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A Viúva é o terceiro livro da série Damas Perfeitas.

Apesar de
independentes, as histórias se interligam ao longo da série e, assim,
aconselha-se a leitura do primeiro livro: A Marquesa e do segundo: A
Cortesã.
Disponível no Amazon e em formato impresso, na editoraportal.com.br

Livro 1: A Marquesa https://amzn.to/2Rz1QI2

Livro 2: A Cortesã https://amzn.to/2Orvs7U


Grove House, dezembro de 1854.

Diante do espelho, Viollet tentava encontrar a mulher que fora um dia. Não se
conhecia mais, sequer se via. Tal impossibilidade não se dava pelo pesado veludo negro
que cobria a penteadeira, nem mesmo pelo véu que lhe tampava o rosto. Sua
inquietação ia além do que os olhos podiam perceber.
Faltava-lhe algo, faltava-lhe vida.
Vida da qual não se julgava merecedora, não depois do que fizera. Era uma
mensageira da morte, uma assassina. Estaria sempre dentro de uma redoma lúgubre.
Vida que tirara do marido.
Ao apertar o gatilho da arma de duelo, tornara-se o tipo de pessoa que sempre
havia abominado. Igualara-se a Phillip agindo de forma covarde, vil, cruel. Sabia que
deveria suportar as agressões que sofria, em silêncio, apática. Jamais poderia ter agido
com tamanha impulsividade.
Viollet afastou o véu, que lhe incomodava, mas, mesmo assim, não conseguiu
ver sua imagem refletida. Diante do tecido preto que cobria o espelho, aos poucos, sua
mente elucidava o que julgava óbvio. Todo o sofrimento que seu marido a fizera passar
era merecido, um castigo pregresso pelo crime que ela iria cometer.
Ele sabia! Deus conhecia a predestinação de todos os seus filhos. Oferecera-lhe
a Justiça Divina antecipada e agora era misericordioso dando abrigo a Viollet e a sua
irmã, Flora, na casa da marquesa de Bristol. Ela não fazia jus à tamanha benevolência,
sabia que aquilo era indesculpável. Deveria estar trancafiada na Torre de Londres,
aguardando o dia em que sua cabeça rolaria diante dos olhares de todos. Mas o Senhor
sabia que ela ainda tinha a missão de encaminhar a irmã para um bom casamento.
Viollet acreditava que, depois que Flora se casasse, teria sua merecida penitência.
A culpa não lhe deixara um só dia desde setembro. Três meses haviam se passado
e a cena do dia em que se tornara a viscondessa viúva era revivida durante dias e noites.
Apesar de toda a abundância em que agora vivia, Viollet tinha consciência de que só não
fora jogada na sarjeta porque Deus olhara por Flora enviando Sarah para acolhê-las e
acalentá-las.
Como se não bastasse o tormento de não se sentir digna de tamanha bondade,
era obrigada a conviver com John, que visitava a casa da irmã quase que diariamente.
Jonh! Oh, Jack, por que não fui capaz de esperá-lo? Iludida pela possibilidade de salvar
o pouco que lhe restava de sua família, caíra na armadilha de Lorde Phillip Smith. E,
mesmo que não enxergasse razão para continuar existindo, era por Flora que ainda se
mantinha viva. Recebendo uma ajuda que sequer merecia.
Em meio a lamúrias e preces, nem percebeu quando se pôs de joelhos, agarrada
ao rosário. Lembranças, lágrimas e orações se fundiam em um murmúrio ininteligível
que reverberava pelas paredes do ostentoso quarto em Grove House.
A luz tomou o cômodo bruscamente.
Pequenas partículas de poeira bailaram pelo ar trazendo uma onda de pânico.
Os olhos de Viollet ardiam, os joelhos formigavam. Já não era tão habilidosa em
esconder as emoções, seus nervos pareciam fora de controle.
O pavor se tornou ainda maior ante a lembrança de que Phillip jamais admitiria
tamanho desleixo com a limpeza da casa. Ela esfregou a barra do vestido contra o piso
repetidas vezes. Mergulhava em dolorosas lembranças, uma teia na qual havia anos se
prendera.
Phillip jamais a perdoaria, seria açoitada e violada até que ele se desse por
satisfeito. Como poderia permitir tamanho descuido com a limpeza?
Seu corpo tremia, não conseguia se controlar. Sabia que tinha que se manter
firme, seu marido apreciava sua capacidade de suportar o medo e a dor, entretanto,
naquele momento, ela não encontrava forças.
Quando sentiu uma mão sobre um ombro, prendeu todo o ar que havia aspirado
e parou instantaneamente. Sabia o que aconteceria. Ele fingiria o mínimo de empatia,
tiraria sua roupa e castigaria seu corpo. Com os olhos fechados, ela estava pronta para
receber sua punição.
— Viollet! — ouviu ao longe a voz de Marie. O que ela estava fazendo? Sabia
que não podia gritar. — Viollet — a voz insistente deixava seu controle por um fio.
Ondas de tremores tomaram o corpo de Viollet. Sentiu a face banhada pelas
lágrimas, nem as percebeu caindo. Os soluços presos lhe rasgavam a garganta. Ela não
seria poupada, seu castigo seria longo e doloroso.
— Viollet, minha querida, está tudo bem — a voz doce de Marie tentava acalmá-
la, Viollet podia sentir a mão que acariciava seus cabelos. — Nada mais vai lhe acontecer,
Philip está morto.
A viúva foi tomada por um lapso de razão não menos lancinante do que a própria
realidade.
— Eu o matei.
— Não! — Marie afirmou incisiva. — Eu apertei o gatilho...
— Ele não morreu no primeiro tiro — contou o que lhe afligia com um fio de voz.
— Ele se mexeu, não estava morto quando você saiu. Atirei com a segunda arma. Sou a
assassina do meu próprio marido.

A caminho de Grove House, Lorde John Anson, o visconde de Trentham, filho do


duque de Sutherland, mal conseguia conter a irritação. Seus pés tocavam o assoalho da
carruagem incessantes vezes, enquanto passava as mãos pelos cabelos, deixando-os
revoltos.
A inoportuna placidez de Sir Anthony, sentado à sua frente, deixava-o ainda mais
furioso. Era afrontosa aquela aparente tranquilidade diante do recado que o médico
recebera. Marie havia mandado chamá-lo para atender a viscondessa viúva.
Conhecendo Viollet desde a infância, John sabia que a presença de um médico
só se fazia necessária em casos de extrema urgência. Temia um mal súbito ou uma grave
enfermidade. Remexeu-se no assento. Não suportaria se algo lhe acontecesse.
Apesar da ansiedade para vê-la, somente a oportunidade de cuidar dela, de
protegê-la, trazia-lhe certo alívio. Agora ela não era mais a viscondessa de Derby. Se
tudo ocorresse como ele desejava, em breve Viollet se tornaria a viscondessa de
Trentham e, em um futuro distante, a duquesa de Sutherland.
— Não me faça arrepender de tê-lo trazido. — A serenidade que Anthony exalava
instantes antes deu lugar a um semblante austero. — Respire, John, ou vai acabar
sofrendo dos nervos também.
— Se continuar tranquilo desta maneira, vou fazê-lo respirar no inferno — o
visconde esbravejou. — Como pode ter a audácia de me pedir calma em uma situação
como essa? — Levantou a mão em punho, pronto para atacar o amigo. — Quero que
você e seus exercícios de respiração vão para o inferno.
— Sossegue, John — a voz firme de Ann o fez abaixar o braço.
Sua irmã mais velha, que até então mantinha-se calada, resolveu interceder, ao
ver John prestes a perder o controle.
— Por que infernos Sarah não foi morar em Mayfair? Grove House é do outro
lado do Tâmisa. — John continuava batendo o pé no chão da carruagem, como se o
movimento fosse ajudá-lo a chegar mais rápido em Roehampton.
— Garanto que deve ser mais uma crise de nervos — Anthony tentou tranquilizá-
lo.
— O que quer dizer com “mais uma crise”? — Os olhos do visconde faiscavam
furiosamente.
Ann tocou o ombro do médico, como se lhe pedisse em silêncio que explicasse
ao irmão.
— Não tem sido fácil para Viollet, John. Deus sabe o que acontecia entre ela e
Phillip — tentou medir as palavras. — Sir Anthony tem ido a Grove House com
frequência para acompanhá-la, algumas vezes tarde da noite. Vez ou outra ela tem crises
de nervos.
John estreitou os olhos para o amigo.
— Por que diabos não me contou? Sabe o que ela significa para mim.
— Precisava ter certeza de que estaria preparado. Diante de seu estado, confesso
que me arrependo de ter lhe contado e de ter permitido que me acompanhasse.
Sem pensar duas vezes, o visconde avançou em direção ao médico, segurando-o
pelo colarinho.
— O que queria? — Ann gritou com firmeza, deixando os dois boquiabertos. —
Desde que Viollet se casou com Phillip, você virou um patife. Mal conseguia dar conta
de si mesmo, acha realmente que conseguiria ajudá-la? — Ela olhou para o irmão com
firmeza. — Solte-o! Ou eu mesma ordenarei que o levem para Anson House e, por conta
da sua teimosia, o atendimento de Viollet terá que esperar. — Sem pensar duas vezes,
John sentou-se, atordoado com o rompante da irmã. — Acha mesmo que, no estado em
que se colocou, você teria condições de ajudar alguém? Foram três anos jogando sua
vida pelas valas. Talvez sua memória esteja afetada, mas não fui a única a ir a Paris para
uma desintoxicação do ópio. A diferença é que não escolhi, enquanto você sim! Então
comporte-se!
John não tinha argumentos, jamais a vira daquela maneira. A doce e frágil Ann
parecia Sarah, sua irmã mais nova. Ele coçou a cabeça tentando organizar os
pensamentos.
— Meu caro amigo. — Anthony já havia voltado para seu modo sereno, ajeitava
o colarinho e o lenço recentemente desfeito. — Se fui até Anson House para chamá-lo
é porque julgo que está apto a ajudá-la. Entretanto é necessário que tenha o controle
de si mesmo, lembre-se de que você também está em tratamento.
— Ela é minha cura! — afirmou o visconde com determinação. — E eu sou a cura
dela.
Com um olhar condescendente o médico falou:
— Lamento informar, as coisas não serão tão fáceis quanto espera.
John não esperava que recuperar Viollet fosse uma tarefa fácil, contudo jamais
imaginara que seria tão difícil.
Quando chegou a Grove House, sua irmã Sarah, a marquesa de Bristol, o impediu
de entrar nos aposentos onde Viollet estava instalada. Apenas Anthony entrou e, pelo
que lhe foi informado, Marie estava com ela.
Buscando seguir o conselho do médico, John foi para o jardim para tentar
amainar seu acalorado tumulto interior. O vento frio anunciava o fim do outono, mas
não parecia ser um empecilho para a criança que corria desajeitada em volta da fonte.
Logo atrás, estava David, seu primo, que parecia se divertir mais do que o próprio
menino.
De um jeito carinhoso e paternal, David pegou a criança nos braços e caminhou
em direção a John, que permaneceu estático enquanto absorvia a cena.
— Diga oi para Lorde John, Paul — David pediu assim que se aproximaram.
— É um prazer conhecê-lo, meu senhor — com as palavras emboladas, o menino
fez uma desajeitada reverência.
— O filho de Marie? — John perguntou para o primo, encantado com o garoto,
que acenou em concordância, com um sorriso exultante. — Pode me chamar de John,
pequeno Paul. Não precisamos de formalidades
— Lady Viollet disse que é educado.
Foi então que John se deu conta de que aquela criança fora criada por ela. Pela
sua Let. Num impulso, pegou a criança nos braços e a abraçou. Naquele menino
encontrava um pouco dela.
Caminhando de volta para dentro da casa, com o pequeno Paul no colo, era como
se o tempo não tivesse passado. John se viu revivendo uma época na qual Viollet estava
sempre sorrindo. Foi impossível não se lembrar do primeiro beijo que deram, havia seis
anos.
Viollet estava com as roupas sujas de tinta, tentava reproduzir os jardins de
Lilleshall. As cores vibrantes, salpicadas no vestido rosa-pálido, saltavam aos olhos e a
deixavam ainda mais encantadora. Eles se conheciam desde sempre, seus pais eram
amigos, os Thompsons eram os primeiros a ser convidados para a temporada de caça.
Como de costume, enquanto se aproximava John bolava alguma traquinagem
para aporrinhar a menina franzina e travessa. Mas, naquele dia, ele não conseguiu irritá-
la. Hipnotizado pela beleza de Viollet, mudou de ideia. De maneira alguma desejava cair
em seu desagrado. Fora tomado por súbita vontade de fazê-la sorrir.
— Achei que não viria, imaginei que Eton aprisionasse seus alunos e só deixassem
sair para o feriado de Natal. — Ela sorriu, fazendo com que todos os músculos de John
enrijecessem.
— Sempre há uma forma de fugir para ver belas damas.
Viollet gargalhou. Era magnífica. Os cabelos negros estavam parcialmente soltos,
dando a ele uma visão da mulher que ela estava se tornando. Já não era mais uma
menina.
Era o que ele achava, até ser surpreendido. Viollet esperou que ele chegasse bem
perto do rio e o empurrou. Antes que pudesse se recuperar da queda, encharcado, ele a
viu se despir; Viollet ficou somente com as roupas de baixo para acompanhá-lo em um
mergulho.
Ela tinha pressa, se fosse pega nadando de maneira tão escandalosa, sua
preceptora a mataria. Naquela manhã ela se vestira preparada para qualquer aventura.
John permanecia na água, completamente vestido, observando cada movimento de
Viollet.
— Não vai tirar os sapatos? — ela perguntou tão naturalmente que parecia não
se dar conta de que seu corpo já havia se transformado.
— Viollet, você... — Ele não teve tempo de alertá-la, ela entrou na água e
mergulhou na parte mais funda.
John retirou os sapatos, jogou-os na margem do rio e começou a nadar em
direção a ela. Deveria ser algo natural, não era a primeira vez que nadavam juntos,
escondidos. Apesar dos três anos de diferença, Viollet sempre fora uma agradável e
divertida companhia. Mas daquela vez tudo parecia diferente, ela era a mesma menina,
mas seu corpo era o de uma mulher.
— Eton não está lhe fazendo muito bem!
— Ainda bem que em breve irei para Cambridge. — Ele entrou na brincadeira
nadando para o fundo.
— Quanto tempo ficará por lá?
— Quatro ou cinco anos — John respondeu, estavam cada vez mais perto um do
outro.
— Então, em quatro ou cinco anos, estaremos em Paris! — Ela o surpreendeu
com um abraço.
John a envolveu entre os braços, a proximidade era tentadora.
— Paris?
— Iremos para a França, depois Itália. Você vai me levar para conhecer o mundo.
Quero fazer cursos de pintura. Vou ser a pintora mais conhecida de toda a Europa.
— Por que eu? — ele perguntou com um tom divertido, sem soltá-la.
Viollet deu um sorriso, que fez com que tudo a volta dele desaparecesse.
— Porque você aprecia a minha arte.
— Não podemos viajar assim. — Ele estava hipnotizado com o contato, seu corpo
colado ao dela.
— Podemos! Vamos nos casar, teremos muitos filhos, que viverão sujos de tinta.
Mas saberão se portar perante a sociedade toda vez que voltarmos para o Reino Unido,
afinal serão filhos de um duque — Viollet falava com tanta naturalidade que John não
discordaria de nada.
— Vamos nos casar... — não era uma pergunta, ele somente repetia, para
absorver a avalanche de informações que a pequena Viollet declarava.
— Eu sabia que concordaria! — Ela o abraçou ainda mais, com gratidão. —
Espero você voltar de Cambridge.
— Vai se casar comigo porque vou levá-la para aprender a pintar por toda a
Europa? — com um sorriso torto ele a provocou.
— Não seja tolo, sabe que eu não me casaria com mais ninguém.
Não! Ele não sabia, jamais havia cogitado aquela possibilidade. Não até aquele
momento. John fechou os olhos, Viollet ainda o abraçava com tanta força que ele temia
que a situação ficasse ainda mais constrangedora.
— Não faça isso — ele pediu ainda com os olhos fechados e a respiração
entrecortada. — Quando me abraça assim, tenho vontade de beijá-la.
— Então beije-me. Será a maneira mais bonita de selar nosso acordo.

— Lorde John — a voz o pequeno Paul o trouxe de volta para a realidade. — Não
vamos entrar? — O menino apontava para a porta fechada.
A porta do quarto de Viollet.

***

Apesar de todas as emoções e lembranças que vivera naquela tarde, Viollet


sentia-se melhor. Dr. Anthony havia lhe recomendado caminhadas matinais, além de
alguns sais aromáticos. Marie e Flora estavam sentadas ao pé da cama, conversando
frivolidades. Nada que a fizesse ter vontade de participar, mas o movimento em seu
quarto era bem-vindo.
A porta se abriu, o pequeno Paul entrou. Viollet havia se afeiçoado ao menino.
Como ela havia ensinado, ele se aproximou fazendo uma reverência ante as damas
presentes e logo depois se aconchegou no colo da mãe. Era comovente ver mãe e filho
juntos depois de tudo que passaram; se havia algo de que se orgulhava em sua vida
eram os três que estavam diante dela. Eram a sua família.
Antes que pudesse perguntar a Paul como ele havia chegado até ali, a porta se
abriu ainda mais. Era ele! John estava no quarto dela.
Por que, toda vez que o via, era como se algo dentro dela se revirasse? Que poder
ele tinha para que ela, mesmo que por alguns instantes, tivesse a sensação de que tudo
ficaria bem?
Embora parecesse constrangido, Jack não recuou. Entrou e permaneceu calado,
não se deu ao trabalho de cumprimentar ninguém. Seu olhar era agudo e penetrante.
Não demorou muito para que Flora sugerisse que Marie levasse Paul para fazer um
pequeno lanche. Ficaram apenas os três no quarto.
— Também ficará para o jantar? — Flora parecia curiosa e isso de alguma
maneira perturbou Viollet.
— Não perderia uma refeição preparada especialmente pela marquesa de
Bristol, querida Flora — John respondeu em um tom leve, mas logo depois se virou para
Viollet. — E você? Como está? Tem se alimentado bem?
Ela acenou em concordância, constrangida a cada passo que ele dava em sua
direção. De súbito se lembrou de que vestia apenas uma camisola negra, de tecido leve
minunciosamente trabalhado em renda. Um presente de Marie, confeccionado por
Heloise Morrice, a famosa modista de Londres. Uma ostentação descabida para uma
mulher enlutada.
Sentiu-se exposta, cobriu-se bem rápido, entretanto não conseguia deixar de
olhá-lo. Ficaram assim por alguns instantes, até que ela ouviu o som da pesada porta,
que se fechava. Flora, com suas artimanhas, havia lhes deixado a sós.
John caminhou demoradamente pelo quarto, então pegou uma cadeira disposta
em frente à penteadeira coberta. Olhou para o tecido preto por alguns instantes antes
de se sentar ao lado da cama de Viollet.
— Já se passaram três meses e seis dias, a decoração não deveria ter sido
retirada?
— Ainda estou de luto — ela respondeu incisiva, fitando a colcha.
— Também vi que não utilizou o material de pintura que eu trouxe.
— As cores são vivas demais, inapropriadas para alguém na minha situação.
John parou por um instante e, em seu íntimo, Viollet temeu que ele partisse,
embora soubesse que era exatamente aquilo que ele deveria fazer.
— Fez um bom trabalho com o pequeno Paul, mas devo observar que é um tanto
quanto controverso.
— Controverso? — ela questionou confusa.
— Lembro-me de que me garantiu que nossos filhos viveriam sujos de tinta e que
estariam livres das convenções sociais.
— A menos que estivessem em Londres — ela lembrou com um discreto sorriso.
— Ah, sim, tinha me esquecido desse importante pormenor. — Ele sorriu
vitorioso.
— Paul é uma criança encantadora — Viollet prolongou o assunto, receava que
a agradável conversa cessasse.
— Percebi nas primeiras palavras. Acho que ele tem potencial para subir em
árvores. Pensei em uma temporada em Lilleshall, o que acha?
Por um instante o coração de Viollet se aqueceu, estar em Lilleshall seria um
bálsamo para suas inquietações. Entretanto, a animação durou poucos segundos, o
suficiente para que se desse conta de que o convite não era para ela; e mesmo que fosse
não poderia ir.
— Anthony pedirá Ann em casamento em breve, estavam aguardando somente
as informações sobre Marie. E, agora que tudo está bem, acredito que não demore
muito para que Lucy se torne a duquesa de Sutherland — John continuava a falar como
se não se importasse com o clima fúnebre do quarto.
— Pensei que seu pai só se casaria depois que todos os filhos contraíssem
matrimônio; mesmo se Ann desposar o médico, ainda faltará você.
— Acredito que tudo é uma questão de tempo, e isso não me preocupa;
nenhuma dama, em sã consciência, recusaria o pedido de um futuro duque, mesmo que
a família estivesse envolvida no pior dos escândalos.
Viollet engoliu em seco, quão presunçoso era John. Fitou o teto para evitar olhá-
lo.
— Acho que preciso descansar — ela afirmou com a voz embargada.
— Ah, claro, peço perdão por tê-la importunado. Vejo você no jantar.
— Mas eu não vou...
Capítulo II

Em seu íntimo, a última coisa que Viollet queria era sociabilizar, entretanto a curiosidade a respeito da

brasileira fora o suficiente para convencê-la a descer para a refeição. Izadora era uma mulher interessante, a

personificação de uma alma livre, livre das convenções sociais. A brasileira havia deixado claro que viera para

o Reino Unido para a temporada, estaria disponível para ser arrematada no concorrido mercado de

casamentos. A Viollet não passou despercebida a insatisfação do primeiro-ministro perante a afirmação da

estrangeira, ele parecia avaliar cada movimento daquela mulher. Estava claro que seria necessário muito

trabalho para que a jovem conseguisse se enquadrar aos padrões do Reino Unido. Teve vontade de enfiar

um pão goela abaixo de Flora quando a irmã,inocentemente, apontou-a como a dama mais adequada para

treinar a brasileira. O chá foi servido para as damas na sala íntima, enquanto os cavalheiros fumavam seus

charutos e conversavam. Flora, que havia algumas semanas estava empenhada em aprender economia e

política com a marquesa, fechou-se na biblioteca para se dedicar aos estudos.

— Já marcaram a data do casamento? — Sarah perguntou para Marie, entusiasmada.

— Não há por que nos apressarmos, o baile no qual fui apresentada aconteceu somente há dois dias. Lady

Baldwin — Marie fez uma pausa e deu um largo sorriso —, quero dizer, minha mãe acredita que precisamos

de pelo menos algumas semanas para anunciar o acordo de casamento.

— Acho que Anthony pedirá minha mão — Ann anunciou tímida.

— O que acham de um casamento duplo em Lilleshall? — Sarah sugeriu com tanta naturalidade, que foi

impossível para Viollet conter o sorriso. Antes que Ann pudesse pedir à irmã que controlasse os ânimos, os

cavalheiros entraram na sala entusiasmados.

— Devo admitir que é enfadonho discutir política sem a marquesa de Bristol. — Thomas se aproximou da

esposa com um meio sorriso nos lábios. Viollet admirava os pares que se formavam. Ao longe o

primeiro-ministro, Lorde Edward Baldwin, observava Izadora, que parecia apreciar seu chá em demasia. A

brasileira, que falara durante quase todo o jantar, naquele momento calou-se, parecia absorta em

pensamentos. O médico, Sir Anthony, contemplava Lady Ann com desmedida admiração; Viollet estava

convencida de que o pedido não tardaria em acontecer. Entre amigos, Marie e Lorde David portavam-se

como se já estivessem casados. O duque não escondia a paixão que sentia por Lucy. John permanecia

recostado perto da janela, e Viollet sentiu-se constrangida ao perceber que estava sendo observada.

Incomodada, permaneceu por mais algum tempo ouvindo a acalorada conversa. Apesar de completamente

fora dos padrões, aquela era, sem dúvidas, a reunião social mais agradável em que estivera. Lady Sarah era

uma mulher revolucionária; entre suas convidadas, as damas solteiras portavam-se como se fossem casadas.
Viollet deixou a sala de forma discreta. Apesar do clima descontraído, a forma como John a olhava era

desconcertante. Quando chegou ao topo da escada, percebeu que alguém subia logo atrás dela.

— Let! — Era ele! — Por favor, espere. A viúva terminou de subir e se virou para esperá-lo.

— Só queria desejar-lhe boa noite como merece. Dito isso, ele tomou sua mão, depositando um beijo casto e

demorado sobre a luva negra.

*** No dia seguinte Viollet acordou inexplicavelmente bem-disposta. Apesar de determinada a se manter

reservada, considerou o conselho de Dr. Anthony de dar uma volta pelo jardim. Naquela manhã, quando o

desjejum foi servido em seus aposentos, sua criada lhe entregara uma enorme caixa. Dentro havia tintas e

pigmentos em tons ocres e escuros; um pequeno cartão denunciava a origem do presente. O início do outono

e o princípio do inverno em Lilleshall podem ser inspiradores. Jack Mesmo sabendo quão inapropriada era a

invasão de John, a possibilidade de retratar as paisagens de Shropshire era acolhedora. Viollet crescera

naquelas terras. A propriedade de seu pai, o conde de Devon, era vizinha de Lilleshall. Ela frequentara a casa

do duque de Sutherland desde a infância. Tinha esperanças de que ali encontraria nem que fosse uma vaga

lembrança da Viollet que havia se perdido. Agora, que era uma hóspede permanente da marquesa de Bristol,

acreditava ter que acompanhá-la nas festividades de fim de ano. Os natais dos Ansons sempre foram

animados, recordava-se de todos em que passara com o pai, junto daquela família. Depois de comer o

suficiente para se manter de pé até a próxima refeição, com ajuda de sua criada, Viollet vestiu um traje negro

para um pequeno passeio pelos jardins de Grove House. Embora não usasse o véu sobre a touca quando

descia para o jantar, achou apropriado usá-lo naquela manhã. Pensou em chamar Flora para acompanhá-la,

mas sabia que a irmã estaria ocupada, preparando-se para a temporada. Apesar dos comportamentos um

tanto quanto duvidosos da marquesa, não podia se queixar, Lady Sarah se empenhava em conseguir o

melhor matrimônio para Flora. Caminhou contemplando a belíssima paisagem da propriedade, era um

exercício agradável, e cogitou a hipótese de tornar aquele passeio um hábito diário. As poucas folhas que

ainda resistiam tinham um tom acolhedor. Algumas flores resistiam ao fim do outono, deixando a caminhada

ainda mais revigorante. Um trotar apressado despertou sua atenção, ela conhecia bem o barulho de um

cavalo montado por John. Ele era habilidoso, elegante, e qualquer animal se rendia ao seu comando.

Mantendo a cadência dos passos, ouviu quando ele desmontou; o som das botas tocando o solo também já

era um velho conhecido. Como, em tantos anos, Viollet ainda era capaz de se lembrar de cada som, cada

cheiro, cada sensação? Jamais conseguiria compreender os efeitos de John em seus instintos. E, por mais

que a vida os tivesse separado, ele sempre seria John, o seu Jack.

— Vejo que acordou bem-disposta, devo atribuir isso ao novo conjunto de pintura?
— O dia está agradável — ela limitou-se a dizer, sem interromper os passos. — Let! Vim lhe fazer um pedido.

Ela titubeou por alguns instantes, não continuou seu caminho, mas também não se virou para olhá-lo. Não foi

preciso, em poucos segundos ele já estava a sua frente. John vestia preto, e o lenço cinza-claro ajudava a

destacar a camisa impecavelmente alva. De alguma forma o véu sobre a face dela a fez sentir-se protegida.

— O que quer, Jack? — Jack? Pronunciara mais uma vez, em voz alta, o apelido que lhe dera quase uma

década atrás?

— Quero posar para você. Ela piscou algumas vezes tentando compreender aquele pedido. — Não pinto

pessoas — mentiu.

John sorriu malicioso, fora preparado para qualquer resposta. Nas pequenas tiradas arrogantes, sabia que de

alguma forma sua Let ainda estava ali.

— Eu estava enganado, lamento tê-la perturbado. — Deu meia-volta e, com as mãos nos bolsos, começou a

caminhar despreocupado. Viollet demorou alguns instantes tentando entender o que havia acontecido.

Embora fosse certo manter uma distância segura de John, de alguma forma ele era o sopro de vida que ainda

lhe restava.

— John! — Ela se virou chamando-o. — Para você não sou John, sou Jack, sempre fui. — Sequer virou-se

para olhá-la, somente parou; estando ele de costas, ela jamais veria o sorriso vitorioso estampado em sua

face.

— Desde que estava nos cueiros. — Sei que está rindo. — Ela desviou os olhos para o lago, temia outra crise

de nervos. Jack conseguia levá-la ao limite.

— Por que age dessa maneira? John se virou e lentamente se aproximou. Com delicadeza e habilidade,

ergueu o véu, queria vê-la. Encarou Viollet, não teve pressa, só se deu por satisfeito quando seus olhos

finalmente se conectaram.

— Passei tempo demais longe de você — declarou sério, aproximando-se lentamente. — Tento aproveitar os

pequenos momentos que compartilhamos. Sinto falta do que fomos um dia. Fitando o chão, Viollet se

arrependeu da pergunta. Ele não fizera rodeios, sequer disfarçara usando falsas lisonjas ou desculpas

esfarrapadas. Jack era direto, certeiro, cortante. Mas ambos eram assim, não eram? Foram acostumados a

ser honestos um com o outro, um pacto que fizeram na época em que compartilhavam os banhos de rio e as

subidas furtivas em árvores.

— Já não sou mais a mesma — declarou enquanto retorcia as mãos coladas às saias do vestido.

— Sei que não. — Ele se aproximou tão rapidamente que Viollet nem percebeu quando ficaram tão próximos.

— Também não sou. Não imagina o inferno que passei o tempo que estive longe de você — e sem pedir

permissão tocou-lhe a face com as pontas dos dedos.


— Sei que minha Let está aí; até mesmo quando se esconde por trás do véu, posso ver você.

Ela ergueu o rosto para olhá-lo, apesar de John parecer sincero, não poderia acreditar. Let havia morrido

fazia anos, desde a sua noite de núpcias, ao chamar o marido de Jack e receber a primeira chicotada.

Estremeceu. Sentiu-se encolher diante das lembranças, o som do chicote estalando e o ardor espalhando-se

por seu corpo era vívido.

Sem se dar conta, viu-se entrando no labirinto de seu passado. John a viu ainda mais pálida, os pés

hesitantes e a boca trêmula. Abraçou-a com ternura. Queria protegê-la de algo que nem mesmo sabia o que

era. Ela aceitou seus braços e isso o encorajou. Apertou-a ainda mais contra si, enquanto lhe acariciava os

cabelos. O carinho de John de alguma maneira fez com que o vórtice em que ela estava prestes a mergulhar

desaparecesse. A mente de Viollet era um grande vazio, só existia o som quase inaudível de suas

respirações, uma ária, a velha e reconfortante melodia.

— Let, meu amor. Deixe-me curá-la, ajudá-la, protegê-la. Não há nada neste mundo que eu queira mais do

que ver seu sorriso de novo. Ela não podia! Sequer conseguia imaginar como havia permitido tamanha

proximidade. Jack era sua salvação, mas ela era a ruína de Jack. Concentrou-se em buscar forças para se

afastar, mas parecia existir um magnete que a impedia. Buscou no poder da oração a sabedoria e a força

para fazer o que era preciso. Quando conseguiu se afastar o suficiente para dizer-lhe que não havia uma

única chance para os dois, não conseguiu. Viu-se emudecida; mesmo que todos os argumentos para

desencorajá-lo latejassem, não seria capaz de magoá-lo novamente.

— Não existe mais Jack e Let — forçou-se a continuar, mas as palavras lhe feriam a boca —, não mais.

Enquanto observava Viollet se afastar, John concentrou-se na respiração. Maldito o oriental que ensinara

tamanha estupidez a Anthony, praguejava dividido entre o impulso de segui-la ou de acalmar-se para pensar

em alguma estratégia eficaz. Pois desistir de Viollet não estava em seus planos.

Capítulo III

Capítulo III Sentado de frente para uma garrafa de puro malte escocês, John ponderava entre a sobriedade e

o torpor. Naquela noite, ao som dos barulhentos aristocratas frequentadores do White’s, sua mão já estivera

sobre o vidro inúmeras vezes, prestes a derramar o líquido âmbar no cálice. — Creio que uma única dose não

lhe fará mal. — John havia se esquecido da presença de Anthony ao seu lado. — Tudo na vida é uma

questão de equilíbrio. — Às vezes me questiono se os chineses não lhe fizeram uma lobotomia. — Virou-se

para o médico num tom sarcástico, porém melancólico. — Fico feliz que esteja falando — retribuiu a ironia. —

Isso me poupa qualquer intervenção cirúrgica. Há mais de hora observa a garrafa com tanto desprezo e

adoração que fica difícil decifrar o que se passa em sua mente turbulenta. — Não quero assustá-la —
confessou empurrando para longe a garrafa. — Ao mesmo tempo sinto que essa espera é pior que a forca. —

John, meu querido amigo John. Conheço você desde Eton, embora tenhamos nos aproximado em

Cambridge, depois que começou a apostar sua vida nos dados. — Anthony pegou a garrafa e serviu duas

doses. Logo em seguida ofereceu uma a John e tomou seu cálice em um só gole. — Precisa ter paciência e

perseverança. Lady Viollet se encontra em estado de choque e, depois de tudo que passou, é perfeitamente

compreensível. — E o que ela passou? Por que insistem em me esconder a verdade? — Sei que está se

esforçando, embora muitas vezes aja como um patife. Mas era importante que encontrasse o equilíbrio. John

virou sua dose e sorriu descrente. — Equilíbrio... — Bateu a pequena taça na mesa e se virou para o amigo.

— Até quando? — David vai nos encontrar, acho importante ouvir o que ele tem a dizer — Trouxe-me aqui

para contar? De todos os lugares em que podia me revelar o que imploro para saber, escolheu o clube mais

movimentado de Londres. Teme que eu perca a cabeça? — Não, meu caro, estava esperando você tomar a

sua dose, mais uma e vamos à casa dos Baldwins. David e Edward nos aguardam. Durante todo o trajeto,

John se concentrou nas lembranças, tentava buscar alguma ligação entre os sorrisos de sua Let e os da

viscondessa viúva. Era quase imperceptível, mas ele sabia que Viollet ainda era a mesma, apesar de parecer

uma mulher completamente diferente. Nos olhos de Let, mesmo que muitas vezes parecessem vazios, havia

um brilho, uma luz que nada poderia apagar. A chegada de Anthony e John era esperada. O mordomo os

conduziu até a biblioteca logo que chegaram. O médico não entrou, e John não negaria que a presença do

amigo lhe traria segurança. Temia pela própria sanidade ao ouvir quão grave era o motivo para que Viollet se

fechasse para o mundo. Suspeitava de agressões, mas naquela noite teve certeza de que subestimara a

realidade. Marie estava sentada em uma das poltronas no canto, em silêncio. A antiga camareira de Sarah,

de olhos fechados, segurava um rosário e movimentava os lábios sem emitir nenhum som. — Lamento

perturbá-la, achei que encontraria David — John falou cauteloso. Marie se pôs de pé rapidamente e fez uma

reverência. — Pedi para falar com o senhor, Lorde John. Por um instante John presumiu que Marie

presenciara o que ele desejava saber. Havia tantas perguntas, tantos questionamentos, que aceitou

prontamente quando ela lhe convidou para sentar-se. — Acredito que podemos dispensar as formalidades, irá

se casar com meu primo. Marie acenou em concordância. — Desculpe-me a invasão, mas David me contou

sobre sua história com Viollet. Ela nunca comentou nada sobre o assunto, também não tive coragem de

questioná-la sobre as pinturas que tinham seu rosto. No primeiro momento não fiz a associação, mas hoje,

sabendo um pouco da história, tenho certeza de que é você. — Viollet tem retratos meus? — Ficavam

escondidos no quarto de vestir, certa vez a ajudei a se trocar. — Parou por um instante. — Sei que não

deveria estar contando algo tão íntimo, mas o que me fez aceitar contar-lhe foi acreditar que aquelas pinturas

têm algum significado para ela. Viollet precisa de ajuda. — Pretendo me casar com ela. Só preciso encontrar
uma forma de aproximação, Viollet está sempre com a guarda montada. — John, acho que tenho permissão

para chamá-lo assim. — Ele concordou com um sorriso lacônico, mas as mãos apertavam o braço da

poltrona. — De onde vim, vi de quase tudo. O que vivi nos dias em que Philip me raptou não foi novidade para

mim. Vi muitas mulheres serem forçadas a manter relações ou apanharem até o desmaio. — O que está

querendo dizer? Flora ficou responsável por observar tudo que acontecia naquela casa. Sei que Philip era um

covarde patife, que a destratava e possivelmente a pegava com certa violência, mas... — Philip era um

homem que se satisfazia provocando dor. — Marie engoliu em seco e respirou com pesar. — Como disse, eu

já conhecia isso. Fui iludida por ele e, mesmo sabendo de sua depravação, achei que era um preço justo pela

minha liberdade. Foi uma escolha que fiz. Já Viollet não conhece outra forma. Acredita que o interlúdio íntimo

entre um homem e uma mulher vem sempre acompanhado por açoites, varas, chicotes... John sentiu o

estômago revirar, mas, ao ver que Marie chorava com a lembrança, interrompeu-a: — Você está bem? —

Mesmo tomado pela fúria, ofereceu a ela um lenço. — Como Flora nunca me contou? — Levou as mãos ao

rosto, atordoado. — Flora não sabia e nem sabe das coisas pelas quais Viollet passou. Eu mesma não sei

quase nada, sei do que vi, do que vivi e do pouco que ela me falou. Ela não podia gritar, éramos obrigadas a

nos manter em silêncio. Apesar de muito fechada, Viollet é uma mulher maravilhosa com um coração de ouro.

Ela me deu duas vezes joias de família para que eu pudesse recomeçar minha vida. — Marie fez o sinal da

cruz e levou o rosário aos lábios. — Passei anos acreditando que ela me jogara moedas para que eu sumisse

depois que deixei o pequeno Paul. — Preciso me casar com ela. — Ele bateu as mãos nos braços da

poltrona. — Preciso cuidar de Viollet, protegê-la. — John — Marie se inclinou pousando a mão sobre a dele

—, vivi num antro de perdição, aprendi todas as coisas erradas como certas, mas Deus me trouxe David, que

me ensinou o que é ser amada e protegida. Viollet está ferida, sente-se culpada e as lembranças são vivas. A

cada vez que revive o passado, ela se vê presa nele. As recordações, as marcas para curar tudo isso, será

necessário certo tempo. — Eu a amo. Morri quando descobri que ela havia se casado. Tenho vontade de

novamente perguntar-lhe por que fez isso. Lamento, não me peça paciência, já perdi tempo demais. — Não é

fácil esquecer um passado tão doloroso — declarou Marie entre lágrimas. — Sinto muito. — Pela primeira vez

John se deu conta de que Marie também falava de si. — Ainda acordo à noite vendo o rosto de Viollet, seus

olhos implorando clemência. Nos meses em que compartilhamos a dor, comungamos de muito mais que isso.

David me garantiu que seus sentimentos são verdadeiros — e, para a surpresa de John, ela se pôs de

joelhos. — Então lhe rogo, por tudo que é mais sagrado, tenha paciência. Viollet precisa do seu amor, mas

ela ainda não está pronta para recebê-lo.

***
Sentada junto a sua mesa, a marquesa de Bristol avaliava Viollet, em pé, a sua frente. — Por favor, sente-se,

Viollet — convidou Sarah com um sorriso amigável. A viúva se acomodou na ponta da cadeira de forma a

demonstrar que não estava confortável, sequer tinha a intenção de demorar, e isso não passou despercebido

aos olhos de Sarah. — Nossas famílias foram vizinhas e amigas por quase toda a vida, cresci brincando com

Flora embora nos últimos anos tenhamos nos distanciado. Uma amizade tão grande não se perde com o

tempo. Viollet sorriu ironicamente e não segurou o comentário espirituoso. — Devo relembrá-la de que nunca

foi muito dada a brincadeiras, milady. Desde nova era uma estudiosa, uma revolucionária. Creio eu que a

brincadeira à qual se refere sejam as aulas de história e política que dava à Flora. — Sarah sorriu e Viollet

sentiu-se encorajada a confidenciar. — Papai achava inapropriado. — Eu me declaro culpada! Nem todos têm

a sorte de ter o duque de Sutherland como pai — Sarah falou e se arrependeu no momento em que lembrou

o que havia acontecido com o conde de Devon. Tentando manter o tom da conversa, não se abateu. — Meu

pai faz questão de ter você e Flora nas festividades de fim de ano. — Não sei se devo, milady. — O olhar

absorto de Viollet denunciava seu constrangimento. Por um instante, Sarah lembrou-se do que John havia lhe

confidenciado, Viollet se transformara em uma mulher fechada, visivelmente machucada. Entretanto, nos

momentos em que vislumbrava o passado anterior ao seu casamento, ela demonstrava pequenos lampejos

de sarcasmo, bom humor e a sugestão de um breve sorriso. A marquesa estava a cada vez mais convencida

de que a ideia de John de levá-la para Lilleshall poderia ser um refresco no meio da tempestade. — Lucy

precisa de nossa ajuda — Sarah confidenciou, já pensando em persuadi-la. — Há anos estamos esperando

que ela finalmente se case com meu pai. Agora, com o matrimônio iminente de Ann, creio que não tardará

para que tudo se resolva. Sarah avaliou a expressão da viúva, as sobrancelhas erguidas e o olhar

desafiavam-na a prosseguir. Percebeu, ali naquele instante, que a mulher a sua frente jamais poderia ser

subestimada, precisaria de muito mais para dissuadi-la. — Claro que poderá escolher entre passar as

festividades do Natal com os Baldwins ou em Lilleshall... — Sarah ponderou tentando medir as palavras. —

Sabe, querida Viollet, meus ideais românticos sempre foram elevados. Ver você e John desde novos juntos e

o carinho e cumplicidade entre meu pai e Lucy me fizeram acreditar que o amor era algo fácil, natural. Hoje

vejo que estava enganada, o amor é uma construção que envolve muito mais do que carinho e respeito.

Quero ajudar você e Lucy, vocês merecem ser felizes. — Lamento decepcioná-la, milady, se de alguma

maneira deixei que pensasse algo que não deveria; fiz escolhas e devo pagar por elas. Infelizmente não

podemos voltar ao passado e, ainda que pudéssemos, magoaríamos as pessoas que nos são importantes.

Sou uma mulher viúva e pretendo passar o resto de minha vida nesta condição. Sarah tamborilou os dedos

sobre a mesa, enquanto tentava pensar em outra abordagem. Viollet não se abriria em relação aos seus

sentimentos. — Há pouco disse que quer trabalhar. Sente-se em dívida, embora eu possa garantir que não há
motivos para tal. Sempre ficou claro que a amizade entre nossas famílias era um laço eterno de lealdade. Se

quer ser uma viscondessa viúva, terá o meu apoio — ofereceu sua falsa anuência. — O que acha de

reformarmos a casa de caça? Assim pode ficar melhor instalada, com certa privacidade. — Não é

necessário... — Faço questão, poderá ter um atelier e tranquilidade, já que deseja viver uma vida de

renúncias e privações. — Sarah levantou-se, deu a volta ao redor da mesa, serviu um cálice de vinho do

Porto e sentou-se em uma cadeira ao lado de Viollet. — Mas, como amiga, gostaria de sua ajuda. — A

marquesa saboreou a bebida demoradamente, deixando Viollet com água na boca. — Lucy precisa de nós,

não me aceitará para orientá-la em sua nova posição social Acredito que Ann mereça gozar de sua liberdade

agora que está curada e irá se casar. Lucy tem

um carinho enorme por você e por Flora. E eu gostaria de contar com sua ajuda para ajudá-la.

Viollet a encarou. Mesmo percebendo a estratégia de Sarah, não negaria aquele pedido.

— Apesar de desconfiar que de alguma forma estou sendo manipulada, eu a ajudarei. Vou

para Lilleshall.

Sarah sorriu amplamente, sentia-se vitoriosa mesmo que contrariada por ter sido pega em

flagrante em seu estratagema. Viollet fez uma reverência obsequiosa e se levantou. Caminhou até

a porta e, antes de deixar o cômodo, falou:

— Não quero abusar de sua caridade, mas acredito que seja um assunto de seu interesse.

— Viollet se virou por completo. — Eu me preocupo com John. Receio que, quando se

convencer de que não cederei às suas investidas, ele volte a ter uma vida desregrada. Ele será o

duque, precisa ter credibilidade e ser conhecido pela dedicação ao Parlamento. Se pudesse tentar

conversar com ele, quem sabe ajudá-lo... Sei que tem talento para os negócios e para política,

milady. É uma mulher admirada por quase toda a nobreza.

Sarah sorriu, o pedido de Viollet era bem mais do que uma ponderação, era uma

confissão.

— Vou ajudar meu irmão. Obrigada por se preocupar.

Sarah observou Viollet partir e voltou para a mesa.

— Pare de rir como um tolo, John. Já pode sair de trás da cortina.

***

Para John, estar em Lilleshall por muito tempo era doloroso. As lembranças eram uma

prisão da qual ele não conseguia se libertar. Cada sebe trazia recordações, o sorriso de Viollet

estava em cada flor. Foram muitos anos comungando de deliciosos e divertidos momentos

juntos, além de muitos outros lamentando tê-la perdido.


Mas, ao chegar às terras em que fora criado, para as festividades do fim de ano, tudo parecia ter um brilho

diferente. Somente a presença de Viollet, mesmo que distante, trazia um sopro de esperança. Era como se

todas as engrenagens tivessem voltado a funcionar como deveriam. Cavalgando ao lado do pai, a sensação

de acolhimento trazia a paz que havia muito John buscava. O duque desmontou assim que se aproximaram

dos estábulos. Seu herdeiro o acompanhou, afagando a cabeça do cavalo logo em seguida. Um criado correu

depressa para pegar os animais e John jogou uma moeda para ele. — Muito bom vê-lo de novo cheio de vida,

meu filho. — Estou tentando. — Aprecio seu esforço. — O duque andava na direção oposta ao casarão,

seguindo pelo caminho que dava acesso ao jardim secreto. — Uma vez, quando você era pequeno,

lembro-me de que havia sumido por todo o dia. Ninguém o encontrava, e Viollet também estava

desaparecida. Você tinha dez anos, ela sete. Foi logo depois que a condessa de Devon faleceu. Lucy havia

sugerido que Viollet e Flora passassem alguns dias aqui, estava apavorada porque vocês haviam sumido. O

duque abriu a porta que dava acesso ao jardim. Ao fundo, do lado de um pequeno lago, estava a velha

cabana. John jamais imaginaria que ela estaria em tão bom estado. Não estivera naquele recanto por quase

quatro anos, seria tormentoso, uma provação além de suas forças. — Quando já não sabia onde procurar,

vim até aqui — o duque continuou nostálgico. — Vocês estavam aqui, nesta cabana, a pequena Viollet

chorava, deitada em seu colo. Você oferecia consolo, dizia que Lucy poderia ser a mãe dela também. — O

duque tirou o lenço do bolso para secar as lágrimas. — Depois daquele dia o vi de forma diferente, como um

nobre. Um verdadeiro cavalheiro. Do mesmo modo, vi você definhar, entregar-se e desistir de tudo, quando

Viollet se casou. Não o julgo, não saberia viver sem Lucy, mas aprendi que, enquanto as damas são a doçura

e a sensibilidade, nós homens precisamos ser o amparo e a segurança. — O equilíbrio... — John divagou. —

Apesar de achar as ideias de Anthony um pouco abiloladas, confesso que vejo um pouco de sentido. O duque

se sentou em um banco e John se acomodou ao lado do pai. — Viollet afirmou que não cederá às minhas

investidas e que permanecerá de luto até o fim de sua vida. — Ela lhe disse isso? — Disse para Sarah, eu

estava escondido no escritório quando ouvi. Abandonando a melancolia de um instante antes, o duque

chacoalhou-se estourando em uma ruidosa gargalhada. — John, meu filho. — Parou para recuperar o fôlego,

com a mão no peito. — Viollet conhece você melhor do que ninguém. Posso garantir que ela sabia que estava

ouvindo atrás da cortina. Preocupou-se ao menos em esconder os pés? — Sem conseguir se conter, segurou

a barriga esbelta, sentindo dores de tanto rir. — Inferno! — John não saberia dizer, mas era possível que ela

o tivesse visto. — Viollet disse para você escutar. Mude a abordagem, meu filho. Não há nada mais

estimulante do que aquilo de que não temos controle. Dito isso, o duque deixou o jardim divertindo-se à custa

do filho. Quando John se viu sozinho, caminhou em direção à cabana. Desejava que o lugar, marcado pelas

boas lembranças, fosse também a porta para o recomeço.


Capítulo IV

No salão azul de Lilleshall, Lucy, Ann, Sarah, Viollet e Flora tomavam chá, enquanto conversavam animadas

sobre o pedido de Anthony naquela manhã. O médico parecia ansioso e aproveitou o primeiro desjejum em

Shropshire para oficializar o acordo. — Gostaria tanto que Marie estivesse aqui — Ann confessou enquanto

contemplava a aliança que recebera. — Ela virá, minha querida — Lucy garantiu. — Escreveu-me informando

que virá logo depois do Natal. Eu compreendo Lady Cécile Baldwin, quer oferecer o melhor Natal para a filha

e, depois de tantos anos, elas merecem. — Poderíamos fazer um baile da criadagem inesquecível — sugeriu

Flora, que foi discretamente cutucada pela irmã. — Sinto tanta falta dos bailes do Ansons. — Sem dúvidas os

de Lilleshall são bem mais animados do que os de Londres — comentou Sarah, ajeitando o filho no cesto. —

Sarah, o pequeno Bronwen mal completou um mês de vida e você age como se não estivesse de resguardo

— reprimiu Ann. — Já foi a um baile, alimentando todas as maledicências e agora o traz, ainda tão frágil, para

Lilleshall. — Olhou para o sobrinho demonstrando piedade. — Não que lhe deva satisfação, querida irmã.

Mas não estou de resguardo, minhas atividades no leito conjugal estão bem, obrigada. Meu marido tem

desejos, assim como eu, e desconfio que ninguém cumpra um prazo tão extenso. — A marquesa balançou a

mão no ar. — Sobre a minha saúde e a saúde de meu filho, graças a você temos um médico que nos

acompanha, afastando todos os riscos. Anthony orientou que eu me mantivesse em estado quase que

vegetativo durante um mês e só fui ao baile depois que completei o prazo estipulado. — Sarah se colocou de

pé e cruzou os braços. — Vocês não imaginam o que passei tendo que ser filho permaneceu ao meu lado

durante todo esse tempo, seguimos todas as recomendações que foram impostas para que pudéssemos

gozar de um pouco de liberdade. — Minha querida, Ann tem razão. Bronwen ainda é tão pequeno, precisa de

cuidados — Lucy falou docemente. Pegando o cesto com a ajuda de uma criada, Sarah deixou a sala,

irritada. — Ela sempre foi assim — observou Viollet. — Culpa de Augustus. Ele nunca conseguiu dizer não

para Sarah — completou Lucy. — Quem consegue? — zombou Flora. — Devo admitir que Sir Anthony

elogiou toda a abnegação e o empenho dela. Acompanhou pessoalmente a higiene da carruagem que os

traria — disse Ann. — É um homem encantador — falou Flora desviando a atenção de um bordado. — É

muito bonito ver tamanha dedicação por um ofício. Sobre mantê-la em repouso, acho que já conseguiram o

impossível. — Faça companhia a ela, minha querida — pediu Lucy à Flora. — Quando Sarah estiver mais

calma, levo alguns bolinhos para vocês. — Vamos, eu a acompanho — convidou Ann. Quando Lucy percebeu

que estava sozinha com Viollet, sentou-se mais perto. — Não imagina o quanto estou feliz que estejam aqui.

— Lilleshall é uma segunda casa para mim. — Viollet deu um sorriso sincero. — Às vezes precisamos de um

refresco. Deixar a mente vagar longe. Acho que é disso que precisa. — Ela tocou com carinho o joelho de
Viollet. — Temos material de pintura, Augustus fez questão de que preparássemos tudo para que se

sentissem em casa. — Será uma duquesa maravilhosa. — Não me importo com o título. Minha única

prioridade é ver meus filhos felizes. — Beijou o topo da cabeça de Viollet e se levantou. — Preciso ver como

andam as coisas para o jantar e ver se Sarah já se acalmou. Por que não dá uma volta? A velha cabana no

jardim secreto está pronta para que retrate as flores da estufa Aceitando a sugestão, Viollet seguiu pelo

caminho que levava até a cabana. Mesmo no inverno, a paisagem era acolhedora. Apertou o xale contra o

corpo ao sentir o vento frio tocar sua pele. Estava ansiosa para reviver os momentos em que, da janela, podia

ver as flores que resistiam a tão baixa temperatura. O jardim secreto era seu lugar preferido em Lilleshall.

Desconfiava que era um santuário. Uma vez que as portas se fechavam, só haveria luz e alegria. A cura das

dores, das angústias e de todos os males. Agradeceu a Deus o fato de terem partido na manhã seguinte em

que Sarah a convencera a passar o Natal com os Ansons. Uma única noite naquele paraíso fora suficiente

para que Viollet se sentisse bem-disposta. Permitiu-se vivenciar o encantamento logo que entrou. O trinco

escondido entre as sebes conferia a privacidade que ela tanto desejava. Caminhou sem pressa,

contemplando a paisagem que se fundia com as lembranças. Era capaz de retratar aquele cenário de olhos

fechados. A velha cabana, incrivelmente bem-cuidada, era um espaço amplo, com uma sala, cozinha,

lavatório e um quarto. A lareira estava acesa e a sensação de acolhimento foi tamanha que Viollet não se

atentou para o detalhe de que alguém estivera ali antes dela. Ou ainda estaria lá. Atrás da pequena casa,

John colhia algumas ervas para jogar na lareira e perfumar a cabana. Era assim que Viollet gostava e, mesmo

que ela não estivesse ali, ele não conseguia controlar o impulso de agradá-la. Certa vez, seu pai lhe contara,

com desmedido saudosismo, que fora ali que beijara Lucy pela primeira vez. Aquele recanto fora o palco dos

encontros furtivos entre o duque e a amante. John não se lembrava de quando, mas em algum momento

aquele oásis fora cedido para ele e Viollet. Sob o teto da velha cabana, ficou determinado que se chamariam

de Jack e Let. Os apelidos foram criados para que a troca de cartas não fosse descoberta. Era um pacto, um

código secreto. Uma das muitas confidências e sonhos de que comungaram ao longo dos anos. — Jack! — a

voz de Let resultou em um sorriso no rosto de John. — Não sabia que estava aqui. — Vim cavalgando com

meu pai até os estábulos. — Com as mãos sujas de terra, ele bateu os pés antes de entrar. — Depois viemos

até aqui. Achei que encontraria um pouco de paz. — Está tudo bem? — ela perguntou preocupada, não era

do feitio de John se isolar. — Nada para se preocupar. — Ele jogou as ervas no fogo, provocando estalidos e

o exalar de um aroma acolhedor. — Sabe que pode me dizer. — Apesar da postura distante, John pôde ver

preocupação nos olhos dela. Ele foi até a bacia e lavou as mãos, já não vestia o paletó. Jogou-se no sofá,

colocando os pés na mesa de apoio como sempre fazia. Aquele era um terreno livre de qualquer regra. —

Acho que chegou a hora de levar minhas responsabilidades a sério. Meu pai e Lucy merecem um pouco de
tranquilidade depois de tudo. — Ele levou as mãos à nuca, acomodando-se melhor no sofá, lembrando-se do

que ouvira no gabinete da irmã. — Sei que vou precisar da ajuda de Sarah, mas, conhecendo bem a

marquesa, o preço será alto. — Acho que não é um bom momento, ela está particularmente agitada após o

tempo em que esteve de resguardo. — Viollet sentou-se na ponta do sofá, com as mãos no colo. — Foram

meses difíceis para todos nós. — Ele passou as mãos pelos cabelos. — Talvez eu procure Edward, preciso

fazer jus ao título que carrego. — Nunca se interessou por política. — Não, nunca. Mas como Sarah diz, é a

maneira mais sábia de ajudar aos que precisam. Viollet remexeu-se no sofá, aos poucos deixou que suas

costas relaxassem no encosto. — Disse que seu pai o trouxe aqui. — Parou pensativa; John a conhecia,

sabia que ela estava medindo as palavras. — Lucy sugeriu que eu viesse... acha que eles... — Armaram para

que nos encontrássemos? — perguntou despreocupado. — Jamais ligaria os pontos, mas tem fundamento a

sua dedução. John fechou os olhos e respirou profundamente. — O que o aflige, John? Ele virou-se de forma

que seus joelhos tocassem nos dela. — Eu me sinto responsável pela felicidade de meu pai. Sei o quanto

espera para se casar. Quero vê-los felizes, já fizeram tanto por mim. — Abaixou-se, cobrindo os olhos com as

mãos. — Tenho medo de um dia perder as esperanças, de decepcioná-los, de voltar para o lugar de que

consegui sair. — Do que está falando? — Eu quis tirar minha própria vida várias vezes, Let, não encontrava

razão para existir sem você. Hoje vejo o quanto errei. Sei que tenho que me manter firme, de pé. Ser útil de

alguma forma, conseguir alguma renda razoável para garantir o mínimo de conforto. Sou um homem que vive

à sombra da própria família, escondido. Talvez eu nunca seja o suficiente para você e o certo seria aceitar

essa condição. — Ele a olhou intensamente. — Mas não é fácil. — É a pessoa mais bonita que já conheci. —

Então fique comigo, deixe-me cuidar de você. Viollet estremeceu. — Não posso, Jack, não seria justo. Você

precisa de alguém inteiro, também precisa ser amparado. Não pode achar que vou salvá-lo... — Não é você

quem vai me salvar, Let. E sim quem sou quando estou com você. Sinto que também sente da mesma

maneira. — Carrego tantas coisas, tantas lembranças, tantas mágoas. Deixar que nossas vidas se cruzem de

novo seria marcá-lo com a minha desgraça. Ele tomou a mão de Viollet, retirou a luva negra delicadamente e

atraiu a suave e pálida palma até o coração. — Já estou marcado. Você está em todo lugar. E não há

desgraça maior do que estar longe de você. A respiração de Viollet falhou, puxava o ar com dificuldade

enquanto as lágrimas lhe ardiam os olhos. Era demais para suportar, via-se à beira do abismo. Precisaria

escolher entre voar ou pular. Mas seu egoísmo era tamanho que não seria capaz de abrir mão de John. Tinha

dificuldade de elaborar um raciocínio coerente. A sensação de que, independentemente do caminho que

escolhesse, morreria ali, naquele momento. John, ao vê-la pálida e notando que inspirava com dificuldade,

abriu-lhe o vestido e desamarrou o espartilho para afrouxá-lo. Surpreendeu-se ao ver que tudo que Viollet

vestia era preto, até mesmo as roupas de baixo. Sussurrava baixinho as instruções de respiração que ouvira
repetidas vezes, sob o comando de Anthony. Ao perceber que Viollet estava melhor, envolveu-a em uma

manta. Tudo estava limpo e não havia dúvidas de que a cabana fora preparada para recebê-los. Essa

constatação trouxe certo conforto, era o apoio silencioso de seus pais. Encorajando-o a conquistar a mulher

que o devolveria à vida. — Let, por favor, esqueça tudo que eu disse. Eu não deveria... — Eu matei Philip.

Depois que Marie fugiu com Paul, ele gemeu, disse que deveria ter atirado antes. Não tive alternativa, senão

atirar novamente. Não posso manchá-lo com isso, Jack. John a envolveu entre os braços. Segurava-a com

força, querendo de alguma forma protegê-la. — Meu amor, está tudo bem agora. Tudo acabou, tem a chance

de recomeçar. — Não mereço, sei que alguém levou a culpa por um crime que cometi, um inocente. Mais

cedo ou mais tarde, Deus irá me cobrar por isso. John afastou-se apenas o suficiente para encarar Viollet,

sem tirá-la dos braços. — Não vê que já sofreu demais, Let? Foi o maldito Phillip que pagou pelos erros que

cometeu, não você. — Não posso — a voz de Viollet se fundia aos suspiros, John a embalou, tentando

acalmá-la. Não insistiria, Let parecia esgotada. John a confortou até que ela se acalmasse e adormecesse.

Com delicadeza, apreciando o momento de intimidade, retirou por completo o vestido e o espartilho,

deixando-a apenas com as roupas de baixo. Colocou-a na cama, certificouse de que estivesse aquecida.

Voltou para a sala, vagando de um lado para o outro, sentia-se impotente. Não sabia como agir. Procurou por

papel e tinta, como de costume tentava organizar as informações, como se a situação em que vivia fosse uma

de suas engenhocas. Viollet havia sido abusada, humilhada e carregava a culpa pela morte do marido. Por

mais que buscasse uma forma de ajudá-la, entendia, mais do que nunca, que ela precisava de tempo para

que todas as lembranças se dissipassem. Queria persuadi-la e interrogá-la. Desejava saber o motivo que a

levara a se casar, entretanto sabia que não poderia. Paciência, John. Acreditava que o conde de Devon não

havia deixado muitos recursos, também não deixara dívidas. Viollet tinha as joias que herdara da avó. Era um

pequeno tesouro. Por mais que John se esforçasse, não conseguia encontrar mais nenhuma pista para

decifrar o que realmente havia acontecido. O sol aos poucos se despedia, ele não a acordaria. Esperou por

tanto tempo para ter algum momento a sós com Viollet, que se sentia realizado mesmo que ela estivesse

adormecida. Os passos de um criado, do lado de fora, chamou sua atenção. Viu um rapaz franzino, que

carregava duas cestas sem dificuldade. Logo que abriu a porta, o rapaz se adiantou: — Milorde, vim com a

autorização da Sra. Turner. Pediu que trouxesse esses suprimentos e perguntou se precisava de algo. John

rabiscou um bilhete para Lucy, pediu uma muda de roupa para Viollet e, ao notar que uma tempestade se

formava no céu, informou que era certo que só voltariam na manhã seguinte. O visconde sabia que não era

certo passar a noite com ela, mas não seria a primeira vez que dormiriam naquela cabana. Às vezes fugiam

escondidos no meio da noite. Entretanto naquela noite, haveria a anuência de seus pais. Viollet já não era

uma donzela, era uma mulher viúva. E, mesmo que seu corpo implorasse para se deitar ao lado dela e
reivindicá-la como sua, ele não o faria. Não daquela maneira. As palavras de Marie ecoavam em cada canto

da cabana. Viollet estava ferida, precisava de seu amor e aos poucos se abriria para que ele entrasse

novamente em sua vida. Ele dispôs na pequena mesa os alimentos que Lucy havia mandado. Presuntos,

frutas, pães e pequenos bolos. Uma garrafa de vinho e ervas para preparar o chá. Organizou da melhor

maneira que conseguiu, não era uma tarefa na qual tinha habilidade, mas se esforçou para surpreendê-la. O

tempo se fechava à medida que a noite caía. O criado voltou trazendo o que seu senhor havia pedido.

Naquela noite seria impossível não saborear o bom e velho brandy. John estava tenso, precisava de alívio. E,

mesmo que nos últimos tempos estivesse arredio em relação a qualquer bebida, ao lado dela sentia-se

seguro. Deixou a muda de roupas negras na cadeira, ao lado da cama. Viollet dormia como um anjo. Os

trajes do luto eram uma lembrança dos erros do passado e do tormento do presente, mas John não desistiria

de acreditar no futuro. Sentou-se no sofá saboreando um trago. A chuva caía como se lavasse e levasse

embora tudo que estava lá fora. Era um ritual de libertação, um sopro de esperança para os dias que viriam.

O cavalete disposto na frente da lareira era um convite. Let sempre dizia que as cores traduziam o que a alma

suplicava. Ele começou a salpicar no canto inferior da tela, pequenas pinceladas em tons de verde. Era um

trabalho demorado, desajeitado, mas de alguma forma John sentia-se bem repetindo aqueles movimentos. —

Precisa variar o tom da tinta, mais claro, mais escuro. A sobreposição confere profundidade. Foi surpreendido

pela voz de Viollet atrás de si, ela estava com os cabelos parcialmente soltos, libertos da usual touca negra,

estava envolta em uma manta branca. Linda! — Há roupas na cadeira e um bom brandy para nos

aquecermos. — Três quartos — ela zombou ao conferir o nível da garrafa. Viollet voltou para o quarto,

enquanto John continuava seu trabalho tentando misturar a o trabalho, as mãos habilidosas preparavam

inúmeros tons de verde com tanta precisão, que John deu um passo para o lado para admirá-la. — Estamos

presos? Não acha que deveríamos voltar a tempo para o jantar? — Ela continuava a misturar a tinta de forma

habilidosa, enquanto olhava pela janela. — Lucy mandou um jantar improvisado, acredito que não se

importarão com nossa ausência. A chuva foi uma boa aliada para que tivéssemos uma noite de refresco. —

John, eu... — Jack, para você sempre Jack. — Ele retirou uma mecha de cabelo que havia escorregado pela

face dela. — Let, é como voltar no tempo. Amanhã vivemos a triste e dura realidade. Hoje não. Vamos pintar,

tomar brandy como se estivéssemos muitos anos atrás. Viollet sorriu e, sem conseguir se conter, passou o

dedo sujo de tinta na ponta do nariz de John. — Isso não — ele pediu bem próximo, tentando conter o

impulso de beijá-la. — Achei que hoje podíamos fazer de tudo — falou um pouco encabulada, servindo a

bebida para os dois. — Tudo que a faça sorrir, nada mais.

Capítulo V
Desde a noite que passara na cabana com Jack, havia dois dias, Viollet não estivera a sós com ele

novamente. Ele não fora até seu quarto, sequer tentara uma aproximação. Sabia que era o correto a fazer,

fora um acordo, a noite na cabana era apenas uma doce lembrança do que foram um dia. Talvez um ponto

final, e não a vírgula que seu íntimo tanto desejava. Era véspera de Natal. Flora e Ann cantavam e tocavam

canções típicas, enquanto Thomas, o marquês de Bristol, embalava o filho nos braços. Anthony, Lucy e o

duque apreciavam a melodia, enquanto do outro lado Sarah e John conversavam. Viollet se mantinha

reservada no canto da sala. — Ela está olhando — Sarah falou tentando ser discreta. — Não sei o que está

fazendo, mas parece que está dando certo. — Papai falou que devo mudar a estratégia. — John se ajeitou de

forma a parecer confortável. — Estou fazendo exatamente o contrário do que tenho vontade, mas não vi

nenhum resultado. Sarah balançou a mão no ar. — Como pode ser tão cabeça oca? Pelo visto deixou de

procurá-la. — Não parece óbvio? — respondeu irritado. — Pelo que sei foi exatamente assim que conquistou

seu marido. — E acha que ela procuraria você? — A marquesa colocou as mãos na cintura. — Você tem que

estar presente sempre que ela precisar. Quando ela for cair, é você que tem que salvá-la. — Sarah, como

pode ser tão frustrante? Se ela mal sai do quarto, como vou salvá-la de uma queda? — Coloque uma pedra

no caminho. — A marquesa piscou deixando o irmão ainda mais Caminhou até as escadas e sentou-se no

primeiro degrau. Retirou da casaca o presente que Lucy havia lhe dado, um relógio de bolso. Não se tratava

de uma peça cara, mas era bem-trabalhada. Pertencera ao pai dela, que lhe dera no Natal, antes de se casar.

Seria um sinal? Os longos dedos acariciavam a peça. Girando a coroa, brincou com o tempo. Viu-se

desejando que aquele objeto lhe transportasse para o passado ou para o futuro. O último lugar em que queria

estar era o presente. Este necessitava de perseverança, paciência e tranquilidade, qualidades as quais John

tinha certeza de que, por mais que se esforçasse, nunca teria. Debruçou-se sobre os joelhos, sem ânimo para

participar das festividades, queria estar ao lado de Let. Tocando sua mão, compartilhando sorrisos como na

noite que passaram na cabana. — Um xelim por seus pensamentos — a voz suave que ele tanto desejava o

chamou. — Gostaria de trocá-los por outra coisa. Viollet olhou para baixo, e por um instante John temeu ter

se excedido, entretanto, quando ela ergueu a face, ele viu o vislumbre de um sorriso travesso. — Tenho um

presente de Natal para você — ela confidenciou. — Está na cabana, terá que ir buscá-lo amanhã de manhã.

Naquele instante, tudo se iluminou. Era ela que lhe dava esperanças, que o tornava forte. O olhar astuto, o

sorriso contagiante, as respostas inesperadas, era ela. — Não se atreva a sair daqui — ele ordenou. Por um

instante Viollet pensou que Jack correria até a cabana, mas ele andou apressado na direção oposta. Voltou

poucos minutos depois com uma trouxa na mão, mas ela nem teve tempo de perguntar o que era. John a

pegou pelo pulso e a puxou para fora. A noite fria era cortante, sequer havia uma capa para protegê-la da

névoa. — Vai precisar correr! — John gritou enquanto acelerava os passos. — O que está fazendo? É Natal,
estão todos lá dentro. — Não sou obrigado a ficar ouvindo os mal soantes de Flora e Ann. Quando souber

que elas estouraram os vidros da sala, irá me agradecer ter poupado seus ouvidos. — Elas não são tão ruins

assim — começou a correr para evitar ser arrastada.

— Tem razão, elas são péssimas, conseguem ser piores que você. — Ele se virou sorrindo. — Corra na

frente. Se deixar que eu a pegue, terá que acender a lareira. — Não, Jack! — Viollet acelerou gargalhando,

conhecia bem aquela brincadeira. Ele era capaz das piores trapaças. Certamente jogaria água nas lenhas

para que ela não conseguisse. Estava frio, mas aos poucos a adrenalina dominava. O espartilho dificultava

seus movimentos, mas ela se esforçava. Era libertador correr até a cabana. Algo tão tolo, mas tão cheio de

significados. Quando chegaram ao portão do jardim, ela levantou as mãos rendida. Jack entregou-lhe a trouxa

de comida que carregara pelo trajeto e destravou a porta. Estava escuro e a neblina dificultava a visão,

entretanto já tinham se acostumado a seguir a trilha de pedras. Caminharam um ao lado do outro até John

perceber que Viollet ainda tentava recuperar o fôlego. Mais uma vez, entregou a ela a trouxa e a carregou nos

braços. — O que está fazendo? — Deu um gritinho, surpresa, quase deixando que a ceia caísse no chão. —

Desculpe a indelicadeza, por um instante esqueci que mulheres da sua idade têm dificuldade de locomoção.

— Jack — ela deu um tapa no ombro dele —, não sou velha. — Ah, é sim, uma verdadeira anciã — ele sorriu

largamente — e quase tão desafinada quanto a sua irmã. John a carregou para dentro da cabana. Na

verdade, sua vontade era mantê-la nos braços todas as noites. Com certa dificuldade, abriu a porta e a

fechou com o pé. — Pode me soltar agora — Viollet pediu com um discreto sorriso. — Não quero soltá-la

nunca mais. — Ele a olhou com intensidade. — Jack... — Ela abaixou o rosto e ele a colocou no chão. John

se afastou e abriu a trouxa, colocando na mesa tudo que conseguira pegar na cozinha. Pão, vinho do Porto,

um pernil de cordeiro e velas. Viollet o ajudou a dispor as velas, enquanto ele acendia a lareira.

Deixei um penhoar, se quiser se trocar — ele informou, ainda concentrado nas chamas. — Seu vestido deve

estar molhado. — Por que deixou aqui? — Tinha esperanças de que voltasse a precisar. — Ele se levantou e

chegou bem perto. — Onde está meu presente? — Atrás de você. Ele não havia percebido o cavalete.

Ansioso, retirou o pano que o cobria. Era um retrato. Um retrato seu. Ela o havia pintado. Apesar de Marie ter

lhe contado que havia outras pinturas, aquele era o primeiro que ele via. Era uma pista, um vislumbre de

como Viollet o via. Tentou interpretar nos sinais. O sorriso largo, talvez, denotasse a alegria que sentia em

sua presença; as pequenas marcas ao redor dos olhos, sobre as quais ela sempre comentava, também foram

reproduzidas. — Let ... — Espero que tenha gostado. — Nunca tinha visto algo tão espontâneo, tão vivo. —

Ele virou-se para olhá-la. — Deveria tentar um autorretrato. Seria a mais bela das pinturas. — Não tenho

nada de belo para mostrar. John não se conteve, a proximidade, a forma como o olhava. Daquela vez seria

um patife, não resistiria à vontade que o queimava feito brasa. — Nem a mais bela flor poderia ser comparada
a você. — Deslizou os dedos sobre a face dela. — Nada do que já vi na natureza pode ser retratado como o

brilho dos seus olhos. — O polegar contornou preguiçosamente a boca. — E nenhuma iguaria tem o sabor de

seus lábios. Viollet estava com os olhos fechados, entregue ao torpor provocado pela voz e pelo toque de

John. Nada mais existia, nem mesmo uma faísca de razão. Sentiu os lábios de John sobre os seus, seu corpo

a princípio enrijeceu, mas a sensação de calmaria foi suficiente para que se entregasse e cedesse. Um beijo

lento, repleto de palavras não ditas. Um simples gesto que era capaz de mostrar que seu coração ainda batia,

mesmo que com um sopro de vida. Ela não o abraçou, ele também não a envolveu entre os braços. O contato

se dava através de lábios, línguas, respirações. Ele gemeu, suspirando profundamente e cessou a carícia. Let

queria mais. Antes de se afastar, John deu um beijo casto no canto de sua boca. — Foi o melhor presente de

Natal de toda a minha vida. Ela o olhou, a confusão no rosto dela o fez ter certeza de que havia se excedido.

Viollet se afastou atordoada, e John a acompanhou enquanto ela caminhava até a porta. — Eu não podia,

Jack. — A porta já estava aberta. Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa para acalmá-la, ela partiu

apressada. John chegou até a pequena varanda, Viollet corria tão rápido que ele temeu ter-lhe feito algum

mal. Tentou alcançá-la, não conseguiu. Desistiu ao vê-la entrar em casa. Voltou para a cabana cabisbaixo.

Meia garrafa de vinho do Porto, amnésia providencial dos ensinamentos de Anthony. O gosto doce ainda nos

lábios, gravados para sempre em sua memória. Mais um para sua coleção. A única coisa que lhe restava era

contemplar o retrato que ela havia pintado. Jack pelos olhos de Let.

*** Nem todo o oxigênio do Reino Unido seria suficiente para amainar os nervos de John. Já haviam se

passado três dias desde a noite em que Viollet fugira. Ela havia se trancado no quarto. Não saíra nem mesmo

para compartilhar as refeições. Fora um beijo doce, e ele tinha quase certeza de que ela havia se entregado;

em sua memória um pequeno gemido de satisfação havia sido o suficiente para encorajá-lo a prosseguir. Mas

ela havia fugido e se fechado. Talvez o beijo fora demais para ela. Ele foi um patife.

Deveria ter controlado os impulsos, embora soubesse que era uma tarefa impossível. — Não se culpe, meu

amigo. Um passo de cada vez — Anthony interrompeu seus pensamentos. — Talvez ela precise de um pouco

mais de tempo. Eu lhe disse que precisava ser paciente. — Não há nada que possa fazer? — John perguntou

impotente. — Algum tratamento, qualquer coisa. O médico sentou-se ao lado do amigo, em um dos bancos

do jardim. O céu estava cinza, e o inverno prometia ser rigoroso, mas nada importava. Mesmo que sentisse o

ar frio correr pelos pulmões, John não conseguiria ficar dentro de casa controlando o impulso de adentrar os

aposentos de Viollet. — Existem algumas abordagens, mas acredito que não sejam apropriadas, visto tudo

que Lady Viollet passou. — Do que está falando? Por que não tentamos? Lobotomia? — Não há motivos para

uma intervenção como essa. Pensei em uma terapia muito usada para casos de histeria. — O que é,

Anthony? Precisa tentar. — Trata-se de um estímulo corporal. Tem tido bons resultados. — Então comece já.
— John se colocou de pé rapidamente, havia um sopro de esperança. — Manipulação clitoriana — Anthony

revelou receoso; os olhos expectantes de John davam a entender que ele não compreendia do que se

tratava. Anthony começou a explicar como funcionaria o tratamento. Consistia em uma massagem nas partes

íntimas. Enquanto ouvia o médico discursar com propriedade, imaginou sua irmã, a doce e frágil Ann sendo

acariciada. A imagem do amigo tocando Viollet fez seu sangue ferver. — Seu patife! — John desferiu um soco

no médico. — Não vai encostar na minha Let, está ouvindo? Com a mão no olho ferido, Anthony cambaleou

tentando se levantar — Calma, John, é muito usado e tem bons resultados. É tratado de maneira profissional

e como disse... — Profissional! — A gargalhada maquiavélica de John fez o médico dar um passo atrás. —

Tão profissional que você e Ann vão se casar. Foi isso que fez com minha irmã? — O que está acontecendo

aqui? — Lucy, com as mãos na cintura e cenho franzido, interrompeu a discussão. — Ann precisa casar antes

de a temporada começar — John falou olhando diretamente para Anthony. — Não admito que a reputação de

minha irmã seja maculada. — John, entre — Lucy ordenou com o tom firme. — Até a hora do jantar, quero

que adiante a data do casamento. E não encoste um dedo em Viollet, ou serei responsável pela viuvez de

minha irmã antes mesmo de ela se casar. Anthony tentou argumentar, mas Lucy lhe pediu que esperasse

John se acalmar e garantiu que ela mesma conversaria com ele.

Capítulo VI

Pela sacada de seu quarto, Viollet acompanhou a diligência se aproximar. Apesar do frio, era reconfortante

contemplar a paisagem de Lilleshall. A viúva já não tinha forças para lutar contra os pensamentos. O beijo

que dera em Jack desencadeara uma série de lembranças boas e más. Em seu íntimo acreditava que todo

matrimônio era constituído da mesma matéria. Mulheres submissas, sofrendo agressões físicas e

psicológicas. O ato conjugal era um sacrifício ao corpo feminino. E, mesmo que Jack tentasse convencê-la de

que poderia ser diferente, jamais se enganaria. Sabia bem o que vinha depois. Homens sentem prazer ao ver

suas mulheres fragilizadas, ao seu comando. Respirou fundo, não queria se martirizar. Estava decidida,

permaneceria de luto até o fim de seus dias. Mesmo que, diante de sua situação financeira, conseguisse uma

autorização, não se casaria novamente. Ainda na sacada de seus aposentos, Viollet viu o exato momento em

que os Baldwins chegaram. Estava feliz em poder rever Marie e o pequeno Paul. O menino lhe traria

animação. Cogitou a hipótese de levá-lo ao rio. Animou-se com a ideia de um passeio, entretanto qualquer

pensamento se esvaiu quando viu aquela mulher descer da carruagem. O primeiro-ministro a ajudou. A

brasileira! Viollet constatou assim que a viu. Ela usava um vestido desapropriado para a longa viagem. O

tecido caro, de tonalidade verde, era forte demais para os padrões e principalmente para uma dama solteira.

Contudo, não podia negar que a incurial escolha ressaltava ainda mais sua exuberância. As flores de seda,

adornadas com plumas, em seus cabelos chamavam atenção, não só pela beleza do arranjo, mas Viollet se
perguntou como a brasileira conseguira manter o penteado intacto ao longo de toda a viagem. Talvez fosse

obra da criada que inaceitavelmente estava na mesma carruagem. A estrangeira não tinha a elegância

clássica britânica, mas tinha algo mais que Viollet não sabia explicar. Movida pela curiosidade, resolveu sair

do quarto, depois de dois dias trancada. Pelos corredores da criadagem, atravessou até a estreita escada que

dava na biblioteca. Precisaria passar por uma única porta para que conseguisse estar na sala a tempo de ver

a estrangeira de perto. Não queria ser vista, participar da recepção dos convidados não estava em seus

planos. Bastaria um passo na hora certa para, da porta, esconder-se atrás da cortina. Não era a primeira vez

que fazia aquela traquinagem. No passado, ela e John fugiam assim, primeiro se escondiam entre a panaria,

para depois utilizar as passagens de acesso. Um ritual saudoso, cheio de boas recordações. Ouvia

cumprimentos calorosos e, pelo buraco da fechadura, pôde calcular o momento exato de entrar no cômodo e

se esconder. Esperou alguns instantes enquanto Lady Baldwin exibia a Filha para Lucy. Quando as senhoras

deixaram a sala, Viollet deu a primeira espiada. Sarah, Ann, Marie e a brasileira comungavam dos deliciosos

biscoitos que a marquesa preparava. — Onde está Viollet? — Marie perguntou curiosa. — Tem se sentido

indisposta. Ficou reclusa logo depois do Natal — Ann se adiantou. — Ann, estamos entre amigas. — Sarah

balançou a mão no ar. — John deve ter enfiado os pés pelas mãos. Constrangida com a falta de modos da

irmã, Ann tentou manter o tom da conversa agradável. — Izadora, como é bom recebê-la. Marie fala tão bem

de você que estou ansiosa para passarmos algum tempo juntas. De alguma forma a proximidade entre Marie

e a estrangeira incomodou Viollet. — Soube que veio para temporada, é bom que saiba que as perspectivas

de encontrar um nobre interessante são baixas — Sarah avisou. — Para que possa avaliar a má qualidade

dos homens disponíveis no mercado, John é considerado o melhor partido. Claro que existe o

primeiro-ministro, mas o patife do meu irmão é sem dúvidas o mais bem-cotado. — Sarah! — Ann a

recriminou. — O que Izadora vai pensar de nós? — Que finalmente encontrei pessoas espontâneas em meio

às regras e códigos. Ao ver os sorrisos sinceros para a espirituosa Izadora, foi impossível que Viollet

contivesse a própria diversão. Jamais admitiria, mas gostava da estrangeira. O clima leve entre elas era

acolhedor; ao fundo podia ouvir Flora, praticava piano na sala de música. Viollet decidiu voltar para seu

quarto, embora a vontade de permanecer ouvindo a descontraída conversa fosse tentadora. Ao dar um

pequeno passo para o lado, sentiu um vulto e algo chocando contra si. — Shhhhh! — A mão de John cobriu

sua boca com delicadeza. Ele se inclinou e falou baixinho ao seu ouvido. — Se fizer qualquer barulho,

seremos descobertos. — Preciso voltar para o quarto. — Antes, tenho algo para lhe mostrar. Em perfeita

sincronia, puxaram a cortina discretamente e passaram pela porta escondida. Viollet caminhou em direção à

escada que dava acesso aos quartos, mas John a puxou, levando-a para o jardim lateral. Sem contestar

Viollet acompanhou os passos firmes e determinados dele. Não teve tempo de opor-se, sequer se arrependeu
ao ver o pequeno canteiro de cravos em flor. — Você sempre admirou o fato de que florescessem no inverno.

— Ele se colocou atrás dela, deixando seu corpo próximo, mas distante o suficiente para tocá-la. — São

lindos. — Let admirou a profusão de tons de vermelho e rosa. — Lembra do que disse? As cores devem

imitar a natureza. — Ela se abaixou e tocou uma das flores. — Do branco ao vermelho, a transição é tão sutil

que nem conseguimos perceber. — Um deleite aos olhos em um tempo tão frio. — Ele estava ajoelhado ao

lado dela. John colheu um cravo branco e Viollet segurou sua mão — Não faça isso. — Mesmo que tentasse

não conseguiria impedi-lo. — Para que servem as flores, senão para alegrar? — De forma cuidadosa, porém

desajeitada, ele enfeitou os cabelos de Viollet. A viúva se levantou, temia que ele se aproximasse ainda mais.

Não estava pronta para qualquer contato. — Preciso subir. — Claro. — Ele fez uma mesura ainda de joelhos.

— Nós nos vemos no jantar. Ela não respondeu, sequer sabia se desceria para o jantar. Precisava voltar para

o quarto, orar e tentar colocar os pensamentos em ordem.

***

A viscondessa Viúva sentia falta dos jantares festivos em Lilleshall. Em especial aqueles de que Lucy

participava. Lady Cécile Baldwin era uma mulher incrivelmente graciosa e nunca escondeu sua afeição pela

governanta. O duque de Sutherland ficava visivelmente mais feliz e descontraído na presença da amante. A

relação entre Augustus e Lucy era algo que Viollet sempre admirara. Não conhecia cumplicidade igual.

Acreditava que não compartilhavam o leito, ficando ela livre das obrigações matrimoniais. Se houvesse

qualquer possibilidade de manter um casamento sem interlúdios íntimos com Jack, talvez não tivesse tanto

medo. Aceitaria o pedido de casamento antes mesmo de concluir o segundo ciclo do luto. Afinal, era

desprovida de qualquer recurso, salvo as joias que herdara da avó, que seriam destinadas ao dote de Flora.

Uma dama viúva que não tivesse recursos poderia casar-se novamente, como um meio de se manter. Não

seria difícil passar pelos bons olhos, uma vez que as dívidas de seu pai lhe deixaram sem nada. Mas não,

definitivamente sucumbir ao desejo insano de compartilhar seus dias com Jack não era uma opção. Jamais

permitiria que qualquer homem a tocasse de novo. Seu corpo era manchado pelas marcas que Phillip deixara

e pelo crime que ela cometera. — Viollet, querida — a voz doce e suave de Lady Baldwin a trouxe de volta

para o jantar. — Não vai se juntar a nós para um chá?

A comida quase que intocada já não estava a sua frente. Viollet não percebera que a refeição já havia

terminado e que os cavalheiros aguardavam que as damas deixassem o local. Poderia ficar, sabia disso. Em

Lilleshall não havia convenções a ser seguidas. A própria marquesa discursava sobre política, Sarah era

habilidosa com as palavras. Todos os presentes a ouviam com dedicada atenção, inclusive a estrangeira, que

na ocasião optara por um modelo muito elegante. Viollet desconfiava que todo o enxoval de Izadora fora

especialmente desenhado por Marie. Acompanhou Ann, Flora e Marie até a sala íntima. Sentaram-se
afastadas de Lucy e de Lady Baldwin. Ann as surpreendeu iniciando a conversa: — Não acho que devo

esperar até meu casamento para me entregar para Anthony. — O constrangimento de Viollet era visível. —

Apesar da pressão que John fez para antecipar o casamento, acho que um mês ainda é um período muito

longo. Sinto falta dos toques... Viollet rapidamente buscou um bordado na cesta e tentou se concentrar em

outra coisa. Era um bordado de Flora, conhecia os pontos relapsos da irmã. Ponderou se não estava sendo

permissiva demais ao deixar que ela dedicasse tanto tempo ao estudo de política sob as orientações de

Sarah. — ... tenho certeza de que, se anteciparem o casamento, seu pai não irá se opor — Marie falava com

tranquilidade. Por mais que Viollet não desejasse ouvir aquela conversa, era impossível. — Anthony me faz

sentir viva, pensei em levá-lo até a cabana do jardim secreto. Foi lá que Lucy e papai começaram a flertar. —

Ai! — A agulha havia perfurado o dedo de Viollet, e ela o levou à boca. Pensou em se levantar e se retirar,

mas viu na porta, adentrando a sala, John e a brasileira, que conversavam animadamente. Respirou fundo,

de alguma maneira sabia que precisava controlar o impulso de se recolher. A estrangeira, voluptuosa, cheia

de encantos, estava no mercado de casamentos, e John era o herdeiro de um duque, um partido bem-cotado

para a temporada, como a marquesa havia ressaltado. Mas ele não frequentaria os bailes, não é mesmo? A

conversa que antes a perturbava, naquele instante, mesmo que se esforçasse, Viollet não conseguiria ouvir.

Não achava possível que não tivessem orientado Izadora para que não tocasse os cavalheiros enquanto

conversava. O toque era uma demonstração íntima, não para pessoas que acabaram de se conhecer. Jack

sorria, estava se divertindo, patife. Quando a brasileira deixou cair chá no vestido, ele prontamente ofereceu

um lenço. Viollet não suportaria ficar mais um minuto sequer naquela sala. Sentia-se sufocada. Pediu licença

educadamente e caminhou até a sala de música. Gostava daquele piano, embora não tocasse muitas

músicas. Havia uma em especial que apreciava. Aprendera ainda menina, com a mãe. Os dedos longos

deslizaram sobre as teclas. Ela testou o som, fechou os olhos e deixou que a melodia a conduzisse. Um

quarto de hora havia se passado, já era a terceira melodia que ela dedilhava. Havia se esquecido de que seu

repertório não era tão limitado. O banco largo num instante pareceu estreito e a música ganhou outros

acordes. Era ele! Jack se juntara a ela e juntos tocavam em perfeita harmonia. Enquanto aguardava o fim da

melodia, Viollet pensava em como resgatar a conexão que tinham. Queria provar para si mesma que o que

havia entre eles era muito mais forte do que uma conversa despretensiosa com Izadora. — Você estava

errado — Viollet falou assim que terminaram. — Do que está falando? — Das flores, elas não servem só para

alegrar. Existem inúmeros significados ocultos por trás de cada uma delas. — Assim como os leques? — O

amplo sorriso, que destacava as marcas dos olhos, estava lá, e ela percebeu que não o havia perdido ainda.

— E várias outras coisas. — Uma tolice infundada. Os significados foram criados para dizer o que não pode

ser dito. E sabemos que entre nós não existem restrições de comunicação. — É verdade. — Ela fitou os
dedos no colo. — O que achou de Izadora? — Uma dama misteriosa. Entende de negócios e discursa com

maestria sobre movimentos abolicionistas. Foi a atração do jantar. Viollet sentiu a boca seca, fechou a tampa

do piano com cuidado e colocou as mãos no colo. — Bem, preciso me deitar. Se o tempo estiver bom

amanhã, quero levar o pequeno Paul para um passeio no rio. — Posso acompanhá-la até seus aposentos,

milady? — John fez uma reverência galante. — Não é preciso. Sugiro que volte para a sala, talvez a senhorita

Izadora tenha casos interessantes a contar. Com licença. Quando chegou a seu quarto, estava ofegante;

naquele momento percebera que havia corrido, algo completamente deselegante e inapropriado. Um

comportamento típico da estrangeira, que ainda por cima era inteligente. Sentiu os olhos arderem. Havia dias

não chorava, entretanto não seguraria mais; nem que quisesse jamais controlaria a dor pulsante. John não

ficaria solteiro. Ela o perderia. Perderia para uma mulher fora dos padrões ingleses, uma brasileira. Mais tarde

naquela noite, do outro lado do casarão, a brasileira em questão folheava uma publicação antiga na

biblioteca, enquanto ouvia as duas damas decidirem seu futuro. Mesmo que John não quisesse ouvir, foi

impossível. No momento em que atravessava a passagem dos criados, a conversa animada de Sarah e Lady

Baldwin chamou sua atenção. Em um misto de curiosidade e hábito, abriu a porta de acesso, colocando-se

atrás da cortina. De onde estava podia ver Izadora, que não parecia aprovar o estratagema que Sarah

propunha. — Vi como Edward a olhava no jantar. Ele tem interesse, talvez precise somente de um

empurrãozinho. — Ela estava entusiasmada e isso fez com que John levasse a mão à testa. — Também sinto

o interesse de meu filho, mas Edward é teimoso como uma mula. — Lady Baldwin mais uma vez sucumbia às

insanidades de Sarah. — Acha que John aprovaria?

— Gostaria de ser consultada. — Izadora fechou o livro. — Não acredito que essa ideia possa surtir algum

efeito. Edward não aceitaria qualquer mulher que fugisse dos padrões ingleses. — É aí que está a questão.

Se outros cavalheiros se interessam por você, ele verá com mais clareza seus atributos e perceberá que os

padrões ingleses são enfadonhos e previsíveis — Sarah ponderou. Achando graça na conversa e curioso

com sua participação no plano da irmã, John decidiu que não ficaria nas sombras. Para a surpresa das

damas presentes, afastou a cortina, deixando todas perplexas, exceto sua irmã, que já estava acostumada

com as aparições inesperadas dele. — Qual é o seu plano, Sarah? — Sente-se, John. — A marquesa não era

uma mulher que se intimidava com facilidade e ele sabia bem disso; aceitou o convite com uma expressão

curiosa e ligeiramente sarcástica, encorajando-a a continuar. — Viollet precisa de uma pequena ajuda para

voltar a viver. Não que eu a julgue uma mulher de bom gosto, mas é notório que você é o único capaz de

fazê-la voltar a sorrir. Lady Baldwin, com toda sua delicadeza, interveio: — John, meu querido. Izadora tem

um interesse particular em Edward. Mas meu filho precisa enxergar que ela é... — O que os ingleses têm que

não conseguem se comunicar diretamente? — Izadora falou impaciente. — A ideia de Lady Baldwin e Lady
Hervey é fingirmos interesse mútuo para que a viscondessa viúva e o primeiro-ministro sintam-se

enciumados. A brasileira era uma mulher direta, e ele aprovou isso. — Pode funcionar. — John coçou o

queixo lembrando-se do comentário enciumado de Viollet na sala de música. — E o que sugere? — Izadora

perguntou, intrigada com a inesperada resposta. — Vamos dar uma volta. — Ele se levantou e lhe ofereceu a

mão, para ajudar Izadora a se levantar. — Talvez as damas estejam interessadas em bordar cueiros, ou em

se recolherem. Afinal cuidar da vida alheia é algo inerente às damas inglesas, o que as torna enfadonhas e

previsíveis. E, antes que Sarah pudesse soltar impropérios, o casal mais improvável de toda a temporada

deixou a biblioteca. John levou a brasileira para o gabinete do pai, sabia que seria o melhor lugar para que

pudessem acertar os detalhes daquele acordo. — Pelo pouco que vi, parece que não sucumbiria às ideias de

minha irmã. Izadora sentou-se antes mesmo que ele oferecesse; ela o avaliou. — Primeiro preciso saber

quais são seus reais interesses em relação à viscondessa viúva. John coçou o queixo, constatou que a sua

frente estava uma dama determinada, que parecia saber bem o queria. — Conheço Viollet desde que éramos

crianças. — Ele sorriu saudoso. — Apesar de ser três anos mais velho, sempre tivemos algo diferente. No

início achei que fosse um sentimento fraternal, mas, à medida que crescemos, percebi que não existiria

nenhuma outra mulher em minha vida. — Está dizendo que nunca manteve relações com outras mulheres?

— A brasileira se inclinou curiosa. — Sou um cavalheiro e tenho necessidades. Não que isso seja algo a ser

discutido, em especial com uma dama. Mas sim, durante muito tempo me guardei para Viollet, cheguei a ir ao

maior antro de Paris e me mantive firme, pois sabia que ela me esperava. Mas ela se casou com o maior

patife de todo o Reino Unido. Depois disso, perdi o controle de tudo em minha vida. — Quantas mulheres? —

O que é isso? Uma inquisição? — Preciso saber se está apto para me ajudar. — Três ou quatro, em completo

estado de embriaguez — ele falou cabisbaixo, com o orgulho ferido. — Somente as mulheres que se

parecessem com ela, mas nenhuma se compara à Let. John fitou o tapete, nostálgico; confessara para aquela

estrangeira o que poucos sabiam. — Acho que, se vamos fechar um acordo, precisamos ser honestos um

com o outro. — Ela se levantou e caminhou até a janela. — Não vim à Inglaterra para a temporada, foi uma

desculpa. Tenho algo realmente importante a fazer aqui. — Voltou caminhando até a poltrona e sentou-se. —

Não negarei meu interesse por Edward, já o conheço há algum tempo. Nossas famílias são sócias na

extração de ouro. — Por que veio então? — Acho que será melhor para você não saber. — Ela cruzou os

braços no colo. — Não é segredo a admiração que Edward nutre por sua irmã. Mesmo que ela esteja casada

e pareça bastante feliz, acredito que o primeiro-ministro a tenha como um modelo. Um padrão de dama

perfeita. — Sarah está longe disso — John garantiu. — Mas pode tomar aulas, seguir um conjunto de regras

não é algo com que vá ter dificuldades. — Aí está a questão, quero aprender os costumes ingleses, mas para

usar o que me convier. Quero Edward caso ele me aceite como uma dama imperfeita, e não como um padrão
pré-determinado. A própria rainha, em seu íntimo, não segue todas as convenções. — Você o ama? — O

suficiente para cogitar a hipótese de me casar. John se levantou. — Izadora, acho que posso chamá-la assim.

Edward Baldwin é um grande amigo, alguém importante, que me estendeu a mão quando eu só enxergava

escuridão. Eu não aceitaria um acordo com alguém que não o amasse o suficiente para fazê-lo feliz. —

Tamborilou o braço da poltrona. — Suficiente não é algo que caracterize o amor. — Lorde John, não se pode

alimentar um amor que não tem perspectiva de futuro. Não posso me permitir devanear sobre meus

sentimentos tornando-me cega e tola. Sua irmã fechou Edward para todas as outras mulheres. Não posso

passar o resto de minha vida infeliz e suspirando caso ele não corresponda ao meu interesse. Tenho vinte e

um anos, poderia ter me casado com qualquer homem no meu país, contudo estou disposta a tentar fazer

com que ele me veja com outros olhos. Para uma mulher como eu, isso é mais do que suficiente. Naquele

momento John percebeu que estava diante da mulher mais determinada e sensata que conhecera. Nem

Sarah era capaz de tratar os assuntos do coração de maneira tão prática.

Capítulo VII

Na manhã seguinte, Viollet resolveu encurtar o passeio. Não se sentia preparada para trazer à tona emoções

do passado, e ir até o rio lhe traria dolorosas e doces lembranças. Jack tinha o poder de ferir e acalentar, de

fazê-la acreditar na felicidade e ao mesmo tempo lembrá-la de que não era merecedora. Lady Baldwin, Lucy e

Marie caminhavam logo à frente, enquanto o pequeno Paul se distraía com as pedras e gravetos pelo

caminho. — Faço questão de desenhar o vestido de seu casamento — Marie anunciou logo que Lady Baldwin

comentou que, em breve, Lucy se tornaria uma duquesa. — Não tenho pressa, minha querida. Ainda me

preocupo com John — a governanta confessou enquanto pegava uma pedra para o menino. — Ele precisa de

uma ocupação, cuidar dos negócios, interessar-se por política. — Talvez, se Edward o convidasse para

trabalhar em seu gabinete... — sugeriu Lady Baldwin. — Lorde John gosta de modernidade, do

funcionamento das coisas — depois de se manter por quase todo o passeio quieta, Viollet se manifestou. — E

se ele ajudasse na tecelagem? — sugeriu Marie. — Confesso que fiquei lisonjeada quando Sarah me deu

parte do negócio que ganhou de Lorde Granville, mas não sei bem o que fazer. Tenho o trabalho no atelier,

Paul, o casamento, David. — Se ele tiver opções, talvez se interesse em se fazer útil. De qualquer maneira,

vou esperar até que ele se case — confessou Lucy. Viollet preferiu não participar mais da conversa. Pensar

no casamento de John não era algo que poderia fazer com facilidade. Aos poucos ela se aproximou de Paul e

viu que Lady Baldwin e Lucy seguiam na direção oposta. Caminhou entre as árvores, contemplando a

criança, desejar manter-se reclusa, aos poucos se entregou à conversa. — Como tem passado? — Marie

perguntou para a amiga. — Estou bem, gosto de Lilleshall — Viollet se limitou a dizer. Marie se recostou ao

seu lado, parecia medir as palavras. — Viollet, John parece nutrir um sentimento profundo. — Não é fácil... —
Deu um longo suspiro. — Sei que não. — Marie ofereceu um meio sorriso. — Desculpe, não queria ser

invasiva. — Como consegue deixar que outro homem a toque? Vai se casar, terá que cumprir com suas

obrigações matrimoniais. — Assim como você, eu conheci o lado sujo do leito conjugal. Mas aos poucos

David me mostrou que tudo podia ser diferente, eu desejo que ele me toque. — Também tenho vontade de

tocar John, mas não consigo. — Esfregou os olhos teimosos, que insistiam em deixar as lágrimas escaparem.

— Toda vez que ele chega perto, tenho medo do que acontecerá depois. Não me sinto preparada. — John a

ama e, embora se mantenha fechada, posso ver que seus sentimentos por ele não são diferentes. Ele saberá

esperar por você. — Não é justo, John merece ser feliz. Não vê a pressão que ele sofre para se casar? Lucy

espera por isso. — Ela parou por alguns instantes. — Ele tem necessidades que não posso satisfazer. —

Ouviu um trotar e involuntariamente o procurou. — Já passou da hora de Lucy se tornar a duquesa de

Sutherland, tantos anos... O pequeno Paul começou a correr pela estreita trilha, em direção aos cavalos.

Marie se adiantou para pegar o filho. Viollet se manteve no lugar. Estava apreensiva, mas não pelo menino,

que naquele momento já estava nos braços da mãe. Conhecia aquela melodia. Era ele. Fechou os olhos

buscando qualquer resquício de sanidade e razão; ao abri-los sentiu uma pequena pontada. Jack não estava

sozinho, estava com ela. — Bom dia, miladies. John as cumprimentou como um perfeito cavalheiro. Apeou e

ajudou Izadora a desmontar. Amarrou habilidosamente os animais na árvore, enquanto a brasileira o

observava com desnecessária atenção. Farta de contemplar a instantânea conexão que demonstravam,

Viollet decidiu voltar para casa, entretanto foi surpreendida pela presença da brasileira insolente, que

caminhava ao seu lado. — Não tem vontade de usar lavanda ou cinza? — Izadora perguntou de forma

descontraída. — Não é apropriado, com licença. — Rapidamente colocou o véu sobre a cabeça. Fora ríspida.

Não se importava. Quem aquela mulher pensava que era para sugerir-lhe o que vestir? Se ela queria fisgar

um bom partido e se tornar a viscondessa de Trentham, que se casasse com John, mas Viollet não era

obrigada a conviver com uma mulher que não tinha papas na língua. — Espere — Izadora a chamou quando

já havia certa distância entre eles. — Está na hora de minhas orações. Apressando ainda mais os passos,

Viollet seguiu em direção à capela. Diante do altar, colocou-se de joelhos. Não era digna de rogar por nada,

mas pedia a Deus que não a deixasse pecar mais. Que não lhe permitisse alimentar raiva da mulher a qual

John desposaria. Precisava de conforto, não queria desejar mal à mulher que daria filhos a ele. Não seriam

sujos de tinta, mas certamente não obedeceriam aos padrões sociais. O que fizera com a própria vida? Viollet

se questionava tentando se recordar do momento em que abandonara seus pensamentos livres para seguir à

risca a etiqueta. Quando fora que se perdera? Era a única pergunta que se dignava a fazer, pois tinha a

convicção de que já não encontraria a Viollet que fora um dia. Deus era misericordioso, Viollet sabia que só

Ele poderia libertar seu coração de tamanho egoísmo. Não era justo que John a esperasse. Não havia
garantias. — No dia ao que caiu do cavalo, eu vim para cá. — John estava ajoelhado ao seu lado. — Não me

deixaram entrar no quarto, fiquei aqui pedindo a Deus que você estivesse bem até a hora que todos

estivessem dormindo, para que eu pudesse entrar escondido. — Ficou comigo a noite toda. — Eu me

escondia debaixo da cama toda vez que sua criada entrava no quarto. — Ela era chata, Sra. Lowel. —

Mereceu cada minhoca que colocamos em seu travesseiro. — Isso nos rendeu dois dias de banho de rio sem

sermos procurados. — Viollet sorriu ao se lembrar. — Mas Lucy ficou muito brava. — Ela é sempre muito

brava comigo, somente Sarah sempre pôde fazer o que bem quis. — Não seja injusto. Lucy o ama e se

preocupa com você. — É a melhor mãe que alguém poderia ter. — Cansado de ficar de joelhos, ele se sentou

e Viollet o acompanhou. — Talvez seja o momento de procurar Edward, como sugeriu. Lucy precisa estar

segura de seu bem-estar, para decidir se casar. — Arrependeu-se. Estava procurando uma maneira de

impedir John de se casar? — Meu pai marcou uma audiência com a rainha. Acredito que vá conversar sobre

a possibilidade do casamento. Viollet se levantou e ajeitou as saias. — Achei que acompanharia a Srta.

Izadora até o casarão. — Não trocaria sua companhia por nada. Ainda tenho esperanças de que aos poucos

possamos voltar a ser o que éramos. John fora sincero, a ideia de causar ciúmes em Viollet não lhe parecia a

melhor das estratégias. Em seu íntimo desejava que ela desabrochasse aos poucos, sem planos

mirabolantes ou qualquer estratagema. Esperaria o tempo que fosse necessário. — Não posso pedir que me

espere. Seria injusto de minha parte. — Ela pareceu ler seus pensamentos. — Case-se comigo. Teremos

tempo para nos acertarmos, prometo não voltar a tocá-la a menos que me deseje. — É bem mais complicado

do que pensa. Não posso dar-lhe garantias, Jack. Quando estou ao seu lado é como se nada mais existisse,

mas há momentos em que a culpa que carrego é maior que tudo isso. Não tenho direito de ser feliz. — Talvez

devesse se confessar... — John ponderou, mas não se conteve. — Anthony falou de um tratamento, ele disse

que o estímulo nas partes íntimas pode ter algum resultado. Podemos tentar. Viollet deu um passo atrás,

assustada. — Não quero que ninguém toque em mim — afirmou tomada pelo pavor. — Não deixaria que ele

a tocasse. Poderíamos tentar, depois que nos casássemos. — Nunca poderei lhe dar o que deseja, John —

falou entre lágrimas. — Não alimente esperanças sobre nós. — Let — ele a chamou quando ela deixava a

capela, apressada. — Entenda de uma vez por todas, nunca mais seremos o que fomos um dia. Ele a viu se

afastar, olhou para o altar buscando respostas, mas não houve nenhuma. Somente a paz. Uma serenidade

tamanha, que ele não saberia explicar. Naquele momento Deus estava lhe concedendo a maior das dádivas;

a paciência. *** Augustus admirava Lucy com desmedida adoração. Mesmo que vivesse mil vidas, jamais

teria tanta sorte. A governanta, que era sua companheira havia quase trinta anos, estava ainda mais formosa,

a cada dia. — Não me olhe dessa maneira Augustus, John em breve irá entrar. — Estava linda na noite de
Ano Novo, querida. — Não comece de novo com isso, há três dias diz isso. Não vou mudar de ideia. Temos

assuntos a resolver. O duque fez uma careta desgostosa, não pela chegada iminente do filho, mas por se dar

conta de que seus planos de agarrar Lucy no gabinete teriam que ser adiados. Precisaria de muito

mais do que um elogio.

— Precisa falar com ele. Não é certo com Viollet. — Ela bufou com certa irritação. —

Você é permissivo demais com Sarah, e até Lady Baldwin embarcou nesse plano descabido.

— Eu diria insanidade, milady. — John entrou no gabinete do pai e fez uma reverência exagerada para Lucy.

Augustus observou o filho beijar as mãos dela com demasiado carinho.

— Meu filho, precisa dar um fim a essa loucura — a governanta pediu, pousando as mãos

no joelho de John, logo que ele se sentou.

— Não que seja do meu agrado, mas não vejo maneira melhor. — John coçou o queixo.

— A cada vez que consigo me aproximar de Viollet, ela se afasta ainda mais. E nos últimos dias, depois das

festividades de Ano Novo, obtive mais progresso passando mais tempo com Izadora do que tentando me

aproximar de Viollet.

— Ela está se sentindo insegura, teme perder sua amizade — a governanta tentou argumentar.

— Izadora precisa de minha ajuda — confessou John. — É uma boa moça, espirituosa, perspicaz, inteligente

e parece ter sentimentos profundos por Edward. Nessas últimas noites em que estivemos mais próximos,

vimos que Edward e Viollet de alguma forma se incomodaram

com isso.

— Augustus, diga alguma coisa! — implorou Lucy.

O duque se recostou à cadeira, levando as mãos à nuca.

— Nesse ponto concordo com John. Izadora precisa de nosso filho para conseguir ganhar a simpatia de

Edward Baldwin.

— Mas e a pobre Viollet? Ela está sentida com essa aproximação. Não se queixa, mal fala, mas eu percebo

os olhares.

— Viollet olha para mim? — perguntou John esperançoso. — Izadora diz que sim, mas...

— Não seja tolo, John. Sabe que os sentimentos dela estão confusos.

O duque, sabendo que aquela súplica perduraria por toda a tarde, resolveu intervir. — Minha querida, deixe

que eu converse com John. — Você não vai me enrolar, Augustus! — Estava brava, as mãos na cintura

denunciavam sua fúria. Sem pensar duas vezes, ele se levantou e a abraçou com carinho, sussurrando ao

ouvido dela. John observou a cena encantado com o poder que seu pai tinha de dobrá-la. Viu Lucy

resmungar, mas ela não demorou a deixá-los a sós. — Como consegue? — questionou curioso, queria
conseguir convencer Viollet com pequenos gestos. — Paciência e anos de prática. — O duque serviu duas

doses de puro malte e ofereceu uma ao filho. — Mas não se engane, meu filho. Elas sempre sabem o que

estamos fazendo, as damas são sábias, escolhem a dedo as batalhas que valem a pena ser lutadas. John

saboreou o uísque enquanto ordenava os pensamentos. — Pai, preciso saber o que aconteceu com Viollet.

Sei que já pedi isso inúmeras vezes, mas me sinto pronto. — Já tentou conversar com ela? — Não quero

pressioná-la, sinto, nos momentos em que ela se afasta, que eu disse algo que não devia. Talvez, se eu

descobrisse o que aconteceu, o que a levou a aceitar se casar com o patife do Phillip, possa tentar agir sem

intimidá-la. O duque passou as mãos pelos cabelos e franziu o cenho. — No dia em que voltou de Cambridge

e descobriu sobre o casamento, eu tive receio de perdê-lo. Não havia mais nada que pudesse ser feito. Viollet

já havia se casado e estava decidida. — O duque levantou os braços em rendição. — Eu tentei. — Por favor,

diga, qualquer coisa. — Quando soube do casamento, fui atrás de Viollet, mas ela parecia determinada. Não

havia nada que eu pudesse fazer.

— Ela se casou quinze dias depois que o pai morreu. — John, vi você bater a cabeça e me senti impotente,

morremos a cada dia que chegava carregado por Edward ou David. Você passava noites em frente à casa

dela, bebia até cair na rua, metia-se em brigas e apostas absurdas. Perdeu quase todo o seu dinheiro, tentou

tirar a própria vida e se envolveu com o que não devia. — O duque retirou o lenço do bolso e passou sobre os

olhos. — Tive vontade de arrancá-la de lá, de trazê-la para casa. Viollet sempre deixou claro que era uma

decisão dela. Assim como você, eu estava disposto a fazer qualquer coisa. Qualquer coisa que trouxesse

meu filho de volta. — O duque se recostou à cadeira. — Lucy me impediu, proibiu-me de continuar pagando

suas dívidas de jogo, disse que você precisava aprender com os próprios erros, que teríamos que estar aqui

para ampará-lo, mas não podíamos fazer o que você mesmo deveria. Ela tinha razão. Você precisava

enfrentar as próprias batalhas. — Fui um covarde egoísta. — Bateu as mãos na mesa. — Pensava em meu

próprio sofrimento enquanto ele a espancava. — Apertou as mãos do pai. — Preciso que me ajude. — Não,

não precisa. O que precisa é de meu apoio e isso sabe que sempre teve, sempre terá. Esteve em Paris para

tentar se recuperar do uso abusivo de ópio, está indo muito bem, meu filho, mas Anthony diz que ainda há um

longo caminho. John se levantou irritado. — É um duque, pode conseguir todas as informações de que

preciso. — Sim, sou um duque! Carrego o título que herdará um dia. Não é o morgadio que faz um nobre, é

muito mais do que isso, e já passou da hora de você se preparar para fazer jus ao nome de nossa família. —

O duque se levantou e colocou uma mão em um ombro do filho. — Estarei aqui, John, como sempre estive.

Você precisa abrir as próprias portas. Comece por Lorde Granville, ele certamente terá informações para lhe

dar. — Mas... — Seria hipocrisia dizer que recrimino você por tê-lo procurado e aberto mão de sua herança

em nome de sua mãe. Foi um ato nobre, honrado, e me orgulhei muito disso. Mas Willian não é um inimigo,
somos da mesma família John se levantou. Não retrucaria o pai, admitia que no fundo ele tinha certa razão.

Sua irritabilidade ainda era uma batalha a vencer. Por que havia de ser tão difícil? Caminhou até a porta em

passos duros. — John — seu pai o chamava com doçura, e ao se virar John viu um sorriso acolhedor. — Não

termine seu acordo com Izadora, o plano tem dado certo. — O duque abaixou o tom de voz e continuou. —

Usei o mesmo estratagema para conquistar Lucy, posso garantir que funciona. De alguma forma, deixou o

gabinete do pai um pouco mais confiante, mas nem toda a certeza seria capaz de conter seu humor

agastado. *** Enquanto todos se preparavam para deixar Lilleshall e voltar para Londres, John observava as

novas máquinas que estavam sendo construídas em um velho galpão, que havia virado uma oficina. — Meu

pai não disse nada. — John passou o dedo sobre a lâmina afiada. — Você nunca se interessou pelos

negócios da família — Sarah retrucou balançando a mão no ar. — James Harris, o filho de um dos

arrendatários de Ickworth House, tem desenvolvido novos maquinários para melhorar a produção. — Sugeriu

ao papai que comprasse? — John inspecionava as máquinas atento a cada detalhe. — É um arrendamento

para teste, se ele gostar poderá encomendar. — Está investindo em produção de maquinário agrícola

também? — John questionou a irmã, curioso. — Não se iluda, John, uso saias. Embora a princípio essa fosse

a ideia, seria humanamente impossível. Preciso ajudar meu marido nos negócios, cuidar da tecelagem e me

dedicar à política; não sobraria tempo para administrar uma fábrica de maquinário. — Esqueceu-se de falar

do pequeno Bronwen — John ponderou com ironia. A marquesa colocou as mãos na cintura, irritada. — Não

me venha dizer como devo ou não criar meu filho. Antes que pergunte, Thomas e Bronwen não são trabalho,

são minha família. Quero que meu filho cresça vendo os negócios prosperarem. — Apesar de achá-lo um

tanto quanto novo para isso, não vou contestar a maneira como cuida de seu filho. — John se abaixou mais

uma vez para examinar as engrenagens. — Essas lâminas não parecem seguras. — Para utilizá-la será feito

um treinamento. — O próprio James Harris virá treinar os arrendatários? — Está preocupado com as

condições de trabalho, querido irmão? Estou adaptando um projeto de lei menos abrasivo aos olhos dos

nobres, podia me ajudar. — Talvez... não respondeu minha pergunta. — Não, ele enviará alguém. Está

empenhado na melhoria das máquinas da tecelagem. — Gostaria de conhecê-lo. — Podemos ir até a

tecelagem quando chegarmos a Londres. — Será interessante. — John avaliava as máquinas com atenção.

Visivelmente intrigada com o comportamento do irmão, Sarah começou a caminhar em direção à saída. John

a acompanhou, entretanto, antes de deixar o galpão, ordenou ao funcionário responsável: — Não permita que

ninguém as utilize enquanto o Sr. Harris não vier inspecionar a montagem e treinar os arrendatários. Virei

para acompanhá-lo. A cabeça de John fervilhava de ideias, as máquinas eram interessantes, mas não tinham

muita segurança. Seriam necessários uma carcaça mais resistente e treinamento adequado. — John, está

estranho — Sarah ponderou. — Do que precisamos para desenvolver melhor essas máquinas?
— São testes, estão dando resultado em Suffolk — a marquesa garantiu. — Não são seguras. A montagem

tem que ser inspecionada de maneira minuciosa e vi peças que não estavam devidamente presas. — O que

entende disso? — Talvez nada, mas precaução nunca é demais. Quanto precisaria de investimento? — Quer

investir em uma fábrica de maquinários? — Sarah perguntou perplexa. — Não tenho recursos para isso, não

é segredo para ninguém que consumi boa parte de minha fortuna — John falou. — Minha renda mal cobre

meus custos. Quanto? — Preciso apurar melhor, não sei dizer ao certo. — Sarah, os materiais não são de

boa qualidade. Talvez as máquinas durem somente um ano, sendo otimista, dois. — É um investimento alto,

não pode durar só isso. — Ela parou por um instante. — Como sabe tudo isso? — Uma das poucas coisas a

que me dediquei nesses últimos anos foi a paixão por construir coisas. — O que construiu? — Nada de

importante, mas tenho alguns esboços. — Estou assustada, não sei nada sobre você. — Sarah parou de

andar. John continuou andando, com as mãos nos bolsos, obrigando a marquesa a acompanhá-lo. — Há

muito pouco tempo começou a olhar para o lado, querida irmã. Passou quase toda a vida obcecada em se

tornar a marquesa, em conquistar Thomas, em ter influência no Parlamento. — Com uma expressão

resignada, continuou. — Confesso que me surpreendeu bastante nos últimos tempos, começou a enxergar

melhor o que acontece a sua volta. — O sumiço de Marie... — E de Viollet. — Sei que não fui uma boa…

— Escute, Sarah, não estou recriminando você. Só estou dizendo que estou orgulhoso da mulher que tem se

tornado. — John, eu... sinto muito. — Talvez agora, mas não antes. Também tenho visto coisas que não

enxergava, ou que me recusava a ver. — Ele abaixou os olhos e respirou fundo. — Tenho medo de ficar

obcecado por Viollet assim como você era por Thomas. Quero fazer algo mais. De qualquer maneira, preciso

de dinheiro para manter uma família. — É o filho de um duque, o herdeiro. Tudo isso será seu. — Um dia.

Mas sinceramente espero que demore bastante. Nossos pais merecem ser felizes, Sarah. Quero que vejam

os netos brincarem em Lilleshall por longos anos. — Assim como você, John. — Minha felicidade tem nome,

mas a minha vida não pode ter mais. Preciso tomar as rédeas. Quanto? — Parece realmente interessado,

terá que pedir dinheiro ao papai, ou... — Ou... — Aceitar minha sociedade. Talvez, se prometer ficar à frente

dos negócios, posso investir. — Não sei se daria certo. É muito impulsiva. — Escute, podemos fazer um teste.

Ajude Harris com a maquinaria da tecelagem, se conseguirmos trabalhar juntos pensamos em nossa

sociedade. — Pensarei no assunto. — O visconde sorriu brevemente. Sarah se jogou nos braços do irmão e o

abraçou com ternura. — Não gostava de vê-lo do jeito que ficava. — Não vou ficar mais. — Se Viollet não

ceder e.... — Isso não irá acontecer, Viollet vai se casar comigo. Sou irmão de Sarah Anson, quero dizer

Sarah Hervey, a marquesa de Bristol. Desistir não é uma palavra que pertença ao nosso dicionário.

Capítulo VIII
Quando a diligência parou em frente à porta principal de Grove House, Viollet suspirou aliviada. Os últimos

dias em Lilleshall foram uma provação divina. Presenciar a troca de amabilidades entre John e a brasileira

sem modos era muito mais do que podia suportar. Como uma donzela podia usar cores tão fortes? Por que

sorria tão desinibida, sem se importar com o mínimo de decoro? Alguém deveria informá-la de que não é

elegante tocar no outro enquanto fala. A simpatia de Izadora era irritante, tudo naquela estrangeira era

enervante. Esperou que o marquês, a marquesa e o herdeiro entrassem na própria casa, para depois subir

para seu quarto. — Viollet, por que está tão nervosa? — Flora perguntou se fazendo inocente, mas Viollet a

conhecia bem, sabia que estava sendo testada. — Não estou nervosa! — esbravejou. Viollet teve vontade de

olhar para trás ao ouvir uma risadinha da irmã. Mas se conteve, estava ansiosa para se trancar em seus

aposentos e ter um pouco de tranquilidade. Testando ainda mais seus nervos, ao chegar à porta de seu

quarto, foi interpelada pela criada que lhe fora designada desde o dia em que chegara àquela casa. Não que

a jovem tivesse algo que a desabonasse, era prestativa e discreta, mas naquele momento a viscondessa

viúva não desejava ajuda, nem mesmo para retirar suas roupas negras de viagem. Dispensou-a com um

toque de acidez e abriu a porta, decidida a se manter reclusa; não se considerava boa companhia nem

mesmo para um gato. Ao entrar no quarto, foi recepcionada pelos tons avermelhados do pôr do sol. As

cortinas estavam abertas. A panaria preta fora substituída por tons de azul bem claros. A decoração do quarto

mudara. Havia flores sobre a penteadeira, que agora ostentava o polido espelho de cristal, completamente

inapropriado.

— Não há do que se desculpar, eu é que tenho abusado de sua hospitalidade. Imagino que minhas novas

instalações sejam a casa de caça, minha senhora. — Viollet, está em casa em Grove House. — A marquesa

colocou as mãos em um ombro dela. — Quis que se sentisse mais confortável, trazer-lhe um pouco de

alegria. Viollet não contestaria, deveria viver em um ambiente fechado e ornado para abrigar uma mulher

enlutada, mas ali não tinha o poder de opinar sobre a decoração. — A flores não fazem mal? — foi a única

coisa que conseguiu perguntar. — Bobagem infundada. — A marquesa balançou a mão no ar. — Anthony

garantiu que não fazem mal algum. — Ofereceu um sorriso acolhedor. — Seu material de pintura está na

casa de caça, tenho certeza de que a nova decoração será inspiradora. Surpreendentemente, Sarah lhe deu

um beijo na bochecha antes de partir. Viollet levou uma mão à face, depositando os dedos onde o contato

fora feito. Sorriu, grata pela demonstração de carinho. Um gesto tão natural e ao mesmo tempo cheio de

significados. Contemplou as novas instalações, agora podia ver de uma maneira diferente. Tudo havia sido

trocado, com muito bom gosto e de acordo com suas preferências. Pela primeira vez, sentiu-se realmente

bem-vinda naquela casa. Caminhou percorrendo os novos tecidos com as mãos, eram macios e cheiravam a

lavanda. Sentou-se junto à penteadeira para desfazer o coque e não se reconheceu no espelho. Estava
abatida, pálida, e seu olhar, desfocado. Avaliou a imagem refletida tentando encontrar mais uma vez a mulher

que fora um dia. Insatisfeita com o que via, concentrou-se somente em sua tarefa. Precisava descansar,

talvez o novo quarto ajudasse a melhorar seu humor instável.

*** Os convites exclusivos que chegavam a Grove House anunciavam o período que antecedia o início da

temporada. Tratavam de festividades restritas para a nata da aristocracia. Os encontros aconteciam ainda no

inverno, quando as damas ofereciam pequenas festas, antes de Londres fervilhar com a invasão de hordas

de senhoritas solteiras e mães casamenteiras. Viollet não participaria dos bailes e soirées, tinha consciência

de que, se não fosse pela influência da marquesa de Bristol, Flora não seria convidada. A sala de visitas de

Grove House estava cheia, tudo parecia ser motivo para que as damas se reunissem. Se não fosse para

supervisionar os vestidos de Flora, Viollet estaria recolhida em seus aposentos. Mas não negaria que toda

aquela movimentação lhe fazia bem. Sua irmã experimentava os trajes de baile desenhados por Marie e

confeccionados pela maior modista de Londres; Heloise Morrice. — Não vai precisar de tantos vestidos —

Viollet ponderou pensando no custo. — Não se preocupe com isso, Viollet — Marie tentou tranquilizá-la. —

São tecidos caros — a viúva replicou. — Não há com que se preocupar — Ann garantiu. — Papai vai arcar

inclusive com o dote de Flora. — Não é certo. — Ela retirou o véu do rosto, incomodada. — O duque parece

ter bastante apreço por você e sua irmã — Izadora falou amigavelmente. — Flora será uma debutante linda.

— Uma pena que não irei ao baile da marquesa de Normanby esta noite — Flora lamentou enquanto deixava

a sala com Heloise, para provar mais um modelo. — Tive uma ideia para o baile de debutante de Flora —

Sarah as interrompeu chegando de forma intempestiva ao cômodo. — Farei uma festa de aniversário, um

baile de máscaras, assim apresentaremos Flora para a sociedade. — Baile de máscaras? — perguntou Ann.

— Não é original, Marie foi apresentada da mesma forma. — Minha querida irmã, bailes de máscara não têm

como objetivo a originalidade, foram criados para ser libertadores. — A marquesa balançou a mão no ar,

dando de ombros. — Foi a única maneira que encontrei para que Viollet participasse. — Não posso... —

Escutem isso — Izadora as interrompeu, lendo uma nota no jornal. — O misterioso artista francês que pintou

a Rainha Vitória estará em Londres na próxima semana para entregar a tela. Há rumores de que o quadro

não será exposto à vista de todos, trata-se de um presente para o príncipe Albert. Fontes informaram que não

é um retrato convencional e que o artista foi escolhido por sua ousadia em retratar damas de maneira não

usual. — Não usual... — repetiu Ann. — Fico pensando o que poderia significar isso. — Não seja tola, Ann. —

A marquesa bufou. — Aposto que a pintura remete à intimidade do casal. Viollet observou cada uma das

damas presentes. Pareciam refletir sobre a tal intimidade. Pavor e medo eram os únicos sentimentos que

experimentava só de pensar em um momento íntimo entre um homem e uma mulher. Por que alguém

retrataria aquilo? — Quero vê-lo — Sarah parecia decidida. — Uma foto minha, ousada. Um perfeito presente
de aniversário, posso dá-lo a Thomas. — Você não teria coragem — afirmou Ann. — Eu teria — confessou

Izadora. — Thomas jamais aprovaria. — Marie trouxe a marquesa de volta para a realidade. — Ele não

precisa saber — Sarah garantiu. — E o que vai dizer quando entregar o retrato? — Viollet estava realmente

curiosa para saber como a marquesa se explicaria. Sarah parou, encarando Viollet pensativa. — Não preciso

dizer nada se você me pintar. — Não posso, milady. Acredito que se trate de uma pintura obscena. —

Sensual — Sarah corrigiu. — Não vai me negar um pedido. Não, Viollet não negaria. E a marquesa estava

jogando sujo, sabia disso. Anuiu em silêncio e escapuliu da reunião das damas perfeitas logo que conseguiu.

Era assim que pensava nelas. Damas Perfeitas. Cada uma com suas particularidades, perfeitas em sua

própria imperfeição.

*** A casa de caça havia se transformado em um elegante atelier. O quarto foi redecorado para abrigar um

requintado gabinete. Apreciava a atenção da marquesa, entretanto não precisava de um escritório. Já achava

um exagero ter um lugar para praticar suas habilidades. Na manhã seguinte, na qual fora coagida a pintar

Sarah, os primeiros traços foram criados. A marquesa estava sentada em uma cadeira, ombros à mostra,

decote generoso. Nada adequado para uma dama. Mas ali estavam somente as duas, modelo e artista. —

Vire-se um pouco para a direita — Viollet pediu, concentrada em seus esboços. — Por favor, não esconda

nada. Quero que meu marido me deseje — a marquesa pediu. — Não se sente exposta? — Viollet parou por

um instante, aguardando a resposta. — Sinto-me à vontade com você. Quando penso no quão inapropriada é

esta roupa, tenho certeza de que Thomas irá gostar. — Não tem medo? — a pergunta escapuliu. — Do que

exatamente? — De que ele a fira, machuque. — A única maneira com que Thomas me machucaria seria me

deixando. — Parece não se importar em oferecer seu corpo em sacrifício. — Viollet nem se dava conta de

que a conversa fluía naturalmente, nunca conversara tanto, nem sobre tais assuntos, com sua anfitriã. — Não

há sacrifício. — Sarah olhou para baixo e Viollet pediu que ela erguesse o queixo. — Quando meu marido me

toca é como se nada mais existisse. No começo eu sempre queria mais quando terminava, mas ele agora

parece saber o que me satisfaz. — Gosta de açoites? — Viollet perguntou escandalizada. — Não! — a

marquesa respondeu incisiva e, ao se dar conta do pavor de Viollet, tentou explicar. — Não há agressão,

somente satisfação. Às vezes Thomas me pega com mais

intensidade, mas jamais me feriu ou bateu. Na maioria das vezes me trata com tanta adoração...

— Vejo que o marquês a ama. Percebo pela maneira como ele a olha. — Tentava

processar a informação de que Thomas não era igual a Phillip. Talvez um caso raro, pensou,

assim como David.

Sem se importar com a pose, Sarah se ajeitou, de forma a ficar de frente para Viollet.

— Já lhe disse uma vez, você e Lucy me mostraram o amor. Sei que estou longe de ter
um sentimento tão puro como o de vocês, tão natural. Mas estou caminhando, eu e Thomas

estamos aprendendo a nos acertar e a construir algo tão bonito quanto.

A viúva se viu imersa em uma realidade que não era a sua. Eram somente lembranças,

mas na presença de Jack era como se o tempo não tivesse passado. Num impulso, vencida pela

razão, aconselhou a marquesa:

— A amizade, ela é a base de tudo. Jack e eu nunca tivemos segredos — as palavras

escapuliam. — Podemos falar sobre qualquer assunto, por pior que seja. Lucy e seu pai parecem

viver da mesma maneira.

— Como descobriu que amava John?

— Não descobri, eu sempre soube. Ele sempre esteve aqui. — Levou a mão ao peito. —

Sempre estará. — Engoliu em seco. — Amo-o tanto que não quero vê-lo envolto em meus

pesadelos, Jack merece ser feliz.

A marquesa se levantou e se aproximou.

— Estou feliz que esteja aqui. — Limpou as próprias lágrimas. — Recentemente meu

irmão me acusou de ser egoísta e negligente. Confesso minha culpa, e poder estar presente para

você e Flora me ajuda a me tornar uma pessoa melhor.

— Serei eternamente grata.

— Não quero sua gratidão. Quero que volte a sorrir.

— Obrigada. — A viúva fitou os próprios pés.

— Acho que chega por hoje. — A marquesa pegou sua capa e a vestiu. — Aproveite seu

atelier — parou por um instante —, John e eu temos uma reunião, vou ver os projetos dele. Eu o convidei

para ajudar na tecelagem. Ele está tentando. — Eu também estou, mas não sei se irei conseguir. — Sorrir,

seu único objetivo é sorrir. — A marquesa beijou a face de Viollet antes de partir. Viollet sentou-se na cadeira

havia pouco ocupada por Sarah. Por que se abrira tanto? Não percebera nenhum estratagema da marquesa

no sentido de ouvi-la falar do amor que sentia. Ela parecia sincera. Conseguira arrancar a confissão que

Viollet não fizera nem a si mesma. O espelho no canto do cômodo ainda não revelava quem ela fora um dia.

Ela sequer sabia quem era. Tantas coisas haviam acontecido e o que lhe restara fora o amor que sentia por

Jack. Um amor desgovernado, com o qual não sabia lidar. Sequer tinha esperanças de suportar ser tocada

um dia. Tentou se imaginar como Sarah estivera minutos antes, mas jamais conseguiria se expor daquela

maneira. O preto lhe trazia conforto, proteção. Era um escudo. Nem mesmo John seria capaz de derrubar

suas barreiras. Jack! Pensava que o melhor a fazer era deixá-lo ser feliz, com quem quer que fosse. Inclusive

com Izadora. A estrangeira não era tão má assim. Farta de refletir sobre a própria existência, apreciou o
atelier que a marquesa havia providenciado, era encantador. Assim como a decoração de seus aposentos.

Não negaria que todas as mudanças, no ano que começava, faziam com que se sentisse melhor. Começou a

organizar suas tintas. Cogitou a ideia de trazer o baú com os quadros para guardá-lo ali. Havia muitas

pinturas de John, algumas de Flora, um retrato de seu pai e várias paisagens. Flores em especial. Trocou

móveis de lugar, deixando o cavalete virado para a parede. Não queria correr o risco de que alguém visse a

pintura de Sarah. Aos poucos sentia-se em casa. Era bom ter um lugar para pintar. Um desejo antigo que se

realizava. Sorriu com ironia para o véu negro em cima do canapé. Nesse momento, fez um acordo consigo

mesma; quando estivesse ali dentro, não estaria de luto, não entraria com todo o fardo que carregava. Esse

seria o refúgio onde buscaria quem fora, ou quem seria. Após julgar que tudo estava em seu devido lugar,

voltou para o esboço de Sarah. Movida pelo impulso de surpreender a todos, fez intervenções em um papel.

Decidiu que a marquesa estaria sentada em um banco, ao fundo um canteiro de hortênsias em flor, uma

profusão de cores e tons de azul, que ressaltaria ainda mais sua beleza. Começou a preparar a tinta para o

fundo, não via a hora passar. — Espero não estar interrompendo. — John entrou e, sem pedir licença,

acomodou-se no gabinete. Um criado trouxe um pequeno baú e, sob a orientação de John, colocou-o no

escritório. — O que é isso? — Viollet estava intrigada. — Meu material de trabalho. Sarah me ofereceu o

escritório da casa de caça, acredita que terei tranquilidade para trabalhar. — Trabalhar? — Vou ajudar nos

projetos dos novos maquinários da tecelagem. Acabamos de nos reunir com James Harris, o responsável

pelos projetos. — John se sentou na cadeira e colocou os pés sobre a mesa. — Ele é bom, mas há algumas

deficiências básicas em seus planos. — Vai trabalhar aqui? Todos os dias? — Não! Somente alguns dias da

semana, tenho muitas coisas para resolver. — Coisas? — Vai ficar me olhando desse jeito, fazendo

questionamentos desconexos? — Jack... — Depois. — Tomou-lhe a mão e levou Viollet até a mesa. — Quero

lhe mostrar uma coisa. Retirou um dos papéis em uma pasta e começou a explicar as falhas dos projetos de

Harris. Basicamente todos se referiam à segurança e aos materiais utilizados. No início Viollet o encarou

atônita, mas a empolgação com que ele explanava era contagiante. John gostava de vê-la daquela maneira.

Lembrou-se do dia em que construíra um relógio.

— Não podemos trabalhar no mesmo lugar — ela falou por fim. John se manteve animado, nada parecia

abalá-lo. — Não? — Ele ergueu uma sobrancelha, com um meio sorriso. — Por qual motivo? Ela deu um

longo suspiro. — Não parece óbvio? Viollet viu John se levantar e estender a mão para que ela se

aproximasse. Estava sem as habituais luvas negras, tirara para pintar, ele também tinha as mãos nuas. Era a

segunda vez que ele a tocava de maneira tão íntima, e ela novamente sentiu um pequeno arrepio quando

suas mãos se tocaram. — Jack, por favor. — Não se preocupe, Let. — Ele se aproximou e a envolveu entre

os braços, contornando a cintura esbelta. Com delicadeza, puxou-a para si, deixando-a completamente
imóvel. — Andei pensando, não importa o que eu faça, você sempre acaba fugindo. — Ela tentou dar um

passo atrás e ele a conteve. — Por isso resolvi aproveitar os momentos antes da sua fuga. E sem pedir

permissão, ele a beijou. Viollet demorou algum tempo para absorver o assalto. Fechou os olhos. Gemeu

baixinho e abriu levemente a boca, o suficiente para que ele aprofundasse o beijo. Jack a apertou contra si.

Não era ruim, contudo era invasivo. Foi tomada por um inconsequente impulso de abraçá-lo também. Tocou

os cabelos de Jack, deslizando os dedos trêmulos pelas mechas escuras. Ele parou, ela não queria que ele

parasse. Mas também não queria que continuasse. Não sabia o que queria. John demorou algum tempo

antes de soltá-la. — Não se dê o trabalho de fugir, já estou de saída. Preciso me preparar para o baile da

marquesa de Normanby. — Vai ao baile? — A senhorita Izadora pediu que eu a acompanhasse. — Vai ao

baile acompanhado de uma dama solteira? — Claro que não, não seria de bom-tom. — Ele balançou a mão

no ar ironicamente, imitando a irmã. — Vou encontrá-la lá. — Fez uma reverência exagerada. — Tenha uma

ótima noite, milady. Saindo da casa da irmã, John calculava sua primeira vitória, mas aquele não era o motivo

do sorriso em seu rosto. Fora o beijo, ela retribuíra com a mesma intensidade.

Capítulo IX

Viollet não conseguira pregar o olho naquela noite. Havia pensado na possibilidade de convencer Flora a ir ao

baile da marquesa de Normanby, mesmo antes de seu debute. Precisava de alguém para vigiar Jack. Sabia

que era uma ideia descabida e, além do mais, nunca questionaria a irmã sobre o comportamento de John.

Para completar e desistir da ideia de uma vez por todas, convencera-se de que seria um escândalo a

presença de Flora em algum evento antes de sua apresentação oficial. Aguardava ansiosamente que a

marquesa acordasse, tinha esperanças de arrancar informações relevantes de Sarah. Por que John fora a um

baile? Estar em um evento organizado pela marquesa casamenteira era atestar sua disponibilidade. A

marquesa de Normanby não escondia o desespero por casar as filhas, fato público e notório na sociedade

inglesa. Sentada à farta mesa de desjejum, Viollet especulava sobre o tempo que Sarah demoraria para

acordar. Não estava habituada a descer para o café da manhã, mas a curiosidade e a agonia a consumiam

de tal maneira, que era impossível conter os ânimos. Jack, seu patife! Viollet bateu as mãos na mesa, irritada.

Deveria estar reclusa em seu luto, entretanto não conseguia parar de pensar no que havia acontecido na

noite anterior. Julgava-se inquieta para desfrutar a refeição, seu estômago revirava tanto que ela temia uma

congestão. Com passos firmes e sem se preocupar com a touca e o véu, seguiu para o atelier. Um lacaio

acendia a lareira e as velas, deixando o ambiente acolhedor. Ela agradeceu ao ver que ele deixara um bule

de chá e alguns bolinhos. O criado informou que, a pedido da governanta, Sra. Pattel, ele viria regularmente

para trazer algo de comer e manter a casa aquecida. Antes de iniciar seu trabalho, ela serviu uma xícara de

chá. Tentava se acalmar, mas seus pés tocavam o assoalho repetidas vezes. — Não a vi no desjejum. — Eu
e Thomas fizemos a refeição no quarto. Bronwen dormiu conosco. — Não vou nem dizer que isso é

inconveniente em muitos níveis. — Já conheço esse discurso, Pia não poupa palavras para contestar minha

maternidade. — Ela sorriu sonhadora. — Ele está a cada dia mais parecido com Thomas. — É muito novo

para dizer. — Viollet serviu uma xícara para a marquesa. — As pessoas não me julgam uma boa mãe. — Eu

não diria isso. Só não estão acostumados a ver uma mulher trabalhar e levar o filho para onde vai. — Eu o

alimento. — É algo incomum não ter uma ama de leite. — Não sou uma dama comum. — O sorriso travesso

da marquesa era contagiante. — Não, definitivamente não é. — Fitou as mãos controlando o impulso de

perguntar sobre o baile. — Não vai perguntar sobre ontem? — Imagino que não tenha muito a contar, os

bailes de Lady Howard são conhecidos por serem tediosos e repletos de valsas — mentiu tentando não

transparecer a curiosidade. — Tem razão. — A marquesa bebericou seu chá. — Podemos começar? —

Claro. — Viollet se colocou atrás do cavalete prontamente. — Pode virar o tronco um pouco para a frente?

Viollet começou a marcar as linhas de expressão, ainda no carvão. Trabalhando minuciosamente o esboço.

Tentava se concentrar, precisava afastar a inquietação que a consumia. Por que desejava tanto saber sobre o

baile? Sandice. — Marie estava belíssima. Um dos pontos altos da noite. — Houve mais algum? — Nada

relevante, só Izadora, que mais uma vez foi a atração. Ela tem um carisma peculiar. Dançou a noite toda. —

Com John? — Somente duas valsas — a marquesa respondeu com naturalidade, e Viollet ferveu por dentro.

Duas valsas! —, mas Edward não pareceu muito satisfeito, monopolizou-a por duas danças e a levou embora.

— Ele parece gostar dela. — É, acho que sim. Sarah voltou para sua posição, e Viollet continuou olhando-a,

esperando mais informações. — O que quer saber? — Sarah sorriu ironicamente. — Nada, milady. — Tentou

voltar para o trabalho. — Como esperado, John foi o mais cobiçado da noite. A presença dele em um baile

despertou certa comoção. As más línguas afirmam com veemência que o visconde de Trentham, futuro duque

de Sutherland, está à procura de uma esposa. — Sarah ergueu as sobrancelhas. — No seu lugar, eu não

deixaria. — O quer que eu faça? Ele parece bem interessado na estrangeira. — John não esconde os

sentimentos que tem por você. — Lady Sarah, sei que confessei a reciprocidade dos meus sentimentos, mas

há tantas coisas em meu passado que não permitem que eu avance com essa situação. — Viollet, é sempre

tão reservada, mas mesmo assim sinto você um pouco diferente, parece-me bem melhor. — Sim, eu me

sinto. E devo muito a sua acolhida. Sinto-me em casa em Grove House... — O que quer saber? Seja direta. A

pergunta certeira da marquesa a deixou desconcertada, Viollet deixou o carvão sobre a mesa e fitou o chão.

— Acha que John pode ser feliz com Izadora? Sarah sorriu amplamente. — Acho que John parece feliz e

empolgado com o novo trabalho. Nunca o vi assim. Ontem ele estava radiante, cheguei até a pensar que

vocês tinham se acertado. — Olhando para cima ela continuou. — É tão bom ver meu irmão voltar à vida,

interessar-se por algo. Ontem Edward me contou que John era um aluno dedicado nas aulas de engenharia.
— Ele sempre foi bom construindo coisas. Uma vez me fez um cavalete com um suporte, podia colocar todas

as tintas nele. — Eu desconhecia tal habilidade. Na verdade, acho que estou descobrindo muitas coisas que

não sabia. — Nós nos beijamos ontem... — Parou de falar, não sabia dizer por que estava revelando aquele

segredo à marquesa, entretanto o olhar curioso de Sarah a impelia a continuar. — Não foi a primeira vez... —

Suponho que não. — Digo, depois que tudo aconteceu. — Viollet pegou uma cadeira e sentou-se de frente

para a mais nova amiga. — Eu o amo, não negaria isso. Foi bom beijá-lo, mas acho que não conseguiria ir

além. John merece alguém por inteiro. — Com o tempo poderá dar a ele o que ele precisa. — Não entende.

Talvez porque seu marido não lhe inflija dor, mas a maioria dos homens é assim. Philip me disse. — Viollet,

Thomas apanhou do pai de maneira que não pode imaginar. Sofreu agressões físicas e verbais durante toda

a vida. Olhe para ele, para David. São cavalheiros e jamais levantariam a mão para qualquer dama que fosse.

— Não são todos assim? — Não, querida. Thomas me trata como se eu fosse a mais valiosa peça de cristal.

Às vezes desejo que me pegue com um pouco mais de força, mas ele me trata com tanta reverência, carinho.

Talvez seja disso que precise. Viollet se levantou depressa e olhou para a janela. — Acho que não

conseguirei ser tocada novamente. Sarah se aproximou para abraçá-la. A porta se abriu, revelando o

marquês. — Querida, Bronwen parece faminto — Thomas interrompeu a conversa. — Perdi a noção da hora,

preciso ir. — Sarah beijou o rosto de Viollet. — Vamos? — chamou o marido. — Vou esperar por seu irmão,

marcamos uma audiência aqui. Sarah deu um beijo polido no marido e saiu apressada. Viollet suspirou e

limpou os olhos tentando se recompor. — Aceita chá, milorde? — Não, obrigado. — O marquês pigarreou e

começou a andar pelo cômodo. — Gostaria de sua ajuda, Lady Viollet. — Em que posso servi-lo, meu

senhor? — O aniversário de Sarah está se aproximando, gostaria de dar algo que surpreendesse minha

mulher. — Ele deu um sorriso discreto. — Sarah não é o tipo de mulher que se encanta com qualquer coisa.

Vocês estão próximas, ela fala muito bem de você, pensei que talvez pudesse dar alguma dica. Viollet avaliou

o belo cavalheiro a sua frente. Surpreender os dois seria uma maneira de retribuir toda a atenção que ela e

sua irmã recebiam. — Tenho uma ideia, milorde. Mas terá que confiar em mim. — Pretende não me contar?

— Só preciso que fique parado, por alguns minutos, aqui. — Posicionou-o em pé ao lado da cadeira. — Com

a mão assim. — Vai me pintar? Já ouvi falar de seu talento... — Por favor, não se mexa, só olhe para a

cadeira, como se Sarah estivesse sentada aí. O marquês de Bristol posou para Viollet por quase uma hora,

enquanto esperava John. A viúva se manteve concentrada, trocaram poucas palavras. Thomas era um bom

modelo, mantinha-se longo tempo na mesma posição, sem se queixar. Se fosse Jack, já teria reclamado e a

tirado de seu foco. Riu sozinha enquanto as mãos habilidosas trabalhavam. Desabafar com Sarah um pouco

do que sentia trouxera-lhe uma leveza que havia muito não sentia. Os vínculos estavam se formando

novamente, fugia da reclusão e desejava participar dos encontros das damas perfeitas. — E eu me
enganando, acreditando que seria o único a ser pintado pela melhor pintora de toda a Europa. — John

chegou à cabana de caça trazendo consigo uma pasta de couro entre os braços. — Por quanto tempo ele

está parado nessa posição? — Quase uma hora — Thomas respondeu em um tom de reprovação. — O

tempo exato de seu atraso. — Ele se moveu, levemente desconfortável, dirigindo-se para a artista. —

Podemos encerrar por hoje? — Obrigada, milorde, e desculpe o transtorno. Acredito que consiga terminar

daqui. — Posso ver? — Não agora, quando estiver pronto eu mostro. Esse era um problema que até então

ela não tinha mensurado; como entregaria a Lorde Hervey uma pintura como aquela? Entregaria a Sarah,

estava decidida. Concentrada no cavalete, voltou para o trabalho. Antes de ir para o gabinete, John a olhou

com intensidade. Viollet percebeu que ele deixara a porta aberta propositalmente. Ouviu Jack discorrer sobre

materiais, mecanismos, ferramentas, produção e muitas coisas que ela não entendeu. Estava animado, cheio

de vida. Gostava de vê-lo daquela maneira. O seu Jack brincalhão estava sério, mas com o peculiar brilho

nos olhos. O sorriso sarcástico fora substituído por uma expressão de pura satisfação. Observou o quanto o

marquês aprovava os projetos, apesar de reservado Thomas não poupou elogios. John fora incumbido de

supervisionar todo o trabalho de James Harris, o marquês alegou que o cunhado tinha um superior

conhecimento técnico. Quando Thomas partiu, Viollet se concentrou ainda mais na pintura. — Uau! Não acha

que os seios de Sarah estão à mostra? Viollet deu um pulo e cobriu o quadro rapidamente, quase derrubando

o cavalete. — Não deveria ver isso — falou brava. — Sequer tinha o direito de interromper meu trabalho. —

Não interrompi, só fiz uma observação. — Não fiz observações sobre sua reunião. — Ela cruzou os braços,

fitando-o mortalmente. — Mas prestou atenção em cada palavra — falou pausadamente. — Não fechou a

porta. — Ela deu de ombros. — E você deixou a tela exposta. — Ele ergueu uma sobrancelha. — Não estava

exposta. Viu o que não deveria. Foi importuno. — Calma, não foi o primeiro par de seios que vi. Viollet engoliu

em seco, sentiu o sangue ferver. — Não, não foi. Certamente o primeiro foi de uma francesa, quando esteve

em Paris. John pareceu espantado e até ofendido com a acusação. — Não toquei em nenhuma cortesã

quando fui ao Palais des Plaisirs — ele declarou sério. — Phillip me contou. — Não recuou. — Relatou com

detalhes o que fez com a francesa, também gosta de infligir dor a mulheres. — Estava tão furiosa que nem

percebeu que gritava. John a agarrou pelos braços contraindo os dedos. Viu Viollet paralisar, empalidecer,

temeu que ela desmaiasse. Afrouxou os dedos e a soltou. Fora um idiota e a assustara. — Escute, meu amor.

Eu cumpri minha promessa. Não toquei em ninguém, esperei por você. — Ele abaixou os olhos. — Somente

depois que se casou e me disse que não tinha volta que... Parou ao perceber que Viollet não se mexia. Os

olhos estavam vagos, ausentes. Ele sentiu-se ainda mais culpado. Não devia tê-la segurado daquela maneira.

Ela deu um passo atrás. Let estava com medo, ele a conhecia. — Desculpe, eu não devia ter... — Deixe-me

passar. — Estavam entre a parede e o cavalete. — Não vai fugir. — Ele se arriscou passando a mão sobre a
face alva dela. Uma lágrima, uma única lágrima escorreu pelo rosto de Viollet. — Ele mentiu. Não estive com

ninguém em Paris, também nunca violentei nenhuma mulher. — Ele segurou o rosto dela com delicadeza. —

Jamais machucaria você, desculpe se a assustei. Só fiquei surpreso... — Não importa. — Ela engoliu em

seco. — Claro que importa, Let. Estou fazendo de tudo para que possamos ficar bem... — Dançando duas

valsas com a brasileira de curvas generosas? — Ela balançou a cabeça várias vezes. — Achei que pudesse,

mas não posso. Talvez deva ficar com Izadora e... Ele a surpreendeu colando-se a ela, a boca estava bem

perto da dela, Viollet podia sentir sua respiração. — Só me caso se for com você, Let. — Ela estremeceu. —

Já falhei uma vez quando prometi que seria a única mulher em minha cama, mas você se casou, pediu que

eu a esquecesse — ele continuava a falar em um sussurro, com os lábios colados aos dela. — Por favor, não

se feche, já nos beijamos, já demos esse passo. Pode me suportar assim tão próximo? Balançando a cabeça

desgovernadamente, ela negou, depois afirmou. Seu corpo não respondia aos comandos, estava confusa. —

Acredite em mim — ele implorou com os olhos fechados. — Não se deitou com uma cortesã em Paris? —

perguntou com a boca seca, a voz trêmula, desconfortável com a proximidade. — Não, também nunca bati

em nenhuma mulher, não consigo imaginar que tipo de monstro faria uma coisa dessas. Ela suspirou aliviada,

foi a deixa de que ele precisava. Jack beijou Let com adoração, ela não o abraçou, mas se entregou e era

isso que ele mais desejava.

Capítulo X
Phillip mentira. John não havia se deitado com uma cortesã e também não gostava de açoitar mulheres.

Como fora tola. Estava tão cega, desesperada, que deixara-se enganar. Recostada no canapé do atelier,

tentava organizar os pensamentos. — Ele lhe falou tudo isso antes ou depois de se casarem? — John estava

ao seu lado, sentado no canapé, segurava sua mão. — Contou sobre Paris antes e, sobre bater em mulheres,

no dia do casamento. — Ela não conseguiu conter as lágrimas. — Eu o chamei de Jack quando ele me tocou.

Recebi o primeiro tapa. Em seu íntimo, John ficou feliz por ela ter dito seu nome, entretanto era uma barbárie

tão grande que permaneceu impassível, tomado pela fúria, esperando que ela continuasse. Ela não

prosseguiu, não com palavras, mas com um pranto silencioso. Apesar de se sentir impelido a questioná-la

sobre os motivos pelos quais ela se casara, temia que fosse demais. — Entende o porquê de não poder ter

esperanças, Jack? Consigo beijá-lo e me sentir feliz ao seu lado, mas o que carrego nunca vai se apagar. Ele

não disse nada, só a abraçou. Queria garantir que tudo ficaria bem, mas não havia garantias, somente

esperanças. Contentou-se em abraçá-la, nada mais podia ser questionado, não naquele momento. John

esperou com paciência até que Viollet se acalmasse. — Sei que pode parecer inoportuno — ele arriscou

mudar o foco da conversa,


enquanto afagava os cabelos dela. — Mas acho que chegou a hora de contar tudo a Sarah. Ela tem nos

ajudado tanto, parece tão diferente que me sinto mal.

Viollet se ajeitou para olhá-lo. — Por que agora? Achei que esperaria... — Sarah não é mais uma menina,

precisa saber. — Ela tem se revelado uma grande amiga. — Para nós dois, meu amor. — Ele acariciou a face

de Viollet. — Escute, não estou pressionando, mas Lucy e meu pai precisam se casar. Eu suporto qualquer

escândalo, o título está seguro na família. Se não quiser se casar de novo, não casaremos. Mas não é justo

que Lucy e meu pai continuem esperando, o tempo está passando. — O que quer fazer? — Ela o conhecia,

sabia que ele se sentia pressionado. — Não sei ao certo, mas preciso confessar meu pecado a Sarah. Ela

precisa saber que Lorde Granville não nos deserdou e que foi um pedido meu. — Foi o ato mais nobre que já

praticou, Jack. — Talvez a única coisa certa que fiz em minha vida. — Não diga isso. — Eu perdi você. —

Não foi culpa sua. — Ela engoliu em seco e olhou para baixo. John não queria pressioná-la ainda mais. —

Preciso de você, vamos jantar amanhã em Anson’s House? Se estiver ao meu lado, eu me sentirei seguro.

Viollet foi movida pelo impulso de acariciar os cabelos de Jack. — Não podemos agir como se o tempo não

tivesse passado. — Compreendo que não queira se casar comigo, talvez com o tempo eu aceite isso. Só não

me peça para ficar longe de você novamente. — Ele segurou a mão dela, que ainda lhe acariciava os

cabelos. — Isso que temos nem toda desgraça do mundo pode tirar, é só nosso. — É confuso para mim.

Você me confunde. — E você me faz sorrir, me dá forças. — Sorriu. — Vou com você, estarei ao seu lado.

Não será fácil para Lucy também. — Obrigado — ele agradeceu com um beijo casto nos lábios. *** O jantar

foi servido com toda a pompa. Apesar das louças de festa e lacaios impecavelmente bem-trajados, Viollet

podia sentir a tensão. O duque estava calado, parecia ansioso. Jack apertava a perna dela vez ou outra, por

debaixo da mesa. Ele estava nervoso, ela sabia. Ann, Anthony, Thomas, Sarah e Lucy conversavam

animados sobre o posicionamento de John nos negócios. Ele respondia brevemente, sem muita empolgação.

— Está se sentindo bem, John? — Lucy perguntou, preocupada, logo que a sobremesa foi servida. —

Acredito que esteja cansado — Viollet tentou apaziguar colocando a mão sobre a dele, que repousava nas

saias do vestido. — Não está acostumado a trabalhar — completou, arrancando um sorriso de todos. — Na

verdade, mãe, não é isso. — Ele piscou algumas vezes e respirou fundo. — Acho que chegou a hora de

Sarah saber... — Não! — Lucy falou incisiva, seus olhos denunciavam seu desespero. Todos se calaram, a

tensão tomou o ambiente. Sarah olhou para o irmão tentando entender o que estava acontecendo. — Bem —

o duque os interrompeu, levantando-se. — Já que tocamos em um assunto tão delicado — falou olhando para

o filho, erguendo brevemente as sobrancelhas —, gostaria de anunciar que, graças à Srta. Izadora, a Sra.

Lucy Turner recebeu o título de baronesa — anunciou orgulhoso. — Não acredito, papai, agora poderão se

casar. — Sarah batia palmas animada. Enquanto todos comemoravam, Lucy piscava atônita, parecia
organizar os pensamentos. Ficou parada por alguns segundos, sua expressão era de inexpressiva

perplexidade. A governanta respirou profundamente antes de interrogar o duque:

— Do que está falando, Augustus? Por que não me disse antes? John virou a mão, e Viollet a apertou. —

Sarah — John chamou a atenção da irmã. — Sei que acredita que fomos deserdados por Lorde Granville... —

John... — Lucy tentou interrompê-lo mais uma vez, e Viollet sabia que, apesar de parecer furiosa, ela estava

apreensiva. — Deixe-o. — O duque se levantou e sussurrou no ouvido da amante. Viollet observava

atentamente cada movimento. Ela apertou a mão de John para encorajá-lo. — Foi um pedido meu, eu pedi a

ele que retirasse meu nome e o seu do testamento. Sarah olhou para o pai aguardando uma confirmação. —

Por que fez isso? — perguntou confusa. John olhou para Lucy aguardando aprovação; com os olhos cheios

de lágrimas, ela assentiu. A governanta cobriu os olhos com as mãos e o duque acariciou o ombro da amante

com carinho. — Carregamos o nome dos Granville, mas não o sangue. Foi a maneira que encontrei de honrar

o sangue de nossa mãe. Lucy se recostou à cadeira, e Ann secou a boca com o guardanapo. Viollet percebeu

que ela sorria. O duque estava visivelmente emocionado. — O que está dizendo, John? E mais uma vez

todos ficaram em absoluto silêncio, ninguém se mexia. Viollet acompanhava tudo, sem soltar a mão de Jack.

Lucy estava com os olhos fechados, ela suspirou alto antes de confessar: — Fui eu que gerei você e John,

minha querida. — Lucy não segurou as lágrimas. A princípio a marquesa sorriu amplamente. O início de uma

gargalhada foi interrompido por um soluço emocionado. Aos poucos ela recuperou a respiração falha. — Você

sabia, Thomas? — Virou-se para o marido. — Não, querida. — Ann? — Esperou que a irmã confirmasse. —

Viollet? — A viúva respirou fundo antes de anuir. — Fui enganada toda a minha vida? — Mais uma vez o

silêncio se fez presente, ninguém se mexeu, todos esperavam uma reação da marquesa. — Preciso de um

pouco de ar. — Ela se levantou atordoada, deixando a mesa. Thomas a escoltou. Todos permaneceram

sentados, acompanhando o casal deixar a mesa. Augustus se levantou e Lucy disse, incisiva: — Não,

Augustus. — Virou-se para o filho. — John, venha comigo. John observava a mãe enquanto caminhavam até

a biblioteca. Nenhuma palavra fora dita. Apesar da tensão do momento, John sentia-se aliviado por ter dito

toda a verdade. Quando abriu a porta, Sarah estava encolhida no chão e Thomas ao seu lado. — Lorde

Thomas, poderia nos deixar a sós? — a governanta pediu educadamente. Antes mesmo de o marquês deixar

o cômodo, Lucy se jogou no chão diante da filha. Esperara durante muitos anos por aquele momento. Sabia

que Sarah poderia reagir mal. Temia ser renegada. — Querida, não queria que soubesse dessa maneira. —

Olhou para John rapidamente. Ele se sentou ao lado da irmã. — Foi bonito o que fez, John — Sarah disse

entre lágrimas. — Foi a estupidez mais nobre que seu irmão fez. — Lucy sorriu. Sarah ficou em silêncio por

alguns instantes, olhando para a mãe antes de questioná-la. Lucy sentia-se apreensiva, suas mãos suavam e

o coração trotava desgovernado. — Por que não me contaram? Esconderam isso por tantos anos. Lorde
Granville disse que a matemática de minha vida não fechava... — Julliet morreu poucos dias antes de você

nascer. Ela os amava, tinha-os todos como filhos. — Lucy aceitou o lenço que John oferecia e secou as

lágrimas da filha. — Eu quis preservar a memória dela. A duquesa merece todo o nosso respeito. — Por que

não me contaram?

— Você foi por muitos anos a chama de Julliet nesta casa, Sarah. Se soubesse que eu era sua mãe, não

honraríamos a memória dela. Você é intempestiva, faria de tudo para me ver casada com seu pai, não agiria

com prudência — era tudo que podia dizer. — Todo mundo sabia... — Sarah. — John segurou a mão da irmã.

— Passou tanto tempo presa em suas próprias verdades que não olhou para os lados. A verdade sempre

esteve debaixo de seu nariz. Você via somente o que queria. — Quero ser uma pessoa melhor, John. Quero

que confiem em mim. — Você é! Vê o que fez por Marie? O que tem feito por mim e por Viollet? Lucy admirou

a interação de seus filhos orgulhosa. — Tem se tornado uma mulher maravilhosa, minha filha. Apesar de toda

a proteção de seu pai. Você se tornou mãe e com isso nasceu uma nova mulher — acrescentou Lucy

emocionada. — Uma marquesa justa, que ajuda quem precisa e que ama sua família. — Você me ensinou

isso, mãe. — Sarah se jogou nos braços de Lucy e John as abraçou. — Estou feliz por não precisar esconder

mais isso, mãe. — John beijou os cabelos de Lucy. Lucy deixou que a emoção a tomasse. Por quanto tempo

esperou para que se abraçassem daquela maneira, sem segredos. Agradeceu a Deus enquanto apertava os

filhos entre os braços. — Será uma duquesa encantadora, milady. — John deu um beijo na face da mãe. Ela

sorriu limpando o rosto. — Sei o que está fazendo John Anson, vocês dois são a cópia perfeita de seu pai. ***

Na sala de jantar, o duque caminhava de um lado para o outro apreensivo. Só voltou a respirar

tranquilamente quando Lucy e seus filhos voltaram abraçados. Ann, que estivera ao lado do pai, abraçou-o,

oferecendo um sorriso acolhedor a Lucy. John se posicionou ao lado de Viollet, lamentou que todos

estivessem de pé, mas isso não foi um empecilho para que buscasse a mão nua de Let. Ela não recusou o

contato e, para a surpresa dele, deslizou o polegar num ato de carinho, de acolhida. — Sabe, você é a que

mais se parece comigo, não é, Ann? — Lucy beijava os cabelos dela. — Não puxei o gênio forte do papai —

Ann se gabou. Num clima descontraído, tudo voltava ao normal. — Bem — Sarah chamou a atenção de todos

—, diante da recente revelação, gostaria de informar que a apresentação de Lucy será no baile de máscaras.

— E o casamento de Ann, dois dias depois — pressionou John olhando para Anthony. — Não vou ao baile,

Sarah — Lucy logo se esquivou. — Por que não? — Viollet surpreendeu a todos. — Até eu irei, faço questão

de participar da apresentação da futura duquesa de Sutherland — confessou emocionada. Lucy sorriu

encabulada e andou em direção a Viollet para abraçá-la. — Guardarei o título para você, minha querida —

sussurrou ao seu ouvido para que somente Viollet ouvisse. Mas John também ouvira e a forma com que

Viollet sorrira lhe enchera de esperanças. — Diante disso gostaria de informar que me casarei logo depois do
baile de Sarah — Ann falou num tom mais alto que o habitual. — Não porque John exigiu, mas porque tenho

pressa. O duque se jogou na cadeira. Percorreu todos com os olhos. Uma mistura de confusão e desespero.

— Onde foi que eu errei? Quando foi que permiti que as damas comandassem esta casa? — questionava

atordoado. — Desde que deixou Sarah fazer o que bem entendesse, Augustus. Sua filha é uma péssima

influência para nós — Lucy falou em tom de brincadeira. O duque riu entrando na brincadeira, mas tinha

certeza de que, havia muito tempo, quem Na manhã seguinte ao jantar, aos poucos recobrava a razão. Diante

do quarto redecorado, Viollet se sentia uma pecadora. Abusava deliberadamente da piedade divina. Tirara a

vida do marido e estava vivendo como se nunca tivesse se casado, como se não tivesse apertado o gatilho da

arma de duelo. Não era certo. Não, não era. A única marca de luto que ainda carregava eram as roupas, não

havia mais nenhum vestígio naquela casa que demonstrasse seu pesar; até mesmo o véu era negligenciado.

Ao atirar, fora invadida por uma breve sensação de alívio, mas logo depois viera o desespero, o medo, a

culpa. Sentimentos que a sufocavam e dos quais sabia que jamais se libertaria. E agora vivia como se o

passado pudesse ser apagado, fazendo planos para o futuro. Jantando com os Ansons, dando-lhes

esperanças de que se casaria com Jack. Não podia agir daquela maneira. Olhou para as joias da avó

espalhadas na cama, cada peça era um fragmento de sua história. Não sabia mais qual era real e qual era

ilusória. Assim como John, que a torturava e a confundia, levavam-na para um tempo em que só havia flores

mesmo no inverno. Paige, sua criada pessoal, entrou no quarto para recolher o desjejum. Havia algo diferente

nela, e Viollet custou a perceber o que era. — Não usa mais a faixa de luto no braço? — perguntou

procurando pelo pedaço de tecido negro. — Lorde John Anson pediu que retirasse, minha senhora. Assim

como orientou sobre as novas cores. É um cavalheiro de muito bom gosto. Jack! Respirou fundo. — As

ordens dele foram endossadas pela marquesa. Mas se a senhora... — Sendo uma ordem da marquesa, não

há o que contestar. — Ela se levantou e abriu a porta. — Por favor, gostaria de um pouco de privacidade para

as minhas orações. Quando se viu no conforto de sua reclusão, pôs-se de joelhos e começou sua prece. Uma

conversa silenciosa, um pedido de perdão. Rogava para que encontrasse forças para não sucumbir aos

prazeres mundanos; pedia ao Pai que lhe guiasse para o caminho da luz. Vagaria pela amargura e pelo

arrependimento até que Ele a libertasse de seus pecados. Um par de horas depois, sentia-se em paz.

Determinada em seu propósito de remissão e purificação. Atendendo às suas súplicas, Deus enviou Marie

para lhe fazer companhia. Uma gratificação por sua subserviência. — Espero não estar atrapalhando. — A

amiga sentou-se ao lado dela. — Não a esperava, mas gosto de sua companhia. — Vim acompanhar Izadora.

Ela teve um pequeno desentendimento com Edward, ficará hospedada aqui até voltar para o Brasil. — O que

houve? — Nada para se preocupar, meu irmão não assume os próprios sentimentos e prefere afastá-la a

ceder. Viollet balançou a cabeça em negação e Marie tocou as joias em cima da cama. — Fico feliz que
estejam com você novamente, parecem tão importantes. — Tocou o anel que deixara como garantia em uma

hospedaria meses atrás. — Não entendo, esse saco parece o mesmo que me entregou no dia em que me

separei de Paul. Sempre quis perguntar sobre isso. — O dia em que foi roubada, Jack — ela respirou fundo

—, John... Ele ficava horas na porta daquela casa. Ele recuperou o saco, agrediu os ladrões e o entregou

para Flora. — John parece... — Por favor, não — Viollet rogou. — O dia em que chegou a minha casa

carregando um bebê no colo foi o pior e melhor dia de minha vida. — Ela secou os olhos antes mesmo de as

lágrimas caírem. — Sabia que Phillip ficaria com a criança, ele me acusava de ser seca. O visconde precisava

de um herdeiro. Eu só não esperava que a jogasse na sarjeta. — Quando jogou o saco, achei que fossem

moedas. Passei todo o tempo achando que tinha vendido meu próprio filho. Mas depois entendi que Phillip

tinha o direito. Viollet alisou as joias na cama. — Muitas delas são falsas, mais uma artimanha de Phillip.

Entreguei a você as réplicas. Não daria muito, mas lhe garantiriam um teto e comida. — No dia em que fugi

da cabana também? — Não — ela olhou para baixo —, dei todas, sabia que garantiria o futuro de Flora. —

Respirando fundo, continuou. — Não era para ter gastado a munição com Phillip, era para mim, mas ele não

me concedeu nem mesmo o direito de morrer — confessou em um sussurro embargado. — Você não faria

isso. Não pensou em Flora? — Flora ficaria bem, tem quem olhe por ela. — Depois de uma longa pausa,

continuou. — Naquela noite eu me desesperei, não pela morte de Phillip, mas por continuar viva. Ele tinha

duas armas, éramos três pessoas. Certamente o único que sobreviveria seria o pequeno Paul. Marie levou a

mão à boca, assustada. — Paul foi o sopro de esperança, um motivo a mais para lutar, em um momento

difícil. — A viúva tocou a mão da amiga. — Quando Sarah me entregou as joias e sua carta, eu soube que a

luz havia chegado para você. — Pode chegar para você também, Viollet, estava tão bem. Todos comentaram

que nem mesmo o véu estava usando. John a ama. — Não! Jack me confunde, ele me cega, faz com que

nada mais exista em volta. E eu tenho penitências, uma grande dívida com Deus. — Você tem Flora, tem a

mim, tem todos nós. Viollet começou a guardar as joias na bolsa. — Estou decidida, assim que Flora receber

uma proposta de casamento, vou para uma abadia. Marie não disse nada, somente anuiu com pesar. Viollet

guardou o saco de veludo, impassível, com uma determinação que jamais sentira. Colocou a touca e o véu

sem se olhar no espelho. — Por favor, gostaria de ver Izadora.

Capítulo XI

John estava confiante, o jantar da noite anterior lhe trouxera esperanças. Em breve todos os Ansons estariam

casados e gozando de um matrimônio repleto de amor. Até mesmo o patife indecente de Anthony, que

demonstrava desmedida adoração por Ann, merecia seu afeto. Na porta do gabinete de Lorde Willian

Granville, pensara em desistir inúmeras vezes. Mas precisava de respostas e, mesmo que essas viessem

daquele que todos acreditavam ser seu avô, não recuaria. Ele bateu, não esperou ser atendido. Willian estava
sentado, debruçado sobre papéis, e se levantou imediatamente, logo que o viu. — John. — Ele parecia

emocionado, mas ao mesmo tempo receoso. — Eu não o esperava, mas é um prazer recebê-lo. Um brandy?

— Não bebo a essa hora — falou enquanto se sentava. — Esperei tanto para que pudéssemos conversar. —

Lorde Granville se acomodou em sua cadeira. John se inclinou colocando os cotovelos sobre a mesa. —

Lorde Granville, não mudei de ideia em relação a nada que conversamos. Quero honrar o sangue que

carrego, devo isso a minha mãe. Quero manter minha palavra. Não há nada que o desabone, mas permitir

uma aproximação seria uma traição. — Fez uma pequena pausa. — Aconselhado por meu pai, vim

procurá-lo, pois ele acredita que tem as respostas que procuro. Willian se recostou à cadeira. — Pergunte o

que quiser. — Lady Viollet Thompson, esse é o único motivo que me traz aqui. Quero saber por que ela se

casou.

— Espere. Não sei o motivo, mas tenho algumas informações que talvez possam ser úteis. — Por favor, não

me torture. Lorde Granville levou as mãos às faces, respirou fundo e encarou John com uma expressão de

culpa. — Allan Smith, o falecido visconde de Derby, pai de Phillip Smith, fora meu sócio por longos anos. — O

banqueiro se levantou e serviu uma bebida. — O que vou lhe contar não pode sair daqui. — Só preciso de

respostas. — Joana se envolveu com ele, minha filha foi amante de Allan por muitos anos, e isso fez com que

nossa sociedade acabasse. O conde de Devon, pai de Viollet, contraiu muitas dívidas quando sua esposa

adoeceu. Ele não tinha talento para os negócios e a perda da mulher fez com que seu prejuízo aumentasse.

Parte dessas dívidas ficou com Allan, nada significativo, boa parte ficou comigo. — Acha que Phillip

pressionou Viollet a se casar por causa dessas dívidas? — Dessas não, mas dessas. — O velho retirou um

envelope de couro da gaveta. — Esses papéis foram roubados de meu gabinete e reapareceram logo depois

que Phillip se casou. Ele me vendeu as dívidas que me pertenciam. — E não fez nada? Willian cruzou as

mãos diante da boca e deu um longo suspiro. — Não estavam nominais, eram ao portador. — Ele estendeu o

envelope à frente. — Comprei-as de volta por saber o que a família Thompson representa para você, em

especial Lady Viollet. — Não tenho como pagar por isso, não no momento. Se puder guardar... — Escute,

mesmo que me renegue, eu o tenho como neto. A minha Julliet os amou como filhos, todos, até mesmo

Sarah, que sequer chegou a conhecer. Por favor, aceite. John ficou parado sem saber o que fazer, temia

estar traindo a própria mãe — Não sei se devo. — De qualquer maneira, elas serão queimadas se não

aceitar. Acredito que terá prazer em fazer isso. O conde de Devon recebeu um título de cortesia, suas

propriedades não estavam vinculadas ao título. Sei que Lady Viollet está hospedada na casa de Thomas... —

Eu os aceitarei, por Viollet. — John... — Por favor, não insista. — Tudo bem. — Serei eternamente grato. Se

tiver algo que possa... — Só peço que me aceite. John pensou em dizer que talvez pudesse aceitá-lo em sua

vida, mas não como um avô. De alguma maneira, sentiu que não deveria permitir uma aproximação.
Despediu-se em silêncio e partiu, com a pasta de documentos. *** Logo que Viollet entrou nos aposentos em

que Izadora fora instalada, pediu que Marie as deixasse a sós. A brasileira não esboçou nenhuma reação ao

ver a viúva. Estava parada diante da janela, olhando para o lago congelado. Viollet também não disse nada,

ficou observando a elegante mulher a sua frente; era bonita, apesar dos atributos fora dos padrões. Elegante,

embora a escolha de cores não fosse adequada, ressaltava sua exuberância. Izadora parecia ser uma mulher

forte, determinada. A brasileira lembrava quem Viollet fora um dia, ou quem desejava ser. — Desculpe, quer

se sentar? — Izadora ofereceu um canapé do outro lado do quarto. — Gostaria de conversar com você. —

Imaginei. — Ela se sentou ao lado de Viollet. — John é um bom homem, amigo, companheiro e sempre

prestativo. Sabe ser um bom ouvinte, uma virtude rara Apesar da dor que sentia, Viollet não recuou. Havia

admiração entre eles e esse era, sem dúvidas, um bom começo. Em uma breve e silenciosa oração, pediu a

Deus que lhe desse forças para cumprir o objetivo de sua visita. — John é leal, pode parecer perdido em

alguns momentos, mas é dedicado. Precisa ter motivos para se focar. Tem uma queda especial por desafios.

— Respirou fundo para continuar. — É afetuoso, espirituoso, nenhum momento ao lado dele é tedioso. Só

tome cuidado para que ele não a confunda, ele tem o dom de subverter a ordem. — Sorriu brevemente. —

Sem dúvidas é um cavalheiro louvável, nisso estamos de acordo. Viollet se ajeitou melhor na poltrona. — Os

Ansons não são o que podemos chamar de exemplo de tradicionalismo, mas são humanos e têm muito

prestígio na sociedade. Conseguem disfarçar com maestria, aos olhos de todos, o que realmente acontece

entre quatro paredes. — Ela tocou a mão de Izadora. — Lucy não aceitará tornar-se duquesa enquanto não

vir Ann e John casados. — Teve vontade de dizer que se sentira pressionada, mas se conteve, seus

sentimentos não eram o foco daquela conversa. — Será uma esposa encantadora... — John a ama. — Não

estarei aqui, eu me comprometo em me confinar para atender aos desígnios de Deus. Não serei um

empecilho para vocês. — Com o coração em pedaços, garantiu. — Ele aprenderá a amá-la e você não terá

dificuldades para se apaixonar por John. — Veio até aqui para me convencer a casar com John? — É o

melhor partido da temporada, não poderia fazer casamento melhor. — Olhou para a janela, concentrada em

se conter. Izadora envolveu a mão de Viollet. — Eu buscava respostas quando entrou aqui, e você me deu. —

Sorriu ternamente. — Ama-o tanto a ponto de abrir mão dele para vê-lo se casar com outra? — Não se trata

de amor. — Viollet olhou para baixo. — Não minta para mim, não poderia partir sem se importar com nada. E

não me diga que é por Lucy ou pelos Ansons. — Sim, eu o amo. Mas há diversos motivos que me impedem

de me entregar a esse sentimento; eu fiz escolhas e devo arcar com as consequências. — Você entrou aqui,

parecia mais fria que o lago que vi da minha janela. Vejo-a sempre séria, arredia. Por que acho que essa não

é você? — Não sei quem sou. — Retirou as mãos da dela. — Mas isso não importa. Acho que podem ser

felizes juntos. — Não me casarei com John, sinto muito decepcioná-la, embora ache que está feliz com isso.
Amo Edward, vim para a Inglaterra com a esperança de ... — Ela tomou fôlego. — Como você mesma disse,

fiz escolhas e devo arcar com as consequências. Não me casaria com outro inglês senão Edward Baldwin.

Talvez nem me case e aceite seu conselho de viver em um convento. Mas não, eu jamais me colocaria no

meio de um amor tão puro e verdadeiro. — Sinto muito, eu não devia... — Você me deu a resposta que eu

procurava. O amor verdadeiro abre mão da própria felicidade pelo outro. Mas eu lhe garanto, John não será

feliz com mais ninguém. — Izadora se colocou de pé. — Parto logo depois do baile. — Deveria ficar um pouco

mais, quem sabe você e Edward não se acertem. — Só adiaria minha partida se fosse para presenciar seu

casamento com Lorde John. E, caso parta sem presenciar esse matrimônio, tenha certeza de que mesmo

distante continuarei torcendo por vocês. Naquela tarde, Viollet voltou para seu quarto atordoada e ainda mais

confusa. Por que tudo parecia conspirar contra sua razão e bom senso?

*** Durante a semana Viollet se manteve reclusa, estivera somente no atelier bem cedo, para pintar. Não

queria correr o risco de encontrar-se com Jack. Empenhava-se em terminar a pintura da marquesa, faltavam

dois dias para o baile de aniversário de Sarah. Ao observar a tela, percebeu algo peculiar. Faltava o brilho nos

olhos. A forma como Sarah e Thomas se olhavam era uma silenciosa declaração. Fez retoques tentando

recordar-se dos detalhes que captava a cada vez que os via juntos. Contemplando a imagem do casal,

acreditava que a marquesa falava a verdade, ele não seria capaz de agredi-la. — Let. Ele estava lá. Pelo tom

de voz, Viollet soube que estava chateado com alguma coisa. Era o momento ideal para colocar um fim em

tudo. Ela o ignorou. Buscava forças para perder a razão e afastá-lo de vez. Até que ele tocou seu ombro, foi o

gatilho de que precisava. — Não toque em mim! — O que houve? — Ele parecia preocupado. — Quem lhe

deu o direito de redecorar meus aposentos? De ordenar que minha criada não respeitasse meu luto? — Aos

poucos deixava que a raiva a tomasse. — Não tem o direito de fazer de mim o que bem entende, não pode

mandar em minha vida. Eu não me casei com você. Viollet estava confiante, sentia o corpo latejar, a fúria

dominava seus poros. Ela conseguiria. Talvez realmente conseguisse se ele, mais uma vez, não a

desarmasse. O corpo robusto a pressionou contra a parede, ela não teria como reagir. Estava apavorada?

Amedrontada? Talvez anestesiada, como em uma longa tragada de clorofórmio. Uma paralisação

momentânea de todos os sentidos. Era isso que ele fazia. — Não me casei com você, ainda. — Ele estava

bem próximo. — Não tenho direito a nada, mas tenho a obrigação de fazê-la feliz — e mais um beijo. Um

assalto. Uma surpresa. Um toque agora conhecido, que despertava pavor, medo, angústia, mas que em

pouco tempo se transforma em necessidade, em fôlego, refresco. Ele a dominava, entorpecia, roubava-lhe a

sanidade e a razão. Viollet respirou fundo e o afastou. — Não pode fazer isso — a voz, que antes bradava

determinada, era fraca. — Não vê o mal que me faz? — Jamais faria qualquer coisa para magoá-la. Vou

protegê-la... — Eu não sou sua. Não pode fazer comigo o que bem entende. Ele não se afastou, continuava
pressionando-a. — Não, você definitivamente não é minha, mas eu sou seu. — Ele deu um passo atrás. —

Não pode me culpar por confundi-la, eu só estou tentando fazer com que se sinta melhor. O que foi aquilo no

jantar? Eu a pressionei? Na cabana em Lilleshall, eu a coagi a tomar brandy e a valsar comigo? Não, aquela

era a minha Let. Nada vai apagar o que vivemos. Lentamente ele tocou a face de Viollet fazendo com que ela

fechasse os olhos, um beijo delicado no queixo, depois nos lábios. — Eu a amo e sinto que me ama na

mesma medida. — Jack... E, antes que ela pudesse retrucar, foram surpreendidos pela presença de Izadora,

que sorria enquanto fazia uma reverência. John não se afastou. — Espero não estar atrapalhando — a

brasileira se desculpou. — Não, Lorde Anson já estava de saída. — Viollet o empurrou com as mãos

apoiadas nos ombros dele. John segurou as mãos nuas e beijou demoradamente cada uma delas. Com uma

vênia exagerada, partiu deixando-as a sós. — Está tudo bem? — Izadora perguntou ao ver que Viollet se

mantinha estática. — Não... quer dizer, sim. — Estou curiosa para ver a pintura de Sarah. — Não posso

deixá-la ver. — Aos poucos recobrava os sentidos. — É uma pintura íntima. — Não será novidade ver uma

mulher nua. Por favor, preciso saciar minha curiosidade. Há muitos rumores sobre seu talento. — Não há

nudez, isso seria inaceitável. Izadora deu uma gargalhada contagiante. Viollet se viu sorrindo também.

Vencida pela insistência, permitiu que a estrangeira contemplasse a pintura. — Está realmente magnífica,

porém confesso que esperava algo mais ousado vindo da marquesa. — O contorno dos seios está à mostra,

não vejo o que pode ser mais ousado que isso. Izadora sorriu e seu olhar se iluminou. — Amanhã será o baile

de máscaras, gostaria de partir em dois dias, no mais tardar três. — Deveria ficar para o casamento de Ann,

ela aprecia tanto a sua companhia. — Só um motivo me faria adiar minha viagem. — Qual seria? — Quero

que me pinte, fico até que termine. Viollet, surpreendida com o pedido, caminhou até a bacia e começou a

lavar as mãos. Ainda se recuperava do embate com Jack e jamais esperaria um pedido como aquele. —

Quero dar a pintura a Edward, minha última tentativa. — Está me deixando em uma situação embaraçosa. Se

me negar, estarei virando-lhe as costas. — É um pedido desesperado, não vejo mais nada que eu possa

fazer para... — Pintarei você. Por favor, sente-se. Ficará mais confortável. Izadora caminhou pelo cômodo

fechando as cortinas e trancando a porta. Para a surpresa de Viollet, a brasileira começou a se despir por

completo. — Não é necessário... — Quero que me pinte nua, essa é a lembrança que quero deixar para

Edward. — Mas... — Por favor, ajude-me aqui. Sem refletir sobre a loucura que estava prestes a fazer, Viollet

ajudou Izadora a se despir, deixando a brasileira somente de camisola. A viúva conferiu todas as janelas, não

correria o risco de que alguém as visse. Certa de que ficaria constrangida e de que seria a situação mais

embaraçosa de sua vida, foi até o gabinete de John e pegou uma garrafa de brandy. Serviu duas doses e

ofereceu uma à estrangeira, que já estava nua, deitada no canapé. Izadora não parecia se importar com o

fato de que seus pelos ficariam à mostra. — Acho que, se fizermos somente os contornos, poderá ficar sutil
— sugeriu Viollet, segurando o próprio copo ainda intocado. — Preciso que seja fiel a cada detalhe, não quero

um esboço, quero um retrato. Tão fiel quanto possível, quero que Edward me veja como sou, sem roupas,

sem máscaras sociais, quero dar a ele Izadora. Viollet virou o cálice em um único gole e serviu outro. Izadora

ergueu a pequena taça no ar e a acompanhou. Foram necessárias três antes de começarem. — As inglesas

são muito melindrosas, soube que muitas tomam banho vestidas — a brasileira observou, já no quarto cálice.

Viollet riu e serviu mais uma dose para as duas. — Por favor, mate minha curiosidade. Suas roupas de baixo

também são negras? — Izadora estava a cada vez mais desinibida. — Deve ser instigante, imagino como um

cavalheiro deve reagir ao ver trajes negros por baixo da roupa. — As meias também, não é de bom-tom usar

nenhuma outra cor antes de um ano. — A viúva se sentia relaxada. — Quando conheceu John? — Desde

sempre, não me lembro exatamente quando. Os Ansons sempre estiveram presentes em nossas vidas. —

Acho o duque um homem muito elegante. — Sim, ele é, Jack se parece muito com ele. — Jack — Izadora

testou as palavras. — Trocávamos cartas, inventamos Jack e Let para assinar e preservar nossa identidade,

mas acho que todos sabiam. Meu pai não era tão liberal quanto os Ansons, mas Lucy sempre encontrava

uma maneira de acobertar nossos passeios no rio, as fugas para o jardim de inverno. A viúva serviu mais uma

dose generosa para as duas. — E você? Desde quando conhece Lorde Edward? — Há quatro ou cinco anos.

Ele passou uma temporada no Brasil. Eu me apaixonei, acreditava que era recíproco. Também tomamos

banho no córrego e nos beijamos, eu quis me entregar a ele. Mas Edward é um cavalheiro honrado, não

desvirtuaria uma donzela. — Ela gargalhou e se levantou para servir mais uma dose. — Parece muito à

vontade com o próprio corpo. — E você não? — Tenho marcas, antes não ligava. Jack, quer dizer, John já o

viu algumas vezes com as roupas de baixo empapadas pelos banhos de rio. Mas hoje acho que não teria

coragem de mostrar a ninguém. — O que houve? — Varas, açoites. — Viollet deu de ombros. — Qualquer

objeto que não ultrapassasse a grossura de um dedo, essa é lei do polegar. — Nunca teve vontade de enfiar

uma vara no rabo dele? Viollet caiu na gargalhada. — Por onde saem as fezes? Não tive essa ideia, mas vou

me lembrar dela caso precise. Izadora vestiu sua roupa de baixo e se sentou no tapete, trazendo a garrafa

para perto. — Venha, sente-se; se estiver com a vista embaralhada como a minha, não conseguirá mais

pintar. — Izadora tomou um generoso gole direto da garrafa e a ofereceu para Viollet. — Se pudesse fazer

um único pedido, qual seria? — Gostaria de voltar a ser quem fui um dia — a viúva declarou nostálgica. —

Pois hoje será exatamente isso que fará. Quero conhecer a Let por quem Jack se apaixonou. Uma garrafa

não fora suficiente para que se soltassem como desejavam. Viollet precisou voltar ao escritório de John. Não

havia mais brandy, só um puro malte.

Capítulo XII
No gabinete do marquês e da marquesa de Bristol, a reunião seguia acalorada. O primeiro-ministro observava

Sarah discursar sobre o projeto de lei que estava apresentando. — ... me parece razoável, não

encontraremos muita resistência — Edward ponderou. — Precisamos encontrar um tory para apresentar o

projeto — Sarah completou —, talvez meu pai. Ele tem prestígio... — Quer colocar meu pai nessa ideia

infundada? — questionou John. — John, é um projeto de lei humano, garante assistência a trabalhadores

acidentados — Thomas intercedeu. — O que endossa a construção de máquinas sem o mínimo de

responsabilidade e zelo. — John se virou para a irmã. — É isso que sonhou para sua vida política, ser

conhecida por dar assistência aos acidentados, mas que eles se lembrem, toda vez que passarem na porta

de sua tecelagem, que foi ali que perderam seus braços? O marquês coçou o queixo. — Talvez, se

apresentássemos um projeto para inspecionar as máquinas das fábricas, verificar a segurança — Thomas

sugeriu. — Quem aprovaria? Os custos são altos, Thomas — Edward ponderou novamente. — É mais barato

dar assistência ao acidentado, não é mesmo, Sarah? — John alfinetou. A marquesa não soube como

responder. Thomas, percebendo a tensão entre os irmãos, interveio: — Por que não vamos jantar? Lady

Viollet e Lady Izadora já devem estar nos aguardando. — Acho que preciso ir — o primeiro-ministro se

adiantou.

um pouco mais o projeto. — Sim, acompanhe-nos no jantar. John tem ideias tão sensatas. Pode nos ajudar a

melhorar a proposta — Sarah insistiu. Seguiram até a sala de jantar. Surpreenderam -se quando a

governanta, a Sra. Pia Pattel, informou que Izadora e Viollet ainda estavam na casa de caça. — Vou

buscá-las — John se adiantou. — Acompanha-me, Edward? — Acredito que minha presença seja

desnecessária. John ignorou a recusa do amigo e o segurou pelo braço, quase que o arrastando. — Não é

um bom momento para um novo embate com Izadora. — O primeiro-ministro bufou. — Talvez não aconteça

um embate. Izadora é uma mulher espirituosa, se saiu da sua casa acredito que justamente queria evitar

qualquer desavença. — Ela me tira o juízo. — É uma bela dama, posso arriscar a dizer que tira o juízo de

todos por onde passa. — John ofereceu uma piscadela zombeteira. — Ela faz para me provocar. — Ele

caminhava em passos duros. — Talvez você se sinta provocado sozinho, meu querido amigo. Andei

pensando, seria ela a mulher incrível que conheceu tempo atrás? Aquela pela qual não escondeu a

admiração até pouco antes de se tornar primeiro-ministro? — Izadora não tem limites. — Sarah também não,

e você nutriu uma grande admiração por ela. — Não quero falar sobre isso. Foi um grande erro. — Está certo.

— John ergueu as mãos em rendição. Não demorou muito para que chegassem à cabana. John estranhou,

pois as cortinas estavam fechadas e a porta, trancada. — Elas não devem estar aí — Edward falou, dando

meia-volta. John contornou a construção e espiou pela janela de seu gabinete. Voltou rapidamente e bateu à

porta. — Let! Está aí? — Vá embora, Jack, é uma reunião de damas. — Ele reconheceu a voz trôpega de
Viollet. Ouviram as gargalhadas estridentes, abafadas pela pesada porta de madeira. — Let, abra a porta. —

Izadora? — Edward a chamou no impulso. — Ó Edward, veio me ver? — Mais gargalhadas. —

Arrependeu-se? — a voz da brasileira parecia estar bem perto. O primeiro-ministro bufou e fez menção de

partir. John o segurou. — Estão bêbadas, vou precisar de sua ajuda. Poucos segundos depois, a porta se

abriu. Izadora vestia as roupas de baixo. John virou o rosto rapidamente e percebeu que Edward não

desgrudava os olhos da estrangeira de curvas voluptuosas. John sentiu uma mão o empurrando. — Não olhe

para ela, seu patife. — Let estava descalça, sem os sapatos e as meias. — Ela é de Edward e você é meu —

as palavras emboladas mal saíam, ela cambaleou para frente e John a segurou. — O que andou bebendo? —

Muita coisa. — Ela tinha um sorriso travesso. John retirou o casaco e rapidamente envolveu Viollet. Pegou-a

no colo e, sem se importar com Izadora e Edward, começou a caminhar em direção a casa. — Suponho que

por “muita coisa” você se refira à bebida que deixei em meu gabinete. — Ele sorria. — Nunca a vi desta

maneira. — Izadora é uma péssima companhia. — Ela gargalhou e parou devido ao soluço. — Avisei que não

daria certo dividirmos a cabana. — É, você avisou. Vou começar a levar em conta suas considerações Ela

deu um tapa no ombro dele. — Não me leva a sério? — Só quando está descalça e sem meias. — Ele sorria

amplamente. — Está linda. — Meus sapatos, preciso pegá-los. — Mando pegar depois. Viollet recostou-se ao

ombro dele e fechou os olhos. Ele a levou até os aposentos dela. John a depositou na cama e ela se

remexeu. — Vai me deixar dormir vestida? — Abriu os olhos logo depois que ele a soltou. — Vou chamar sua

criada, milady. E pedir que lhe preparem algo de comer. — Não! — Ela se sentou desajeitada. — Você

mesmo pode fazer isso. John a avaliou por alguns instantes. Viollet parecia segura do que pedia.

Cautelosamente, ele começou a desabotoar o vestido, suas mãos tremiam. Diante dele estava sua Let, e ele

estava prestes a se livrar das roupas negras. Era uma tentação despi-la, precisava de algo para se distrair.

Optou por provocá-la. — Receio que vá se sentir envergonhada com sua criada, milady... devido ao seu

estado de embriaguez. — Não estou embriagada — ela contestou entre soluços, enquanto seu corpo

tombava para o lado. John a ajudou e a segurou. Começou a desamarrar o espartilho preto, deslumbrado

com a oportunidade que mais uma vez lhe era concedida. Ela não travou, parecia não se importar. Os olhos

desfocados o observavam. Quando John a viu somente com as roupas de baixo, teve certeza de que não se

controlaria. Ela vestia preto, uma fina mistura de tecido nobre e renda, destacando a pele alva. Quando retirou

as saias emboladas na perna, Viollet estava recostada à cabeceira e ele viu as marcas. Várias cicatrizes.

Sem conseguir se conter, ele se abaixou. Beijou uma a uma. Sem pressa, como se o carinho pudesse

apagá-las. Viollet gemeu sorrindo. Ele queria continuar, mas não podia. Sabia que ela não estava plena de

suas faculdades mentais, estava sob efeito de álcool. Ele não podia. — Por que parou? — O ombro à mostra

era uma tentação. — Não vai me perdoar se eu continuar. — Tocou-lhe a face com carinho. — Não a quero
por uma noite, eu a quero pelo resto de nossas vidas. — Não vai me beijar? — Quer que a beije? — Não me

importaria. — Ela deu de ombros. Ele chegou bem perto, Viollet o abraçou. — Se não se importa, pode se dar

ao trabalho. Tenho beijado você sempre, tenho saudades de quando você ... Ele não terminou, ela não

permitiu. Viollet o beijou. John sentiu o gosto de uísque misturado a vinho do Porto. Ele a segurou sob o

delicado tecido, ela o abraçava com vontade, as mãos delicadas acariciavam-lhe os cabelos. *** O valete

ajeitava a gravata de John, que observava a própria imagem no espelho. O beijo da noite anterior fora uma

resposta. Anthony certa vez dissera que a bebida trazia à tona a verdadeira essência e, se Viollet o beijara

daquela maneira, o tempo não apagara o amor que ela sentia. — Não deveríamos tentar um lenço? —

Naquela noite ele queria impressioná-la, conquistá-la. — David tem usado e parece mais elegante. — Não

para a ocasião, milorde. — Onde está minha máscara? — Está em cima da cômoda, meu senhor. Parece

agitado. — Estou ansioso para vê-la. O valete deu um breve sorriso. Pelo espelho, John viu o momento em

que sua mãe entrou no quarto, fez uma reverência pelo reflexo e virou-se para vê-la. Lucy estava

deslumbrante, em um vestido branco, ornado por rendas douradas. Os cabelos impecavelmente presos

ostentavam uma bela joia. O tempo parecia não ser capaz de castigar tamanha beleza. Ele se aproximou e

beijou-lhe a mão. — Não me olhe assim, estou com os nervos à flor da pele. — É a dama mais bela de todo o

Reino Unido. — Não diga bobagem, falará a mesma coisa para Viollet. John sorriu. Não negaria. Sua mãe o

conhecia como ninguém. — Somente para as mulheres de minha vida. Logo que o criado deixou o quarto, ela

se adiantou: — Querido, vim aqui lhe fazer dois pedidos. — Peça o que quiser, milady. Lucy caminhou até a

cama e se sentou. — Lorde Granville, esse é o assunto. Ele me procurou, disse que lhe entregou as dívidas

do pai de Viollet, mas que as posses das casas ainda estão com ele. — Eu vi, imaginei que tivessem sido

vendidas. — Ele quer lhe dar. — Não posso aceitar, mãe. — Precisa ceder, John. É o melhor presente que

pode dar a Viollet, tenho certeza de que Julliet ficaria feliz. — Há algo em Lorde Granville... — Não importa.

Ele quer lhe dar, você não tem uma casa para morar caso se case. Sei que não vai aceitar a ajuda de seu pai.

Não seja orgulhoso. — Estarei traindo nosso sangue. — Livre-se desse fardo, é um pedido meu. Acredito que

seja justo, por isso o estou aconselhando a aceitar a oferta de Lorde Granville. John anuiu e sua mãe

beijou-lhe o rosto. — Mas não vou permitir uma aproximação, não me sinto confortável — Não precisa aceitar

nada além do que é seu por direito. — Qual é o segundo pedido? Ela sorriu balançando a cabeça. — Não vou

acompanhada de seu pai ao baile, ainda estou brava com ele por ter me escondido o título e, com você, por

ter dito tudo a Sarah, sem falar comigo antes. — Ela deu de ombros e ofereceu um sorriso maternal. —

Poderia me acompanhar no baile esta noite? John a olhou com admiração. — Com todo o meu prazer,

milady. Mas só a acompanharei se ceder ao final da noite e acabar com a tortura do duque de Sutherland. —
Só o farei porque está pedindo. — Ela piscou. — Não seja lisonjeira, Sra. Turner, sei que está com saudades

do duque. — Talvez. — Ela ajeitou a gravata do filho. — Talvez.

*** Viollet permanecia deitada. Passara o dia anterior indisposta pelo excesso de bebida que consumira.

Estava envergonhada por ter se embriagado e por ter sido carregada por John. Temia que alguém os tivesse

visto. Do lado de fora, o movimento de Groove House era audível, faltava pouco mais de um quarto de hora

para o baile começar. Quando viu a irmã entrar em seus aposentos, um sorriso genuíno brotou em seu rosto.

Flora estava belíssima. A viúva levantou-se rapidamente para cumprimentá-la. — Ainda não se vestiu? —

Vou me trocar daqui a pouco. Deixe-me ver você. — Viollet estava orgulhosa e Flora deu um giro. — Como

está linda. Espere. — Ela seguiu para o quarto de vestir e pegou a bolsa de joias. Viollet separou um delicado

broche que sua mãe sempre usava em ocasiões especiais. Ela o colocou na gola do vestido da irmã. — Fique

com ele. — A viúva contemplou a peça, nostálgica. — Não é justo, Viollet, sei que precisamos vendê-lo. O

duque e a marquesa têm arcado com minhas despesas, mas você precisará de um lugar para morar depois

que eu me casar. Não aceitaria viver comigo. — Não se preocupe com isso, Flora. Mamãe ficaria feliz em ver

você usá-lo. Não era uma das joias da vovó, esse o papai deu a ela no dia em que se casaram. — É lindo. —

A debutante acariciou a peça e beijou a irmã. — Preciso ir, Sarah está me esperando. Por favor, não demore.

Antes de Flora sair, a porta se abriu e Izadora entrou. A brasileira usava um vestido verde, com detalhes

prateados. Como sempre estava elegante e ousada, uma mistura característica dela. A estrangeira esperou a

debutante sair para comentar: — Não se fala em outra coisa. O retrato de Sarah e Thomas é um sucesso. —

Não acredito que mostraram para alguém. — Pelo que sei, ninguém viu, mas o marquês não para de elogiar.

Quando foi que o entregou? — Hoje de manhã finalizei e entreguei com a tinta ainda úmida. Ontem mal

consegui me levantar da cama. — Não me lembre disso. — A brasileira levou a mão à testa, fazendo uma

careta. — Você é uma péssima influência. — Viollet sentou-se na cama e cruzou as pernas. — Não fui eu que

saqueei as bebidas de John. — Izadora pegou a cadeira e se sentou elegantemente. — Mas tomou quase

todas. — Metade. — Ela sorriu desavergonhada. — Onde está seu vestido? Sua máscara? — No quarto de

vestir, entregaram esta tarde. — De que cor é? — Naturalmente preto, mas ainda não o abri — Como pode

ser assim? Uma obra-prima de Heloise, desenhada por Marie, sendo negligenciada dessa forma. Vamos, vou

ajudá-la a se vestir. — Não é necessário, posso chamar Paige. — Lembre-se de não beber, o álcool não lhe

faz muito bem. — Izadora seguiu para o quarto de vestir e voltou com roupas de baixo e meias. — Ande,

vista-se sozinha. Quando a levar para o Brasil, vai perceber que é uma ostentação descabida ter alguém para

lhe calçar meias. — Não vou para o Brasil. — Viollet começou a vestir as meias de seda transparentes. —

Essas meias não são pretas. — Marie nunca me decepciona. — A brasileira piscou. — Estive pensando, se

não se casar mesmo com seu Jack, virá comigo. Posso garantir que irá se divertir muito. — Sou uma mulher
enlutada, Izadora. E não consigo imaginar que tipo de diversão seria essa. — Viollet fez uma careta. — É

uma libertina descarada. — A viúva estava se divertindo. — A melhor espécie de companhia, minha cara.

Bem, vamos ver o que temos aqui. Izadora retirou o tecido que cobria o vestido. Roxo com rendas douradas,

uma verdadeira obra-prima. — Não vou usar isso. — Ainda não percebeu que não terá escolha? É um baile

para poucos convidados, somente amigos íntimos. — Você não acreditou nisso, não é mesmo? Discrição não

é algo que combine com Sarah. — Estará de máscara, qual é seu medo? Jogar-se nos braços de Jack

novamente? Viollet cobriu o rosto envergonhada. Izadora estava extasiada com a máscara de filigrana

dourada. — Você não fez diferente. — Ela se levantou e começou a colocar as anáguas. — Veste-se mesmo

sozinha? — Não, mas isso nunca matou ninguém, um pouco de independência às vezes é libertador. — Você

não me disse tudo o que aconteceu anteontem. — Não quero falar nisso. Só comprovei o que já desconfiava.

Edward admira meu corpo, mas não quem sou. Uma libertina descarada está muito longe dos padrões

ingleses. — Não é uma libertina. — Viollet colocava o vestido com dificuldade. — É impossível vestir tudo isso

sozinha. Não vi espartilho. — Sem espartilho, mulheres livres não precisam de jaula. — Apesar de seu próprio

vestido dificultar seus movimentos, ela ajudava a amiga. — Sei que não sou uma libertina, mas talvez seja

assim que ele me veja. E você, naturalmente. — Falei para provocá-la. — Viollet avaliou a própria imagem

refletida no espelho. — Isso é inapropriado em muitos níveis. Izadora fechava os botões um a um, aos

poucos, deixando o colo quase todo à mostra. — Ainda não terminamos. — Uma ostentosa gola dourada,

feita de renda, com uma trama fechada trabalhada com primor, combinava perfeitamente com a barra do

vestido. — Uma verdadeira princesa. Dentro do tão esperado decoro inglês. — É lindo. — Viu? Tem que

deixar de ser tão rancorosa. — Izadora deu um passo atrás para avaliá-la. — Talvez devamos chamar a

minha criada para arrumar seus cabelos, nada de orelha coberta, precisa de um brinco. Viollet pegou o saco

que jazia na cama e espalhou as joias para escolher uma peça para usar. Izadora se aproximou e avaliou

cada peça. — São imitações muito bem-feitas, belíssimas. — Algumas são verdadeiras. — Não, não são.

Talvez esse camafeu ou essa corrente. Mas confie em mim, de ouro eu entendo. Vou pegar algo para você e

trazer a criada. Viollet desabou na cadeira. Estava enganada, não sobrara nada. Phillip havia substituído

todas as peças. Seu tesouro fora dilapidado.

Capítulo XIII

Enquanto descia as escadas ao lado de Izadora, Viollet sentiu um breve arrependimento de ter concordado

em participar da festividade. Não se sentia preparada para reencontrar John, não depois de tê-lo agarrado e

permitido que ele beijasse suas pernas. Um rubor tomou-lhe as faces com a lembrança do momento íntimo.

Na base das escadarias o duque de Sutherland a aguardava. Era um homem elegante, imponente e seu porte
não fazia jus às suas cinco décadas e meia. Ao lado dele, estava Edward que não tirou os olhos de Izadora

um só momento. — Comporte-se — Viollet sussurrou ao ouvido da brasileira antes de aceitar a mão do

duque, que estava estendida. — Minha querida, como está linda. Permita-me acompanhá-la uma vez que

John monopolizou a futura duquesa. — O senhor não parece muito satisfeito com isso, vossa graça. — Ela

aceitou o braço com carinho. — Não sou muito bom em disfarces, estava contando com a máscara. — Ele

piscou e sua expressão era de puro sarcasmo. — Não tenho palavras para agradecer tudo que tem feito por

mim e por Flora. — Talvez uma valsa? Ou duas. Viollet viu no duque o mesmo sorriso de John. E foi

impossível não imaginar como Jack seria em alguns anos. Era bom se sentir amparada, a insegurança de

voltar ao convívio social evaporara. Estar na presença de Augustus era nostalgicamente reconfortante.

Entraram juntos no salão de baile de Grove House. Izadora e Edward estavam logo atrás. Não havia tantas

pessoas como esperava, Sarah pareceu ter selecionado a dedo os convidados — Lucy deve estar nervosa.

— Comigo está furiosa, mas tivemos o cuidado de escolher somente os convidados que já a aceitavam.

Muitos ali sequer sabiam de sua existência. Para todos os efeitos, uma baronesa. — Uma linda baronesa e a

futura duquesa de Sutherland. — Assim como você, milady. — O duque beijou a testa de Viollet e se afastou.

Izadora e Viollet ficaram em um canto, enquanto Edward e Augustus buscavam os cartões de baile. A viúva

percebeu que a brasileira observava um lacaio, que carregava uma bandeja cheia de taças de vinho. — Não

pense nisso. — Somente um gole, a proximidade de Edward me deixa tensa. — Vi como ele a olhou. — Não

se iluda, essa proximidade é só para garantir que não vou fazer nada para envergonhá-lo. Ele me considera

uma selvagem. — Libertina, descarada e selvagem — Viollet brincou. — Quando me permiti andar em tão má

companhia? — No dia em que aceitou que somos feitas da mesma matéria. Temos mesmo que ficar paradas

aqui? — Sabe que nem deveria entrar no baile acompanhada de Edward, não sabe? A sorte é que estava na

presença do duque e de uma dama de companhia. — E quem seria a dama de companhia? — Está olhando

para ela. Izadora fez menção de gargalhar e Viollet pisou no pé da amiga. — Contenha-se. — Que tipo de

dama de companhia bebe brandy? Viollet não teve tempo de responder. Os cavalheiros haviam voltado.

Sarah dançava a primeira valsa com o marido, abrindo oficialmente o baile. Não demorou muito para que o

duque tirasse Viollet para dançar. Ela sabia que deveria declinar, mas jamais recusaria aquele convite. —

Sabe que eu não poderia estar valsando, vossa graça. — Eu também não poderia estar apresentando minha

amante para a sociedade como uma baronesa. — O duque deu de ombros. — Mas ela será uma duquesa. —

Assim como você, não se preocupe com as más línguas. Elas em breve se calarão, diante de seus próprios

interesses. — Uma fofoca velada. — Nunca pareceu se importar com as pautas das fofoqueiras. Eu a

conheço desde que nasceu. — Ele a rodopiou. — E olhe ao seu redor, Sarah foi enfiada goela abaixo no

Parlamento; Marie é uma viúva misteriosa, que irá se casar com o filho mais novo do marquês de Bristol;
Lucy, a governanta que se transformou em baronesa; e Izadora... bem, Izadora é uma dama incomum. — Ela

é maravilhosa, uma mulher com vários atributos. — De caráter irretocável, Edward está perdendo tempo. —

Talvez ele espere um comportamento dentro dos padrões exigidos. — Padrões são enfadonhos. Damas com

personalidade forte têm seu encanto. — John e Sarah tiveram a quem puxar, vossa graça. Sua irreverência é

louvável. — Vou considerar isso um elogio, e não uma impertinência, como suponho que seja. — Depois de

mais um rodopio, ele continuou. — Meus filhos são mais parecidos com Lucy do que comigo. Até mesmo Ann

tem se revelado um tanto quanto irreverente. A conversa seguiu animada e Viollet se divertia. Ao longe, o filho

do duque de Sutherland, que acabara de dançar com a mãe, observava a interação entre o pai e Viollet. Lucy

agora dançava com Thomas. John seguiu até a mesa de refrescos aguardando o momento de reivindicar a

valsa que havia anos esperava. — John — uma voz conhecida o chamou. — Lorde Granville, espero que

esteja bem de saúde

—O inaceitável para uma pessoa em minha idade— ele pausou por alguns instantes—

— O aceitável para uma pessoa em minha idade. — Ele pausou por alguns instantes. — Suponho que a Sra.

Turner tenha conversado com você. — Sim, minha mãe conversou. — Espero que resolva aceitar, os

documentos já estão no gabinete de Thomas. Ele os entregará. — Agradeço muito sua generosidade.

Gostaria de ressaltar que aceito por Lady Viollet Thompson e por ser um pedido de minha mãe. Ela nutre um

desmedido carinho por sua filha Julliet. Agora, se me der licença. — Claro. John percebeu que a segunda

dança terminava. Seu pai parecia não se importar com as regras e continuava conduzindo Viollet; foi

necessário chegar bem perto para que Augustus a soltasse. — Acredito que, depois de duas danças com um

mesmo cavalheiro, de péssima reputação diga de passagem — ele sorriu para o pai, que retribuiu na mesma

medida —, não me negará uma dança. Ele não esperou a resposta. Tomou-a nos braços, trazendo-a para

perto. — Sarah parece influenciada pela marquesa de Normanby — Viollet quebrou o silêncio. — Talvez uma

tendência casamenteira das damas inglesas. Está surtindo algum efeito? Edward e Izadora já dançaram

quantas valsas? Três? — Duas, Lorde Baldwin reivindicou a segunda. Está querendo promover o casamento

dos dois, Jack? — Eu não seria o único. Você, por exemplo, depois de se esbaldar em minhas bebidas com

Izadora, pareceu apreciar a companhia subversiva dela. — Patife. — Linda. — Ele a girou com elegância. —

Está deslumbrante. — Não vou dançar com você de novo — Viollet garantiu. — Eu não estaria tão certo

disso. — Não me provoque — ela retrucou. — Gosto de ver você assim, Let. Aos poucos está de volta. Ela

pisou deliberadamente no pé de John, antes dos últimos acordes. Sem se importar, saiu em direção à mesa

de refrescos. Observou que Flora se divertia e que Lucy, dançando com Augustus, apesar de constrangida

estava radiante. Izadora já não estava em suas vistas, nem Edward. Sorriu imaginando onde poderiam estar.

Lorde Granville a cumprimentou a certa distância, enquanto John a olhava sem disfarçar. Decidida a se
sentar, tentou ir até o fundo do salão, mas foi interpelada por um robusto cavalheiro. — Lady Viollet Smith. —

O homem fez uma reverência, e ela não o reconheceu. — Permita-me uma dança? — Meu cartão está

completo, com licença. — Isso é muito inapropriado para uma dama que enterrou o marido há pouco mais de

quatro meses, não acha? — O que quer? — Concede-me o prazer? — Se quer falar comigo, não precisa de

uma dança. — Vejo que seu temperamento faz jus às suas ações. Somente uma dama tão direta atiraria no

próprio marido. Viollet sentiu as pernas falharem. Ele sabia, mas quem era ele e como obtivera aquela

informação? Como se pudesse ler seus pensamentos, o homem respondeu: — Meu pai entregou a arma, ele

a viu atirar. Foi ele que pagou pelo crime que você cometeu. — O que quer? — Por enquanto nada, só queria

que soubesse que seu segredo está guardado comigo. Viollet olhou para o lado temendo que mais alguém

tivesse ouvido, Lorde Granville precisava de ar. Não demorou muito para John, que a observava de onde

estava, alcançá-la. Lorde Granville veio logo atrás. — Quem era? — John perguntou preocupado. — Não sei,

mas ele sabe, Jack — ela desabou. — Ele sabe o que fiz. — Vou atrás dele. John tocou a face de Viollet e se

virou para ir atrás do homem desconhecido. — Fique, John — a voz firme de Lorde Granville os interrompeu.

— Cuide de Lady Viollet, eu resolvo. John estava preocupado demais para negar ajuda. Contornando a

passagem dos criados, tomou cuidado para que não fossem vistos. Pegaram o caminho mais longo até a

casa de caça. Viollet estava atônita, não esboçava nenhuma reação, somente caminhava, encolhida. John

retirou a casaca e a envolveu, abraçando-a. Tão logo chegaram à cabana, ele a ajudou a se sentar e tentou

encontrar alguma bebida no escritório. — Estou arruinada, Jack, talvez tenha chegado a hora de pagar pelo

crime que cometi. — Ela escondia o rosto entre as mãos. — O que ele quer? — Não disse, mas se for

dinheiro não tenho como pagar. — As joias, meu amor. As joias de sua avó são seu tesouro. Não vou permitir

que entregue a quem quer que seja, só não diga que não tem recursos. — São falsas, Izadora constatou.

Phillip retirou uma a uma e substituiu por réplicas. Eu achava que ainda sobrara uma ou outra, mas... — Vou

mandar verificar isso. — Ele se acomodou, fazendo com que ela se deitasse em seu ombro. — Estava tão

bem, por favor não deixe que isso a perturbe. Tem conseguido muitos avanços, Let. — Não vê que a

desgraça se instalou em minha vida? — Ela se afastou para olhá-lo. —Aquele homem não vai me deixar em

paz. — Não vou permitir. — O que vai fazer? Não estará todo o tempo ao meu lado, e você precisa... John se

pôs de joelhos e deslizou os dedos suavemente nos lábios dela, para que ela se calasse. — Case-se comigo.

Deixe-me cuidar de você, protegê-la. — Já falamos sobre isso. — As mãos delicadas acariciaram os cabelos

dele. — Não vou conseguir permitir que me toque, Jack. — Não me importo, já conseguimos avançar muito.

Teremos o resto da vida. — E se eu não conseguir? Não é justo com você, tem o direito de ser feliz, meu

amor. Eu não me perdoaria... — Let, precisamos um do outro. Sempre foi assim. Mesmo que nunca seja

capaz de se deitar comigo, estaremos juntos, abraçados. Discutindo, rindo, brigando. Eu a amo e sei que
você me ama, posso ver isso. Viollet olhou para baixo, tentando conter a emoção. — Como pode ver se nem

mesmo me reconheço no espelho? — Posso sentir com o coração. Não vou permitir que nada de mau nos

aconteça. Aceite, vamos fazer o que deveríamos ter feito anos atrás. Viollet se levantou, ponderava sobre a

proposta. Jack era seu refúgio, parte dela mesma. Se ele estivesse realmente disposto a abrir mão do leito

conjugal, não seria capaz de machucá-la. Esfregou os olhos na esperança de poder clarear os pensamentos.

— Não pense demais. — Ele estava atrás dela; com as mãos nos delicados ombros, sussurrava. — Jack —

ela se virou e o encarou —, sabe que não é tão simples, precisaríamos de uma autorização para que eu

pudesse deixar o luto. — Eu tenho. Izadora pediu pessoalmente à rainha. Viollet ficou parada tentando

absorver a informação. John explicou: — Ela prestou um serviço de significativa relevância para a coroa.

Seria agraciada com um título e condecorações, mas trocou pelo título de Lucy e sua autorização para deixar

o luto. — Não acredito, ela... Quando? — Pouco depois que voltamos de Lilleshall. — Está com esse

documento? Por que não me disse nada, nem ela? — Viollet sentou-se. — Não queria pressionar você. O

silêncio tomou a velha cabana. John a olhava expectante. Viollet precisava dizer uma única palavra para que

sua vida mudasse. Let seria a dama mais feliz de todo o mundo e ele dedicaria cada dia da própria vida a

fazê-la sorrir. — Suponha que eu aceite — ela parou por um instante e o rosto de John se iluminou —, o que

pretende fazer com aquele homem? Ele chegou bem perto e tocou o rosto dela com delicadeza. — Não quero

que se preocupe com isso. Também não quero que se case comigo somente por esse motivo. Ela sorriu

brevemente. — E por qual outro motivo eu me casaria? — ela perguntou e ele percebeu que estava bem

próximo de vencer aquela batalha. — Porque me ama? — Prepotente. — Ela bateu no ombro dele. — Talvez

por não suportar a ideia de vê-lo se casando com qualquer uma. John levou as mãos aos bolsos e ofereceu

um sorriso irônico. — A senhorita Janis Howard não é qualquer uma. — A filha mais velha da marquesa de

Normanby? — Ela levou a mão à boca, incrédula. — Não se atreveria. — Há também a senhorita Izadora. —

Ela não se casaria com você. — Flora? — Ele ergueu uma sobrancelha. — Patife. Ela fez menção de bater no

ombro de Jack mais uma vez. Ele a segurou, colando o corpo ao dela e, com a boca bem perto, suplicou: —

Case-se comigo? Viollet sorriu amplamente. — Talvez. *** Pela janela, Viollet observava o movimento no

jardim de Grove House. Todos os criados pareciam trabalhar sem descanso e em perfeita sincronia para

organizar o casamento de Ann. De sua janela, podia ver a capela. Imaginava o quanto ela deveria estar feliz,

mas não descera para se juntar às damas perfeitas; sequer trabalhara na pintura de Izadora no dia anterior.

Estava com medo de sair do quarto. Temia reencontrar o homem desconhecido. — Devia ser proibido ir a um

casamento vestida de preto. Parece um urubu. — Como de costume, Izadora invadiu o quarto de Viollet de

forma intempestiva. — Também faço votos de um agradável dia. — Vai ficar trancada aí? Estão todos prontos

para ir para a capela. — Estou receosa, aquele homem que... — Ouvi o marquês, John e Lorde Granville
conversarem lá embaixo. O banqueiro garantiu que já resolveu o infortúnio e que não voltará a ser

importunada. — O que mais ouviu? — Somente isso, John pareceu não aprovar Lorde Granville. — Ele nunca

gostou dele. — Deve ter seus motivos. — A brasileira seguiu até o quarto de vestir. — Por que não se troca,

Marie mandou alguns vestidos. — Por que se incomoda tanto com o que eu visto? — Porque preto não

combina com você. Talvez apenas nas roupas de baixo. — Izadora ofereceu uma piscadela. Viollet calçou

suas luvas negras. Surpreendeu-se quando Izadora a abraçou. — Ficarei mais um tempo em Londres,

aprecio muito sua amizade e companhia. Não imagina o bem que me faz saber que a tenho como amiga. —

Somos amigas? — Viollet riu com sarcasmo. — Quando foi que isso aconteceu? — Talvez entre uma dose de

brandy, de uísque e de vinho do Porto. Vamos? — Por que está tão apressada? — Quero conseguir um bom

lugar. Gosto de casamentos, eles são surpreendentemente românticos. — Uma libertina de coração mole. —

Viollet levou a mão à testa de forma dramática. — Pelo que sei será uma cerimônia íntima, os Herveys, os

Ansons e os Baldwins. — Não se esqueça da família de Sir Anthony. — Coitados, não sabem onde o filho

está se metendo. As duas gargalharam e juntas desceram para a capela. Uma cerimônia singela, mas muito

bem-organizada. Viollet contemplou os presentes e não se surpreendeu quando John sentou-se ao seu lado.

Ele não disse nada, sequer a cumprimentou. Desde a conversa que tiveram na cabana, não se falaram mais.

Ela percebeu que John batia o pé no chão repetidas vezes, não imaginara vê-lo tão nervoso no casamento da

irmã. Ann estava linda, em um vestido rosa-pálido. E Anthony não conseguia esconder a admiração pela

noiva. Lucy e o duque assistiam à cerimônia emocionados. Viollet reparava em cada detalhe. Enquanto John

continuava intercalando movimentos repetitivos. — Fique quieto, está me desconcentrando — ela sussurrou

para que somente ele ouvisse. — Também não está prestando atenção na cerimônia — ele se limitou a dizer.

Depois dos votos, o reverendo deu a benção e, antes que os noivos deixassem a nave, David se levantou. —

Reverendo, eu tenho uma licença especial. — David balançou o papel no ar e se virou para os pais de Marie.

— Desculpem-me, mas não posso mais esperar. A alegria de Marie no altar fez com que Viollet se

emocionasse. O pequeno Paul estava de pé entre eles. Talvez Izadora tivesse razão, os casamentos

poderiam ser surpreendentemente românticos. Enquanto sorria como uma tola, viu que John a observava. Ela

virou o rosto e logo em seguida sentiu que ele continuava a tremer os joelhos repetidas vezes. Estava prestes

a pisar no pé de John. A inquietação dele a desconcentrava, mal conseguiu ouvir os votos e a benção do

reverendo. Ao fim da cerimônia, o pequeno Paul se empolgou batendo palmas e surpreendentemente todos

se levantaram para aplaudir o casal. Marie estava linda e David parecia o homem mais feliz de todo o Reino

Unido. De repente, ela sentiu as mãos de Jack nas suas, ele a arrastou até o altar. — O que está fazendo? —

Confie em mim. Foi tudo o que ele disse. — Reverendo, queridos amigos — cumprimentou a todos, ainda

segurando a mão de Viollet. — Aproveitando a cerimônia de minha irmã e de meu primo, gostaria de
oficializar meu compromisso com Lady Viollet. Ante a comoção coletiva dos convidados, ainda enternecida

com o casamento anterior, Viollet gelou. Jack oficializaria um noivado na frente de todos? Seu valete lhe

entregou alguns documentos e ele imediatamente os repassou ao reverendo. Viollet tentava compreender o

que estava acontecendo e só se deu conta quando a cerimônia se iniciou. — Meus caros irmãos, Lorde John

Anson já havia me procurado. Ele tem uma licença especial e uma autorização para que Lady Viollet deixe o

luto, pois é uma jovem mulher que não tem recursos para se manter. Diante disso, celebraremos mais uma

cerimônia em nome de Deus Pai Todo Poderoso e com a autorização de nossa soberana. Viollet cambaleou e

John a amparou — Não desmaie, isso não é do seu feitio e ninguém irá acreditar — ele sussurrou enquanto o

reverendo dava continuidade à cerimônia. — Vou matar você. Ele a avaliou demoradamente. — Vejo que já

veio vestida para isso. Viollet pousou os pés sobre o dele e o esmagou com toda a força que tinha. Ela não

teria coragem para impedir o casamento. Em seu íntimo, mesmo que jamais admitisse, havia gostado da

surpresa. Ao fim da cerimônia, o reverendo perguntou com ironia se alguém mais desejava se casar. O duque

se levantou rapidamente, mas Lucy o puxou de volta para a cadeira.

Capítulo XIV

John sequer esperou o fim do desjejum nupcial. Uma carruagem os aguardava. Viollet, perdida no meio de

tantos acontecimentos, não conseguia reagir. Na breve festividade, tivera a sensação de que todos já sabiam

o que aconteceria. Sentia-se entorpecida e olhava, alheia a tudo que acontecia a sua volta. Logo que David e

Anthony anunciaram a partida, John já estava de pé. Pronto para ir. — Para onde estamos indo? — Levantou

as saias negras para entrar na carruagem. — Lilleshall, não encontrei lugar melhor para passarmos a lua de

mel. — Jack, não tenho roupas, sequer pedi que preparassem meu baú. — Baús, minha querida. Sua criada

partiu logo depois da cerimônia e está levando seu novo enxoval. — Planejou isso tudo? Como pôde? Estou

furiosa com você, devia... Ele a beijou longamente. Beijaram-se por tanto tempo que nem perceberam que a

carruagem já estava em movimento. Um beijo demorado, carinhoso, urgente. — Você aceitou, eu não podia

correr o risco de que mudasse de ideia. — Não aceitei, disse talvez! — Um talvez vindo de você é mais do

que um consentimento. Além do mais, poderia ter se negado no altar, mas não o fez. Ela o encarou

determinada. — E agora? — Agora? Estamos casados. Vou trabalhar muito para levá-la para conhecer o

mundo, como sempre sonhou. Talvez sem a parte dos filhos sujos de tinta... — Você precisa de um herdeiro.

— Ela olhou para baixo. — Não pense nisso.

— Let, estou me lixando para as regras. Eu sou seu marido e você é minha esposa. O que fazemos ou não

no leito conjugal não é da conta de ninguém. Somos o visconde e a viscondessa de Trentham; nós nos

amamos, é isso que importa. — Você faz tudo parecer tão simples, Jack. E foi na simplicidade que John a fez

relaxar. Ao longo do caminho, relembraram vários momentos que passaram juntos. Era uma conversa solta,
despretensiosa. Não quiseram parar em uma hospedaria, fizeram somente pequenas pausas e as trocas de

cavalos. Chegaram a Lilleshall no dia seguinte, na hora do almoço. Jack a encantou levando-a à cabana no

jardim secreto. O refúgio estava preparado para recebê-los. Viollet se surpreendeu ao ver que suas roupas

novas estavam no quarto, assim como as de Jack. A mesa estava farta, com suas comidas preferidas. —

Como preparou tudo isso? — Tive ajuda de todos. No dia em que aceitou, eu mandei um mensageiro. —

Naquela noite decidiu que nos casaríamos no mesmo dia que Ann? — Não, que nos casaríamos na primeira

oportunidade. — Ele se sentou na poltrona e começou a tirar os sapatos. — Como sabe, a cabana não é

muito grande e só teremos criados para nos atender quando necessário. Vai precisar de sua criada para se

trocar e se banhar? Posso dar uma volta enquanto isso. — Não seria mais confortável se ficássemos na

casa? — Ela sorriu se lembrando do treinamento dele. — Seria impessoal. Lembra quando disse que queria

morar aqui? Como faríamos? — Talvez você mesmo devesse me ajudar no banho. — Ela olhou para baixo

enrubescida. — Se quiser, podemos tentar. Há uma banheira grande o suficiente para nós dois. — Jack, seria

um passo grande demais. — Já fizemos isso no rio. Precisamos tentar, meu amor. Só assim saberemos seus

limites. Ela assentiu receosa. Enquanto desfrutavam a refeição, o valete de John e a criada de Viollet

preparavam o banho e roupas de dormir. John orientou-os para que deixassem tudo à mão e que não

precisariam mais dos serviços deles naquele dia, uma vez que descansariam da longa viagem. — Vamos

dormir juntos? — Ela sofria por antecipação. Não sabia quanta aproximação conseguiria suportar. — Já

fizemos isso antes, mas, se de alguma forma se sentir desconfortável, posso dormir na sala. — Obrigada. —

Ela voltou a se concentrar na comida. Tão logo os criados deixaram a cabana, Viollet sentiu um frio na

espinha. Estavam sozinhos. Nem toda a segurança que aquele refúgio lhe trazia seria capaz de apagar seus

receios. John se despia, ficou somente de ceroulas. Ela o observava com atenção. Havia quanto tempo não o

via sem camisa? John estava mais forte. O corpo de Jack não lhe causava repulsa, se fosse honesta consigo

mesma confessaria que se sentia atraída. Tinha vontade de abraçá-lo sem as roupas. Ele a olhava com

cautela, os pés descalços caminhavam sem pressa ao encontro dela. Levou-a até a cama e a fez se sentar.

Ajoelhou-se para retirar os sapatos dela e se surpreendeu quando Viollet afagou-lhe os cabelos. John fechou

os olhos, saboreou o carinho. Beijou-lhe os tornozelos e estendeu a mão para ajudá-la a se levantar. Ele

estava à mercê dela e precisava calcular cada passo para que sua mulher se sentisse confortável. Não seria

hipócrita em negar que a desejava e que queria estar dentro dela. Mas a queria entregue, e os olhos receosos

demonstravam que ela ainda não estava pronta para esse passo. Viollet estava concentrada em desatar os

botões do vestido negro. Seria o último que ela usaria, ele garantiu para si mesmo. Jack a ajudou a retirar o

espartilho e parou para contemplá-la, enquanto Let soltava os cabelos. Era a visão do pecado, sua mulher, de

roupas de baixo negras, e os longos cabelos emolduravam o rosto pálido. Ele sorriu, como era linda. Viollet,
apesar de atordoada, vivenciava uma segurança que jamais sentira. Aceitou a mão de Jack, que a ajudou a

entrar na banheira com cuidado. Ela abraçou os joelhos logo que entrou, a água quente era um bálsamo.

Inclinou o corpo para a frente permitindo que ele se encaixasse atrás. — Let. Temo não conseguir controlar

meu corpo ao me sentar aí — ele falou, colocando uma perna na água. — Acho que, se ficarmos de frente um

para o outro... — Não quero que me veja. — Ela escondeu o rosto. — Acho que consigo lidar com a situação

de sentir seu desejo, não será a primeira vez. Só preciso que me garanta que... — Não farei nada. Ela

assentiu e ele entrou na banheira por completo. Viollet se recostou em John, tomando cuidado para que as

nádegas não encostassem nele. Ele não sabia o que fazer, ficou parado por alguns segundos, tentando

pensar na melhor maneira de agir. Viollet o surpreendeu quando começou a se lavar sozinha. Por debaixo

das roupas molhadas, as mãos dela percorriam caminhos que ele mesmo adoraria explorar. Ela se virou de

repente. Olhou para ele com um misto de insegurança e curiosidade. Ali Jack viu sua Let, o sorriso travesso

estava de volta. Com a esponja parada no ar, ela se aproximava do torso nu, sem deixar de olhá-lo. Ele

assentiu, atento a cada movimento. Ela o ensaboou. John fechou os olhos se deliciando com o carinho, ela

não foi breve, era delicada. Viollet passou a mão sobre a espuma logo que terminou. Ela o enxaguou. Ele

tinha desejos. Não podia se demorar, temia pela própria sanidade. Ele se levantou e se enrolou em uma

toalha. Foi até o quarto, trocou a ceroula e colocou uma camisa de dormir. No banheiro, Viollet estava em pé,

ainda na banheira. As roupas de baixo coladas ao corpo. Respirou fundo. — Vou lavar seus cabelos. Recebi

o melhor banho de toda a minha vida, nada mais justo que retribuir Let se sentou encolhida. Estava com

medo. Sabia que os homens gostavam de longos cabelos e tinha prazer em puxá-los. Jack usou uma cuia

para molhá-los. Ela aguardava o momento em que ele o puxaria, mas não aconteceu. O cheiro de mel invadiu

a sala de banho; apesar de desajeitado, ele massageava suavemente, uma carícia bem-vinda, enquanto ela

esperava a dor. John repetiu os movimentos por alguns instantes, o corpo de Viollet aos poucos relaxava.

Uma sensação de vazio a tomou quando ele terminou o trabalho. Ela se levantou, e ele mais uma vez a

ajudou. Deu privacidade para que Viollet se vestisse. Uma camisola em um tom de azul cor do céu e um

penhoar da mesma cor. Era seu novo enxoval, constatou. Quando se virou, John estava lá, com a toalha na

mão, pronto para secar os cabelos dela. *** Acordar nos braços de Jack era como desfrutar de uma velha

sensação de acolhimento. Estavam abraçados, ela deitada sobre o torso nu. Acariciou delicadamente o peito

dele, temia acordá-lo. Era uma sensação nova e maravilhosa tocá-lo. — Isso faz cócegas — John resmungou

ainda de olhos fechados. — Desculpe. Ela tentou tirar a mão, mas ele a impediu. — É gostoso, mas não faça

tão de leve. Encorajada pela mão forte sobre a sua, ela arriscou tocando-o com um pouco mais de firmeza.

Viollet gostou da sensação. — O que quer fazer? — Ele se sentou na cama e a trouxe para perto. — Que tal

um passeio? Podemos ir até o rio. — Talvez mais tarde, gosto de ficar assim — ela confessou. — Sentia falta.
Sempre ficávamos abraçados quando fugíamos para cá. — Às vezes tenho a impressão de que o tempo não

passou. — Talvez não tenha passado. — Ele beijou-lhe os cabelos. — Jack, como funciona o desejo de um

homem por uma mulher? Ele a afastou para olhá-la. — Não se pode explicar com facilidade. Mas o corpo

pede, não é algo que conseguimos controlar. — Você controlou ontem. — Não, meu amor, não era meu corpo

que pedia por você. Era a minha alma e, só em saber que agora é minha mulher, eu me sinto diferente. —

Obrigada por ter paciência comigo. Ele a beijou castamente. — Vamos nos levantar, essa proximidade é um

teste para minha sanidade. Podemos tomar café e passear no rio. O que acha? Passaram a tarde

cavalgando. Quando chegaram ao rio, John apeou e ajudou Viollet a desmontar. De mãos dadas reviviam

boas lembranças. Tomada por uma alegria infantil, Viollet sorria e brincava. Quando John a beijou, ela

aproveitou que estavam à beira do rio e o empurrou. Travessa, saiu em disparada de volta para a cabana.

Jack correu atrás dela ensopado. Naquela noite, tomaram banho juntos novamente e desfrutaram meia

garrafa de vinho do Porto. *** Com o passar do tempo, Viollet se dava conta de que casar-se com John fora o

melhor que poderia ter feito. Os dias ao lado dele eram agradáveis e divertidos. Um sopro, um recomeço.

Estava na carruagem, John havia lhe prometido uma surpresa. À medida que se aproximava da casa em que

vivera toda a sua vida, seu coração apertava. Quando o cocheiro parou, Viollet não conseguiu se conter. — O

que estamos fazendo aqui? John não respondeu, tomou-a pela mão e caminhou até a entrada. Diante da

porta, ele a encorajou a abrir. Uma miríade de lembranças vagou pela cabeça de Viollet. Não pisava naquela

casa, em que morara quase toda a vida, desde que se casara com Phillip. Estava bem-cuidada, os móveis

preservados, e, à medida que ela percorria os cômodos, era mais difícil conter a emoção. Era um misto de

saudosismo e péssimas recordações. Quando se casara, não tivera nem a chance de se despedir daquele

lugar. — Phillip me disse que vendeu a casa, como tudo pode estar do mesmo jeito? — Ele vendeu para

Lorde Granville. Recebi como herança essa casa e a de Londres. — Quando? — Ela o olhava atordoada. Aos

poucos Viollet era tomada por uma angústia dolorosa. — Estive com ele pouco antes do baile; Lorde Granville

me entregou as dívidas de seu pai e, no baile de máscaras, os títulos das propriedades de Londres e

Shropshire. — Aceitou a herança de Lorde Granville? John levou as mãos ao rosto. Viollet sentiu-se

enganada. Estava novamente na mesma situação de anos antes. Fora manipulada, sem nem mesmo saber

que estava sendo coagida. — Eu não tive alternativas. — Não — ela bufou —, claro que não. Você não

deixaria escapar o grande trunfo que teria nas mãos, não é mesmo, John Anson? Precisava de qualquer arma

para se casar comigo. — Eu aceitei por você. Essa casa é sua, assim como Thompson’s House. — E eu

deverei ser eternamente grata, não é mesmo? Quero sair daqui. — Let... — Não me chame assim! Ela entrou

na carruagem, apressada. John ordenou que o cocheiro os levasse de volta a Lilleshall. — Eu tinha agendado

com um novo administrador. Vamos precisar contratar criados e ... — Acho que pode cuidar de tudo sozinho.
— Por que está tão furiosa? Com o dedo em riste, em altos brados ela declarou: — Você não é diferente de

Phillip. Foi exatamente o que ele fez comigo, foi doce e me iludiu, depois roubou tudo que eu tinha. Mas não

vou permitir que isso aconteça novamente. Perdeu seu tempo, não tenho mais nada e há muito já me

conformei com isso. — Let, não diga isso. — Não, eu não direi. Serei a esposa submissa e dedicada que os

cavalheiros desejam. John bufou, não argumentaria, não enquanto ela estivesse daquela maneira. Quando

chegaram aos limites de Lilleshall, a carruagem parou com brusquidão. Um toque insistente na janela fez com

que John descesse sem delongas. Era um dos inquilinos. — Meu senhor, mil perdões. As máquinas novas,

um dos homens se feriu gravemente.

*** Era tarde da noite quando Viollet viu, pela janela, John entrar no jardim secreto. As roupas amassadas,

sujas de sangue e o olhar abatido denunciavam que algo grave havia acontecido. Se ele se portasse da

mesma maneira que Phillip, exigiria que ela estivesse pronta para servi-lo. Mas, pelo menos nesse ponto,

John parecia respeitá-la. Ela sentou-se na sala. O embate que ensaiara deveria ser adiado. John limpou os

olhos logo que entrou. Sua expressão vaga e ausente a comoveu. Os olhos dele procuraram os de Viollet. Ela

se levantou. O visconde se aproximou e a abraçou, descansando a cabeça no ombro dela. — Não sei se ele

vai sobreviver, perdeu muito sangue. — O que aconteceu? — Testaram as máquinas, não estavam seguras,

eu avisei. O filho de um arrendatário perdeu o braço. — Meu Deus. Viollet levou as mãos à boca. John

começou a retirar as roupas e a se lavar. Ela rapidamente serviu-lhe uma dose. Ele recusou. — O que vai

fazer? — Precisamos voltar para Londres. Não posso permitir que essas máquinas continuem sendo

produzidas. Se Sarah quer correr o risco, ela que assuma as consequências. — Você precisa descansar. —

Ainda está brava? — Conversamos depois sobre isso. Não é o momento. Viollet se adiantou e começou a

pegar uma manta para colocar no sofá. — Por favor, não me peça para dormir longe de você. — Ele engoliu

em seco. — Não hoje. Não vou conseguir esquecer a cena que vi. Viollet não contestou. Viu John adormecer

ao seu lado, involuntariamente o acariciou.

Capítulo XV
Dois dias mais tarde, quando chegaram a Londres, John, que se mantivera quieto e calado por quase toda a

viagem, perguntou: — Estamos indo para Thompson’s House. Seu lar novamente. Algum problema em

relação a isso? — Não senhor. — Ela abaixou a cabeça. John não tinha forças para discutir, a imagem do

braço dependurado do inquilino ainda o perturbava. E temia que qualquer conversa que iniciasse gerasse um

desentendimento. Não tinha forças para fazer brincadeiras ou para tentar resolver aquela situação. Quando a

carruagem parou, ele fez o que julgava certo: — Está em casa, milady. Caso deseje, posso seguir para

Anson’s House e providenciar os papéis da anulação. — Não seja ridículo, John. — Ela passou por cima dele
para descer da carruagem. Estava de volta a sua casa, respirou fundo. Não conseguia deixar de lado a

sensação de que reviveria um passado não muito feliz. A casa não estava como a de Shropshire. Apesar de

reformada e limpa, não tinha muitos móveis. Uma governanta, uma cozinheira, o valete de Thomas, Paige e

um lacaio os receberam. Ela olhou cada detalhe. — Lamento não ter providenciado todos os móveis — John

se adiantou. Ainda não tenho recursos suficientes para isso, nem para contratar os treze criados, o que é

adequado. Mas resolverei essa situação — Não se preocupe. Sei gerir uma casa com poucos recursos. Meus

maridos geralmente me incumbem de tal responsabilidade. Quem fez as contratações? Ela olhou para o lado,

não queria vê-lo. — Lucy, ela me ajudou. Os quartos estão reformados e estão prontos. Pode descansar se

quiser. — Aonde vai? — Viollet se virou para ele rapidamente. — Vou à casa de meu pai, não conseguirei

dormir enquanto a situação das máquinas não for resolvida. Quer vir comigo? — Não, obrigada. John beijou a

testa de Viollet antes de partir. Ela se jogou no único sofá da sala. Estava prestes a iniciar uma nova vida. E,

por mais que estivesse magoada, em seu íntimo sabia que tudo seria diferente. *** Quando John chegou em

Anson’s House, foi direto para o gabinete do pai. Augustus se surpreendeu ao ver o filho. — Achei que ficaria

mais alguns dias em Lilleshall. — O duque se levantou para saudar o filho. — Houve um acidente.

Contestaram minhas ordens e utilizaram as máquinas sem inspeção. O filho do Sr. Hill perdeu o braço,

encontra-se entre a vida e a morte. Augustus se jogou na cadeira, tratava-se de um antigo arrendatário muito

querido para ele. — Mandei recolher as máquinas e desmontá-las. Também deixei o médico à disposição.

— Fez bem, meu filho. — Não pode permitir que Sarah faça as coisas dessa maneira. São vidas, pessoas

que querem garantir seu sustento e que lutam diariamente com as dificuldades da vida no campo. — Sua

irmã tem boas ideias, o projeto só precisa de ajustes. — Não é de ajustes que precisam, e sim de

planejamento. — Deveria investir, posso lhe dar um bom dinheiro... — Não! Não quero dinheiro de ninguém, o

senhor mesmo me disse que devo lutar minhas próprias batalhas. No momento minha prioridade é dar a

minha mulher uma casa à altura dela. Investir nessas máquinas custa caro e vai requerer uma boa economia.

— Certo. — O duque se recostou à cadeira, levando as mãos à nuca. — Esperei muito tempo para vê-lo

assim novamente, não contestarei sua decisão. Quando herdei esse título, Lilleshall estava falida, eu

recomecei usando o dote de Julliet. — Viollet não tem dote, também não tem recursos. Mas temos o que há

de mais valioso, o amor. — Estou feliz por você. A porta se abriu rapidamente e Lucy entrou eufórica,

jogando-se nos braços do filho. — Como você está, meu filho? Por que Viollet não veio com você? — Nós

nos desentendemos, mãe. Viollet acha que a enganei assim como Phillip. Ela me acusou de ter aceitado a

herança de Lorde Granville para tê-la sob meu jugo. Lucy acariciou os cabelos do filho com delicadeza. — Ela

não pensa isso de você. Só está assustada. — Parou por um instante. — Estive falando com seu pai,
Thompson’s House ainda precisa de uns ajustes, achei que voltariam na próxima semana. Vou encomendar

cortinas e móveis. — Não, minha querida — o duque a interrompeu. — John quer construir suas próprias

vitórias — e, com a voz embargada, continuou. — Nosso filho está de volta. Num abraço caloroso, eles se

despediram. John estava ansioso para voltar para casa. *** Logo que John saíra, Viollet continuou

inspecionando todos os cômodos. Havia quatro anos não pisava naquela casa, que já não se parecia com

aquela que vira seu pai morrer. Jamais se esqueceria daquela noite. Richard Thompson, o conde de Devon.

Um cavalheiro devoto à família. Dedicou-se a proteger, cuidar de suas filhas, desde que ficara viúvo. Era um

homem forte, um conservador, e Viollet nunca entendera como ele e Augustus poderiam ser tão amigos. Na

noite em que ele partira fora um golpe duro, jamais esperara que o pai morresse de um mal súbito. — Milady

— a governanta a chamou. — Lorde Granville, o conde de Snowdon, deseja vê-la. — Onde ele está? — Na

biblioteca. — Por que não o levou para a sala? A criada se desculpou e Viollet desceu para recebê-lo. — Lady

Viollet. — O conde fez uma breve reverência. — Lorde Granville, a que devo a visita? Viollet não o convidou a

sentar-se; assim como John, tinha certa resistência ao banqueiro. — Vim lhe entregar isto. — De dentro da

casaca, retirou um robusto saco de veludo. Viollet o olhou por alguns instantes e, vencida pela curiosidade,

abriu-o. Ali estavam joias idênticas às falsas que ela tinha. As que estavam em sua mão tinham um brilho

diferente, a mesma luz que a encantara quando o pai lhe entregara. — Como estas joias foram parar em suas

mãos? O velho abaixou a cabeça, parecia travar uma guerra contra si mesmo. — Joana, eu as peguei antes

de ela ir para a Escócia. Viollet fechou o saco rapidamente e o apertou contra o peito. Queria dizer que não

aceitaria, mas eram suas, uma herança de sua avó, que lhe fora dada por seu pai, como garantia caso algo

acontecesse a ele. Teve vontade de interrogá-lo, mas o desejo pela privacidade era maior. — Obrigada — a

voz não falhou. A governanta entrou trazendo uma bandeja de chá. Viollet não havia pedido. Observou

quando a senhora serviu a xícara para o banqueiro, colocando duas gotas de limão. O conde tomou um gole

de seu chá ainda de pé e devolveu a xícara para a bandeja. — Bem, preciso ir. — Willian tinha um olhar triste

e fez uma vênia. — O que aconteceu com aquele homem? — Está preso. — Era um criminoso? — Um

cavalheiro de bem não importunaria uma dama como a senhora. Ela o olhou desconfiada. Deixou que ele

partisse. A governanta o acompanhou até a porta e Viollet a esperou perto das escadas; viu o momento exato

em que ela guardava algo no bolso. — Como foi contratada? — Eu já trabalhava aqui, minha senhora. A casa

era alugada para a temporada. — Por que levou o convidado para a biblioteca e trouxe chá sem que eu

pedisse? — Sinto muito, milady, mas o conde é avô do visconde e eu pensei que... — Como sabe? Por que

serviu o chá e não esperou que eu mesma fizesse? E as duas

gotas de limão? Pelo visto conhece bem as preferências de Lorde Granville. — Mais uma vez me perdoe, é

que Lady Joana não gostava de... — Pode arrumar suas coisas e procure seu acerto com Lorde Granville.
Certamente era ele que bancava seu salário enquanto Lady Joana se encontrava com meu marido nesta

casa. Viollet respirou fundo, aos poucos a verdade se revelava. Mas ainda faltavam algumas peças.

*** A velha conhecida estava diante dele. Era sedutora, ilusória e, mesmo que soubesse que não era a melhor

companheira, não tinha dúvidas de que nos momentos difíceis era uma reconfortante companhia. O cristal

trabalhado refletia a luz emanada pela chama das velas, e o líquido âmbar se tornava ainda mais belo, um

convite para a fuga. Não seria só um trago, ser comparado a Phillip Smith merecia pelo menos meia dúzia de

garrafas como aquela que estava diante de John, cegando-o e o hipnotizando. O copo limpo, a bebida

intocada. Estava lutando contra si mesmo. A dor cortante no peito não se amainava. Mesmo que ele

soubesse que havia se casado com a sua Let, ela o desprezava. — Jack? — a voz doce foi capaz de

estilhaçar em mil pedaços a tentação, a amargura e as incertezas. Ele ergueu os olhos, ela já não vestia

preto. O semblante preocupado dava-lhe esperança. Talvez ela não o achasse tão desprezível assim. — Está

tudo bem? — Ela se sentou ao lado dele. — Faz algum tempo que está aí parado, olhando para essa garrafa.

— Não sou como ele. — Eu sei que não. — Ela olhou para baixo. — É complicado, tudo veio à tona

novamente. Eu não queria ser assim. Ele a olhou com ternura e admiração. — Não queria que fosse de

qualquer outro jeito. Ela sorriu sem jeito. — Lorde Granville esteve aqui. — Como ele sabia que já havíamos

chegado? — A governanta. — Viollet serviu duas doses e ofereceu uma a ele. — Aceite, acho que vamos

precisar. John pegou o cálice, relutante, mas nos olhos de Let encontrou a coragem e o limite de que

precisava. Seriam somente algumas doses, e não várias garrafas. — Vi que ele entregou uma moeda para

ela na saída. Desconfio de que ela mandou avisá-lo. A mulher deixou escapar que Lorde Granville

frequentava esta casa, assim como Lady Joana. Decerto era aqui que ela tinha encontros íntimos com Phillip.

John a olhou confuso. — O que está dizendo? — Lady Joana e Phillip eram amantes. Eu não imaginava que

se viam com regularidade, mas o conde veio entregar as minhas joias, estavam com ela. — Não é possível,

Willian me contou que o pai de Phillip era amante de Joana. — Pelo visto, a amante fazia parte da herança.

John coçou a cabeça, confuso. — Sei que já lhe perguntei antes, mas agora mais do que nunca preciso

saber. Diga-me, por que se casou? Ela balançou a cabeça, respirando fundo. — Meu pai estava bem,

estávamos aqui nesta casa. Você tinha voltado para Cambridge, seu pai estava em Lilleshall. Uma noite ele

recebeu alguns cavalheiros, não vimos quem eram. No outro dia acordou morto. Dr. Lewis disse que foi um

mal súbito. John segurou a mão de Viollet a encorajando a continuar. — Fiquei apavorada, pensei em juntar

minhas coisas para voltar para Shropshire, mas Phillip apareceu. Era seu amigo, tinham viajado juntos um

mês antes. Ele me ajudou com o funeral, eu paguei com uma das joias. — Viollet limpou os olhos tentando se

manter firme. — Dois dias depois ele voltou, trouxe papéis, eu não sabia que meu pai tinha tantas dívidas. Ele

me aconselhou, disse que eu precisava vender nossa casa em Shropshire. Algumas dívidas pertenciam a
Phillip, mas ele disse que meu pai devia muito mais. Entreguei metade das joias, ele voltou dizendo que eram

falsas e me devolveu, certamente as réplicas. — Como descobriu? — Não tínhamos dinheiro, ele estava

falido. Precisei pagar a modista e ela recusou dizendo que não tinha valor. Precisei devolver os vestidos. —

Por que não procurou meu pai? — Eu estava indo, então Phillip voltou trazendo uma pasta. Nela havia dois

acordos de casamento assinados por meu pai. Tive que escolher entre mim e Flora, uma das duas se casaria

com ele. — Mas Flora era muito nova. — Ele não se importava. Foi o golpe final. Eu não entregaria minha

irmã a ele. Estava desesperada, Jack, ele me disse que você tinha se deitado com várias mulheres em Paris.

Estava desesperada, tinha perdido tudo. — Por que não anulou o casamento? — Não tinha como, o acordo já

estava assinado e já tinha sido consumado. John a abraçou com força. — Podia ter me dito. — Ele chorava

se sentindo impotente. — Phillip era um homem violento. A viscondessa viúva vivia com medo, alertou-me,

ensinou-me a usar esponjas, implorou que eu não gerasse um filho dele. Eu não queria que nada de mal

acontecesse a você. — Nada poderia ser pior do que a sensação de perder você. — Sinto muito. — Por favor,

meu amor. — Limpou as lágrimas dela. — Você não teve culpa. Acabou, temos a chance de recomeçar. —

Eu o amo Jack, sempre amei você. — Sei disso, sempre vi nos seus olhos. Um beijo casto, um abraço de

libertação. Ali começava um casamento, em que dois corações quebrados se reconstruiriam. *** Naquela

noite dormiram juntos, abraçados, ou pelo menos tentaram dormir. Com Let deitada em seu peito, John fitava

o teto tentando organizar as informações. — Seu pai jamais assinaria um acordo de casamento daquela

maneira, você e Flora eram tudo para ele. — Com o tempo desconfiei de que o documento era falso, mas na

hora não consegui pensar. Ele me batia, Jack, de maneira que nem pode imaginar. John acariciava-lhe os

cabelos. — O que mais me intriga é o fato de Lorde Granville ter dito que as dívidas de seu pai estavam com

ele. Ele me contou que foram roubadas antes de seu casamento e que ele as comprou depois. — John

sentou-se. — Ele aceitou comprá-las sem questionar e não falou durante todos esses anos. — Creio que para

proteger a filha. Não sei se acredito na benevolência de Lorde Granville. — Também não, ele distribuindo sua

fortuna dessa maneira é algo incomum. — Mas aceitou as casas e, pelo que entendi, as dívidas de meu pai.

— De alguma maneira, eu sentia que seu casamento tinha relação com esses papéis. Minha mãe insistiu, eu

aceitei por você. Viollet se virou para John e o beijou nos lábios brevemente. — Desculpe, Jack. Quando me

levou para Shropshire, eu me senti mal; aquela casa é um pedaço de mim e eu a perdi. Era como se tudo de

vivi tivesse voltado. — Vamos nos libertar do passado e recomeçar de onde paramos. — Precisamos vender

as joias. — Não vamos tocar na sua fortuna, vou procurar Edward, conseguir um trabalho. Ela se sentou,

virada para ele. A camisola deslizou deixando o ombro à mostra. John engoliu em seco, Let era linda, merecia

ser pintada para ser idolatrada todos os dias. — Não quero mais aquelas joias. Hoje vejo que meu pai as

deixou para que eu pudesse saldar as dívidas e ter recursos para viver. Elas só trouxeram desgraça. Vamos
vendê-las, arrumar Thompson’s House e investir na fábrica de maquinários. — Não pode fazer isso. São

suas. — São nossas, Jack. Não desisti de viajar o mundo com você. John deitou-se sobre ela. A respiração

de Viollet falhou. Lentamente ele a tomou em um beijo. — Deixe-me tentar uma coisa? — Sim, eu confio em

você. John se levantou e entrou no quarto de vestir. Voltou com uma pluma na mão e imediatamente Viollet a

reconheceu. Pertencia a um dos seus novos chapéus. Ela riu, mas se encolheu na cama quando ele se

aproximou. — Tire suas ceroulas e suba a camisola até o ponto em que se sinta confortável. Olhou-o

receosa, mas obedeceu, deixando a camisola embolada no meio das coxas. A pluma acariciou-lhe com

delicadeza a planta dos pés, Viollet sentiu cócegas e deu uma gargalhada infantil. Jack continuou sua tortura

subindo pela panturrilha, enquanto ela se contorcia e gargalhava. Ele sorria amplamente, ela estava relaxada,

entregue. Viollet se contorcia e implorava a ele que parasse. John cessou a brincadeira. — Machuquei você?

— Ele sorria. — Não, Jack. — Ela ainda se recuperava da crise de risos. Ele deixou a pena sobre a cama e

tomou o pé dela com delicadeza. Começou a beijar sem pressa cada perna, até chegar ao limite estipulado

por ela. Viollet aos poucos descobria uma nova sensação. Um ardor inesperado, uma vontade de ir além.

Corajosa, subiu as saias um pouco mais e, à medida que ele alcançava a bainha, ela subia. John estava

concentrado em lhe dar prazer; a cada vez que ela cedia e se entregava, ele temia pelo próprio autocontrole.

Quando a beijou na virilha e ela fechou as pernas, instintivamente parou e deitou-se ao lado dela. —

Desculpe, não consigo mais. Não agora. — Ela parecia se sentir culpada. — Já avançamos muito, meu amor.

Um dia de cada vez.

Capítulo XVI

Logo depois do desjejum, Viollet entregou a John a bolsa de joias. Ele tentou persuadi-la a ficar com elas,

mas a viscondessa não cedeu. — Por favor, escolha uma, a que julgue mais valiosa. Viollet o surpreendeu

com um beijo suave, ela depositou a mão sobre o lado esquerdo do peito dele. — Já escolhi. Você é o que

tenho de mais valioso. John desfrutava uma alegria que jamais imaginara que pudesse existir. Queria passar

o dia todo ao lado dela, mas precisava sair, tinha muitas coisas para resolver. Viollet informou que iria a

Grove House, visitaria a marquesa, Izadora e traria Flora para morar com eles. Estava animada para voltar a

pintar e manteve certo suspense sobre uma encomenda que tinha que terminar. Ao entrar em Grove House,

abraçou Sarah com gratidão. Devia a ela a acolhida e mais do que isso; uma amizade que aos poucos nascia

e florescia. — Não imagina o quanto estou feliz. — A marquesa estava com o pequeno Bronwen nos braços.

— Agora somos oficialmente irmãs. — Onde está Flora? — No atelier de Heloise. Chegaram novos tecidos,

Marie prometeu fazer novos desenhos. — Está mimando demais a minha irmã.

— Não sei se é com você, mas ele ficou muito abalado com a situação. — Ela acompanhou Sarah até a sala

íntima. — Acho que na verdade sente-se culpado por ter negligenciado os negócios da família e vai culpá-la,
afinal foi você que esteve do lado do seu pai. — Eu me sinto tão mal com tudo isso. Achei que estava fazendo

o certo. — Errar é a melhor maneira de aprender, o que importa são as chances de recomeçar, de fazer o

certo. — Pelo visto encontrou esse caminho. — Obrigada, sem seus planos mirabolantes eu não me

permitiria. Um alvoroço no hall anunciou a chegada de Izadora; em pouco tempo Lucy, Flora e a brasileira se

juntaram a elas. A estrangeira não escondeu a alegria ao ver Viollet. — O casamento lhe fez muito bem. Não

me diga que também está grávida? — Izadora não perdeu a piada. Viollet a olhou com reprovação. — Acho

que somente a doce e frágil Ann cometeria tal proeza nesta família — Sarah brincou. — Não diga isso, Sarah,

seu pai ainda não sabe — Lucy a recriminou. — Ou não quer ver — Flora entrou na brincadeira. — Flora! —

Viollet chamou a atenção da irmã. — Vou proibi-la de passar algum tempo com Izadora. — Estava com tantas

saudades assim, Let? — a brasileira debochou fazendo uma cara meiga. A conversa seguiu animada, Lucy

se sentou ao lado de Viollet. — Estou feliz que finalmente você e John se acertaram. — Também estou feliz,

mãe. — Deu um beijo no rosto da sogra. — Acho que preciso de sua ajuda. Será necessário contratar uma

nova governanta e mais criados. Thompson’s House precisa ser um lar à altura do visconde de Trentham. —

John está relutante em aceitar ajuda — Lucy falou com certo pesar. — Lorde Granville me entregou as joias

de minha avó. As verdadeiras estavam com Joana. Vou pagar por todas as despesas de Flora e faço questão

de arcar com o dote. Lucy engasgou e se recostou ao sofá. — John está intrigado com Lorde Granville. —

Minha querida, eu lhe rogo. Não permita que John procure o que não deve ser achado. Sigam adiante, tudo

que era seu está de volta. Ninguém em sã consciência brinca com Joana. — Vou tentar esquecer tudo isso.

— Faça isso, amanhã começamos a transformar Thompson’s House. *** Aos poucos a casa ganhava alma.

As damas perfeitas se empenhavam juntas para transformá-la. Com exceção de Ann e Marie, que ainda

estavam em lua de mel. John conseguira um bom dinheiro com a venda das joias e já iniciava os primeiros

protótipos das máquinas. Sarah havia lhe encomendado novos projetos para a tecelagem, e juntos aprendiam

a trabalhar respeitando suas diferenças. Enquanto finalizava a pintura de Izadora, Viollet refletia sobre o

quanto sua vida havia mudado. Não tinha medos, nem culpa. Ainda carregava o peso de ter atirado no próprio

marido, mas dedicaria o resto de sua vida a se redimir. Embora não conseguisse se entregar a Jack, a cada

dia avançava um passo. — Suas pernas são mais atraentes. Ela quase derrubou o cavalete quando viu que

John contemplava o retrato de Izadora. — Não devia ver! Seu patife. Ele se virou de costas e sorriu

amplamente. — Há um pintor francês na cidade, dizem que pintou a rainha. Montou um atelier. — Não sabia

que ele tinha se mudado para Londres. Ele foi o motivo para que eu começasse a pintar as damas perfeitas.

Lucy ontem me pediu um retrato, quer uma lembrança antes de se tornar a duquesa. — Não vai pintar minha

mãe nua. — Não. — Ela gargalhou. — Somente Izadora teria tamanha audácia. — Vou levá-la para que ele a
pinte. — Não vou, o que faria com um retrato meu? — Você nada, mas eu contemplarei toda vez que não

puder estar perto.

*** Viollet estava no quarto de vestir, acabara de sair do banho e estava nua, vestia somente um penhoar. A

pintura do artista francês fora entregue naquela tarde. Ainda estava coberta. Ela precisava se trocar para

jantar em Grove House, Marie e Ann haviam voltado da lua de mel, e Sarah organizava uma grande reunião.

Viollet havia pedido privacidade para Paige, estava curiosa para abrir a tela. E, quando retirou o tecido que a

envolvia, paralisou. Diante dela estava uma bela mulher, as marcas nos ombros à mostra não tiravam a

beleza do retrato; eram marcas, obstáculos que vivera para ser quem era. O sorriso no rosto denunciava que,

enquanto ela estava sendo pintada, Jack estava sentado à sua frente. Ela sorria para ele, para o amor. O

tempo não roubara sua juventude, somente lhe deixara mais madura, pronta para a vida, mas foi no brilho dos

olhos que Viollet encontrou o que havia tempos procurava. Ela se reconheceu, não a Let que sonhava em se

casar com Jack, mas a mulher que lhe daria uma família. Emocionada, voltou para o quarto. O valete

terminava de ajeitar a gravata de John, não demorou muito para perceber que o casal desejava privacidade.

— Tem alguma reunião importante depois do jantar? — ela perguntou com as mãos na fita que fechava o

penhoar. — Não, somente me encontraria com Edward para... — Não vamos. — Ela abriu o penhoar e deixou

que ele deslizasse pelo corpo. — Estou pronta para você, Jack. Estou pronta para nós.

FIM

EPÍLOGO

Enquanto observava o vai e vem de pessoas na rua, pela janela Edward Baldwin refletia sobre sua

infelicidade. Era o primeiro-ministro do Reino Unido, respeitado, um jovem brilhante, como muitos julgavam.

Apesar de estar exatamente onde planejara, ele não contava com a dura realidade. Seu pai já o havia

alertado; conseguir tamanha influência requeria certas abdicações. O que Edward não esperava era ter que

abrir mão da própria vida. Os móveis de madeira avermelhada, impecavelmente polidos, os caros tapetes

orientais, a imponência estava em cada canto do gabinete do parlamentar de mais alta patente. Nada parecia

fazer sentido. Um toque suave à porta, uma única batida. Edward se pôs de pé. A porta se abriu. Era ela:

Izadora Senior. A mulher que lhe roubava a razão, o equilíbrio e a sanidade. Instintivamente, seu corpo se

enrijeceu. Deveria estar pronto para o embate. Mas a brasileira irreverente não parecia ter vindo para guerra.

Os olhos avermelhados denunciavam que ela possivelmente havia chorado. Edward deu um passo em sua

direção. Izadora carregava um embrulho, um presente, supôs. — Estou de partida. — Ela sustentava um
olhar determinado. — Mas queria lhe entregar isso. Edward pegou o grande embrulho das mãos dela, era

pesado. Espantou-se ao constatar — Quando vai partir? — Ele depositou o misterioso objeto na mesa e

começou a desembrulhar. — Imediatamente, meus pertences estão na carruagem. Não abra agora, espere

que eu saia. Edward olhou para Izadora, incerto. Deveria deixá-la partir? Era o certo a fazer, sabia disso. Ela

era uma ameaça a seus planos. Suportaria viver tão longe novamente? Ele tocou as mãos dela, beijou-as

demoradamente. Queria verbalizar que, tão logo concluísse sua missão, iria para o Brasil atrás dela. Mas não

podia prometer nada. — Faça uma boa viagem de volta. Izadora retirou as mãos rapidamente. Ele não

entendeu o rompante. Observou-a deixar o gabinete com passos firmes. Se pensasse com coerência,

concluiria que ela se ofendera. Curioso para ver o regalo que a brasileira havia lhe dado, Edward abriu o

pacote rapidamente e paralisou. Piscou algumas vezes para ter certeza do que via. Um retrato, uma mulher

nua. Supunha que fosse Izadora, mas jamais poderia saber. A tela emoldurada não revelava o rosto da

mulher de contornos fascinantes. Somente o corpo e seu pescoço esguio.

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