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Mediação

um novo olhar sobre o conflito

Lia Beatriz Torraca


Patrícia Carvão
Luciana Direito
(Organizadoras)
Mediação
um novo olhar sobre o conflito
Conselho Editorial Técnico-Científico Mares Editores e Selos Editoriais:
Renato Martins e Silva (Editor-chefe)
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Mediação
um novo olhar sobre o conflito

1ª Edição

Lia Beatriz Torraca


Patrícia Carvão
Luciana Direito
(Organizadoras)

Cabo Frio
Mares Editores
2016
Copyright © da editora, 2016.

Capa e Editoração
Mares Editores

Dados Internacionais de Catalogação (CIP)

Mediação: um novo olhar sobre o conflito/ Lia


Beatriz Torraca; Patrícia Carvão, Luciana Direito
(Organizadoras). – Cabo Frio: Mares, 2016.
165 p.
ISBN 978-85-5927-021-1
1. Resoluções de Conflitos. 2. Mediação. I. Título.

CDD 303.69
CDU 347

2016
Todos os direitos desta edição reservados à
Mares Editores
Rua das Pacas, s/n. Qd 51/Lt 2431. Nova Califórnia.
CEP 28927-530. Cabo Frio, RJ.
Contato: mareseditores@gmail.com
Sumário

Apresentação .................................................................................. 9

A importância da mediação como forma de se rever o processo

judicial brasileiro .......................................................................... 14

Conflito na modernidade: um regresso ao paradigma

aristotélico .................................................................................... 48

Mediação em contratos administrativos e o limite do patrimônio

disponível...................................................................................... 71

Justiça Restaurativa nos Juizados Especiais Criminais................ 117

Sobre os autores ......................................................................... 163


Apresentação

Esta coletânea foi pensada a partir do workshop


"Mediação: um olhar sobre o conflito", ministrado pelo
Grupo de Mediação e Resolução de Conflito do Ministério
Público do Estado Rio de Janeiro, em parceria com o
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, em 02 de junho de 2016, no
Auditório Alfredo Valadão, localizado na Faculdade Nacional
de Direito.
O Workshop foi liderado pela Procuradora de Justiça
e Coordenadora do GMRSC, Anna Maria Di Masi, contando
com participação da Procuradora de Justiça, Patrícia Leite
Carvão e da Promotora de Justiça, Luciana Direito, sob a
coordenação da doutoranda Lia Beatriz Torraca, do PPGD-
UFRJ
Naquela oportunidade percebemos o significativo
interesse pela Mediação, especialmente ante ao
protagonismo garantido através do novo Código de Processo
Civil Brasileiro. Considerando a relevância do tema e o
entusiasmado feedback da audiência do workshop,

-9-
decidimos organizar esta coletânea. Nossa proposta é refletir
sobre a Mediação como uma nova forma de olhar o conflito,
sob a perspectiva do direito. Através da Mediação, é possível
aperfeiçoarmos estratégias de prevenção de conflitos,
construindo bases para uma sociedade mais saudável e
menos belicosa. A Mediação é uma saída para a tendência de
judicialização da vida, oferecendo-nos alternativas para
resolvermos nossos problemas, ao invés de multiplicá-los.
Este livro demonstra a amplitude do tema proposto,
sem que tenhamos a pretensão de esgotá-lo, nem apresentar
reflexões incontestáveis. Pelo contrário, acreditamos que os
quatro capítulos instigarão o leitor a mergulhar no universo
da Mediação e as inúmeras possibilidades de pensar o
direito, e o próprio conflito.
O primeiro capítulo, intitulado “A importância da
mediação como forma de se rever o processo judicial
brasileiro”, escrito pelo Doutor em Direito, Luís Henrique
Bortolai, propõe uma leitura diferenciada acerca da
Mediação no sistema brasileiro, ressaltando sua capacidade
de interdisciplinaridade e a importância para a construção de
uma sociedade apta a modificar seus pontos de partida. O

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autor busca pensar a função do processo sob a perspectiva
das partes, estabelecida numa nova linguagem, aproximada
da sociedade e suas demandas. O trabalho de Bortolai faz um
diagnóstico da origem dos conflitos e apresenta propostas
para mudar a cultura do brasileiro com relação à resolução
dos litígios. O caminho é a educação!
O segundo capítulo, “Conflito na modernidade: um
regresso ao paradigma aristotélico”, é uma incursão no
universo da filosofia. O convite do Mestrando Cristiano
Aparecido Quinaia é retomarmos o paradigma aristotélico
para investigar o conflito na modernidade. O intuito do autor
é desvendar a representação do direito de um instrumento
processual que foi criado para solucionar conflitos. Quinaia
reflete sobre a própria escolha do legislador para a previsão
da mediação vinculada à transcendência do conceito de
justiça, fazendo-nos refletir sobre o próprio conflito.
Lara Caxico Martins Miranda analisa o limite para a
utilização da arbitragem em contratos administrativos, como
sugere o título do terceiro capítulo, qual seja, “Mediação em
contratos administrativos e o limite do patrimônio
disponíveis”. A autora propõe a verificação da aplicação da

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mediação em contratos administrativos e existência de
equiparação dos limites impostos para o uso da arbitragem.
Para verificar as mudanças trazidas pela administração
pública gerencial aos negócios jurídicos públicos e a
possibilidade de resolução de conflitos extrajudicialmente,
como mecanismo de promoção de eficiência e técnica no
serviço público, Miranda retoma a análise da administração
pública gerencial proposta por Luiz Carlos Bresser Pereira,
como também, o conceito de regime jurídico administrativo
proposto por Celso Antônio Bandeira de Mello, além de
investigar o conceito dos negócios jurídicos administrativos,
sob a ótica de Edmir Netto Araújo, e o conceito de arbitragem
e contratos da Administração Pública, desenvolvido por
Eugênia Cristina Cleto Marolla.
O último capítulo, a autora Juliana Kobata Chinen nos
instiga a refletir sobre a adoção da justiça restaurativa no
âmbito dos Juizados Especiais Criminais. Esta técnica de
Mediação é apresentada a partir de duas perspectivas
conceituais e suas especificidades. A autora discorre sobre a
dinâmica dos Juizados Especiais Criminais e propõe algumas
problematizações para, assim, chegar ao conceito da justiça

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restaurativa e as discussões em torno da
(in)compartibilidade do modelo restaurativo com a Lei nº
9.099/95. A autora conclui que, embora haja críticas
pertinentes acerca da Lei no 9.099/95, o modelo restaurativo
demonstra contribuir para o aprimoramento da gestão
consensual de conflitos e da pacificação social.
Desejamos que estas reflexões possam despertar o
interesse do público em geral sobre a Mediação, além de
provocar novas discussões, a difusão e o aprofundamento
desta temática.

Boa leitura!

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A importância da mediação como forma de
se rever o processo judicial brasileiro

Luís Henrique Bortolai1

Relevante destacar, nesse início de apresentação,


que o Novo Código de Processo Civil, Lei n. 13.105/15, deixa
claro, no seu artigo 3º, parágrafo terceiro, que: “A
conciliação, a mediação e outros métodos de solução
consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes,
advogados, defensores públicos e membros do Ministério
Público, inclusive no curso do processo judicial”. (BRASIL,
2015) Assim, a formação clássica, beligerante, dos cursos de
Direito, está sendo deixada em segundo plano, de modo a
tentar aproveitar a utilização dos então chamados "meios
alternativos de solução de conflitos", ainda mais com a
entrada em vigor do novo diploma processual, no qual se

1
Doutor em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito – FADISP.
Advogado. Professor universitário na De Vry / Metrocamp em
Campinas/SP.

- 14 -
valoriza a participação mais efetiva das partes na resolução
dos litígios, deixando em segundo plano o protagonismo
quase exclusivo dos patronos.
Os métodos alternativos de solução de conflitos
existem desde os tempos antigos, em várias culturas,
identificando a utilização da mediação, de forma constante e
variável, usando uma fonte religiosa, como por exemplo a
Bíblia, para promover tal método. Ainda assim é viável
cogitar que ela exista mesmo antes da história escrita,
sobretudo num contexto mais amplo, em que um terceiro
imparcial servia a diversas funções. Como por exemplo, na
China e no Japão, ainda que de forma primária, já havia um
método de resolução de conflitos, (e não um meio
alternativo à luta ou a intervenções contenciosas), haja vista
que o ganhar ou perder não era aceitável nessas culturas.
(FALECK, 2015, p. 04)
Daí a importância dos meios diferenciados para a
solução de conflitos. Quando da participação das partes na
solução das demandas, pela opinião e vontade dessas, como
por meios alternativos de resolução de conflitos, tão
exaltados no Código de Processo Civil de 2015. Mostra-se,

- 15 -
portanto, inevitável repensar se realmente um terceiro
tomando uma decisão seria a única via possível. Maria Lúcia
Karam afirma que:

[...] permitindo uma participação mais livre e


mais ativa das partes diretamente envolvidas,
com a intermediação de pessoas que,
integrando a comunidade, lhes sejam
psicologicamente mais próximas, as vias
alternativas de conciliação podem permitir um
exame das causas mais profundas do conflito
enfrentado. Trabalhando, além disso, com o
entendimento, a compreensão, o mútuo
desprendimento e a aceitação, as soluções
vindas da conciliação podem contribuir para
uma possível criação ou para o
restabelecimento do relacionamento
solidários, sendo, por isso, apaziguadoras, ao
contrário do que ocorre com soluções impostas
por uma decisão vertical, muitas vezes
incompreensível e que trabalha com a idéia de
vencedores e perdedores. (KARAM, 2002, p.
149-150)

Nos Estados Unidos, por exemplo, onde houve a


criação do sistema atual dos métodos alternativos, em 1976,
com Frank Sander, após seu discurso relacionado à
insatisfação popular contra a administração da justiça
(LEVIN, 1979, p.111-123). Diante disso, idealizou-se que os

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tribunais estatais não poderiam ter apenas uma “porta” de
recepção de demandas, relacionada ao litígio, mas também
poderiam direcionar casos para uma variedade de outros
processos de resolução de disputas, entre os quais a
mediação, a conciliação e a arbitragem, numa clássica
apresentação das chamadas “multi portas”. Esse evento é
visto por muitos como o “Big Bang” da teoria e prática
moderna da resolução de disputas (FALECK, 2015, p. 07).
Estudiosos norte-americanos afirmam que:

Em geral nós, advogados e professores de


Direito temos sido, de longe, muito cabeça
fechada quando se trata de resolução de
litígios. Claro que, como apontado
anteriormente, bons advogados tentaram
sempre evitar disputas de outras formas, mas
quando isso não era possível, tendemos a
supor que os cortes são as naturais e óbvias
solventes de disputa. Na verdade, há uma rica
variedade de diferentes processos, que, eu
diria, isoladamente ou em combinação, podem
fornecer uma resolução de conflitos muito
mais eficaz. (LEVIN, 1979, p. 118) (Tradução
livre) 2

2
“By and large we lawyers and law teachers have been far too single-
minded when it comes to dispute resolution. Of course, as pointed out
earlier, good lawyers have always tried to prevent disputes from coming
about, but when that was not possible, we have tended to assume that

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Após a consolidação dessas medidas nos Estados
Unidos, resta claro que os demais países que possuíam o
common law seguiram tal exemplo, promovendo e
estudando esses métodos para comportá-los em suas
mecânicas do Direito. Mesmo países de civil law, como o
Brasil, foram igualmente influenciados, cada um a seu passo,
e vem buscando incluir esses métodos diferenciados em seu
ordenamento jurídico.
O Brasil não é exceção e, recentemente, vem
aplicando esses conceitos, principalmente em relação à
mediação e à conciliação, o que tem se provado em sua
pequena gama de casos práticos (se comparado ao número
total de demandas existentes) eficiente e menos lesivo a
qualquer das partes. Tal preceito se confirma com o novo
Código de Processo Civil (BRASIL, 2015), que inclui, de forma
expressa, os métodos alternativos de solução de conflitos,
como a mediação, a conciliação e a, já anteriormente
prevista, arbitragem.

the corts are the natural and obvious dispute resolvers. In point of fact
there is a rich variety of different processes, which, I would submit, singly
or in combination, may provide far more “effective” conflict resolution.”

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Somado a isso, a importância que os CEJUSC’s
(Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania) têm
atualmente, ao possibilitar que as partes compareçam,
espontaneamente para tentarem resolver o conflito, antes
mesmo do ingresso com a ação judicial, numa típica hipótese
de atuação “pré-processual”, tem se mostrado
extremamente útil e eficiente, ao aproximar a população do
Poder Judiciário, de uma maneira mais informal e menos
traumática para todos os envolvidos. A não necessidade de
contratação de um advogado, na maioria dos casos, é um
exemplo disso, ao possibilitar uma redução nos custos que
teria com a demanda.
Inclusive, com a entrada em vigor do Novo Código de
Processo Civil, tais centros se mostraram ainda mais
importantes, de modo a desafogar muitos processos já
existentes, por meio das audiências de conciliação e de
mediação, por intermédio da atuação dos profissionais
habilitados para tal fim.
Relevantíssimo, mais uma vez, deixar claro a
necessidade de repensar muitos dos dispositivos já
existentes no ordenamento pátrio. Rever o que se tem feito,

- 19 -
exatamente para inovar e trazer modificações indispensáveis
ao convívio em sociedade.
Somado a isso, Eduardo Carlos Bianca Bittar afirma
que:

Numa sociedade marcadamente influenciada


pelo ideal do capital (lucro como meta de vida),
pelo valor do material (ter no lugar de ser), pela
dimensão da vantagem pessoal na organização
das relações humanas (retificação das relações
interpessoais), sem dúvida alguma será o
despossuído a nova figura a ser demonizada.
Então, o despossuído será o desviante, por não
ter condição de estar incluído nas múltiplas
dimensões da vida socioeconômica
contemporânea, carecendo de acesso ao
emprego, a condições dignas de vida,
informação e participação nas decisões sociais.
Estar fora do mercado é o decreto suficiente
dado pela sociedade para o princípio do
processo de degradação da pessoa humana,
nisso envolvido seu esquecimento, seu
desprezo, a diminuição da sua liberdade, a
castração de seu acesso a bens etc. Estar fora
do mercado é sinônimo de estar fora da
dimensão de inclusão social e, portanto,
tornar-se um convidado a participar da divisão
do grande bandejão da miséria social, do
refugo do que a própria sociedade é capaz de
produzir, exatamente porque é incapaz de
distribuir adequadamente. (BITTAR, 2004, p.
23)

- 20 -
Para Renato Alberto Teodoro Di Dio,

[...] admitindo-se que o direito fundamental é o


direito à vida, o direito à educação surge com
seu corolário. Com efeito, quando se preserva
a vida, procura-se protegê-la para que seja uma
vida digna, plena, produtiva e feliz. Se assim é,
a educação apresenta-se como condição dessa
dignidade, plenitude, produtividade e
felicidade. Preservar-se a vida sem que, ao
mesmo tempo, se criem condições para que o
indivíduo desenvolva e atualize todas as suas
potencialidades, mais do que um absurdo
lógico, é uma claudicação moral. Manter-se o
indivíduo vivo sem que se lhe garantam as
possibilidades de realizar seus anseios naturais
é assegurar uma expectativa de antemão
frustrada. Mesmo porque o direito à vida não
se cinge à preservação biológica, mas se
estende aos valores psicológicos, sociais,
políticos e morais, que, sem um mínimo de
educação, não chegarão a existir para o ser
humano. (DI DIO, 1982, p. 88)

Deste modo, necessário aproximar a educação do


mundo jurídico. Se o Estado exige que as pessoas tenham
conhecimento das leis, por meio da supremacia do princípio
da legalidade, por que não aproximá-las do quotidiano dos
alunos, ainda em sua fase de formação escolar? Essa é
apenas uma sugestão que pode ser implementada em breve.

- 21 -
Isso facilitaria a situação para ambas as partes, uma vez que
o direito não seria algo tão alheio na vida das pessoas, como
é hoje, restrito a um seleto grupo de intelectuais.
As empresas prestadoras de serviços e vendedoras de
produtos, por exemplo, devem, sempre que necessário, dar
publicidade de casos que requerem recalls. Essas decisões
afetam os consumidores de maneira geral, seja pelo contato
direto com o proprietário do produto ou do serviço, seja para
todas as pessoas, da sociedade, por meio das mídias
existentes. Por isso a importância de trabalhar o direito na
vida dos alunos desde o ensino fundamental. Ao aproximá-
los do direito nessa fase, eles já podem começar a
desenvolver uma noção crítica, que lhes possibilitará uma
formação cidadã mais eficiente.
Para António Menezes Cordeiro, em análise sobre a
realização do direito, é necessário a aplicação do direito de
modo a realmente alcançar o seu objetivo primordial,
materializar o que a lei apresenta. A partir da determinação
da fonte, passando pela interpretação dessa e a real
aplicação do que a lei apresenta, no plano fático, uma vez
que a realidade e a valoração são indispensáveis quando da

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efetiva materialização dos dispositivos. (CORDEIRO, 2007, p.
153)
Ainda segundo António Menezes Cordeiro:

A realização do Direito é unitária. Apenas em


análise abstrata é possível decompô-la em
várias fases que funcionam, tão-só, em
inseparável conjunto. Particularmente focada é
a unidade entre interpretação e aplicação. Mas
há que ir mais longe, tudo está implicado,
desde a localização da fonte à delimitação dos
fatores relevantes; o caso é a parte de um todo
vivo, sendo certo que interpretar é conhecer e
decidir. (CORDEIRO, 1996, p. CIV-CV)

A educação para o consumo, por exemplo, se mostra


presente uma vez que é necessário possibilitar um contato
com um ramo tão relevante com o cotidiano das pessoas, o
direito do consumidor, que precisa ser mais bem
aprofundado, de modo a formar uma consciência crítica nas
pessoas. Diante disso, conceituar o que vem a ser a educação
para o consumo se mostra importante no presente
momento, de modo a possibilitar um desenvolvimento
crítico e responsável nas pessoas, a definir muito bem o
papel de cidadão e de consumidor diante da realidade na
qual estão inseridos socialmente (PÉ NA ESTRADA, 2016).

- 23 -
O PROCON de Porto Alegre, por exemplo, desenvolve
atividades interessantes nesse sentido, com a participação
ativa de alunos das escolas, desvelando o papel que eles
possuem na formação crítica e consciente de todos que estão
no seu entorno.

Desde agosto de 2008, quando o Projeto


Educação para o Consumo foi implementado, o
PROCON Porto Alegre realizou cerca de 205
palestras, qualificando o ensino de 12.302
jovens e crianças matriculados na rede pública
da Capital. Ministradas pelo coordenador de
Relações Institucionais do PROCON Municipal,
a iniciativa complementa o conteúdo de
cidadania abordado no currículo escolar das
escolas de ensino fundamental e médio. As
palestras, dirigidas ao público infantil
alfabetizado, foram instrumentalizadas com a
distribuição da cartilha Pequenos
Consumidores, síntese do CDC para crianças.
Para o público adolescente e alunos do
Programa Educação de Jovens Adultos (ensino
fundamental noturno) da prefeitura, o Procon
entrega os manuais do Consumidor
Consciente. Buscando ensinar os consumidores
e fornecedores do futuro, o conteúdo das
apresentações enfoca os conceitos básicos do
CDC, em uma linguagem simples e de fácil
entendimento. Durante as exposições, são
explicadas definições sobre produtos, serviços,
defeitos, garantias, prazos de validade e como

- 24 -
deve ser a apresentação de rótulos e
embalagens das mercadorias. Os alunos são
instruídos a identificar a prática de propaganda
enganosa e fraudes comuns, além de receber
dicas de como comprar um produto ou
contratar um serviço com a máxima segurança.
O PROCON Porto Alegre entende que a criança
é consumidora desde o nascimento, pois utiliza
produtos ou serviços. Por meio do Projeto
Educação para o Consumo, o Procon busca
informar crianças e jovens para que
desenvolvam o espírito crítico necessário para
evitar o consumo irresponsável e massivo. A
experiência comprova que o conhecimento
assimilado pelas crianças tem efeito
multiplicador com repercussão sobre o grupo
familiar. (PROCON, 2006)

Somado a esse tema, necessário trazer o conceito de


“cultura de paz”, a partir do que a Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO)
define como sendo a promoção da não violência, da
tolerância e da solidariedade na vida das pessoas (BRASIL,
2016). Ou seja,

[...] a Cultura de Paz está intrinsecamente


relacionada à prevenção e à resolução não-
violenta dos conflitos. É uma cultura baseada
em tolerância, solidariedade e
compartilhamento em base cotidiana, uma
cultura que respeita todos os direitos

- 25 -
individuais - o princípio do pluralismo, que
assegura e sustenta a liberdade de opinião - e
que se empenha em prevenir conflitos
resolvendo-os em suas fontes, que englobam
novas ameaças não-militares para a paz e para
a segurança como exclusão, pobreza extrema e
degradação ambiental. A Cultura de Paz
procura resolver os problemas por meio do
diálogo, da negociação e da mediação, de
forma a tornar a guerra e a violência inviáveis.
(BRASIL, 2016)

Nesse cenário, relevante repensar o atual ponto em


que é apresentado o direito nos dias de hoje. Realocar este
ramo de estudo, tão relevante para o presente momento, se
mostra essencial, especialmente se for possível deixá-lo mais
próximo das necessidades das pessoas e orientá-las na busca
pela efetivação de muitas garantias.
Para Leila Dupret,

[...] construir uma cultura da paz envolve dotar


as crianças e os adultos de uma compreensão
dos princípios e respeito pela liberdade, justiça,
democracia, direitos humanos, tolerância,
igualdade e solidariedade. Implica uma
rejeição, individual e coletiva, da violência que
tem sido parte integrante de qualquer
sociedade, em seus mais variados contextos. A
cultura da paz pode ser uma resposta a
diversos tratados, mas tem de procurar

- 26 -
soluções que advenham de dentro da (s)
sociedade (s) e não impostas do exterior. [...]
Uma cultura de paz implica no esforço para
modificar o pensamento e a ação das pessoas
no sentido de promover a paz. Falar de
violência e de como ela nos assola, deixa de ser
a temática principal. Não que ela vá ser
esquecida ou abafada; ela pertence ao nosso
dia-a-dia e temos consciência disto. Porém, o
sentido do discurso, a ideologia que o alimenta,
precisa impregná-lo de palavras e conceitos
que anunciem os valores humanos que
decantam a paz, que lhe proclamam e
promovem. A violência já está bastante
denunciada, e quanto mais falamos dela, mais
lembramos sua existência em nosso meio social
e ambiental. É hora de começarmos a convocar
a presença da paz em nós, entre nós, entre
nações, entre povos. Um dos primeiros passos
neste sentido, refere-se à gestão de conflitos.
Ou seja, prevenir os conflitos potencialmente
violentos e reconstruir a paz e a confiança entre
pessoas emergentes de situação de guerra, é
um dos exemplos mais comuns a serem
considerados. Tal missão estende-se às escolas,
instituições e outros locais de trabalho por todo
o mundo, bem como aos parlamentos e centros
de comunicação, a lares e
associações.(DUPRET, 2002)

Em opinião manifestada de maneira clara, o site


“Polis” afirma que:

- 27 -
Mas é importante ressaltar que a Cultura de
Paz não significa a ausência de conflitos, mas
sim a busca por solucioná-los através do
diálogo, do entendimento e do respeito a
diferença. A Cultura de Paz possui valores que
pretendem humanizar a humanidade, em que
o SER é maior do que o TER. Os movimentos de
Cultura de Paz têm por fontes inspiradoras o
Manifesto 2000 por uma Cultura de Paz e Não-
violência, projetado pelos ganhadores do
prêmio Nobel da Paz, outros documentos
internacionais (Haia, Declaração Universal dos
Direitos Humanos, documentos da Unesco,
Carta das Responsabilidades Humanas, Carta
das Responsabilidade dos Artistas). Toda e
qualquer ação cultural que seja fundamentada
em uma atitude de compreensão é, em si
mesma, um exercício de aceitação da
diversidade cultural. Por isso, a disseminação
dos valores da Cultura de Paz é imprescindível
para que a sociedade possa construir um novo
paradigma de desenvolvimento. A Cultura de
Paz é a alma do reencantamento do mundo,
sem ela não haverá mudanças substanciais,
equilíbrio planetário e mundos poeticamente
habitáveis.(POLIS, 2016)

Portanto, não é uma atuação pontual e momentânea.


É uma participação pública, em prol do bem-esta coletivo, de
uma ampliação do conhecimento dos direitos e deveres. De
acordo com David Adams, a cultura de paz tem como base
oito pilares:

- 28 -
1. Educação para uma cultura de paz; 2.
Tolerância e solidariedade; 3. Participação
democrática; 4. Fluxo de informações; 5.
Desarmamento; 6. Direitos humanos. 7.
Desenvolvimento sustentável; e 8. Igualdade
de gêneros. (ADAMS, 2016, p. 05)

Daí a importância em definir o que vem a ser


cidadania, de modo a relacionar esse importante conceito
com a cultura de paz. Segundo Celso Lafer, cidadania nada
mais é do que o "direito a ter direitos" (LAFER, 2003, p.09).
Para Eduardo Carlos Bianca Bittar,

[...] a ampliação dos horizontes conceituais da


ideia de cidadania faz postular, sob este
invólucro, a definição de uma realidade de
efetivo alcance de direitos materializados no
plano do exercício de diversos aspectos da
participação na justiça social, de reais práticas
de igualdade, no envolvimento com os
processos de construção do espaço político, do
direito de ter voz e de ser ouvido, de satisfação
de condições necessárias ao desenvolvimento
humano, de atendimento a prioridades e
exigências. (BITTAR, 2004, p. 10-11)

Já para Jorge Miranda,

[...] a cidadania apresenta-se como um "status"


e apresenta-se, simultaneamente, como

- 29 -
objecto de um direito fundamental das
pessoas. Num mundo que se reparte por
Estados, particular num Estado é particular na
vida jurídica e política que ele propicia e
beneficiar da defesa e da promoção de direitos
que ele concede [...]. (MIRANDA, 2011, p.91-
92)

Para José Murilo de Carvalho, essa impulsão social é


fundamental para o próprio desenvolvimento da nação,
quando o nível educacional do país é alto, especialmente
quando se fala dos direitos sociais, civis e políticos (DE
CARVALHO, 2003, p.11).
Anna Candida da Cunha Ferraz afirma, fazendo
menção à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
que: "A ignorância quase generalizada com relação a tais
direitos tem levado a uma situação de alienação desastrosa
e desanimadora tanto no que diz respeito à proteção dos
direitos fundamentais [...]" (FERRAZ, 2013, p.94).
Diante do cenário brasileiro de insegurança e
incerteza, conhecer os direitos e os deveres, enfim viver a
cidadania se faz significativa. Nas palavras de Paulo
Bonavides,

- 30 -
[...] o conceito contemporâneo de cidadania se
estendeu em direção a uma perspectiva na qual
cidadão não é apenas aquele que vota, mas
aquela pessoa que tem meios para exercer o
voto de forma consciente e participativa.
Portanto, cidadania é a condição de acesso aos
direitos sociais (educação, saúde, segurança,
previdência) e econômicos (salário justo,
emprego) que permite que o cidadão possa
desenvolver todas as suas potencialidades,
incluindo a de participar de forma ativa,
organizada e consciente, da construção da vida
coletiva no Estado democrático. (BONAVIDES,
2009, p.07)

Para Dalmo de Abreu Dallari, ser um cidadão é:

[...] informar e despertar a consciência sobre o


valor da pessoa humana, suas características
essenciais, sua necessidade de convivência e a
obrigação de respeitar a dignidade de todos os
seres humanos, independente de sua condição
social ou de atributos pessoais. (DALLARI, 2004,
p. 42)

Segundo Luciano Nogueira Lucas:

É a partir do conhecimento da lei que pode o


cidadão realizar suas escolhas e antever e
planejar as suas condutas e ações, crente que
os efeitos permitidos pela lei se realizarão. Dito
de outro modo, é a confiança na aplicação da
lei de maneira contrafática que permite aos

- 31 -
cidadãos terem a justa expectativa da criação
dos efeitos jurídicos previstos ou facultados
pelas leis. Ainda que surjam óbices para que
eles se produzam, o sistema jurídico é de tal
forma estruturado, que se permite ao cidadão
lesado que encaminhe sua pretensão ao Poder
Judiciário, que deve aplicar a solução legal ao
caso concreto. (LUCAS, 2014, p. 162)

Dessa forma, a cultura de paz se torna extremamente


relevante ao reaproximar todos de uma situação mais
estável, mesmo que diante de batalhas por maiores
garantias. Fugindo um pouco da ocorrência de disputas e
rivalidades com que muitas vezes se deparam as pessoas em
seu cotidiano, o conhecimento, ainda que mínimo, de noções
básicas do Direito torna-se um auxílio facilitador na vida
delas.
Para Aida Maria Monteiro Silva,

[...] no campo da escola, essa aparece como um


“locus” privilegiado, na medida em que
trabalham com conteúdos, valores, crenças,
atitudes e possibilita o acesso ao conhecimento
sistematizado, historicamente produzido, de
forma que o aluno se aproprie dos significados
dos conteúdos, ultrapassando o senso comum
de maneira crítica e criativa. (SILVA, 2000, p.
19)

- 32 -
Diante disso, é mister repensar o papel das escolas,
especialmente na formação cidadã das pessoas que ali
transitam, de modo a capacitá-las para superar muitas das
dificuldades diárias que enfrentam, a partir de uma formação
diferenciada.
Para Eliane Ferreira de Souza,

[...] no caso do direito à educação, portanto, a


construção de um discurso fortalecedor e
emancipaório parte, inicialmente, da
necessidade de se dar voz aos sujeitos
envolvidos no processo educacional,
rompendo com relações de poder subjacentes.
A conscientização crítica a partir da educação
deve servir a propósitos sociais, como a
emancipação dos sujeitos. Isso porque o
discurso emancipatório nada mais é que o uso
da linguagem paralelamente a outros aspectos
da prática social, de maneira a servir para a
busca de maior liberdade e de respeito para
com todos. (DE SOUZA, 2010, p. 76)

A mediação nas escolas também é uma via muito bem


vista como forma de rever o atual cenário brasileiro. As
escolas estaduais públicas de Campinas, no interior do
estado de São Paulo, têm adotado esta medida, por meio do
projeto "professores mediadores" que atuam na resolução

- 33 -
dos conflitos internos da escola, o que, com certeza, pode
trazer reflexos externos, atingindo a família direta ou
indiretamente, a partir desta nova vertente. (SECRETARIA DE
EDUCAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2016)
Com a entrada em vigor do Novo Código de Processo
Civil, os cursos de Direito têm de readequar as suas grades
curriculares, com um sistema que modifica e muito a
sistemática existente, por exemplo, iniciando os
procedimentos judiciais com a audiência de tentativa de
conciliação e/ou mediação, e não mais fazendo isso numa
fase posterior, como o diploma processual anterior dispunha.
Isso revela a importância que tal momento terá no processo,
bem como na vida dos futuros profissionais da área.
Indispensável introduzir disciplinas relacionadas aos meios
alternativos de solução de conflitos, como a mediação, a
conciliação, a negociação e a arbitragem, de modo a fugir,
ainda que minimamente, do perfil litigioso que os cursos de
graduação em ciências jurídicas e sociais apresentam.
(COUTO, 2013, p. 174)
Para Kazuo Watanabe,

- 34 -
[...] o grande obstáculo, no Brasil, à
utilização mais intensa da conciliação, da
mediação e de outros meios alternativos
de resolução de conflitos, está na
formação acadêmica dos nossos
operadores de Direito, que é voltada,
fundamentalmente, para a solução
contenciosa e adjudicada dos conflitos
de interesses. Vale dizer toda ênfase é
dada à solução dos conflitos por meio de
processo judicial, onde é proferida uma
sentença, que constitui a solução
imperativa dada pelo juiz como
representante dos Estados. É esse o
modelo ensinado em todas as
Faculdades de Direito do Brasil. Quase
nenhuma faculdade oferece aos alunos,
em nível de graduação, disciplinas
voltadas à solução não contenciosa dos
conflitos. (WATANABE, 2008, p.06)

Nas escolas, por exemplo, a utilização de


metodologias diferenciadas, como os meios não impositivos,
tão comuns nos meios alternativos de solução de conflitos,
se mostra uma ótima escolha, uma vez que retira o grau
conflituoso da situação, tentando construir algo que seja
benéfico para todos os participantes. (BURNO, 2012, p. 151-
156)

- 35 -
A relação do Direito com outros ramos do
conhecimento é fundamental para o desenvolvimento de
uma sociedade apta a modificar seus pontos de partida,
apresentando uma nova visão acerca do assunto. Diante
disso:

Uma das principais funções dos cursos jurídicos


é a de formar a representação que os alunos
farão do direito e do lugar que ele ocupa na
vida social e política do país. A seleção de temas
que o espaço universitário opera (o que
ensinar?), a ordem de apresentação que
propõe (quando ensinar?), a relevância relativa
que estabelece entre áreas (quanto e com que
profundidade ensinar diferentes temas?) e a
forma de aferir a efetividade da formação
(como avaliar?) articulam-se para formar um
quadro que evidencia a noção de direito que se
abraça em cada instituição. Essa noção
fundamental, inscrita na estrutura profunda
dos cursos e determinando cada aspecto de sua
lógica de desenvolvimento, será decisiva para
estabelecer a matriz a partir da qual os
estudantes pensarão o direito e articularão sua
prática profissional. No espaço de cada curso,
esse entendimento irá determinar as fronteiras
entre o que é essencial e o que é acessório,
entre autores clássicos e menores, entre textos
obrigatórios e complementares, entre temas
prioritários e secundários, etc. Cada professor,
ao construir seu programa de ensino, deve

- 36 -
forçosamente enfrentar o conjunto de escolhas
e hierarquizações que constitui o recorte
teórico e metodológico que define sua
perspectiva docente. No Brasil, essas escolhas
têm sido mais perceptíveis no campo das
filiações teóricas do que na arena das opções
metodológicas. De fato, a experiência
quotidiana permite encontrar exemplos de
diferença no campo das teorias mestras
adotadas: basta correr os olhos sobre a
bibliografia obrigatória e complementar de
diferentes cursos, em diferentes universidades,
para encontrar algum grau de variação, ainda
que muitas vezes esta seja mais de ênfase que
de corpus. O mesmo não se dá, contudo, no
que diz respeito à metodologia de ensino
adotada. Nesta dimensão, há uma
homogeneidade quase absoluta, como se o
modo de se falar sobre o direito fosse um não
problema, como se fosse uma forma
ideologicamente neutra de se apresentar o
fenômeno jurídico. (GHIRARDI, 2010, p. 03)

O simples acesso à justiça, garantido no artigo 5º,


inciso XXXV da Constituição da República Federativa do
Brasil, por si só não é suficiente. Para Rodolfo de Camargo
Mancuso, o exagero da litigiosidade provoca três
consequências imediatas.

(i) favorece a percepção, pelo jurisdicionado


(efetivo ou virtual), de que a judicialização dos

- 37 -
conflitos é o caminho natural ou mesmo
necessário para todos os interesses
contrariados ou insatisfeitos; (ii) passa a (falsa)
idéia de que toda e qualquer pretensão
resistida ou insatisfeita deva ser resolvida por
uma decisão de mérito, a ser oportunamente
estabilizada pela coisa julgada; (iii) desestimula
a busca pela solução alternativa dos conflitos,
alvitre até hoje percebido com certa relutância
pela população, acostumada à liturgia e à
majestade da tradicional Justiça togada.
(MANCUSO, 2006, p. 1.070)

Segundo Mauro Cappelletti e Bryant Garth,

[...] os juristas precisam, agora, reconhecer que


as técnicas processuais servem a funções
sociais; que as cortes não são a única forma de
solução de conflitos a ser considerada e que
qualquer regulação processual, inclusive a
criação ou o encorajamento de alternativas ao
sistema judiciário formal tem um efeito
importante sobre a forma como opera a lei
substantiva – com que frequência ela é
executada, em benefício de quem e com que
impacto social. O acesso não é apenas um
direito social fundamental, crescentemente
reconhecido, é o ponto central da moderna
processualística. Seu estudo pressupõe um
alargamento e aprofundamento dos objetivos
da moderna ciência jurídica. (CAPPELLETTI;
GARTH, 2002, p. 12-13)

- 38 -
Indispensável mudar a cultura do brasileiro com
relação à resolução dos litígios. Não pode só o Poder
Judiciário ser o responsável por apresentar respostas aos
problemas da sociedade. Os próprios litigantes têm de saber
dialogar para tentar realizar uma composição madura e
aceita por ambos. Por isso que, se o indivíduo desde o início
dos seus estudos escolares já tiver sido apresentado a
conceitos, mais condições terá para resolver seus litígios.
Segundo Frederico Mayor,

[...] por toda parte e sob todos os pontos de


vista, a educação é essencial para a paz. A paz
que é, todos sabemos, mais que a simples
ausência de conflito. É urna cultura fundada
sobre a tolerância e o respeito ao outro, é um
espírito de solidariedade ativa entre os
indivíduos, que repousa sobre urna esperança
comum de justiça e paz. A manutenção e a
promoção desses valores devem figurar entre
as tarefas primordiais da educação. A
promoção da democracia e dos direitos
humanos é um elemento chave do processo de
consolidação da paz. [...] Através da educação,
nosso dever enquanto educadores é orientar a
energia e o idealismo das novas gerações para
a edificação de urna sociedade de paz, de
progresso e de prosperidade. Em todas as
culturas, a função que nós devemos reforçar é
a da consolidação da paz. Nós devemos insuflar

- 39 -
nos jovens de toda parte urna ética de partilha
e de atenção aos outros. Devemos preparar o
terreno de urna nova civilização, onde
prevaleça não mais a espada, mas o verbo.
Edificar a paz no espírito dos homens, favorecer
a passagem de urna cultura da guerra a urna
cultura da paz fundada sobre a justiça e a
equidade, tal é, em última análise, a tarefa a
qual devemos nos consagra. (MAYOR, 1997, p.
A2)

Para Kazuo Watanabe, a expressão "litigiosidade


contida" resume muito bem a incapacidade estatal de
solucionar os problemas que lhe são apresentados. Isso gera
ainda mais um sentimento de insegurança por parte da
população, pois, ao não ver muitas violações de seus direitos
solucionadas, sente-se desprotegida e, muitas vezes, vítima
de problemas mais sérios. (WATANABE, 1985, p. 02)
Daí ressalta-se a importância da existência dos
Juizados Especiais Cíveis, por exemplo, como forma de
aproximar uma parcela marginalizada do poder estatal, na
busca da tutela jurisdicional. O não pagamento de custas
iniciais e a redução do formalismo levam a esta nova
situação, na qual o contato se torna mais saudável. Se o texto
constitucional garante o acesso à justiça, é necessário que

- 40 -
tanto a iniciativa privada como a pública tenham subsídios
para tal efetivação.
Resta clara a necessidade de repensar o atual cenário
brasileiro, especialmente no que tange à educação e ao papel
do Direito. A disseminação do conhecimento, para todos os
interessados, indistintamente, é uma saída extremamente
útil, ao aproximar de forma efetiva, por exemplo, o Direito
do cotidiano das pessoas. É relevante que as pessoas
compreendam seus direitos e suas obrigações cotidianas, de
modo a não sofrerem abusos e prejuízos, devido à ignorância
que muitos possuem.
A garantia do acesso à justiça deve ser sempre
colocada em primeiro lugar, quando da tutela de direitos,
pois é, a partir disso, que todos os demais direitos
efetivamente serão protegidos. A busca por uma realização
desta garantia deve ser mais exaltada e mais bem trabalhada
pelas iniciativas públicas e privadas, de modo a realmente
promover uma verdadeira revolução no sistema nacional.
A escola precisa assumir definitivamente seu papel de
formador, de modo integral, do cidadão. Não basta somente
o ensino regular, é preciso oferecer uma gama de opções –

- 41 -
tal como o acesso às informações jurídicas – que possam
modificar o cenário educacional brasileiro.
A aproximação do Direito com a vida das pessoas se
mostra fundamental: pessoas mais bem informadas
conseguem reconhecer melhor quando seus direitos são
violados, têm consciência do que está se passando em sua
volta, trazendo benefícios mútuos para a sociedade.

- 42 -
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- 47 -
Conflito na modernidade: um regresso ao
paradigma aristotélico

Cristiano Aparecido Quinaia3

Oprocesso e sua evolução civilizatória


Direito e processo: esta simbiose é indiscutível e
evoluiu ao longo da civilização, sendo objeto de constante
revisão a relação entre o ius e o iudicium nesta imbricada
relação se assenta, não apenas a autonomia cientifica, mas,
também, os escopos jurisdicionais de proteção da liberdade,
vida e bens.
A advertência lapidar é no sentido de que muito
mais do que evoluir como instrumento jurisdicional e
mecanismo de solução de conflitos, o processo, nos tempos
modernos, ocupa destaque entre as funções de que se ocupa

3
Mestrando em Direito Constitucional – ITE, Bauru/SP. Especialista em
Direito Civil e Processual Civil.

- 48 -
o poder estatal. O Judiciário tornou-se, no século XXI,
salvaguarda dos direitos e garantias fundamentais.
No período ancestral, o processo se confundia na
ideia de justiça, como uma só coisa: a vingança, que se
manifestava por meio de ritual de formas, oratória, sucessão
encadeada de atos necessários para a imposição de severa
punição, conforme anota Othon Sidou4, “na história de todos
os povos, lembra Jhering, não encontramos um só exemplo
de ausência de um procedimento já estabelecido”.
A estruturação do rito revelava a organização do
povo, fosse calcada em religião, em divindades, mas era uma
ideia de procedimento que germinava a busca pela
segurança jurídica, com a previsibilidade das instituições
estatais.
Noutro giro verbal, a única certeza que o individuo
pode ter é o do direito de ser ouvido e produzir provas, em
um contexto pré-programado de atos que, de um lado,
limitam o próprio poder intervencionista do Estado.
De acordo com a nota de Humberto Theodoro

4
SIDOU, José Maria Othon. Processo Civil Comparado. Histórico e
Contemporâneo. Porto Alegre: Forense, 1997, p. 20.

- 49 -
Junior5, “a ação seria o poder de obter em juízo a satisfação
de um direito subjetivo [ius presequendi in iudicium, idéia
que mais tarde, se substituiu pela de ‘direito em movimento’
ou ‘em guerra’]”.
Esta visão, inequivocamente, colocava o objeto
acima da forma, isto é dizer, dava-se ênfase ao direito em
detrimento da independência do objeto processual,
importando muito mais o resultado alcançado do que o mero
preenchimento do teatro.
Essa confusão dogmática compôs o cenário por
séculos, diante da incapacidade dos estados medievos
disporem sobre o adequado funcionamento do Judiciário,
sendo marco científico os trabalhos encetados por Francesco
Carnelutti e Giusepe Chiovenda.
De acordo com a ideia carneluttiana, o processo e o
direito compunham a mesma coisa, sendo que o escopo
processual é a composição da lide instaurado no plano
material, não sendo coisa diversa, mas, apenas uma
consequência da violação do direito.
Já para a defesa chiovendiana haveria a nítida

5
Direito e Processo. Rio de Janeiro: Aide, 1997, p.16.

- 50 -
distinção entre o direito material e o direito processual,
sendo este não mero apêndice, mas, fenômeno e fato
cultural completamente diverso, em uma visão dualista do
ordenamento.
Humberto Theodoro Junior6 em análise conclusiva
leciona que “não se pode, realmente, imaginar o
ordenamento jurídico do moderno Estado de Direito sem a
cooperação do processo. O processo é, nessa ordem, o
instrumento de manutenção do direito ou de atuação frente
às situações de conflito”.
Já nos ares do constitucionalismo, nascido com a
Magna Charta declarada pelo Rei John aos seus barões no
ano de 1215, com a fonte da garantia das liberdades
clássicas, o pensamento sobre a missão do processo se
desenvolveu.
No final do século XIX, o alemão Oskar Von Bülow7
seria responsável por defender o caráter publicista do
processo, como coisa diversa da relação de direito material,
destacando que entre autor, juiz e réu, “esa relación

6
Ibidem, p. 27.
7
La teoria de Ias excepciones procesales y los presupuestos procesales.
Buenos Aires, Europa- América, 1964, p. 02.

- 51 -
pertenece, con toda evidencia, al derecho público y el
proceso resulta, por lo tanto, una relación jurídica pública”.
A cisão operada dogmaticamente dá conta de que o
direito material vive sem o processo, pois, é sempre possível
ao sujeito passivo de um direito obrigacional o seu
cumprimento espontâneo, servindo o processo, que sempre
existe autonomamente, como ferramenta de defesa em juízo
e até mesmo contra o Estado.
Na esteira dos ideais do Estado Social (Welfare
State) o caráter público do processo aterrissou de forma
plena a propiciar o compromisso da figura do juiz na
composição da lide, com a altercação do poder decisório final
na sentença em detrimento do papel influenciador das
partes.
No Brasil, influência do caráter público da relação
processual redesenhou o Judiciário tupiniquim, anotando o
saudoso Prof. Calmon de Passos8 que, “se quisermos
identificar o que, na segunda metade do século XX,
representou novidade no campo do Direito Processual,

8
PASSOS, Calmon de. Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às
nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 15.

- 52 -
concluiremos por identificá-la na denominada
constitucionalização do processo”.

Sociedademoderna e o mito da liberdade antropocêntrica


A liberdade foi, por muito tempo, erigida como o
escopo do Estado que se queria intitular democrático, como
reconhecedor da existência da liberdade negativa, isto é, o
núcleo de autodeterminação de seu povo que não poderia
ser objeto de intervenção.
Nada mais enganoso e falacioso.
O Direito, como ordenamento jurídico de um Estado,
nada mais é que resultado da luta entre as forças políticas e
forças que atuam nos poderes econômicos em determinado
contexto de época e lugar.
Nada se declara propriamente dito, mas, que resulta
de um processo que não é a-histórico, não é por acaso, mas,
as liberdades são fruto do embate dos interesses e da
sobreposição de alguns sobre os demais.
Conforme destaca Allaôr Caffé9 “é preciso vê-lo da
ótica das necessidades estruturais de determinada

9
O que é a filosofia do Direito? São Paulo: Manole, 2004, p. 85.

- 53 -
sociedade; são elas que levam as pessoas a fazerem guerra.
Não temos dúvida a respeito disso”.
Em verdade, as liberdades clássicas possibilitavam o
exercício de determinadas prerrogativas por aqueles que
dispunham de recursos para fazê-lo, isto é, a liberdade
interessa aos que possam dela usufruir em seu aspecto
positivo, dos poderes que dela advém.
Já para os que não possuem condições
socioculturais de gozarem seus benefícios, tornam-se um
fator discriminatório, observando Dimitri Dimoulis10 que
existe uma franca tensão entre liberdade e igualdade.
De tal sorte, toda vez que se direciona o exercício de
uma liberdade econômica, o aumento de taxa de juros, a
revisão do valor da franquia dos seguros, a inflação dos bens
de consumo primário alimentar, o financiamento de veículos,
a alíquota de tributos, alguma pessoa terá sua liberdade de
acesso aos bens da vida cerceada. Surgirão, assim, novos
conflitos.
De outra sorte, o que se pretende é que nem a

10
Igualiberdade. Notas sobre a crítica dos Direitos Humanos. Revista Ius
Gentium, n. 07, 2016, p. 26.

- 54 -
liberdade seja posta de lado, com um legislador inerte que
nada exija da administração deixando as potências
constitucionais inertes, e, de outro, que também não busque
a todo o momento preencher todos os campos possíveis de
tratamento discriminatório, atingindo, assim a igualdade.
Nesse contexto, calha trazer à baila a tese da
Égaliberté, do jusfilósofo francês, Etienne Balibar, trazido
para a língua portuguesa por Dimitri Dimoulis11, por meio da
qual se critica os extremos que a busca pela liberdade
esconde na complexa sociedade de consumo atual.
Liberdade e igualdade são sincronizadas porque
toda vez que se regula uma liberdade se opera o tratamento
de pessoas ou grupos em situação de não-equivalência,
sendo esta a complexidade pragmática que rende o trabalho
do legislador e do administrador público.
A (pós-) moderna sociedade de consumo não é coisa
outra que a constante disputa por bens de consumo no
capitalismo selvagem, esta não é uma constatação fácil, mas,
apesar de pessimista, é a mais pura verdade.

11
Ibidem, p. 22.

- 55 -
Fredric Jameson12, estudando a transição para a pós-
modernidade, destaca que sua “função é correlacionar a
emergência de novos aspectos formais da cultura com a
emergência de um novo tipo de vida social e com uma nova
ordem econômica – aquilo que muitas vezes se chama,
eufemisticamente, de modernização, sociedade pós-
industrial ou de consumo”.
O Direito enfrenta a multiculturalidade, o dissenso
econômico, sobretudo, em países com estrutura
subdesenvolvida como o Brasil, que convive com os pêndulos
da pobreza e riqueza em acúmulos de corrupção e
insuficiência legal das sociedades paralelas do crime e do
tráfico de drogas.
Ulrich Beck13 já nos alertava para a sociedade de
risco moderna, escrevendo que “a produção social de riqueza
é acompanhada pela produção social de riscos”, assim,
quanto mais se produz mais se aumenta o risco para a vida
humana, maior a perplexidade do homem em relação ao que

12
O pós-moderno e a sociedade de consumo. In: KAPLAN, E. Ann (org.).
O mal-estar no pós-modernismo: teorias e práticas. Tradução de Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 27.
13
Sociedade de Risco. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 23.

- 56 -
existe de novo em termos de tecnologia, mecânica, facilities.
Exemplo claro é a questão do aquecimento global,
pois, é cada maior o consentimento científico que ano após
ano a temperatura terrestre aumenta, porém, o Direito,
sobretudo nas relações internacionais, trabalha dentro de
um risco aceitável, com previsão de atuação dos Estados e
organismos a média e longo prazo. Para o tempo atual, já se
admitiu os danos ocorridos e sua irreversibilidade.
Poderia ser diferente? Certamente que sim, porém,
a economia globalizada impede e acaba sobrepujando as
forças próprias do Direito, avançando num marco sem
retorno de um desenvolvimento econômico de acirrada
disputa, “obrigado a levar em conta em conta antes o
contexto econômico-financeiro internacional do que as
próprias pressões, anseios, expectativas e reivindicações
nacionais e restrito papel de articulador e controlador” 14.
Ulrich Beck15 fala em efeito bumerangue para
explicitar que, se por um lado, por exemplo, se pretende
aumentar a produção de alimentos, por outro, se aumenta o

14
O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 2002, p.141.
15
Ibidem, p. 44.

- 57 -
emprego de pesticidas, porém, tudo que vai um momento
volta, e nisto presenciamos a extinção de espécies nativas da
fauna e flora, o desiquilíbrio ambiental e exposição da saúde
humana.
Assim, a busca pela certeza de um Direito convive
com a constante ameaça da mudança, as vicissitudes da
futurologia para estabelecer um padrão que torne possível a
regulamentação da vida humana em conformidade com este
cenário.
“Os inevitáveis confrontos entre iniciativas jurídicas
de atores – governos, empresas públicas ou privadas e
organismos multilaterais – com distintos graus de poder,
interesses e institucionalização, resultando em situações
muitas vezes contraditórias e paradoxais” 16.
O entrelaçamento dos sistemas resta cada vez mais
complexo e implica a necessidade de as instâncias jurídicas
adaptarem-se a este novo contexto, com a manutenção de
uma interpretação por tempo tanto quanto maior o possível
a fim de se evitar as imprevisibilidades.

16
FARIA, idem, p. 143.

- 58 -
A superação do individualismo na repercussão social do
conflito
O processo tradicional era regulado por outro mito,
o do contraditório, formal, excêntrico, indiferente à
realidade das pessoas envolvidas e cego em qualquer
vicissitude socioeconômica.
Corolário do princípio do devido processo legal
calcado na velha ideologia da liberdade clássica, o
contraditório contaminava o desenvolvimento processual
podendo-se dizer que se não fora oportunizado, não houve
justa condução e consequentemente uma justa decisão.
Desta forma, tradicionalmente se fazia necessário
que as partes tivessem possibilidade paritária de utilizar
todos os meios legítimos e disponíveis para convencer o
julgador, cooperando para a formação dos pronunciamentos
jurisdicionais.
Mera possibilidade formal de se defender,
conforme destacava a doutrina processual17 “o conteúdo
essencial do contraditório consiste em garantir às partes o

17
ASSIS, Araken de. Processo Civil Brasileiro – Institutos Fundamentais –
Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 471.

- 59 -
direito de participar da formulação da regra concreta (função
de cognição), ou da efetiva entrega do bem da vida ao
vitorioso (função de execução), em pé de igualdade”.
Esse contraditório formal era indispensável para a
formação daquele processo desenhado sob o crivo da
liberdade, com a previsão de momentos para que as partes
pudessem pedir e alegar, comprovar e rebater.
Sendo condição necessária indispensável para a
própria formação do processo, o contraditório modela
procedimentos instituídos na lei processual civil, fixando
momentos para as partes pedir, alegar e provar18.
Desmistificando a tradicional linha da Teoria Geral
do Processo presa ao dogmatismo oitocentista, o Novo
Código de Processo Civil foi discutido sob o pálio da moderna
realidade, assentado num modelo constitucional.
Esta mudança de vertente ideológica fica evidente,
como ao início com seu conjunto principiológico,
propositalmente, elenca as normas fundamentais

18
“Allora il procedimento compreende il contraddittorio, si fa più
articolato e complesso, e dal genus procedimento è consentito enucleare
la species processo”. FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale.
Padova, Cedam, 1992, p. 60.

- 60 -
reafirmando princípios consagrados na Constituição Federal,
sendo a solução integral, a mediação e celeridade.
Se no Código Buzaid (1.973) haviam acanhadas
disposições relativas à participação das partes, por exemplo,
art. 125, I, agora temos aprimoradas normas que enaltecem
a isonomia, estabelecendo expressamente que o juiz deverá
conduzir o processo zelando pela igualdade e a efetividade
em detrimento da forma.
Desse modo, consagra-se o contraditório
substancial participativo como garantia de “influência e não
surpresa”19, com a finalidade de barrar decisões não
abarcadas pelo amplo debate processual.
As possibilidades de influência e participação na
condução do processo consagram a preocupação com a
proteção do direito material, uma vez que sua defesa não fica
mais restrita às fórmulas de preclusão que antes imperavam
no procedimento.
O tempo do processo precisa ser pensado desde a
propositura da ação até a efetiva execução do objeto

19
NUNES, Dierle José Coelho Nunes. Comparticipação e Policentrismo.
Tese (Doutoramento). Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
2008, 219f.

- 61 -
disposto na sentença, e, ao que parece, quanto maior o grau
de contraditório maior será a limpidez do objeto cognoscível
disposto na decisão jurisdicional, propiciando maiores
chances de êxito na fase satisfativa.
Talvez o Direito nunca tenha ignorado o futuro,
porém, na era da globalização que se encaminha o agora já
não basta para solucionar qualquer dilema, pois, as
constantes do risco e da ameaça convivem reflexivamente.
O jusfilósofo José Eduardo Faria20 nos alerta para
três problemas sistêmicos a serem enfrentados pelo Estado
na Era da Economia Globalizada: (i) indiferença entre direito
e sociedade; (ii) colonização legal da sociedade e (iii)
desintegração do direito pela sociedade. Exploremos a ideia.
A multiculturalidade conduz a um direito que tende
a ser cada vez mais específico, moleculizando os sub-
sistemas sociais com a (in) finita ramificação de códigos que
não enxergam a completude genérica.
A lei parou de fotografar a realidade e pretende se
tornar o negativo da foto, como se o legislador pudesse por
passe de mágica transformar a realidade socioeconômica.

20
FARIA, idem, p. 137.

- 62 -
Por fim, um direito que não respeita a complexidade
da sociedade perde eficácia social e passa a conviver com
outros códigos e outras micro-sociedades, como são as
organizações criminosas que dividem a soberania estatal no
mesmo espaço.
O que podemos fazer? Abandonar a ideia
individualista da pós-modernidade que tornou o homem um
ser pseudo-independente, a fim de que compreendamos o
círculo de risco em que estamos globalmente envoltos.

A transcendência do conceito de justiça


É válido indagar o que motivou o legislador a dispor
a mediação e a solução consensual dos conflitos como
modalidade preferencial de solução dos litígios em
detrimento da velha contenda judicial.
Podemos dizer que foram várias razões.
A primeira de todas diz respeito à segurança
jurídica, uma necessidade humana desde os tempos pré-
históricos quando os nômades faziam previsão da chuva para
não arrasar sua plantação.

- 63 -
Os egípcios endeusavam suas entidades buscando
com isso evitar sua fúria e a seca do Rio Nilo, a fim de poder
dar água a seu rebanho, conseguir desenvolver seu alimento,
rendendo sacrifícios à divindade.
De acordo com Perez Luño21 o homem sempre
expandiu essa necessidade de “saber ao que se ater”, ao que
se segurar, buscando certa previsibilidade, certeza quanto ao
planejamento de seu futuro.
Ocorre que nesta fase de inflação legislativa e
deficiência da representatividade é cada vez mais
complicado esperar que a lei trouxesse segurança, pois, na
maioria dos casos, o que se vê é o contrário: um grande plexo
de normas que se contradizem.
Outro argumento seria o óbice do acesso à justiça,
tema este tratado com excelência por Cappelletti e Garth22
na década de 60, insculpindo os grandes obstáculos
estruturais e financeiros que objetavam que as pessoas
tivessem o real acesso à defesa de seus direitos em juízo.

21
La seguridade jurídica, Madrid: Ariel, 1994, p.11.
22
Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1988.

- 64 -
Por fim, destaco o problema da jurisdição, que se
tornou um problema ao final do século XX e começo do
século XXI, sobretudo, em países de democracia tardia, palco
perfeito para o conhecido fenômeno do ativismo e inovação
jurisprudencial.
A grande questão que se coloca é que a prudência
abandonou a produção de decisões que, eufemisticamente,
deram lugar às súmulas ditas vinculantes e precedentes à
moda brasileira, formados por uma ou duas decisões.
O resultado disso é que os Tribunais de Justiça,
Tribunais Regionais Federais e Tribunais Superiores não
conversam entre si, cada qual emite o parecer e
interpretação que bem entende sobre determinada lei ainda
que federal seja esta.
Ferrajoli23 comenta com percuciência essa fase de
ascensão da jurisdição não com aspecto positivo, mas, como
a ascensão sobre a lei e, em última análise, sobre a própria
Constituição que confere validade ao sistema de normas.

23
A democracia através dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2010.

- 65 -
Resultado disso é a busca por um sistema garantista,
isto é, que se subordine aos direitos e garantias
fundamentais, no trinômio: Constituição-lei-jurisprudência,
nessa ordem respectiva de importância e descendência.
Ao mandar as pessoas resolverem seus conflitos
buscou o legislador processual atingir um grau de justiça
distributiva, isto é, a busca pela repartição da riqueza social,
de ampliação do acesso dos bens de consumo.
Para evoluir, regredimos (que panaceia!) ao
princípio aristotélico24 de acordo com o qual “agir
justamente e a desejar o que é justo; de maneira idêntica,
diz-se que a injustiça é a disposição da alma de graças à qual
elas agem injustamente e desejam o que é injusto”.
A mediação estimula a solidariedade orgânica entre
as pessoas, pois, se apresentam em situação que não
precisavam uma da outra, pois, até então cogitavam de um
terceiro para impor a solução ao caso, o juiz.
Todavia, a mediação estimula a retomada do
contato, retira as pessoas de sua abstração mundana que a
Era Digital às haja colocado, uma realidade na qual se

24
Aristóteles. A Política. São Paulo: Sérgio Fabris, 1996, p. 193.

- 66 -
pronunciar por redes sociais é muito mais fácil do que dizer
pessoalmente o que se pensa.
A justiça distributiva que contamina a solução do
conflito satisfaz ao princípio da igualdade proporcional, a
colocação das pessoas em um mesmo pé sem distinção
socioeconômica.
Rawls25 também destaca que na “sociedade
efetivamente regulada por uma concepção pública de
justiça”, nesta as pessoas animam a ideia de distribuição de
renda e os mesmos princípios.
O compartilhamento destes princípios, todavia, têm
um aspecto positivo e negativo, pois, se nas microrrelações a
prática é de levar vantagem, sobrepor força econômica e a
influência do poder advindo, haverá a contaminação
sistêmica até as mais altas instâncias do poder.
Michael Sandel26 em visita ao Brasil destacou o
problema do jeitinho brasileiro que vem desde as camadas

25
Uma teoria da justiça. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1971,
p. 28.
26
Disponível em: <http://exame.abril.com.br/revista-
exame/edicoes/1086/noticias/combate-a-corrupcao-requer-mudanca-
cultural-diz-filosofo>.

- 67 -
menos favorecidas da sociedade a atinge o escalão dos
poderes responsáveis pela contratação em licitação.
Em síntese, precisamos de uma mudança de
paradigma, que deverá ocorrer pela forma como é conduzida
a solução dos conflitos, com a certeza de que o novo modelo
processual calcado na solução amigável tem apenas a
contribuir.

Conclusão
A mudança social exige uma alteração de paradigma
que a sociedade tem concebido da ideia de justiça: a visão de
que ela se resume no poder e sobrepujança de força deve
inclinar-se ao caráter distributivo.
O Novo Código de Processo Civil abandonou a visão
arcaica de que a solução dos litígios deve ser feita pelo
sujeito pseudo imparcial, mas, sim pelos próprios sujeitos
envolvidos no conflito que, a fundo, revela a desigualdade
econômica e cultural.
Para evoluir no túnel da pós-modernidade, a sociedade
retroage ao conceito de justiça aristotélica, buscando, pela
solidária mediação, dar a cada um aquilo que a faz jus.

- 68 -
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THEODORO JUNIOR, Humberto. Direito e Processo. Rio de
Janeiro: Aide, 1997.

- 70 -
Mediação em contratos administrativos e o
limite do patrimônio disponível

Lara Caxico Martins Miranda27

Introdução
As sucessivas reformas administrativas, ocorridas na
década de 30 e na década de 60 demonstraram a
necessidade do desenvolvimento de um Estado menos
burocrático e mais adepto às relações com a iniciativa
privada. A efetiva reforma administrativa objetivava a
reorganização fiscal, estrutural e social, aproximando o setor
privado do setor público com investimentos e tecnologia. A
emenda constitucional 19/98, que introduziu no artigo 37 da
Carta Magna o princípio da eficiência, foi um dos marcos de
reforma, pois tinha o intuito de impor ao Estado o dever de
garantir resultados satisfatórios na prestação de serviços
públicos,

27
Mestranda em Direito Negocial pela Universidade Estadual de
Londrina. Bolsista Capes.

- 71 -
Os meios extrajudiciais de resolução de conflitos foram
um dos mecanismos da reforma para desburocratização dos
contratos administrativos. Na esfera privada, as técnicas
mais utilizadas são: mediação, conciliação e arbitragem,
entretanto apenas a arbitragem é regulamentada para
utilização pelo Poder Público. Por essa razão o estudo
objetiva analisar a possibilidade de aplicação da mediação
pela Administração Pública. Pretende-se discutir, nesse viés,
a necessidade ou não de lei expressa e a aplicação de
princípios fundamentais.
Objetiva-se ainda discutir acerca dos limites impostos à
utilização da arbitragem pelo Poder Público e introduzir o
estudo do patrimônio disponível, previsto como impeditivo
no artigo 1º, parágrafo 1º da Lei 9.307/96, atualizada pela Lei
12.129/15. Ainda, por inexistir instrumento que normatize a
utilização da mediação pela administração pública, após a
definição dos limites impostos pela Lei 9.307/96, pretende-
se debater sobre a aplicação do limite do patrimônio
disponível também nos procedimentos da mediação.
Para tanto, será necessária a análise da administração
pública gerencial proposta por Luiz Carlos Bresser Pereira; do

- 72 -
conceito regime jurídico administrativo proposto por Celso
Antônio Bandeira de Mello; dos negócios jurídicos
administrativos na visão de Edmir Netto de Araújo e da
arbitragem e contratos da Administração Pública por Eugênia
Cristina Cleto Marolla.
A pesquisa desenvolvida será dedutiva exploratória.
Pretende-se verificar com o presente estudo as mudanças
trazidas pela administração pública gerencial aos negócios
jurídicos públicos e a possibilidade de resolução de conflitos
extrajudicialmente, como mecanismo de promoção de
eficiência e técnica no serviço público.

Reforma do Estado Brasileiro à luz dos argumentos de


Premissas de Bresser Pereira
Bresser Pereira, em suas obras Reforma do Estado para
a cidadania de 1998, Reforma do Estado e Administração
Pública Gerencial de 2005 e Construindo o Estado
republicano: democracia e reforma da gestão pública de
2009, tratou sobre a reforma administrativa iniciada em
1960. Essa já trazia traços do que seria uma administração
pública descentralizada. Em 1938, especificamente, a

- 73 -
primeira autarquia foi criada, evidenciando a necessidade de
que os serviços públicos prestados pela administração
indireta fossem descentralizados e não obedecessem a todos
os requisitos burocráticos da administração central (BRESSER
PEREIRA, 2005, p.243).
A publicação do Decreto Lei n º 200, em 1967, “foi uma
tentativa de superação da rigidez burocrática, podendo ser
considerada como um primeiro momento da administração
gerencial no Brasil” (BRESSER PEREIRA, 2005, p.244). A ideia
proposta pelo legislador era promover a autonomia da
administração indireta e permitir maior eficiência da
administração descentralizada através da flexibilização.
Neste momento, houve uma distinção clara do que seria
administração direta e indireta e deu-se maior autonomia de
gestão para as autarquias, fundações e empresas públicas
(BRESSER PEREIRA, 1998, p.167).
Infelizmente o constituinte de 1988 ignorou
completamente as diretrizes da nova administração pública.
Não foi considerado por este que as inovações do Decreto Lei
nº 200/67 foram introduzidas para que o Estado passasse a
administrar com eficiência as empresas e os serviços sociais.

- 74 -
Procurou, ao invés, continuar pela gestão burocrática que já
estava em andamento para apenas depois se atentar para os
princípios da moderna administração pública (BRESSER
PEREIRA, 2005, p.246).
Destaca-se que o retrocesso administrativo
identificado na Constituição de 1988 não derivou da
inefetividade da descentralização e da flexibilização que o
Decreto Lei mencionado teria promovido,

[...] relaciona-se com a campanha pela


desestatização que acompanhou toda a
transição democrática: este fato levou os
constituintes a aumentar os controles
burocráticos sobre as empresas estatais, que
haviam ganhado grande autonomia graças ao
Decreto-Lei 200 (BRESSER PEREIRA, 1998, p.
177).

A real reestruturação do Estado e sua inserção em um


mundo globalizado se iniciou no governo de Fernando
Henrique Cardoso, com a reforma da administração pública.
Esta não significava a desorganização ou ruína do Estado,
nem mesmo o afastamento do sistema político de decisões,
diminuição da sua capacidade regulatória ou do poderio de
direcionar mudanças. Mudar significava, em primeira

- 75 -
análise, o abandono de visões do passado e atuação em prol
das necessidades contemporâneas (BRESSER PEREIRA, 2005,
p.15).
Para a restruturação do Estado o governo mencionado
criou o Ministério da Administração Federal e Reforma do
Estado cuja prioridade era a reconstrução do Estado. As
propostas tinham por foco a reorganização fiscal e da
previdência social e na eliminação dos monopólios estatais.
Isso porque, que para que a administração pública se
tornasse eficiente e competitiva diante do capitalismo
moderno, far-se-ia necessária a flexibilização dos servidores
públicos e a aproximação dos mercados público e privado
(BRESSER PEREIRA, 2005, p.21-22). A reforma foi pautada
basicamente na proposta de emenda constitucional relativa
ao capítulo da administração pública e no Plano Diretor da
Reforma do Aparelho do Estado.
Inicialmente a proposta foi recebida com críticas, mas
em pouco tempo foi apoiada por grupos políticos e
empresariais, ganhando a cada dia mais espaço frente à
opinião pública, ou seja, “de repente, a reforma passava a ser
vista como necessidade crucial, não apenas interna, mas

- 76 -
exigida também pelos investidores estrangeiros e pelas
agências financeiras multilaterais” (BRESSER PEREIRA, 2005,
p.22).
A reforma da administração pública se deu em face da
crise do Estado e à necessidade de solução dos problemas de
crescimento, da diferenciação de estruturas e aumento de
suas complexidades (BRESSER PEREIRA, 2005, p.242). Diante
disso, dois são os objetivos: reduzir o custo e tornar mais
eficiente a administração dos serviços de competência do
Estado e proteger o patrimônio público.

É orientada para o cidadão e para a obtenção


de resultados; pressupõe que os políticos e os
funcionários públicos são merecedores de um
grau limitado de confiança; como estratégia,
serve-se da descentralização e do incentivo à
criatividade e à inovação; o instrumento
mediante o qual se faz o controle sobre os
gestores públicos é o contrato de gestão
(BRESSER PEREIRA, 2005, p.28).

Diversos institutos potencialmente eficientes foram


criados com o novo modelo de administrar. Dentre eles o
contrato de gestão. Este é o acordo firmado entre a
Administração Pública central e determinada entidade
estatal com o objetivo de fixar metas de desempenho. Por

- 77 -
meio do contrato de gestão o poder público se compromete
a ampliar a autonomia gerencial, orçamentária e financeira
da pessoa jurídica.
Enquanto que a administração burocrática se norteava
por procedimentos, a administração gerencial orientou-se
para o alcance de resultados. Estes, entretanto, só são
quantitativamente verificados quando há mais órgãos
trabalhando para o seu alcance. Neste sentido foi
implementada a descentralização, a delegação de
competências e responsabilidades ao gestor público e o
controle de desempenho aferido por indicadores
previamente expostos nos negócios jurídicos administrativos
(BRESSER PEREIRA, 2005, p. 23-29).
Assim, a administração pública gerencial envolveu,
além da criação de novos institutos, uma mudança na
estratégia de gerência (BRESSER PEREIRA, 2005, p.33). Aos
poucos novos controles da administração foram definidos:

a) descentralização do ponto de vista político,


transferindo recursos e atribuições para os
níveis políticos regionais e locais; b)
descentralização administrativa, através da
delegação de autoridade para os
administradores públicos transformados em

- 78 -
gerentes crescentemente autônomos; c)
organizações com poucos níveis hierárquicos
ao invés de piramidal, d) pressuposto da
confiança limitada e não da desconfiança total;
e) controle por resultados, a posteriori, ao
invés do controle rígido, passo a passo, dos
processos administrativos; e f) administração
voltada para o atendimento do cidadão, ao
invés de auto-referida (BRESSER PEREIRA,
2005, p.243).

Ao mesmo tempo que a reforma iniciada em 1995 teve


um foco gerencial, também se preocupou em ter uma
abordagem socialdemocrática e social-liberal do papel do
Estado. Foi gerencial porque se pautou na atuação das
empresas privadas e visou exigir eficiência e qualidade de
órgãos públicos. Foi social democrática porque procurou
incentivar a atuação social, exigir a transparência das
instituições estatais e colocar o Estado como garantidor de
direitos sociais. Por fim, pode-se dizer que foi social-liberal
porque acreditou no mercado como um alocador de recursos
e propulsor da economia (BRESSER PEREIRA, 2009, p.253).
Cumpre frisar que a reforma gerencial não fez com que
a máquina estatal se tornasse eficientemente operativa de
um dia para o outro. Deve ser um procedimento diário a ser

- 79 -
realizado por todo órgão e agentes estatais para possibilitar
o início da desburocratização do Estado.

Regime dos negócios jurídicos públicos em face da


Administração Pública Gerencial
A análise do regime dos negócios jurídicos públicos em
face da Administração Pública Gerencial pressupõe a
necessária verificação do que se trata o regime jurídico
administrativo e do conceito de negócio jurídico público. A
primeira análise perpassa pelos estudos propostos na ciência
do Direito Administrativo e a segunda por aqueles do Direito
Civil.
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2011, p.
57), todo o sistema de Direito Administrativo se constrói
sobre os princípios da supremacia do interesse público sobre
o particular e da indisponibilidade do interesse público pela
Administração. O interesse público é entendido pelo autor
como a “dimensão pública dos interesses individuais”
(BANDEIRA DE MELLO, 2011, p. 65), ou seja, o interesse
comum de cada membro da sociedade. Este é também
chamado de interesse primário do Estado. Prossegue

- 80 -
afirmando que não necessariamente há coincidência entre o
interesse público e o interesse do Estado, tendo em vista ser
este uma pessoa jurídica também dotada de interesses
particulares (BANDEIRA DE MELLO, 2011, p. 66). Quando o
Estado age em seu benefício nos negócios jurídicos atua em
prol do seu interesse secundário.
O interesse secundário do Estado também é tratado
pelo jurista italiano Renato Alessi. Segundo ele, o Estado
também é detentor de interesses individuais, como
entidade. Apesar disso, esses interesses só podem ser
concretizados se não colidirem com o interesse coletivo
primário (ALESSI, 1978, 232-233 apud MAROLLA, 2016, p.
103). A partir dessa análise conclui-se que não é cabível que
o Poder Público busque a mera satisfação dos seus
interesses, em desconsideração do interesse social.
A supremacia do interesse público sobre o privado é
conceituada por Bandeira de Mello como a possibilidade de
o Estado agir com posição de comando frente aos
particulares para administrar os interesses públicos. Isso
pode significar constituir os privados em obrigações por meio
de ato unilateral e até mesmo modificar, da mesma forma,

- 81 -
relações já estabelecidas (BANDEIRA DE MELLO, 2011, p. 70).
A indisponibilidade do interesse público, por outro lado,
significa que não cabe a qualquer um, nem mesmo ao Estado,
dispor dos interesses da sociedade, tendo em vista suas
condições de inapropriáveis. Ao Poder Público compete
apenas protegê-los (BANDEIRA DE MELLO, 2011, p. 74).
Eugênia Cristina (2016, p, 101), sobre o tema, afirma
que o princípio da indisponibilidade reflete característica
inerente ao direito administrativo. Por atuar na gestão de
interesses alheios, deve obediência irrestrita à lei.
Tendo em vista a matriz administrativa mencionada é
possível concluir que não pode o Estado, na sua atuação
diária, ferir o interesse público, ainda que haja em busca do
seu interesse privado. Todo e qualquer negócio jurídico
público, ainda que objetivando benefícios para o Estado
como entidade, não poderá violar o interesse público.
Salienta-se que isso não significa, como já tratado, que em
todas as atuações buscará finalidades públicas, mas sim que
mesmo quando atuar como particular, deverá respeitá-lo.
Os dois pilares mencionados justificam a existência do
regime jurídico administrativo. Este corresponde ao conjunto

- 82 -
de traços que colocam a Administração Pública em posição
privilegiada frente aos demais entes sociais (DI PIETRO, 2016,
p. 92). Assim, sempre que o Poder Público atuar em prol do
interesse público terá posição vertical na relação jurídico
administrativa, mas deverá, necessariamente, respeitar os
limites legais.
É possível dizer que, basicamente, o regime jurídico
administrativo é formado por prerrogativas e sujeições.
Ambas são outorgadas para que o ente público consiga atuar
em busca do interesse público. Maria Sylvia (2016, p. 92)
completa da seguinte forma:

Ao mesmo tempo em que as prerrogativas


colocam a Administração em posição de
supremacia perante o particular, sempre com o
objetivo de atingir o benefício da coletividade,
as restrições a que está sujeita limitam a sua
atividade a determinados fins e princípios que,
se não observados, implicam desvio de poder e
consequentemente nulidade dos atos da
Administração.

A partir da definição de regime jurídico administrativo


é possível prosseguir para o estudo dos negócios jurídicos
públicos com a prerrogativa de que estes sempre estarão
pautados nos princípios basilares do regime jurídico

- 83 -
administrativo. O exame dos negócios jurídicos entretanto,
como já falado, é realizado no Direito Civil, em razão de o
primeiro tratamento legal acerca do negócio jurídico ter se
dado no Código Civil alemão (GONÇALVES, 2016, p. 327).
Francisco Amaral ensina que o negócio jurídico é
compreendido pela declaração de vontade privada que
objetiva produzir efeitos de interesse do agente e que são
reconhecidos pelo ordenamento jurídico. Tais efeitos são
compreendidos na constituição, modificação ou extinção de
relações jurídicas. Conclui afirmando que o símbolo deste
instituto é o contrato (AMARAL, 2002, p. 353-356 apud
GONÇALVES, 2016, p. 327).
No caso dos negócios jurídicos públicos, certamente a
maior diferença entre estes e os de natureza privada está na
manifestação da vontade do agente do Estado. Edmir Netto
de Araújo (1992, p. 25) muito bem explica que o agente
público, no desempenho de suas funções, age em nome do
Estado e não em nome próprio. Isso significa que, agindo
como Fazenda Pública, Governo, autarquia ou qualquer
outra entidade ou órgão público, não exprimirá sua vontade,
mas sim a do Estado. Assim, no caso dos negócios jurídicos

- 84 -
analisados neste estudo, não há que se falar em declaração
da vontade privada do negociante público.
A partir na análise da manifestação de vontade, o autor
conceitua negócio jurídico administrativo como sendo

[...] o acordo de vontades do qual participa a


Administração, a qual, não abdicando da
potestade pública de que é detentora, celebra
com o particular determinados pactos,
objetivando o interesse público; ou o acordo de
vontades entre entidades da própria
Administração, em qualquer de suas esferas,
objetivando a consecução de fins comuns a
essas entidades, de personalidade jurídicas
próprias (ARAÚJO, 1992, p. 212).

Vale destacar que os negócios jurídicos administrativos


não se confundem com os atos administrativos, ainda que
estes tenham como elemento essencial da sua existência a
manifestação de vontade do Estado através do agente
público. Isso porque, em se tratando de atos administrativos
fala-se de enunciação unilateral da volição do Poder Público.
Após a declaração, o ato entra no mundo jurídico para
produzir todos os seus efeitos, independentemente de
anuência do seu destinatário (ARAÚJO, 1992, p. 168).

- 85 -
Frisa-se que mesmo quando várias vontades unilaterais
são manifestadas pelo Estado estas não são caracterizadas
como negócio jurídico (ARAÚJO, 1992, p. 168). Nessas
situações estaremos diante de atos administrativos
complexos, cujas vontades se unem para formar um ato
único (DI PIETRO, 2016, p. 267).
Edmir Netto de Araújo (1992, p. 169) explica que o
negócio jurídico público é gênero do qual são espécies o
contrato administrativo e o contrato da Administração.
Segundo o autor, são contratos da Administração aqueles em
que o poder Público age como particular, na busca dos já
tratados interesses secundários. Nestas situações não há a
aplicação do regime jurídico administrativo, pois as partes
estão em relação de horizontalidade, ou seja, com igual nível
de direitos e obrigações decorrentes da relação jurídica
(ARAÚJO, 1992, p. 121-126).
Nos contratos administrativos, por sua vez, a
administração pública atua objetivado o cumprimento da
finalidade e do interesse público. Nestes casos há aplicação
do regime jurídico de direito administrativo e
consequentemente a posição das partes se torna vertical: o

- 86 -
Estado passa a atuar no contrato com posição de
preponderância sobre o particular. Tal cenário possibilita que
aquele seja detentor de prerrogativas, como por exemplo a
possibilidade de alteração, unilateralmente, do acordo de
vontades estabelecido, desde que expressamente previsto
em lei (ARAÚJO, 1992, p. 121-128).
Maria Sylvia (2016, p. 267), no mesmo sentido explica
que contratos administrativos são “os ajustes que a
Administração, nessa qualidade, celebra com pessoas físicas
ou jurídicas, públicas ou privadas, para consecução de fins
públicos, segundo regime de direito público”.
A partir das conceituações é possível prosseguir no
estudo do regime dos negócios jurídicos públicos quando do
advento da reforma gerencial. Incialmente salienta-se que o
presente estudo pretende analisar os contratos
administrativos, como espécie do gênero negócios jurídicos
públicos, pois estes ganharam novo aspecto quando do
ingresso da Administração Pública Gerencial. Ademais, não é
possível dizer que neste momento histórico houve a
alteração do regime jurídico administrativo. Isso porque a

- 87 -
reforma não veio para transformá-lo, mas sim para implantar
novos meios da sua aplicação pela administração pública.
A manutenção da atuação de acordo com o regime
jurídico administrativo foi acompanhada, durante a reforma,
pelo compromisso de afastar os procedimentos burocráticos.
Isso fica explicito na opção legislativa pelos meios
extrajudiciais de resolução de conflitos ocorridos na
contratação administrativa. A possibilidade é expressamente
prevista em lei e pode ser verificada no artigo 23-A da Lei
8.987/95, artigo 43, inciso X da Lei 9.478/97, artigo 35, inciso
XVI da Lei 10.233/01, artigo 11, inciso III da Lei 11.709/2004
e art. 39, inciso XI da Lei 11.909/09.
Carlos Alberto Salles (2011, p. 61) expõe a clara relação
entre a reforma e a possibilidade de solução de conflitos
públicos através de meios alternativos:

Na verdade, a arbitragem no Estado


contemporâneo deve ser entendida no
contexto do processo de reforma do Estado,
com a privatização de empresas e serviços
públicos, de um lado, e a utilização de
estratégia de governo indireto, ou por
delegação, de outro. É nesse contexto que a
aplicação de mecanismos privados de
resolução de controvérsias passa a fazer

- 88 -
sentido no âmbito público, utilizados como
parte de uma estratégia de condução e gestão
dos negócios do Estado.

A partir da análise concluiu-se que o movimento da


Administração Pública Gerencial trouxe maior autonomia às
entidades públicas para a realização e execução de contratos
administrativos. Além disso, possibilitou, com a manutenção
do regime jurídico administrativo, a edição de leis com novas
modalidades de negócios jurídicos públicos. Estes, mais
flexíveis e menos burocráticos, impulsionaram a
descentralização da prestação de serviços públicos e a
solução de controvérsias fora do judiciário. Ambas
conquistas fundamentais para a concretização da eficiência
da administração pública.

Caminhos extrajudiciais para solução de conflitos e


negócios jurídicos públicos
Os meios extrajudiciais de solução de controvérsias são
buscados pelas partes no âmbito privado em razão da
celeridade, especialização do terceiro envolvido e maior
participação das partes. No âmbito administrativo, afirma
Salles que diversos benefícios podem contribuir para com a

- 89 -
decisão de escolher um meio extrajudicial de solução de
conflitos. Dentre eles a possibilidade de um julgador com
maior especialidade, melhor relação de custo benefício e
decisão mais equitativa entre as partes (SALLES, 2011, 30-
54). No Brasil, as técnicas mais utilizadas são: mediação,
conciliação e arbitragem (FALCÃO; GUERRA; ALMEIDA
(Orgs.), 2015, p. 18). Por essa razão serão as estudadas neste
tópico.
A Lei 13.124/15 que regulamentou a mediação entre
particulares como meio de solução de controvérsias,
estabeleceu que a mediação deve ser orientada pelos
princípios da imparcialidade do mediador, isonomia entre as
partes, oralidade, informalidade, autonomia da vontade das
partes, busca do consenso, confidencialidade e boa-fé (art.
2º). Além disso, instituiu que apenas podem ser objeto de
mediação os conflitos que versem sobre direitos disponíveis
ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação (art.
3º).
O instituto legal em apreço foi instituído para o âmbito
privado. Mesmo se não houvesse menção expressa neste
sentido (art. 1º), seria possível observar que o princípio da

- 90 -
autonomia da vontade das partes não se aplicaria à
Administração Pública. Não há autonomia da vontade do
agente público, mas vinculação às disposições legais, de
acordo com o princípio da legalidade.
Ademais, não se poderia falar em confidencialidade na
mediação pública, tendo em vista que, em regra, todos os
atos administrativos devem ser públicos, em virtude do
princípio da publicidade, disposto no artigo 37, caput, da
Carta Magna. Apenas situações que autorizam a restrição da
publicidade no processo judicial, conforme artigo 5º, LX,
Constituição Federal, poderiam ser aceitas como restrições
nos processos de solução alternativa de conflitos. A
obrigatoriedade da publicidade nestes procedimentos foi
inclusive prevista expressamente na Lei Geral de Arbitragem,
única que regula expressamente a atuação da Administração
Pública em meios alternativos de resolução de conflitos,
conforme artigo 2º, §3º da Lei 9.307/96.
Marolla define ainda que

A arbitragem é meio privado de resolução de


controvérsias, no qual as partes envolvidas, de
comum acordo, atribuem a um terceiro o papel
de solucionar a contenda, possuindo a decisão

- 91 -
proferida força de coisa julgada. Trata-se de
sistema especial de julgamento, alternativo à
justiça estatal, com procedimento, técnica e
princípios informativos próprios (MAROLLA,
2016, p. 9).

A escolha pelo juízo arbitral não significa renúncia do


direito pertinente à demanda. Isso porque as partes
envolvidas não sabem o desfecho procedimental nem
mesmo a decisão a ser dada. Não se dispõe sobre o direito
controvertido, mas apenas se opta por não o submeter ao
Judiciário.
As justificativas para a utilização da arbitragem nos
contratos administrativos perpassam pela celeridade da
decisão e pela possibilidade de escolha de árbitros peritos na
matéria em análise. Em virtude da desnecessidade de que
este seja jurista, há a possibilidade de que as partes escolham
terceiro que entenda dos problemas técnicos que envolvam
a execução do contrato. Evita-se, assim, a protelação da
solução do problema e de decisões do judiciário que em
muitas situações se pautam mais em formalismos jurídicos
do que na resolução efetiva da demanda (MAROLLA, 2016, p.
55).

- 92 -
O artigo 1º da Lei 9.307/96 prevê os requisitos
necessários para que as partes possam submeter um litígio à
arbitragem: capacidade de contratar, disponibilidade e
patrimonialidade do direito controvertido. Apesar do §1º do
mesmo dispositivo legal prever que a administração pública
direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir
conflitos, não se pode concluir que os requisitos apontados
no caput do dispositivo se aplicam inteiramente à
Administração Pública.
Tal fato decorre do já tratado regime jurídico
administrativo. A Administração Pública, na sua atuação, se
condiciona à prerrogativas e sujeições que fazem com que a
autonomia privada seja substituída pelo princípio da
legalidade. Ainda que atuante com interesses secundários,
não é possível que esta desrespeite o interesse público. Por
essa razão, não há que se falar em vontade privada do agente
público na disposição do direito controvertido. Essa análise
introduz o estudo do patrimônio disponível, a ser tratado em
seguida.

- 93 -
Limite do patrimônio disponível
A Lei 9.307/96 dispõe em seu artigo 1º, parágrafo 1º
que “a administração pública direta e indireta poderá
utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a
direitos patrimoniais disponíveis”. Vê-se que o legislador, ao
instituir a possibilidade de o Estado valer-se da arbitragem
para a solução de conflitos, impôs o limite do patrimônio
disponível. Isso significa que o objeto sob o qual recai a
arbitragem deve possuir duas características:
patrimonialidade e disponibilidade.
Para que seja possível arbitrar diante de um conflito, há
a necessidade de que os bens e direitos inerentes a este
sejam patrimoniais. Segundo Marolla (2016, p. 88), “são
patrimoniais os direitos passíveis de valoração pecuniária, ou
seja, aqueles que podem ser avaliados em dinheiro e que, por
conseguinte, possuem interesse econômico”.
A discussão acerca do segundo requisito para a
aplicação da arbitragem, qual seja, disponibilidade do bem,
entretanto, são se encontra consolidada pela doutrina. Esta
se inicia na análise já feita acerca do regime jurídico
administrativo e o princípio da indisponibilidade do interesse

- 94 -
público (MAROLLA, 2016, p. 89). Duas correntes majoritárias
tratam da relação entre a disponibilidade do direito e o
interesse público para fins de arbitragem.
A primeira, defendida por Bandeira de Mello
(BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 734) e Figueiredo
(FIGUEIREDO, 2006, p. 115-116), apregoa não ser compatível
a indisponibilidade do interesse público e a disponibilidade
de direitos patrimoniais. O primeiro autor caracteriza como
“lamentável” a possibilidade de arbitragem trazida pelo
legislador na Lei de concessões e de parcerias público
privadas. Entende o jurista ser inadmissível a possibilidade de
afastar a atuação do poder judiciário em prol de uma decisão
advinda de terceiro. Destaca que os interesses públicos em
conflito não podem ser solucionados por particulares sem
competência e qualificação jurídica (BANDEIRA DE MELLO,
2014, p. 77).
Figueiredo aponta três motivos pelos quais a
arbitragem é incompatível com a solução de controvérsias no
setor público. Inicialmente destaca que a arbitragem está
relacionada à direitos disponíveis, que são incompatíveis
com o regime jurídico administrativo. Em segundo lugar,

- 95 -
afirma que a sentença arbitral não se sujeita a recurso ou
revisão do poder judiciário, o que feriria direitos
constitucionais. Por fim, que as regras de competência
referentes à União são constitucionais, não podendo ser
derrogadas por lei infraconstitucional (FIGUEIREDO, 2006, p.
115-116).
A segunda corrente entoa a possibilidade de que o
procedimento arbitral seja utilizado pelo Poder Público,
conforme previsto na Lei geral de arbitragem. A base
argumentativa se resume à afirmação de que a
indisponibilidade do interesse público não indica,
necessariamente, que todos os direitos titulados pela
Administração sejam indisponíveis. Tal posicionamento é
adotado por Grau, que afirma não haver relação entre a
disponibilidade e a indisponibilidade do interesse público e a
disponibilidade e indisponibilidade de direitos patrimoniais
(GRAU, 2000, p. 17-19).
A partir dos apontamentos, a segunda corrente
solidifica o entendimento de que a indisponibilidade
absoluta é regra, tendo em vista que os interesses públicos
são inegociáveis fora dos estritos limites constitucionais. A

- 96 -
indisponibilidade relativa é exceção. Essa é cabível quando se
trata de interesses secundários, relativos à pessoa da
Administração. Esses seriam interesses instrumentais,
positivados para que sejam alcançados os interesses
primários. Tem caráter patrimonial e são disponíveis na
forma da Lei (MAROLLA, 2016, p. 110).
A corrente que defende a incompatibilidade entre o
interesse público e a arbitragem vem perdendo espaço
(MAROLLA, 2016, p. 113). Tendo em vista a prevalência da
doutrina que defende o uso deste meio alternativo de
conflito por parte da Administração Pública, cabe definir o
que seria patrimônio disponível, para que se possa fixar o
limite da atuação arbitral.
Lemes (2007, p. 131 apud FALCÃO; GUERRA; ALMEIDA
(Orgs.), 2015, p. 94) expõe que os já tratados interesses
públicos definirão acerca da possibilidade de ser realizada a
arbitragem nos contratos administrativos ou não. Segundo a
estudiosa, os interesses públicos primários são indisponíveis,
enquanto que os secundários, que existiriam para
operacionalizar os primeiros, seriam disponíveis e de caráter
patrimonial. A diferença da disponibilidade ou não do

- 97 -
interesse faz com que apenas esses últimos sejam suscetíveis
de apreciação arbitral.
Marolla (2016, p. 114) afirma que a disponibilidade ou
não de um direito patrimonial é matizada pela Lei. Não é
possível se falar em um direito público absolutamente
disponível, tendo em vista que sempre haverá limites
materiais e procedimentais decorrentes do princípio da
legalidade. Essa situação é, sendo a jurista, bem descrita
pelos bens públicos.
Após a análise, Marolla (2016, p.115) se posiciona
acerca da disponibilidade do patrimônio:

Não existe um critério geral que permita


determinar os direitos disponíveis da
Administração. A verificação da disponibilidade
deverá ser feita ante o caso concreto, posto
tratar-se de um conceito jurídico
indeterminado, possuindo, como
consequência, máxima generalidade e mínimo
conteúdo normativo.

A autora também menciona os ensinamentos de Perez


(2011, p. 43-44 apud MAROLLA, 2016, p. 113) acerca da
conceituação do patrimônio disponível:

- 98 -
Assim, compete ao intérprete a tarefa de
concretizar, ante o caso que lhe é posto, o
conteúdo do conceito, o que, na maior parte
das vezes, é feito de maneira negativa, ou seja,
com a fixação do que é indisponível.

Apesar da imprecisão e insegurança relativa ao


conceito de patrimônio disponível, a doutrina menciona
alguns critérios que podem contribuir para essa análise.
Dentre eles cita-se, inicialmente, os já tratados interesses
públicos primários e secundários. Como amplamente
tratado, os direitos primários referem-se aos interesses da
sociedade como um todo e os secundários àqueles relativos
ao Estado como pessoa jurídica. Marolla, apontando o
estudo de Lemes (2007, p. 131 apud MAROLLA, 2016, p. 113),
menciona que a autora também classifica o interesse
secundário como “atividade-fim” do Estado, enquanto que o
interesse secundário seria a “atividade-meio”.
Pela análise a partir do interesse público, “os interesses
secundários são considerados disponíveis e, portanto,
passíveis de discussão na via arbitral” (MAROLLA, 2016, p.
118). Entende Marolla (2016, p. 118), entretanto, que esse
critério não é passível de definir patrimônio disponível, tendo
em vista que não há regra estanque acerca da disponibilidade

- 99 -
dos direitos mencionados. Como exemplo cita a arrecadação
de impostos, vista pela maioria da doutrina como interesse
secundário e que em regra é indisponível.
Outro critério adotado pela doutrina para a análise do
patrimônio disponível permeia pelos atos de gestão e atos de
império. Segundo Muniz (2004, p. 93):

Os atos de império (ius imperium) são


praticados pela Administração com a
supremacia sobre as demais partes, para a
consecução de interesse público superior. Nos
atos de gestão (ius gestioni), por sua vez, o
Estado não objetiva fim público e, por isso,
encontra-se no mesmo patamar das outras
partes.

A análise deste critério faz com que Marolla (2016, p.


120) conclua que:

As atividades materiais de gestão são passíveis


de contratação pela Administração Pública e se
inserem no escopo da Lei da Arbitragem, o que
não acontece com os atos de império, que por
dizerem respeito às matériais inerentes ao
Estado, correspondem ao plexo de interesses
“indisponíveis” do Poder Público.

Alguns ordenamentos jurídicos têm ainda adotado,


como critério para análise da disponibilidade de um

- 100 -
patrimônio, a possibilidade de que o mesmo direito possa ser
transacionado. Destaque se dá para o Código Civil Italiano,
que prevê em seu artigo 806 a exclusão da arbitragem em
questões que não possam ser objeto de transação
(MAROLLA, 2016, p. 122).
Ainda, alguns estudos destacam o critério da alienação
e renúncia. Segundo essa corrente, direitos que o titular
possa voluntariamente transferir a propriedade ou
renunciar, são patrimônios disponíveis e por essa razão
podem ser arbitrados (MAROLLA, 2016, p. 125).
Por fim, o último critério é encontrado no estudo do
professor Dinamarco (2013, p. 78). Este afirma que a análise
italiana acerca do patrimônio disponível está intimamente
ligada a possibilidade dada às partes de renunciar a jurisdição
estatal e optar pela arbitragem. Assim, todos os direitos que
permitem a renúncia da solução conflituosa pela via estatal
são enquadrados como disponíveis.
Após a menção de todos os critérios apontados,
Marolla conclui que nenhum deles é suficiente para, sozinho,
definir o que seria patrimônio disponível. Entende a autora
que duas etapas são necessárias para a verificação da

- 101 -
disponibilidade. A primeira delas está vinculada ao
diagnóstico da atuação pública. Deve-se examinar se a
Administração Pública atuou em determinada circunstância
com poderes ou com meros atos de gestão. Isso significa que
a etapa inicial remete ao critério dos atos de império e
gestão. Afirma a autora que o caráter de interesse primário
e secundário é inviável diante da sua fragilidade (MAROLLA,
2016, p. 128).
A segunda etapa de verificação encontra guarida nos
critérios de transação, alienação e renúncia, pois esses
evidenciam a disponibilidade do direito e estão
condicionados à previsão legal (MAROLLA, 2016, p. 128).
Todo patrimônio que possa ser transacionado, alienado e
renunciado segundo a Lei certamente é um patrimônio que
pode ser disposto pela Administração Pública. Vê-se que esse
critério colabora com o conceito de patrimônio disponível e
ainda garante a observância do princípio da legalidade, no
qual se resguarda o regime jurídico administrativo.
Assim, conclui-se que quando a atuação administrativa
puder se dar sem o uso de prerrogativas de autoridade, e
versar sobre direitos transacionáveis, renunciáveis e

- 102 -
alienáveis, estaremos tratando de patrimônios públicos
disponíveis (MAROLLA, 2016, p. 130).

Mediação em contratos administrativos e a promoção do


princípio da eficiência
A partir do estudo é possível concluir que a tendência
atual é a formação de parceria Estatal com o particular. Sob
esta premissa foi sancionada, por exemplo, a Lei de Parcerias
Público Privadas. A tendência legislativa foi registrada no
artigo 11, III da Lei 11.079/04, que prevê a possibilidade de
que o instrumento convocatório da licitação indique que os
conflitos derivados dos contratos firmados poderão ser
solucionados por meios privados de resolução de disputas.
Apesar da flexibilização e da desburocratização trazida
pela Administração pública gerencial e evidenciada pela
possibilidade de arbitragem no âmbito estatal, não há
disposição legislativa acerca do uso de mediação pela
Administração Pública. Tendo em vista a estrita legalidade,
questiona-se se há ou não necessidade de lei expressa para
que os institutos privados de resolução de conflitos sejam
utilizados pelo Estado.

- 103 -
Barroso (2012, p. 1274 apud MAROLLA, 2016, p. 69) e
Salles (2011, p. 215), antes da promulgação da Lei 11.129/15,
que passou a permitir expressamente o uso da arbitragem
pela Administração Pública, entendiam que havia a
necessidade de autorização legal explícita para que o meio
alternativo de conflito fosse aplicável à seara pública. Para os
autores, apesar da arbitragem ser compatível com a
Constituição, o seu uso afastaria o necessário controle
judicial. Por se tratar de renúncia a um direito constitucional,
haveria necessidade de disposição legal expressa. Além
disso, apesar de reconhecerem o princípio da eficiência,
afirmavam que este estaria em pé de igualdade com o
princípio da legalidade, que garante a guarda do interesse
público pela Administração.
Atualmente a discussão acerca da necessidade ou não
de Lei expressa tratando sobre a possibilidade da utilização
da arbitragem pela Administração pública não encontra mais
guarida, tendo em vista a publicação da Lei 13.129/15.
Entretanto não há dispositivo que garanta a possibilidade do
uso da mediação.

- 104 -
Talamini (2005, apud FALCÃO; GUERRA; ALMEIDA
(Orgs.), 2015, p. 96) aponta em seu estudo que a
possibilidade de utilização da arbitragem nunca dependeu do
dispositivo de Lei mencionado. Para o autor, o novo contexto
de atuação conjunta da Administração Pública e do setor
privado permite uma via de composição balizada pelo
consenso entre as partes, desde que respeitadas as garantias
fundamentais do procedimento. Sob esta análise, mesmo se
a Lei 13.129/15 não tivesse sido publicada caberia a
utilização da arbitragem pelo poder público.
Nesse mesmo sentido dispõe Souza Junior (2014, apud
MAROLLA, 2016, p. 67). Segundo o autor, a utilização da
arbitragem se constitui como direito fundamental, tendo em
vista o princípio da duração razoável do processo, estampado
no artigo 5º, LXXVIII, CF. Apesar de reconhecer que a
autorização legislativa concretiza o interesse público, afirma
que a necessidade de eficiência administrativa já garantiria o
direito ao uso do procedimento arbitral.
No que se refere a desnecessidade de autorização legal
para a utilização do juízo arbitral pela Administração Pública,
é preciso reconhecer que a previsão trazida pelo instituto

- 105 -
legal mencionado forneceu maior segurança jurídica para a
opção do gestor público em inserir cláusulas arbitrais nos
contratos em que figuram como parte a Administração
Pública. Apesar disso, sustenta-se a tese de que a legislação
anterior, bem como o novo contexto da Administração
Pública Gerencial já permitia o uso do instituto.
Nesse sentido entende-se a utilização da mediação
pelo poder Público. Apesar de não haver lei específica nesse
sentido, o contexto global atual permite que o Estado opte
por fixar essas possibilidades nos contratos administrativos e
da Administração. Isso porque os benefícios da utilização de
mecanismos alternativos de solução de conflitos são
explícitos e se coadunam com o princípio da eficiência, marco
da Administração Pública desburocratizada e flexível.
Inicialmente menciona-se o maior interesse de
investidores do setor privado, que, além da proteção
contratual, ganharam, em situações como as das parcerias
público privadas, respaldo legal para a utilização da
arbitragem, como alternativa para a morosidade do
Judiciário brasileiro. Além da celeridade, vê-se a
possibilidade de escolha de arbitro pelas partes, que, por não

- 106 -
precisarem ser advogados, podem trazer uma decisão mais
técnica à demanda (FALCÃO; GUERRA; ALMEIDA (Orgs.),
2015, p. 97). As mesmas considerações podem ser feitas na
aplicação da mediação, com a possibilidade de,
posteriormente, haver apreciação pelo Judiciário caso as
partes não entrem com consenso.
Verifica-se que, no caso da mediação não há, se quer,
a disponibilidade da apreciação pelo judiciário no início do
procedimento. Tento em vista que, em ambos os casos, os
conflitos são solucionados pelas partes, havendo diferença
apenas na intensidade da atuação do terceiro, pode ser
posteriormente submetido ao Judiciário.
Spengler e Ghisleni (2011, p. 99) defendem o uso da
mediação pela administração pública:

A mediação, portanto, além de consistir em


uma das bases fundamentais deste novo
modelo de gestão compartilhada, torna-se
prática consensuada de reestruturação
comunicativa e facilitadora do diálogo público
no âmbito da jurisdição. Ela permite que os
conflitantes se comuniquem de forma ampla
na tentativa de resolver adequadamente o
litígio existente, sem a imposição de uma
decisão por terceira pessoa, como ocorre no
processo judicial.

- 107 -
Aceita a utilização da mediação pelo Poder Público,
cumpre tratar dos limites aplicáveis a essa prática. A Lei
13.140/15, que dispõe acerca da mediação entre
particulares, prescreve no artigo 3º que “pode ser objeto de
mediação o conflito que verse sobre direitos disponíveis ou
sobre direitos indisponíveis que admitam transação”.
Observa-se que já na esfera privada não é possível que as
partes que possuam conflito, cujo objeto se refira a direitos
indisponíveis que não admitam transação, o submetam a
mediação.
O limite imposto pela Lei em muito se assemelha ao
limite do patrimônio disponível, já exposto. Conforme
conclusão anterior, os direitos decorrentes da atuação
administrativa em atos de gestão e que versem sobre direitos
transacionáveis, renunciáveis e alienáveis, são patrimônios
públicos disponíveis. Pela análise dos textos legais e das
considerações doutrinárias, concluiu-se que o limite imposto
à utilização da arbitragem pela Administração Pública
também se aplica à utilização da mediação.
Em todas as opções públicas por meios alternativos de
solução de conflitos, incidirá o limite do patrimônio

- 108 -
disponível. Apesar da limitação legal, é certo que a
arbitragem e a mediação como instrumentos jurídicos,
repercutem favoravelmente na economia do contrato
administrativo e na melhoria da prestação dos serviços
públicos, conforme proposto pela Administração Pública
Gerencial. Vê-se assim que os mecanismos apontados não
atuam apenas como adendo contratual, mas principalmente
como promotores de eficiência econômica e financeira.
A opção pela solução de litígios envolvendo a
Administração Pública através de meios alternativos de
conflitos não implica em renúncia de princípios
constitucionais ou do interesse público, mas sim em um
mecanismo para suas efetivações. O princípio do devido
processo legal (art. 5º, LIV, CF), contraditório, ampla defesa
(art. 5º, LV, CF), imparcialidade do julgador e fundamentação
das decisões são aplicáveis, por exemplo, ao já legalmente
regulado procedimento arbitral, sob pena de nulidade da
sentença (art. 21, §2º, 26, II e 33 Lei 9.307/96). Da mesma
forma, aqueles compatíveis, devem ser observados pelas
partes que participem de procedimentos de mediação.

- 109 -
Além disso, o emprego de procedimentos extrajudiciais
de resolução de conflitos representa a efetivação dos
princípios constitucionais de acesso à justiça (art. 5º, XXXV,
CF) e da duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII, CF).
Por fim, é evidente que a decisão arbitral, mais técnica e
prolatada em menor tempo, efetiva o princípio da eficiência,
diretriz chave da atuação gerencial do Estado trazida ao texto
constitucional pela Emenda 19/98 (art. 37, caput, CF).

Conclusão
A flexibilização e a desburocratização promovidas pela
Administração pública privada trouxeram grandes
transformações nos negócios jurídicos públicos. Dentre eles
cita-se a edição das Leis 8.987/95 e 9.074/95, que iniciaram
uma nova perspectiva de relação entre o Estado e parceiros
privados. Para estimular o interesse dos novos investidores e
promover a eficiência no serviço público, as leis mencionadas
trouxeram um rol de incentivos para que o setor privado
passasse a investir no setor público bem como autorizou do
uso de meios alternativos de resolução de conflitos.

- 110 -
A utilização da arbitragem pela administração pública
foi expressamente prevista em lei nos artigos 23-A da Lei
8.987/95, 43, inciso X da Lei 9.478/97, 35, inciso XVI da Lei
10.233/01, 11, inciso III da Lei 11.709/2004 e 39, inciso XI da
Lei 11.909/09. Posteriormente, a Lei Geral de arbitragem,
alterada em 2015, também dispôs de modo geral sobre a
utilização do mecanismo pelo Estado. Apesar do amplo
arcabouço legal acerca da arbitragem, não há Lei específica
que trate sobre o uso e limites da mediação no âmbito da
administração pública.
Com o estudo pode-se concluir que apesar de não
haver lei específica nesse sentido, o contexto global atual
permite que o Estado opte por fixar essas possibilidades nos
contratos administrativos e da Administração. Isso porque os
benefícios da utilização de mecanismos alternativos de
solução de conflitos são explícitos e se coadunam com o
princípio da eficiência, marco da Administração Pública
desburocratizada e flexível.
Acerca do limite do patrimônio disponível, previsto na
lei geral de arbitragem, concluiu-se que apesar da imprecisão
e insegurança relativa ao conceito de patrimônio disponível,

- 111 -
a doutrina menciona alguns critérios que contribuem para
essa análise: interesses públicos primários e secundários,
atos de império e atos de gestão, ordem pública,
possibilidade de transação, alienabilidade e
renunciabilidade, direitos em relação aos quais não há
proibição a que se reconheça a renúncia da jurisdição. A
conclusão, porém é no sentido de que sozinhos nenhum dos
critérios serão suficientes para a definição do patrimônio
disponível.
A verificação da disponibilidade deverá ser feita diante
do caso concreto pelo interprete administrativo, ou havendo
uma demanda posterior, por aquele que analisar a contenda
jurídica. Deverá, para tanto, passar por duas etapas de
verificação para concluir se a atuação administrativa se deu
sem o uso de prerrogativas de autoridade, e versou sobre
direitos transacionáveis, renunciáveis e alienáveis. Nessas
situações, estar-se-á tratando de patrimônios públicos
disponíveis.
Esse limite, introduzido pela Lei de arbitragem, do
mesmo modo deve ser aplicado as situações de uso da
mediação pela Administração Pública. Isso porque, trata-se

- 112 -
de atenção do legislador referente ao fato de renunciar o
judiciário na resolução do conflito, fato que ocorre em
qualquer mecanismo alternativo de solução de controvérsia.
Assim, em todas as opções públicas por meios alternativos de
solução de conflitos, incidirá o limite do patrimônio
disponível.
Apesar da limitação legal, é certo que a arbitragem e a
mediação como instrumentos jurídicos, repercutem
favoravelmente na economia do contrato administrativo e na
melhoria da prestação dos serviços públicos, conforme
proposto pela Administração Pública Gerencial. Vê-se assim
que os mecanismos apontados não atuam apenas como
adendo contratual, mas principalmente como promotores de
eficiência econômica e financeira.

- 113 -
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- 116 -
Justiça Restaurativa nos Juizados Especiais
Criminais

Juliana Kobata Chinen28

Introdução
Este trabalho parte da crise de legitimidade29 do
sistema criminal brasileiro, buscando investigar no que
consiste a Justiça Restaurativa e de que modo ela pode
contribuir para a adoção de um modelo mais humano e

28
Mestranda em Direito e Desenvolvimento pela Faculdade de Direito de
São Paulo, FGV.
29
Essa expressão tem sido utilizada por diversos autores como
diagnóstico para disfunções do sistema de justiça penal de ordens
distintas. São ressaltados, por exemplo, o embate entre fundamentos
jurídicos, políticos e filosóficos do sistema (FERRAJOLI, 2010, p. 15);
desgastes da legalidade abstrata e discurso jurídico esvaziado (AZEVEDO,
2000, p. 311), simultaneamente à crise fiscal do Estado Providência
(AZEVEDO, 2001, p. 98); a dificuldade do Estado em responder às novas
demandas da sociedade contemporâneas cada vez mais complexas,
abrangendo tanto o reconhecimento da lei quanto a fundamentação
racional (MAIS, 2014); a descrença da população no Judiciário pela
ineficácia e morosidade em dar uma resposta esperada pela sociedade
(RAUPP e BENEDETTI, 2007, p. 5). Outras expressões são utilizadas para
designar o estado do atual sistema de justiça: “crise de credibilidade”
(SLAKMON, DE VITTO e PINTO, p. 15) e “crise de representação” (2007,
OXHORN e SLAKMON, p. 192).

- 117 -
democrático de resolução consensual de conflitos no âmbito
dos Juizados Especiais Criminais.
Dentre os instrumentos previstos na Lei nº 9.099/95
podem ser citadas a conciliação e a transação entre as partes
envolvidas num conflito. A despeito das antagônicas
motivações da referida norma, que parece oscilar entre um
discurso humanista (ampliação do acesso à justiça, atenção à
vítima, reparação de danos e não aplicação de pena privativa
de liberdade) e pragmático-utilitarista (“desafogamento” do
Judiciário, informalidade, economia processual e eficiência),
é inegável a abertura, ainda que limitada e com as devidas
precauções, a uma lógica diversa da operante no sistema
processual penal brasileiro.
A partir de uma análise crítica do modelo de justiça
retributiva, a Justiça Restaurativa propõe uma mudança de
paradigma, pautando seus valores no diálogo e respeito
entre os envolvidos e buscando a pacificação social com a
mitigação do efeito excludente e estigmatizador decorrentes
da mera punição do sistema penal tradicional.
Busca-se, portanto, refletir acerca da possibilidade de
implementação do modelo restaurativo na sistemática dos

- 118 -
Juizados Especiais Criminais. Seriam os princípios
estabelecidos pela Lei nº 9.099/95, como a oralidade,
informalidade, economia processual, celeridade, bem como
os objetivos de reparação de danos e aplicação de pena não
privativa de liberdade em consonância com os valores da
justiça restaurativa? Até que ponto é possível estabelecer um
diálogo entre eles?
Inicialmente, serão apresentadas breves
considerações acerca do modo de funcionamento dos
Juizados Especiais Criminais e algumas problematizações; e,
posteriormente, dos princípios que orientam e caracterizam
a justiça restaurativa. Em seguida, pretende-se abordar a
questão da (in)compatibilidade do modelo restaurativo com
a Lei nº 9.099/95. Serão apresentados, ainda, alguns
apontamentos acerca de experiências restaurativas em curso
no âmbito dos Juizados Especiais Criminais em Brasília/DF.
Por fim, serão feitas ponderações acerca da discussão
apresentada, concluindo-se que, embora haja críticas
pertinentes acerca da Lei nº 9.099/95, o modelo restaurativo
pode contribuir para um aprimoramento da gestão
consensual de conflitos e da pacificação social. Ressalta-se,

- 119 -
ainda, a necessidade de adoção de medidas para evitar o
desvirtuamento do modelo restaurativo e o aumento do
controle social.

Instrumentos de Conciliação no Procedimento da Lei nº


9.099/95
Os Juizados Especiais Criminais foram criados pela Lei
nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, em consonância com
o disposto no artigo 98, inciso I, da Constituição Federal, para
o julgamento de infrações de menor potencial ofensivo, que,
nos termos do artigo 61, do referido diploma legal, são todas
as contravenções e os crimes cuja pena máxima não
ultrapasse dois anos30, cumulada ou não com multa.
Estão abarcados pelo procedimento sumaríssimo
infrações como lesão corporal leve (artigo 129, “caput”, do
CP), lesão corporal culposa na direção de veículo automotor
(artigo 303, do CTB), ameaça (artigo 147, do CP), difamação

30
Ressalte-se que, inicialmente, a lei previa como infrações de menor
potencial ofensivo, além das contravenções, apenas os crimes com pena
máxima não superior a 1 (um) ano, tendo a Lei nº 10.259, de 12 de julho
de 2001 (que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito
da Justiça Federal) ampliado a previsão para incluir crimes com pena
máxima de até 2 (dois) anos.

- 120 -
(artigo 139, do CP), injúria (artigo 140, do CP), dano (artigo
163, do CP), calúnia (artigo 138, do CP), perturbação do
sossego (artigo 42, da LCP) e vias de fato (artigo 21, da LCP).
Segundo a exposição de motivos da Lei nº 9.099/95,
a justificativa para a promulgação da referida norma foi “dar
cumprimento à norma constitucional”, estabelecendo
“normas gerais, quer para o procedimento, quer para o
processo”. Faz-se alusão à “necessidade de o sistema
processual penal brasileiro abrir-se às posições e tendências
contemporâneas, que exigem selam os procedimentos
adequados à concreta efetivação na norma penal” e se
admite a introdução no ordenamento jurídico brasileiro de
espaço para a “discricionariedade regulada” (controlada ou
regrada)31, frise-se com relação a delitos de menor
gravidade, em meio à regra geral dos princípios da

31
Segundo esse princípio, o Ministério Público pode dispor da persecução
penal para propor medidas alternativas, de modo a romper com a rigidez
do princípio da indisponibilidade da ação penal (GOMES, p.448)

- 121 -
obrigatoriedade32 e da indisponibilidade33 da ação penal
pública. O anteprojeto rechaçou a adoção do princípio da
oportunidade da ação penal, inspirando-se, de outra parte,
nas legislações italiana e portuguesa.
A exposição de motivos exalta a celeridade, a
oralidade, a desburocratização e a simplificação da justiça
como pontos positivos do procedimento sumaríssimo,
incorporando como objetivos da lei a reparação dos danos
sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de
liberdade. É interessante observar que o texto reconhece
que o Estado até o momento “pouco se preocupou” com a
vítima, a qual está “cada vez mais interessada na reparação
dos danos e cada vez menos na aplicação da sanção penal”,

32
Segundo Badaró (2008, p. 81), o princípio da obrigatoriedade (ou
princípio da legalidade) significa que o Ministério Público, ao receber o
inquérito policial ou outras peças de informação e se convencer da
existência de um delito e dos indícios de autoria a um indivíduo, estará
obrigado a oferecer denúncia. Não há, portanto, campo para
discricionariedade.
33
Leciona Badaró (2008, p. 81) que o princípio da indisponibilidade
significa que, “uma vez proposta a ação penal de iniciativa pública, que é
obrigatória, o Ministério Público não poderá dispor da pretensão
formulada. Nesse sentido, a indisponibilidade (posterior ao exercício do
direito de ação) é um complemento do princípio da obrigatoriedade
(anterior ao exercício do direito de ação)”.

- 122 -
diagnóstico que foge ao senso comum e aos discursos do
medo.
A partir dessa nova perspectiva, introduziu-se no
ordenamento jurídico um procedimento desburocratizado
com possibilidade de conciliação e transação, adotando-se
como princípios orientadores a oralidade, simplicidade,
informalidade, economia processual e celeridade (artigo 2º).
Antes do rito sumaríssimo propriamente dito (que
compreende a defesa preliminar, o recebimento ou rejeição
da denúncia, a citação, a audiência de instrução de
julgamento com a oitiva da vítima, das testemunhas de
acusação e de defesa, interrogatório, debates orais e
sentença), há uma audiência preliminar destinada à tentativa
de conciliação, por meio da composição civil e da transação
penal.
Inicialmente, busca-se a composição civil dos danos
entre o autor dos fatos e a vítima, prevista nos artigos 72 a
74, da Lei nº 9.099/95, e se trata de uma tentativa de acordo
acerca dos danos causados pelo ato lesivo. Realizado o
acordo, será reduzido a termo e homologado pelo juiz,
tornando-se sentença irrecorrível e com eficácia de título

- 123 -
executivo. A composição de danos resulta em renúncia da
vítima ao direito de queixa, em caso de infração de ação
privada, ou ao direito de representação, na hipótese de ação
penal pública condicionada, conduzindo à extinção da
punibilidade do agente. Na hipótese de ausência de acordo,
o ofendido poderá exercer o direito de queixa ou de
representação, nos casos de ação penal privada ou
condicionada à representação. Em se tratando de ação penal
pública incondicionada, havendo ou não acordo, ou no caso
da condicionada, se houver representação, o representante
do Ministério Público poderá propor a transação penal.
A transação penal, prevista no artigo 76, caput e
parágrafos, consiste na aplicação imediata de pena não
privativa de liberdade, preenchidos os seguintes requisitos:
circunstâncias judiciais favoráveis; não ter o agente sofrido
condenação definitiva a pena privativa de liberdade; e não
ter o autor sido beneficiado com outra transação penal no
prazo de cinco anos. Aceita a transação, homologada pelo
juiz, extingue-se a punibilidade do agente. Se não for aceita
a transação penal, o Ministério Público analisa o termo

- 124 -
circunstanciado e oferece denúncia, iniciando-se o rito
sumaríssimo supramencionado.
Ressalta-se que a transação penal consiste, portanto,
em acordo firmado entre o “parquet” e o autor dos fatos,
sem a participação ativa da vítima, no qual há a imposição
imediata de pena restritiva de direitos ou multa, sem a
ocorrência do devido processo legal, razão pela qual não são
discutidas questões de mérito, culpa e responsabilidade.
Anota-se que a realização da transação penal não implica na
assunção de culpa pelo autor dos fatos, não gera
reincidência, nem pode ser considerada para fins de maus
antecedentes, conforme disposto no artigo 76, §§4º e 6º, da
Lei nº 9.099/95. Observa-se, ainda, que o diploma legal prevê
tentativa de conciliação no início da audiência de instrução
em julgamento na hipótese de não ter sido tentada
anteriormente.
Por fim, o artigo 89, do diploma legal, prevê o
instituto da suspensão condicional do processo, que embora
inserida nessa lei, contempla uma gama maior de crimes
(pena mínima cominada não superior a um ano). Caracteriza-
se como uma transação entre o promotor de justiça e o autor

- 125 -
dos fatos, sem a participação da vítima, estabelecendo-se
condições a serem cumpridas pelo agente em troca do não
prosseguimento da ação penal. O acusado não pode estar
sendo processado ou ter sido condenado por outro crime e
devem estar presentes os requisitos previstos no artigo 77,
do Código Penal.
Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, o
processo fica suspenso pelo prazo de dois a quatro anos,
devendo o autor dos fatos cumprir as seguintes condições:
reparação do dano (salvo impossibilidade de fazê-lo),
proibição de frequentar determinados locais; proibição de
ausentar-se da comarca onde reside sem autorização
judicial; comparecimento pessoal em juízo mensalmente
para justificar suas atividades; além de outras obrigações
estipuladas pelo magistrado no caso concreto. A lei prevê
hipóteses de revogação obrigatória (responder o agente por
novo processo no período de suspensão ou não efetuar a
reparação do dano sem motivo justificado) e facultativa
(responder o acusado por contravenção penal ou descumprir
outra condição imposta) da suspensão condicional do
processo.

- 126 -
OsJuizadosEspeciaisCriminais ea Informalizaçãoda Justiça
A criação dos Juizados Especiais Criminais suscitou
variadas reações por parte dos estudiosos do direito penal.
Shecaira (2013, p.273) aponta que, ao entrar em vigor a Lei
nº 9.099/95, a maior parte da doutrina a recebeu
positivamente, como “uma nova filosofia político-criminal”,
mencionando como motivos: a eliminação de diversos crimes
da esfera penal, livrando de processo e propiciando a
realização de acordos; a ‘despenalização de fatos’ com a
adoção de processos e medidas alternativas com vistas a
dificulta a aplicação de pena de prisão; a adoção de posturas
‘descarcerizadoras’ de modo a evitar a prisão cautelar; a
‘abdicação de instâncias formais na resolução dos conflitos
penais’, podendo atribuir a tarefa conciliatória a juízes leigos;
e a atenção especial atribuída à vítima no processo de
realização dos acordos. Foram feitos elogios pela tentativa de
tornar a justiça menos formal, mais democrática e acessível
à população, além de possibilitar a conciliação entre as
partes e a ressocialização do infrator (GRINOVER et all, 2005,
p. 36 e 49/50).

- 127 -
Por outro lado, Shecaira (2013, p.273) destacou
críticas contundentes, como a “maximização dos resultados,
o eficientismo próprio da sociedade pós-industrial, acima do
valor da justiça” proferida por Miguel Reale Júnior e a
infringência ao princípio da legalidade por Cezar Roberto
Bittencourt. NUCCI (2009, p. 774) sustentou, ainda, a
possibilidade de violação aos princípios da intervenção
mínima (subsidiariedade), da fragmentariedade e da
proporcionalidade (NUCCI, 2009, p.774).
Nesse sentido, uma crítica recorrente e muito
pertinente diz respeito à extensão da rede de controle penal
(“netwidening”). Sustenta-se que os Juizados Especiais
Criminais acabaram atraindo para o sistema penal situações
e acusados que anteriormente não teriam nele ingressado,
por serem casos de pequena relevância, passíveis de
medidas como mera advertência policial.
Relacionada à essa crítica, é apontada a questão do
“não desafogamento” do sistema. Alega-se, ao contrário, o
risco de sobrecarregá-lo, contribuindo, ainda, para o
aumento do controle penal. Em pesquisa empírica realizada
por Azevedo (2001) nos Juizados Especiais Criminais em

- 128 -
Porto Alegre/RS, onde houve pioneirismo na implementação
no ano de 1996, foi analisado o movimento processual
criminal nos dois anos anteriores e posteriores à criação dos
Juizados. O estudo constatou que o volume dos processos
distribuídos nas antigas varas criminais permaneceu
praticamente inalterado e chegou-se à conclusão de que os
Juizados, ao invés de assumirem parcela desses processos,
“passaram a dar conta de um tipo de delituosidade que não
chegava até as Varas Judiciais, sendo resolvido através de
processos informais de ‘mediação’ nas Delegacias de Polícia
ou pelo puro e simples ‘engavetamento’” (2001, p. 103).
É imperioso citar, ainda, que o procedimento disposto
no referido diploma legal visa essencialmente obter um
resultado célere por meio da instrumentalização de formas
mitigadas de punição, sem propiciar uma participação
adequada dos envolvidos e uma ampliação dos espaços
democráticos de consenso. Nesse sentido, são outras críticas
apontadas por Azevedo (in PALLAMOLLA, 2009, p.18):

A falta de um espaço efetivo para o diálogo


entre as partes, o despreparo dos operadores
jurídicos para atuar num contexto onde a
mediação e o acordo eram mais importantes

- 129 -
do que adjudicação de culpa e a redação de
longas e elaboradas peças processuais, a
elevação da celeridade e economia processuais
como princípio que se sobrepunham ao
oferecimento de serviços judiciais adequados e
necessários ao propósito de pacificação das
relações sociais sem o atropelo de direitos,
tudo isso acabou por frustrar os propósitos
mais democráticos que estiveram por trás da
criação dos Juizados Especiais Criminais.

Azevedo (2001, p. 100) defende que os Juizados


Especiais Criminais integram uma lógica de informalização
que se pauta “não como a renúncia do Estado ao controle de
condutas e no alargamento das margens de tolerância, mas
como a procura de alternativas de controle mais eficazes e
menos onerosas”.
Ao encontro das reflexões supramencionadas, Sica
(2008, p. 169-182) vislumbra a transação penal como um
instituto que possibilita a aplicação de pena sem qualquer
análise de culpabilidade do agente, sem envolver a
participação da vítima e sem qualquer busca por integração
social do autor dos fatos.
Wunderlich (2004, p. 10-11), por sua vez, apresenta
possíveis razões para o que acredita ser o fracasso da Lei nº
9.099/95, a partir de uma análise da implementação dos

- 130 -
Juizados Especiais Criminais em Porto Alegre/RS em 1996: (i)
“o excessivo número de conflitos e a burocratização judicial”;
(ii) “o processo de seletividade exercido pela vítima e o ‘seu
poder denunciante’: a facilidade do registro do termo
circunstanciado e a obrigatoriedade do encaminhamento aos
Juizados”; (iii) “o despreparo dos juízes na mediação do
conflito”, o que também foi abordado por Azevedo (2001, p.
106); (iv) “a ausência da vítima em audiência: criação do
instituto da desistência tácita em ação penal pública”; (v)
conciliação infrutífera nos casos de violência contra a mulher
e ausência de assistência estatal no pós-conflito; (vi) “o
descumprimento dos termos legais da audiência preliminar:
audiências à distância e/ou coletivas”; (vii) “realização de
audiências sem a presença do MP e as partes sem assistência
jurídica”; (viii) “dificuldade para o arquivamento, imposição
de aceitação da transação penal e ausência de critério
razoável para o oferecimento da proposta”; (ix) “a transação
penal com imposição de pena e o seu descumprimento: pena
sem processo”; (x) “transação penal: ausência de devido
processo legal, violação ao princípio da presunção de
inocência e privatização da justiça”.

- 131 -
Diante das críticas tanto com relação à existência,
quanto ao funcionamento dos Juizados Especiais Criminais,
mas levando-se em consideração que esse sistema
processual penal continua operando, é fundamental a
reflexão sobre como aprimorar os potenciais apresentados
pela Lei nº 9.099/95 e como superar efeitos nefastos
colocados em jogo. Será que é possível uma aproximação dos
valores da justiça restaurativa com os mecanismos previstos
no diploma legal?

Breves Considerações sobre a Justiça Restaurativa


A Justiça Restaurativa como modelo inserido no
sistema judiciário de diversos países é fruto de
experimentações iniciadas nos anos 1980, de modo que não
nasceu de abstrações e conceitos puramente teóricos. A
teoria, o conceito e valores são mais recentes, tendo sido
moldados a partir da colocação em prática e adaptações de
tradições de comunidades de locais distintos do globo, como
as conferências de grupos familiares dos maoris da Nova
Zelândia; os círculos de sentenciamento das comunidades
aborígenes do Canadá; tradições e lei consuetudinária de

- 132 -
tribos africanas (ZEHR, 2012). No mesmo sentido, Marshall
(1999, p.7) salienta que a Justiça Restaurativa não consiste
em uma teoria acadêmica única sobre crime ou justiça; pelo
contrário, representa, de uma maneira eclética, a soma das
experiências atuais em trabalhar de modo bem sucedido com
o crime.
Há um consenso da comunidade acadêmica de que a
justiça restaurativa possui um conceito aberto e dinâmico,
definindo-se por seus princípios e valores. Em linhas gerais,
esse modelo traz a ideia de encontro das partes envolvidas
em um conflito com o auxílio de um facilitador, com foco na
reparação dos danos, na atribuição de responsabilidades e
no potencial transformador das relações.
Para fins deste artigo, será adotada a definição
utilizada pela Organização das Nações Unidas (ONU), na
Resolução nº 12/2002 do Conselho Social e Econômico, por
sua amplitude e aceitação em âmbito internacional:

Restaurative process means any process in


which the victim and the offender, and, where
appropriate, any other individuals or
community members affected by a crime,
participate together actively in the resolution
of matters arising from the crime, generally

- 133 -
with the help of a facilitator. Restorative
processes may include mediation, conciliation,
conferencing and sentencing circles34.

A Justiça Restaurativa propõe uma mudança de visão


sobre o crime, tradicionalmente entendido como uma
violação às regras impostas pelo Estado, passando a focar no
contexto social (MARSHALL35, 1999, p.5), ou seja, como um
conflito entre indivíduos que gerou danos aos envolvidos e
às relações sociais (SICA, 2007, p.234). Distanciando-se da
visão tradicional de crime, o foco passa a ser as pessoas
envolvidas no conflito social e nos danos e as necessidades
resultantes dessa interação. A orientação da resolução do
conflito volta-se, portanto, para o futuro (MARSHALL, 1999),

34
Tradução livre: Qualquer processo em que a vítima e o ofensor e,
quando apropriado, outros indivíduos ou membros da comunidade
afetados por um crime, participam juntos e ativamente na resolução das
questões surgidas com o delito, geralmente com a ajuda de um
facilitador.
35
Marshall (1999, p. 5) leciona que a Justiça Restaurativa não
compreende uma prática específica, mas sim um conjunto de princípios
orientadores para diversas experiências de qualquer agência ou grupo
em relação ao crime. Destaca os seguintes princípios35: (a) criação de
espaço para o envolvimento pessoal dos principais interessados,
notadamente o ofensor e a vítima, mas também seus familiares e
comunidades; (b) a visão do crime em seu contexto social; (c) a resolução
do conflito orientada para o futuro; e (d) flexibilidade da prática
restaurativa.

- 134 -
como a reparação e a possibilidade de transformação da
situação futura (ZEHR, 2012), e não mais para o passado,
como a retribuição por ato passado, que prevalece no
sistema de justiça criminal.
O modelo retributivo pauta-se por uma resposta
rígida da sociedade ao crime, por meio da ação do Estado,
que se apropria do conflito. O restabelecimento da ordem se
dá por meio do rigor no tratamento punitivo do criminoso,
negligenciando-se o réu, a própria vítima e as suas
necessidades. O modelo de justiça restaurativa, por sua vez,
busca retomar a relativa harmonia que precedia a violação
da norma, por meio de medidas que dão atenção tanto à
vítima, como ao infrator e às demais pessoas envolvidas.
Orientada pelo princípio da dignidade humana, a justiça
restaurativa propõe uma resolução consensual do conflito
que contemple as necessidades da vítima e do criminoso,
sem perder de vista a importância da defesa da ordem, tendo
em vista que objetiva a responsabilização do ofensor e busca
a pacificação social.
Desse modo, o modelo restaurativo, diferentemente
do modelo retributivo tradicional, pauta-se numa concepção

- 135 -
de justiça ligada à responsabilização, com ações voltadas ao
diálogo, participação e respeito entre os envolvidos. Busca a
pacificação social com a mitigação do efeito excludente e
estigmatizador decorrentes da mera punição do sistema
penal tradicional. Enfatiza primordialmente o dano sofrido
pela vítima e as necessidades dele resultantes; a
responsabilização do autor dos fatos, atentando-se também
para as suas necessidades; e o empoderamento das partes e
de outros envolvidos, como família e membros da sociedade;
e, sempre que possível, a reparação das relações afetadas
pelo conflito.
Os objetivos principais da justiça restaurativa
envolvem atender necessidades da vítima, em seus aspectos
material, financeiro, emocional e social; estimular que o
ofensor assuma responsabilidade por suas ações; e buscar a
pacificação social por meio de mecanismos não-violentos
(MARSHALL, 1999). O procedimento é voluntário, informal e
confidencial que se preocupa com as necessidades da vítima
e com a responsabilização do ofensor (PINTO, 2005,
p.24/25).

- 136 -
Dentre os princípios norteadores do modelo
restaurativo, conforme estudiosos e a Resolução das Nações
Unidas, podem ser citados: a não-dominação, o
empoderamento, o consentimento informado, a
voluntariedade, a confidencialidade, a manutenção da
presunção de inocência, o estabelecimento de regras para o
encaminhamento de casos para os programas, a obediência
aos limites máximos estabelecidos como sanções; a escuta
respeitosa; a preocupação igualitária com todos os
participantes; “accountability”/“appealability”, o
reconhecimento do acordo cumprido com força de coisa
julgada e o respeito aos direitos humanos da Declaração
Universal de Direitos Humanos e outros documentos
internacionais.
Os diversos programas existentes podem ser
aplicados em várias fases do processo penal: antes da ação
penal, antes do processo, depois da instrução e antes da
sentença ou após a sentença (PALLAMOLLA, 2009, p.109).
Na prática, muitos programas não adotam apenas um
modelo específico, podendo mesclar elementos de outros
modelos e, ainda, introduzir elementos próprios da cultura

- 137 -
local. Os modelos contemporâneos mais debatidos são os
programas de mediação vítima-infrator36, os encontros
restaurativos com grupos familiares37 e os círculos
restaurativos38, mas não são as únicas possibilidades. A

36
A mediação vítima entre vítima e ofensor (“VOM – Victim-offender
mediation”) consiste no encontro da vítima com o ofensor, sob a
orientação de um mediador, com o objetivo de alcançar um acordo
reparador. Em geral, há reuniões separadas com a vítima e com o ofensor
e, após o consentimento de ambos para a continuidade da prática
restaurativa, é realizado um encontro entre eles com a orientação de um
facilitador para garantir o equilíbrio entre as partes e estimular o diálogo,
sendo a dissuasão apenas seu caráter secundário. O resultado dos
encontros entre vítima e ofensor é a assinatura de um acordo, o qual
frequentemente envolve reparação de danos e restituição de bens. É
possível a participação de membros da família dos envolvidos, mas
possuem apenas papeis secundários neste modelo. Membros da
comunidade não participam dos encontros, atuando apenas como
facilitadoras ou supervisoras do acordo estabelecido entre as partes.
37
Nas conferências de grupos familiares (“FGC – Family Group
Conferencing”) ocorre a incorporação de familiares e outras pessoas
importantes para as partes diretamente envolvidas nos fatos. Merecem
destaque: a abordagem desenvolvida pela polícia australiana com
inspiração na Nova Zelândia; e o procedimento adotado pelas varas de
infância e juventude na Nova Zelândia, implantada pelo governo
neozelandês em 1989, com o “Children, Young Persons and Their Families
Act”.
38
Nos círculos restaurativos (“Restorative Circles”), há uma expansão do
rol de participantes, de modo que, além da vítima, ofensor, facilitador e
possivelmente profissionais do judiciário, conta-se com a presença
essencial de membros da comunidade, que podem ser convidados pelas
partes ou em razão de ligação ou interesse em uma infração específica.
Os participantes se reúnem em forma de círculo e cada um tem a
oportunidade de falar, na ordem em que estão sentados, sendo passado
um “bastão de fala”. A expansão do número de envolvidos nos encontros

- 138 -
grosso modo, os programas se distinguem quanto ao número
e pessoas envolvidas e quanto aos métodos de facilitação.
Mas a ideia central é possibilitar o diálogo entre os
interessados da forma mais aberta possível, por meio de uma
comunicação não-violenta e respeitosa, com o auxílio de um
facilitador.
Apenas a título ilustrativo, o procedimento
restaurativo pode compreender as seguintes etapas: (a)
análise e escolha dos casos para submissão à justiça
restaurativa; (b) reunião prévia individual com os envolvidos
com convite para a participação do procedimento
restaurativo; (c) encontro restaurativo; (d) pós-encontro e
acompanhamento das obrigações.
Os programas restaurativos devem ser
preferencialmente baseados na oralidade e relativa
informalidade, devendo apenas o acordo final constar nos
autos. Isso permite o maior envolvimento dos participantes,

com a participação ativa da comunidade tende a ampliar o diálogo,


envolvendo discussões acerca da responsabilidade ou contribuição da
comunidade para a ocorrência do conflito, com o apoio às partes
diretamente envolvidas, assim como outros assuntos de interesse da
comunidade.

- 139 -
que se sentem mais à vontade para se expressarem, e
garantem a confidencialidade do procedimento restaurativo.
Assim, o acordo deve ser reduzido a termo, ser
assinado pelos presentes (vítima, ofensor, facilitador e
outros interessados) e conter os pontos concretos de
entendimento alcançados pelos envolvidos, bem como
traçar um plano de reconstrução da relação conflituosa. É
fundamental que seja equilibrado, atribuindo benefícios e
obrigações para as partes; e detalhado, no sentido de definir
“quem haverá de fazer o quê, quando, durante quanto
tempo, em que condições e com que garantias” (FERREIRA,
2006, p. 35).

Justiça Restaurativa e Juizados Especiais Criminais: Diálogo


possível?
A normatização da justiça restaurativa no Brasil é
questão controvertida entre os estudiosos, uma vez que a
padronização dos mecanismos restaurativos, pode levar ao
efeito perverso de engessamento do modelo, caracterizado
por sua informalidade, dinamicidade e diversidade de
programas. Por outro lado, um dos maiores entraves

- 140 -
jurídicos para a justiça restaurativa no país diz respeito à
ausência de previsão legal que a incorpore no ordenamento
jurídico, especificamente na esfera penal, haja vista que no
processo penal brasileiro vigora, como já mencionado, os
princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação
penal.
Diante desse quadro normativo, a justiça restaurativa
no país não encontra bases para se consolidar como
procedimento alternativo, limitando-se às “janelas” contidas
em escassos dispositivos existentes na legislação pátria.
Conforme dito anteriormente, a Constituição Federal prevê,
no artigo 98, inciso I, a possibilidade de conciliação e de
transação para infrações de menor potencial ofensivo,
mediante os procedimentos oral e sumaríssimo. Assim, a
justiça restaurativa encontra nos Juizados Especiais
Criminais, notadamente nos institutos da composição civil,
da transação penal e da suspensão condicional do processo,
terreno para ser implementada, ainda que de forma muito
limitada39.

39
O instituto da remissão, previsto nos artigos 126 a 128, do Estatuto da
Criança e do Adolescente constitui uma “janela” para práticas
restaurativas ainda mais promissora, eis que pode ser concedida pelo

- 141 -
Estabelecido o campo de análise desse artigo,
pretende-se, sem a intenção de esgotar o tema, levantar
algumas questões acerca de um possível diálogo entre o
modelo restaurativo e os Juizados Especiais Criminais.
É certo que a Lei nº 9.099/95 trouxe oportuna
inovação ao ordenamento jurídico com a introdução do
“princípio da discricionariedade regrada”, o que contribui
para o desenvolvimento da justiça restaurativa, cuja
proposta envolve a resolução de conflitos sem acionar a
justiça penal tradicional. Porém, apenas a existência de
possibilidade legal de aplicação do modelo restaurativo não
justificaria, por si só, a sua utilização. Seria o espaço da Lei nº
9.099/95 adequado para a utilização das práticas
restaurativas? Quais seriam os pontos positivos e negativos
dessa interlocução?
Após breves ponderações acerca do escopo dos
Juizados Especiais Criminais e dos princípios da Justiça

Ministério Público ou pelo magistrado e qualquer fase do procedimento


(antes do seu início e até a sentença), pode ser cumulada com medidas
socioeducativas (advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de
serviços à comunidade, liberdade assistida e medias previstas no artigo
101, incisos I a VI, do ECA) e resulta na exclusão, extinção ou suspensão
do processo.

- 142 -
Restaurativa, constata-se que, ainda que os institutos e o
procedimento da Lei nº 9.099/95 permitam a aplicação de
práticas restaurativas, não estão propriamente alinhados
com esse modelo, em termos de valores.
Os defensores do referido diploma legal enfatizam a
celeridade, a informalização do processo e a eficiência
(traduzida como realização de acordo e arquivamento do
processo) como a própria razão de existência da lei, não
havendo, por vezes, preocupação com a conciliação em si,
com as partes envolvidas ou mesmo com a efetividade do
que fora acordado.
É imprescindível frisar que a Justiça Restaurativa não
se pauta pela celeridade e pela economia processual, que são
princípios explícitos na Lei nº 9.099/95. Com a preocupação
primordial na gestão consensual do conflito, o modelo
restaurativo não impõe pressão sobre as partes para a
realização de um acordo. É desejável que as partes cheguem
a um consenso e firmem um compromisso, atribuindo
obrigações de acordo com as suas necessidades, mas o
acordo não é considerado a principal meta.

- 143 -
Além disso, geralmente a prática restaurativa não se
limita a um único encontro, sendo recomendável tanto a
realização de reuniões individuais com os envolvidos para
preparação e obtenção do consentimento para o
prosseguimento na prática restaurativa, quanto encontros
pós-acordo para acompanhamento das partes. Por esses
motivos, o modelo restaurativo vai de encontro à celeridade
que se almejou com a Lei nº 9.099/95.
Há programas restaurativos que estimulam a
realização de reuniões prévias ao encontro propriamente
dito, o que parece contribuir para o sucesso da justiça
restaurativa. Essa fase prévia tem por objetivo informar as
partes acerca dos objetivos e funcionamento do programa,
além de resolver eventuais dúvidas e de estimular uma
reflexão inicial acerca do encontro a ser realizado.
Outra inquietação diz respeito à voluntariedade e ao
consentimento dos envolvidos para a prática restaurativa.
Essa questão é imprescindível para a realização dos
encontros restaurativos, não podendo em hipótese alguma
ser a vítima ou o ofensor obrigados a participar do programa.
Mais do que uma mera orientação, trata-se de um princípio

- 144 -
fundamental da justiça restaurativa, considerando a sua
proposta básica de resolução de conflitos a partir de um
diálogo e participação ativa dos envolvidos. Conforme
Relatório do ILANUD (2006, p.26):

Sabe-se que a voluntariedade por completo é


muito difícil porque a simples presença das
partes perante a justiça já é uma forma de
coação. Desta forma, entende-se que a
voluntariedade pode ser garantida por meio da
forma como as partes são informadas e
consultadas sobre a possibilidade da realização
da justiça restaurativa. É essa informação bem
prestada às partes que vai subsidiar sua decisão
de participar da justiça restaurativa. Para o
ofensor deve-se deixar claro que ao aceitar
participar da justiça restaurativa estar-se-á
assumindo a responsabilidade por um ato. Para
a vítima deve-se deixar claro que é uma chance
e que ela pode escolher. Assim, o ofensor
precisa ter o que se chama de ‘consenso
informado’ e a vítima ter a ‘chance informada’.

A realização da Medição Vitima-Ofensor (MVO), que


é a que mais se coaduna com a proposta dos Juizados
Especiais Criminais, depende da participação voluntária e
informada de ambas as partes do processo e, no âmbito do
rito previsto na Lei nº 9.099/95, apenas o instituto da
composição civil dos danos prevê a participação da vítima,

- 145 -
sendo o representante do Ministério Público, o protagonista
da transação penal e da suspensão condicional do processo.
Diante desse quadro, duas restrições importantes à
aplicação do modelo restaurativo merecem destaque: de um
lado, a limitação do escopo da composição civil (apenas
reparação do dano material); e, do outro, a exclusão da
vítima na gestão do conflito com o autor do dano. Para
superação dessas questões, seria recomendável a
incorporação do ofendido nas diversas oportunidades de
conciliação, bem como a relativização da atuação do
promotor de justiça nessa fase preliminar.
Um tema sensível, mas de extrema relevância,
relaciona-se ao papel dos operadores do direito no
procedimento restaurativo. O artigo 73, da Lei nº 9.099/95
prevê que a conciliação “será conduzida pelo juiz ou por
conciliador sob sua orientação”. Essa disposição colide
frontalmente com os valores restaurativos, que determina
que o encontro seja realizado entre as partes com o auxílio
de um facilitador, que é um indivíduo devidamente treinado
para a tarefa de coordenar e atuar de forma imparcial nos
encontros entre os envolvidos. Embora haja casos em que

- 146 -
funcionários do sistema de justiça atuam como facilitadores,
o ideal seria que esse papel fosse exercido por indivíduos não
pertencentes à estrutura do Estado e preferencialmente com
formação humanística.
A atuação do magistrado como conciliador e mesmo
a participação do promotor de justiça impõem dificuldades
para o procedimento restaurativo, especialmente por serem
representantes do Estado, responsáveis pela persecução
penal e pelo julgamento do autor do dano, caso o acordo não
seja possível. Tanto nas práticas restaurativas, como na Lei
nº 9.099/95, é enfatizado que não se busca a apuração da
culpa, a qual, inclusive, não pode ser considerada para fins
de persecução penal. Contudo, a mera presença do promotor
de justiça e magistrado na tentativa de conciliação prejudica
a relação de confiança que se tenta estabelecer entre as
partes para a solução conjunta de um conflito.
Aliás, a participação do autor da infração no processo
restaurativo implica certo reconhecimento de culpa, mas é
necessário enfatizar que não deve ser entendida de forma
alguma como prova de admissão de culpa, em caso de
eventual processo judicial posterior. Essa orientação está

- 147 -
expressamente contida no artigo 8º40, da Resolução da ONU
e vai ao encontro do princípio da presunção de inocência
(artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal). Para que essa
diretriz seja estritamente observada, enfatiza-se que
idealmente os programas restaurativos devem ser realizados
fora do ambiente judicial e não possuir um juiz como
facilitador.
Com relação ao procedimento restaurativo e à
elaboração do acordo, coloca-se em evidência o princípio da
confidencialidade, garantindo a proteção à intimidade e vida
privada dos envolvidos. Quanto a esse ponto, é pertinente
lembrar que a confidencialidade também possui o condão de
resguardar a presunção de inocência do autor dos fatos e
garantir a independência do procedimento restaurativo com
relação ao sistema de justiça comum. Isso porque tudo o que
ocorrer durante o encontro não poderá ser utilizado em
eventual processo judicial penal em desfavor do ofensor,

40
No original: “The victim and the offender should normally agree on the
basic facts of a case as the basis for their participation in a restorative
process. Participation of the offender shall not be used as evidence of
admission of guilt in subsequent legal proceedings”

- 148 -
como forma de assunção de culpa e para agravar sua
situação.
Há experiências restaurativas que preveem a
possibilidade de consulta de advogados pelo ofensor antes
da proposta final, como na Austrália, e a participação e o
acompanhamento efetivo de advogados nas reuniões
restaurativas, caso dos Estados Unidos e Nova Zelândia
(MORRIS, 2005, p.445), o que se coaduna com os institutos
da Lei dos Juizados Especiais Criminais. Por outro lado, pelos
valores da justiça restaurativa, não seria adequada a
participação de advogado, nessa qualidade, no encontro
restaurativo (RAUPP e BENEDETTI, 2007, p. 32), tendo em
vista que a sua presença (assim como no caso de outros
operadores do direito) poderia prejudicar a relação de
abertura que se tenta estabelecer entre os envolvidos, além
de colocar em risco o empoderamento das partes.
Quanto à elaboração do acordo, deve ser respeitada
a autonomia das partes na elaboração do acordo. Surge,
todavia, uma questão fundamental com relação à sua
definitividade: poderia o Judiciário intervir no que foi
estabelecido consensualmente entre os participantes? Em

- 149 -
caso afirmativo, quais seriam os limites dessa intervenção?
Embora o assunto demande uma reflexão mais aprofundada,
acredita-se que não haveria óbice à fiscalização pelo Poder
Judiciário e pelo Ministério Público, com vistas a garantir a
proporcionalidade das obrigações, evitando-se excessos e
questões vexatórias aos envolvidos (RAUPP e BENEDETTI,
2007, p. 26). Porém, é importante frisar que os operadores
do direito devem ter cautela com relação à eventual
intervenção no acordo, a qual só deve ocorrer em casos
excepcionais.
Por fim, fazendo coro a preocupações já abordadas,
Sica (2008, p.159) assevera que a Justiça Restaurativa não
deve atuar como mero paliativo para a crise do sistema de
justiça criminal, nem tida como mecanismo para desafogar o
Judiciário e de extensão da sua malha de atuação. Sugere,
portanto, medidas para evitar essa “captura”, como a adoção
de critérios claros de derivação, ou seja, a previsão de quais
casos são passíveis de encaminhamento, evitando-se a
inclusão de casos de pouquíssima relevância social. O autor
(208, p. 235) defende a imprescindibilidade do princípio da
ofensividade, a partir de uma análise concreta de lesão ou

- 150 -
perigo de lesão ao bem jurídico, como critério para a
submissão de casos para a justiça restaurativa.
Relacionada a essa reflexão, há estudiosos que
defendem que as práticas restaurativas não devem ser
dirigidas a infrações de pouca gravidade, mas sim aos delitos
mais graves (ZEHR, 2012; MARSHALL, 1999), seja pela
limitação de recursos e a questão de custo-benefício (“cost-
effectiveness”), seja pelos benefícios significativos para os
envolvidos. Argumenta-se que a limitação da atuação da
justiça restaurativa a infrações menores pode reduzir a
eficácia das medidas restaurativas, de modo que o critério a
ser adotado deve prescindir da gravidade do delito, levando-
se em consideração aspectos como circunstâncias, atitudes,
sentimentos, motivações das partes (MARSHALL, 1999,
p.25). Levando-se em consideração essa linha de
pensamento, o modelo restaurativo não seria adequado para
lidar com as infrações de menor potencial ofensivo.
No entanto, nem todos os conflitos cominados com
pena máxima de até dois anos podem ser considerados de
diminuta relevância social. Casos como ameaça, dano e lesão
corporal poderiam ser resolvidos de maneira eficaz por meio

- 151 -
do modelo restaurativo. Há pesquisas, ainda, que
demonstram alto grau de satisfação dos participantes de
encontros restaurativos com os acordos firmados e sugerem
a possibilidade de diminuição da reincidência, ainda que este
não seja um objetivo primordial da justiça restaurativa
(ZEHR, 2012; UMBREIT, 2007).
Uma pesquisa do ILANUD (2006) averiguou que, no
programa restaurativo de Brasília, implementado no 1º e no
2º Juizados Especiais de Competência Geral do Núcleo
Bandeirantes, abrangendo cinco regiões administrativas do
Distrito Federal, os conflitos mais comuns foram ameaça,
delitos de trânsito, lesões corporais e perturbação da
tranquilidade. Segundo relatório publicado no site do
Tribunal de Justiça do Distrito Federal sobre as atividades
realizadas no ano de 2013, noventa processos foram
atendidos na justiça restaurativa, dos quais 27 obtiveram em
acordo restaurativo; 12 não resultaram em acordo; 40
processos encontram-se em andamento; e 11 foram
devolvidos por não estarem de acordo com a metodologia
“mediação vítima-ofensor”. Os principais conflitos

- 152 -
envolveram ameaça (38%), injúria (34%), violência familiar
(25%) e lesão corporal (14%).

Considerações Finais
O presente trabalho partiu do diagnóstico
compartilhado por cientistas sociais e penalistas acerca de
um contexto de crise de legitimidade do sistema de justiça
penal, caracterizado pela massiva criminalização de condutas
e crescente controle do Estado sobre os indivíduos. Diante da
impossibilidade do Estado de dar uma resposta aos conflitos
da sociedade, surgem reformas político-criminais pautados
na celeridade, eficiência e informalização da justiça, das
quais a Lei nº 9.099/95 é um exemplo.
A lei apresenta-se como bem intencionada ou pelo
menos incorpora no seu discurso ideias de acesso à justiça
por meio da desburocratização, atenção à vítima, busca pela
reparação dos danos e aplicação de pena não privativa de
liberdade. Entretanto, é necessário questionar em que
medida os Juizados Especiais Criminais, especialmente com
seus mecanismos de conciliação, incorporam valores que
podem ser um contraponto ao modelo de justiça tradicional,

- 153 -
ou se apenas contribuem para o aumento do controle social,
incorporando condutas que sequer deveriam chegar ao
Judiciário por ausência de ofensividade.
Partindo-se da constatação de que a Lei nº 9.099/95
admite “janelas” para a aplicação da Justiça Restaurativa,
buscou-se refletir acerca de um possível diálogo em direção
à incorporação no sistema brasileiro de um modelo
alternativo de administração consensual de conflitos, ainda
que voltado apenas para infrações de menor potencial
ofensivo, o que aumenta os riscos da expansão da rede de
controle penal.
A proposta da justiça restaurativa é promissora,
especialmente quando comparada com o sistema retributivo
de justiça. Ao lançar um novo olhar sobre o fenômeno do
delito, o modelo restaurativo oferece à vítima e ao autor dos
fatos um papel de protagonismo que permite uma melhor
compreensão pelas partes envolvidas das causas e dos
impactos das ações, bem como a responsabilização, levando-
se em consideração as suas necessidades.
A despeito das inegáveis e preocupantes críticas
acerca da Lei nº 9.099/95, sustenta-se que o modelo

- 154 -
restaurativo pode contribuir para um aprimoramento da
resolução consensual de conflitos, desde que sejam adotadas
medidas para evitar o desvirtuamento dos seus valores por
uma lógica meramente instrumental e utilitarista.
Inicialmente, é essencial a incorporação da lógica do
programa restaurativo como alternativa ao sistema
tradicional e não como mero complemento ou paliativo, o
que deve ser enfatizado tanto para a equipe técnica e
operadores do direito, quanto para as partes envolvidas nos
encontros. Raupp e Benedetti (2007, pp. 8-9) sustentam que
a prática restaurativa deve se atentar a duas diretrizes: uma
institucional, com vistas ao “aperfeiçoamento da
administração da justiça, constatado pelo grau de satisfação
das partes e de mudança na percepção dos operadores do
direito, o que pode contribuir para a mudança na percepção
da sociedade sobre a justiça”; e outra político-criminal, que
seria a “redução do controle penal formal”.
Com relação aos casos submetidos à justiça
restaurativa, antes do encaminhamento ao encontro
restaurativo, sugere-se o arquivamento de casos de
insignificância e de pouquíssima relevância social, por meio

- 155 -
da análise do princípio da ofensividade no caso concreto,
para evitar a captura desse modelo para a extensão do
controle penal.
Ademais, deve ser estimulada a submissão dos casos
à prática restaurativa, atendando-se para a não imposição
aos envolvidos, seja da participação na conciliação, seja na
efetivação de um acordo. O diálogo respeitoso deve ser
incentivado, adotando-se como foco central a
responsabilização dos fatos e as necessidades das partes.
Além disso, a consolidação da equipe técnica é
imprescindível para a obtenção de resultados nas práticas
restaurativas, razão pela qual os programas devem dar
especial atenção ao treinamento e capacitação constante
dos facilitadores, bem como a avaliações periódicas dos
procedimentos realizados, com análises quantitativas e
qualitativas.
O último ponto a ser destacado é que para a efetiva
implementação do processo restaurativo, além de uma base
legislativa adequada e de estrutura física e humana
adequada, é imprescindível uma cultura jurídica de aceitação
de uma política alternativa ao regime punitivo tradicional. A

- 156 -
resistência por parte das autoridades e da equipe técnica
quanto ao encaminhamento de casos para os programas
restaurativos podem macular a viabilidade do modelo. Na
medida do possível, os mecanismos de conciliação previstos
nos Juizados Especiais Criminais devem ser percebidos como
uma oportunidade de mudança de política criminal.

- 157 -
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http://www.arcos.org.br/livros/estudos-de-arbitragem-
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- 162 -
Sobre os autores

Cristiano Aparecido Quinaia


http://lattes.cnpq.br/3355159770670260
Bacharel em Direito (2010), Especialista em Direito Civil e
Processual Civil (2014), Mestrando em Direito Constitucional pelo
Núcleo de Pós-graduação Stricto Senso mantido pela Instituição
Toledo de Ensino. Associado da Freitas Martinho Advogados,
militante na área Empresarial e Tributária.

Juliana Kobata Chinen


http://lattes.cnpq.br/9362634930781427
Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (2009) e
mestranda em Direito e Desenvolvimento pela Faculdade de Direito
de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (GV Direito) desde 2015.

Lara Caxico Martins Miranda


http://lattes.cnpq.br/8153609668262095
Atualmente mestranda em Direito Negocial pela Universidade
Estadual de Londrina. Bolsista Capes. Pós-Graduação em Direito do
Trabalho e Processo do Trabalho pelo Damásio e Pós-Graduação
em Direito Constitucional pelo Complexo de Ensino LFG. Possui
graduação em DIREITO pela Universidade Estadual de Londrina
(2014).

Lia Beatriz Torraca (Organizadora)


http://lattes.cnpq.br/3485252759389457
Bacharel em Direito (1992) pela FND/UFRJ, mestre (2015) em
Direito pelo PPGD/ FND/UFRJ, e doutoranda em Direito pelo
PPGD/FND/UFRJ, com ênfase em Direitos Humanos, Sociedade e
Arte, com o projeto intitulado "O Espetáculo do Real: a estética da
violência e as formas da (des)ordem", sob a orientação do Professor
Raffaele De Giorgi - Università del Salento, Itália. A dissertação de
mestrado, intitulada "Democracia Encurralada: uma análise sócio-

- 163 -
juridica das manifestações de 2013 no Rio de Janeiro", foi orientada
pela Professora Titular Juliana Neueschwander Magalhães -
PPGD/FND/ UFRJ. Experiência em Direito de Família, Direito do
Consumidor. Editora adjunta da Mares Editora. Integrante do
Grupo de Pesquisa em Direito e Cinema - UFRJ. e respectivos
PROCAD, como também da Rede Latino-americana de Pesquisa em
Teorias dos Sistemas, Direito e Política. Autora do livro: Democracia
Encurralada: os reflexos das manifestações de 2013 no Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, RJ: Editora Lumen Juris. Coordenadora de
Mídias do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRJ - FND -
desde fev 2016.

Luciana Direito (Organizadora)


Promotora de Justiça, Ministério Público do Estado do Rio de
Janeiro, titulada da VI Promotoria de Justiça do Idoso e Pessoa com
Deficiência da Capital, pós-graduação em Child Protection pela
Brunnel University of London, metro do Grupo de Mediação e
Resolução de Conflito do Ministério Público do Estado do Rio de
Janeiro.

Luís Henrique Bortolai


http://lattes.cnpq.br/9512431526945279
Professor de Direito, com ênfase nas áreas de processo civil e
direito civil. Doutor em "Acesso à justiça", na qual desenvolveu a
tese "Acesso à informação jurídica no ensino fundamental
brasileiro como forma de ampliação do acesso à justiça" na
Faculdade Autônoma de Direito - FADISP (2016). Mestre em
"Acesso à Justiça", na qual defendeu a dissertação cujo título é
"Projetos de extensão universitária nas faculdades de direito:
disseminação do conhecimento jurídico à população como meio de
efetivação do acesso à justiça" na Faculdade Autônoma de Direito -
FADISP (2012), aprovado com distinção. Pós-graduado em Direito
Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, na
qual defendeu a monografia "A imunidade tributária e o livro
eletrônico na Constituição Federal de 1988 e no ordenamento

- 164 -
jurídico brasileiro" (2011), aprovado com distinção. Membro da
Comissão de Cursos e Palestras da Ordem dos Advogados do Brasil
- Subseção de Campinas, do CONPEDI (Conselho Nacional de
Pesquisa e Pós-Graduação em Direito) e do CEAPRO (Centro de
Estudos Avançados de Processo). Parecerista de uma série de
revistas jurídicas nacionais.

Patrícia Carvão (Organizadora)


Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio de
Janeiro, titular da V Procuradoria de Tutela Coletiva, Mestre em
Direito Civil pela UERJ, com a dissertação "O Caráter Punitivo do
Dano Moral, pós-graduação em métodos adequados de resolução
extrajudicial de conflitos pela UCAM.

- 165 -
Nossa proposta é refletir sobre a
Mediação como uma nova forma de
olhar o conflito, sob a perspectiva do
direito. Através daMediação, é possível
aperfeiçoarmos estratégias de
prevenção de conflitos, construindo
basesparaumasociedademais saudável
e menos belicosa. A Mediação é uma
saída para a tendência de judicialização
da vida, oferecendo-nos alternativas
para resolvermos nossos problemas, ao
invés demultiplicá-los.
Este livro demonstra a amplitude do
tema proposto, sem que tenhamos a
pretensão de esgotá-lo, nem apresentar
reflexões incontestáveis. Pelo contrário,
acreditamos que os quatro capítulos
instigarão o leitor a mergulhar no
universo da Mediação e as inúmeras
possibilidades de pensar o direito, e o
próprio conflito.

- 166 -

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