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Cap.

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Desta vez não foi possível apreciar a paisagem, apesar de retornarem quase pelo
mesmo caminho. Pela fresta na tampa traseira do veículo ele pôde olhar o finalzinho da
viagem. O carro chegou à Rua Calixto Abdala com a Rua 10 de Março estacionando em
frente a um sobrado antigo. A instituição situada num prédio de um andar era a
Delegacia Geral de Anápolis. Dois homens fumavam conversando de pé na calçada: o
Agente Dasilva e o Escrivão da Polícia Civil Oséias Barreto. Os homens no interior do
automóvel foram apeando e conversando em voz alta com os outros dois. Os Policiais
estavam galhofando dos sofrimentos de Elias na Cascalheira.

Dasilva batendo o fundo do isqueiro na palma da mão enquanto conversava,


perguntou:

__O Elias sofreu muito? Quero saber se ele gemeu? Se gritou?

O Investigador Daniel respondeu:

__O Elias só não cagou na roupa porque tava vestido só de cueca! Tá um fedor
danado lá atrás... De urina e de merda!

O Agente Jusvaldo parecia pensativo com as mãos enfiadas nos bolsos das
calças, olhava os próprios sapatos quando olhou para Dasilva e disse:

__Eu não tenho muito tempo na Polícia igual vocês, mas eu não posso dizer
que já vi muitos malandros fortes iguais esse Elias! O homem é duro que parece feito de
pedra, a gente moeu ele na pancada e ele não abre a boca pra dizer nada... Só pra fazer
gracinha e abusar da nossa cara...

Dasilva franziu o cenho e sacudiu a cabeça enquanto interrompia as palavras de


Jusvaldo dizendo:

__Quê isso Jusvaldo? O Elias não é assim tão forte não... O Pedro Cobrinha era
bandido muito mais forte e aguentou mais que isso!

__É, mas ele morreu e morreu sem dizer nada! __disse o Agente Jusvaldo __.

Dasilva voltou ao assunto:

__Se Elias morrer, terra na Cascalheira é o que não falta... Morreu a terra
saibrosa enterra; uai!

__Pra mim esse homem é aroeira... A gente devia era voltar com ele lá pra
Cascalheira e terminar o serviço!__ disse o Agente Jusvaldo com ar de convicção__

O Investigador Daniel olhou em direção ao porta-malas onde Elias estava e


disse:

__Aroeira que não conhece machado apodrece e tomba de velhice, mas no corte
de um bom machado não tem aroeira que não caia!

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O Agente Jusvaldo retrucou:

__Eu te vi dar dois tiros de esculacho perto da orelha dele! Ele deve até de tá
surdo daquele lado do ouvido e não falou nada...

O Investigador Daniel interrompeu Jusvaldo com sua voz calma, porém, o


timbre que usou foi enérgico:

__Ocê ainda é novo na Polícia, Jusvaldo: Elias vai falar e eu vou ri de vocêis
quando ele falar!

O Investigador Daniel disse em alta voz para ser ouvido por Elias:

__Eu tô só esperando a hora do Elias abrir a boca pra gente levar ele lá pra
cadeia... Não vamos soltar ele porque somos honestos! No fundo ele é um cara gente
boa, é filho de um Pastor lá de Goiânia... Se nóis matasse ele, ia dar problema pra gente!

Elias riu daquele gesto ingênuo do Policial em achar que ‘ele’ sendo um Mestre
de enganar através das palavras iria cair naquela conversa. Que dissessem o que
quisessem, mas o que sabia é que seria morto. O tal Pedro Cobrinha que foi citado
naquela prosa era um dos muitos ladrões que sumiram na cidade sem deixar notícias.
Ele foi um dos que assaltaram a cadeia municipal em 1994. Elias o conheceu e agora
sabia onde estava seu cadáver: lá na infamante Cascalheira! Depois que o Investigador
Daniel disse aquilo foi em direção ao porta-malas e retirou o supliciado que por não
conseguir andar foi ajudado por ele e pelo Agente Luís. Tiveram que subir poucos
degraus até chegarem à sala do Delegado que estava defronte uma mesa cheia de
guloseimas de padaria. Ele era um homem já na terceira idade, uns 55 a 60 anos. Era
branco, gordo e vistoso. Seus cabelos lisos e grisalhos junto com o semblante claro eram
bastante agradáveis de olhar. Estava presidindo a Delegacia há muitos anos. Não era a
primeira vez que Elias e ele se encontravam, pois somente naquele Distrito o outro fora
preso várias vezes.

O Delegado velho e gordo lambia os dedos que estavam sujos de açúcar e doce
de leite, provenientes de um amontoado de sonhos recheados sobre a mesa. Estendeu
sua mão gorda ao prato de sonhos, dizendo enquanto mastigava a guloseima:

__Ê Elias! O bom filho a casa retorna... Como dizem aqui Goiás: “O tatu velho
nunca se esquece de uma morada antiga!”.

Os Policiais que vinham conduzindo Elias chegaram-no mais perto da mesa do


Delegado que fez uma careta de nojo, enquanto mastigava um bocado de sonho,
dizendo logo em seguida:

__Mas que fedor é esse... O Elias tava bêbado quando vocês prenderam ele?

A pergunta foi feita ao Investigador Daniel e ao Agente Luís que amparavam


Elias, mas quem respondeu foi o Agente Jusvaldo:

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__Ele tá assim porque deve ter comido alguma coisa estragada, deu disenteria e
agora ele tá desse jeito; todo borrado!

O Delegado disse meio irritado com sua cara de nojo:

__Se o Elias defecou durante o interrogatório o problema é dele, mas tinha que
trazer ele pra cá sem dar um banho primeiro! Que fedor... Ah! Eu até perdi meu apetite!
__o Delegado jogou metade de um sonho mordido sobre o prato__

Como aquela era uma prisão de interrogatório, Elias não foi levado para uma
cela da Delegacia, mas sim para um cômodo de despensa que servia para guardar
objetos de limpeza (antes de o levarem para lá, deram-lhe um banho de mangueira como
se ele fosse um automóvel depois de fazer viagem numa fazenda). Continuou algemado,
porém, o algemaram com as mãos para frente. Um pensamento terrível passou por sua
mente. Sabiam que se ele fosse torturado por muito mais tempo morreria, então
alternariam as torturas, o mantendo preso, até que resolvesse falar ou sucumbir. Tentou
afastar esta ideia sem conseguir, pois o único recurso que teria se os Policiais
utilizassem esta técnica para mantê-lo vivo, seria uma greve de fome, mas sabia que
mesmo com isso não teria uma morte rápida. Olhou em torno de si e não viu nada que
fosse útil ao suicídio. Jamais imaginou o quanto um instrumento que trouxesse a morte
poderia ser tão útil. Elias estava sentado no assoalho frio e sujo da despensa, mas estava
tão cansado que adormeceu. Não conseguiu dormir muito devido às dores do
interrogatório, porém, o sono foi agradável. Quando acordou pareceu ouvir a voz da
pequena L. Quis dormir de novo, para ver a menina e acreditar que os pesadelos daquele
dia eram apenas sonhos.

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