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Cap.

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Uma das maiores provas da solidariedade humana não é apenas ajudarmos aqueles
que choram, mas sim suportar nossos sofrimentos ao ponto de não dividirmos eles com
nossos semelhantes. Na cadeia todos eram vítimas por não terem liberdade alguma,
então ninguém se fazia de vítima para ser consolado. Esta era uma lei instintiva ali
dentro e Elias sabia muito bem disso, só que precisava chorar um pouco. A alcunha de
‘mocinha’ entre reeducandos era das mais infamantes e era dada aos que expusessem
seus prantos aos olhos alheios (o choro não era criticado e sim o incentivo a que outros
chorassem, pois todos ali tinham seus dias de pranto).

Um homem perigoso igual Farias Matador, poderia não chorar de remorsos


pelos que matou, mas choraria de tristeza por estar preso durante 22 horas dentro de
uma cela. Se o dia da liberdade de um homem fosse adiado, ele buscaria refúgio no
banheiro para derramar suas lágrimas. Ninguém o criticaria por isso; já que um minuto
de cadeia era um pouco de liberdade perdida. Outros poderiam chorar até pelo medo da
liberdade, porque sabiam como foram os anos passados na cadeia, mas não sabiam de
que jeito o mundo iria trata-los ao saírem.

Qualquer cela por menor que fosse tinha o seu altar para as lágrimas e este era
um canto no banheiro. Elias fechou a cortina feita de um cobertor e ficou ali parado
olhando as paredes acinzentadas, pensou que talvez aquela fosse à cor do seu espírito:
um cinza-claro desbotado. Sabia a gravidade das coisas que disse a sua Mãe, mas o pior
que dizê-las era senti-las, pois nada do que disse foi da boca para fora: realmente
pensava tudo aquilo e fez um desabafo.

Com a ajuda de Paulo Roberto, Elias conseguiria livrar-se dos sentimentos que
o perturbavam. Paulo Roberto costumava dizer que às vezes os sentimentos que
deveriam evitar males acabavam por causa-los ou aumenta-los. Estes eram os casos do
remorso e do rancor. O objetivo do remorso seria o de que o indivíduo alcançasse a
bondade, só que o fardo da culpa poderia trazer a lembrança do mal praticado e fazê-lo
praticar novamente. Já o rancor valia por mil ofensas, pois levaria o indivíduo a repetir
mil vezes a si mesmo o que o seu desafeto praticou uma única vez.

Naquela noite Elias não conseguiu dormir e passou a noite em conversações


com Paulo Roberto. Após tanto tempo que havia passado uma noite de insônia ouvindo
as histórias de Farias Matador, descobriu naquele dia que o assassino ainda era um
insonioso. Farias Matador não conseguia dormir aos domingos, talvez com saudades
dos dias de folga em Petrolina. O domingo entre os petrolinenses era o dia das catiras e
bailes: era aonde Farias dançava, tocava viola e namorava as moças bonitas e humildes
de sua cidade. Talvez por isso ele fosse insone aos domingos. Dizem que a insônia é
namorada dos solitários: então na cadeia ela é meretriz, por visitar a muitos que não
conseguem dormir. Paulo Roberto recitava de memória os pensamentos de Bertrand
Russell que ele mais gostava. Elias amava o paralítico filosofo, pois através de sua voz
máscula conheceu as ideias de Bertrand Russell e apaixonou-se por elas.

O que Elias mais amava em Paulo Roberto era a sua força de caráter por fugir
da autocompaixão. Ninguém jamais o via reclamar de nada, nem das escaras que
devoravam suas costas e nem das pernas que perderam seu uso quando ele tinha apenas

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quatorze anos. Se Júlio Franco era o seu cuidador e lhe amparava como uma mãe ou
esposa, era por ser doente mental e não demonstrar compaixão. Júlio Franco foi
escolhido porque precisava de alguém que o protegesse até de si próprio e de suas
loucuras. Assim os dois homens deficientes cuidavam um do outro, sem a dívida de
favores.

Paulete não disse nada a Elias, mas ainda ressentia do gesto preconceituoso de
sua Mãe. O mais difícil de amar duas pessoas que não se gostam é estar entre suas
frustações. Se as mães às vezes não gostam daqueles que amam seus filhos não é por
pensarem que o amor que tem é maior, mas sim por temerem que alguém machuque
aquilo que acreditam lhes pertencer.

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