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CENA Há Vagas para Moças de Fino Trato de
CENA Há Vagas para Moças de Fino Trato de
Primeiro Quadro
Gertrudes acaba de chegar e fala com Lúcia que dorme, completamente envolvida por
colchas e cobertores. Inicialmente, tem-se a impressão de que Gertrudes fala sozinha. Ë
noite.
Gertrudes Estava aflita para voltar pra casa porque você podia estar precisando de
mim, não é? (pausa) É ótimo que descanse, está abatida. Mas vai se
recuperar logo, com repouso, boa alimentação (pausa) Não entendo
porque esse médico não receita nada . Gosto de conversar com você é
quando estamos sozinhas. Se aquela outra está em casa, entra na conversa
e só dá palpite errado.(pausa) Eu acho que está com inveja porque tenho
me dedicado mais a você. Mas também, ela me tratando com casca e
tudo, e você doente!(pausa) Ela é ciumenta. Fica fazendo veneno. Não é
fofoca, não. Falo porque conheço . Não ouça o que ela diz.(pausa) Você
deve estranhar porque sou mais dedicada a você, não é? (pausa)A outra
está com raiva de mim, Não notou como está diferente? Superior,
orgulhosa, vive empinada!(enfática) Educadíssima! (pausa) Tudo isso é
só pra me ofender.(fala imitando exageradamente) Quer um pouco de
chá? (silêncio) Com um biscoitinho.(silêncio) Ontem você não almoçou e
à noite, só tomou o chá que fiz. Eu estava falando daquela outra, que eu
conheço bem. Sabe que ela já foi boa e educada? Antes se notava
alguma coisa diferente em mim, um olhar que estranhasse, vinha
sorrindo, sentava no meu colo, enlaçava meu pescoço e, como quem não
quer nada, começava a perguntar, carinhosa, querendo saber de tudo. No
fundo ela é carinhosa. Mas ela volta às boas. Agora, está metida e
grosseira, mas de repente, me surpreende com um gesto delicado.
Lúcia Os dois monstros! Vieram os dois dessa vez! Vamos sair daqui!
Lúcia (refugiando-se no canto)- Eles estão pela casa. Vamos sair logo.
Lúcia (virando-se para o canto)- Eram eles, outra vez. Querem me levar à força.
Estão me perseguindo.
Lúcia O demônio tem lodo nos dentes e fica roçando a gente, rindo com lodo
nos dentes.
Gertrudes Essas coisas não existem. Sua mãezinha está aqui com você, fica
tranquila, já passou...
Lúcia Oh, meu Deus, por que logo comigo acontece isso?
Lúcia Quando é que eles vão sumir pra sempre? Eu preciso de sossego pra
dormir.
Lúcia (quase que para si mesma, mas de modo que Gertrudes ouça) Será que
estou enlouquecendo?
Lúcia A pessoa começa vendo monstros nos sonhos, depois quando está entre
dormindo e acordada, eles se aproximam de mansinho, e já não são mais
grotescos. Um encontro, outro encontro, até que um dia, com sol quente,
surge uma amiga de infância, toda deformada, o rosto macilento, os olhos
esbugalhados e lôdo nos dentes. A pessoa é fraca pra voltar atrás e,
talvez, nem queira. Ela já está louca. (silêncio)
Gertrudes Estava contando uma história, de quem mesmo? Ou era filme? Não sei,
esqueci. Sei que falava com você e você estava longe, quer dizer, estava
dormindo.
Lúcia (bruscamente) Eu não estou louca. Não. Estou lúcida. Muito lúcida. Eu
não posso estar louca. Eu reconheço meu mundo. Sei identificar as
coisas.(levanta-se e começa a tocar em cada objeto que menciona) Isto é
uma cama. (pede com o olhar a confirmação de Gertrudes)
Lúcia Um pano.
Gertrudes Cabelo.
Lúcia Mão .
Gertrudes É.
Lúcia (veemente) Minha mão. Isso é minha mão. É ou não é minha mão?
Responde!
Lúcia O chão
Gertrudes O chão.
Gertrudes (levantando-se bruscamente) Pára com isso, Lúcia. Que bobagem é essa?
(entra na cozinha) Claro que você sabe que pano é pano, que mão é mão,
que chão é chão.
Gertrudes (vindo da cozinha, com chá e biscoitos) Olha o chazinho gostoso que a
mamãezinha fez só pra você. E biscoitinhos pra ficar forte.
Gertrudes No fim de semana, vamos passear no parque, de manhã, pra apanhar sol.
Distrai e...
Gertrudes Acho estranho o tratamento desse médico. Não receita nem um vidro de
remédio. Nada. Você precisa de vitaminas para abrir o apetite e de algum
calmante para dormir bem. Devia aproveitar esses dias para se fortalecer.
O médico deu mais licença?(silêncio.Gertrudes põe o chá e os biscoitos
sobre a mesa) Esses quinze dias passaram depressa.(aproximando-se de
Lúcia) Pensei que a gente ia ficar mais tempo juntas. Queria aproveitar
sua doença para ficarmos mais amigas. Quer dizer, você ia ficar esses
dias sem trabalhar, achei que seria uma oportunidade da gente se
entender melhor. Mas passou tão rápido...
Gertrudes Lúcia, meu bem, me desculpa por ficar insistindo tanto.(do lado de fora,
um cachorro geme e arranha a porta) Eu fico preocupada. Quero o seu
bem. Eu gosto muito de você. Você é a minha filhinha do coração.
( acaricia os cabelos de Lúcia) Gosto de fazer carinho em você. Muito
carinho.(envolve Lúcia com os braços) Me abraça.( Lúcia a abraça)
Assim...linda...eu te adoro...(o gemido do cachorro aumenta) Esse vira -
lata está solto outra vez.(levanta-se irritada)
Gertrudes Não.
Lúcia (agachada junto à porta) Ele é mansinho, não entende nada do que você
diz.
Gertrudes Entende sim. Animal se educa. Cachorro é feito gente. Esse barrigudo é
que só ensina ele se abraçar com travesseiros e outras indecências. Tenho
ódio desse homem, falei com o síndico que tem cachorro no prédio, pra
ele mandar sumir com esse bicho, porque é proibido ter cachorro no
prédio, mas essa praga continua aí. Não sei pra que é que existe
regulamento?! E agora, o gordo sem - vergonha vive me perseguindo, pra
se vingar. Se cruza comigo no corredor, dá uma risadona escandalosa,
sem motivo nenhum. Fica me esperando nas esquinas pra rir na minha
cara. Tudo por causa desse vira - lata. Às vezes, só ouço a risada obscena,
mas sei que o barrigudo está em algum canto, me olhando com
indescência.
Lúcia Desistiu. Hoje não te incomoda mais. (silêncio. Lúcia volta a deitar-se.
Súbito, entra Madalena)