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Há vagas para moças de fino trato de: Alcione Araujo

Primeiro Quadro

Gertrudes acaba de chegar e fala com Lúcia que dorme, completamente envolvida por
colchas e cobertores. Inicialmente, tem-se a impressão de que Gertrudes fala sozinha. Ë
noite.

Gertrudes Estava aflita para voltar pra casa porque você podia estar precisando de
mim, não é? (pausa) É ótimo que descanse, está abatida. Mas vai se
recuperar logo, com repouso, boa alimentação (pausa) Não entendo
porque esse médico não receita nada . Gosto de conversar com você é
quando estamos sozinhas. Se aquela outra está em casa, entra na conversa
e só dá palpite errado.(pausa) Eu acho que está com inveja porque tenho
me dedicado mais a você. Mas também, ela me tratando com casca e
tudo, e você doente!(pausa) Ela é ciumenta. Fica fazendo veneno. Não é
fofoca, não. Falo porque conheço . Não ouça o que ela diz.(pausa) Você
deve estranhar porque sou mais dedicada a você, não é? (pausa)A outra
está com raiva de mim, Não notou como está diferente? Superior,
orgulhosa, vive empinada!(enfática) Educadíssima! (pausa) Tudo isso é
só pra me ofender.(fala imitando exageradamente) Quer um pouco de
chá? (silêncio) Com um biscoitinho.(silêncio) Ontem você não almoçou e
à noite, só tomou o chá que fiz. Eu estava falando daquela outra, que eu
conheço bem. Sabe que ela já foi boa e educada? Antes se notava
alguma coisa diferente em mim, um olhar que estranhasse, vinha
sorrindo, sentava no meu colo, enlaçava meu pescoço e, como quem não
quer nada, começava a perguntar, carinhosa, querendo saber de tudo. No
fundo ela é carinhosa. Mas ela volta às boas. Agora, está metida e
grosseira, mas de repente, me surpreende com um gesto delicado.

Lúcia ( Acordando subitamente e pulando da cama com um grito alto)-Aiii! O


fantasma! É ele! Voltou, o desgraçado!

Gertrudes O que foi, Lúcia, não grite!

Lúcia Os dois monstros! Vieram os dois dessa vez! Vamos sair daqui!

Gertrudes Não precisa sair. Não tem ninguém aqui!

Lúcia (refugiando-se no canto)- Eles estão pela casa. Vamos sair logo.

Gertrudes (caminhando para Lúcia, tranquilizando-a)- Não grite, Lúcia. Não há


ninguém, pode olhar...

Lúcia (virando-se para o canto)- Eram eles, outra vez. Querem me levar à força.
Estão me perseguindo.

Gertrudes Vem cá, vem. Eu protejo você, Lúcia. Confie em mim.


Lúcia Era o demônio elétrico e a velha cabeluda de quatro mãos. Eles agora
vêm juntos. Os dois. Querem me levar. Ai, que horror! Me ajuda!

Gertrudes Acalme-se, Lúcia. Foi um sonho. Isso não existe.

Lúcia O demônio tem lodo nos dentes e fica roçando a gente, rindo com lodo
nos dentes.

Gertrudes (abraçando Lúcia)- Abraça sua mãezinha.

Lúcia (acalmando-se)- A velha tem braços enormes e pega a gente com as


quatro mãos. É horrível! Ela tem cabelo no corpo todo.

Gertrudes Essas coisas não existem. Sua mãezinha está aqui com você, fica
tranquila, já passou...

Lúcia Oh, meu Deus, por que logo comigo acontece isso?

Gertrudes Você fica ouvindo as histórias malucas daquela outra e se impressiona.


Eu já falei com você: não ouça o que ela diz. Essas coisas não existem.
Quando está acordada, em consciência, você já viu algum demônio
elétrico e vermelho ou sei lá que cor seja, que põe fogo nas pessoas? Já
viu? Nunca! Acordada, você nunca viu nada disso. Já viu, andando pela
cidade, alguém com quatro mãos querendo segurar as pessoas? Também
não viu. Na vida, esses fantasmas não existem.

Lúcia Eu tenho medo.

Gertrudes Esquece isso, filhinha, e me aperte bem. Foi só um sonho. Acabou.

Lúcia Quando é que eles vão sumir pra sempre? Eu preciso de sossego pra
dormir.

Gertrudes (levando Lúcia para a cama carinhosamente) Fica tranquila e deita de


novo. Estou aqui com você e não há nenhum demônio.

Lúcia (deitada e com o olhar vagueando) Cada um me puxava para um lado.


Ele tem muita força e onde encosta, queima a gente. Fica tentando me
beijar e rindo, com lôdo nos dentes. Lôdo verde escuro. Ele fala coisas
que eu não entendo e fica me olhando com um olho vesgo, enorme, na
cara cabeluda. Parece um polvo, com as quatro mãos apertando meu
corpo.

Gertrudes Acalme-se, Lúcia, já foram embora. (noutro tom)Vou trazer o chá.


(levantado-se e dirigindo-se à cozinha) Precisa se fortalecer. Se a gente
está fraca, os fantasmas e as tentações tomam conta. Eu entendo. É
preciso estar forte para reagir. Deve manter o pensamento positivo e se
lembrar de pessoas amigas, de alegria sadia. Não deixe que essas visões
tomem conta de você.
Lúcia O pior é que eles vão voltar. Sinto que não me dar sossego. Eu
enlouqueço com esses monstros.

Gertrudes (vindo da cozinha, onde deixou a água fervendo) Você toma um


pouquinho de chá, se eu lhe der, não toma? Heim? Chazinho com
biscoitos? Eu estava falando com você, você dormiu, eu nem vi e
continuei a falar sozinha.(ri)

Lúcia (quase que para si mesma, mas de modo que Gertrudes ouça) Será que
estou enlouquecendo?

Gertrudes ( aproximando-se da cama de Lúcia) Lúcia, minha filha.

Lúcia É assim que se enlouquece?

Gertrudes Lúcia, meu bem, não pense nisso.

Lúcia A pessoa começa vendo monstros nos sonhos, depois quando está entre
dormindo e acordada, eles se aproximam de mansinho, e já não são mais
grotescos. Um encontro, outro encontro, até que um dia, com sol quente,
surge uma amiga de infância, toda deformada, o rosto macilento, os olhos
esbugalhados e lôdo nos dentes. A pessoa é fraca pra voltar atrás e,
talvez, nem queira. Ela já está louca. (silêncio)

Gertrudes Estava contando uma história, de quem mesmo? Ou era filme? Não sei,
esqueci. Sei que falava com você e você estava longe, quer dizer, estava
dormindo.

Lúcia Acho que é assim que se enlouquece.

Gertrudes (acariciando-lhe os cabelos) Lúcia, meu anjo.

Lúcia (bruscamente) Eu não estou louca. Não. Estou lúcida. Muito lúcida. Eu
não posso estar louca. Eu reconheço meu mundo. Sei identificar as
coisas.(levanta-se e começa a tocar em cada objeto que menciona) Isto é
uma cama. (pede com o olhar a confirmação de Gertrudes)

Gertrudes Sim, Lúcia, uma cama.

Lúcia Um pano.

Gertrudes Claro, pano.

Lúcia Meu cabelo.

Gertrudes Cabelo.

Lúcia Mão .
Gertrudes É.

Lúcia (veemente) Minha mão. Isso é minha mão. É ou não é minha mão?
Responde!

Gertrudes Claro, meu bem, sua mão.

Lúcia O chão

Gertrudes O chão.

Lúcia Seu nariz.

Gertrudes (levantando-se bruscamente) Pára com isso, Lúcia. Que bobagem é essa?
(entra na cozinha) Claro que você sabe que pano é pano, que mão é mão,
que chão é chão.

Lúcia Eu sei que sei. Já provei que sei.

Gertrudes (vindo da cozinha, com chá e biscoitos) Olha o chazinho gostoso que a
mamãezinha fez só pra você. E biscoitinhos pra ficar forte.

Lúcia Não quero (pausa, Gertrudes fica de pé com o chá e os boiscoitos na


mão)

Gertrudes No fim de semana, vamos passear no parque, de manhã, pra apanhar sol.
Distrai e...

Lúcia (cortando) Não vou (pausa)

Gertrudes Acho estranho o tratamento desse médico. Não receita nem um vidro de
remédio. Nada. Você precisa de vitaminas para abrir o apetite e de algum
calmante para dormir bem. Devia aproveitar esses dias para se fortalecer.
O médico deu mais licença?(silêncio.Gertrudes põe o chá e os biscoitos
sobre a mesa) Esses quinze dias passaram depressa.(aproximando-se de
Lúcia) Pensei que a gente ia ficar mais tempo juntas. Queria aproveitar
sua doença para ficarmos mais amigas. Quer dizer, você ia ficar esses
dias sem trabalhar, achei que seria uma oportunidade da gente se
entender melhor. Mas passou tão rápido...

Lúcia Madalena podia chegar logo.(silêncio)

Gertrudes Quer ouvir música?

Lúcia Se quizer, pode ouvir, não me incomoda. (silêncio. Gertrudes interrompe


o movimento de ligar a eletrola)

Gertrudes Falo muito, não é? Devo incomodar você.

Lúcia Pode falar à vontade, não me incomoda. (silêncio)


Gertrudes (diante da mesa) Toma o chazinho.

Lúcia Obrigada, não estou com vontade.

Gertrudes Lúcia, meu bem, me desculpa por ficar insistindo tanto.(do lado de fora,
um cachorro geme e arranha a porta) Eu fico preocupada. Quero o seu
bem. Eu gosto muito de você. Você é a minha filhinha do coração.
( acaricia os cabelos de Lúcia) Gosto de fazer carinho em você. Muito
carinho.(envolve Lúcia com os braços) Me abraça.( Lúcia a abraça)
Assim...linda...eu te adoro...(o gemido do cachorro aumenta) Esse vira -
lata está solto outra vez.(levanta-se irritada)

Lúcia Deixa o bichinho entrar.

Gertrudes Não.

Lúcia Não entendo porque tanta raiva.

Gertrudes É um cachorro indecente. Como o dono, esse gordo aí do lado. (Lúcia


levanta-se e vai até à porta) Se você abrir essa porta, ele entra e essa casa
vira um inferno. Não quero esse cachorro aqui. Não abra essa porta,
Lúcia.

Lúcia (agachada junto à porta) Ele é mansinho, não entende nada do que você
diz.

Gertrudes Entende sim. Animal se educa. Cachorro é feito gente. Esse barrigudo é
que só ensina ele se abraçar com travesseiros e outras indecências. Tenho
ódio desse homem, falei com o síndico que tem cachorro no prédio, pra
ele mandar sumir com esse bicho, porque é proibido ter cachorro no
prédio, mas essa praga continua aí. Não sei pra que é que existe
regulamento?! E agora, o gordo sem - vergonha vive me perseguindo, pra
se vingar. Se cruza comigo no corredor, dá uma risadona escandalosa,
sem motivo nenhum. Fica me esperando nas esquinas pra rir na minha
cara. Tudo por causa desse vira - lata. Às vezes, só ouço a risada obscena,
mas sei que o barrigudo está em algum canto, me olhando com
indescência.

Lúcia Um animal não pode ser indecente.(cessam os ruídos do cachorro)

Gertrudes O que ele fez aqui é um desrespeito. Um insulto!

Lúcia Desistiu. Hoje não te incomoda mais. (silêncio. Lúcia volta a deitar-se.
Súbito, entra Madalena)

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