Você está na página 1de 18

A PROBLEMÁTICA DO SUJEITO TRANSCENDENTAL E O ENSINO DE

FILOSOFIA: uma abordagem fenomenológica

Jean Leison Simão*


jelesimao@yahoo.com.br

I) Introdução

Muito se fala, quando o assunto é o ensino de filosofia, na emancipação do


sujeito. Mas que sujeito é esse? Certamente não deve ser aquele sujeito do
iluminismo, uma instância superior, supra-histórica para além das vivências
contingentes e, portanto, não auto-evidenciável. Tampouco, pode esse
sujeito ser fruto de uma ininteligibilidade natural como nos empiristas, pois
um sujeito que não pode se conhecer também não poderá se emancipar.
Não obstante, após a crise do sujeito moderno e acessão das ciências, no
final do século XIX, Edmund Husserl resgata os contra-sensos da
modernidade e não medirá forças para resolvê-los, pretendendo legitimar o
sujeito do conhecimento que necessariamente deve ser livre.
Uma apresentação mais detalhada dessa problemática, assim como a
resposta husserliana, é imprescindível para compreendermos de que maneira
é possível um ensino de filosofia no nível médio com base na reflexão
fenomenológica. Vejamos...

II) Exposição do problema

A filosofia – seja na universidade, seja nas escolas – historicamente vêm


adotando, desde seus antecedentes europeus, duas perspectivas principais

*
Jean Leison Simão: diplomado em filosofia pela Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM), em psicologia pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA) e
atualmente mestrando em filosofia pela UFSM. Telefone: (55) 99357183; endereço:
São Pedro do Sul - RS, Rua XV de Novembro, 690. Centro, CEP: 97400-000.
2

de ensino. Segundo Obiols, (Cf. 2002, p. 27 e ss.) ou o ensino assume um


modelo cuja origem remonta à Idade Média, no qual aparece associado à
teologia, sendo inclusive uma serva dessa; ou ele adquire um papel
emancipador, como aconteceu pela primeira vez na época que circunscreve o
iluminismo, em que o centro das discussões filosóficas se desloca de Deus
para o homem, com o objetivo de fundamentar a sua liberdade para além de
qualquer dominação de autoridade. Este último modelo de ensino é o mais
amplamente adotado atualmente nos diversos lugares em que o ensino de
filosofia se faz presente, e é nele que se irá centrar esta exposição.
Descartes (séc. XVII) foi, sem dúvida, o filósofo que deu o passo inicial no
assentamento das bases de um sujeito emancipado. Nas Meditações ele vai
buscar uma certeza indubitável, absoluta, afastada de qualquer falsa opinião.
Os sentidos para ele não fornecem essa certeza, uma vez que muitas vezes
eles nos enganam. Assim, devemos ser prudentes em não confiar em algo
que alguma vez já nos enganou. Nesse sentido, podemos duvidar que tudo
que provém dos sentidos seja verdadeiro e não passe apenas de um sonho
coerente. Por outro lado, o mesmo não se pode dizer daquele que duvida, ou
seja, podemos duvidar de tudo que procede dos sentidos, mas não se pode
duvidar do próprio ato de pensamento que é o duvidar. Descartes, ao pensar
sobre o sujeito indaga-se da seguinte maneira: “Mas o que sou eu, portanto?
Uma coisa que pensa. Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida,
que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina
também e que sente.” (1973, p. 103). O celebre exemplo do pedaço de cera
pode ajudar a compreender a tese cartesiana. Para o filósofo francês, quando
se aproxima um pedaço de cera ao fogo – o qual têm um determinado odor,
uma determinada textura e forma, um determinado gosto, etc. – notamos
que as suas qualidades sensíveis se alteram; no entanto a concepção dada
pelo entendimento permanece, donde se pode concluir que a idéia da cera no
meu espírito é mais verdadeira do que a cera dada pelos sentidos, e mesmo
que essa cera fosse falsamente concebida num sonho; ou se quisemos,
3

mesmo que ela seja imaginada, ainda assim podemos conceber que a idéia
da cera presente à imaginação é verdadeira. Mas qual a origem dessas
idéias? Descartes, na terceira meditação irá afirmar que elas têm a sua
origem em Deus, que é concebido em meu espírito como uma idéia mais
perfeita.
É justamente nesse ponto que irão convergir muitas das críticas dos
empiristas. Eles afirmarão que o pensamento de Descartes é altamente
especulativo e conseqüentemente metafísico, e que qualquer proposta de ir
além da experiência deve ser rejeitada. Hume (séc. XVIII), por exemplo,
parte e permanece no sujeito das operações psicológicas. Para ele toda e
qualquer ação ou operação da mente – julgar, amar, odiar, pensar, etc – são
percepções. Há dois gêneros de percepção: Impressões e idéias. Sensações,
paixões, emoções estão incluídas no primeiro gênero, que tem como
principal característica a força e a violência com que penetram na mente
humana. Assim, as impressões possuem um grau de vividez elevado,
enquanto, as idéias, ao contrário, são lânguidas, são “pálidas imagens das
impressões no pensamento e no raciocínio” (Tratado da Natureza Humana,
p. 25).
O sujeito de Hume não é transcendental. As ligações entre as impressões e
as idéias se dão por meio de leis de associação, as quais se encontram na
base de qualquer crença, a qual é provável, pois deriva do hábito da
experimentação de um determinado evento. Assim, por exemplo, ao
perceber que o sol nasce e se põe todos os dias até o presente momento,
pode-se concluir – com uma probabilidade imensamente elevada – que ele
continuará a nascer e se pôr nos dias seguintes. Essas leis de associação que
estão na base da crença são leis da razão, que “[...] não é senão um
maravilhoso e ininteligível instinto de nossas almas, que nos conduz por
certa seqüência de idéias, conferindo-lhes qualidades particulares em virtude
de suas situações e relações particulares” (Tratado da Natureza Humana, p.
212) [o grifo é nosso]. Ora, uma razão vista sob este ângulo conduz a idéia
4

de um sujeito que não pode se emancipar, na medida em que é considerado


como um ser natural, incapaz de se autoconhecer, pois a própria razão desse
sujeito é ininteligível.
Portanto, de um lado temos o sujeito transcendental cartesiano que se eleva
para além da experiência; um sujeito capaz de sair do nível da experiência e
se autodeterminar, mas que muito embora esteja fixado num ponto único de
evidência absoluta que é o cogito, tem a sua base abalada ao fundar-se
numa realidade metafísica e não evidenciável. De outro lado, temos o sujeito
psicológico natural de Hume, que pode ser percebido na experiência, mas
que não pode ir além, não sendo um sujeito livre e autodeterminável.
Kant (séc. XVIII) tenta resolver esse dilema introduzindo a idéia de um
sujeito lógico. Ele concorda com a visão de Hume e dos empiristas que só
podemos ter acesso àquilo que provém da experiência, mas afirma também
que é por meio de condições a priori da sensibilidade e do entendimento em
geral que isso é possível. Essas condições fazem parte da estrutura de um
sujeito transcendental que é pressuposto a partir de seu método criticista,
mas que não pode ser evidenciado nos fenômenos. Ao contrário de
Descartes, onde o sujeito transcendental é concreto, pois podemos ter a
certeza indubitável que este é uma coisa pensante, o sujeito kantiano é
abstrato, isto é, ele possui as condições para o conhecimento, mas essas
condições, assim como ele mesmo, não podem ser conhecidos. (Cf.
LYOTARD, 1986, p. 25 e ss.). Mas tanto o sujeito transcendental cartesiano
quanto o kantiano são supra-históricos, ou seja, são sujeitos de uma razão
universal independente de qualquer período histórico, e, portanto, livre de
qualquer contingência.
No entanto, ou esse sujeito é concebido por meio de um afastamento do
plano sensível e convertido em uma especulação difícil de ser evidenciada
como Descartes – assim como outros filósofos iluministas como Leibniz,
Hegel, etc. –, ou ele é apenas pressuposto e não pode ser conhecido, sendo
exigido como condição do pensar em geral como em Kant. Como emancipar
5

um sujeito que não podemos conhecer? Ele é livre de qualquer


determinação? Como posso ter evidências disso?
Essas questões permaneceram em aberto durante o iluminismo, o que
ajudou a fortalecer a tese empirista, que vai ser retomada numa vestimenta
nova das ciências naturais do século XIX. A filosofia como pretensão de saber
sobre a totalidade, tal como era concebida durante o iluminismo, agora cai
em descrédito e quanto muito lhe é atribuída uma função de explicitar os
métodos das ciências particulares.
Assim, o professor que pretende adotar o modelo de ensino baseado na
emancipação do sujeito, não poderá tomar por base nenhum dos sistemas do
iluminismo, a não ser que possa esclarecer quem é o seu sujeito. Deverá a
filosofia ser ensinada na escola como as demais ciências, isto é, ser antes
uma assimilação e uma repetição passivas de resultados acadêmicos do que
uma reflexão que almeja a liberdade do sujeito?
Poder-se-ia resolver esse problema se pudéssemos, de alguma forma unir a
tese empirista com a tese do sujeito transcendental, de maneira que esse
último pudesse ser evidenciado na experiência. Mas como buscar algo de
incondicionado, ou seja, para além dos sentidos, na própria esfera
condicionada que é a da experiência? Como um sujeito pode ser
condicionado e incondicionado ao mesmo tempo?
Na era contemporânea (final do séc. XIX e começo do XX), a fenomenologia
de Husserl retomará o projeto iluminista da busca de um sujeito livre, com
vistas a resolver esse problema. Husserl identifica o sujeito condicionado
com o sujeito incondicionado. Esse pode ser conhecido por uma mudança de
orientação a partir de um método de reflexão rigorosa. Sua empresa – pelo
menos nos seus trabalhos iniciais como Idéias relativas a uma
fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica (as Idéias I) – vai em
direção a um conhecimento apodítico e necessário, uma filosofia primeira,
que era idealista; mas não como os outros idealismos da tradição, pois esse
pretendia começar do zero, sem tomar nenhuma filosofia da tradição como
6

certa – como em Descartes – mas apenas tomando como certo aquelas


evidências que podem se apresentar em carne e osso, para usar uma
expressão que lhe é comum. Aos poucos, em suas investigações ele irá
perceber que não se pode ir para além da vida, isto é, para um sujeito
transcendental afastado de suas vivências. Como afirma Lyotard (1986),
esse sujeito transcendental aos poucos vai assumindo o caráter de Leben (a
vida) e a reflexão husserliana, irá conduzir antes ao lebenswelt – o mundo-
da-vida – o mundo vivido pré-reflexivamente, isto é, pré-categorial e antes
de qualquer predicação (Cf. p. 39). O resultado da reflexão é o
incondicionado, o eidos, a essência, como verdade absoluta. Trata-se – como
diz Husserl em um de seus últimos trabalhos (crise da humanidade européia
e a filosofia) – de um aprofundamento, uma retomada infinita do eidos pela
consciência. Tal tarefa é um empreendimento infinito; não pode ser,
portanto, a de apenas um homem, senão de muitos que devem estar
empenhados numa constante dialética. O método fenomenológico traduz
assim, uma volta às vivências mesmas (ou fenômenos); podemos dizer uma
volta às vivências que estão aí, no cotidiano, tal como elas se apresentam.

III) O sujeito husserliano e suas vivências

Para Husserl, tanto Descartes quanto Hume definem a razão


extrinsecamente. Enquanto para Descartes o fundamento das idéias é Deus,
para Hume as idéias se originam da experiência; assim, as idéias não são
verdadeiramente definidas em si mesmas e sua origem encontra-se fora
delas. Não obstante, Husserl também reconhece contribuições importantes
desses dois filósofos. Em Descartes, ele reconhece o Cogito como evidência
absoluta e em Hume – e nos demais empiristas – o esforço de deixar-se
guiar pelas coisas mesmas, dadas pela experiência, e evitar qualquer
preconceito da tradição. No entanto, ele afirma que a evidência dos
7

empiristas não é adequada para a busca de um conhecimento apodítico e


necessário, uma vez que é probabilística e não absoluta.
Por outro lado, mesmo aceitando o cogito como evidência intelectiva
(einsicht), Husserl irá criticar Descartes por predicar existência ao Sujeito, ou
seja, irá criticar a definição de sujeito como uma coisa pensante, como uma
res cogitans. Essa predicação da existência também está presente em Hume,
assim como em todos os filósofos da tradição a partir de Galileu, conforme a
tese defendida na Crise da humanidade européia.
Para ele há um preconceito na tradição filosófica, a saber, a separação entre
esfera subjetiva – interna – e mundo objetivo – externo. A esfera subjetiva é
apenas um devir de vivências onde não podemos ter conhecimento algum,
enquanto a esfera objetiva é aquela que se encontra, por assim dizer, atrás
das vivências subjetivas, da qual podemos ter conhecimento graças ao rigor
da lógica e da matemática. Isso não quer dizer, propriamente, que se pode
atribuir concepção de sujeito transcendental dos modernos (Descartes, Kant)
o atributo de subjetivo, na medida em que a intenção desses filósofos era de
buscar um sujeito transcendental, que não se encontra na experiência, o
qual deveria ser um sujeito racional do conhecimento. Por isso, para ter
acesso a ele temos antes que definir o que é razão.
Para Husserl, a separação do sujeito transcendental da esfera subjetiva,
como em Descartes, assim como a separação nos empiristas de um mundo
da experiência objetivo de um subjetivo, o qual nada mais é do que um
efeito daquele, é fruto de uma atitude que ele define como atitude natural.
Os seres humanos, portadores de habitualidades, estão orientados
naturalmente para esse mundo, isto é, eles estão interessados num mundo
que para eles é uma coisa que possui predicado de existência. Ora, conceber
algo que está além daquilo que aparece – as vivências (ou fenômenos) – é
um julgamento prévio que deve ser investigado.
Entretanto, o que não se pode fazer é negar que as coisas possuem
predicado de existência, assim como não se pode negar a evidência
8

intelectiva do cogito. E é do cogito em orientação natural que ele irá partir,


isto é, sua meditação se faz em primeira pessoa em atitude natural, evitando
qualquer tese proveniente da tradição construída sobre essa orientação. Nas
Idéias I (1949) Husserl afirmará:

Começamos nossas meditações como homens da vida natural,


representando, julgando, sentindo, querendo ‘em atitude
natural’. Isto quer dizer que nos colocamos a claro por simples
considerações, que o melhor que levamos a cabo é em primeira
pessoa. (§ 27)

É em primeira pessoa que conheço um mundo que me faz face, um mundo


que se estende infinitamente no espaço e no tempo, “um mundo de valores e
bens, um mundo prático” (§ 27). Cada objeto que atualmente me faz face
está ora entrelaçado, ora rodeado de horizontes de indeterminação. Por
exemplo, podemos voltar atenção para uma outra face de um objeto
qualquer percebido, obtendo assim uma outra representação que está
conexa com aquela; e dessa passar a uma outra que também está em
conexão com as outras duas, e assim por diante, formando um contorno
central do objeto “na” consciência. Mas não é só na atitude natural que o
objeto faz face (gegenstand) a uma consciência. Husserl, ao lado dessa
atitude, irá colocar a atitude aritmética, que também tem seus horizontes
indeterminados.
Numa consciência dirigida à vida natural, a atitude aritmética permanece
como um fundo, e não como horizonte, na medida em que os números não
estão em conexão com o mundo percebido, mas são universais construídos a
partir de objetos singulares da atitude natural. Doravante, se é possível uma
atitude aritmética, então não estamos tão-somente presos à atitude natural
e somos capazes de transcendê-la, isto é, conceber um mundo ideal. Como
isso é possível?
9

Até aqui podemos entender o conceito de consciência tal como foi concebido
outrora por Brentano, que foi mestre de Husserl. Para Brentano “Toda a
consciência é consciência de um objeto”, ou seja, toda a consciência (que é
sinônimo de razão) é intencionalidade, visa intencionalmente um objeto.
Entretanto mesmo Brentano não escapa da dicotomia subjetivo-objetivo, e
conseqüentemente da atitude natural. Eis que Husserl tem a brilhante
intuição do a priori universal a partir da concepção de intencionalidade
brentaniana. Parafraseando San Martin (1987): Husserl nota que se toda a
consciência é consciência de um objeto, todo o objeto somente é objeto para
uma consciência.
Mais do que uma nova conceituação de intencionalidade, Husserl vê no a
priori universal da consciência uma via para escapar da tese natural da
existência do mundo e ir a origem mesma de todo o conhecimento, a saber,
os fenômenos tais como eles nos aparecem em pessoa na esfera subjetiva.
Com efeito, o sujeito do qual Husserl parte é o sujeito das vivências, atual e
situado num mundo circundante (umwelt) e, portanto, não supra-hitórico
como nos modernos.
Partir dos fenômenos tais como eles aparecem é uma maneira de ter uma
evidência absoluta e indubitável, tal como aquela do cogito cartesiano. Todas
aquelas modalidades do cogito, a saber, conceber, negar, duvidar, imaginar
perceber e muitas outras, são modalidades da consciência.
O método que Husserl utiliza para se desconectar da atitude natural e ir
aquilo que aparece, os fenômenos, é o da Epoché ou redução
fenomenológica. Tal método de reflexão consiste numa postura ativa de
colocar entre parênteses a tese natural da existência do mundo. Colocar
entre parênteses não significa negá-la como Descartes, pois não temos o
poder de aniquilar o mundo que faz face. Ao efetivar a epoché somos
conduzidos ao fluxo de fenômenos subjetivos. Ali podemos perceber em
pessoa que o objeto (gegenstand) percebido na percepção é de uma
modalidade fenomênica diferente de um objeto imaginado dado pela
10

imaginação, ou de um objeto desejado dado no ato de desejar, etc. se nos


deixamos deslizar pelas silhuetas (abschattungen) sem atentar para a
unidade do objeto. Assim, esses objetos estão presentes enquanto
imanentes à consciência, isto é, essa tem o caráter de doadora de sentido
para seus objetos. Estamos aqui não mais na consciência simplesmente
interessada no mundo, mas numa consciência absoluta, nos atos intencionais
eles mesmos. Mesmo aí podemos notar que o eu, o mundo e os objetos
desse mundo, todos eles reduzidos a minha consciência, anunciam uma
unidade que permanece no fluxo das vivências. Posso eu ter acesso a essa
unidade nela mesma? Se Husserl insiste na idéia de um sujeito livre e capaz
de ter conhecimento de si e do mundo – e de fato pretende – a resposta
deve ser afirmativa. Mas de que maneira?

IV) Visão de essência e comunidade filosófica

Cada ato de consciência específico apresenta uma realidade imanente (reel),


mas essa unidade que pode ser identificada no fluxo das vivências não é, ela
mesma, algo de imanente no fluxo das vivências, mas sim transcendente.
Essa unidade é aquilo que é invariável no fluxo. Como podemos ter acesso a
ela? Segundo Husserl, ao dirigirmos a nossa atenção para essa unidade
invariável no fluxo de vivências, e variarmos em livre imaginação
conservando a sua estrutura, poderemos ver o eidos ou a essência do
objeto. A visão de essência (wessenschau) se dá quando percebemos qual é
esse núcleo invariável e que constituí, por assim dizer, a estrutura universal
do objeto, sem a qual não podemos identificá-lo no ato da percepção. Assim,
passamos de uma maneira passiva e habitual de ver o objeto para uma
ativa, sem sair do condicionamento. Isso porque o ato de refletir não deixa
de ser um ato intencional. A reflexão é uma intencionalidade sobre a
intencionalidade e é através dela que podemos transformar o nosso
condicionamento sofrido de maneira passiva, num condicionamento vivido
11

ativamente. É dizer, não saímos fora das vivências do cotidiano, mas


podemos constantemente ressignificá-las por meio da atualização da
reflexão. Não obstante, através dessa reflexão podemos também nos
evidenciar. Nas Palavras de Husserl:

[...] se variarmos nosso mundo fático em livre fantasia,


transformando-o em qualquer mundo concebível, então
inevitavelmente variamos a nós mesmos com ele; nos
convertemos em uma subjetividade possível, cujo mundo
circundante seria em cada caso o mundo pensado, como mundo
de suas experiências possíveis, de uma vida prática possível.”
(1949, p. 54).

Assim obtemos o eidos ego, e se variarmos uma dessas possibilidades, que


não estão presentes efetivamente, poderemos conceber o ego
transcendental, um ego para além de qualquer estrutura particular eidética.
Embora o Husserl das Idéias I possua um caráter Idealista, conquanto
admita que a fenomenologia deva se preocupar unicamente com a verdade
eidética – estando, com isso, também o sujeito transcendental afastado das
vivências – no final de seu trabalho ele passa a uma postura de vitalista-
histórico e sustenta que não se pode se afastar por completo daquele mundo
circundante historicamente sedimentando. O conceito de verdade não é mais
estático, mas está em movimento, e cabe ao filósofo não mais obter uma
verdade axiológica, que uma vez descoberta deve ser aceite em todas as
épocas, mas sim visar um aprofundamento dessa verdade. A um nível
superior de uma fenomenologia eidética ou estática que desvela o eidos,
Husserl vai colocar uma fenomenologia genética ou dinâmica, que mostra o
eidos numa perspectiva histórica, isto é, não o definindo mais como verdade
estática, mas uma verdade que por essência é morfológica (HUSSERL, 1992,
p.49). A fenomenologia dinâmica ocupa-se assim da gênese da passividade
onde o eu não participa de maneira ativa, ao passo que na fenomenologia
eidética há uma participação do eu.
12

Quando eu ativamente vario um objeto qualquer – por exemplo, a vivência


intencional da democracia – eu obtenho um eidos – a essência da
democracia; mas quando eu, estando em posse de vivências novas sobre
esse mesmo objeto, efetivo uma nova intuição de essência, ocorre que
poderei obter um eidos diferente do que havia intuído antes. Nesse sentido,
esta essência vem a completar a outra obtida antes, essa modificação do
eidos é algo que posso obter por comparação, no entanto não tenho poder,
isto é, não sou eu quem leva a cabo tal modificação. Ela transcorre
passivamente no plano da fenomenologia genética. Disso depreende-se que
os eidos não devem se afastar por completo das vivências, senão estar em
constante dialética com essas, para que possam ser constantemente
aprofundados.
Daí também a importância da atividade filosófica ser um trabalho em
comunidade, e não um feito isolado. A presença de um outro é também a
presença de outras vivências, e conseqüentemente, a presença da abertura
de uma crítica ao saber até então estabelecido. Numa comunidade filosófica
“[...] cada um trabalha com o outro e pelo outro, exercendo uma crítica
construtiva em benefício mútuo, e na qual se cultivam os valores puros e
incondicionais da verdade como bem comum” (HUSSERL, 1996, p.71).
Essa comunidade deve, necessariamente propagar-se, transmitindo esse tipo
de interesse, com vistas a incorporar outros não-filósofos. Assim a
propagação da filosofia não se restringe a um grupo de profissionais, a uma
comunidade, a uma nação, etc. “mas ocorre para além desse circulo de
profissionais como movimento de educação cultural” (ibid, p.72). E mais
adiante Husserl acrescenta: “Deve-se levar em conta também que a filosofia
surge de uma atitude crítica universal contra tudo tradicionalmente pré-
estabelecido e não é detida em sua propagação pelas barreiras nacionais”
(ibid, p.72).
Isto significa que a atividade filosófica somente ganha sentido num constante
refazer-se. Se através da reflexão intuímos as essências, é através dos atos
13

intencionais, cujo significado é doado por essas essências, que podemos


obter não somente uma evidência intelectiva do eidos, como também corrigi-
lo, caso seja necessário.
Alguém poderia objetar dizendo que com esse tipo de filosofia não se chega
a lugar nenhum. E por um lado, realmente não se chega, pois a filosofia não
tem a pretensão de chegar a um lugar, se identifica esse lugar a um
conhecimento acabado, aceito por todos e não criticável. Isso porque a
consciência é sempre uma abertura para o mundo, e se esse mundo não
fosse transcendente, a consciência deixaria de ser o que é, e nós não
passaríamos de uma natureza fechada em si. Por outro lado, se entende esse
lugar por uma nova visão de mundo, então podemos notar, se fizermos uma
retrospectiva, que houve uma ressignificação daquele mundo que tínhamos
antes. Qual o resultado? Uma maior emancipação do sujeito frente às forças
da tradição historicamente sedimentadas. Assim, a fenomenologia não
pretende ser um sistema, como a querem muitos dos filósofos modernos.
Dessa forma, a fenomenologia torna viável uma crítica a si mesma, visando
não separar a reflexão da práxis humana.

V) Fenomenologia e Ensino

Cabe agora levantar a seguinte questão: Como se aplica o método


fenomenológico numa situação de ensino, em especial, para aqueles que não
são professores de filosofia e cursam o ensino médio? Obiols (2002) irá
propor um modelo de ensino formal, ou seja, independente em princípio de
qualquer corrente filosófica. Nesse modelo Obiols coloca lado a lado o
processo de aprendizagem filosófica e o processo de ensino filosófico. Em
linguagem pedagógica, a aprendizagem filosófica compreende conceitos,
procedimentos e atitudes que desenvolvam a aprendizagem da filosofia e do
filosofar. Por outro lado, o processo de ensino filosófico abrange as seguintes
estratégias didáticas: 1) um início concreto (motivação e colocação do
14

problema filosófico), 2) Desenvolvimento abstrato (discussão do problema e


análise de textos filosóficos e da história da filosofia) e 3) Encerramento
concreto (síntese, aplicação e avaliação). (Cf. OBIOLS, p. 119 e ss).
A nossa proposta é pensar sobre o processo de ensino de Obiols -
especificamente no contexto do ensino médio – em relação com o paradigma
fenomenológico; por esse motivo, nossa análise não vai se deter no processo
de aprendizagem. Vejamos então cada uma dessas estratégias de ensino
para em seguida relacioná-las com o método de reflexão fenomenológica.
O primeiro momento tem como principal objetivo provocar, causar
perplexidade nos alunos em relação ao problema em questão. Assim, o
professor pode utilizar-se de vários recursos onde apareçam o problema, tais
como: historietas, filmes, textos jornalísticos ou de literatura, etc. com a
finalidade de envolver o estudante com o problema.
Já o segundo momento do processo de ensino – o do desenvolvimento – visa
sondar diferentes soluções para o problema proposto. Elas podem ser
buscadas em trechos de textos filosóficos, sem desprezar também a história
da filosofia. Associadas as possíveis soluções, deve aparecer a discussão de
argumentos entre os estudantes, sejam eles apresentados oralmente ou por
meio de rascunhos.
Por fim, o terceiro momento tem por objetivo recapitular e avaliar
conscientemente a aprendizagem. O que se pretende é fazer uma síntese da
aprendizagem com vistas a ponderar sobre novos significados dados à
problemática, assim como sobre novas questões que podem permanecer em
aberto.
Os três momentos não estão completamente separados e devem ser vistos
dentro do processo de ensino como um todo. Além disso, o modelo de Obiols
é emancipatório, e o próprio autor afirma isso. Mas, qual o sujeito que se
pretende emancipar? Certamente não deve ser aquele sujeito do iluminismo,
supra-histórico afastado do cotidiano das vivências, e conseqüentemente
sendo incapaz de se evidenciar. Ele necessariamente deve ser um sujeito
15

concreto, estar envolvido nesse mundo sedimentado das tradições, mas não
se afastar desse mundo, senão – durante o processo reflexivo – voltar-se
constantemente a ele para compreendê-lo e se compreender melhor, pois é
no ato de reflexão que o sujeito pode se ver livre. E essa reflexão deve
apresentar a si mesma, em carne e osso, o objeto refletido, e não por meio
da busca de uma causa exterior que não pode ser evidenciada. Tal é a
proposta da fenomenologia husserliana.
Para adaptá-la ao modelo do processo de ensino de Obiols, devemos em
primeiro lugar nos preocupar com a terminologia. Devemos não utilizar o
termo que qualifica como “abstrato” o segundo momento do processo que é
o do desenvolvimento, na medida em que a atividade filosófica em
fenomenologia é toda ela concreta. Expliquemos: a abstração é um termo
que, em fenomenologia, pressupõe a construção de uma tese que se
fundamenta na tese da existência do mundo preconcebida, isto é, na atitude
natural; por esse motivo, em vez de desenvolvimento abstrato, utilizaremos
o termo desenvolvimento reflexivo. Ressalva feita, o modelo de Obiols
transposto para o processo de atividade reflexiva fenomenológica seria o
seguinte:

1) Etapa de motivação e colocação do problema: fenomenologicamente


devemos partir das vivências elas mesmas. Assim, para motivar o
problema devemos, não só fazer uso dos recursos acima citados, como
também partir das próprias vivências dos alunos. Neste contexto, é
imprescindível a relação de textos, filmes, entre outros, com as vivências
dos alunos. Para retomar um exemplo já citado, se o objeto de discussão
é o conceito de Democracia, não basta somente buscar modelos em
jornais, na literatura ou em obras cinematográficas, mas sim na própria
vida do sujeito. As vivências não só poderiam ser procuradas em relação
do individuo com a cidade, o estado ou com o país, mas até mesmo num
âmbito mais restrito do cotidiano, como quando uma mãe pergunta a seus
16

filhos o que eles gostariam para o café da manhã, ou quando um


professor pergunta aos alunos como esses pretendem ser avaliados.
2) Desenvolvimento reflexivo: a reflexão começa quando colocamos entre
parênteses as crenças estabelecidas sobre o objeto de discussão e
começamos a analisar o que há de comum naquelas vivências tidas por
nós. Uma vez obtida a unidade de nosso objeto, basta variarmos na
imaginação para descobrir o eidos, o incondicionado donde as vivências
ganham os seus sentido. O colocar entre parênteses, assim como a
intuição eidética, necessariamente são feitas em primeira pessoa, isso não
quer dizer que não se possa compartilhar os resultados. Ao contrário, a
interação deve ser estimulada para que a reflexão se torne mais rica, seja
essa interação feita com outros alunos e com o professor, seja ela feita,
por meio de textos, com os filósofos. Retomando o exemplo acima sem
nos estendermos, quando suspendemos as teses do senso comum sobre a
democracia, que estão assentadas sobre a atitude natural, e dirigirmos
nossa atenção apenas para os casos em se vive ela intencionalmente,
podemos notar uma unidade invariável nas vivências, a saber, “que é um
tipo de governo onde o cidadão exerce o poder”, “que implica liberdade”,
“que implica conflito de interesses”, etc. Em seguida, ao variarmos em
livre fantasia essas situações em que se vive democraticamente,
poderemos complementar o sentido da democracia por meio da visão de
essência. Frisamos novamente, que esse eidos não é definitivo, mas que
está aberto ao aprofundamento.
3) A etapa de avaliação corresponde a retomada das outras duas. O objetivo
é fazer com que o sujeito perceba o quanto ele se emancipou da
autoridade da tradição e o quanto significativo se tornou o objeto que
antes era irrefletido.
17

VI) Últimas palavras:

Portanto, a reflexão fenomenológica de Husserl foi uma das primeiras a


empreender uma solução para a problemática do sujeito moderno. No
entanto, não se pode dizer que ela deu uma resposta peremptória, pois não
é a sua proposta, e muito menos de qualquer pensamento que pretende ser
filosófico e não incidir em dogmatismo ou em ceticismo.
Com efeito, o professor de filosofia que pretenda emancipar os seus alunos
dos preconceitos da tradição, antes deve estar envolvido com a problemática
filosófica e se perguntar se realmente é possível emancipar-se destes
preconceitos, e de que maneira. A sua relação com a reflexão filosófica e
com os problemas, e com pensadores de sua predileção, influenciam direta
ou indiretamente o seu modo de ensinar filosofia. E é importante que a
reflexão filosófica do docente não esteja dissociada de sua prática de ensino,
uma vez que esse outro a quem dirigimos o nosso discurso, inevitavelmente
também nos motiva a lançar luz numa nova perspectiva, aprofundando o
nosso conhecimento filosófico.

Referências Bibliográficas

DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado


Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Trad. Déborah Danowski. São


Paulo, Editora UNESP, 2001.

HUSSERL, Edmund. Ideas Relativas a una fenomenología pura y una filosofía


fenomenológica. Trad. José Gaos. Mexico, Fondo de Cultura, 1949.

___________. El artículo “fenomenologia” de la enciclopédia británica. In:


Invitación a la fenomenologia, Barcelona, 1992.

___________. A Crise da Humanidade européia e a Fenomenologia. Trad.


Urbano Zilles. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.
18

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa, PO: Nova Cultura, 1987.

LYOTARD, J. F., A fenomenologia, São Paulo, ED. Difusão Européia do Livro,


1967.
MERLEAU-PONTY, M. Ciências do Homem e Fenomenologia. Trad. Salma
Tannus Muchail. São Paulo: Saraiva, sd.

OBIOLS, Guillermo. Uma Introdução ao Ensino da Filosofia. Trad. Silvio Gallo.


Ijuí: Ed. Unijuí, 2002

SAN MARTIN, Javier. La fenomenología de Husserl como utopía de la razón.


Barcelona: Anthropos, 1987.

Você também pode gostar