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Cap.7
A cidade de Teixeira de Freitas era pequena demais para um homem que
precisasse pensar enquanto atravessava suas avenidas, por isso Elias dirigia sem pressa,
com a calma de um verdadeiro filósofo. Não estava preocupado pelo que tivesse que
dizer ao parceiro sobre a noite em que havia dormido fora: sempre inventava uma
desculpa para suas farras e se o outro não acreditava, pelo menos fingia. A menina era
sua preocupação, não era uma garota tagarela, mas também não era calada. Tinha
perguntas inteligentes para sua idade e respostas criativas para alguém que nunca saiu
daquela cidadezinha. L seria uma ótima golpista e aprenderia tudo depressa. Enquanto a
analisava já ia preparando a história que tornaria o convívio entre L e Paulete possível.
Estacionou o veículo quase em cima de uma calçada e começou a orientar L: numa
representação que tinha acabado de inventar.
L que a partir daquele dia seria Ana Gabriela deveria representar uma sobrinha
de Elias, filha de uma de suas irmãs. O destino havia colocado os dois perto um do
outro por uma fatalidade. Interpretando o Falso Hippie ele viu a criança chorando e foi
lhe perguntar os motivos daquele pranto. A mãe da menina havia morrido de uma
doença venérea transmitida pelo pai e este era um canalha que abusava dela. Quando
soube o sobrenome da garota e o nome de seus pais imediatamente descobriu o
parentesco entre os dois. Sendo tio de Ana Gabriela não a deixaria entregue ao ordinário
de seu pai, além disso, era uma criança muito inteligente e com incrível talento para as
artes cênicas, tudo que era preciso para ser aprendiz de golpista. Paulete era um bipolar
e esquizofrênico, alternando realidade com fantasias e seria em seus momentos de
lucidez que L representaria este papel. Para suas crises de delírios Elias criou outro
personagem que coubesse em suas alucinações.
Paulete veio de uma família kardecista e apesar da distância entre aquele dia e o
dia em que foi expulso de casa, ainda acreditava em misticismos e coisas parecidas.
Tinha crises em que dizia receber espíritos e ver pessoas já falecidas. Elias que veio de
um lar evangélico e depois se tornou cético devido às decepções religiosas tentou
convencê-lo várias vezes de que fantasmas não existiam, mas isso era sempre em vão.
Uma vez Paulete disse ter incorporado James Jubilem, uma cantora americana
falecida 30 anos antes de seu nascimento. Quando Elias pediu que cantasse uma canção
da falecida, cantou muito mal uma canção que ele próprio inventou (esta além de não ter
rimas, foi cantada em português e num tom muito desafinado). Indignado com a atitude
ridícula do companheiro, pediu que este lhe provasse que era o espírito de James
Jubilem, se queria ser chamado por aquele nome, então que fizesse jus a ele. Cantasse
em inglês e tão bem quanto sua dona.
Primeiro Paulete chorou e depois disse revoltado que ter fé não carecia de
provas, se Elias não acreditava que seu amado estava incorporado, então ele é que tinha
que ter vergonha de si mesmo, por ser um homem sem fé. Ele vivia aqui na terra e não
entedia das coisas do outro mundo, se viver já era difícil, morrer também não era fácil e
causava traumas psicológicos nos espíritos. Ela era sim James Jubilem, só que ainda
estava muito traumatizada por estar morta, talvez um dia cantasse melhor que em vida,
mas iria demorar mais um pouco.
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Elias riu com deboche e disse que tinha razão de Deus ser brasileiro, se até os
americanos que morriam trocavam o inglês pelo português e desaprendiam seu idioma
de origem. Tudo bem que morrer causava traumas psicológicos, mas se os espíritos
tinham estas crises, então Deus deveria ter uma clínica no Além só para eles, com todos
os tipos de médicos que tratassem da saúde mental dos mortos. Se aqui na terra as
pessoas lutavam por qualidade de vida, depois de virarem fantasmas deveriam ter um
pouco de qualidade de morte. Se depois de 30 anos uma cantora falecida não se
lembrasse de voltar a cantar igual, ou melhor, que em vida: ou ela tinha ficado retardada
pelo trauma de estar morta e continuar viva, ou era amnésica. Então poderia morrer para
sempre, deixando de amolar e encher o saco! Paulete chorou tanto que ele nunca mais
implicou com suas loucuras sobre o espiritismo.
Seria no meio das maluquices do amante que L teria seu papel de princesa. Em
sua mania de grandeza esquizofrênica, Paulete dizia que seus pais eram irmãos de Chico
Xavier e que seus avôs eram filhos de Alan Kardec, também dizia que já tinha vivido e
morrido várias vezes. Em todas as suas Vidas-morridas foi mulher. Por algum erro dos
coordenadores do berçário dos espíritos nasceu com um pênis, mas não era um homem,
era uma mulher de pênis. Nunca em suas Vidas-morridas foi uma mendiga ou
pobretona, sempre foi chique; rainha, princesa, condessa, mileyde, baronesa, imperatriz
e daí para baixo jamais nasceu. Desta vez nasceu pobre e com um pênis: tudo por uma
incompetência celestial. De uns tempos para lá Paulete estava com mania de dizer que
em sua última morte foi a Rainha Cúzãopundabunda, esposa do Rei Cornãoputara,
ambos os nobres viveram em Uganda na África e tiveram uma filha chamada Princesa
Cuzãocusparado.
Seriam estes os papeis que Elias, L e Paulete deveriam interpretar quando este
estivesse em suas crises reencarnacionistas. Pronunciar o nome de Ana Gabriela para L
foi fácil, mas na hora de dizer que seu nome era Cuzãocusparado a menina que era cheia
de indecências e malícias começava a rir e tinham que começar a encenação do
princípio. Uns vinte minutos depois L já sabia seu novo nome sem fazer ironias sobre o
mesmo. Elias já imaginava a reação da menina quando soubesse que sua mulher era um
homem. Afastou estes pensamentos e não orou a Deus para que afastasse aquele cálice,
pois era como sua avó dizia: “Quem dorme com criança amanhece mijado!”.
Elias e a menina deram tanta sorte que ao chegarem à pensão se depararam com
Paulete que já estava em seus delírios; este abraçou o homem recém-chegado, o
chamando de amado Cornãoputara e perguntando quem era a adorável criança trazida
por ele. Elias mais que depressa disse que a Rainha Cúzãopundabunda era uma
desnaturada por não reconhecer sua própria filha: aquela não poderia ser outra que não
fosse à princesa Cuzãocusparado.
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Não seria preciso que Elias revelasse a L que sua nova mãe era um homem,
pois as crianças que perdem a inocência ganham com isso a capacidade de saberem o
que os adultos escondem até deles próprios. A menina não iria tocar naquele assunto
uma vez que o motivo de qualquer pergunta era visível: Paulete estava vestindo uma
camisola transparente que não escondia seus órgãos genitais. Nítidos e flácidos as
provas da identidade sexual da mulher de Elias balançavam em uma mímica de um
‘Não’. O ‘Não’ que era acenado por seu membro dizia que a Rainha Cúzãopundabunda
era um homem!
Quando L saiu do banheiro ele entrou e começou a tirar aquilo que poderia
incriminá-lo. Depois de barbeado foi a um salão da cidade e cortou os cabelos num
corte bem baixo e social. Colocou uns óculos de grau que combinavam com vestimentas
sociais. Olhou-se no espelho e viu que estava pronto para mais um de seus personagens:
o Pastor Fausto dos Santos Belo. No outro dia, logo pela manhã deveriam partir para a
cidade de Alfredo Chaves, onde aplicariam seu primeiro golpe após terem deixado a
Bahia.
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