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A doce ira

Lourdes Rodrigues
Ela fechou a porta com estardalhaço. O eco ainda soava aos seus
ouvidos quando a gargalhada lhe escapuliu da garganta, deslizou
pela língua, escorregou entre dentes, lábios e explodiu.
Conseguiu! Ora, ora, pois não é que havia conseguido? Queria ver
a cara de assombro deles. As bocas abertas de espanto,
perplexidade. Quando recuperassem a voz iriam se indagar e um
ao outro: O que foi isso? O que aconteceu aqui, que bicho a
mordeu? Não está mais na menopausa, já perdeu de vista o
climatério. Seria Alzheimer, dizem que as pessoas ficam de
humor alterado, às vezes até incontrolável. Que estranho esse
comportamento!
Que importa o que eles pensam ou digam? Levara quase uma vida
para dizer sem rodeio e supostas interpretações freudianas o que
pensava daquelas mentes tacanhas. Well done, dear! Well done!
Sentira-se uma star em plena ribalta. Luzes, luzes! Luzes para
esta setentona que acabou de fazer a sua estreia no palco da
autenticidade. Never more, a transigência. Never more, a
tolerância. Never more, a complacência. Cadê o corvo? Vamos,
corvo, vamos, repita comigo: Never More! Never More!
Setenta anos de meio-sorrisos, olhos baixos e largas desculpas
para as transgressões algumas vezes disfarçadas de idiossincrasias
das pessoas. Ah, com que inveja olhava os que chutavam o pau da
barraca, sem vergonha nem medo de baixar o nível, vomitando
verdades que outros insistiam em esconder embaixo do tapete.
Que travessia tão longa. Vale a pena revê-la, para melhor festejar.
Primeiro ela percebera que as pessoas iradas enfeavam. Sim,
porque com exceção dos caras-de-pau, a raiva fica exposta nas
expressões faciais. O rosto tão meigo, tão amado de sua mãe, que
mais parecia uma deusa ou aquela Nossa Senhora cujo santinho
guardava no seu missal, mudava completamente. Ficava crispado,
os olhos chispavam, a pele escurecia, os dentes cerravam e o

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corpo retesava. Quando apontava o dedo em riste para ela,
lembrava um cavaleiro pronto para atacar com a sua lança. Ficava
tão feia, semelhante a uma bruxa, e ela ficava procurando a
verruga de Alceia naquela cara horrenda. Mas, também a figura
era engraçada, quase ridícula; e quando ela colocava as mãos na
cabeça, nos ouvidos, em total desespero, tinha vontade de sorrir
daquele espectro ali à sua frente. E jurava que nunca iria deixar
que a ira fizesse com ela o que fazia com a mãe. Não queria ficar
feia daquele jeito.
Posteriormente, as freiras ensinaram que além de ofender a Deus,
que levava de cabeça para baixo o irado para o inferno, uma
pessoa que não controlava os seus impulsos era mal-educada e
consequentemente malvista em qualquer lugar. Também não
queria que dissessem que ela era grosseira, xucra, sem estilo.
Pobre, sim; ignorante, não.
Mais tarde, adulta, voltou a pensar sobre o assunto, buscando resposta
às suas perguntas. Aristóteles, o pai dos filósofos, na Ética a Nicômaco,
diz que aqueles que nunca se irritavam, demonstrando não sentir as
ofensas recebidas ou não sofrendo por elas, mesmo diante de situações
em que a irritação era mais do que justificada são parvos. Esse excesso
de tolerância aos insultos recebidos é uma característica de
subserviência, de assujeitamento. Por favor, longe disso ela se situava.
Assujeitar-se, ora, a ninguém; tolerar insultos, muito menos. Tampouco
gostava com pessoas assim.

Mais adiante, o grego diz que aquele que se irrita quando se deve irritar
com as situações ou pessoas de maneira adequada, tanto na forma
como no seu tempo de duração, deveria ser louvado. Talvez ela se
situasse entre esses. Pelo menos, gostaria que assim fosse. Confessava,
não sabia que existiam uma forma e um tempo adequados para
demonstração da ira. Estaria Aristóteles se referindo como inadequados
o ressentimento que se guarda por conta de uma ofensa e à desmedida
na demonstração da emoção que alguém trouxera? Não deixava muito
claro, embora falasse em gentileza, em não se deixar levar pelos
arroubos, ou se transformar num tipo vingativo. Também fala dos que
se excedem no acesso de ira por dirigi-la à pessoa indevida, ou por
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razões que inexistem ou pela longa duração, tornando-se insuportáveis.
Conhecia muitos assim, ela pensou, mesmo tendo razão esses tipos a
perdem pelo desgaste a que levam a contenda. Entre eles estão os que
têm incontinência verbal, irritam-se por tudo e por nada. Primeiro,
agridem, depois vão ver se tinham ou não razão. Por outro lado,
sossegam e esquecem rápido como se nada houvesse acontecido.
Desagradáveis como companhia. É como caminhar num terreno
minado, nunca se sabe quando vai explodir. Piores são os iracundos
excessivamente sensíveis, acentuadamente amargos que nunca
esquecem ou perdoam o ocorrido ou levam muito tempo para isso,
aguardando o momento da vingança. Só com ela, cessa a ira. Porque
faz nascer dentro deles um doce prazer, ao expulsar a amargura do
sofrimento. Pois, se não conseguirem vingar-se, vivem como que a
carregar um fardo pesado, diz Aristóteles. Ela sentia calafrios ao
pensar em gente assim, mesquinhas, sem qualquer grandeza de alma;
pesam toneladas, difíceis de suportar. Tivera poucas oportunidades de
conhecer pessoas assim, mas fugira delas como o diabo foge da cruz.

Ainda agoniada pelas dúvidas, foi buscar ajuda em Nietzsche que


soubera ter analisado a temática do ódio e da vingança
desenvolvendo o conceito do ressentimento em sua obra Para a
Genealogia da Moral. Referindo-se às atitudes dos tipos
ressentidos e fracos ele diz que: Entre eles encontra-se em
abundância os vingativos mascarados de juízes, que
permanentemente levam na boca, como baba venenosa, a palavra
justiça e andam sempre de lábios em bico, prontos a cuspir em
todo aquele que não tenha olhar insatisfeito e siga seu caminho
de ânimo tranquilo. Eles se envenenam de raiva e rancor
tornando-se reféns desses sentimentos que consomem sua energia,
seu juízo, desperdiçando assim a sua vida e muitas vezes
estragando a vida dos outros. Parecia que Nietzsche trabalhara
essa temática em pleno século XXI pela observação das redes
sociais, mais precisamente do Facebook.
Refém, jamais! Com certeza a opção pelo perdão seria o caminho
mais fácil. E assim, foi. Assustada com as palavras do alemão,

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resolveu que nunca mais guardaria ressentimento, não queria ser
juiz de ninguém. Daí em diante, não se preocupava muito em
saber se o perdão era sincero, verdadeiro, contentava-se em deixar
para lá a atitude ofensiva e continuar livre, completamente livre
de qualquer ressentimento. É bem verdade que não se tratava de
ofensas fundamentais, não se prestava ao papel de parva.
Mexericos aqui e ali que fazia questão de nem saber; opiniões
superficiais a seu respeito, que sequer se dava ao trabalho de
esclarecer; puxadinhas de tapete que não a impediam de seguir
em frente, sem sequer dar sinal de ter visto.
A busca continuava. Encontrou em Shopenhauer que era pouco
inteligente, inútil e até perigoso deixar transparecer a ira ou o ódio
em palavras ou mesmo em expressões faciais. Mas, o perigo está
na sua segunda recomendação quando diz que apenas nas ações o
ódio e a ira devem ser demonstrados e isso poderá ser feito tão
mais perfeitamente quanto mais perfeitamente forem evitadas as
atitudes anteriores, diz ele em seu livro A Arte de Ser Feliz.
Jesus! O sujeito era maquiavélico. O que ele propõe é a retaliação
com um semblante impassível. Ela não sabe por que, lembrou-se
do sorriso do chinês. Não, não e não; concordava mais com a
teoria do ressentimento de Nietzsche, não aceitava essa posição
de refém pelo ódio de alguém que um dia supostamente alguma
mal lhe fizera. A face impassível não garantia que o a alma
estivesse indiferente.
Sim, ela usara a palavra supostamente por quê? Será que a ofensa
fora real? Será que não havia uma certa fantasia ou indisposição
com relação à pessoa que ofendera? A tolerância para as falhas de
quem se gosta é quase ilimitada; há sempre uma desculpa, não foi
por mal, estava sob pressão e por aí vai. E o contrário se dá.
Quando a simpatia é escassa, um leve arquear de sobrancelhas é
interpretado como desprezo, crítica, arrogância. Sêneca falara
muito bem sobre isso: Há uma grande parte dos homens que não
se sente irada com os delitos, mas com os delituosos. Talvez a
atitude não fosse um delito se não viesse de quem viera. Por

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outro lado, ainda analisando sob o ponto de vista do delito
conforme trazido por Sêneca, muito se perde na discussão com o
autor da agressão, muitas vezes agredindo até à sua genealogia ou
às suas fraquezas, em vez de se refutar vigorosamente o que
efetivamente foi o motivo da ofensa. Esse desvio para agressões
pessoais ao invés do ataque com rigor à concepção, à essência da
agressão é uma perda de oportunidade educativa sem par. O
ataque aos homofóbicos escoa a energia que poderia ser
direcionada para combater a homofobia; e há tanto o que dizer
sobre isso tanto em termos históricos, sociológicos, psicológicos
como para alicerçar novas convicções sobre o direito, o respeito e
a liberdade do indivíduo para suas escolhas sexuais. A agressão
esvai o discurso e fecha o agressor para qualquer ampliação de
entendimento sobre essa questão. E assim, em tudo. O fascismo é
uma questão a ser enfrentada; os fascistas precisam saber mais
sobre a sua história e o que significa conviver num estado de
exceção e de perda de liberdade de expressão. Nota dez para
Sêneca por permitir que ela fizesse essa extrapolação da sua frase
para os momentos atuais.
Continuando a travessia, saiu da filosofia para a psicologia e a
conversa foi bem outra. Teve que rever seus conceitos sobre o
excesso de ira. Nessa perspectiva, a agressividade física e verbal é
considerada sempre como patologias e como tal devem ser
tratadas, sejam como Transtorno de Personalidade Borderline,
Transtorno de Personalidade Antissocial, Transtorno Explosivo
Intermitente (lembrou de alguém que diagnosticaria assim sem
nem piscar os olhos). A única forma de escapar do
enquadramento de patologia e ser considerada saudável é ter uma
meta significativa, aceita pelos seus pares, que foi frustrada pela
ação de terceiros. De qualquer forma, a duração e a forma de
expressão da ira devem ser socialmente aceitas.
O vienense psicanalista Sigmund Freud diz que a inclinação para
a agressão constitui, no homem, uma disposição instintiva e
original, autosubsistente, considerando-a o maior impedimento

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para a civilização. E ele traz o parricídio como exemplo desse
ódio, o assassinato do pai pelos filhos para assumir o controle da
horda. E embora a civilização use todos os meios para sua
inibição, ela não desaparece, porque está introjetada,
internalizada. Toda vez que, por alguma razão, ela vaza ao
controle severo do sujeito, do surge a culpa. Somente nos divãs e
consultórios é que o analisando está livre para trazer o seu ódio,
principalmente a ira dirigida aos seus pais, sem qualquer medo de
ser criticado.

Os psicólogos recomendam liberar a agressividade para que não


surjam as chamadas doenças psicossomáticas. Se o ódio não é
enfrentado, se é recalcado, vai sair por algum lugar, trazendo o
adoecimento, dizem eles. Só faz mal o que não se diz, concluem.
Depois disso ela nunca mais deixou de externar o que a
incomodava. Claro, muito atenta aos seus mestres, evitava a
desmedida na forma e duração. Sempre levando o autor de sua
insatisfação a refletir sobre as causas das suas queixas. Deu certo
durante muito tempo, depois não surtia mais efeito, e ela passou a
ouvir frases do tipo: você está sendo histórica, parafraseando a
palavra histérica por não se atrever a expressá-la literalmente. Ela
entendeu o recado. Não queria ser chamada de histérica, nada
contra, até tinha muito respeito por elas, de alguma forma
garantiam a sanidade da pessoa que a tem. Então começou a se
blindar, não se deixando atingir, levando isso para a vida de uma
forma geral. Criava um mundo ficcional cheio de dramas e tramas
que ela ia desfiando pouco a pouco, dia a dia através de seus
personagens.
Como a literatura a transportava! Nem todo Boeing seria capaz de
levá-la tão longe em tão pouco tempo. E pela ira dos personagens
ia purgando a sua própria ira. Não conhecia romances que não
falassem dela, de sua raiva, de seu ódio. Na Ilíada, de Homero, o
seu Canto I era todo dedicado a Ménis, a ira de Aquiles.
Cristã como sempre fora, não poderia deixar de fora o livro dos
livros, a Bíblia. A ira de Deus sempre a assustou. São tantas as
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narrativas na Bíblia que falam dessa ira, no Gênesis,
principalmente. Por temê-la os homens se controlam, dizem. Deus
foi, é e será sempre o maior controlador da ira humana pelo
temor. Dostoievski tem uma pergunta em Irmãos Karamazov que
ficou célebre: se Deus não existe, tudo é permitido? A literatura
nos leva à reflexão, à transcendência. E a Bíblia, ao temor.

Dante Alighieri, em A Divina Comédia, pôs


no quinto ciclo do Inferno, submersos, os
vencidos pela ira, amontoados no rio Estige
juntos com os que não conseguiram
controlar a raiva. O Estige é um rio
pantanoso que cerca a cidade de Dite. Ali
são submetidos aos efeitos da ira causados
por seus semelhantes, e então se mordem, se batem e se torturam.
Bem no fundo do Estige estão os rancorosos que, por nunca terem
externado a ira, mantendo-a guardada a sete chaves, não podem
subir à superfície e ficam a gorgolar a lama no fundo do rio.
Dante foi cruel com os ressentidos, melhor seria deixá-los
brigando na superfície do rio, ela pensou.

Passadas ela foi entendendo que a ira é da condição humana,


como diz Freud, assim como o amor, a compaixão. E que todos os
ensinamentos que ela recebera foram válidos e tiveram a sua
importância numa determinada fase da sua vida. Mas que um ser
humano não poderia sentir-se completo e livre sem viver os seus
sentimentos em toda a sua dimensão. Ela deixara tantos não ditos
em sua vida para poupar os ouvidos dos outros, embora os seus
jamais houvessem sido poupados. Aquela blindagem nem sempre
fora eficiente, deixando perpassar ódios que muitas vezes a
faziam perder o equilíbrio por algum tempo até se recuperar e
seguir em frente. Decretou, então, que era agora ou nunca, não
havia mais tempo a perder. E o dia fora hoje, naquela reunião
familiar ácida em que, pela primeira vez, abriu as comportas da
sua ira e deixou transbordar mágoas passadas e presentes, dizendo
o que pensava de cada um deles. Agora poderia mergulhar no rio
Estige. Flutuaria! Ficaria na superfície a dar braçadas com tantos

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outros irados iguais a ela e não no fundo, submersa com os
ressentidos

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