia lágrimas sem parar, igual


quando lhe dissera aquilo da primeira vez. Parecia que ela
não tinha ainda enfiado na cabeça que o noivado deles
estava mais morto que certas carreiras políticas e gurus da
internet.

— Tentei falar com você, milhões de vezes, mas você


não me escutou! — Pensando na história que ela lhe
contara, todos os namoros que não davam certo nunca,
Sérgio não conseguia evitar se penalizar por ser mais um a
passar desse jeito pela vida dela: — Não fica assim. Você é
tão bonita, pode encontrar um homem que te valorize, que
seja um bom conje.

— É cônjuge, idiota! — Ela interrompeu o choro quase


infantil, limpando o rosto com desprezo: — Não acredito,
depois de tudo, trocada por uma aberração dessa... Ele nem
sequer é homem de verdade, Sérgio! Tu tá me trocando por
uma mulher com cara de homem!

Ver como ela passava fácil de uma torrente de


lágrimas pro deboche mesquinho o chocava, mas não
permitiria que ela continuasse falando assim de Leon.
Ajeitou a coleira em seu pescoço, deixando bem claro: —
Ele é homem sim, meu dono! E você não tem o direito de
falar assim dele!

— É isso? Vai acabar o noivado e me deixar igual uma


palhaça, servindo de piada pros outros? E os seus inscritos?
Cê acha que eles vão continuar te assistindo? Vai o que,
ensinar eles a dar o cu? — ela berrava, cada vez mais irada
por sua indiferença.

— Não temos mais nada pra conversar. — Cruzou os


braços, recebendo uma pirocada na cara.

A ex-noiva arremessava os consolos e vibradores,


pegando o pirocão gigante inflável e o usando contra ele: —
TU É UM MERDA! Tudo que você tem foi o teu pai otário
quem deu! E O MEU PAI!

Caiu, tonto. Ela largou o caralho patriótico e puxou um


revólver da bolsa: — Vamos ver se a macho-fêmea vem aqui
te defender, Sérgio!

Estendeu as mãos, tremendo: — C-Camila, abaixa


essa arma!

Ela apertou o gatilho, acertando o computador do lado


dele e depois o guarda-roupa. Se jogou sobre ela, desviando
a mira para o chão.

A garota deu um gritinho, finalmente soltando a arma.


Catou o 38 ainda quente, tirando o que restava das balas e
jogando longe. Arfava, com as mãos na testa: — SUA
MALUCA!
— Eu te amo, Sérgio! — Ela o agarrava com olhos
lacrimejantes.

— Isso não é amor, é uma doença! Você não passa de


uma menina mimada que não aceita um “não” como
resposta! Mas eu sei do que você precisa — A tirou de cima
de si, debruçando-a em seu colo.

A ex-noiva protestava. Assim que sua mão desceu


com força na bunda dela, ela parou, como que ultrajada
demais até para gritar. Era uma bunda grande, boa de
bater. Falava no mesmo ritmo conforme batia: — COMO.
VOCÊ. TEVE. A CORAGEM. DE. VIR. AQUI. COM. UMA. ARMA?
Camila, você podia ter se ferido! Podia ter me ferido, meu!

— Me solta AGORA, ou eu te denuncio pra Lei Maria da


Penha!

Riu: — Você era contra essa lei há pouco tempo atrás!


Não queria ser uma dona de casa, bela, recatada e do lar,
bem tradicional? É assim que elas eram tratadas
antigamente! — Entendia agora porque Leon gostava tanto
daquilo.

— ARGH! EU VOU TE MATAR!

— Pois não parece! — Pegou a primeira coisa que


alcançou da sacola que ela trouxe: um paddler de
coraçãozinho. Parecia adequado pra aquela patricinha.

—Quer andar armada, é? Pois eu sei que cê não tem


registro no CAC! Tu é colecionadora? É caçadora? É
conselheira tutelar? Então cê não pode andar armada,
Camila! — nomeava as inúmeras categorias que haviam
ganho permissão ao porte de arma. Ela batia os saltos no
chão e o acertava com chutes em seu calcanhar conforme a
surrava com o paddler. Por mais que tentasse, ela não
parecia nem um pouco arrependida, apenas mais furiosa.
A bolsominia continuava a vestir a camisola
transparente. A ergueu, como mais um ato de humilhação
antes de estalar o paddler de novo, deixando uma série de
coraçõezinhos rosados nela: — Você diz que me ama, mas
veio aqui pra me dar um tiro e ainda conseguiu errar! Estou
muito desapontado!

Um pequeno soluço e uma fungada, foi tudo o que


tirou dela. Inspirou fundo. Leon fazia aquilo parecer tão fácil.
Continuou: — Sei que é difícil lidar com o julgamento das
pessoas, mas você precisa ser forte. Você é uma mulher
adulta! Tá na hora de aceitar que nem tudo será do jeito que
você espera!

— Mas eu te amo!

— Já disse, eu não te ... — falava, até se dar conta de


tudo que fazia ali, sustentando o peso daquela mulher em
seus joelhos e tentando incutir algum juízo nela. Não a
amava? Mas como, se estava fazendo tudo aquilo, pelo bem
dela? Não a amava como uma futura esposa, mas como
uma amiga, talvez. Tinham passado tanto tempo juntos, no
fundo não queria que se tornassem inimigos daquela
maneira.

Era tarde: ela tinha desabado em lágrimas,


encharcando sua coxa. Lágrimas tão sentidas, tão doídas
que lhe causavam mal estar. Tinha causado aquilo não com
sua mão, mas com suas palavras. Palavras que sequer tinha
terminado de dizer.

Largou o paddler, endireitando a camisola dela e a


ajudando a se levantar. Ela limpava o rosto borrado de
maquiagem, chorando sem parar.

A segurou pelos ombros: — Eu te amo, Camila, mas


não do jeito que você queria. Você e eu fomos tão próximos.
Podemos continuar sendo amigos, hum? Que tal? —
Estendeu os braços, pronto para acolhê-la com um abraço
aconchegante e, quem sabe, lhe preparar uma xícara de
chocolate quente.

De repente, ela lhe deu um tapão no rosto: — Você


me enganou e ainda tem a cara de pau de tentar fazer eu
me sentir culpada? Cê tá muito mal da cabeça mesmo! —
Ela catou as roupas do banheiro e saiu, largando as chaves
no meio dos brinquedos sexuais em cima da cama.

Sérgio esfregou a própria bochecha, se perguntando o


que teria feito de errado.
###

Do lado de fora do barzinho, Leon piscava os olhos,


sem acreditar no que ouvia dele: — Cara, cê é louco! Tudo
bem que foi ela quem levou os brinquedos, mas um
revólver... Não percebeu o perigo?
— Poxa, eu cresci com arma em todo canto da casa,
no guarda-roupa, no banheiro. Sei lá, nem pensei muito
nisso — falava, pegando sua mão: — Deixa pra lá: fiz as
reservas: Caribe, aí vamos nós! Vai conhecer as Bahamas! E
as Bermudas!

— E Cuba? — perguntou, esperançoso.

— A gente dá uma passadinha lá. — ele disse. Leon


tinha certeza que na imaginação de Sérgio, os dois ficariam
presos na ilha sob os desmandos de um ditador sinistro.
Poderiam usar isso num cenário paradisíaco como aquele,
refletia, planejando uma cena em potencial. Teria de levar
sua roupa de guerrilheiro, é claro. Talvez ele até topasse
vestir uma roupinha de empregada quando chegassem à
Disney. Sorria com aquela imagem mental, quando ele o
chamou de volta: —Aqui.

Ele lhe estendia um envelope grande de papel pardo.


Abriu-o, sem conseguir falar ao ler. Era seu nome ali,
retificado.

— Não reconhece? E tem o seu passaporte. Também


mandei alterar sua CNH. A Soraya me disse que você queria
fazer isso há um tempão.
Não aguentou. Limpou os olhos na frente dele. —
Podia ter me dito, poxa!

— Mas daí não seria surpresa!


Ficou balançando a cabeça e rindo, incrédulo: —Era
um monte de documentos que me exigiram quando fui, daí
tinha as taxas e eu acabei desistindo de retificar — Segurou
a mão dele, seus olhos ardendo pela vontade de chorar de
tanta alegria: — Obrigado mesmo!
Tomaram um sorvete, que era o que poderia pagar
com os trocados que tinha. Não gostava que Sérgio puxasse
aquele cartão de crédito metido pra todo tipo de coisa.
Gostava sim que seu submisso lhe trouxesse o sorvete
enquanto escolhia a mesa em que se sentariam do lado de
dentro, que era mais protegido.
Puxou a cadeira para ele e sentou depois. Cruzou os
braços, olhando o sorvete e pigarreando. Ele rapidamente
pegou a colherinha, servindo um bocado em sua boca.
Como era bom vê-lo se desdobrar pra realizar seus
pequenos caprichos de dominador. Era melhor do que
qualquer dor que pudesse infligir a ele.

De repente, se pegou pensando na história dos


milicianos, de Bulhões e sobre o episódio que tinha acabado
de ouvir: — Cara, ainda tô preocupado. Ela devolveu mesmo
a sua chave? E esse Bulhões que nunca aparece quando é
necessário? Não sei, acho melhor a gente tomar mais
cuidado...
— Vamos pra fora do país, eles não vão atrás da
gente! Eu pago o transporte da Laika também. Se quiser, a
gente nem precisa voltar!

— Acho melhor não. Já vi muita coisa péssima sobre


animais e companhias aéreas. Prefiro nem viajar se for
assim.

— Ah, já sei! Podemos colocar ela num hotel pra pets.


Conheço um muito bom.
— Se for melhor que aquele cinco estrelas do racismo,
estará de bom tamanho. — comentou, percebendo uma
ruga na testa dele, provavelmente irritado com aquela
lembrança.

Pegou a colherinha, lhe servindo um pouco da taça


enorme de sorvete para se desculpar: — Você é cuidadoso,
tenho certeza que saberá escolher bem, meu servo.

O elogio devolveu o sorriso a ele. Deu-lhe carona na


moto até o condomínio e voltou pro apartamento.

Depois de almoçar, começou a organizar os livros que


levaria na viagem, se lembrando de que não tinha saído pra
sua caminhada habitual com Laika. A pobrezinha arranhava
a porta, implorando em ganidos. Já ia ficar fora uma
semana, seu coração partia só de encarar os olhos pidões
dela, a língua enorme lambendo o próprio nariz já úmido.

Pegou-a no colo: — Filhotinha linda do meu coração!


Papai vai viajar, mas volta logo pra te ver! — Ela nunca
tinha ficado num hotel para cães, estava realmente
preocupado. Teria que visitar o lugar com Sérgio pra se
sentir mais seguro, pensou, pegando a guia. A coitadinha ia
ficar uma semana num espaço murado, precisava sentir o
cheiro da rua o quanto pudesse antes disso.
Fazia o percurso de sempre com ela, parando na
farmácia. Precisaria de máscaras novas e remédios para o
caso de sentirem enjoo em algum passeio marítimo. Odiava
ficar enjoado, não queria dar vexame na frente dele. Ouvira
cada piada sem graça durante sua transição que preferia
pagar mil remédios pra enjoo do que correr o risco. Prendeu
Laika no espaço reservado aos cães e pegou a cestinha.
Passava as compras no caixa, lembrando de pegar
mais um barbeador. No instante em que virou a cabeça para
conferir como ela estava, viu o homem encapuzado numa
balaclava, com Laika no colo. Largou tudo e correu pra fora,
mas ele pulou pra moto com um outro, que acelerou.

Perseguiu os dois a pé no meio do trânsito das cinco


horas, desviando junto dos carros e ônibus por um triz.
Arfava, o coração saindo pra fora. De repente, o homem
simplesmente jogou a cadelinha no meio da pista.

— Laika! — Ela gania, desorientada.


Correu a agarrá-la nos braços, sem ver a SUV
avançando contra eles.

O impacto foi tamanho que nem sentiu a queda ao ser


lançado. Deitado, esticava a mão formigante e trêmula para
sua melhor amiga, caída do outro lado da pista, a visão
enturvecendo: —Lai-ka...

###
Em casa, Sérgio organizava os preparativos pra
viagem quando recebeu a ligação de Rosa. Seu coração
parou, a cabeça mergulhada num turbilhão. Ela dizia que
ele ainda estava sendo avaliado, que parecia estável, mas
não conseguia ouvir nada depois daquelas duas frases.
Largou a comida pré-pronta assando no forno, a tv e mais
três eletrodomésticos diferentes ligados e pegou um táxi.
Encontrou o irmão de Leon no corredor, terminando
de falar com o médico. Era o único do grupo além dele
próprio que não usava roupa de couro preta.
— Cadê o Leon, onde ele tá?

Ernesto respondeu, parecendo calmo, apesar do rosto


molhado: — Sendo operado. Ele chegou consciente, mas
muito ferido.
De repente, Stalin se levantou: — Você... — Ele o
empurrou e os demais tiveram de afastá-lo.

Se apoiou no banco, vendo o rapaz chorar enquanto


lhe ofereciam água. Rosa veio até ele, o queixo trêmulo: —
Precisa nos ajudar. A Laika morreu. Foi atropelada junto com
ele.
Sentia muito por ela, mas queria saber era dele e
ninguém lhe falava nada direito, merda: — O Leon tá muito
ferido como? Pode falar, eu aguento!

— Ele tá fora de perigo, mas não sabemos como


contar a ele. Estávamos esperando você chegar.

— Eu?

— É o namorado dele. Ele vai precisar ser muito forte.


Vai precisar muito do nosso apoio.

Franziu a testa. Queria se sentir confortável em dizer


que sabia o que fazer naquela situação, mas sentia-se tão
perdido quanto eles. Balançava a cabeça numa negativa: —
Não sei...Vocês são amigos dele a bem mais tempo do que
eu.

— Isso não importa tanto nesse caso. Não parece,


mas o Leon é muito sensível. E pra ele te assumir como
namorado, é porque gosta muito mesmo de você.

Suspirou: — Ele vai ficar desconsolado.

— Na ambulância, não deixaram ela vir junto. Mao


disse que a levamos ao veterinário pra ele ficar mais calmo
e ser examinado, mas ela já estava morta quando
chegamos.

Limpou as lágrimas, contendo um soluço.

Ela segurava sua mão, em silêncio. Olhou para os


demais: Stalin tomava o copo d´agua, trêmulo. Mao
massageava as costas dele e Soraya batia boca no celular:
— Arruma alguém! Tem que ter alguém nessa joça!

— Tem mais uma coisa, Sérgio — Rosa disse, os lábios


contraídos enquanto lhe mostrava a foto no celular tirada
aquela tarde, antes de abrirem a Kama Sutra: na fachada da
casa de BDSM sobressaltavam pichadas as palavras
“PETISTA IMUNDA”.
Seu coração afundou. Não tinha sido um acidente.

— Camila. — Cerrou o punho.


— A Sô tá vendo alguém pra limpar isso antes que o
Leon saia daqui. Mas não dá pra ficar enrolando ele.
Sérgio só conseguia pensar em todos os momentos de
carinho que tinham tido com a cachorrinha. Ela era a alegria
naquele apartamento, aquela que sempre os recepcionava
com a festa que ninguém mais poderia fazer. Como Leon
viveria sem ela? Um aperto o consumia quando se levantou
para falar com ele. Soraya e Stalin ainda o olhavam de lado,
mas permaneceram em silêncio, respeitando o limite de
acompanhantes por vez.
Entrou com Rosa na ala. Levou a mão à boca ao vê-lo:
seu namorado tinha uma série de pontos no rosto e um
grande curativo no lado direito do quadril que dava pra ver
pela abertura da camisola hospitalar que vestia. Na perna
esquerda, as pontas do fixador externo formavam uma mini
tenda com o lençol, o braço esquerdo dele em carne viva.
No outro, cânulas e fios mediam a oxigenação do sangue.
Aparentava dormir, mas ao vê-lo, arregalou os olhos e
moveu devagar os lábios, ainda dopado: — S-Sér-gio... Você
veio. — Sorria com esforço.
Sentou do lado dele, a testa franzida ao ver a
condição dele, sabendo que ficaria pior. Rosa deu a volta no
leito e parou do outro lado, segurando o próprio braço.
Ele perguntou, quase implorando: — Ca-dê...a...
Laika?
Inspirou fundo, procurando calma dentro de si para
dar aquela notícia ao mesmo tempo em que se odiava por
isso: — Leon, você precisa ser forte...
Antes mesmo de terminasse, ele caiu em pranto: —
Não, não... — Tentava se levantar. Segurou a mão dele como
tantas vezes o dominador a segurara para lhe dar apoio,
mas a dor de ver seu amado chorando feria Sérgio como
nenhuma outra coisa no mundo poderia.
Leon fechava os olhos, agarrado ao seu braço e não
tinha nada que pudesse fazer a não ser ampará-lo enquanto
ele balbuciava, balançando a cabeça: — Ela tava comigo!
No meu colo, tava viva quando eu segurei!

— Me perdoa, me perdoa... — Chorava com ele, a fala


embargada e entrecortada pela dificuldade de admitir. Que
desdenhara dos riscos e deixara aquela tragédia acontecer.

Rosa se aproximou, acariciando de leve o cabelo e o


rosto dele: — Ela tava com você sim, mas não resistiu. Sinto
muito, Leon. — Ficaram com ele por mais algum tempo.
Stalin se acalmou e pediu pra entrar com Soraya.

Antes que saíssem, Leon puxou sua mão, quase


tombando o soro: — Por quê fizeram isso? A Laika nem era
de raça. Tava na farmácia, deixei ela amarrada do lado de
fora. Um homem de balaclava pegou ela e correu pra moto
com outro. Eu corri atrás deles e jogaram ela no
cruzamento, no meio dos carros. Aí a SUV azul veio: era
uma mulher dirigindo — Leon pareceu tomar consciência do
que tinha acontecido.

Pegou a mão dele, prometendo: — Isso não fica


assim! Aquela maluca não vai mais nos ameaçar!
Leon baixou o rosto, as sobrancelhas franzidas: — Ela
tava nos meus braços... Ela morreu por mim! N-não tem o
que fazer! — gaguejava, chorando sobre os lençóis
hospitalares.

Lançou um último olhar a ele antes de sair, desejando


que pudesse fazer o tempo voltar e evitar toda aquela
tragédia.

Foi depressa à empresa, marchando até a sala de


Camila. Não podia mudar a realidade, mas havia algo que
podia fazer. Pegou o celular, abriu o gravador de áudio nele
e guardou-o no bolso.
Entrou, batendo a porta atrás de si.

De frente para o notebook, a ex-noiva se assustou por


um breve momento, mas logo voltou a chupar o canudo do
copo de refrigerante como se nada tivesse acontecido, um
monte de embalagens de fast food espalhadas na mesa. O
estômago de Sérgio se revirou ao ouvi-la:
— Oi, Mozão. Tudo bem?

A puxou pelo blazer rosa: — Cadê o seu carro, Camila?


— Na oficina de lanternagem, é claro.

— Sua doente! Assassina! — A sacudia.


Ela se soltou, rindo: — Ah, a mulher-macho morreu?
Meus pêsames.

Mandou o computador no chão com um murro. A


garota erguia as sobrancelhas em zombaria: — Ih, era
novinho. Vai sair do seu salário, Sérgio!
— Quis matar ele, não foi? Confessa! Quis matar ele e
a cachorra dele!

— Ah, então não matei ela? Quem sabe na próxima.


Por mais que quisesse esganá-la, passou a mão no
rosto, mantendo a frieza: — Mandou seus irmãos roubarem
a Laika e atraírem ele pra morte, sua maluca! Como teve
coragem?!
Ela cruzou os braços, balançando a cabeça e rindo: —
Se fossem o Gian e o Gio, aquela piranha tava toda cravada
de bala. Eles só voltavam hoje da Muzema, então mandei
colegas deles fazerem o serviço. Eu tava só lixando minhas
unhas e ela apareceu do nada no caminho. — concluiu, com
o dedo em seu ombro enquanto dava uma volta completa
ao seu redor. — Passei por cima daquele lixo petista?
Se afastou, olhando o chão: — As pichações na Kama
Sutra, foram você também?

— É, fui eu! Pra mostrar pra aquela cachorra petista


com quem ela tá lidando! — Sua ex-noiva gargalhava. A
risada dela se acumulava em seus ouvidos até interrompê-
la, a agarrando e empurrando na direção dos arquivos.
Apertava a garganta dela, encarando aqueles olhos
azuis diabólicos, a expressão assustada aos poucos
retornando para a de escárnio: — Isso, Sérgio. É assim que
vocês tarados gostam, né? Asfixia erótica.
— Se o Leon morrer... Se ele morrer, eu juro que te
mato! — A empurrou, mas ela continuou sorrindo, o cabelo
caído no rosto.
Pensava que sairia impune, mas ia acabar com aquela
alegria dela: — Sabe o que é prisão em flagrante, Camila?
Vai saber agora! — Ela se virou, os olhos arregalados ao vê-
lo sair. Trancou-a por fora.

Ouvia os berros dela enquanto corria com o celular no


ouvido: — Bulhões, vai pra delegacia! Tenho que fazer uma
denúncia... — Passava pelo corredor no momento em que
um braço o puxou enquanto um punho o nocauteava. O
celular rolou para longe.
As faces sombrias de Gian e Giovani surgiram como
dois lobos ao tragá-lo para o banheiro dos funcionários.
Gritou por socorro, recebendo outro soco que manchou a
superfície azulejada de respingos vermelhos.

Segurava o nariz ensanguentado, implorando que o


deixassem, quando os punhos deles arremeteram de novo
contra sua barriga. O agarraram pelos cabelos, acertando
sua testa contra a pia. Caiu, sem forças, com chutes por
todo o corpo. Enroscado em si mesmo como uma bola, nem
enxergava mais, só ouvia: — Vai morrer hoje, traidor!
Gian o ergueu, Giovani preparando mais uma sessão
de pancadas quando um grito agudo ecoou: a servente
tombou o esfregão e correu. Os dois o largaram na mesma
hora, fugindo.
Mal respirava, a dor o consumindo. Se apoiava no
chão, tentando limpar as vistas. Gotas enormes de sangue
se agrupavam no piso branco. Morria?
Alguém retornava. Se arrastou pra debaixo da pia, até
reconhecer a voz aflita de Val: — Senhor Frazier!

— Val... me ajuda!

Ela o levantou até que conseguisse se escorar


sozinho.

— Rápido, me leva pra delegacia!


— Mas o senhor tá todo machucado! — O sangue
escorria do supercílio por todo seu rosto.

Levou a mão a testa, chiando de dor ao perceber o


pedaço de pele pendendo dela e a roupa da funcionária
manchada junto com o terno dele. Andava curvado, a mão
sobre o ventre. O lado esquerdo dele explodia de dor, mas
precisava andar: — ME LEVA PRA DELEGACIA, VAL! É UMA
ORDEM!
Ela o colocou no táxi. Estancava o sangue com a
gravata até ela lhe oferecer um lenço, o pressionando no
nariz. Levou a mão ao bolso, aflito: — O celular! Merda, pare
o carro! Temos que voltar! Volta!
— Não, podem estar armados! Se voltarmos, vão
terminar o serviço!

Concordou, pegando o celular dela emprestado e


ligando para a outra secretária: — Regina! Depreza, vai até
os banheiros e procura meu celular! É importante! Não fala
pra ninguém, entendeu?
Desligou, refletindo que quase não tinha ninguém
dentro daquele lugar em que confiasse, apenas aquelas
duas. O pai de Camila, os irmãos, praticamente toda a
família dela tinha uma boquinha na empresa. A paranoia o
consumia ao perceber como estava ferrado em verde e
amarelo.

Assim que chegou, procurou o delegado presente. O


instruíram a sentar e esperar na recepção, segurando a
gravata listrada agora metade vermelha contra a testa, o
pedaço de pele ameaçando se soltar dela. Estava em
farrapos, mas se lembrar de Leon naquele leito de hospital
lhe dava força pra se manter ali.
Apertava o próprio joelho sobre a calça, observando o
vaivém de policiais e escrivães. Cochichavam no corredor,
disfarçando o olhar. Mentalizava as palavras de seu pai: o
primo Beto tinha sido eleito, ainda tinham alguma
influência. Os Gentile não podiam ser donos da delegacia.
Não se lembrava, porém de quem era o delegado presente.
Torcia para Bulhões aparecer logo, ou Regina ligar avisando
que encontrara o celular dele.

Finalmente o delegado mandou chamá-lo. Era


Palhares o nome. Não o conhecia, mas não tinha tempo
para pensar nisso: o estado em que estava falava por si só.
Sua voz saía anasalada conforme apertava o nariz:
— Tenho uma denúnzia para fazer contra Camila
Teixeira Genti... — falava, parando no instante em que o pai
dela apareceu na sala, junto com Giovani:
— Como vai, Ricardo? E os filhos, tão na escolinha de
judô?

Seu ex-sogro e o delegado conversavam como se ele


nem estivesse ali, enquanto Giovani passeava pela sala com
a arma escondida por baixo do blazer. Seu sangue pingava
devagar, manchando os papéis na mesa. Val olhava deles
para a porta e Sérgio sabia o que ela estava pensando: era
inútil. Nada aconteceria. Era melhor ir pra casa encomendar
sua missa de sétimo dia.
Se levantou, segurando a própria testa e a barriga: —
Vamos, Val. Tem que ter outra de...— No segundo passo que
deu, foi ao chão. Sua vista turvava, aos gritos da secretária.
Uma sirene tocava ao fundo, junto com a gargalhada de
Camila.

###

O quarto de hospital onde Sérgio ficou tinha, além de


uma conta extremamente salgada, ar-condicionado, um
televisor de 49 polegadas e equipamentos médicos de
última geração. Diziam que tinha uma vista bonita também.
Apesar de já poder andar com cautela, Sérgio nunca a via.
Ficava apenas olhando para o teto.

Seus pais também tinham estado ali no dia seguinte à


internação. Tinha sido melhor, já que continuava dopado e
quase não podia realmente expressar o que pensava da
situação. Lambia os lábios finos, suspirando. A lembrança
de Val sentada do seu lado, contando que seu celular não
tinha aparecido o perseguia. Pedira a ela que o informasse
sobre Leon, mas ela ainda não tinha voltado. Estava com as
provas nas mãos, mas o maldito baço tinha que romper!
Uma enfermeira abriu a porta. Virou o rosto ao ver a
visitante.

— Bom dia, Mozão. Dormiu bem?

Fechou os olhos, tentando ignorar a voz dela.

— Que sorte a sua ter ficado justo no quarto do Mito.


Na verdade, fui eu quem deu a ideia. Achei que este lugar
poderia ajudar você a restaurar sua mente. Confortável?
Não respondeu, apenas continuou fingindo estar mais
dopado que o normal.

— Os médicos disseram que sua cirurgia foi um


sucesso. Logo vão te liberar e poderemos seguir com os
preparativos... — ela falava, ligando a tv.

Porém, ao ver o ex-presidente sofrendo uma condução


coercitiva, desligou: — A televisão está muito chata
ultimamente. — Largou o controle, sentando do lado dele.

Já não conseguia mais fingir que dormia, uma vez que


ela estava perigosamente próxima. Seu nariz continuava
dolorido. O rasgão costurado em seu supercílio continuava
inchado, assim como os pontos do lado esquerdo de seu
abdome. Ela se inclinava, quase se debruçando ali. Piscava
os cílios compridos brincando com seu nariz: — A gente vai
ser um casal tão feliz, Sérgio.

Repuxou os lábios fechados.

— Meus irmãos foram muito brutos. Eu briguei com


eles. De verdade. Me prometeram que não vão mais te
machucar.
Fechou os olhos, ainda sentindo pontadas onde levara
chutes. Queria chorar, queria que sua mãe Sônia estivesse
do seu lado, queria poder ver Leon de novo, pelo menos
saber como ele estava. Mostrar pra ele como quase
condenara aquela vaca à cadeia.

— É claro que eu precisei te perdoar antes pra isso e


não foi fácil. Você me humilhou muito, me traindo com
aquela aberração. Ela agora é uma cachorra manca?
— Levanta dessa cama.

— Ah, finalmente! Achei que tinham comido sua


língua, junto com o teu cu. E a viagem que faremos na lua
de mel? Encontrei duas passagens no seu quarto e já liguei
pra companhia aérea pra mudar o nome! Incrível como
aquele bando de comedor de capim se confunde...

— Sua idiota! Pode até fingir que eu te amo, mas não


vai adiantar por que eu não sinto nada por você além de
ódio. Pra que continuar com essa farsa?
Camila acariciou os cachos de cabelo dele: — Mandei
meus irmãos esperarem a mulher barbada sair do hospital.
Até foi fácil descobrir onde ela tá. Eles não são tão
exigentes com a segurança quanto o pessoal daqui. Fizeram
um trabalho fantástico pelo nosso Mito.

Paralisou com aquela ameaça: — É melhor vocês não


fazerem nada contra o Leon! Eu tenho provas! Lá na sua
sala, lembra? A sua confissão. Tá tudo salvo numa nuvem.
Se qualquer coisa acontecer comigo ou com ele, qualquer
conhecido dele aliás, solto toda a merda no ventilador!

Ela se levantou, o encarando em dúvida.


— Sabe quantos anos pega de cadeia por tentativa de
homicídio? E por ameaça? Vandalismo, maus-tratos aos
animais... a lista só aumenta.

— Tá blefando!
Sorriu: — Será? O “mito” já foi. Falta o resto.

— Ela morre se você não casar comigo, Sérgio. Eu


tenho o nome de mentirinha dela, consigo qualquer
informação. É só questão de tempo até aquela piranha
petista atravessar o meu caminho novamente. A escolha é
toda sua, e é bem fácil na verdade.
Ficou em silêncio, o abdome suturado quase abrindo
conforme tentava se levantar. Sem o celular, estava
incomunicável. Pedira às pessoas que se diziam seus pais
para lhe trazerem o aparelho reserva que ficava em casa,
mas os dois achavam que isso “faria mal a sua cabeça”. Se
não estivesse tão dopado, teria quebrado tudo ao redor.
Nem Val, nem Regina entravam em contato e as
enfermeiras se negavam a lhe emprestar um. Ninguém o
salvaria agora.
— Tenho que ir. Bom almoço pra você! — Ela saía pela
porta com a bolsa de grife balançando.

—Camila! Camila! — gritava, quase caindo da cama.


Andou com dificuldade, arrastando o soro atrás de si. A
dondoca se virou, baixando os óculos escuros.
— Eu caso — dizia, segurando o abdome: — M-me
caso com você, se deixar o Leon em paz!

Um pequeno sorriso nasceu no rosto dela: — Ajoelha.

Os pontos ardiam conforme executava a ação, se


apoiando no piso frio.

— Assim é bem melhor, Mozão. — ela respondeu,


fechando a porta.
Baixou o rosto retorcido, gritando de raiva e dor, as
lágrimas caindo. Levava os punhos fechados aos olhos, se
amaldiçoando. Daria até o que não tinha para nunca tê-lo
colocado naquela situação.

Ficou deitado e encolhido ali até a sempre pronta


equipe médica o colocar de volta no leito.

###
Assim que saiu do hospital foi com a secretária até a
empresa, mas seu celular continuava desaparecido. Com
certeza Camila ou os irmãos já o teriam pego, mas não quis
dizer nada porque a ameaça de expô-la era a única coisa
que tinha para defender Leon. Andava pelo lado de fora,
procurava atrás dos vasos de planta e perguntava aos
serventes, mas era tudo em vão. Pisar ali outra vez
reavivava sua memória de quando vira a morte de perto.
Suas contas estavam trancadas por uma ação judicial
movida por seus pais, que o interditaram por sua
“insanidade” evidente. Não tinha dinheiro nem mesmo para
pagar o matador de aluguel mais barato que pudesse achar
e nenhum conhecido se arriscaria a ajudá-lo e provocar a ira
do ex-senador.

Andou pelo corredor do escritório que era dele.


Abrindo a porta encontrou Nestor, o rapaz do design gráfico,
aos beijos com Camila sobre sua mesa. Ao vê-lo, eles
pararam.

Quem poderia imaginar? Desde quando será que


eles... Fechou a porta, enojado com o descaramento e
querendo se ver longe dela o mais rápido possível.

A ex-ex-noiva correu atrás dele: — Se você pode, eu


também posso!

Continuou andando, sem se importar.

— Mozão está com ciúmes...— Ela o seguia, falando


naquela vozinha enjoada: — Mas eu também pensei em
você por esses dias. Contratei uma empresa especializada
em gerenciamento de imagem e redes sociais.
Recuperamos o seu canal, não é ótimo? Enquanto você se
recupera, eles atualizam com conteúdo pré-aprovado por
mim, é claro. A Enrique-se vai se reerguer desse... incidente.

— A internet toda viu minha postagem e os jornais


nas bancas! Você vai o que, calar a boca de todo mundo?

— Compramos todos os exemplares que restavam.


Meu tio é desembargador e me garantiu que qualquer
menção ao ocorrido pelo meio que for levará processo e
será retirada dos buscadores. Como se nada tivesse
acontecido, Mozão. Por que nada aconteceu, certo?

— Eu nunca vou te amar, sua louca! Vou fazer da sua


vida um inferno!

— Prometo o mesmo, a diferença é que eu posso fazer


isso com apenas uma ligação. Quer ver?

Parou e baixou a cabeça, negando enfaticamente. Não


queria derramar lágrimas na frente dela, mas era
impossível.

— Chorando por uma cachorra... — Ela se esticou e


lhe deu um beijo no rosto: — Vou na costureira refazer meu
vestido, Mozão! Deveria escolher outro terno, esse seu está
um pouco surrado, não acha?

Via ela ir embora, a saia farfalhando junto com a


bolsa.

Val o levou até o ponto de ônibus. A secretária, que


normalmente se mantinha calada, o olhava com pena: — O
senhor tá numa cilada feia.
Não tinha dinheiro sequer pro transporte. Seus pais
deixaram a despensa da casa abastecida em sua ausência e
contrataram empregadas que se revezavam nas 24 horas,
mas que eram uma forma de vigiar suas saídas. Se não
fosse por Val, não poderia nem se despedir dele.

Desceram no condomínio popular. Val ficou no banco


do playground enquanto ele entrava. A emoção em falar
com o namorado no celular da funcionária era de dor e
alívio por saber que ele continuava vivo apesar de tudo. A
julgar pela voz dele, Leon sentia o mesmo.

Olhava o jardim ao lado. A pequena pedra com a foto


da cadelinha marcava o lugar em que os condôminos
concordaram que ela fosse enterrada. Leon tinha sorte em
ter vizinhos compreensivos. Deixou uma flor que colhera do
lado de fora e subiu até o andar dele. Suspirava, sem saber
como o encarar depois daquilo tudo.

A porta do apartamento se abriu então.

###
— Oi. — Leon se amparava numa muleta. O fixador
externo saltava de sua perna como um doloroso lembrete
dos últimos eventos.

Sérgio repuxava os lábios, piscando como se


prendesse o choro. De um modo estranho, sentia-se pior por
ver a reação dele do que por seu próprio estado. Depois de
quase uma semana, acordar com vários ferros saindo da
perna já não o afetava mais. O pote de metal vazio no canto
lhe tirava muito mais lágrimas que aquilo.

— Tá tudo bem, cara. Entra. — disse.

Seu namorado fechou o punho, se debruçando na


parede da sala e erguendo a cabeça pro alto. Dava pra ver
como ele ainda se culpava.

Fazia o caminho até a poltrona, sendo barrado pela


cadeira na frente. O submisso a puxou para ele, um tanto
afobado.

— Obrigado. Senta, Sérgio. — lhe disse, se


acomodando e coçando a própria nuca. Tentava passar
alguma leveza a ele, mas o modo como ele se debruçara
sobre os próprios joelhos, como se estivesse à beira da
morte, lhe dizia que seria inútil.

Se não fosse por ele, fosse por si mesmo: deu um


sorriso, se inclinando e tocando-o de leve no local suturado:
— Sua testa tá melhor? Parece ok agora. Na foto que a Val
mandou você parecia uma ameixa estourada.

Ele fechou os olhos e sorriu miúdo. Mas logo voltou a


olhar o chão, perdido. O pedido pra conversarem partira
dele. Na certa, não tinha encontrado o tal celular, mas
pouco importava àquela altura. Seria uma conversa sobre
eles, uma conversa difícil, mas necessária.

Leon engoliu em seco, pensando e repensando em


todos os meses até ali. Quem poderia ter previsto paixão
tão devastadora como aquela? Mais destruidora que quatro
anos de milicocracia, mais que um teto de gastos, mais que
uma Lava Jato.
— Eu sinto muito, por tudo. — A voz dele soava
embargada.

Voltou a recostar na poltrona, num suspiro pesado.


— Não foi culpa sua, cara. — falava com sinceridade.
Por isso mesmo, Sérgio duvidava de suas palavras.

— Chega, Leon! Você diz que não quer que eu tenha


pena de você, mas você me trata assim! É claro que foi
minha culpa! Se não fosse por mim, você estaria bem,
chicoteando todo mundo na Kama Sutra, e a Laika ainda
estaria aqui! Viva!

Permaneceu calado. A quem queria enganar? Também


preferia ter se poupado e o poupado de todo o sofrimento e
nunca ter respondido aquela mensagem de Whatsapp. Mas
não era assim que as coisas funcionavam.

Permitiu que o silêncio os envolvesse. Só ele e os


soluços do namorado. Considerou ótimo que ele próprio
tivesse chorado antes de Sérgio chegar. Do contrário, não
aguentaria.

Suspirou. Era uma conversa tão difícil a que tinham de


ter. Ele ainda trazia a cabeça enterrada nas próprias mãos.
Lembrava do sorriso dele ao executar a kazachok, e de
quando caíram de mal jeito na piscina. Do beijo vermelho
coroado de estrelas. Seu celular tava cansado de tocar “Tu
és o MDC da minha vida”, “Metamorfose ambulante” e “Meu
amigo Pedro” sem parar, e seus vizinhos mais cansados
ainda de escutar.

Passou a mão pelo rosto inchado de corticoide,


encarando os olhos verdes encharcados dele. Parecia que
tinha acabado o mundo. E de certa forma, tinha mesmo.

— Se você quer colocar desse jeito... — Ele ergueu a


cabeça, ouvindo: — Então a culpa é de nós dois. Você por
ter começado e eu por ter ficado. — Droga, o que estava
dizendo? É claro que a culpa é sua Leon, pensava: desde o
começo, não respeitara o preceito da hierarquia dos
dominadores, do amor-próprio. Exigia obediência, mas o
escravo era ele, escravo daqueles cachos, daquela boca
fina, daqueles olhos vivazes e rebeldes. Começou
doutrinador e terminou subjugado. Quantas oportunidades
tinha tido de cortar o contato com ele? Chorava
relembrando a previsão das cartas, de como as ignorara.
Qualquer um podia ver no que aquilo daria, exceto eles.

Ele acenou com a cabeça, fungando o nariz rosado.


Queria tanto ampará-lo, beijá-lo mais uma vez, só mais
uma. Estavam ambos machucados demais até para se
mexerem, tudo só fazia doer mais aquele momento. Não
sabia o que dizer, como aliviar. Como matar algo tão bonito?

Não era fácil perder um submisso. Perder um amor


então...

Percebendo sua dificuldade, o liberal fez o que um


liberal tinha de fazer: — E-eu acho que é um adeus — Sérgio
o surpreendeu, a voz morrendo aos poucos: — Vou me
casar. Com ela.
Contraía o rosto, a pontada na perna sendo o menor
dos incômodos.

— Perdi minhas contas bancárias, meus amigos. Ela


só não fez mais nada porque está com medo que eu tenha
mesmo um backup da gravação. É a única forma de te
manter seguro.
Queria se levantar e perguntar se ele achava mesmo
que o manteria seguro assim, mas nunca faria isso com a
energia necessária. Estava tudo acabado e aquilo era o
velório.

— E você, vai ficar bem? — ele perguntava, sempre no


ingênuo tom de quem acredita na mão invisível do mercado.

Deu uma resposta apropriada, apontando o monte de


caixas espalhadas com livros e pertences que ele
provavelmente já havia notado: — Vou. O pessoal se reveza
pra vir me dar uma mão e meus pais estão voltando pra
ficar comigo. Vou me mudar na verdade. — Tentava
controlar a raiva, mas cada parte daquela frase trancava
sua garganta de tal forma que precisava do dobro de
esforço para falar: — Vou ficar bem. E você?

— Do jeito que dá. Pior que tá... — Parou antes de


terminar aquela frase amaldiçoada.

Sorria, mas por dentro, só queria agarrar aquele


homem e gritar bem alto que não ia acontecer: ele era seu,
só seu e de mais ninguém. Que mataria milicianos e quem
mais se atrevesse a tentar tirá-lo dele. Mas ele era um só
idiota. Dois idiotas apaixonados. Não queria que mais
alguém se machucasse, e muito menos...

Com um suspiro pesado, Sérgio tirou do bolso a


coleira: — Por sorte, tava trancada na mala que fiz pro
Caribe, se não, meus pais a teriam jogado fora. — Ele a
olhou por um bom tempo.

— Sabe que não tem volta depois que cortar.

— Sim — Ele pegou sua mão, virando a palma dela


para cima e a entregou. Os olhos dele lacrimejavam, assim
como os seus: — Sinto muito, Leon.

Se inclinou até a gaveta, apanhando a tesoura de


costura. Por que tinha aquela porcaria ali? Melhor seria
simplesmente fechar a coleira de volta no pescoço dele e
deixar que seu belo e fiel servo fosse ao altar daquele jeito.
O único jeito que ele deveria ir a qualquer lugar.

A ergueu no ar, cortando com dificuldade o couro. O


cadeado inútil caiu entre eles, nome, estrela e tudo.

— Está livre. — Ah, se fosse fácil assim cortar os laços.


Sérgio alisou o próprio pescoço, o encarando.  Esticou a mão
até seu rosto.
Quieto, Leon deixou que os lábios dele o beijassem
uma última vez.

Ele se levantou, segurando o encosto da poltrona,


desnorteado. Murmurou: — Adeus, senhor.
Como última ordem antes dele sair, Leon disse: —
Seja feliz, meu servo.
Ele lhe deu um sorriso magoado, como se estivesse
prestes a reclamar. Leon deveria saber. Que não se podia
pedir por coisas impossíveis, mas esperava que ele, sendo
um bom submisso, ao menos tentasse.

Sérgio fechou a porta, saindo do condomínio e da vida


dele.
Capítulo 11 - “Estão atrás da
nossa hemorroida”
 

Camila empurrava o bem-casado contra sua boca pra


que o experimentasse, mas Sérgio cerrou os lábios e cruzou
os braços. Leon tinha razão, ele era um excelente pirralho.
Ela comeu sozinha, o olhando de canto e lambendo o
próprio dedo: — Será que aquela cachorra comeria?

— Será que tem bem-casado na prisão? — rebatia,


pegando um e comendo na frente dela.
A doceira perguntou, ansiosa: — Estão do agrado de
vocês?

— Mais do que deveriam. — retrucou.


De repente, uma colega dela apareceu. Camila o
apresentou e conversaram, apesar de nas entrelinhas
Sérgio sempre entender que todos os “como você está???”,
“Vocês estão bem???” eram mais que simples cumprimento.
Elas se afastaram por um momento. Olhou o celular
esquecido em cima da mesa. O único celular presente era o
dela, já que desde então não lhe deram outro, nem meios
de obter um. Pegou-o, sabendo que o pin era o aniversário
de namoro deles.

Olhava o Whatsapp, até que uma mensagem ainda


não visualizada lhe chamou atenção. Era um contato
desconhecido, com uma máscara de Guy Fawkes. Zerou o
volume e clicou na thumb desfocada do vídeo, fechando
depressa ao ver o que era.

Seu coração acelerou. Por que aquilo estava ali?


Quem tinha mandado? Pensou no celular desaparecido.
Podia ser qualquer um. Digitou: “Quem é você?” Aguardou
ansioso com o celular escondido embaixo da mesa,
espiando pra ver se elas não voltavam. Eis que apareceu a
resposta:

Anônimo:
Hacker aqui. Adiantando um assunto que
vcs terão de lidar na semana. nada contra
vc, gatinha, mas ninguém melhor que eu
pra te mostrar a verdade sobre o Sérgio
Inspirou fundo:

Camila:
Aqui é o noivo dela falando, idiota! Quem vc
pensa q é??? Se escondendo atrás de um
perfil fake pra tripudiar de mim?
Ficou sem resposta por longos instantes. A doida
continuava no segundo andar da confeitaria, se
empanturrando com amostras.

Anônimo:
Vc pode ser o noivo dela, mas nunca a
amou de verdade
Deu um riso contido. Ah, não podia ser...
Camila:
Nestor? É vc, né? Eu sei q é
Ele parou de responder, retornando depois:

Anônimo:
não sou esse funcionário, nem sei quem é
Camila:
eu não disse q era um funcionário, como
sabe q ele trabalha pra mim?
Anônimo:
Tá bom, Sérgio, vc quer negociar? Pode
resgatar seu celular, eu só quero ter a
oportunidade de mostrar a ela o tipo de
pessoa q vc é. Na verdade, seria ideal
mostrar pra todos, quem sabe assim ela
não desiste de vc? ;)
Por mais tentador que fosse, duvidava que outra saída
espetacular do armário o ajudaria naquele momento. Além
disso, as provas contra Camila estavam nele.

Camila:
Eu quero meu celular, com todos os
arquivos. Onde te encontro?
Anônimo:
Me encontra no estacionamento dessa
pizzaria aqui. Quero 50 mil em espécie.
Recebeu o link do Google Maps, mas sua indignação
superava todo o absurdo que estava sendo aquilo.

Camila:
50 MIL? VC SABE QUE TODAS AS MINHAS
CONTAS ESTÃO BLOQUEADAS! COMO VOU
CONSEGUIR ISSO TUDO?
Anônimo:
E eu com isso? Do or quit, parça! faz isso,
ou eu mando o vídeo da sua suruba pra ela
Queria jogar o celular longe, mas precisava negociar:

Camila:
Vc quer casar com ela? Ou isso tudo é só
pra se vingar de mim? De q lado vc está? Pq
se fizer isso, vai deixá-la ainda pior
Anônimo:
Não penso dessa forma. Eu não tenho
ideologias, não tenho partidos, não tenho
lado, sou apenas um funcionário revoltado
com a injustiça contra a mulher q ama
Camila:
Vai devolver meu celular?
Anônimo:
Se me pagar, sim
Ouvia os passos delas. Teve tempo apenas de jogar o
celular no aquário e correr de volta para o carro. Fechou os
olhos, fingindo dormir enquanto as dondocas procuravam o
aparelho. Ele tocou debaixo d’água por alguns minutos até
apagar, seguido pelo chilique da dona.

Agora tinha algumas horas pra reunir o dinheiro,


mesmo desconfiando que ele já apagara a gravação. Nem
faria sentido todo o esforço, se não pensasse no que sua
noiva poderia fazer contra Leon ao se ver ainda mais
humilhada. Maldito chantagista assalariado! Se o tivesse
simplesmente demitido desde o começo, estaria muito
melhor agora.

Depois de se desviar das acusações dela de ter jogado


o celular no aquário, voltou pra casa e correu com o
computador, relógios e camisas oficiais, oferecendo de
porta em porta no condomínio, mas não conseguiu
arrecadar nem metade do pedido. Só ouviu piadinhas e
coisas como “Tá drogado, Sérgio?” e ameaças de ligarem
para os pais dele, como se fosse um moleque. Pegou os dois
mil que deram no computador ainda com a tela rachada por
tiros e foi até a pizzaria.

Chegou com uma maleta no estacionamento só pra


fazer vista, porque o dinheiro nela mal a preenchia. O rapaz
escondido num canto com as mãos nos bolsos do moletom
se aproximou, olhando para os lados e mandando: — Abre!

Obedeceu, vendo a decepção no rosto dele: — Só


conseguiu isso?
— Tive que tirar pra pagar o ônibus. Ah e pra volta
também! — Pegou uma nota de 20.
Ele embolsou o dinheiro: — Tu é um fracassado
mesmo! E pensar que era meu chefe! Nem um pin decente
usava, 17-17-17... que piada!

— Se gostasse mesmo da Camila, nem pensaria em


mostrar isso a ela. Eu não sou um rival pra você, eu nem
gosto dela! Por mim, vocês podem se pegar à vontade.

— Você não a ama, mas é com você que ela quer


casar. E tu não merece ela, seu puto — ele repetia as
ofensas que escutara no vídeo, inebriando-se com sua
agonia: — Parasita, cerdo capitalista, gado, pipi mole...

— Me dá meu celular!

— Toma! — Ele jogou o aparelho.

Parecia intacto, mas logo confirmou: o desgraçado


tinha formatado tudo. E se duvidasse, até suas nuvens ele
poderia ter acessado. Imaginou-o mostrando a Camila que
era tudo um blefe.

— Vem cá! — correu, mas ele já fugia de bicicleta.


Quão patético era? Se ao menos tivessem sido hackers
russos, como suspeitara inicialmente, mas não! Era um
sujeitinho de terceirizada chamado Nestor que não sabia
sequer servir um café decente.

O dia tão planejado chegara enfim. De frente para o


espelho do quarto, o terno branco como ele, Sérgio dava o
nó na própria gravata, desejando que fosse uma corda. O
livro de Hegel e Chapeuzinho Amarelo o espiavam na
cômoda. Antes, os tinha trancados na gaveta com o plug de
metal e por isso sobreviveram ao expurgo de seus pais.
Fotos de seu computador, roupas, não tinha mais nada que
o ligasse a Leon agora. Talvez fosse melhor, pensava. Não
colocaria mais a vida dele em risco se estivesse longe.

Pegou o plug, imaginando com ironia mil formas de


usá-lo. Será que uma boa pancada na cabeça daquela
biscate seria o suficiente? Ou será que um veneno
irreconhecível na superfície dele poderia dar cabo da perua?

Suspirou, guardando-o no bolso. Sentado na cama,


tocou a capa do livro fechado e o abraçou contra o peito.

— Já terminou aí?

Enfiou-o debaixo de camadas de roupas na mala.


Mesmo sabendo que corria o risco de Camila o encontrar,
não confiava mais em seus pais para deixá-lo ainda que
trancado em casa. — Pode entrar.
Sua progenitora o olhava desconfiada: — Tudo bem,
filho?

Sorriu com as mãos nos bolsos: — Fora a vontade de


morrer, sim.
Ela alisou a lapela do seu terno, dando puxões nele e
tapas mais fortes que o necessário para tirar fiapos: —
Ingrato! Depois de jogar tudo pro alto e torrar seu dinheiro
com patifes aproveitadores, ainda recusa a nova chance
que te damos de seguir em frente. O que você quer da vida,
Sérgio?

— Tudo o que eu quero não está aqui, mãe — falava,


pensando se assim ela lhe daria ouvidos.

A ex-primeira-dama piscou os olhos, disfarçando: —


Agora eu sou sua mãe, é? Agora?

— A senhora... me amou do jeito que pode. Eu


agradeço, mas não quero o que está fazendo. Eu estava tão
feliz. Por que me tiraram isso?

— Sérgio, o doutor já disse: o que você teve foi um


surto psicótico. Não era você naquele jornal, não era você
torrando tudo em Atibaia! Era um demônio que entrou no
seu corpo, que te fez esquecer quem você é e se entregar
ao pecado... — ela falava automaticamente, sem olhá-lo.

— A senhora realmente acredita nisso?

Ela silenciou por um momento, admitindo: — Não,


mas eu gostaria que fosse verdade! É bem mais fácil
acreditar que tem um demônio no seu corpo do que isso! —
Soluçava, com a mão na boca. Chorava da mesma forma
que ao ouvir dele que preferia outra mulher como mãe.

— Me desculpa, mãe. — A abraçou, mais por pena que


por outra coisa. Ela nunca o consolara pelo que haviam lhe
feito, mas Sérgio lembrava do que sua mãe Sônia lhe dizia e
parecia errado deixá-la chorar ao léu. Dona Glória, estava
certa numa coisa: ela o parira. Podia não ter sido a mãe que
ele amava, mas ela se importava do jeito torto dela.
A socialite limpou o rosto inflexível de Botox. Suspirou,
o encarando em silêncio. Devolveu o olhar a ela, ambos
sabendo que não adiantava falar palavras sem sentido.

Ela colocou os óculos escuros: — Tô te esperando no


carro.

Pôs a bagagem na mala da BMW com latinhas


penduradas no para-choque traseiro, a faixa de “Enfim,
casados!” esperando pra ser usada. A dobrou o quanto pode
e enfiou num canto escondido.
O motorista contratado os levava até a igreja no
centro. Ele recebia o dobro pra não conversar e Sérgio até
gostou disso, pra dizer a verdade. A mãe enfiava mais um
comprimido de Diazepam goela abaixo. Ela lhe ofereceu um,
sem saber que ele já tinha cuspido os outros que lhe
mandaram tomar.

— Não beba na festa. Vai por mim, não vai querer


saber o que acontece. Era pra você estar mais dopado que
eu.

Mantinha o olhar fixo em silêncio para os prédios


cinzentos no horizonte. A música no rádio, era uma do
Raulzito. Falava de morte em uma série de questionamentos
que para Sérgio faziam todo o sentido no momento.

 
“Oh morte, tu que és tão forte
Que matas o gato, o rato e o homem
Vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres me
buscar
Que meu corpo seja cremado e que minhas cinzas
alimentem a erva
E que a erva alimente outro homem como eu
Porque eu continuarei neste homem
Nos meus filhos, na palavra rude
Que eu disse para alguém que não gostava
E até no uísque que eu não terminei de beber aquela
noite”
 
Não acreditava em bobagens de premonição, mas um
arrepio o tomou.

— Que coisa horrível, desliga isso! — O motorista


obedeceu a patroa, que alisava as próprias mãos,
parecendo mais nervosa que ele. Pensava se deveria ter
contado a ela sobre a chantagem de Nestor. Com certeza
ela teria arrumado uma solução pra ele, mas no fundo
achava que não valia o transtorno. Leon tinha se mudado
àquela altura, estaria protegido com os pais. Quanto ao que
pudesse acontecer consigo, não achava que poderia ser pior
do que já estava sendo.

A igreja escolhida era uma das mais importantes da


região e, na teoria, não poderia nem estar sendo usada
naquele dia, mas os parentes da noiva e os pais de Sérgio
nunca respeitavam exigências administrativas ou o que
quer que fosse contra suas vontades. Só o que importava
era selar os laços políticos e financeiros das famílias.
Como era sexta-feira à tarde, esperava encontrar o
centro do bairro cheio, mas o que viram ao chegar
despertou em Sérgio um alarme. Tinha muito mais gente do
que o esperado num dia normal.

— O que esse povo todo faz aqui? Não iam cercar a


rua? — a ex-primeira dama do ex-senador se horrorizava
perante a multidão reunida.

Sérgio arregalou os olhos para as centenas de


fetichistas em trajes de couro, desfilando como se o casório
fosse uma parada gay. Seriam amigos de Leon? Não
conseguiu evitar de sorrir, o que foi instantaneamente
reprimido.

Saíram do carro, tentando entender o que acontecia.


— Você não tem nada a ver com isso, tem? — A mãe o
sacudia.

Negou enfaticamente, enxergando cartazes com a


foto de Laika e Leon, assim como faixas pedindo a prisão de
Camila. Tapou o nariz. Um odor fétido se espalhava de
algum lugar no meio da multidão.
Seguranças tentavam formar um cordão de
isolamento junto com guardas municipais, mas num dia de
movimento intenso, tal façanha era impossível. A coisa iria
feder, de um jeito ou de outro.
— Vou ligar pra ela! Isso aqui vai virar um merdaréu!
— Ela mal teve tempo: a noiva chegou de limusine, sob os
gritos dos manifestantes pró direitos dos animais e da turma
da Kama Sutra.
Camila os encarava com cara de quem tinha borrado
as calcinhas, mas precisaria sair do carro se quisesse levar
aquela palhaça adiante.

Sérgio levou a mão à boca, contendo o riso. A


limusine ficou bons minutos parada ao lado da calçada da
igreja, a escadaria larga quase toda tomada por arruaceiros
e curiosos, as palavras de ordem ganhando impulso:

— EIA, EIA, EIA, ASSASSINA É NA CADEIA!

O noivo e a mãe foram pelos fundos e se esconderam


atrás da porta da igreja, observando o que acontecia do
lado de fora. Os convidados que se atreviam a passar no
caminho dos manifestantes eram todos saudados com
chuva de ovos podres, lixo e cerveja. Sérgio acenava com a
cabeça, sem acreditar. Leon não tinha blefado nem um
pouco daquela vez que o ameaçara com um processo: tava
ali a prova do que seria ter o pessoal protestando na frente
de sua empresa. Se entretinha com a corrida da
autoproclamada “nobreza” do país nas escadarias
dominadas pelo populacho. Até seu pai, Ronaldo Frazier
acabou coroado ao lado da terceira esposa, esbravejando
com papel higiênico pendurado na careca: — Vocês vão
pagar, SEUS POBRES, SEUS VAGABUNDOS!
Sua barriga doía de tanto gargalhar. Seu pai o
empurrou pelo caminho, jogando o papel amassado nele. —
Isso tudo é culpa sua, seu moleque! Seu baitola! — Ele
tentava acertar sua cabeça, mas como era baixinho, ficou
por isso mesmo.
Apesar do uso compartilhado de Chanel nº 5 que uma
das convidadas tinha na bolsa, o cheiro era insuportável.
Sérgio, que tinha tudo para ser o noivo mais infeliz que o
Morumbi já tivera notícia, se tornara o mais contente e
risonho, mesmo tendo de tapar o nariz. Nesse clima de
tortura voluntária e coletiva, todos aguardavam a entrada
da noiva, debatendo se ia ou não ter casamento e se valeria
a pena continuarem ali. No entanto, a perspectiva de saírem
e serem novamente bombardeados os fazia permanecerem
onde estavam.

Sérgio suspirava, imaginando como Leon e Stalin se


divertiriam assistindo aquilo. Procurava por eles na
multidão, mas não os via, assim como nenhum dos
Marxistas. Sua noiva continuava encurralada no carro, com
dezenas de fetichistas dançando ao redor dele. Se aquilo
não a fizesse desistir, nada mais faria.
Eis que, mesmo com toda a revolta ao redor, Camila
Teixeira Gentile finalmente pôs o pé pra fora. E o que se
seguiu Sérgio não teria bolado nem em suas mais pérfidas
fantasias de vingança.

Primeiro, foi um saco de lixo que aterrissou na


limusine branca como uma bomba malcheirosa de papel
higiênico, absorventes usados e restos de comida. Depois,
foi a vez de sacolas e mais sacolas com cocô de cachorro. A
noiva corria, desesperada junto com os familiares que a
escoltavam, os ternos erguidos em vão, o vestido branco
saindo cada vez mais de acordo com a dona dele. Junto dela
os retardatários levavam jatos de cerveja ou o que quer que
o povo tivesse em mãos enquanto aceleravam pelas
escadarias.
Sérgio permanecia na porta, sendo empurrado
diversas vezes e se afastando em outras, com a nariz
tapado. Não queria perder o espetáculo por nada no mundo.

Camila terminava o percurso salva da cintura pra


cima, até ser surpreendida já nos últimos degraus pela
figura vestida como um soldado da extinta União Soviética,
segurando um balde enorme:
— ESSA É POR VOCÊ, LEON! — gritou ao virar o
conteúdo dele. Uma onda de tinta vermelha engolfou a
mulher totalmente.

— Stalin? — murmurou, o reconhecendo.


Ele correu para a multidão, levantando o quepe pela
janela da kombi dirigida pelo companheiro Che: — Guerra
aos senhores, paz entre nós!
Camila chacoalhava o vestido, estrebuchando aos
ventos.
Sérgio gargalhava até o pai dela o sacudir: — Você é o
noivo, faça algo!
Se abaixou, recuperando o ornamento que agora era
mais tinta do que flores e tentando conter o riso: — O seu
buquê.

Ela o jogou de volta no chão. Vendo a igreja


empesteada, os convidados ainda piores, a mãe dela
sugeriu remarcar o casamento, o que foi prontamente
recebido com afronta: — EU VOU CASAR! Nada pode me
impedir!
— Pode até casar, só não sei se sai da igreja. —
murmurou.
Ela o empurrou, marchando até o altar decorado com
girassóis.

O padre fez cara feia pra situação geral, mas tapou o


nariz e prosseguiu com os ritos: — Sérgio Cavalcanti Frazier,
aceita Camila Teixeira Gentile como sua esposa?
Olhava-a com aquele véu grudado como uma
tarantela, sem conseguir parar de rir. Ria tanto que o padre
teve de repetir a pergunta. Só parou ao ver os irmãos
sentados bem na fileira da frente, a poucos metros dele.

— Eu acei... — dizia, quando sua própria voz


reverberou nas caixas de som. Eram seus gemidos de
prazer ecoando pela igreja. No telão, ligado de repente, os
corpos nus dele e de todos os envolvidos eram exibidos
diante dos convidados e fotógrafos, que agora tinham algo
para se distrair da própria imundície.
Camila deu um grito. O padre berrava para que
desligassem o equipamento, mas a sala onde ele ficava
tinha sido trancada por fora e a chave desaparecera
misteriosamente, mas Sérgio já sabia: procurou por Nestor,
o enxergando no mezanino da igreja. Ele acenava, sorrindo.

Alguém teria de subir de escada até o telão e puxar o


fio, o que não aconteceria tão cedo, visto que a escada
também sumira naquele dia. Assim, não restava o que fazer
a não ser assistir: um verdadeiro show do pavão.

Recuperado do choque, se desviou por pouco do vaso


de girassóis arremessado por Camila, que ainda tentou
esbofeteá-lo. A empurrou em cima dos gêmeos que já se
levantavam de arma em punho.

Tudo ao redor pareceu se mover em câmera lenta no


instante em que Sérgio desceu a escadinha do altar. Desceu
não, praticamente saltou ela, se espremendo entre os
convidados que tentavam sair e os manifestantes que
queriam entrar. Contou com o atraso que ambas as massas
provocavam e se escafedeu na BMW, o Opala preto
envenenado dos irmãos estacionado bem do lado.

As latinhas penduradas no para-choque se soltavam


conforme acelerava pela pista, buscando a via menos
engarrafada. Num trânsito como o de São Paulo, acabaria
morto em dois tempos, então entrou na contramão de
qualquer maneira, desviando dos carros e buzinando igual
um maluco.
O temível Opala preto não demorou a aparecer no
horizonte do retrovisor. Tinha motor turbo e os gêmeos
sempre se gabavam de sua potência em todos os
churrascos. Eles colocaram os braços para fora, atirando
como se estivessem num filme de gângsteres.

Sua BMW branca era usada e de um modelo


ultrapassado, a mais barata que seus pais aceitaram
comprar para ele assim que tirou a carteira. A conservava
com zelo na garagem da mansão nos Jardins, e o mais
arriscado que fizera com ela tinha sido estacionar na rua
perto da Kama Sutra. Agora, ia de encontro a todas as
barreiras de desvio do trânsito que surgiam, fechando os
olhos por reflexo cada vez que se partiam em sua frente,
pedaços batendo no para-brisa e rolando pelo capô e teto,
tiros zunindo junto.

Àquela altura, a sirene de uma viatura se somava à


arruaça, os solavancos das juntas de dilatação da via só
adicionando ao conjunto digno de um “Velozes e Furiosos”
ft. realidade.
Pegou a ponte Ary Torres em direção à avenida dos
Bandeirantes. Como faria para despistá-los não sabia, mas
se dependesse dele, só pararia quando chegasse a Santa
Rita D’Oeste. Passava sobre a Marginal Pinheiros quando um
tiro pegou no retrovisor frontal. Assustado, não viu a mureta
ainda enfeitada com bandeiras do Brasil.

O mergulho que a BMW deu no rio Pinheiros foi algo


marcante de se ver, para dizer o mínimo. Um catador de
sucata nas proximidades só lembrava do carrão que caiu no
rio e do Opala preto, que desapareceu tão repentinamente
quanto surgiu, comprovando a famosa lenda urbana. Um
taxista até parou pra ver se o ocupante surgia das águas,
mas o carro de luxo desceu com a correnteza, vindo a
afundar quilômetros adiante.

A comoção do noticiário local foi intensa nas duas


semanas seguintes: não bastasse o vexame histórico das
famílias Frazier e Gentile na igreja, a manifestação contra os
“supostos” crimes da noiva e a eletrizante perseguição de
carros, ainda havia a história dramática do suicídio
presumido de um youtuber de finanças cujo nome agora
constava em diversos sites pornôs com títulos como “De
quatro com cinco” e “Surubão comuna”.

Dezenas de buscas foram realizadas ao longo das


margens e bombeiros mergulhadores esquadrinharam o
leito extenso do rio até o Tietê, mas só foi possível
encontrar a carcaça do automóvel, junto com as bagagens
na mala.

O único traço restante do noivo era o terno


ensanguentado e preso na janela quebrada, por onde
provavelmente a água entrara com mais rapidez após a
batida na mureta. Com um mês de buscas, o trabalho dos
bombeiros foi encerrado e o filho do ex-senador dado como
morto. Seu corpo, no entanto, continuava desaparecido e
por isso restava a muitos a pergunta:
Capítulo 12 - “Onde está
Sérgio?”
 

Stalin balançava um pen drive com chaveirinho de


mecha: — Trouxe Gundam pra gente assistir, mas só depois
do telejornal. Temos uma surpresa que vai te animar, Lelê!
Só falta a pipoquinha!

— Tenho medo das suas surpresas. — confessou em


meio a barulheira que o colega de faculdade fazia ao
despejar o milho na panela com óleo.
Che puxou um saquinho do bolso, mas Leon recusou:
— Não fuma essa merda aqui não, cara! Ainda tô usando
antibiótico.

Stalin gritou da cozinha, empolgado: — Liga a tv, Che!


Leon vai ver como se pinta uma vaca de vermelho!

Para surpresa que deveria ser apenas dele, mas foi de


todos, a âncora anunciou logo no início do telejornal:
“Confusão no casamento do filho do ex-senador Ronaldo
Frazier termina em tragédia na Ponte Ary Torres”.

Leon se agarrou ao encosto da poltrona, aumentando


o volume.

A manifestação enchia a tela, a âncora mencionando


o nome de Sérgio: “Após ter vídeo íntimo envolvendo
garotos de programa exposto durante cerimônia de
casamento, youtuber foge de carro e cai no rio Pinheiros.
Buscas continuam no local. Outra versão relata que Sérgio
fugia dos cunhados, como é possível ver por imagens das
câmeras de segurança.”

Ouvia a reportagem falando do acidente, a cena do


carro caindo da pista ficando gravada nele como se fosse
um ferro em brasa. Gritava, sentindo o peito se fechar em
pânico. Seus amigos o seguraram para que não se
machucasse mais.

Na televisão, as reações eram diversas. Testemunhas


contando em choque o que tinham presenciado, as imagens
da manifestação pedindo justiça por ele e Laika ficando em
segundo plano.

A matéria mostrava a comoção na igreja pelo vídeo


íntimo nublado, mas Leon sabia do que se tratava.

— Vocês fizeram isso? — Encarava os amigos em


choque.

— Não, nada disso! — Stalin falou depressa, assim


como Che: — A gente só chamou a galera e jogou tinta nela,
eu juro!

Pela surpresa nos rostos deles, devia ser verdade.


Centenas de menções ao vídeo e ao acidente lotavam as
redes. Ele tinha perdido o celular na empresa a poucas
semanas, concluiu. Berros indignados o atraíram de volta
para a tv: aturdida, a mãe de Sérgio gritava para as
câmeras antes de entrar no carro: “Se o meu filho queria
transar com cinco pessoas o problema era dele! Vocês
mataram meu filho!”

Enquanto isso, o marido dela não fugia da exposição.


Ele limpava o rosto e a careca com um lenço, falando
manso: “O Serginho era muito querido, eu realmente amava
aquele menino.”

Leon balançava a cabeça, indignado. Sem nenhum


critério ou ética, os jornalistas avançavam com aquele circo:
“O vídeo vazado o surpreendeu? Qual era sua opinião sobre
a orientação sexual dele?”

“Tem tempo que a gente não se via, não sei se ele


estava certo ou errado, mas peço a Deus que o proteja!”
declarou o político.

A perseguição aos demais envolvidos continuou noite


adentro, assim como as buscas. Completamente imunda,
Camila fugia dos repórteres como o ex-presidente das
investigações. Os irmãos dela não eram tão ágeis, sendo
surpreendidos enquanto saíam da Enrique-se: “Perseguição?
Que perseguição? A gente só queria impedir ele de se
matar. Infelizmente, não conseguimos.” Giovani Gentile
respondia.

“Mas por que os tiros?” perguntava a repórter.

O miliciano fez uma careta abobalhada. “Aaah...”

“Era pra dar um susto nele, pra ver se voltava à


razão!” respondeu o outro gêmeo, o puxando consigo pra
dentro do carro enquanto o pai deles impedia aos berros a
aproximação dos repórteres: “Acabou, acabou!”

Leon levava as mãos ao rosto, horrorizado. O cheiro


de pipoca queimada na panela deixava o ambiente ainda
mais sufocante.

—Desliga, Che... — Stalin disse, apagando a boca


acesa no fogão.

— Não! Deixa... — pedia, voltando a encarar a


televisão, torcendo para no bloco seguinte voltarem
noticiando que ele estava bem. Que ele estava sendo
socorrido. Que ele estava vivo.

Fizeram plantão na frente do aparelho pelo restante


da noite, até cair no sono e seus pais a desligarem. No dia
seguinte, fez o mesmo e no outro, mas as reportagens
traziam sempre as mesmas informações. Soluçou ao ouvir
do bombeiro entrevistado: “As chances de encontrá-lo com
vida depois de um mês de buscas são mínimas. O corpo
deve ter sido tragado por alguma represa ou duto de esgoto
e ido parar no mar. É a hipótese que estamos trabalhando.”

— Chega, Leon! Você está se torturando assim! — sua


mãe gritou, desligando a tv.

Desabou no choro. Ela o abraçou, chamando o marido.


Só tinha forças para a fisioterapia. A faculdade tinha sido
trancada, já que mal conseguia ânimo para levantar de
manhã.
Soraya, Stalin, Che, Rosa e Mao faziam o possível para
cuidar do clube e tentar fazer o amigo esquecer aqueles
lutos seguidos, mas só a presença deles já era o suficiente
para se lembrar de que parte do motivo daquele destino tão
cruel tinha sido o maldito vídeo. Se pudesse voltar no tempo
e convencer Sérgio a nunca ter feito nada daquilo...

Chorava e dormia abraçado ao “Krig-ha, Bandolo!” por


noites seguidas. Em seus pesadelos, via Sérgio debaixo
d’água, batendo desesperado nos vidros fechados da BMW,
as bolhas rareando. Paralisado, só podia assistir o carro
afundar, levando-o cada vez mais longe. Se descobria
suado, deitado em sua cama, os ferros da perna ainda o
impedindo de fazer o que gostaria, que era sair correndo e
gritando pelo quarteirão até cansar.

Seus pais o levaram a um psicólogo e a uma


psiquiatra depois. Falou de como, às vezes, tinha a
impressão de escutar a voz do namorado, falando.

— E o que ele diz?

— Besteiras, como sempre — respondia: — coisas


tipo, “O bitcoin está em alta, o momento de investir é
agora.” — E isso não era tudo. Às vezes, no meio da noite,
seu celular tocava. O número era desconhecido, mas
sempre o mesmo. Atendia, assustado e aborrecido, mas o
outro lado permanecia mudo. Isso só aumentava sua
paranoia. Seus pais contrataram seguranças para o clube,
mas ele nem pisava na rua e todos tinham medo. O
movimento caiu pela metade nas semanas posteriores ao
seu atropelamento, só voltando ao normal depois de seis
meses.
A doutora lhe receitou um antipsicótico e um
antidepressivo. As alucinações cessaram, mas só o que
conseguia era sentir mais sono. A terapeuta o incentivava a
retomar a rotina com pequenos passos, registros de
pensamento.

Escreveu “Hoje, pensei no Sérgio de novo. Queria ter


tido a chance de dizer a ele que, apesar de ter sido um
bolsominion (e dos mais asquerosos, a propósito) ele não
era tão ruim assim. Eu acho que disse a ele, mas ele não
acreditava. Ele nunca acreditava em comunistas. Queria ter
dito que se ele quisesse, a gente fugiria juntos. Que ele era
um bom submisso. Que era o meu amor. A minha cara
metade. O chão da minha bota. O alvo da minha mão. O
melhor aluno que este doutrinador já teve.”
Amassou e jogou fora. Nunca mostraria uma breguice
daquela pra psicóloga. E o trabalho de ter de explicar tudo
só o desgastaria mais.

Reescreveu: “A gente teve de terminar e eu não sei se


ele morreu sabendo o quanto eu o amava. Queria ter
impedido. Queria ter fugido com ele”.
Alguns dias eram bons, quase perfeitos. Voltara a falar
com os demais submissos à distância, fazendo o possível
para manter suas amizades, assim como com os colegas do
clube e da faculdade. Em outros, porém, só o que queria era
se isolar debaixo de um cobertor. Uma frase, uma palavra,
um cheiro, um som e de repente, lembrava dele e queria
chorar até dormir. O choro ficava represado na maioria dos
momentos, não por frieza, mas por simplesmente não
conseguir com a facilidade de outrora depois da transição.
Nessas horas, suspirava e olhava o teto, sem ânimo.

A retirada do fixador foi comemorada numa pizzaria


com a família. Agora que podia usar uma bota ortopédica,
decidiu fazer o que achava que ajudaria a abrandar aquela
tristeza.

— Quer ir lá? Tem certeza? — Depois do ocorrido, seus


pais não saíam mais de sua cola e quase não tinha um
momento sozinho. Sua natureza escorpiana precisava sentir
que ainda tinha alguma independência.
Comprou uma dúzia de rosas brancas e as colocou
sobre túmulo onde o enterro simbólico de Sérgio havia sido
feito. Era aniversário dele e a data tornava tudo ainda mais
pesado.

Uma senhora apareceu do seu lado. Pensou que fosse


uma curiosa até perceber o rosto dela: — Pro meu filho?
— Sim, senhora. — Nunca imaginaria ficar cara a cara
com aquela megera, mas agora não podia simplesmente ir
embora.

Segurava o arranjo, com medo, mas ela apenas


comentou: — São bonitas pelo menos, pode deixar aí. Me
esqueci de comprar. — ela falava, guardando o isqueiro na
bolsa.
Leon as deixou onde estavam, voltando a encarar o
retrato pequeno na lápide adornada com um anjo em
oração e a frase “Não julgueis, e não sereis julgados”, Lucas
6:37. Parecia apropriado para alguém cuja vida tinha sido
devassada em programas de fofoca por semanas a fio.
Perdera a conta de quantas vezes “jornalistas” tinham
tentado entrar na Kama Sutra e gravar escondido lá dentro.
Seus pais e amigos tinham sido todos abordados em algum
momento e ele próprio só não passou por isso por estar
evitando sair de casa. Isso sem falar nas matérias falsas
noticiando as mais absurdas mentiras sobre Leon: que tinha
virado funkeiro, que estava com Aids, que tinha sido morto
por traficantes, que era um homem cis... Por pior que fosse,
não chegava aos pés da dor de não tê-lo mais consigo.

A madame o olhava de cima a baixo: — Você é um


dos rapazes do vídeo, né?
— Sim. — respondeu, sem se mover. Tinha tanto
direito de estar ali quanto ela.

A mãe de Sérgio balançava a cabeça, dando outra


tragada: — Qual deles?
— O de baixo. Deitado. — respondeu, sem saber por
que. Não tinha que dar satisfação a ela, mas sentia um
certo conforto de ser notado em sua dor. Pigarreou,
segurando as mãos na frente do corpo. Já não sabia mais o
que fazer e queria desesperadamente sair dali.
Ela ergueu as sobrancelhas: — Ah. Deve estar
faturando bastante com tanta publicidade gratuita.

Não podia acreditar no que ouvia. Resmungou, dando


as costas para ela e caminhando devagar em direção à
saída. Já estava quase recuperado, mas descobrira que
correr lhe era bastante custoso agora. Qualquer esforço
maior e sua canela doía sem parar.

— Espera! — Ela vinha atrás dele.

Parou.

— Qual é o seu nome?

Respondeu ainda de longe. Não tinha coragem de


deixá-la falando sozinha, mas também não queria se
aproximar mais.

— Leon, é? — Ela retirou os óculos escuros, sem jeito:


— Acho que ele gostava mesmo de você. No hospital, não
parava de dizer o seu nome enquanto se recuperava da
cirurgia do baço.
Baixou o rosto. Sorriu um pouco e inspirou fundo.

— Quer tomar um café? Tem um aqui pertinho. Eu


pago.
Aceitou o convite. Não devia nada à mulher que
contribuíra para tudo acabar como tinha acabado, mas
tinham em comum o fato de estarem ali pelo mesmo
homem. E por piores que fossem as histórias que ouvira de
Sérgio, ver a mãe dele ali o fazia considerar lhe dar ouvidos.
Como previa, ela logo lhe perguntou se era garoto de
programa. Respondeu que não exatamente, ao que ela deu
um sorriso incrédulo: — Não leve a mal, mas vocês
certamente não se conheceram na igreja e muito menos
num ambiente decente, do tipo que ele frequentava antes
desse carnaval todo!

Forçou o sorriso, numa clara ironia: — E a senhora


conhecia os ambientes que ele frequentava?

— Os bons sim. Eu não podia amarrá-lo em casa,


podia? Não tenho culpa se ele se desvirtuou de repente. Só
queria entender, que tipo de drogas vocês deram a ele pra
do dia pra noite...
— A senhora não entendeu. Ele nunca usou nenhuma
droga. No máximo álcool, mas nunca passou de um copo.
Não dá pra praticar alcoolizado.

— Praticar o quê?
Teve de abrir o jogo. Contou apenas o básico pra que
ela entendesse e não continuasse a pensar mal deles ou vê-
lo como um criminoso capaz de dopar o filho dela.

— Então ele te pagava pra isso é? — Ela teve uma


crise de riso. Revelara a verdade porque ela já tinha visto o
vídeo mesmo, só restava tentar fazer com que entendesse
melhor o próprio filho. — Eu devia era ter dado umas surras
dessas nele quando criança! A pessoa passa a vida toda se
controlando pra não fazer nada disso e olha o resultado!
— É totalmente diferente. Era consentido, não um
crime.
Ela se debruçou na mesa, o café já pela metade: — Eu
e o pai nunca conseguimos ensinar nada que prestasse a
ele. Ele gostava era daquela outra lá! Nunca consegui ser a
mãe dele. E você? Conseguiu alguma coisa?

Pensava em como responder aquilo sem expô-lo mais


do que já tinha e de uma maneira que ela talvez até se
orgulhasse, se possível: — Ele era meu melhor aluno. O
mais rebelde, mas muito esforçado e determinado.

Ela balançava a cabeça, olhando os passantes da rua.

— Tudo que eu fiz por ele... Escolinha de natação,


judô! E ele nem pra sobreviver. — Ela arremessou a guimba
do cigarro na calçada, o rio Pinheiros ao longe.

— Sinto muito. Penso nele todos os dias.

— É? Se um dia descobrir como parar, me avise. — Ela


pegou a bolsa, se despedindo com um aceno fraco.

Sorriu. Glória Frazier podia não ser o que o senso


comum esperava de uma mãe, mas via alguma coisa do
humor brutal de Sérgio nela. Ficou pensando se deveria
acompanhá-la, mas ela logo tomou um táxi e sumiu de
vista.

Voltou pra casa pensando no que ela tinha dito. De


certa forma, era reconfortante entender melhor de onde
vinham os elementos que compunham seu ser amado. Se
Sérgio desconfiava tanto de suas demonstrações de amor,
não era totalmente por culpa dele, mas de tudo que ele
vivia desde criança. A mãe que exigia demais, a que o
confortava. Já dizia Raul, cada um de nós é um universo. Só
lamentava não poder ir para onde ele tinha ido.
De repente, pensou na mãe de Atibaia, Dona Sônia.
Será que ela sabia do ocorrido? Quanto mais pensava, mais
responsável se sentia. Sérgio nunca a deixaria desamparada
e Leon certamente não queria ver o esforço dele ser em
vão, muito menos que a pobre senhora sequer tivesse com
quem compartilhar a tristeza de sua perda. Decidiu ao
pegar o metrô pra casa: do mesmo modo que a outra tivera
seu ombro, Dona Sônia também teria o dele.

###

Seus pais eram bastante diferentes da ideia que as


pessoas costumam ter de “pai” e “mãe”, mas no que se
referia a ele, eram iguaizinhos à maioria:

—NÃO VAI, não vai e pronto! — a mãe de Leon


berrava.
— Mãe, eu sou adulto, vocês não podem decidir isso
por mim! — insistia. E ela e o pai recomeçaram a listar
todos os pormenores, da faculdade trancada ao restante da
recuperação de sua perna, que ele não podia fazer uma
viagem tão longa, que ficar quatro horas sentado num
ônibus prejudicaria sua circulação. A parte que mais doía,
no entanto era ouvir deles: — Esquece o Sérgio! Você tem
que seguir com a sua vida!
Doía por que era verdade. A fratura tinha cicatrizado e
de acordo com o médico, ele já podia retornar às atividades
costumeiras. Mas havia aquela rachadura não curada em
sua alma: — Não vou conseguir fazer isso se não puder
saber como a mãe dele está. Ele a amava de verdade e eu
nunca vou poder ficar tranquilo se não souber como ela
está, se não falar com ela.
Por mais que seus pais tivessem alguma razão em ter
medo, o perigo para ele parecia ter passado. Pelo que
souberam dos portais de fofoca, ao ser acossada por
pedidos de investigação vindos de ONGs de direitos dos
animais e com os vídeos que Rosa e Mao posteriormente
conseguiram recolher das câmeras de segurança do
cruzamento, a vaca se refugiara nos Estados Unidos com
outro noivo. Quanto aos irmãos dela, acabaram
misteriosamente executados numa operação policial
coordenada pela PM de São Paulo, estado agora governado
pelo primo de Sérgio. O mundo dava mesmo muitas voltas,
tantas que pouco depois, o pai de seu amado submisso
voltou para a mira da polícia federal, que terminou de
confiscar todas as propriedades da família e contas no
exterior, tal qual eles haviam feito antes com o filho.

No fim, o argumento de Leon foi mais forte. Dessa vez


também preferiu ir sozinho, contrariando a vontade dos
pais. Só Deus sabia se a pobre Dona Sônia soubera da
morte dele, e de que jeito isso se dera. Imaginava mil
cenários horríveis com a coitada recebendo a notícia por um
programa de tv ou uma revista de fofoca, sem ter nenhum
contato com alguém conhecido dele e nem saber onde ir ou
a quem recorrer. Do jeito como tudo se dera, era capaz que
ela ainda achasse que continuavam juntos.
— Sim, eu já estou sabendo. — Sônia disse de forma
tão contida e fria que o chocou. Para si mesmo, Leon
justificou tudo como reflexo da passagem dos meses. Uma
mulher que já havia sofrido tanto na vida, era normal que
precisasse ser forte, pelos netos. — Entra, meu filho.

Ela o convidou para comer algo enquanto preparava o


jantar. Pela conversa, entendeu que ela ficara sabendo por
uma vizinha: — Eu já perdi um filho, não achava que ia
perder outro. Mas é a vida. — Dona Sônia parecia
dolorosamente indiferente ao tomar seu café. Para uma
senhora tão espontânea, vê-la falando assim lhe causava
uma impressão terrível.
A costureira lhe mostrou os trabalhos no ateliê,
bordados e peças em crochê. A maioria eram muito bem
acabados, exceto por alguns que Leon viu num canto.

— São de alunas que estou ensinando. — ela explicou.


As crianças mostravam vídeos que faziam no TikTok,
alguns num sítio muito bonito e enorme.

— É no sítio com o... — o garoto ia falando quando


Juliana se jogou por cima dele, apontando: — Olha o
pedalinho, tio!
— Onde é isso? Não me digam que é no... — Parecia
mesmo o famoso sítio que tanto apareceu nos telejornais
anos antes.

— Um conhecido nosso é caseiro do sítio e nos


chamou pra passar uns dias lá. — Dona Sônia serviu um
prato enorme de galinhada e bolinho de feijão e Leon não
teve como recusar.

Perguntava mais sobre o lugar, por curiosidade, mas


eles não lhe davam muitos detalhes: — Ficou meio
abandonado depois de todas as investigações. Parece que
os donos estão vendendo, mas não apareceu nenhum
comprador ainda. — ela disse, lhe servindo mais uma
concha de feijão.
No móvel da sala reformada, se encontravam dois
cofrinhos em formato de porquinho que Leon não se
lembrava de estarem presentes ao partirem. Era óbvio que
as crianças mantinham os ensinamentos de Sérgio e isso o
alegrou por um momento.

— Você sente muita falta dele, tio?


— Sim. Mas estou feliz em ver que se lembram dele.

— Ele é que esquece de comprar meu videogame...

— Ô, Rafael! Ele morreu, seu besta! — a irmã


reclamou.

Dona Sônia apareceu logo, batendo com o pano de


prato no ar: — Acho que é hora de dormir, crianças. Vão,
vão!
Leon ficou intrigado com o comentário. O menino
falava como se...
— Crianças, não tem noção do que aconteceu! Melhor
assim, na verdade.

— É. — concluiu, com o cofrinho nas mãos. Colocou-o


de volta no móvel.
Tinha viajado se preparando para lidar com a tristeza
que poderia encontrar naquela casa, mas agora via que
todos tinham superado, menos ele. Que terrível estava
sendo. Seus pais tinham razão: se a mãe que o criara desde
pequeno tinha superado, era hora dele seguir adiante.

De repente, Dona Sônia segurou suas mãos: — Eu


sinto muito pelo que aconteceu, Leon. Você pode ter certeza
de que, esteja onde estiver, o meu filho te ama. O Cláudio...
Olhou confuso para ela.

— Quero dizer, Sérgio — Ela o olhava, sem graça: —


Cabeça de babá, tanta criança que eu cuidei nessa vida, já
comecei a embaralhar tudo!
Franziu as sobrancelhas. Bem, não era a primeira vez
que ela se confundia e quem era ele para julgar? — A
senhora não tem que se envergonhar disso. Todas as
crianças de que cuidou eram importantes, mas é claro que
algumas eram prioridades. O Cleiton e o Sérgio tiveram
muita sorte em tê-la como mãe.

Ela voltou a sorrir e Leon se sentiu mais confortável


em aceitar o convite para dormir lá, desta vez numa cama
de solteiro de verdade.
Ajeitava o travesseiro, até notar o bordado no forro da
cama. O nome que estava ali era Cláudio.

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Era perfeitamente possível que os antigos patrões
tenham dado aquele forro de cama bordado com o nome da
criança. Era mais comum do que parecia, pensava consigo
mesmo, lembrando de quantas vezes inquilinos dos pais
deixavam traquitanas para trás numa mudança. Mas achava
estranho aquele lençol parecer tão novo. Indagou Dona
Sônia a respeito.

Ela olhava para o próprio colo, como se tivesse


perguntado de algum crime. Será que tinha entendido
errado sua pergunta? — Me desculpe, não estou acusando a
senhora de nada, é só que esse lençol parece novo. A
senhora o bordou recentemente?
— É, eu bordei sim! — ela respondeu, de supetão: —
Primeiro o meu filho e depois o Serginho. Senti que
precisava bordar os nomes das minhas crianças, então
bordei! Satisfeito, senhor detetive?

A encarava, incrédulo com a mudança repentina dela.


— Me perdoe. Só achei estranho...

Ela suspirou, meneando a cabeça: — Sabe o que é


mais estranho? Eu continuar mentindo pra você.
Piscava, ainda mais espantado: —Como é? — Não é
que seu faro escorpiano continuava o mesmo?
— Eu menti, meu filho — Ela se levantou de repente,
numa explosão de alegria: — o Sérgio tá vivo!

###

Os minutos que o coach levou para se soltar do cinto


e quebrar o vidro lateral do carro foram os mais sufocantes
de sua vida. A água entrava pelo ar condicionado, o motor
dava pane assim como o sistema elétrico que o impedia de
abrir a porta. Quanto mais molhadas, mais pesadas ficavam
suas roupas, e mais difícil era se livrar da prisão aquática
que seria seu túmulo, caso não tivesse se lembrado do
bendito plug. Sim, o plug anal. Foi com ele que terminou de
quebrar o vidro e se arrastou para fora, os cacos a
arranharem seu peito e barriga.

Pesado e encharcado, o terno ficou pra trás enquanto


seu dono nadava livre nas águas que confirmou em primeira
mão não serem assim tão limpas quanto ele próprio e os
responsáveis pelas obras de despoluição juravam que eram.
Alcançou a margem e se embrenhou numa das várias
tubulações de esgoto existentes. Espantava os mosquitos
constatando que não tinha sido o primeiro a ter a ideia de
se abrigar ali: tinha uma família morando na tubulação do
outro lado, com um varal do lado de fora e um colchão
suspendido por madeiras e papelão.
Atravessou a parte mais rasa de uma ponta a outra do
rio. O catador ficou muito satisfeito em trocar a jaqueta
velha, o boné e a bermuda rasgada por seu Rolex. Jogou o
restante das roupas na correnteza e sujou o rosto com um
pouco de lama. Em seguida, trocou a aliança que teria
colocado no dedo de Camila por uma dúzia de caixas de
balas e ficou se passando por vendedor até finalmente
conseguir uma carona com um caminhoneiro. Um
verdadeiro alívio, já que em apenas dois dias nas ruas, tinha
comido a mercadoria toda e fedia mais que bacalhau na
feira. Ao dormir debaixo de marquises, comerciantes o
acordavam com baldes d’água fria e o chamavam de
cracudo, sem falar nos guardas municipais.
— Tô indo pra Bom Jesus dos Peeerrrdões. — Esse
caminhoneiro puxava bem o “r”.

Sérgio só tinha uma pergunta: — É perto de Atibaia?


Chegou lá depois de pegar outra carona com o
conhecido dele. Ao perguntarem seu nome, percebeu que
seus documentos tinham afundado com o terno. Também
lembrou do livro de Leon, trancado na mala.

Limpou as lágrimas: — É, é Cláudio o meu nome.


Cláudio da Silva Lima. — falou, pensando no nome da mãe
que ele amava tanto. A única que poderia recebê-lo e
aceitá-lo agora.
E foi assim que Sérgio morreu e Cláudio chegou em
Atibaia.

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Comemorava esquecido da dor em sua perna, até
aquela pontada voltar irradiando da canela até o quadril. Se
agarrou no encosto da cadeira, chorando de dor e de
alegria, ainda sem acreditar.
— Me perdoa, meu filho. Eu tive que mentir porque ele
me pediu. É a vida dele em risco, né? Foi preocupação e
amor de mãe. Mas eu vejo que você realmente ama ele e
merece saber a verdade.

Sentou, esfregando a perna: — Onde ele está? Eu


quero ir agora!
— Sabe esse conhecido? É ele! Ele que tá no sítio que
era do...

— Não era! — corrigiu depressa, sem perder a


animação.
— Já pode falar que o tio tá lá no sítio com os
pedalinhos?

Pediu que lhe explicassem o caminho até lá. Era um


tanto longe, precisava de uma condução. Pegou a mochila e
seguiu na direção do ponto de ônibus. Andou por uma
estradinha de terra seguindo a indicação até ver a placa no
poste ao lado do muro de pedra. O portão de madeira
estava aberto.
As folhas das muitas árvores na entrada e ao longo do
caminho farfalhavam. Era abril e o outono deixava sua
marca de renovação. As folhas que precisavam cair até o
inverno para darem espaço às novas da primavera depois.
Caminhava, pilhas e pilhas de folhas aparecendo, mas
nenhuma muito bem feita. Na verdade, a maioria parecia
voar imediatamente conforme ventava.
Um empregado tentava reuni-las de novo, sem muito
sucesso. O ancinho dele caiu e ele se abaixou para pegá-lo,
xingando. Continuou caminhando ainda longe. Ele parecia
não o perceber vindo. O rapaz de cabelo preto pegava uma
palmeira de um vaso, tentando levantá-la até o buraco
escavado no chão gramado. Terminou por arrastá-la,
empurrando a terra com o pé.

De repente, ele se ajoelhou. E foi aí que Leon perdeu a


cabeça de vez ao reconhecer aquele modo único de se
ajoelhar: — Sérgio!
Ele se levantou depressa, o encarando de volta.

Não tinha como correr até ele, mas fez um esforço


para andar mais rápido.
Ele veio correndo, as mãos sujas de terra o agarrando
pelo pescoço e ombros. Seus olhos se reencontraram e
viram um ao outro neles. Os olhos verdes ele não podia
tingir. E os caracóis de seus cabelos logo voltariam a
resplandecer como o sorriso dele.

###
— Quer mais bolo? Pega mais um pedaço. Mamãe
deixou uma tonelada aqui. — Ele lhe oferecia mais do bolo
confeitado que descongelava num bloco retirado da
geladeira velha na casinha onde Sérgio, agora Cláudio,
morava. Apesar do sítio ser enorme, com piscina, lago,
horta e quadra, todo o conjunto mostrava apenas abandono.
A única parte um pouco melhor era justamente a parte que
o caseiro conseguia cuidar sozinho. Perto, tinha um
canteirinho com legumes e verduras, pé de banana, laranja.
Um vasinho de flores enfeitava a janela simples de madeira.
Acomodado na poltrona de couro sintético e sem pressa de
sair estava um gatinho listrado. Perguntou o nome dele.
— É Bitcoin! — ele exclamou: — Nunca sei como ele
vai estar daqui a pouco, bichinho inquieto ele.

Tapou a própria boca, ainda incrédulo: — Você é o


caseiro daqui? De verdade?
— É. Sou. — Ele deu um sorrisinho e Leon pressentiu
que aí vinha coisa: — Inclusive, já comecei a reunir provas
num dossiê inédito que mudará novamente os rumos da
nação!

— Ah, seu desgra...— Se controlou: — Mal te


reencontro e já está querendo me tirar do sério?
Ele deu de ombros com aquele sorrisinho debochado:
— Se você acreditou, não tenho culpa! Até você sabe da
verdade, o que eu posso fazer?
— Eu não trouxe meu equipamento, mas a gente pode
improvisar se quiser. O que você tem aí? Chicote de cavalo?
— Para, Leon! Meu patrão já me esfola todo dia,
vamos deixar pra amanhã que é minha folga.
— Agora você tem folga é? O Sérgio que ganhava
dinheiro até dormindo tem folga agora...

— Sim e dou graças a Deus e à bondade do meu


empregador, que aceitou me contratar sem assinar carteira.
Não tenho documentos, né.

Leon deu uns tapinhas no ombro dele: — Bem-vindo


ao proletariado, camarada!
Ele lhe mostrou o restante do lugar. Além da salinha
colada com a cozinha, tinha o banheiro pequeno, mas
funcional, e o quartinho dele. A cama tinha uma colcha de
crochê e um terço no travesseiro. Sobre a cômoda do lado,
um livro. Pensou que era um Bíblia, mas se surpreendeu ao
ler o título: — “Fenomenologia do Espírito”? Mas não é o que
eu te dei...

— Afundou com o carro, não deu pra salvar. Vi esse


num sebo na cidade e comprei. Abre, vai.
Encarou a folha de rosto do livro, sorrindo de novo: —
Você escreveu o meu...

— É. O seu nome. O de verdade.

Balançou a cabeça, devolvendo o livro ao seu lugar.


Pensou por um instante, se recordando: — Aquelas ligações
no meio da noite...

— Me perdoa, Leon. De dia, era fácil me distrair com o


trabalho, mas toda noite eu ficava morrendo de saudades.
Não podia contar que estava aqui, podiam ter grampeado
seu telefone. Eu ligava só pra... ouvir a sua voz.
Fechou os olhos, apertando a cabeceira da cama: — E
eu pensando que tinha enlouquecido. — Será que ele tinha
ideia da dor que lhe causara, fingindo estar morto por um
ano inteiro?

— Soube pelo jornal o que aconteceu com os Gentile e


com a Camila. Ela ainda tá foragida, né?

— Sim, pelo que eu sei. — respondeu, sem querer


entrar naquele assunto.
— Eu queria te contar a verdade, mas... Achei que
estava melhor assim. Achei que você já tinha se esquecido
de mim.

— Nunca.
— Também fiquei com medo do pai dela fazer alguma
coisa. O meu pai foi preso, você sabe? Teve outro ataque
cardíaco, mas levaram ele de ambulância e tudo.

— Eu soube. Falei com a sua... outra mãe.


— Ah, é? — contou o que se passara, sem poupá-lo
das partes desagradáveis, já que tinham sido a maior parte
daquele encontro.

— Ela disse isso, foi? — perguntava, rindo. — É a cara


dela.
Apesar de não achar certo continuar enganando
aquela mulher, Leon considerou que não tinha o direito de
dizer a Sérgio o que fazer a respeito disso.
— Ela é uma mãe melhor pra mim morto do que foi
comigo vivo. — ele disse, com aquele sorriso melancólico.
Voltou os olhos verdes para ele: — Quer ver uma coisa?
Ele lhe mostrou um toca-discos novo, na caixa. Não
era um modelo dos mais caros, mas era um toca-discos sem
dúvida, daqueles modernos com saída USB: — Comprei
ontem! Parece que eu tava adivinhando.

Olhava, maravilhado: — Pena que eu não trouxe o


Krig-ha, Bandolo! Você tem algum disco aí?
— Não — Ele ria: — nem sei porque comprei. Acho que
eu queria ter algo me lembrasse de você além do livro.

Ele espetou um pen drive do lado do aparelho pra


tocar “Capim Guiné”. Leon o abraçou, achando uma graça
como ele já sabia a letra de cor e cantava pra ele, o
provocando com o verso: — “Tá vendo tudo e fica aí parado,
com cara de veado que viu o caxinguelê!”
— Olha... — O apertava de leve em seu abraço.
Reparou na escova de cabelo largada na outra cômoda: —
Por que você tem uma escova tão larga, se o seu cabelo tá
tão curtinho?

Ele corou, mirando-o rapidamente e depois o chão,


com aquele sorrisinho sacana.

— Soube escolher bem, servo. Essa aqui é das boas!


— Testou na palma da mão: — A gente pode experimentar...

— Sim, mas eu preciso trabalhar agora! — ele falava,


todo dengoso quando o envolveu pela cintura.
— Meu servo está trabalhando! Não tem pausa pra
um cafezinho? Maldito vampiro de Brasília!
Sérgio passou um café no coador de pano pra ele.

Leon notou como ele usou apenas a quantidade


necessária de pó e de detergente para lavar a louça. E as
panelas com comida. — Você que fez?
— Hum. — ele respondeu, chacoalhando as mãos
molhadas na pia. — Mamãe me ensinou tudo quando viu
que eu não ia durar no emprego. Como sou só eu, cozinho o
básico e guardo congelado pra usar durante a semana. Tem
feijão, arroz e carne hoje. Quer?

Balançou a cabeça. O café não estava fervido demais,


mas no ponto e isso já era um ótimo sinal: — Com certeza
eu vou querer experimentar a comidinha que meu servo tão
prendado fez. — Enfiou o guardanapo na gola da camisa do
flamengo.
Ele revirou os olhos, mas era óbvio pelo sorriso que
estava adorando: —Também posso fazer um carbonara pra
você amanhã. Só que vai ser com queijo ralado do
pacotinho mesmo.

— Feito por você, como até pavão com leite


condensado e jabuticaba! — falava, encarando-o de cima
abaixo: — Mas o que eu queria mesmo agora era outra
coisa...
Sérgio se apoiou na pia, empinando de leve o quadril,
ainda passando espoja no prato: — Outra coisa, senhor?
— Meu servo fez aniversário e eu não dei nenhum
presente... Hum, que tipo de presente eu poderia te dar?
Algo marcante, talvez? — Agarrou a bunda dele, largando
um tapa ali mesmo. Ele deu um gemidinho, com aquela
carinha de quem tá gostando demais.
—Cê gosta de imitar gringo, né? Tem essa tradição,
“birthday spanking” —Segurou o queixo dele, mandando: —
Vai pegar aquela escova, vai.

— Sim, senhor! — ele respondeu depressa como se


tivesse saído de um transe. Pelo tempo que levara ali,
sozinho, sem ninguém que pudesse dar vazão às suas
fantasias, devia estar tão ansioso quanto ele.

Leon inspirou fundo, deslizando pra dentro da energia


de dominador. Sendo a parte dominante, não podia se
deixar levar pelo entusiasmo, tinha de se manter
controlado. Um golpe mal dado podia até quebrar o cóccix
dele. Teria de alertar o namorado quanto a esse perigo
depois.

Ele retornou com a escova nas mãos e de cabeça


baixa. Parecia se forçar a ficar sério, mas Leon achava
adorável o sorrisinho sacana dele. Pegou o utensílio: —
Obrigado, meu servo! Creio que um banho seria adequado
antes.

Se espremeram no box pequeno, encostando na


cortina. O chuveiro era daqueles que soltavam cheiro de
borracha queimada ao ser ligado, mas não importava.
Banharam-se juntos, mas o submisso respeitou sua vontade
e deixou que lavasse o corpo dele sem restrições, apenas
resmungando e gemendo baixinho quando as mãos de Leon
o apalparam mais intimamente.

O enxugou, beijando-lhe a testa e cheirando o


sabonete do cabelo agora curto e tingido de preto dele.
Apesar de preferir os cachinhos, acabou por gostar do visual
diferente. Para vesti-lo, conferiu o guarda-roupa antigo,
enquanto Sérgio o aguardava de toalha.

As roupas dele agora eram bem simples e não tinha


muito o que escolher. — Esse aqui, fica perfeito! —
declarou, segurando o macacão jeans com a camisa
listrada. — Vai parecer um garotinho levado.

— Tá sujo, Leon! — Apontava as manchas de terra nas


barras.

— Mas achei tão bonitinho. Quero esse! Vista-se,


servo! — Ele suspirou e terminou por obedecer. Não chegou
a ver a cueca que ele pegou para vestir, mas isso seria
interessante.
Sérgio saiu do banheiro, girando o pé apoiado no
chão.

— Venha aqui!

Ele obedeceu de rosto erguido, andando sem ligar pra


protocolo nenhum, com aquela carinha de sonso. Apesar de
querer rir, Leon manteve a pose severa. Cruzou os braços,
diante do submisso desleixado: — O seu aniversário foi
semana passada, meu servo, e eu sequer fui convidado! —
Bateu com a escova na própria mão. Com o estalo, Sérgio
baixou o rosto, as mãos pra trás sem deixar de sorrir.

— Quantos anos você completou?

— 33, senhor.

— Ah, a idade de Cristo. Que poético. — Deu uma


volta em torno dele: — Você também caminha sobre as
águas? Ressuscita?

Ele negava a tudo, contendo uma risada.


— Vai precisar de um milagre pra se salvar dessa! —
Sentou na cama dele, o chamando.

Sérgio veio devagarinho, no próprio ritmo. Ele sabia


que isso o aborrecia, mas Leon não esboçou qualquer
mudança. Sua mão falaria por ele.
—No meu colo, servo. — Ele deitou sem tirar a roupa.

O doutrinador pôs as mãos nas costas dele, o


mantendo firme sobre suas coxas. Deixou a escova de lado,
acariciando-o por cima da calça jeans. — Você tem sido um
bom menino? Um bom caseiro?

— Eu faço o que posso. Ainda mais se tratando do


sítio do Lula...
Seu olho esquerdo piscou involuntariamente.
Sussurrou: — Não é dele.

— Não é o que as investigações dizem...


— Investigações manipuladas por juízes, promotores e
pela mídia? Conta outra!
— Os pedalinhos tem os nomes dos netos dele! E... Ai!
— exclamou ao sentir a mão do dominador cair pesada
sobre sua bunda. — Seu ditador!

— Que saudades de ouvir isso! — declarou, o


estapeando outra vez. Diminuiu a força, alisando um pouco:
— Aposto que também ficou com saudades de mim, não
ficou?
Ele escondeu o rosto, mas podia ver as bochechas
dele erguidas. Deu mais uns tapas, os resmungos dele
soando para Leon como se o Raulzito em pessoa tivesse
voltado dos mortos num disco voador e desse um show ali.

Parou para desabotoar as alças do macacão dele, o


puxando para baixo. Levantou a camisa e deu um sorriso: a
cueca dele era azul bebê, com um tucano estampado atrás.
— Onde você comprou isso?

— Numa feirinha. — ele respondeu baixo.

— Odeio tucanos, bichos safados! Quase extintos, mas


ainda me dão nos nervos. — falou, brincando de puxar o
elástico e soltar depois. Enfiou a mão dentro da cueca,
fazendo o submisso soltar um gemido desejoso.

Ficou afagando sem pressa, se divertindo com a pele


arrepiada dele. Estava só um pouco rosa, mas já ia resolver
isso. — Queria ter trazido minha cartela de cores, todas as
variações de vermelho pra escolher. Quão vermelho você
quer ficar hoje, meu servo? Carmim? Escarlate? Rubi?
Bordô?

— Não me machuque, senhor! Sou só um pobre


caseiro!

— Quem não te conhece que te compre — Puxou a


cueca dele com o restante do macacão, jogando longe: —
Servo arrogante! Tá se achando investigador da ABIN, é? Da
polícia federal? — Os tapas subsequentes fizeram Sérgio se
agitar no seu colo, gritando. Aquele sítio ser bem isolado se
mostrava uma boa vantagem agora.

Pegou a escova de madeira, passando o lado com


cerdas delicadamente sobre a pele rosa vivo e aquecida.
Agora que ele passava a maior parte do tempo ao ar-livre
em trabalho físico, a mudança que começara na academia
se tornara mais visível e Sérgio tinha uma bunda apta a
aguentar muito mais do que quando começaram.

— E o triplex do Guarujá? E os desvios da Petrobrás?

— Desvio é o que o seu rabo vai fazer quando eu


terminar, servo! — Virou o lado de madeira, acertando no
meio e mais embaixo, onde costumava doer mais. A escova
não dava tanta ardência quanto o chinelo, mas o impacto
era muito maior e em meia dúzia de golpes seguidos, ele
parou de retrucar e se agarrou à cama, choramingando.

Ergueu a escova, aplicando um golpe com o lado das


cerdas, mas desta vez quem gritou foi ele mesmo: em
reflexo, o submisso deu-lhe um pontapé bem na tíbia recém
cicatrizada, fazendo o dominador se encolher aos berros.
Sérgio se levantou depressa do colo dele. — Desculpe,
desculpe! — Ele se abaixou, tentando ajudá-lo, mas o
dominador segurava a própria canela sem querer mais
nenhum contato.

Passados alguns minutos, a dor diminuiu. Fungou o


nariz, passando a mão sobre o rosto. A expressão atordoada
dele o abalava mais ainda: desde o acidente, não dominava
presencialmente ninguém. Inspirou fundo, se recuperando.
Porém, o susto não o deixara. E se nunca mais conseguisse?
— Leon...

Inspirou fundo, tentando acalmá-lo: — O médico disse


que ficaria assim, que talvez eu precisasse de mais uma
placa de metal, mas não quero fazer outra cirurgia.

Sérgio o olhava exatamente do jeito que não queria,


com pena. Leon baixou o rosto: — Acho melhor a gente
parar por hoje. Estou cansado, andei muito. Só isso.

— Eu vou esquentar uma bolsa térmica pra você,


espera! — O submisso se vestiu e correu pra cozinha com
uma chaleira. Tomou um analgésico e ele o ajudou a colocar
o pijama e deitar na cama de solteiro, colocando a bolsa
morna coberta com um pano em sua canela.

Fez uma careta, mas logo a temperatura o relaxou. —


Obrigado. — Sérgio arrumou um colchãozinho do lado da
cama, mas ainda o olhava com preocupação.
— Eu tô melhor agora! Tá tudo bem.

Ele virou o rosto, com as mãos nos olhos, disfarçando


o choro: — É... Boa noite. — Apagou a luz e deitou.

No dia seguinte, Leon foi surpreendido com o café


trazido na cama. — Tem leite da fazenda daqui do lado,
peguei com o caseiro de lá! Acho que ele ficou com pena.
Sabe, sou conhecido como o pior caseiro da região.

— A gente pode comer na mesa, eu não tô acamado.


Foi só um mal jeito.

— Dei a maior bicuda em você, né? Me desculpa. Não


queria te machucar.
— Eu sei. Você já pediu desculpas.

— Mas eu sou culpado por você estar assim. Por tudo


o que aconteceu com você e a Laika. E o clube.

— Tá tudo bem agora. Todo mundo se ajeitou como


pode.

— Mas você ficou assim. E a Laika morreu... — O


queixo dele tremia. Quando viu, ele estava chorando de
novo.

Colocou a bandeja de lado, abraçando-o: — Não


fomos cuidadosos, mas isso tudo já é passado. Nós dois
sofremos. Não precisa se condenar assim.
Ele se soltou de seus braços: — Mas é assim que eu
me sinto! — repetia, saindo do quarto como um furacão.
Leon inspirou fundo. Não imaginava que depois de
todo aquele tempo, Sérgio ainda carregasse tanta culpa.
Precisavam conversar, mas não achava que adiantaria bater
de frente com ele naquele estado em que se encontrava.
Almoçaram e apesar de todos os elogios que fazia à
comida dele, o submisso se mantinha monossilábico. Se
ofereceu para lavar os pratos, mas ele recusava, o
mandando se sentar. O dominador respirou fundo, sabendo
que ele não fazia isso para afrontá-lo: — Não sei o que você
pensa, mas eu não sou feito de vidro. Pode confiar quando
digo que posso fazer isso.

Ele terminou por deixá-lo. Mesmo assim, Leon não


parou de se preocupar ao vê-lo sair pela porta. O sítio era
enorme. Ao terminar a tarefa, foi atrás dele.
Só o encontrou dali a meia hora, perto do estábulo.
Ele estava sentado no banco, com algo nas mãos.

Suspirou, cansado: — Você tá aqui! Me deixou


nervoso, sozinho lá, mano. — A falta de interrupção
assustou o dominador.

Sérgio se levantou. De cabeça baixa, lhe oferecia um


chicote longo enrolado: — Preciso que me castigue, Leon!
Não porque eu gosto, mas de um modo que me faça sofrer
de verdade, que me livre desse sentimento de culpa que eu
não consigo mais carregar!

Encarava o instrumento nas mãos trêmulas dele,


confirmando que o submisso já não estava em condições de
dar qualquer consentimento. Balançou a cabeça: — Não!
Esse chicote é muito difícil de usar e perigoso. Precisa de
espaço e eu não estou em condições de manejar isso agora!

— De quanto espaço mais você precisa, hein? — Ele


estendia os braços dentro do estábulo, mostrando as vigas
onde poderia ser amarrado. — Faça isso, ou vou procurar
outro que faça!

Leon bufou, apertando o instrumento nas mãos e


partindo pra cima dele. Sérgio se encolheu, mas o chicote
caiu enrolado no chão aos seus pés.

— Quer procurar outro senhor, procure! Mas que seja


alguém responsável, que te leve ao hospital se alguma
coisa der errado! Não vou fazer só porque você não suporta
se sentir culpado! Eu me sinto culpado também, e com
raiva, mas não vou descontar isso em você nem em
ninguém!

Ele sentou no chão, chorando.


Inspirou fundo, passando a mão pelas costas dele: —
Acha que quero que você se culpe o resto da vida por uma
coisa que não dependia só de você? Eu quero sim te fazer
sofrer, mas não desse jeito. Não quero te massacrar, te
destruir. Isso não é BDSM, é autoflagelação. Você precisa de
ajuda profissional.

Sérgio se levantou, catando o chicote: — Se você não


quer, eu mesmo vou fazer!
— Não vai! — Leon o puxou de volta e arremessou no
lago. Se afastou, esperando que ele se acalmasse, mas
Sérgio não fugia da rinha.

— Acha que pode me impedir? Eu compro outro


quando não estiver por perto!

— Eu te proíbo! Ouviu bem? — gritou, a centímetros


do nariz dele. — Ouviu, servo? O proíbo de se machucar!

Ele berrou de volta: — Eu não sou seu servo mais,


lembra? Não tenho coleira, não pode me mandar!

Deixou que ele se afastasse, acompanhando à


distância. De nada adiantaria insistir, refletiu ao vê-lo chutar
ferramentas e pilhas de folhas. Uma hora, ele se cansaria.
Mas precisava pensar num jeito seguro dele expiar a culpa.

Coou um café para eles. O tempo esfriava e ele não


tinha voltado ainda. De repente, o avistou alimentando o
Paulo Jegues e se tranquilizou. Tinha tido uma ideia: deixou
sobre a mesa tudo o que precisaria. Só torcia para que
Sérgio embarcasse na cena, porque conhecendo a mente
obtusa dele, seria difícil.

Ele entrou, parecendo mais calmo e um tanto sem


jeito. — Me desculpe pela forma como falei com você.

Aproveitou que ele tinha baixado a bola e propôs: —


Tudo bem, você ficou nervoso. Bom, se ainda me quiser
como senhor, precisa aceitar que sou eu quem determina as
punições aqui, servo. E sendo assim, já escolhi uma
adequada. Está disposto a obedecer sem questionar?
Ele hesitou por um breve momento. Suspirou,
respondendo: — Sim, senhor.

— Muito bem. Vê essa folha de caderno? Tem vinte


minutos pra escrever nela. Escreverá 50 motivos pelos
quais você merece ser amado, Sérgio! Agora!

Ele riu, provavelmente achando que era brincadeira e


depois em desprezo: — Isso é ridículo! Você é ridículo! Não
sei por que eu... — falava, se calando. Olhava para o papel e
a caneta, paralisado.
— Que foi, é uma tarefa muito difícil pra você? Mesmo
agora, depois de tantas mudanças?

— Não, é só que... não faz sentido. Não tem nada a


ver com...
— Pois eu acho que é perfeito pra situação. Mas se
você não é capaz...

— Eu sou capaz! É só que eu não quero! Eu quero


sofrer, não pensar.

— E por acaso um servo tem querer? Você tem é que


me obedecer!

Ele sentou na cadeira, finalmente. Leon acionou o


cronômetro do celular.

Sérgio pegou a caneta, passando-a de um lado para o


outro, debruçado. O coitado erguia os olhos para ele, aflito:
— Não pode ser menos?
Sorriu em deleite: — Não. E só porque está me
questionando, agora serão cem: cem motivos pelos quais
você merece ser amado, meu servo!

Ele bateu com a caneta na mesa: — Isso é loucura! É


impossível! Não consigo pensar em cinco, que dirá cem!

O dominador se mantinha sentado na poltrona, a


mesma postura ferrenha: — Se continuar reclamando serão
mil! Fale menos e escreva mais!
Seu pupilo se voltou para o papel, resmungando: —
Idiota.
— E ainda assim, você me obedece? — respondia,
sorrindo com a impertinência dele: — Mais respeito com o
seu senhor! Não sou eu quem está com dificuldade para
pensar. Seu tempo está correndo, servo!

Acompanhava-o com o olhar enquanto ele andava de


um lado para o outro da cozinha. De vez em quando ele
parava e anotava algo, sempre hesitando e usando a
borracha, inclusive! Uma borracha! Quase metade do tempo
transcorrera e o submisso mal passara das primeiras linhas
da folha.

Ele o olhava suplicante, mas Leon se mantinha firme.


Aquela era uma lição essencial, talvez a mais importante
que lhe daria.

— Restam treze minutos.

— Para, Leon!
— Estou parado. — Erguia as mãos do encosto da
poltrona onde sentara, vendo-o penar. Só podia imaginar o
que ele estaria escrevendo. Ele anotava de pé, debruçado
sobre a mesa. Parecia finalmente apressar o ritmo, usando
menos palavras e deixando de lado o capricho da caligrafia
ou as exigências do seu editor interno.

Vendo a posição em que ele se encontrava, de bunda


empinada, sentia vontade de lhe dar uns tapas de surpresa,
mas achou que o servo já sofria demais com a simples
tarefa de pensar em coisas boas a respeito de si próprio.
Vigiava o cronômetro, alertando. Primeiro dez, depois cinco
minutos pra acabar. Viu admirado ele avançar para o verso
da folha. Quanta determinação, quanta devoção! Era isso o
que queria ver nele.

O cronômetro apitou. — Terminou o tempo, servo! Dá


aqui! — Sérgio parou imediatamente, esgotado. Ele
estendia o papel, o braço trêmulo, a respiração ofegante.

Leon o recolheu e examinou brevemente a frente e o


verso da folha. Realmente, haviam cem itens completos
numerados ali, a letra ficando cada vez mais garranchada
ao final. Devolveu a ele: — Leia apenas pra si mesmo e com
atenção.

Ele obedeceu, apesar de continuar claramente


aborrecido. Aos poucos, porém, foi sorrindo e até riu em um
momento ou outro. Baixou o papel ao terminar. Ao ser
pedido, o devolveu para suas mãos.
Encarou o submisso por um rápido momento: os olhos
dele agora brilhavam em expectativa de receber algum
comentário sobre sua produção.

Apesar da imensa curiosidade, Leon precisava fazer


aquilo. Dobrou a folha, rasgando-a em pedacinhos.

— NÃO! — Sérgio arregalou os olhos para o montinho


de papel no chão: — Por quê? — Cerrava os punhos, como
uma criança injustiçada.

Por achar tão irônica tal reação de alguém que


começara desprezando aquela tarefa, não conseguiu
segurar o riso. Foi aí que Sérgio o surpreendeu, mandando
um tapa de mão cheia em seu rosto. O encarou, atônito.

Ao perceber o que tinha feito, o submisso voltou a se


encolher, encharcando a camisa com uma torrente de
lágrimas sem igual. Ele tremia e soluçava, parecendo ainda
pior do que antes.

Talvez tivesse passado dos limites. Era como andar


numa corda bamba, principalmente quando não tinha
nenhum marcador físico para se guiar, como a vermelhidão
na pele.

Ele balançava a cabeça, esfregando os olhos: — O-


Olha o que eu fiz!
Leon esfregou o lado dolorido do rosto: — Bom, que
tipo de doutrinador comunista seria eu, se meu servo nunca
se rebelasse contra seu senhor, não é mesmo? — Sorria,
tentando relaxá-lo e se explicar, mas ele continuava
abalado: — Me perdoe, Sérgio.
— Por que fez isso? Tanto trabalho que tive pra pensar
em alguma coisa boa sobre mim e você rasgou sem nem ao
menos ler! Eu sou um lixo então?

O pegou pelos ombros: — Não, não! Você é uma das


melhores pessoas que já passaram pela minha vida!

Ele balançava a cabeça, sem acreditar.

Segurava o rosto dele, falando com suavidade: —


Rasguei o papel porque não preciso de motivos pra te amar.
Você é o único motivo que eu preciso.

Sérgio soluçou surpreso, os olhos verdes lacrimosos


voltando a encará-lo. Roçou as pontas dos dedos na
têmpora dele e no cabelo agora curto e preto. Arrependia-se
de ter sido tão cruel: — Deve ter sido uma sensação
horrível, me ver rasgar algo que te deu tanto trabalho, mas
era a única forma de te mostrar: se foi capaz de enumerar
tantos motivos para ser amado é por que no fundo você
sabe que eles existem. Só falta você se perdoar.

Aos poucos ele foi se acalmando, os soluços


diminuindo. O submisso deixou que o abraçasse e uma vez
deitados, descansou a cabeça no ombro dele. Leon sentiu
uma pontada de pena, acreditando que ele teria chorado
bem menos se simplesmente o tivesse chicoteado. Algumas
lições eram muito mais duras que outras. A vida tinha sido
uma professora muito melhor do que ele próprio jamais
seria para Sérgio. Era bom ver que ele não havia
desperdiçado o sofrimento que passara.

— Só por curiosidade, me fala algumas das coisas que


você escreveu.

— Ah, não! Você vai rir. — ele falava, se fazendo de


tímido.

— Não vou, prometo.

Ele hesitou, mexendo na camisa e finalmente falando:


— Hum, escrevi que eu faço um bom feijão.
— Feijão?

— E arroz com rabada.

— Rabada, é?

— É! E que eu sei a diferença entre ativos e passivos


financeiros.

— Hum, e o que mais?

— Que minha mãe diz que eu sou bonito.

— Ah, não acredito! Para.

— E que eu sou um bom servo. — ele dizia. Leon


ergueu a sobrancelha.

— Que foi? Eu sou sim!


— Tô orgulhoso, Sérgio.

— É Cláudio. Precisa me chamar assim agora. Eu não


vou voltar.
Imaginava que o maior impedimento para ele retornar
à capital fosse principalmente a segurança, mas agora que
os Gentile tinham finalmente colhido o fim violento que
plantaram e Camila fugira com Nestor, não fazia sentido
continuarem a viver como dois exilados. A não ser, é claro,
pelo maldito vídeo.
Por mais que Leon não se importasse com notinhas
maldosas de portais, seria injusto pedir que o namorado as
ignorasse quando a maioria dos ataques eram direcionados
a ele. Sendo alguém que vivera tanto tempo num mundinho
de mesmice e aparência e que só recentemente entrara em
contato com seu próprio prazer, ele não tinha grandes
defesas contra aquela hipocrisia.

Sérgio olhava para as próprias mãos: — Minha mãe,


ela é o máximo, né? Ela disse que continua tendo orgulho
de mim e que mal prestou atenção no que diziam porque só
tinha espaço pra dor que ela sentiu quando pensou que eu
tava morto. — Suspirou: — Meus sobrinhos estão proibidos
de pesquisar o meu nome na internet. Acham que é porque
estou escondido, mas eu sei que a qualquer momento eles
podem acabar topando com o vídeo. Todo mundo viu no
jornal. Ninguém fala, mas é como uma sombra que fica me
perseguindo. Concordaram em manter minha identidade em
agradecimento pelos empréstimos, mas é muito
desconfortável. O tempo todo fico imaginando o que estão
pensando de mim. É terrível.
Leon afagou o rosto dele: — Sinto muito. Ninguém
merece passar por isso, muito menos você. Se soubesse o
quanto me arrependo... Talvez um dia o hacker e aquela
vaca paguem pelo que fizeram.

— Talvez, mas eu não ligo. O Sérgio morreu, Leon. Tem


que deixar ele morrer. Deixa ele morrer e fica aqui, comigo
— Ele murmurou, entre beijos e súplicas: — Com o seu
Cláudio.

Como era difícil, ver aqueles olhos verdes lindos e


enormes o querendo, implorando, e ter de dizer:

— Não posso, meu servo. Tenho que voltar pra


faculdade. — pediu, acariciando os cabelos dele: — Vem
você morar comigo! Ninguém precisa saber o seu nome, a
gente faz outros documentos.

— Minha mãe tá ajeitando isso por aqui. Disse que


nunca me registrou. É uma burocracia imensa, mas uma
hora vai.
Se debruçou no próprio cotovelo, incomodado. Sérgio
não tinha mais uma montanha de dinheiro, mas ele ainda
poderia fazer muitas coisas boas como educador financeiro.
Quanta gente poderia ser ajudada com alguém com os
conhecimentos dele e sem o interesse de vender cursinhos
e investimentos enganosos?

— Você poderia fazer uma faculdade, eu te ajudo a


pagar. Terminar o curso de economia, que acha?
Ele ergueu o rosto, com um olhar sonhador: — Um dia,
talvez. — Suspirou: — Tenho medo de voltar a ser quem eu
era.

Encostou a ponta do nariz na bochecha dele: — Não


vai. Você é outra pessoa agora, Sér... Claudio. Eu te amo,
por favor... não faz isso comigo.

— Me perdoa. Não tô pronto pra voltar. Nem sei se um


dia vou estar, mas... Obrigado. Por tudo.

Deu um meio sorriso de volta para ele. Sabia por


experiência própria o crime que seria força-lo a viver uma
vida que não lhe cabia. Mesmo assim, tê-lo ali depois de
todos os desencontros e não poder acordar do lado dele
todos os dias era difícil de aceitar.

Perguntou mais uma vez se o namorado não queria


voltar consigo, mas ele negou novamente: — Eu tô bem
aqui. É solitário, mas eu tenho a companhia do Paulo
Jegues, do Bitcoin. Vejo minha mãe e meus sobrinhos uma
vez por semana, na minha folga. Tem baile por aqui perto.
Eu vou só pra assistir...

— Não tem problema se você quiser sair, fazer


amizades. Não precisa prestar contas a mim. Eu gosto de
ter você como namorado, mas nossa relação sempre foi
aberta, né? Desde que eu continue sendo seu único senhor,
não vou ligar.

— E June e Douglas, eles vão bem?


— A gente conversa pela webcam. June começou a
fazer ioga e o Douglas vai pro Tibet, conhecer o Dalai Lama.
Eles estão bem. Estava preocupado era com você, Sér...
Cláudio. — corrigiu: — É difícil acostumar, né?

Ele sorria. Era tão estranho, vê-lo sorrindo depois de


ter chorado no túmulo dele: — Tem certeza que vai ficar
bem mesmo? Não quero que se machuque praticando
sozinho.

O submisso resmungou: — Você já me ensinou como


fazer. Se prometer vir pelo menos uma vez por mês, eu fico
bem sim. Ah, podemos nos falar por vídeo chamada!
— A minha porta estará sempre aberta pra você. E pro
Bitcoin... até pro Paulo Jegues. — Riram, imaginando como
colocariam um burro no jardim do condomínio.

Se lembrou: — Sabe, em toda minha carreira, eu


nunca deixei de terminar uma sessão de spanking.
— A minha foi a primeira, é? Me desculpe, Leon.

— Tudo bem, não precisa se desculpar mais. Até


porque, eu apenas adiei por um momento — Sentou-se na
cama e arregaçou as mangas da camisa xadrez vermelha:
—. Acredito que agora estamos aptos a concluir suas
palmadas de aniversário, servo.

Os olhos do submisso brilharam, mas ele continuava


apreensivo: — Mas e se eu te machucar de novo?

— Não vai, olha: vamos mudar a posição desta vez.


Venha — pediu e Sérgio não demorou a se deitar em seu
colo, ainda que receoso.

Leon puxou as pernas dele para cima da cama,


sentando mais para trás e deixando-o todo deitado sobre
seu colo. Era uma posição bem mais confortável que
apoiado no chão, o submisso comentaria depois. Agora, ele
apoiava a cabeça sobre as mãos, esperando.

Acariciou o bumbum dele sobre a calça jeans: — 33


anos, é algo a se comemorar. Mesmo você sendo um cara
cis, branco e sem vergonha. — Ele sorriu. Que safado.

Percorria a bunda dele com os dedos e a palma da


mão, sem pressa. Quando ele finalmente fechou os olhos,
deu o primeiro tapa.

Ele levantou um pouco a cabeça, cerrando os dentes.


Um tapa mediano, mais pra iniciar o aquecimento que pra
doer. Bater era só uma parte do processo. Talvez a mais
importante e difícil fosse a reprimenda, mas sendo usuário
frequente do Twitter, Leon tinha prática o suficiente nisso. A
conexão verdadeira, porém, exigia mais. Exigia intimidade,
que agora eles tinham. A segunda e a terceira palmada
foram no mesmo ponto, perto das coxas. Batia e deixava a
mão no local, deslizando devagar antes de recomeçar tudo.

— Você é um bom servo, é verdade. Porém, não estou


satisfeito com seu hábito de questionar minhas ordens! Não
confia em mim?

Ele se remexeu: — E-eu confio! Confio no senhor!


— Pois não deveria ter me chamado de idiota! —
Bateu de cima pra baixo meia dúzia de vezes.
— Me desculpe! Perdão, senhor! — ele soluçava.

Parou, alisando-o devagar, em movimentos circulares:


— Eu te perdoo porque sei que falou da boca pra fora. Se
realmente me achasse um idiota, não me obedeceria. Mas
eu não quero que isso se repita, então, cá estamos: —
Pegou a escova de madeira.
Sérgio escondeu o rosto. Estava chorando antes
mesmo que o acertasse. O dominador deu um tempo, lhe
acariciando as costas: — Por que essas lágrimas?

— Arrependimento, senhor. Você só queria o meu bem


e eu...

— Ora, vamos, querido servo. Já te perdoei, acabei de


falar. Mas tenho que terminar isso. É o seu presente de
aniversário, hum — E acertou duas escovadas, uma em
cada nádega. Ele resmungou baixinho, enterrando o rosto
entre as mãos. Mal tinham começado e o submisso já se
derramava em prantos. Ele ainda estava com as emoções a
flor da pele. Talvez devesse ter esperado um pouco mais,
Leon pensava.

Acariciou o cabelo tingido e curto, com saudades dos


cachinhos: — Arrependido, tucaninho? Vamos, aposto que
só quer me deixar com pena de você. Mas eu não tenho dó
não. Está recebendo exatamente o que merece. — Arriscou
uma escovada bem no meio da bunda dele, pra ver como
reagia. Ele fungou o nariz.

— Olha pra mim, servo! — mandou.

Devagarinho, ele tirou os braços da frente do rosto, o


encarando. O desgraçado sorria.

— Ahá, como eu pensava. Não tem vergonha na cara


não? Eu achando esse tempo todo que você continuava pra
baixo, e você rindo! Não dá pra ter pena de liberal mesmo.
— Mandou que ele se colocasse de pé e baixasse as calças.
Ele obedeceu, voltando a deitar em seu colo e Leon conteve
a risada ao ver a mesma estampa de tucano:

— Nem trocou a cueca desde ontem! Mas que


porquice!
— Eu tomei banho!

— Continua nojento, mas pelo menos eu tenho onde


mirar. — disse, golpeando três vezes um pouco abaixo do
desenho.
Sérgio choramingou, com as mãos na bunda: — Tá
doendo, Leon!

Tirou as mãos dele da frente, mantendo-as presas nas


costas: — É pra doer mesmo! Vou bater tanto que esse
tucano vai sair voando! — Deu mais três pela ousadia de
tentar se proteger. Observou o tom rosado dele por baixo do
tecido.
Leon gostava de usar a escova, mas era um pouco
sem graça não sentir a temperatura da pele do namorado
subindo, os arrepios da superfície, o toque macio dela.
Deixou o instrumento de lado e se inclinou, sussurrando no
ouvido dele: — Já que acertamos nossas pendências, é hora
de bater os parabéns.
Puxou a cueca até os tornozelos dele e ficou por
alguns instantes a admirar em silêncio o resultado de seu
trabalho até ali. O submisso tinha fechado os olhos, como se
dormisse pacificamente em seu colo. Provavelmente ele
tinha relaxado ao perceber que largara a escova. Afagou o
traseiro dele, primeiro de leve e depois massageando um
pouco. Se tivesse gelo ali seria interessante, mas não queria
interromper tudo novamente, apenas relaxá-lo, fazer Sérgio
esquecer um pouco dos problemas e se concentrar no
momento.

Ele deu um suspiro e o dominador aproveitou para


azucriná-lo mais um pouco: — Tá cansado, é? Cansar de
reclamar que é bom, nada. Começa contando,
aniversariante. — O pedido foi seguido pelo tapa. Ele
resmungou baixinho.

— Não ouvi, liberalzinho. Repete.

—Um...
— Melhorou. — Repetiu, desta vez na outra nádega.
Continuaram sem pressa. Ia alternando os pontos em que
batia, deixando um tom uniforme nele, provavelmente
coral. Era bonito: — A vida é um presente, especialmente
uma como a sua, que se salvou por pouco. Trate-a bem,
meu servo.

—Sim, senhor! — respondeu entre grunhidos,


retomando a contagem.

Estavam já na décima quinta palmada quando Leon o


fez mudar de lado: — Minha fisioterapeuta disse que tenho
um leve desvio de coluna pra esquerda, preciso exercitar
mais o braço não dominante. É bom trocar de lado de vez
em quando, não é?

Ele deu uma risadinha, voltando a choramingar em


seguida. Perto do fim, sua própria mão já estava mais
quente que uma fofoca do Janones, e num tom semelhante
ao da bunda dele. Se ele começara se remexendo e lutando,
agora no máximo estremecia com os toques finais.
Lágrimas escorriam por suas bochechas, mas ele persistiu,
murmurando: — Trinta e três...

— E mais uma pra dar sorte! — Acrescentou a última


no meio daquele carmesim. Como sempre, deixou que ele
chorasse em silêncio, no máximo alisava suas costas para
dar algum apoio moral. Estava mesmo orgulhoso dele.
— Parabéns, Sérgio. Opa, Cláudio! — Será que se
acostumaria um dia? Ainda o queria consigo e o nome do
passado estava profundamente ligado a lembrança dele. Já
o nome do presente só o ligava com a impossibilidade de tê-
lo como queria. Mas Leon era paciente. Meses, décadas, o
que fosse, um dia o convenceria a sair daquele exílio
autoimposto.
— Obrigado, senhor. — Ele se levantou e Leon o
mandou virar para a parede por alguns minutos. Depois, o
beijou na testa e aplicou o insuspeito creme de arnica que o
direitista safado tinha entre seus pertences.
— Nunca se sabe quando vai precisar, não é?

— Estou tão feliz que veio me ver! Ainda parece um


sonho pra mim. — Ele confessou no abraço. O cis sem
vergonha mal cabia em seu colo, mas se dependurava em
seu pescoço.

O dominador juntou a testa com a dele, murmurando:


—Pra mim também.

Tinha combinado com os pais que voltaria em dois


dias e já tinham se passado três. Caminhavam à beira do
lago enquanto conferia as chamadas perdidas em meio ao
choque pela descoberta do namorado vivo e escondido em
Atibaia. Deu a notícia à Dona Joana, cuja voz potente ecoou
do aparelho.
Mesmo comemorando, ela ainda lhe deu uma bronca,
deixando o dominador numa posição desconfortável
perante seu servo: — Tá, mãe. Sim, senhora... Sim, eu já tô
indo...Eu sei. Só vou me despedir! Tudo bem. Também te
amo. Beijo. — Desligou, encarando o submisso a se divertir.

— Leonzito acabou de levar uma bronquita da


mãezita!
— Vontade de pegar você e jogar nesse lago!

— Vem se tu é macho!
— Peraí — Com seu 1,67 puxava o namorado um
palmo mais alto, que se debatia, dando falsetes mortais em
seus ouvidos. Pararam, rindo. Abraçados, ficaram a admirar
a paisagem.
O lago cobria uma boa parte do terreno, com patos se
banhando em suas águas tranquilas, verdes e cheias de
folhas. — É bem bonito mesmo. E aqueles são os tais
pedalinhos, ainda funcionam?

Sérgio o levou até o barco a pedal em formato de


cisne branco: — Os pirralhos adoram! Não sossegaram até
me pegarem distraído e embarcarem. Agora, toda vez que
vem aqui eles têm que brincar nessa coisa!
— E se a gente desse um passeio também, hein? Só
nós dois. — Beijava o pescoço dele.

— Para, Leon. Alguém pode aparecer...

— Mas hoje não é seu dia de folga? Já tá


entardecendo. É hora do proletariado se divertir.

— Hum, tá bem. Mas e a sua canela? Não vai se


machucar?
Leon pegou o assento esquerdo, se reclinando e
apoiando as mãos atrás da cabeça: — Pedala pra mim, meu
servo!

O submisso deu um resmungo, mas não tardou a


embarcar também: — Ah, seu comunista sacana! — Soltou a
amarra do barquinho.
Moviam-se devagar para o meio da água, a vista
formada por árvores precisando de poda e grama verde ao
redor dando um clima de intimidade ao momento. Sérgio
apontava a quadra e a piscina: — Encontrei uma camisa do
Corinthians no vestiário logo que cheguei, até você vai
admitir que é prova mais que suficiente...

— Isso não prova nada! — retrucava, aproximando


lentamente as mãos dos ombros dele até envolve-lo,
tentando beijar-lhe a orelha e brincando de mordiscá-la.

— Leon, cê tá me desconcentrando!
— Ótimo.

— Como quer que eu pedale por nós dois se fica me


tentando assim, seu malvado...
— Senta no meu colo que você vai pedalar bem
rapidinho! — sussurrou, e pela cara do submisso, ele tinha
entendido a mensagem.

— E se alguém nos vir?

— A gente fala que errou o endereço no Airbnb.

Sem demora, ele abriu a calça. Leon pegou o


frasquinho de lubrificante que trouxera no bolso, refletindo
que tinha sido uma ótima decisão antes de sair pra passear.
Não podiam deixar passar em branco um lugar com tantas
possibilidades. A bunda de Sérgio o esperava, parada no ar.
Afundou o dedo lubrificado nele. O submisso deu um
gemido quase contido pelo braço e baixou a cabeça,
agarrado ao pescoço do cisne.
Apreciava a visão do cuzinho dele se retraindo e se
expandindo conforme saía, espalhando o gel pelo packer.
Felizmente, tinha trazido a vértebra pra mijar no banheiro
público. Montou tudo e mandou ele sentar devagar. Levou
algum tempo até finalmente estar inteiro dentro, as coxas
nuas de Sérgio sobre as dele. Ele reclamava baixinho e
gemia de olhos fechados, a cabeça reclinada pra trás, sobre
seu ombro.
O dominador acariciou as mãos e os braços dele,
beijando-o no rosto e nos lábios, sussurrando: — Você está
prestes a fazer um passeio gostoso onde toda essa
maluquice começou, meu servo. Vamos juntos, dar umas
pedaladas? Quantas pedaladas é preciso pra alguém se
foder?

— Se for a presidenta da república? Algumas poucas,


eu acho.

— Esqueceu do grande acordo nacional com o


Supremo, com tudo.

— Ah, é. Mas eu serei o primeiro a ser comido dessa


vez?
— Nesse pedalinho sim. Agora, vai! Pedala, meu
servo! — Deu um tapinha na coxa dele. Sérgio segurou na
lateral do barco e no assento. Conforme movia as pernas e
afundava os pedais, seu quadril oscilava, ora para a direita
ora para a esquerda, numa maravilhosa coalizão.
Leon gemeu, segurando-o pela cintura e peitoral.
Beijavam-se com sofreguidão, o submisso cada vez mais
afoito. Ele se erguia, se apoiando nos braços, rebolando e
voltando a sentar. O dominador o segurava, sem deixar que
esbarrasse sem querer em sua canela. Pra garantir, saíra
com perneiras.
— Planejou isso o tempo todo, comunista saFaAa... —
ele resmungava, parando para gemer ao ter o pau preso
entre os dedos de seu senhor.

— Geme, meu servo! Grita pra todo mundo ouvir


quem é o dono dessa porra aqui!
— É O LU... — Leon tapou a boca dele, se apoiando no
banco e metendo sem dó. Deu umas três estocadas que
pareceram calar a boca do servo. Debruçado no pescoço do
cisne, Sérgio o olhava com aquele sorrisinho safado de
quem conseguiu tudo o que queria e mais um pouco.
Mesmo assim, ele continuou resmungando:

— Lula preso amanhã...


— Lula livre! — Agarrou o braço dele. Qualquer aviso
contrário ou a palavra de segurança, pararia.

O submisso deu um risinho: — Luladrão...


Puxou-o para trás, se levantando: — Ninguém solta a
mão de ninguém!

— Ninguém solta o Lula da cadeia! — Leon o


empurrou para a frente com o corpo. O barco oscilava, mas
esperou ele estabilizar para dar mais uma estocada no
submisso. Ele gemia, debruçado. Foi metendo sem parar e
repetindo: — O sítio não é dele! Ele foi um preso político,
admita!
Sérgio mal conseguia elaborar uma frase, que diria
dizer alguma coisa. Desmoronou na frente do barco, as
pernas trêmulas. Leon coletou o gozo dele com a mão, lhe
lambuzando a barriga e as coxas. Mordia o trapézio dele,
sem deixar aquele buraquinho quente de liberal
conservador ter descanso.

O submisso, que já tinha gozado, gritou finalmente: —


LEON! É você o dono! Você é o DONO DO MEU CU, do sítio,
do que quiser! AAaaaAAaaa... — O servo se contraiu numa
série de espasmos. Leon o apertava contra o próprio
quadril, num beijo voraz. Só o soltou quando nada mais
restava dele que não um amante totalmente satisfeito e
semi adormecido em seu colo. Lhe acariciou o rosto,
plantando um beijo em sua testa. Levantou a calça e a
cueca dele, acomodando-o no assento ao lado e conduziu o
pedalinho de volta para a margem.
Ao chegar, limparam tudo e descansaram sem pensar
no dia seguinte, nem na inclemente despedida por vir.
Jantaram, conversaram e dormiram juntos, sabendo o
quanto aqueles instantes seriam preciosos.

Então, veio o despertar do sonho. O café da manhã


que começara animado e terminava melancólico. A mochila
de Leon encontrando lugar no sofá e depois na varanda. Os
pedidos, as negativas. A despedida ensaiada desde a sala
que só veio a se concretizar no portão.
— Só tem ônibus nesse horário. Daqui a três meses
acaba o prazo pra destrancar a matricula... — repetia,
imaginando que se dissesse várias vezes também se
convenceria do quanto precisava ir. Sabia que se aceitasse
ficar mais um dia ali com ele, não voltaria nunca mais pra
São Paulo.

Sérgio o segurava pela mão, mais desconsolado que


viúva da ditadura: — Promete que não vai me deixar? Nem
me esquecer?
— E tem como eu esquecer você, seu liberal atrevido,
conservador da putaria? — Queria que ele risse, mas ao ver
que os olhos dele continuavam tão úmidos quantos os seus,
Leon o acariciou no rosto, murmurando: — Sempre teremos
Atibaia.

Beijaram-se mais uma vez, as mãos e bocas não


querendo se soltar. Os dedos lutaram até o último mindinho.
Colocou a mochila no ombro: — Tô de olho em você,
meu servo.

Ele limpava os olhos, resmungando: — Petista safado!

— Liberalzinho de merda! — respondeu, num último


aceno.

Andou olhando pra trás até não ser mais possível vê-
lo parado no portão. Mesmo assim, sabia que ele estava ali.
Limpou o rosto, olhando o céu e cantarolou pra si mesmo
até o terminal rodoviário: — “Pedro onde cê vai eu também
vou...”
Capítulo 13 - “Mais louco é
quem me diz”
 

Eventualmente, todas as coisas chegam a um fim.


Mesmo o pior dos governos, o pior dos líderes e a pior das
condições, tudo isso um dia há de cessar. Menos a alegria.
Por que enquanto tiver um bloco pra botar na rua, nada há
de calar a euforia nos milhões de corações que gritam e
cantam por justiça e liberdade.

Apesar de tudo, amanhã é sempre outro dia, Cláudio


refletia. Ver a ex-noiva entrar algemada no carro da polícia
estadunidense com o marido hacker não tinha preço,
realmente. Abraçou o marido e tomaram um Guaraná Jesus
pra comemorar.
Em todos os lugares que Sérgio não podia mais estar,
Cláudio esteve em seu lugar. Na formatura de Leon, nas
apresentações de escola dos sobrinhos, nas aulas de crochê
da mãe. E eventualmente, numa sala de aula, como aluno.

Pelo computador, de máscara bovina e coleira nova,


aconselhava trabalhadores sexuais com suas finanças,
tendo a vantagem de transitar por ambos os mundos e
conhecer de perto os desafios da clientela: — Será que é
mesmo o momento de investir num móvel pra BDSM? Por
que depois fica difícil se desfazer dele. Para, Bitcoin! Não,
não é com você, é o gato! — Mostrou o bichano pra câmera.
O estranhamento dos pais de Leon com ele foi breve.
A única discordância que restava era mais política do que
ressentimento pelo filho.
— O capitalismo está fadado a ruir, rapaz! Os sinais
estão todos aí, não vê quem não quer!

— Hum hum. Obrigado pelo aviso, Seu Lenin. —


respondeu, mexendo no celular. Assim que ele se afastou,
berrou: — LEON! Seu pai já tomou o remédio hoje?

O único lugar que Cláudio não havia pisado ainda era


a Kama Sutra. Depois que Leon lhe contara do assédio dos
repórteres e da imprensa, morria de medo de ser flagrado
de alguma forma. Morria, no pretérito imperfeito, por que
um dia, ouvindo sua música preferida dos Mutantes, Sérgio
percebeu: risse quem quisesse dele, que o julgassem, mas
não cometeria o mesmo erro com sua segunda chance. Não
tinha se arrastado no esgoto pra viver escondido como um
criminoso. Não deixaria que outros decidissem por ele o que
poderia ou não fazer e sentir.

Soraya o ajudou com o figurino e a maquiagem.


Naquela noite seria aniversário do clube fundado pelos pais
de Leon. Com seus espíritos viajantes, eles viam tudo pela
câmera do celular, desta vez em Cuba.

Na plateia, Leon e os Marxistas, e todos os


frequentadores. Dona Sônia estava presente, na mesa com
eles. Apesar do medo, insistiu que a entrada fosse aberta a
todos, pois tinha enviado uma mensagem para sua outra
mãe. Não esperava que ela realmente aparecesse. Também
não esperava nada dela, a não ser que soubesse que estava
bem vivo e que viesse vê-lo homenagear a Kama Sutra num
cover de Gal Costa, naquele vestido vermelho brilhante de
barriga de fora que ela tinha usado no clipe de 1984, seus
cachos naturais saltitando ao som de Vaca Profana.
Espantosamente, ela veio. Não atrasada, como
costumava chegar em suas apresentações escolares, mas
em cima da hora. Ela ficou de pé num canto atrás das
mesas, o mirando fixamente como se visse um fantasma.
Segurando o microfone, Sérgio teve de se esquecer dela e
incorporar a artista, dublando a canção que mais
expressava sua alma no momento:

“Respeito muito minhas lágrimas


Mas ainda mais minha risada
Escrevo, assim, minhas palavras
Na voz de uma mulher sagrada
Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da manada
Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da manada”
 
A plateia se agitava e batia palmas. Ao vê-la se juntar
a eles, seus olhos lacrimejaram. Não era um perdão, mas
um começo pelo menos. Continuou na própria voz:

“São Paulo é como o mundo todo


No mundo, um grande amor perdi
Caretas de Paris e New York
Sem mágoas, estamos aí
Caretas de Paris e New York
Sem mágoas estamos aí...
Ê, ê, ê, ê, ê,
Deusa de assombrosas tetas
Gotas de leite bom na minha cara
Chuva do mesmo bom sobre os caretas...”
 

FIM
Sobre a autora
 
Blame P.T. é uma pessoa. Ou não. Ela tem esse perfil
no Twitter e tem esse, no Wattpad. Bora conversar e tomar
os meios de produção junto com uns bons drinques?

Não se esqueça de avaliar este livro e recomendar aos


amigos! 30% dos lucros dos três primeiros meses serão
destinados a doações para as Cozinhas Solidárias do MTST e
para a Casa Nem do RJ, que acolhe a população LGBT em
dificuldades e que se encontra atualmente fechada,
precisando de doações para reabrir. Acompanhe meus
relatórios do KDP no meu perfil do twitter.

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