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1ª Edição

Belo Horizonte
2018
Copyright ©2018 Thais Lopes

Capa & Diagramação


Thais Lopes

Todos os direitos reservados. É proibido o armazenamento ou a reprodução


de qualquer parte desta obra – física ou eletrônica -, sem a autorização prévia
do autor.
Para todo mundo que passou esse tempo todo perguntando “mas e a
Carol?”
Demorou, mas saiu.
UM
Puta merda. Isso só pode ser brincadeira. Não tem outra explicação,
porque olha, isso passou dos limites das surpresas desagradáveis da vida.
Encaro as costas do homem que estou vendo através do vidro que separa
uma das salas de reuniões do corredor. Ele está vestindo calça jeans e uma
blusa azul, o que é extremamente comum. Alto, com pele morena e cabelo
escuro e liso mais ou menos na altura do ombro, o que também não é tão
incomum. Nem a postura perfeita dele é incomum, mesmo que seja novidade.
Todo mundo dentro da APLA acaba pegando um pouco disso. Agora, a
tatuagem que consigo ver no seu braço esquerdo? Ela não é nem um pouco
comum. Caralho.
Seguro o braço de Débora quando ela vai abrir a porta.
— Esse é o consultor?
— Acho que sim. — Ela dá de ombros. — Qual o problema?
— Nenhum.
Todos.
Quatro anos atrás, eu terminei um namoro quando descobri que meu
namorado era um alien e estava me usando para se alimentar. Os drillianos
são uma espécie que depende da energia vital de outros seres. Não tenho
nenhum problema com esse tipo de coisa, e eles nem são a única espécie
alien que precisa disso, mas eles são a única que causa uma dependência
patológica. Se não estiver preparada, a pessoa que está servindo de alimento
perde por completo a vontade própria. Vira um fantoche do drilliano.
Existe um procedimento padrão e tudo mais para isso. No Acordo, que é
como os aliens chamam o seu governo central, os drillianos são apresentados
para doadores em potenciais. Esses doadores são treinados antes para não
terem problemas com a coisa da dependência e em troca, além de
compensação financeira, podem ganhar alguma característica dos drillianos.
Se eu estava preparada quando Lucas começou a se alimentar de mim?
Caralho, eu nem sabia que aliens existiam. Achei que estava ficando louca.
E agora Lucas está aqui. Sentado em uma sala de reuniões da APLA. O
consultor enviado pelo Acordo para trabalhar conosco no período de teste de
implantação das leis que vão proteger a Terra.
Lucas. No meu projeto. Não, só não.
— Quais as chances de eu conseguir me livrar dele? — Resmungo.
— Mais ou menos as mesmas chances de eu pedir para mudar de setor
— Débora responde e cutuca minha mão.
Solto seu braço e respiro fundo. Puta que pariu, sério mesmo que
escolheram justo Lucas como consultor?
Já faz muito tempo que os aliens do Acordo sabem sobre a Terra. Tem
tantos deles morando e passeando por aqui que criaram a APLA –
Associação Planetária de Ligação com o Acordo. E nesse tempo alguns aliens
tiveram a ideia genial de abduzir terráqueos para nos vender. Mais
especificamente, abduzir mulheres terráqueas. Minha prima Gabi foi uma
delas. No fim das contas, ela conseguiu ajudar a prender um dos
financiadores dos mercados, criou uma força-tarefa para resgatar terráqueas e
caçar os mercadores, e está trabalhando para conseguir mudar as leis do
Acordo para nos proteger.
Quer dizer, estava. Faz pouco mais de uma semana que ela me avisou
que as alterações nas leis foram aprovadas. Agora vem a pior parte: teste de
implantação. Um representante do Acordo e uma representante dos
terráqueos precisam trabalhar os detalhes do que foi proposto e garantir que
as leis sejam viáveis para todas as espécies do Acordo, ou a alteração vai ser
revogada.
Não acho que seja difícil fazer um “não bota a mão em ninguém que não
queira e que não sabe que é um alien nem leve ninguém para lugar nenhum”
ser viável para todas as espécies. Mas aliens são estranhos. E teimosos.
Eu passei os últimos dois anos e meio trabalhando para ter a melhor
reputação possível, para ter certeza de que ia ser a indicada, estudando tudo o
que consegui sobre as espécies do Acordo e criando um projeto funcional.
Dois anos e meio de trabalho que eu vou ter que jogar no lixo. Puta que pariu.
Mas eu nunca vou conseguir trabalhar com Lucas, muito menos em uma
coisa importante assim. Sem chances. Então, se não conseguir me livrar dele,
vou ter que cair fora.
Respiro fundo e me endireito. Vai ser melhor assim. Caio fora, outro
agente da APLA assume, alguém não vai ter problemas com o consultor
deles. Certo. Merda.
— Carol? — Débora chama.
Balanço a cabeça. Hudson, o diretor da nossa unidade, já notou que
estamos aqui fora, mas continua conversando com Lucas como se nada
estivesse acontecendo. Foram dois anos para ter a confiança dele assim, e
tudo à toa.
Respiro fundo e assinto. Débora abre a porta e entra. Vou atrás dela,
fechando a porta atrás de nós. Isso provavelmente não vai demorar. Lucas se
vira para mim, mas o ignoro. Olho direto para Hudson, que está me
encarando. É, ele está irritado porque demoramos conversando lá fora. Mal
sabe ele...
— Ótimo — Hudson fala enquanto nos sentamos. — Senhor Vertan,
estas são as agentes Carolina Dutra e Débora Rocha. A agente Dutra irá
trabalhar com você neste projeto. Agentes, este é Lucas Vertan, consultor do
Acordo.
Débora murmura um cumprimento educado, mas nem fodendo que vou
fazer isso.
— Já nos conhecemos, diretor — falo, sem me virar para Lucas. Sim,
ainda estou com raiva. Me julgue.
Hudson olha para mim e levanta uma sobrancelha.
— Ele foi meu vizinho quando morava na Terra — explico.
Obviamente, ele não usava o nome Vertan. E aposto que tem outro nome
sem ser Lucas.
— Estava me perguntando se ia me reconhecer — Lucas comenta. — É
bom te ver.
Me viro para ele. Lucas está sorrindo, como se eu não tivesse um ótimo
motivo para nunca mais querer ver a cara dele.
Respiro fundo. É agora ou nunca.
— Infelizmente não posso falar o mesmo. — Tenho a satisfação de ver
Lucas empalidecer e olho para Hudson de novo. — Estou entrando com um
pedido formal de remanejamento de pessoal.
Débora faz um ruído surpreso e a expressão de Hudson se fecha.
— Sob qual alegação?
— Irresponsabilidade, instabilidade e comprometimento pessoal.
O silêncio é tão completo que se uma mosca entrasse aqui eu ia ouvir.
— Você sabe que eu não podia contar que não era terráqueo — Lucas
murmura.
— Sei — respondo sem olhar para ele. — E isso não tem nada a ver com
meu pedido.
— Carol... — ele começa.
O diretor levanta a mão. Lucas se cala. Ótimo. Dentro da agência,
Hudson é a autoridade máxima. Até mesmo um dos aliens tem que obedecer.
— São acusações graves, agente Dutra. Qual a sua base para fazê-las?
Respiro fundo de novo. Quando tudo aconteceu, a APLA mandou
agentes para apagar a minha memória e a da minha família. Mas eu sou
imune ao que usaram, por causa das características drillianas que já tinha
absorvido. Na época, a diretora da unidade de Belo Horizonte da APLA era
Andréia, que hoje é a diretora nacional. Ela entrou em contato comigo e
depois me ofereceu um trabalho aqui. Foi sugestão dela manter em segredo o
fato de que eu tinha sido modificada. Pelo que sabemos, foi por isso que os
aliens queriam me abduzir e acabaram levando minha prima por engano.
Então, melhor ninguém saber do que aconteceu. Nem mesmo Hudson.
— Lucas Vertan era meu namorado na época em que ele completou
vinte e cinco anos, a maturidade drilliana — falo, sabendo que Hudson vai
entender.
Vinte e cinco anos é quando os drillianos passam a necessitar de um
doador.
Hudson estreita os olhos.
— Isso é uma insinuação.
Balanço a cabeça.
— Não. Olhe os arquivos de exposição acidental. Estará lá. Lucas
Vertan se alimentou de mim e tentou me colocar sob seu controle.
Ele sustenta meu olhar por um instante antes de tocar no tablet na sua
frente. Espero, em silêncio, ignorando o peso do olhar de Lucas.
— Você está fazendo suposições — Hudson fala e inclina a cabeça.
Conheço esse gesto. É minha chance de recuar. Mas não vou fazer isso.
Lucas foi longe demais no que ele fez comigo. Tenho sorte por não ter virado
uma fantoche dele.
Balanço a cabeça de novo.
— Ele já tinha ido longe demais quando os agentes me encontraram. A
limpeza de memória e as sugestões funcionaram nos meus pais e na minha
irmã, mas não em mim — conto, colocando a mão direita na mesa. Uma
camada fina de algo que parece escamas transparentes cobre minha pele e
então desaparece.
— Então foi por isso que aquele tiro... — Débora começa e para.
Assinto. Dois anos atrás eu tomei um tiro de pistola híbrida quando a
APLA apreendeu uma kyris. Na época, falei que a pistola estava mal
calibrada, mas a verdade é que usei as escamas.
— Diretor, nunca falei nada sobre isso nem deixei ninguém perceber
porque essa parte da minha ficha não está fechada por acaso.
Hudson suspira, ainda com aquela expressão fechada.
— Senhor Vertan, tem algo a dizer? — Ele pergunta, se virando para o
meu ex.
Olho para ele. Lucas está me encarando com um olhar duro que nunca vi
antes. Se fodeu. Achou que eu não ia falar nada, é?
— Não vou negar a acusação — ele fala e eu levanto as sobrancelhas. -–
Fui irresponsável e paguei por isso, pelas leis do Acordo.
Não vou sorrir. Não vou. Mas disso eu já sabia. Gabi me contou.
A expressão de Lucas fica ainda mais dura.
— Se quiserem levar este projeto adiante, sou a única pessoa que o
Acordo vai encaminhar. Os outros possíveis consultores têm ligações
próximas demais com a APLA e o Conselho considera que não são
imparciais o suficiente.
Ou seja, não vou conseguir me livrar dele. Valeu a tentativa.
Puta que pariu. Não acredito que vou pular fora desse projeto. Quero
matar Lucas. Lentamente, se possível. Mas não posso fazer isso junto com
ele. Além da questão pessoal, não sei até onde ele foi quando se alimentou de
mim. Não sei se consegue me controlar de alguma forma.
— Agente Dutra? — Hudson chama.
É, não tenho outra opção. Caralho.
— Sendo assim, diretor, recomendo que o projeto seja repassado para o
agente Eduardo Rodrigues, com Débora como sua assistente. Ele
acompanhou os estágios inicias e posso lhe explicar o restante rapidamente.
Eduardo vai fazer um bom trabalho, tenho certeza. Ele não teve dois
anos para se preparar, mas é bom e sabe como lidar com os aliens, além de
ter não sei quantos anos a mais de experiência. Vai dar certo.
Débora começa a falar alguma coisa e para. Olho para ela, que está me
encarando como se eu fosse o alien na sala.
— Com sua permissão, diretor... — começo a me levantar.
— Sente-se.
Obedeço. Por essa eu não esperava. Achei que ele fosse aproveitar a
solução fácil.
— Este é seu projeto, Carol — Hudson fala. — Não só porque você foi a
escolhida para trabalhar nele pela APLA, desde o começo, mas também
porque é a única humana que o Conselho do Acordo está disposto a ouvir,
por causa da sua reputação. Andréia foi bem clara sobre isso, e agora entendo
o motivo.
Porque Andréia ia saber que o “senhor Vertan”, consultor do Acordo, é o
mesmo Lucas que quase me fodeu. E ia imaginar minha reação. Espero que
ela tenha um ótimo motivo para ter jogado essa porra dessa bomba em cima
de mim.
— Estamos em um impasse. Tem alguma sugestão, agente Dutra? Senão
teremos que deixar a burocracia resolver isto.
Okaaaaay. Eu acho que ele está falando sério. Pensei que a coisa da
reputação fosse só para me convencer, mas se é verdade, posso ter uma
terceira opção.
Assinto.
— Preciso enviar uma mensagem.
Ele assente e tiro meu celular da bolsa. Ele parece um smartphone
moderno bem genérico. Comum o suficiente para ninguém achar estranho,
mas na verdade é tecnologia do Acordo, que usa as redes de retransmissão
deles. Ou seja, tenho um celular que manda mensagens para outros planetas.
Digito uma mensagem para Gabi, explicando o que aconteceu. Se tem
alguém que pode me ajudar, é ela. O praticamente-marido dele é o chefão da
porra toda do Corpo Militar do Acordo.
Esperamos em silêncio. Lucas continua me encarando, mas eu fico com
o olhar fixo no celular, ignorando a tensão na sala.
Meu celular apita.
Gabi: Merda, eu sabia que tinha alguma coisa podre nesse cara. Não
tem nada nos registros ligando Vertan ao nome que ele usava na Terra. Mas
o Conselho realmente quer ele envolvido, não sei por quê. Ainda. Kernos diz
que pode indicar outra pessoa para servir como consultor e deixar Lucas
como observador. Ajuda?
Faço um esforço para não sorrir. É melhor que nada.
Carol: Vai ajudar mais ainda se o novo consultor conseguir detectar o
uso de habilidades drillianas. E se ele não foi um babaca.
Gabi: Pode deixar. E até parece que Kernos tem paciência com
babacas. Vamos esperar você no espaçoporto central.
Carol: Obrigada.
Guardo o celular, me virando para Hudson.
— A comunicação oficial deve chegar em algumas horas. Vamos ter um
novo consultor e Lucas Vertan irá como observador — conto. — Kernos vai
nos encontrar no espaçoporto para apresentar o novo consultor.
Hudson assente, sem parecer surpreso. Acho que tem mais coisas do que
eu pensei na parte fechada da minha ficha.
— Excelente. Vamos aguardar, e...
— Kernos? — Lucas interrompe. — Você tem contato com Kernos
re’Dyraiv?
Me viro para ele. Surpresa! Desta vez não consigo resistir e sorrio.
— Ele é o companheiro da minha prima.
— Prima...? Gabriela. — Lucas abaixa a cabeça. — Deveria ter me
imaginado. Isso explica muita coisa.
Olho para Hudson, ainda sorrindo, e ele nos dispensa com um gesto. Me
levanto depressa, com Débora logo atrás de mim.
Agora só precisamos esperar as ordens oficiais do Acordo e vou passear
no espaço.
DOIS
Fecho a porta da minha sala e desabo na minha cadeira. Puta merda, vai
ser azarada assim lá no quinto dos infernos. Claro que não podia ser outra
pessoa. Claro que tinha que ser Lucas. Argh. Que ódio. Mas pelo menos
agora ele não vai poder fazer nada. Não estou esperando que o tal consultor
do Acordo esteja do meu lado, mas pelo menos não vai ser alguém que eu
tenho certeza que vai me foder.
Ou, pior: alguém que eu não sei se consegue me controlar ou não.
Abaixo a cabeça na mesa. Não quero ficar vendo a cara de Lucas todo
santo dia. Porra. Só porque eu tinha certeza de que estava livre dessa praga na
minha vida...
Meu celular apita. É outra mensagem de Gabi.
Gabi: Estou conferindo as informações sobre Lucas. Ele devia ter
prestado serviço comunitário por pelo menos oito meses, além de participar
de oficinas de reabilitação para drillianos, e então ia ficar em observação
por mais um ano. Em menos de seis meses ele estava trabalhando para as
divisões diplomáticas.
Carol: E o que isso quer dizer?
Além de que os aliens são incompetentes, se não prestaram nem para
fazer ele cumprir essa pena ridícula.
Gabi: Que ele tem ótimos contatos em algum lugar. Kernos não sabe
quem o liberou da pena e o vetou para as divisões diplomáticas. Te aviso
quando descobrir.
Merda. É óbvio que ia ter alguma coisa assim. Claro. Só faltava isso.
Bato a cabeça na mesa. Puta que pariu, por que essas coisas só
acontecem comigo?
— Carol? Está tudo bem?
Débora. Menos mal.
— Está — resmungo sem me sentar direito.
Escuto a porta se fechando de novo.
— Ótimo. Vai me contar o que foi aquilo?
Levanto a cabeça e suspiro. Devia ter imaginado... Conhecia a
curiosidade de Débora.
Ela sorri e se senta na cadeira de frente para minha mesa.
— Então?
— É exatamente o que você ouviu lá. Lucas foi meu namorado. Eu não
fazia a menor ideia de que ele era um ET, obviamente. E o filho da puta
tentou se alimentar de mim. — Estico o braço e deixo as escamas aparecerem
de novo. — Na verdade, conseguiu. Até hoje não tenho certeza do que me fez
olhar para trás naquela hora. Sorte.
E eu nunca vou me esquecer da sensação de olhar para trás e ver meu
namorado, uma das pessoas em quem eu mais confiava, parecendo uma coisa
completamente diferente. As escamas foram um choque, mas os olhos
completamente pretos... Puta merda. Eles foram meu pesadelo por um bom
tempo. Cheguei a pensar que ia morrer ali, sem conseguir nem voltar para
minha casa.
Dou de ombros.
— Peguei ele de surpresa. Não sei o que ele ia ter feito se tivesse tempo
para reagir.
— A mesma coisa que eu fiz, é óbvio — ele fala.
Olho para a porta. Ela ainda está fechada, mas consigo ver a silhueta de
Lucas do outro lado. Caralho. Tinha me esquecido disso. Essa audição
exagerada não foi uma coisa que eu peguei dele, mas Lucas sempre escutava
o que não devia. Agora eu entendo como. Alien.
Me levanto e vou até a porta. Ele fica parado no mesmo lugar quando a
abro de uma vez.
— Você é um visitante, sem permissão para estar passeando dentro da
sede da APLA. É melhor voltar para a sala que designaram para você, ou vou
pedir sua remoção — falo.
Lucas sorri. Filho da puta.
— Sou um enviado do Conselho do Acordo. Tenho plena autoridade
dentro das instalações da APLA, desde que isso não interfira com a
autoridade dos diretores locais.
Fecho a boca com tanta força que escuto meus dentes rangerem. Isso não
vai prestar. Caralho.
— Que seja. Não na minha sala. Sai.
Ele suspira.
— Carol, eu...
— Caso não tenha ficado claro, eu não quero falar com você. Não queria
nem ver sua cara, na verdade, mas não tenho opção. Então é melhor restringir
sua presença às horas de trabalho.
Lucas me empurra para o lado e entra na sala. Desgraça. Quem me dera
estar com os mini-tasers que Gabi me deu agora. Ele não ia nem saber o que
o acertou. Hmm. Eles estão na minha gaveta. Posso me sentar e colocar um
no dedo, duvido que Lucas vai notar um anel. E aí é só esperar ele querer
colocar a mão em mim.
— Agente Rocha? — Lucas se vira para Débora. — Se puder nos dar um
minuto...
Ela olha para mim e assinto. É melhor ela sair, assim posso dar um jeito
nisso de uma vez, sem correr o risco de colocá-la no meio. Seria bom ter uma
testemunha, mas o histórico de Lucas vai funcionar ao meu favor, se for o
caso.
Débora passa entre nós dois e fecha a porta. Cruzo os braços.
— Fale o que quer falar e vai embora. Tenho trabalho a fazer antes de
embarcar.
— Eu passei esse tempo todo trabalhando para conseguir esse cargo e
poder vir na Terra me explicar para você, e você nem...
Rá!
Obrigada, Gabi.
— Conta outra — interrompo, dando a volta na minha mesa e parando
de pé atrás dela. — Alguém te arrumou uma saída fácil pra não ter que
cumprir sua pena. Foram o quê, cinco meses antes de você perder a paciência
e querer voltar pra boa vida? Então você mexeu os pauzinhos, ou arrumou
alguém pra mexer os pauzinhos pra você e te colocar numa boa posição. Isso
não tem nada a ver comigo. Se tivesse, se você estivesse um pouco
arrependido que fosse, ia ter cumprido sua pena.
Lucas fecha a boca e me encara sem falar nada nada. Não vou sorrir, não
vou sorrir, não vou sorrir...
— Posso falar?
Sorrio e indico a cadeira que Débora estava usando com um gesto, antes
de me sentar e cruzar as pernas.
Ele se senta sem nem uma revirada de olhos. Okay, ele realmente quer
falar alguma coisa. Boa sorte.
— Eu sei que te devo um pedido de desculpas e uma explicação. A única
coisa que posso falar é que eu gostava mesmo de você.
Ah, claro, e porque ele gostava de mim, isso quer dizer que eu vou
perdoar todas as merdas que ele fez. Claro. Ele só esqueceu que não estamos
em um filme e eu não sou uma mocinha tonta. Se bem que ele daria bem para
o papel do macho escroto.
— Que droga, Carol!
Levanto as mãos.
— Não falei nada.
— Nem precisa — ele resmunga. — Sua cara já fala o suficiente.
Levanto uma sobrancelha e começo a abrir e fechar a gaveta. Estou
esperando e ele só está desperdiçando meu tempo.
— Eu gostava de verdade de você. Tinha certeza de que tudo ia dar
certo. Você lembra, estávamos planejando ir morar juntos no outro ano, e...
Ele para de falar e me encara.
Ah, eu me lembro. Claro que eu me lembro. Eu estava toda empolgada
porque tinha arrumado um emprego legal, porque isso queria dizer que ia ter
dinheiro para pagar o aluguel quando a gente se mudasse. Já estava até
guardando dinheiro para comprar nossa mobília e tudo mais.
Lucas suspira.
— Não pensei que o impulso fosse ser tão forte. Tinha certeza de que ia
conseguir controlar, especialmente porque gostava mesmo de você e queria
um futuro, mas...
— Não conseguiu — falo.
Ele assente.
— Não consegui. Só depois que entendi que é impossível controlar, de
verdade. É um instinto básico de sobrevivência, e...
— Ou seja, você foi irresponsável. Colocou minha vida em risco.
Colocou sua família em risco. Eu poderia citar umas tantas regras que os
aliens morando aqui têm que seguir e que você quebrou.
Lucas respira fundo e abaixa a cabeça. Coitadinho.
— A minha única opção era me afastar de você. Não queria fazer isso.
Jura?
— De novo: você colocou minha vida em risco. Para alguém que está
insistindo tanto que gostava de mim, essa foi uma forma bem interessante de
demonstrar isso. Criativa, até, sabe?
Me endireito na cadeira quando Lucas levanta a cabeça. Não estou nem
um pouco surpresa com isso tudo, na verdade. É mais ou menos o que eu
imaginava que tinha acontecido.
Cuzão.
Estico a mão.
— Já falou o que tinha que falar. Vamos deixar isso para trás, então.
Temos trabalho a fazer.
Ele me encara e inclina a cabeça para o lado. Levanto as sobrancelhas e
começo a abaixar o braço.
Lucas aperta minha mão. Sorrio e ativo os tasers que coloquei nos dedos
enquanto estava brincando com a gaveta. Ele cai para o lado.
Solto sua mão e me levanto. Ainda bem que a cadeira é daquelas boas,
com braços, então ele não vai cair no chão. Não que isso faça muita
diferença. Por mim, ele podia cair e não ia fazer a menor diferença. Mas se eu
tivesse sorte e ele quebrasse alguma coisa, isso poderia dar problema para
mim.
E acho que nunca mais vou tirar os mini-tasers dos dedos.
Pego minha bolsa, meu tablet e olho ao redor. Só isso mesmo, eu acho.
Saio, fecho a porta atrás de mim e vou para a sala de Débora. Ela dá um pulo
quando entro sem bater.
— Carol? Mas... E o...
Balanço a cabeça e coloco minha bolsa na prateleira mais baixa de um
dos armários dela.
— Esqueça. Temos trabalho a fazer. Preciso de você em dia para o caso
de eu precisar de alguma coisa, e...
— E existe uma chance de eu precisar ir para o Acordo também, resolver
os detalhes finais com você — ela completa de forma mecânica.
Sorrio. Certo, acho que andei repetindo isso vezes demais. Estou
ansiosa, me julgue. Eu vou passear no espaço, porra.
Ligo o tablet e abro um dos documentos que estava conferindo com
Débora. Ainda bem que já tinha passado minhas coisas todas para cá – não
vou ter que fazer nada com Lucas apagado por perto.
TRÊS
“Atenção, passageiros. Aproximação final de Nehyna.”
As únicas coisas que eu sei sobre Nehyna é que lá chove pra caralho, as
árvores são gigantes e é onde Gabi mora.
A voz automática repete a mensagem. Eu acho que agora está falando
em outra língua, mas posso estar completamente errada. Me deram um
implante tradutor quando comecei a trabalhar na APLA, mas nunca precisei
aprender a perceber quando estou ouvindo português mesmo e quando ele
está traduzindo. É bem diferente de quando estou falando outra língua – ou
tentando. Vou ter que aprender na marra.
Olho ao redor. Estou em uma sala pequena, com um sofá cheio de
correias estranhas, que devem ser alguma coisa tipo um cinto de segurança
estranho, e uma mesa redonda. Só. Gabi já comentou comigo sobre os
armários e painéis que ficam escondidos nas paredes, mas não vi nenhuma
mancha nas paredes brancas. Estou com a leve impressão de que Lucas falou
para me colocarem em algum lugar onde eu não ia poder fazer nada. Cuzão.
Eu até suspeitaria que as ordens do alien que me recebeu – usando um
disfarce para se passar por humano, então não faço ideia da sua espécie –
foram obra de Lucas. Mas faz sentido me pedirem para ficar na minha sala e
não andar pela nave. Sou uma terráquea sendo levada para o Acordo em
missão diplomática. É a primeira vez que isso acontece e a responsabilidade
do pessoal da nave é grande. Os aliens podem não estar nem fodendo para
nós, mas se algo der errado em uma missão tão simples vai ficar feio para o
governo. A única coisa que vi da nave foi o corredor por onde passei para vir
para essa sala: branco, com duas linhas azuis perto das paredes e alguns
monitores desligados. Muito interessante, só que não.
Não vou negar que passei a viagem toda querendo sair daqui. Eu estou
em uma nave alienígena. Cadê a graça se não puder ao menos explorar? Mas
não vou arriscar e fazer alguma coisa que pode colocar todos os nossos
planos em risco. Não duvido nem um pouco de que tem aliens esperando a
primeira desculpa para dizer que as alterações nas leis são inviáveis e tudo
mais.
E, para ser bem honesta, não quero me encontrar com Lucas. Débora me
mandou uma mensagem ontem de noite, depois que fui embora para casa,
avisando que ele ficou absurdamente puto com o que eu fiz. Coitadinho, que
dó dele. Lucas tem todo direito de estar puto, mas não me arrependo nem um
pouco. Foi merecido. Não basta o que ele fez, antes, ainda vai entrando na
minha sala como se mandasse em alguma coisa? Ah, não. Não mesmo.
A nave treme e eu me seguro no sofá. Okay. Acho que entendi porque
precisam avisar que estamos nos aproximando do planeta. Isso deve ter sido a
nave entrando na atmosfera. Caralho. Eu odeio turbulência. Fecho os olhos e
começo a contar. São só alguns segundos, com certeza. Na velocidade dessa
nave – gastamos menos de doze horas para chegar aqui – entrar na atmosfera
não deve ser nada demais. Rapidinho. De boa. Isso vai parar de tremer a
qualquer instante.
Se os aliens têm tecnologia para fazer uma viagem dessas em doze
horas, já está passando da hora de pensarem em alguma coisa para acabar
com a turbulência, não é?
A nave para de tremer.
“Atenção, passageiros. Pousaremos em instantes. Preparem-se para o
desembarque.”
Preparar o quê? Só tenho que levantar e andar até a saída, porque não me
deixaram vir com minha mala para cá, mesmo que seja só uma mala e não
muito grande. Tinha que ir para o compartimento de carga, mesmo que fosse
dar mais trabalho na hora de desembarcar. Aliens. Eu até entenderia se eu
fosse ficar num lugar sem espaço, ou se os alojamentos de passageiros
fossem que nem um avião. Mas eu estou em uma sala com espaço mais que
suficiente para colocar uma mala.
A porta apita e me viro para ela. O mesmo alien que me trouxe para cá a
abre – ainda usando o disfarce humano. De novo: qual é a graça de vir para
outro planeta se os aliens forem usar os disfarces humanos? Eu quero é ver as
coisas diferentes mesmo. Se fosse para ficar no mais do mesmo não tinha
nem começado a trabalhar para a APLA.
— Agente Dutra, se puder me acompanhar.
Ele faz um gesto indicando o corredor. Quase corro para fora. Eu estou
chegando em outro planeta. Se pudesse, ia estar saltitando mesmo, mas não.
Merda. Tenho que parecer profissional.
O alien faz o mesmo caminho que fizemos para entrar. Ou seja: corredor
branco com linhas azuis, monitores desligados e nada de novo. Tenho a leve
impressão de que sou a única que está andando por aqui. Desembarque
prioritário? Estou gostando dessa vida de missão diplomática.
A rampa de desembarque se abre assim que nos aproximamos. Pisco,
sem entender o que estou vendo. As cores lá fora estão diferentes – e essa é a
única coisa que consigo reparar, porque estou vendo um chão que parece ser
de cimento ou coisa parecida e uma parede clara e alta mais à frente.
Decepcionante. Cadê as árvores gigantes? Saio e pisco de novo. Certo. O céu
é lilás. Agora isso está ficando divertido. E entendi a minha sensação de que
as cores não estão certas. A diferença é bem pequena, mas a luz aqui não é
igual à da Terra. Devia ter esperado isso, na verdade.
— Carol?
Olho para o lado. Gabi está vindo na minha direção, com dois homens.
Aliens, é claro. Um está usando um disfarce humano e o outro é um rhergari
vermelho. Caralho. Vermelho com as linhas pretas dos rhergari. E vestido
todo de preto.
— Ei! É o Darth Maul de cabelo comprido!
Gabi ri e o rhergari revira os olhos.
— Achou que eu estava zoando, é? — Gabi pergunta.
Ela tem alguma dúvida? Já me encontrei com Kernos antes – porque é
óbvio que o alien é Kernos re’Dyraiv – mas só nas vezes que eles foram na
Terra. Ou seja, ele estava usando um disfarce humano. E ele é muito Darth
Maul. Caralho. Não, espera. Acho que ele tem mais músculos que Darth
Maul. Os rhergari são de um planeta com gravidade muito acima da
gravidade da Terra, então são bem musculosos.
— Óbvio. Ei, já colocou ele pra lutar com bastão?
Kernos se vira para o alien ao lado dele. Não sei por que ele ainda está
usando um disfarce humano, na verdade.
— E isso é o que você tem que se preparar para aguentar.
Gabi dá uma cotovelada nele.
— Como se você reclamasse. — Ela olha para mim. — E sim, já
coloquei ele para lutar com bastão. E filmei. É bem interessante, na verdade.
Depois te mostro.
Ah, eu estava com saudade de Gabi. Ela é a única pessoa que eu conheço
que falaria uma coisa dessas na lata com o quase-marido do lado. E, levanto
em conta que Kernos nem reagiu, ele já se acostumou com isso.
Olho para os lados de novo.
— Ei, cadê seu filho?
Gabi revira os olhos.
— Guardei na máquina de lavar enquanto vinha te buscar.
Abro a boca para responder e paro. Tá, eu mereci essa resposta.
E okay, acho que acabei com qualquer chance de isso ser uma recepção
oficial. Se bem que acho que não preciso me preocupar com isso agora. Os
eventos oficiais só vão começar amanhã e nem vão ser aqui. O Conselho tem
um lugar específico para se reunir, em outro planeta.
— Cadê sua mala? — Gabi pergunta.
Olho para trás e quase esqueço da pergunta. Nunca vou me acostumar
com o tamanho das naves. São enormes. E, no caso desta aqui, com um casco
cinza azulado fosco, cheio de linhas curvas. Estava esperando alguma coisa
mais grosseira. Sei lá, mais praticidade, menos estética?
— Colocaram no compartimento de carga. Não sei o que vão fazer para
me entregar...
— Na verdade, já localizaram sua mala — Kernos fala.
Ele está com uma mão logo abaixo da orelha. Ativando algum tipo de
comunicador, aposto. E se já localizaram minha mala, porque não me
entregaram?
— A bagagem de Carol não passou pelo scanner. Detectaram armas.
Merda.
Gabi olha para mim.
— O que você trouxe?
Dou de ombros.
— Os mini-tasers.
Nunca que eu ia sair da Terra sem algum tipo de arma que funcione em
praticamente todas as espécies conhecidas de aliens.
Gabi suspira e olha para Kernos. Ele olha para o alto.
— Por favor? — Ela pede.
Ah, a cara de gatinho do Shrek. Quase tenho pena de Kernos. Quase. Do
mesmo jeito que minha consciência quase pesa por estar usando contatos para
burlar os regulamentos. Porque é óbvio que é isso que Gabi está fazendo:
pedindo para Kernos usar a posição dele para liberar meus mini-tasers. Eu até
sabia que minha mala ia ser escaneada e que não deixavam armas entrarem
no planeta sem uma autorização específica, mas não pensei que meus mini-
tasers iam disparar o alarme. Eles não são quase nada, caralho. Só dois anéis
discretos. Nem acho que deveriam ser chamados de armas. Mas não vou ficar
de consciência pesada. De novo: não sou louca de estar aqui sem nenhum
jeito de me defender. Estudei os aliens o suficiente para ter certeza de que
estou em desvantagem.
Kernos suspira.
— Podem liberar. Tem minha autorização.
Ui, sou foda. Não é à toa que falo que Kernos é o chefão da porra toda.
O alien que não sei o nome balança a cabeça.
— Vai ser sempre assim?
Kernos dá de ombros e abaixa a mão.
— Depende do seu azar.
Ceeeeeerto, já deu. Me viro para o alien.
— Oi, muito prazer, pessoa que não fui apresentada.
Kernos ri e Gabi cruza os braços. Okay. Isso é preocupante.
— Carol, esse é Ei’ri Vertan. Ele vai ser o consultor do projeto —
Kernos fala.
Pisco. Okay. Certo.
Espera. Eu ouvi certo? Vertan?
— Primo de Lucas — Gabi conta.
Puta que pariu. Outro drilliano. Então isso não é um disfarce, é a
aparência real dele.
Caralho. Eu vou ter que trabalhar com um drilliano de qualquer forma.
E preciso ser profissional. Já me livrei de Lucas, que é o que eu queria.
Não vou conseguir me livrar de outro Vertan. Sem falar que é bem possível
que isso seja um jeito do Conselho me testar. Que maravilha.
Cruzo os braços. Ninguém vai me obrigar a encostar em um drilliano.
— Muito prazer.
Ele assente, com um sorrisinho de lado. Estreito os olhos.
Menos, Carol. Bem menos. Eu nem conheço o cara. Merda. Eu sou
muito azarada mesmo. A única coisa que falta é Lucas ir com a gente
também.
Olho para trás de novo. O mesmo alien que estava me escoltando na
nave está trazendo minha mala. E não tem mais ninguém saindo. Estranho.
— Por favor, me diz que Lucas não vai sair daqui com a gente —
resmungo.
Gabi ri.
— Não mesmo. Ele está por conta própria. Pode comemorar, você tem
um dia inteiro sem ter que olhar para a cara dele.
Levanto os braços.
— Uhul — falo, sem nem tentar parecer entusiasmada.
QUATRO
Se esse lugar não tivesse tanta cara de alta tecnologia, com as paredes
metálicas e muito vidro, eu ia falar que o que estou vendo é um castelo
enorme. Não. Enorme não. Gigantesco. Gabi olha para a minha cara e ri. Não
consigo nem xingar por ela estar se divertindo às minhas custas, porque se ela
falou que as árvores são gigantescas, então preciso de outro adjetivo para a
coisa que é quase um castelo.
São cinco torres cilíndricas e muito altas, indo até bem acima das
árvores, construídas quase na forma de um círculo. Pelas varandas que
consigo ver quando nos aproximamos mais, as torres provavelmente têm
apartamentos. Hmm. Tenho que admitir que aqui é bonito. E, pelo tamanho
do complexo – foi assim que Gabi o chamou – eles devem ser completamente
autossuficientes. Faz sentido, levando em conta que na época de chuva o
planeta quase todo alaga. É por isso que as árvores não têm galhos baixos e
não tem nenhuma porta no nível do chão. Aliás, falando das árvores: as
folhas são azuis. Completamente azuis. De vários tons diferentes, mas azuis.
E tenho a impressão que os troncos e galhos são vermelhos.
Caralho, eu realmente estou em outro planeta.
Mesmo assim, não ia querer estar aqui na época de chuvas. Meses de
chuva, sem parar, com trovoadas e tudo mais? Não é para mim.
Estamos em uma nave pequena, pouco maior que um carro comum. Gabi
queria pilotar, mas Kernos não deixou, falando que alguém precisava ficar
por conta de responder todas as minhas perguntas. Não posso nem dizer que
ele estava errado. Até o castelo gigante aparecer, eu estava que nem uma
criança perguntando como tudo funcionava. A nave não parece ser tão difícil
de pilotar, então nada melhor que já ir entendendo tudo, não é? O drilliano
parece ter achado tudo muito divertido, mas não quero saber dele. Não sei
nem por que ele está vindo com a gente. Pensei que ia ser quase uma reunião
de família, até porque Gabi não teve a decência de levar o filho na Terra
ainda.
A nave passa ao lado de uma das torres. Pensei que fossem paredes
ligando as torres, mas não. São prédios. Quer dizer, um prédio gigante entre
cada par de torres, formando um pentágono. O centro disso tudo é aberto e dá
para ver outras naves pequenas pousadas por ali ao lado de uma árvore
gigante com folhas azuis. E as folhas estão brilhando. Me inclino para a
frente, me debruçando sobre Gabi para ver o monitor na frente dela. Ele está
melhor que as janelas.
— Tem pisca-pisca naquela árvore? É sério?
Gabi dá de ombros e me empurra para trás.
É sério. São luzes pisca-pisca. Tenho uma vaga lembrança de Gabi
dizendo que tinha convencido Kernos a arrumar uma árvore de natal para ela,
mas isso aqui é exagero.
— Porra, pra quê colocar uma árvore de natal dentro de casa, né?
— Tem uma em casa também — Kernos responde. — Um galho dessa
árvore aí. Foi a única coisa que coube. Ela não deixou jogarmos nenhum dos
dois fora.
Gabi cruza os braços.
— Eu gosto das luzinhas.
Reviro os olhos. É, ela gosta das luzinhas. Nenhuma novidade nisso.
Agora, duas árvores de natal permanentes? Uma dela mais alta que um prédio
de... Confiro as paredes do complexo de novo. Mais alta que um prédio de
dez andares? Algo assim. Louca!
Gabi mexe em alguma coisa nos controles na frente dela. Abro a boca
para perguntar.
— Comunicador — ela fala e aperta outro botão.
Certo. Acho que já fiz perguntas demais mesmo. Fodas.
— Na escuta — uma mulher fala.
— Estamos pousando — Gabi avisa.
— Entendido — a mulher responde.
Gabi aperta o mesmo botão de novo. Desligando o comunicador, eu
acho.
Kernos assente. Me inclino mais para a frente para tentar ler o que
apareceu no monitor, mas Gabi me empurra para trás.
— Senta direito, Carol.
Obedeço na mesma hora que a nave desce de uma vez. Tenho a
impressão de que vamos bater de cara no chão, mas se todo mundo está
calmo...
A nave para logo antes de batermos. Acho que estamos a uns cinco
centímetros do chão, no máximo. Pelo menos é o que parece pelos monitores.
Não tenho como usar a árvore gigantesca para ter uma noção de altura. Nem
sinto quando a nave termina de descer e pousa. Pelo que vi antes de
entrarmos, ela não tem nenhum tipo de trem de pouso. É pequena demais
para precisar disso. Encaro os dois monitores na frente de Kernos e Gabi,
tentando ler as mensagens que estão aparecendo. Acho que são só avisos do
sistema de que está tudo okay.
— Tudo certo — Gabi fala e se levanta, esticando os braços para cima.
Me levanto também e olho para trás. A rampa de embarque já está se
abrindo. Gabi passa por mim e me puxa na direção dela, ignorando Ei’ri.
Parece que não sou a única que não está feliz com ele aqui. Escuto Kernos
rindo em voz baixa antes de sairmos e Gabi resmunga alguma coisa baixo
demais para eu ouvir.
— Bem-vinda a Nehyna — ela fala assim que saímos da nave.
Paro e olho ao redor. Agora estou com a impressão de que estou em
outro planeta. De longe, os prédios e torres que formam o complexo nem
parecem ser tão estranhos assim, mas aqui, de perto, não tem como negar que
são aliens. Tem alguma coisa na arquitetura, nos ângulos de tudo, que
definitivamente não são coisa da Terra. E a árvore vermelha com folhas azuis
cheia de luzinhas de natal só deixa tudo mais estranho. Gostei disso.
Gabi ri.
— O que foi? — Pergunto.
Ela me puxa para onde tem alguns bancos de concreto ou coisa parecida
na sombra. Olho para cima. Não sei o que está projetando essa sombra.
— Aqui está bom. E Kernos só estava me lembrando que ele me falou a
mesma coisa quando me trouxe para cá. É até engraçado pensar que já faz
mais de quatro anos.
Assinto. Até entendo o que ela quer dizer – parece que foi ontem. Mas,
ao mesmo tempo, aconteceu tanta coisa nesses quatro anos que às vezes acho
que foram dez anos, na verdade.
Kernos sai da nave com o primo de Lucas. O cara começa a ir direto
para uma das portas que dá para a área central, mas Kernos o chama e aponta
para onde estamos.
É mesmo. A menos que aliens tenham uma aversão ao “ar livre”, isso
aqui está muito deserto. E aposto que não é à toa.
— Por que não vamos entrar?
Gabi cruza os braços e indica Ei’ri com a cabeça. Hmm. Acho que
Kernos não está logo atrás dele à toa. Ele é um guerreiro – todos os rhergari
que têm contato direto com o Acordo são. Se Kernos está fazendo questão de
manter o outro alien na frente dele, é porque está preparado caso ele tente
alguma coisa. Não sei se acho isso bom ou ruim.
— Quero saber por que deveria confiar nele — ela fala alto o bastante
para o alien em questão ouvir.
Ei’ri hesita, mas continua vindo na nossa direção. E ele está mais
impassível do que no espaçoporto.
— O que você quer saber? — Ele pergunta quando já está na sombra
também.
— Os drillianos me odeiam. Se pudessem, teriam sumido comigo logo
que souberam da prisão de Arcen. Aí temos um drilliano que se ofereceu para
trabalhar com Kradisla, que também tinha seus motivos para caçar Arcen. —
Gabi dá de ombros. — Está faltando alguma coisa aí no meio. O que é?
Não tinha pensado nisso. Os drillianos são orgulhosos. Disso eu me
lembro bem. Eles se consideram moralmente superiores a umas tantas
espécies, têm um código de conduta extremamente rígido e qualquer um que
desvie dele é punido. Levam a questão de reputação e honra extremamente a
sério. Ou seja, não é nenhuma surpresa que odeiem Gabi, que foi a pessoa
que conseguiu provar que o representante drilliano no Conselho do Acordo
estava financiando os mercados de terráqueas.
E ninguém me falou que Ei’ri foi indicado por Kradisla. Agora entendo
porque Gabi aceitou a presença dele. Tecnicamente, Kradisla era uma
mercenária que se especializava em transporte seguro, tanto de mercadorias
quanto de passageiros. Ela tinha uma reputação um tanto quanto assustadora
que só serviu para me deixar curiosa, porque achei muito pouco sobre ela nos
arquivos que tive acesso. O fato é: ela é foda, não gosta de drillianos e é parte
da força-tarefa de Gabi. Se Kradisla indicou Ei’ri, alguma coisa nele deve
prestar.
Ei’ri olha para Kernos.
— Pensei que você já tinha dado sua aprovação.
Kernos encara o outro alien, completamente imóvel. Acho que isso é
mais intimidador que esses caras que tentam exibir os músculos e tudo mais.
Até porque Kernos não precisa fazer uma coisa dessas. Ele tem aquele físico
de montanha de músculos.
— Eu não tenho problemas com você — ele fala. — Não
profissionalmente. Mas você vai estar perto da minha família. Isso quer dizer
que não importa se tem minha aprovação como profissional. Não fui eu quem
sugeriu que passasse a noite conosco hoje.
O drilliano respira fundo.
— Certo. Minha culpa então. Apenas pensei que, já que não estava
diretamente envolvido com o processo nem conhecia a agente com quem
teria que trabalhar, seria melhor se...
— Não quero saber — Gabi interrompe. — Kradisla fala bem de você.
Esse é o único motivo para estar aqui. Mas não vai dar um passo além desse
pátio se não me disser o que um drilliano está fazendo trabalhando para ela e
em posição de ser indicado para uma missão destas, mesmo que não seja
parte da divisão diplomática.
Palmas. Eu amo minha prima.
Faço cara de paisagem quando Ei’ri olha para mim. Profissionalismo,
Carol. Profissionalismo.
Ele se senta em um dos bancos e cruza os braços. Olho para Gabi, que dá
de ombros. Me lembro muito bem de quando ela ficava analisando as pessoas
baseada em linguagem corporal e detalhes que pessoas normais simplesmente
não reparam. Ela me ensinou a prestar atenção nisso. E Ei’ri estar se sentando
assim, ou é uma jogada calculada para nos fazer baixar a guarda, ou é um
sinal de que ele realmente é confiável e não tem nada a esconder, porque está
nos dando uma posição superior. Pena que não é tão fácil adivinhar qual das
duas opções.
— O que vocês sabem sobre os drillianos? — Ele pergunta.
Gabi olha para mim. Assinto. Estou em dia com os estudos, obrigada. Na
verdade, estou me sentindo uma enciclopédia de espécies do Acordo, depois
do tanto que li a respeito delas me preparando para essa missão.
— O suficiente — ela responde.
Ei’ri respira fundo e solta o ar devagar.
— Arcen não nos representa. Ele manchou nosso nome de uma forma
que precisaremos de gerações para apagar. Eu sou um dos que escolheu
trabalhar para apagar esta mancha. Nós não somos como ele.
Levanto as sobrancelhas. Nem um pouco surpreendente, na verdade.
Drillianos e seu senso de manter as aparências, porque não dá para chamar
isso de moral, honra ou qualquer outra palavra que eles escolham.
— E você escolheu ir trabalhar com Kradisla. Que nunca escondeu que
teve problemas com Arcen. Que patrulhava as rotas de comércio drillianas
atrás de irregularidades — Gabi insiste.
Ele levanta a cabeça e sustenta o olhar dela.
— Escolhi, porque se convencesse alguém que por pouco não se tornou
uma inimiga dos drillianos que não somos o que ela imaginava, isso vai ter
muito mais peso do que se provar isto para alguém que já estava predisposto
a estar ao nosso lado.
É um bom argumento.
— E Kradisla fala bem de você. Além de ter dados o suficiente para
convencer o Conselho de que seria uma boa escolha — Kernos fala.
Ei’ri assente.
— Não que seja uma surpresa que eles tenham aceitado. Um drilliano é a
melhor escolha para isso. Somos o oposto dos terráqueos, nisso, mesmo que
sejamos quase idênticos fisicamente. Um de nós não vai estar predisposto a
ajudá-los. Somos o mais próximo de imparciais que vão conseguir.
Coloco as mãos na cintura. Okay. Existe uma grande diferença entre
“imparciais” e “antagonistas”. Não gostei nem um pouco disso.
— Você está dizendo que eles te aceitaram porque você vai fazer o
possível para me atrapalhar? — Pergunto.
Ele olha para mim. Preciso admitir que ele sabe como tentar intimidar
alguém com o olhar. Pena que isso não vai dar certo comigo. Quatro anos
trabalhando na APLA me deixaram imune a praticamente qualquer tipo de
intimidação.
— Não. Eu quero que essas mudanças sejam implementadas. E quero ser
a pessoa que vai fazer com que isso aconteça, porque isso é uma mancha na
história drilliana.
CINCO
Pelo visto não sou a única que acha essa resposta absurdamente
previsível para um drilliano, mas não tenho nem como dizer que Ei’ri está
mentindo. Do jeito que eles são, pode bem ser verdade. E Gabi concorda
comigo, pela sua expressão. Não faço a menor ideia do que Kernos pensa,
mas aposto que ele e Gabi estavam discutindo isso usando a comunicação
mental que desenvolveram.
Continuo não confiando em Ei’ri e achando que é uma péssima ideia ele
passar a noite aqui, mas parece que não tem outro jeito mesmo. E ele até que
tem razão na coisa toda de nos conhecermos antes da reunião do Conselho e
ele pegar as informações que precisa com Gabi, já que caiu nisso aqui de
paraquedas. Merda. Queria uma desculpa para despachar ele. Não respostas
sensatas.
Respiro fundo e olho as luzes azuis ao nosso redor. Esse elevador nem
parece estar se movendo, mas as paredes do outro lado da luz azul estão
passando tão depressa que estou até assustada. E eu tenho que aceitar que vou
trabalhar com um drilliano. Ele diz que quer fazer isso dar certo. Se for
verdade, ótimo. Mas não tem como confiar em alguém de uma espécie que se
alimenta de outras pessoas. Nunca tive paciência nem para as historinhas de
vampiros, não é agora que vou começar a aceitar isso.
Merda. A dona vida podia parar de me jogar surpresinhas no caminho.
O elevador para e a luz ao nosso redor desaparece. Estamos na ponta de
um corredor pequeno de paredes claras que vai dar em uma porta metálica.
Kernos vai na frente e a porta se abre quando ele se aproxima. Gabi segura
meu braço e me puxa, ignorando Ei’ri completamente. É, ela não está muito
satisfeita com isso também não.
Entramos em uma sala enorme. A parede na nossa frente é toda de vidro
e curva. Acompanhando o formato da torre, óbvio. Não sei quantos andares
nós subimos, mas não foi o suficiente para chegar acima das árvores. Estou
vendo umas tantas do lado de fora, para lá da varanda. E espera. Estreito os
olhos e atravesso a sala, levantando uma mão para encobrir os olhos. Eu
estou vendo dois sóis?
Olho para trás, para perguntar Gabi se é isso mesmo, e paro. Minha mala
está do lado de um dos sofás escuros que estão espalhados em grupos pelo
espaço enorme. Quando é que ela veio parar aqui? Ou melhor, como?
Caralho... Nem vi ninguém tirando ela da nave. Na verdade, não estava nem
me lembrando dela.
— Mamãe!
Uma criança vem correndo de um dos lados da sala, onde tem uma
parede. O menino parece que está com o rosto pintado... Não. Paro e olho
para Kernos, que está de parado encarando Ei’ri. Aquilo ali não é um rosto
pintado. Ele tem linhas grossas e vermelhas no rosto. Da mesma cor que a
pele do pai.
O garoto pula em Gabi. Ela dá um passo atrás mas o segura.
— O que a mamãe já falou de pular assim?
— Até que enfim! — A mesma mulher do comunicador fala antes de eu
conseguir pensar em um comentário.
Olho para o lado da sala de onde o menino veio. Uma mulher morena
com o cabelo escuro e liso cheio de mechas azuis está vindo na nossa direção.
E está usando uma camisa do Capitão América. Se não for Tatiana, a
terráquea casada com o irmão de Kernos, não é mais ninguém.
Pelo visto a máquina de lavar onde Gabi deixou o filho enquanto ia me
buscar tem nome. Hmm. Pena que se eu falar um “oi, máquina de lavar” ela
não vai entender. Mas seria divertido.
— Para de reclamar que eu não demorei. É obrigação de tia cuidar do
sobrinho de vez em quando — Gabi fala.
Na mosca.
Tati cruza os braços. Estreito os olhos. Ouvi dizer que ela é pior que
minha prima – ainda mais sem filtro. Juro que não achei que isso fosse
possível. Nem está parecendo que é para tanto.
— Você não me avisou que a ideia dele de brincar essa semana era me
bater. Vou ficar toda roxa.
Kernos ri, mas reparo que ele continua prestando atenção em Ei’ri. É.
Ninguém achou uma boa ideia ele aqui. Paciência. As coisas que a gente faz
pelo bem maior e essas merdas todas.
— Te bater? — Gabi para e olha para o menino. — Kratos, o que a
mamãe já falou sobre bater nos outros?
— Brinquedo!
Gabi respira fundo e olha para Kernos. Okay. Ainda bem que não estou
entre os dois. E ainda bem que Gabi está segurando o filho, porque senão eu
acho que Kernos ia apanhar.
E espera.
— Kratos?
O garoto olha para mim e pisca algumas vezes.
— Cabelo!
Solto o ar com força. Crianças e meu cabelo colorido. Pelo visto isso
vale para crianças aliens também. Ou meio alien, no caso.
— Kratos, essa é a tia Carol.
— Tia Ca?
Ignoro o garoto.
— Gabi, você realmente chamou seu filho de Kratos?
Ela dá de ombros.
— Eu precisava de um nome que soasse rhergari, já que ele vai crescer
por aqui mesmo. E olha bem para a cara dele.
Olho para o garoto de novo. Tá, não é só uma linha vermelha no rosto,
são algumas linhas, mas mesmo assim...
Isso é tão a cara da Gabi. Não sei porque ainda pensei que essa história
do nome era zoeira, quando ela me falou. Na verdade, acho que Kernos pode
agradecer por ela ter usado um pouco de bom senso e não ter pensado em
alguma coisa mais estranha no festival de referências nerds. Sei lá, chamar o
bebê de Hellboy.
— Aparentemente esse nome tem algum significado para vocês
terráqueas — Kernos comenta.
Olho para ele, levando as sobrancelhas e encaro Gabi. Não acredito que
ela fez isso. Não acredito.
Pego meu celular e abro a galeria de fotos. Salvei essa imagem no dia
que Gabi me disse que ia chamar o filho de Kratos e deixei aqui para fazer
alguma brincadeira, mesmo que tivesse certeza que fosse só zoeira dela.
Acabou que não pensei em nada nem apaguei a foto, mas isso vai ser útil
agora. Paro ao lado de Kernos e abro a imagem.
— Esse é Kratos. Ele é personagem de um jogo. Não faço a menor ideia
da história inteira, só sei que o papel dele é sair matando deuses.
Kernos continua encarando a imagem e não fala nada. Eita porra, será
que era melhor eu ter ficado quieta? Mas não, esses dois já estão tão bem
resolvidos que duvido muito que uma coisinha dessas seja motivo de briga.
Aliá, se fosse para isso dar problema, Gabi teria escolhido outro nome, com
certeza.
Kernos levanta a cabeça e olha para Gabi. A criança estica os braços.
— Papi!
Okay, é fofo.
Ele pega o filho. Kratos se vira para me encarar. O que eu faço agora?
— Você dá o nome de um guerreiro assassino de deuses para o nosso
filho e reclama que eu queria dar uma faca para ele de presente de
aniversário?
Oi? Olho para Tati. Ela se sentou de pernas cruzadas em um dos sofás e
está só assistindo. Levanto as sobrancelhas. Ela fala um “depois” sem
nenhum som. Certo.
— Ele vai fazer dois anos. Dois. Anos. E você quer dar uma faca de
presente pra ele? Kratos ainda é um bebê!
É um bebê que acabou de esticar os braços e pegar uma mecha do meu
cabelo. Ai. Crianças. Dou um passo para mais perto de Kernos. Não vou nem
tentar me soltar. Deixa o pirralho brincar com meu cabelo, então.
— Se você quer que ele seja treinado como um rhergari, ele... — Kernos
começa.
— Argh! Eu sei.
Ela se vira de uma vez e começa a ir para uma das janelas. Tenho a leve
impressão de que isso é uma discussão velha. Kernos continua parado no
mesmo lugar. Ainda bem, porque se ele for o garoto me arrasta junto. Suspiro
e seguro a mecha de cabelo que Kratos está encarando e puxando de leve.
— Devolve o cabelo da tia, vai?
— Tia Ca!
Gabi para, olha para mim e ri. Filha da puta. Me ajudar a soltar o cabelo
ela não ajuda.
— Eu vou cair fora enquanto posso — Tati fala e se levanta. — Até
amanhã.
Kratos me solta quando ela passa do lado de Kernos e se vira para tentar
pegar o cabelo dela.
— Agora não, pestinha — ela segura a mão dele. — Até depois.
Saio de perto deles enquanto posso. Preciso lembrar de só chegar perto
do pestinha, como Tati falou, de cabelo preso. Merda. Odeio ficar de cabelo
preso.
Gabi para do lado da minha mala e olha para Kernos. Dou mais um
passo para o lado, por via das dúvidas, e vejo Ei’ri tentando não sorrir. Argh.
Já tinha até esquecido dele.
Kernos suspira e vira o garoto para encará-lo.
— O que eu disse sobre brincar com a tia?
Kratos abaixa a cabeça.
— Sem lutinha.
— Isso. Você obedeceu?
— Não.
— Isso quer dizer que você vai para o quarto.
— Não quero! — Ele bate uma mãozinha no ombro de Kernos.
— Então não vai brincar mais de lutinha com a tia Tati. — Kernos olha
para Gabi e assente antes de se virar e ir para um dos lados da sala. —
Lutinha só com o papai ou com o tio Darius.
— Tia Ia!
— Sim, com a tia Isla pode. Mas só ela.
Escuto Kernos abrir uma porta e as vozes deles ficam abafadas demais
para eu entender. Certo, eu acho que está quase batendo uma invejinha da
Gabi agora. Arrumou o cara gostoso, chefão da porra toda, e que ainda por
cima cuida do filho sem ela ter que ficar no pé? Sortuda do caralho.
Gabi balança a cabeça, sorrindo, e olha para minha mala de novo.
— Ainda bem que você pensou em trazer os mini-tasers. É a melhor
defesa que poderia ter aqui.
Começo a assentir e paro. Epa, melhor defesa? Como assim?
— São só tasers.
Gabi olha para mim e seu sorriso fica mais largo ainda.
— Eletricidade afeta qualquer espécie capaz de interagir diretamente
com você — Ei’ri fala. — Balas e raios têm efeitos e consequências
diferentes, dependendo da espécie. Não a eletricidade.
Interessante. Esse tipo de coisa não estava nos arquivos. Mas faz sentido.
E explica porque tasers e armas do tipo são tão raras no Acordo. Ninguém vai
querer algo que funcione contra todo mundo disponível de forma simples. O
que me faz pensar onde foi que Gabi conseguiu meus mini-tasers, mas não
vou perguntar isso com um drilliano na sala.
— Entendi.
Gabi assente, sem olhar para o drilliano. É. Ela não precisa ser
profissional. Nem vai ter que trabalhar com ele. Inveja.
— Vou mostrar os quartos de vocês enquanto Kernos coloca Kratos para
dormir. Depois conversamos.
Assinto e puxo a alça da minha mala. Gabi começa a ir para o lado
oposto da sala que Kernos foi e para, olhando para Ei’ri.
— E você, se fizer meia gracinha que seja enquanto está na minha casa,
eu vou fazer você se arrepender amargamente.
Ei’ri sustenta o olhar dela e assente, sério.
SEIS
Encaro a lua gigantesca no céu. Se tudo nesse planeta é gigante, é óbvio
que a lua também ia ser, não é? Ela é enorme, azul pálida, tão grande que
parece um planeta. Será que ela é habitada? Com esse tamanho todo, deve ter
alguma coisa nela que os aliens aproveitam, especialmente levando em conta
que Nehyna não traz quase nada de outros planetas.
Ou talvez não. Se bobear é só a lua mesmo, e a única coisa que
aproveitem seja justamente isso: uma paisagem bonita de noite. Às vezes eu
estou pensando demais como terráquea, em explorar tudo o que conseguem
alcançar. Porque se deixaram o ecossistema do planeta quase intacto e mesmo
assim conseguem ser autossuficientes, para que iam atrás de alguma coisa na
lua? Na verdade, esse é o padrão do Acordo para todos os planetas
colonizados nas últimas décadas: preservar o máximo possível do
ecossistema local. É por isso que não fizeram uma alteração climática aqui,
para regular as chuvas exageradas de não sei quantos meses.
O planeta para onde vamos amanhã, Oorreir, não é um desses. Pelo que
sei, o planeta todo é uma cidade gigantesca. É uma das primeiras colônias da
área do Acordo e justamente por isso se tornou o “planeta capital”, por assim
dizer. É lá que o Conselho do Acordo sempre se reúne.
Gabi tentou me acalmar, dizendo que o Conselho não era nada demais.
Fácil para ela falar. Quando Gabi desafiou o Conselho e exigiu receber parte
dos bens de Te’vi Arcen, o drilliano queria comprá-la, depois que ele foi
preso, ela não tinha nada a perder. Tá, não é bem assim. Mas se desse errado,
a única coisa que ia acontecer seria apagarem sua memória, se isso
funcionasse, e a mandarem de volta para a Terra. Se as coisas derem errado
para mim, é o projeto de alteração das leis todo indo pelo ralo. Por minha
causa. Então, sinto muito, mas Gabi pode falar o que quiser. Estou nervosa
mesmo e nada vai me acalmar.
Alguém entra na sala. Se fosse Gabi ou Kernos, já teriam falado alguma
coisa, o que só me deixa uma opção. Pelo menos ele não está tentando passar
despercebido.
Ei’ri para ao meu lado, olhando para a lua lá fora.
— Está com medo?
Depende. De estar aqui? Nem um pouco. De amanhã? Sim. Muito. Mas
não vou falar isso com ele. E estou tão preocupada que nem quero discutir
agora.
Balanço a cabeça.
— Só surpresa, eu acho. Por estar aqui, de verdade.
O que também não deixa de ser verdade. Eu estou em outro planeta.
Cara, isso é surreal. Tudo bem que os aliens que eu vi até agora não eram tão
estranhos assim e que me acostumei rapidinho com a coisa estranha da
arquitetura deles, mas mesmo assim. Estou em outro planeta. Essa lua
gigantesca não me deixa esquecer isso. E o planeta é lindo. Pena que não
posso ir para a varanda. Gabi fez questão de me avisar que era perigoso, por
causa de predadores noturnos.
— Ótimo — Ei’ri fala.
Ótimo? Ótimo o quê? Ele não tinha nem que estar aqui. Vim para a sala
porque queria ver a lua, já que não estava conseguindo dormir e meu quarto
não tem janelas. Não estou aqui esperando aprovação dele nem nada do tipo.
— Precisamos conversar.
Olho para ele e cruzo os braços, sentindo o metal gelado dos tasers nos
meus dedos. Não vou mais para lugar nenhum sem eles.
— Pensei que já tínhamos feito isso no jantar, quando discutimos os
pontos do projeto.
Ei’ri balança a cabeça e se vira para mim. Ele é tão alto quanto Lucas, eu
acho, o que quer dizer que tenho que olhar para cima para encará-lo. Odeio
isso.
— Não tudo. Antes de indicar meu nome, Kradisla fez questão de me
perguntar se eu tenho a capacidade de detectar habilidades drillianas em uso.
Sei que não foi à toa. E tanto você quando Gabriela têm algum problema com
minha espécie que vai além do que Arcen fez.
Ah. Isso.
Suspiro e olho para a lua de novo. Eu ia adorar não ter que contar nada,
mas preciso. Ele tem que saber.
Estico o braço direito e deixo as escamas cobrirem minha pele. Pelo
reflexo no vidro, vejo Ei’ri encarar meu braço, surpreso. É. Acho que
ninguém contou nada para ele, também. Se bem que não faço a menor ideia
se alguém aqui além de Gabi e Kernos sabe que consigo fazer isso.
— Eu não sabia que Re’ni tinha uma doadora — ele fala, devagar, e
preciso de um instante para reconhecer o nome alien de Lucas.
Drillianos. Tão previsíveis.
Abaixo o braço e deixo as escamas desaparecerem.
— Não tem.
Ei’ri olha para baixo e então para o meu rosto. Respiro fundo e me viro
para ele, cruzando os braços de novo.
— Lucas era meu namorado. Eu não sabia que ele era um alienígena. Ele
jura que foi um acidente, mas... — Dou de ombros.
Não é possível que tenha sido um acidente. Não é possível que tenha
sido só uma vez, se eu ganhei essas escamas. Se isso fosse algo comum,
nenhuma das pessoas que sabe disso sobre mim teria ficado tão surpresa.
Nem Andréia, lá no começo dessa confusão, nem Gabi e Kernos, quando
mostrei para eles, nem Ei’ri, agora.
Ele balança a cabeça.
— Ele não faria algo assim. Não tomaria uma doadora despreparada, não
é...
Levanto uma sobrancelha quando ele para de falar. Não é honrado. Não
é de acordo com as tradições drillianas. Aposto que ele ia falar algo assim.
— Quer saber qual o problema que Gabi e eu temos com drillianos? É
esse. — Deixo as escamas aparecerem de novo. No começo, era difícil
controlá-las, mas agora é tão fácil quanto andar. — Te’vi Arcen me
encomendou para os mercadores. Uma terráquea com modificadores
drillianos. Gabi foi pega por engano, porque estávamos perto demais e ela
teve contato com Lucas na mesma noite. Drillianos, dos dois lados.
Ei’ri me encara sem falar nada por alguns segundos, antes de assentir.
Me viro para a lua de novo, mas ele continua parado olhando para mim.
Merda. Eu sei que não respondi o que ele perguntou. E ele precisa saber
disso.
— Ninguém sabe até onde Lucas foi comigo — começo e paro. Não
quero falar isso.
— Qual o seu nível de controle sobre as escamas? — Ele pergunta.
Não falei aquilo esperando um questionário, mas não vou recusar se ele
conseguir me dar algumas respostas. E as únicas pessoas que podem me dar
respostas sobre isso são os drillianos.
— Controle total, sem esforço. Sem limite para o tempo que consigo
manter as escamas, também. Pelo menos, se tem algum limite não consegui
chegar nele.
Nem mesmo depois de passar um fim de semana inteiro em casa, com as
escamas visíveis, só para descobrir se conseguia ou não.
Ele assente, sério.
— Força das escamas?
— Nunca consegui medir. Mas resistiram a um tiro à queima-roupa de
uma pistola híbrida em potência máxima.
Sorrio quando Ei’ri arregala os olhos e me viro para ele. Ele balança a
cabeça, sério.
— Isso não foi um acidente. Você ganhou a habilidade mais difícil de
ser passada para um doador, com força total e perfeitamente integrada ao seu
organismo. Não pode ter sido um acidente.
Dou de ombros. Nada de novo nisso. Nunca tive muita esperança de que
aquela historinha de Lucas sobre não ter se afastado porque achava que ia
conseguir se controlar era verdade. Mas é uma merda ouvir alguém
confirmando isso.
O filho da puta ainda vai me pagar. Pode ser depois que isso acabar,
quando passarmos essas leis. Mas ele vai me pagar por isso.
— Você está com medo de que ele seja capaz de te influenciar — Ei’ri
continua.
Assinto. É uma forma delicada de falar “está com medo de ele ser capaz
de apagar sua vontade e te usar como uma marionete”, mas se ele se sente
bem usando uma expressão mais bonitinha, não vou julgar.
— É uma acusação grave, mas não infundada. E isso explica porque sua
família voltou para o Acordo, sendo que já estavam bem estabelecidos na
Terra, e Re’ni não passou uma semana na propriedade da família antes de ser
mandado para trabalhar fora. Se eu procurar, vou descobrir que ele não estava
trabalhando o tempo todo para as divisões diplomáticas, não é?
Assinto de novo.
— Ele deveria ter cumprido oito meses de serviço comunitário e
participado de umas oficinas de reabilitação, além de um ano em observação.
Em menos de seis meses já estava nas divisões diplomáticas — conto.
Ei’ri passa uma mão pelo cabelo não exatamente curto. Ou ele é um
ótimo ator, ou realmente não sabia de nada. Não vou descartar nenhuma das
possibilidades, por enquanto.
— Eu sei o que isso parece. Alguns anos atrás, diria que é impossível.
Hoje... — Ele respira fundo e me encara. — Vou estar alerta, se ele tentar te
influenciar.
— Obrigada.
Uma preocupação a menos, eu acho. Se isso for algum plano para
atrapalhar a aprovação das alterações, estão indo pelo caminho mais difícil à
toa. Não acho que aliens pensariam em algo assim. Nem se conseguiriam, na
verdade. Pelo que sei, o raciocínio deles não é muito parecido com o nosso. O
que quer dizer que isso tudo pode ser algum plano para algo que não faço a
menor ideia.
— E eu vou provar que não somos assim — Ei’ri completa.
Suspiro. Ele já está previsível.
Dou uma risada seca.
— Você pode tentar.
SETE
A única coisa que consegui notar quando nos aproximamos do tal
planeta-capital é que a sede do conselho é um domo enorme. Pelo menos é o
que parece, vista de fora. Eu estava nervosa demais para reparar em qualquer
outra coisa. É tudo ou nada, agora.
Tati veio conosco e obviamente Gabi e Kernos trouxeram Kratos. Pelo
que entendi, o marido de Tati vai se encontrar conosco logo antes da sessão
do Conselho começar. Kernos precisa estar presente, porque é o representante
dos rhergari, além de ser o chefão do Corpo Militar – não consigo nem
lembrar qual é o título exato que usam. Teoricamente, Gabi não pode se
envolver, mas ela foi a primeira terráquea a conseguir cidadania do Acordo e
controla umas tantas empresas importantes por causa do que recebeu de
compensação quando Arcen foi preso, então é bem possível que peçam sua
opinião ou algo assim. Ei’ri ficou praticamente mudo na viagem até aqui e
não tenho notícias de Lucas. Pena que não tenho a menor ilusão de que ele
vai esquecer de dar as caras. Não tenho esse tipo de sorte.
Kernos pousa a nave e eu respiro fundo. Passei anos treinando
justamente para fazer isso. Vai dar certo. Claro que vai.
— Pronta? — Gabi pergunta.
Olho para ela e assinto. Se eu abrir a boca não tem a menor chance de
contar uma mentira convincente.
Ela passa Kratos para o colo de Tati e tira alguma coisa do bolso. Parece
um rolo de durex, mas levando em conta onde estou, duvido que seja isso.
— Suelen me mandou isso — ela avisa antes de puxar minhas mãos.
Pelo que me lembro, Suelen é uma das terráqueas que foi abduzida há
mais tempo e que acabou fazendo um nome no Acordo. Ela trabalha com
piratas e mercenários, se não falha a memória. Definitivamente essa coisa não
é um rolo de durex, então.
Gabi puxa a fita e a passa por cima dos anéis que são os mini-tasers.
Igualzinho um durex... Mas quando ela solta minhas mãos a fita desapareceu.
Estreito os olhos.
— Algum tipo de bloqueador, ou...? — Começo.
Ela assente.
— Vai bloquear os sensores de segurança. Não permitem armas aqui
dentro, mas é melhor você não estar indefesa.
Interessante. Muito interessante. Já gostei dessa Suellen.
Olho para Tati, com o bebê no colo. Ele já está brincando com o cabelo
dela. Ouch.
— E vocês duas? — Pergunto.
Porque se não é seguro eu estar desarmada...
Gabi sorri.
— Ninguém vai encostar um dedo nelas — Ei’ri fala, se levantando. —
Não são loucos de começar uma guerra com os rhergari, e tenho certeza de
que é isso que aconteceria.
Kernos não fala nada. Acho que isso é resposta o suficiente.
Me levanto e olho para a rampa que está se abrindo. Lá vamos nós.
Seguimos por uns tantos corredores quase idênticos uns aos outros. Um
alien tão grande quanto Kernos, mas com pele azul com marcas pretas, nos
encontra no meio do caminho. Darius, o irmão de Kernos. Ele e Tati pegam
Kratos e vão por outro corredor. Pela posição de Darius dentro do Corpo
Militar, eles podem assistir à sessão, mas não participar. Gabi e Ei’ri se
afastam por outro corredor logo depois. Respiro fundo. Isso Gabi me
explicou ontem: o observador e consultor do Acordo já haviam sido
escolhidos e recebido suas instruções. Eles estariam presentes, mas a única
pessoa no centro da sala seria eu. Seja lá o que isso signifique.
Kernos continua me levando pelos corredores, até um saguão que é só
equipamento de segurança. Somos escaneados por três sensores diferentes e
eu preciso admitir que o durex estranho faz um ótimo trabalho, porque nada
apita. De lá, saímos em uma sala pequena, com paredes brancas – que
novidade! – e vazia. A porta do outro lado está fechada e não tem nenhum
sinal de alguma forma de abri-la.
— Esta é a sala de espera — Kernos conta. — Quando o Conselho
estiver pronto para você, a porta vai se abrir.
Assinto. Simples e prático, mesmo que um tanto impessoal. Certo.
Respira fundo, Carol.
Ele me encara por um instante e respiro fundo mais uma vez.
— Ótimo. Você sabe o que fazer.
Sei. Com certeza, sei. Não tenho motivos para estar nervosa assim.
Consigo fazer isso. Porra, duvido muito que uma reunião vai ser pior que
algumas das missões que encarei.
Kernos sai da sala e a porta por onde entramos se fecha. Olho ao redor.
Branco, branco, branco, sem nada. Isso quase me lembra a sala de espera da
APLA, com a diferença que lá temos ao menos cadeiras. E aquele relógio
irritante.
Espero muito que não demorem a me chamar.
Começo a respirar fundo e soltar o ar devagar. Não posso ficar andando
de um lado para o outro nem nada do tipo, porque tenho certeza que estou
sendo monitorada. Não quero deixar que notem o tanto que estou nervosa.
Então, respirar fundo e soltar o ar devagar. Isso vai ter que servir para passar
o tempo enquanto não me chamam.
Perco completamente a noção de tempo. Minhas pernas já estão
começando a doer quando escuto um estalo e a porta se abre. Certo. É agora
ou nunca.
A sala onde entro é circular, com as paredes todas vidradas. Dá para ver
os membros do Conselho do outro lado, então não acho que isso seja por
questão de sigilo ou... Ah. São pelo menos cinco salas diferentes do outro
lado do vidro, todas elas separadas entre si. Faz sentido, porque nem todas as
espécies do Acordo são adaptadas para essa gravidade e atmosfera. Sem falar
que tenho quase certeza de que alguns dos aliens que estou vendo são de
espécies que nem são à base de carbono. São à base de algo parecido com
plástico – quando li a respeito pensei que era silicone, mas não temos um
material equivalente – e precisam de radiação para sobreviver. É óbvio que
estariam em uma sala isolada. E na sala ao lado deles estão alguns aliens
altos, com a pele escura, parecendo plástico furta-cor, que não respiram
oxigênio. Eles precisam de uma atmosfera feita principalmente de nitrogênio
e de gravidade mais baixa que a das outras espécies.
Continuo olhando ao redor. Kernos está na maior sala, junto com as
espécies mais próximas dos terráqueos. Outra sala parece que está cheia de
água ou algo do tipo. Minha vontade é parar e ficar encarando os aliens que
estão dentro dela, mas não vou fazer isso. Quer dizer, agora não. Tenho que
ser profissional. Caralho. Odeio isso. Não posso nem matar a curiosidade.
A última sala é a menor e consigo ver Gabi, Ei’ri e Lucas. Gabi está de
braços cruzados e com uma expressão assassina. Acho que se estivéssemos
em outro lugar, ela já teria voado para cima de Lucas. Ei’ri está parado entre
os dois, parecendo tenso. Espero que ele tenha o bom senso de sair do
caminho se Gabi apelar, senão vai sobrar para ele.
— Agente Ana Carolina Dutra, o Conselho reconhece sua presença.
A voz que fala é artificial, tenho certeza. Não consigo dizer se é
feminina ou masculina, muito menos de onde está vindo. Queria poder ficar
olhando para os lados até descobrir quem está falando, se é que é só uma
pessoa, mas não posso fazer isso.
— Agradeço reconhecimento do Conselho — respondo de acordo com o
protocolo. — É uma honra estar aqui como representante da APLA na
implantação das alterações nas leis do Acordo.
Kernos assente de forma quase imperceptível. Olha só, ao menos
comecei certo. Me dá um pouco de crédito, porra. Respiro fundo. Certo. Ele
provavelmente só está tentando ajudar. E eu estou surtando.
— Este Conselho examinou suas recomendações, mas temos uma
dúvida.
— Estou aqui para responder qualquer coisa que considerem necessário.
Eu vou me arrepender disso. Tenho certeza. Mas é a resposta certa.
Odeio essas coisas.
— Parece que sua principal recomendação é seu parentesco com
Gabriela en’Dyraiv. Este Conselho tem dúvidas sobre a legitimidade de sua
indicação.
Puta que pariu. Respira fundo, Carol.
— Esse parentesco me colocou em uma posição privilegiada para
aprender mais sobre o Acordo e as várias espécies que fazem parte dele, o
que em parte é responsável pela minha indicação. Dentre os funcionários da
APLA, sou a mais preparada para trabalhar com o Acordo.
— O que nos faz questionar se os terráqueos realmente terão condições
de se juntar ao Acordo, já que o melhor que a APLA pode nos oferecer é
você.
Oookay, olha a apelação. E eu não posso nem reagir. Puta merda, que
caralho. Onde é que está aquela coisa de que não iam trabalhar com ninguém
da APLA além de mim, por causa da minha reputação? Porque o que está
parecendo é justamente que querem me despachar.
Tenho a impressão de que estou vendo movimento na sala que Kernos
está, mas não vou me virar para olhar. Nem vou esperar Gabi ter a chance de
exigir falar alguma coisa.
— Os terráqueos, como um todo, não fazem a menor ideia de que algo
como o Acordo existe. É estranho que eu precise lembrar este Conselho de
que nem mesmo temos a tecnologia considerada necessária para se tornar
parte do Acordo. Qualquer diferença em conhecimento e tecnologia não é um
ponto contra nós, mas tentar usar este argumento me faz questionar a
capacidade de compreensão deste Conselho.
Isso. Eu acho que falei alguma coisa que fez sentido. E nem soltei
nenhum palavrão no meio.
Ninguém me responde. Espero, parada no mesmo lugar, olhando para
um ponto entre duas das salas. Não quero nem arriscar olhar para os lados.
Os segundos se arrastam. Com o canto dos olhos, vejo um alien fazer um
movimento com a mão e os vidros ficam opacos. Certo. Não sei se isso é bom
ou ruim, mas espero que não seja nada demais. Só eles discutindo entre si.
Deve ser isso. Então talvez o vidro da sala onde Gabi está não tenha ficado
opaco, mas não vou me virar para ver.
Dobro um pouco os joelhos e afasto os pés, tentando ficar confortável. Já
fiquei tempo demais de pé na sala de espera, e agora mais isso. Não faço a
menor ideia de quanto tempo eles vão demorar discutindo sabe-se lá o quê.
Minha vontade é me sentar no chão, mas não posso. Profissionalismo. Argh.
Estou tomando ranço disso.
Os vidros ficam transparentes de novo.
— Existe uma forma fácil de resolver o problema da sua capacidade de
trabalhar conosco — a voz fala.
Assinto, esperando eles continuarem.
— É simples. Um teste. Uma missão que completará para nós. Você vai
investigar a origem do comércio de mulheres terráqueas. É da opinião deste
Conselho que esta é uma informação pertinente à aplicação das alterações
aprovadas, mas é um conjunto de dados que ainda não nos foi passado. Cabe
a você, juntamente com o observador e consultor indicados, nos trazer esta
informação.
Eu consigo ver o rosto de Kernos através do vidro. Ele não está nem um
pouco satisfeito. Ao menos eu sei que isso não foi uma decisão unânime.
Respiro fundo. Não quero nem olhar para trás, para onde Gabi está, com Ei’ri
e Lucas. Se ela já tinha um motivo para estar furiosa, agora vai estar
querendo literalmente matar um.
E eu não consigo sentir nada. Puta merda. Respiro fundo de novo. Não
esperava por isso. Nunca imaginei algo assim. Mas só tenho uma opção.
— Eu aceito.
OITO
Gabi
Eu não vou matar ninguém, eu não vou matar ninguém, eu não vou
matar ninguém... Mas vontade não falta. Não falta mesmo. Passei a viagem
de volta para o complexo toda repetido isso mentalmente. Primeiro aquele
filho da puta do Lucas, e agora mais essa. O que o Conselho está pensando?
É uma coisa colocar Carol para trabalhar com Ei’ri para implantar as
alterações. É outra coisa bem diferente foder com ela desse jeito e a mandar
em uma missão impossível. Eu quero matar um.
Kernos começa a massagear minhas costas.
— Você devia ter me deixado falar, porra — resmungo.
Ele aperta um ponto perto do meu pescoço com força. Ouch.
— Não reclame. Você está tensa demais.
Só não me viro de uma vez porque não tem como fazer isso com Kernos
me segurando no lugar.
— E o que você queria, hein? Estão tentando ferrar com a Carol!
Ele continua fazendo a massagem, mas não tenho a menor ilusão de que
vou conseguir sair do lugar se tentar me mexer. Argh.
— Não. Eles estão tentando bloquear as alterações. Sua prima é só
alguém que está no caminho.
Respiro fundo e solto o ar com força. Foi exatamente isso que eu quis
dizer.
Kernos aperta meu ombro e me puxa para mais perto.
— Sua prima é uma agente da APLA há mais de quatro anos. Mesmo
sem o seu aviso, daquela vez que fomos na Terra, ela provavelmente seria a
indicada para vir, porque tem o melhor histórico entre eles. Você também leu
o histórico dela, Gabi. Carol teve mais encontros hostis com espécies do
Acordo nos últimos dois anos que qualquer outra terráquea, com exceção de
Suelen. E se saiu bem em todas as vezes.
Continuo sentada com as costas retas. Sei muito bem o que Kernos está
tentando fazer ao me puxar para perto, mas não vou deixar ele me distrair.
— Ela tomou um tiro — lembro.
— Que não passou pelas escamas, que ela aprendeu a controlar em
tempo recorde.
— Mesmo assim, ela...
Kernos dá a volta na cadeira e segura meu rosto.
— Você não pode controlar tudo, Gabriela. Carol já provou que
consegue se virar sozinha. Deixe ela fazer seu trabalho.
Abro a boca para responder e Kernos levanta as sobrancelhas. Suspiro.
— Isso é meu trabalho. Não o dela.
Kernos sorri e se levanta. Queria saber o que ele está achando
engraçado. Cruzo os braços enquanto ele vai até a geladeira e pega uma
garrafa de Coca-Cola.
— Sabe, isso me lembra uma coisa que aconteceu quatro anos atrás —
ele fala e me entrega a garrafa. Não vou abrir. Se ele acha que vai me
comprar com Coca... — Que apareceu uma terráquea que não sabia
absolutamente nada sobre o Acordo querendo se meter no meio do meu
trabalho. Pior, se meter no meio de algo que eu estava trabalhando há anos
para conseguir, sabe.
Merda.
— Isso é golpe baixo.
Ele dá de ombros e se senta na minha frente.
— No fim das contas, como você diz, a terráquea sabia coisas que eu
não sabia. E se não fosse por ela se enfiando no que deveria ser o meu
trabalho, dificilmente teria conseguido ir até o fim.
Cruzo os braços, sem soltar a garrafa de Coca.
— Não é a mesma coisa.
Kernos sorri.
— Não?
Respiro fundo. Eu odeio quando ele está certo. Sim, eu me meti no meio
do trabalho dele. Se não fosse por mim, Arcen não teria sido preso. Mas
aquilo era o trabalho dele, não meu. Eu era só a terráquea que ele tinha
pegado porque sabia que Arcen estava atrás de mim. Não precisava ter me
envolvido.
— Carol passou dois anos treinando para fazer isso. Você deu esse
trabalho para ela, lembra? Deixe ela fazer o trabalho.
Merda.
— Eu odeio quando você está certo.
O sorriso dele fica mais largo. Filho da puta.
— Eu sei.
Abro a garrafa de Coca e tomo um gole.
— Ainda acho que isso não vai prestar.
Kernos suspira.
— Não vai. Deram essa sugestão porque têm certeza de que ela vai
falhar.
Estreito os olhos. Kernos é parte do Conselho. Ele estava na sala quando
decidiram isto.
— Isso é uma suposição ou uma certeza?
— Isso foi falado com todas as letras durante a discussão. Os que eram
contra foram a minoria.
Respiro fundo de novo e tomo mais um gole de Coca. Não vou perguntar
quem deu essa ideia idiota, porque senão vou ficar tentada demais a ferrar
com o sistema de quem quer que seja. Não que isso seja uma má ideia, mas
eu vou ser a primeira suspeita e Kernos provavelmente vai ter problemas.
Talvez se eu tentar ferrar com a pessoa financeiramente, usado as
minhas empresas... É algo a se pensar. Não entendo o suficiente de negócios
para fazer isso sozinha.
— Eles não conhecem Carol — murmuro.
Kernos assente.
— Não. E eles continuam subestimando vocês. Vai dar tudo certo.
Eu espero que sim. Espero muito que sim.
Okay. Tá. Ele está certo. Carol consegue se virar. Caralho, ela se virou
sozinha mesmo quando não sabia nada sobre os aliens, quando terminou com
Lucas. Ela pode não ter se preparado especificamente para uma investigação
no Acordo, mas não vai estar perdida aqui.
— Sabe uma coisa que eu acho que te relaxaria?
Estreito os olhos. Sei o que ele normalmente quer dizer quando fala isso,
mas – não acredito que estou falando isso – não estou com cabeça para sexo.
Não. Só não. Estou irritada demais, preocupada com o que vai acontecer, e...
Kernos ri.
— Você não disse que queria aprender a lutar?
Ei. Coloco a garrafa de Coca na mesa ao meu lado.
— De onde isso está vindo? Porque você sempre falou que a gente não
tinha tempo para me ensinar.
Ele sorri.
— Quando você começou a força-tarefa, depois engravidou, e enquanto
Kratos era pequeno demais para começar a aprender também?
Bom, falando assim...
— Mas acho que agora é uma boa hora. Uma forma de te distrair.
Distrair? Que distrair o quê!
— Fechado, quero ser a May.
Kernos pisca.
— Quem?
— May? Agents of Shields?
Ele só me encara.
— Puta merda, tenho que te fazer assistir tudo? O espaço é um lugar
muito sem cultura, viu.
Ele balança a cabeça, sorrindo.
— Já temos a próxima maratona, então.
Ah, com certeza temos. Com toda certeza.
— Quer começar agora? — Kernos pergunta.
Abro a boca para dizer que sim e paro. Isso ia ser uma ótima forma de
me distrair. Mas posso fazer coisa melhor com o meu tempo.
— Depois. Darius e Tati ainda estão com Kratos?
Kernos assente.
— Darius está brincando com ele. Faz uns meses que não consegue parar
aqui com tempo o suficiente para isso.
Assinto. Enquanto Kernos tem o cargo mais “político” do Corpo Militar,
quem coordena a maioria das operações é Darius. Isso quer dizer que ele
passa muito tempo longe daqui. De acordo com Tati, isso é ótimo, porque o
tempo que ele passa no complexo é inesquecível. Preferi não pedir detalhes,
porque conheço a louca. Ia ouvir o que não queria. Mas pelo menos Darius
criou vergonha na cara e nunca mais deu uma de babaca. Na verdade, acho
que Tati até está muito mimada, porque ele faz tudo o que ela quer.
E se Darius está querendo recuperar o tempo perdido, por assim dizer, já
que os rhergari têm uma coisa muito forte sobre família, eu vou aproveitar.
Tenho algum tempo até Carol ir embora.
— Não podemos interferir, Gabi — Kernos avisa. — Se você fizer
alguma coisa, o Conselho pode usar isto como motivo para invalidar qualquer
resultado que Carol consiga.
Sorrio. Aliens. Kernos até pode ler minha mente, mas definitivamente
não consegue acompanhar como eu penso.
— Não vou interferir. Mas Carol vai precisar de informações. E onde as
informações são armazenadas?
Kernos me encara por um instante e suspira.
— Só isso, e mais nada.
Assinto. Não vou precisar de mais nada.
NOVE
Eu ainda não acredito nisso. Puta que pariu, vai ser azarada assim lá no
quinto dos infernos.
Encaro a parede do meu quarto no apartamento de Gabi e Kernos, até
que a parede começa a ficar desfocada e eu estou vendo manchas onde não
tem nenhuma. Eu pensei em várias formas como isso podia dar errado, de
verdade. Me preparei para sei lá quantas possibilidades. O pessoal da APLA
não me chama de pessimista à toa, mas a verdade é que só prefiro estar
preparada para qualquer coisa que acontecer. Mas eu nunca – nunca –
imaginei essa possibilidade.
Uma investigação no Acordo. Pior, uma investigação que eu sei que
Gabi está mexendo quando tem tempo e que em quatro anos não descobriu
mais nada. Não, espera, isso não é o pior. O pior é saber que isso é um
assunto delicado, que tenho certeza que muita gente prefere abafar, e que é
justamente por isso que me deram essa missão. Estão esperando que eu falhe.
Se bobear, estão torcendo para eu morrer. Assim ficam livres dessa confusão
toda. Se depois que eu desaparecer, na melhor das hipóteses, Kernos e sei lá
quem mais está do nosso lado nisso conseguirem obrigar o Conselho a
chamar outro representante da APLA, tudo vai se repetir. Ou vai dar merda
de vez, porque eu sei que sou a mais preparada. E, numa situação dessas, sei
que sou uma das poucas que não aceitaria ser manipulada.
Puta merda, que caralho, como é que eu vou fazer isso? E eu que achava
que ter que trabalhar com um drilliano e ter Lucas como observador já era
azar demais. Murphy, eu sei que você me ama, mas pode dar um pouco de
sossego, para variar.
Alguma coisa apita. Passo as mãos no rosto antes de olhar para os lados.
Ah. A porta. Gabi me explicou isso antes: as portas internas, se estiverem
fechadas, têm um tipo de “campainha” embutida. Estico o braço e aperto a
mancha na parede perto da cabeceira da cama. Um painel se abre e aperto um
dos controles. A imagem de Ei’ri aparece.
— O que foi? — Pergunto.
Ele passa uma mão pelo cabelo.
— Não foi só você que o Conselho colocou na linha de tiro. Precisamos
conversar e decidir o que vamos fazer.
E tem mais essa. Respiro fundo. Ele está certo. Tanto ele, como
consultor, quanto Lucas, como observador, estão tão ferrados quanto eu.
Querendo ou não, a reputação deles está ligada ao resultado disso tudo.
Merda. Ia ser melhor se eu estivesse sozinha.
— Podemos conversar aqui? — Ele continua.
Aqui, no meu quarto? Se o “nós” dele inclui Lucas, não mesmo. Não
quero ele dentro de nenhum espaço que seja meu, mesmo que
temporariamente.
Balanço a cabeça.
— Gabi ainda está na sala?
— Ela e Kernos estavam subindo quando passei por lá.
Ótimo. Gabi estava tão puta depois da reunião do Conselho que não falei
nem meia palavra perto dela no caminho de volta para cá e vim direto para o
quarto. Nós duas juntas, com ela puta de raiva e eu do jeito que estou não ia
dar em nada que preste. Ou seja, melhor eu já ficar na minha.
— Na sala, então. Já estou indo.
Ei’ri assente e se afasta da porta. A imagem desaparece. Espero que ele
esteja indo chamar Lucas, porque eu não vou fazer isso. Ou melhor, espero
que não chame. Não preciso dele por perto.
Merda. Preciso me conformar a trabalhar com ele. Ei’ri é mais fácil – ele
pode ser um drilliano, mas não me deu nenhum motivo palpável para
desconfiar dele. Quer dizer, além de ser um drilliano. Agora, aceitar trabalhar
com Lucas? Caralho, que merda. Essa é a única reação que consigo ter. Mas
vou ter que dar um jeito, porque é a única opção.
Quando chego na sala, Lucas e Ei’ri já estão sentados. Me deixo cair no
sofá de frente para as cadeiras deles e cruzo as pernas, encarando o céu lilás
de Nehyna através da janela. Queria poder pelo menos aproveitar o momento.
Eu estou em outro planeta, devia aproveitar. Tirar dez mil fotos, no mínimo,
mesmo sabendo que quando voltar para a Terra só vou poder mostrar isso
para o resto do pessoal da APLA. Mas não consigo.
— A APLA tem alguma informação não compartilhada com o Acordo
sobre o comércio de mulheres? — Ei’ri pergunta assim que me sento.
Direto ao assunto. Ótimo.
E seria ótimo se tivéssemos alguma coisa.
Balanço a cabeça.
— A única coisa que a APLA consegue fazer é monitorar os registros de
desaparecimentos e tentar identificar se são coisa de aliens. Quando
descobrimos que foi caso de abdução, notificamos o Acordo. Nos quatro anos
que trabalho para a APLA, nenhuma das nossas notificações deu resultados.
— Não que isso seja uma surpresa, já que o Conselho com certeza sabe
sobre o comércio de terráqueas há muito tempo, talvez desde que começou —
ele responde, assentindo.
Dou de ombros. Nenhuma surpresa, mesmo. E todos na APLA
imaginam a mesma coisa, pelo menos todos que eu conheço. Mesmo assim,
se a única coisa que podemos fazer é notificar, vamos continuar notificando.
Pelo menos estamos dizendo que não somos cegos.
— A força-tarefa também não tem nenhuma informação nesse sentido.
Todas as trilhas financeiras desaparecem pouco mais de dez anos atrás —
Ei’ri conta.
Assinto. Gabi me avisou sobre isso um bom tempo atrás. Na primeira
chance que teve, ela voltou para a rede do Acordo para tentar encontrar
registros financeiros e tentar pegar mais pessoas como pegou Arcen. Não deu
certo. E o pior é que, pelo que ela conseguiu revirar, não parece que os dados
foram apagados depois que Gabi veio para cá. Ou eles nunca estiveram na
rede, ou alguém fez uma limpa muito antes que ela se envolvesse.
— A única pista é Arcen. Se é que ainda existe alguma coisa que dá para
ser tirada dos dados dele.
Ou dele, mas não falo isso em voz alta. Sei que ele está preso, mas a
ideia de ir atrás do alien que me encomendou não é uma das melhores. Não
se tenho que ser profissional. Eu ia adorar me encontrar cara a cara com ele
se pudesse fazer um estrago.
E isso é uma coisa que eu já tinha notado. Arcen foi a primeira pessoa a
ser presa por causa dos mercados de mulheres e era quem estava mais
envolvido com eles, de todos os que vieram depois. Não foi ele quem
começou isso, é óbvio, mas ele estava por dentro demais para não ter alguma
ligação importante.
— As informações da rede... — Ei’ri começa.
Balanço a cabeça.
— Beco sem saída. Gabi já tentou.
E se Gabi, que consegue passar por qualquer sistema de segurança que
os aliens arrumaram até hoje, só conseguiu dizer que os dados foram
apagados bem antes da prisão de Arcen – que é a mesma coisa que o restante
da força-tarefa sabe – é porque realmente não tem nada ali. Não na rede.
— Se ainda tiver alguma informação passada, é em servidores locais
isolados da rede.
Ei’ri inclina a cabeça e estreita os olhos.
— O que não é muito comum no Acordo.
Assinto. Um servidor isolado da rede é algo raro, mas também é algo
que não temos como rastrear. Se fosse, seria mais fácil. E eu já estaria
fazendo isso, na verdade.
E é bem interessante que Lucas esteja aqui só de enfeite, aliás.
Olho para ele.
— Não vai falar nada? — Pergunto.
Ele balança a cabeça.
— Meu papel é ser um observador.
Encaro Lucas até que ele cruza os braços. Na defensiva, já? Me seguro
para não sorrir.
— Sabe, é interessante o tanto que o Conselho fez questão de te colocar
nessa também. Eles não precisavam de um observador para um processo de
implementação.
— Precisam se o consultor oficial não tem todas as qualificações
necessárias.
Bufo, segurando uma risada, e olho para Ei’ri em tempo de ver quando
ele revira os olhos. E eu pensando que era tudo uma grande festa de família...
Parece que Lucas não está muito satisfeito com isso tudo.
Ótimo. Posso ignorá-lo mesmo.
Olho para Ei’ri.
— Eu li os relatórios repassados para o Conselho depois que verificaram
as propriedades de Arcen. A força-tarefa ou os drillianos tiveram acesso a
alguma coisa além deles?
Ele suspira. Lucas faz um ruído irritado e se vira para olhar pela janela.
Ceeerto. Tem mais alguma informação e eles não querem me repassar.
Ei’ri suspira de novo.
— Nem todas as propriedades de Arcen foram verificadas pelo pessoal
do Conselho. Arcen vem de uma família antiga, tradicional. Algumas
propriedades têm valor histórico e simbólico. O governo não permitiu que
fossem verificadas. Elas só foram evacuadas e fechadas, com tudo o que
estava lá.
Por essa eu não esperava. Mas não vou nem chamar os aliens de
retardados, porque essa pode ser nossa única chance de conseguir descobrir
alguma coisa.
— Então já sabemos para onde ir — falo.
Ela balança a cabeça.
— Vamos ter que entrar em espaço drilliano. Visitantes são catalogados
rigidamente. Vão te cadastrar em todos os sistemas e bloquear nosso acesso a
várias regiões por causa da sua presença.
Abro a boca para dizer que consigo me passar por drilliana e paro.
Fisicamente, posso me passar por um deles. Moleza. Mas os sensores por
toda parte do Acordo estão configurados para detectar espécies. Nem adianta
tentar. Ou seja, posso deixar Ei’ri e Lucas irem para lá sozinhos – me julgue,
não confio em Ei’ri o suficiente para isso. Ou então...
— E as permissões comerciais? Pelo que me lembro, as naves com
permissão comercial não têm a tripulação escaneada, até porque quase
ninguém desembarca. Se a nave ficar em órbita, não importa de qual planeta
que seja, dá para descermos sem sermos notados, não?
Ei’ri sorri e assente. Okay, preciso admitir que acho que trabalhar com
ele não vai ser tão ruim assim.
— Sei quem pode nos ajudar com isso. Um grupo que tem permissão
comercial com alto nível de acesso, porque já trabalharam escoltando
carregamentos drillianos, além de terem feito alguns trabalhos menos limpos.
Levanto as sobrancelhas. Desculpa, mas tenho o pé atrás com qualquer
um que trabalhe com os drillianos.
— E eles são confiáveis? Ou melhor, vão ser confiáveis, levando em
conta que podem perder essa permissão comercial se nos descobrirem?
O sorriso de Ei’ri se alarga. Acho que isso é um sim.
— Ah, eles não vão se importar com isso. São um dos grupos aliados à
força-tarefa.
Epa, isso realmente muda as coisas. Se são um dos grupos que já está
trabalhando com a força-tarefa, posso confiar. Pelo menos Gabi me garantiu
que todos os grupos que estavam se juntando a eles eram de confiança. E
Ei’ri trabalhou para Kradisla, que é a segunda no comando da força-tarefa.
Ele com certeza vai conhecer quem ali pode nos ajudar ou não.
Lucas se mexe.
— Você está sugerindo trabalhar com um grupo de piratas conhecidos...
Me viro para ele.
— Você é um observador. Só observe.
Lucas me encara, de boca aberta, antes de respirar fundo e soltar o ar de
uma vez. Coitadinho.
Olho para Ei’ri.
— Quanto tempo até conseguir falar com eles?
— Se Gabriela liberar o sistema de comunicação da força-tarefa, consigo
contato imediato.
Certo. Hora de resolver isso, então.
DEZ
Eu estou numa nave espacial sozinha. Okay. Não é motivo para surtar.
Caralho, eu estou numa nave espacial indo sabe-se lá para onde!
É diferente de quando eu saí da APLA e fui para Nehyna. Eu tinha um
trajeto definido. Sabia para onde estava indo, com quem ia me encontrar, o
que ia fazer... Agora não tenho nada disso. E dessa vez não vou ficar em uma
salinha vazia com ordens para não sair dali, sem nenhum contato com o
restante da nave e da tripulação. Eu vou ser uma passageira, sim, mas tratada
como parte da tripulação. Isso foi uma coisa que Ei’ri repetiu não sei quantas
vezes. Acho que estava pensando que eu ia achar ruim. Coitado.
Gabi passou as últimas horas me explicando todos os detalhes que sabe
sobre as funcionalidades padrões de uma nave do Acordo. Os armários
embutidos, processadores de comida, como as linhas coloridas servem para
se orientar no meio dos corredores quase idênticos e as medidas de segurança
básica: as barras que estão em todas as paredes e as botas de solas magnéticas
que somos obrigados a usar enquanto estamos no ar. Ou no espaço. Tanto
faz. Ela também me passou todas as informações que conseguiu sobre os
drillianos, o que não é muita coisa a mais do que eu já tinha lido. Mas a
melhor parte foi quando ela me deu dois adaptadores que podiam ser
encaixados no meu celular ou em qualquer terminal padrão do Acordo. Pelo
que entendi, Gabi passou aquelas horas “desaparecida”, quando Ei’ri e eu
estávamos discutindo o que fazer, conversando com Suelen. As duas
arrumaram os adaptadores, para o caso de eu precisar. Um deles consegue
gerar uma conexão alternativa usando a rede do Acordo. Bom, isso foi o que
ela falou. Eu entendi como uma gambiarra que vai me deixar entrar em
contato com Gabi sem ser detectada, mesmo que de forma limitada. O outro
roda um programinha que serve para passar pelos sistemas de segurança dos
servidores. Excelente, porque nem em sonho consigo fazer isso sozinha, e
duvido muito que os dois drillianos consigam.
— Quatro minutos até o ponto de encontro — Ei’ri fala, parando ao meu
lado.
Assinto, sem tirar os olhos do monitor que mostra o hangar fechado.
Kernos nos trouxe para a nave gigantesca que é a base móvel da força-
tarefa. Ela fica em órbita de Nehyna quando não estão cuidando de nenhum
problema, então isso foi rápido. Tive esperanças de ver Kradisla, que é a
dona da nave, mas acho que não vai ser dessa vez. Uma das mulheres da
tripulação dela nos recebeu no hangar e disse para trazermos nossas coisas
para essa sala e esperarmos. Então estamos esperando. Lucas se sentou em
uma das cadeiras e está nos ignorando. Eu dei uma olhada na sala toda antes
de parar na frente desse monitor, a tempo de ver o hangar se abrir para a nave
de Kernos sair.
Aliás, eu já falei que isso aqui é gigantesco? A nave de Kernos, que é
maior que um carro popular, coube dentro do hangar sem a menor
dificuldade. E nós tivemos que andar um bom tempo para sairmos de dentro
dele. Sei lá, é uma coisa você ouvir falar que uma nave é enorme ou que tem
tantas centenas de metros de comprimento ou altura. Outra bem diferente é
ver isso de perto. É surreal.
Os piratas ou mercenários – não entendi até agora o que são – que Ei’ri
disse que poderiam nos ajudar aceitaram o trabalho. Eles até poderiam ter
vindo nos buscar em Nehyna, mas a nave de Kradisla é mais rápida que a
deles, então ela vai nos levar para um ponto de encontro. Isso é uma coisa
que não fez sentido para mim. Se a nave dela é gigantesca assim, deveria ser
mais lenta que a dos mercenários/piratas, não? Especialmente levando em
conta que já perguntei para Ei’ri se a nave deles é maior e ele disse que ela
cabe no hangar.
Ei’ri não fala mais nada enquanto esperamos. Não pergunto nada,
também. Ele ainda está achando que vou me assustar com qualquer coisinha e
não quer me dar detalhes sobre os mercenários. Quando perguntei para Gabi
sobre eles, já que ela provavelmente sabia com quem Ei’ri tinha entrado em
contato, ela disse que não ia estragar a surpresa. Paciência. Ao menos já sei
que é alguma coisa que vou achar legal, pelo comentário de Gabi.
Uma luz laranja começa a piscar no hangar. Os dois aliens que estavam
fazendo alguma coisa no campo de visão da câmera se afastam correndo.
Agora, isso faz sentido. Bem mais sentido que aquelas cenas de filme em que
o hangar se abre, em plano espaço, e está todo mundo de boa. Coisas como
atmosfera vazando para o espaço e tudo que está solto sendo sugado para fora
são esquecidas.
Não demora muito para a parede do outro lado começar a se abrir.
Quando chegamos, a abertura foi bem menor. Desta vez parece que a parede
inteira está se abrindo mesmo. Interessante. Eles controlam a abertura do
hangar de acordo com o tamanho da nave. Espertos.
A nave que entra é comprida, achatada na parte de baixo e arredondada
na parte de cima. Eu até diria que parece uma concha mega lisa, se não fosse
tão comprida e estreita. E, obviamente, eu não tenho como nem sonhar em ter
um ponto de referência para calcular o tamanho da nave. O casco é claro,
quase branco, com algumas marcas mais escuras que eu não duvidaria se me
dissessem que são resultado de batalhas.
A nave pousa ao mesmo tempo em que as paredes se fecham. A luz
laranja continua piscando por alguns minutos antes de desaparecer. Só então
vejo uma rampa de desembarque se abrindo. Eu amo quando as coisas fazem
sentido.
— Vamos — Ei’ri chama.
Pego minha mochila, que deixei em cima de uma das cadeiras, e me viro
para a porta. Quase trouxe minha mala, mas todas as minhas roupas são
terráqueas. Gritantemente terráqueas. Se colocar o pé para fora de uma nave
usando elas, vou chamar atenção demais. Então Gabi me arrumou roupas
daqui, reforçadas para o caso de ter problemas. O que é bem possível na
verdade. Como os tecidos usam um tipo de tecnologia que me permite
encolher tudo, uma mochila dá e sobra.
Saímos da sala e entramos no hangar de novo. Respiro fundo. O ar está
com um cheiro meio metálico estranho. Provavelmente por causa da
quantidade de atmosfera que os geradores da nave tiveram que mandar para
cá depois que o hangar se fechou.
Vamos direto para a rampa. Eu meio que imaginei que ia ter alguém aqui
fora nos esperando, mas está tudo deserto. Então tá. Lucas começa a subir
sem nem olhar para trás. Para quem estava todo irritado por Ei’ri ter chamado
essas pessoas, ele parece bem em casa.
Subo a rampa atrás dele, com Ei’ri praticamente ao meu lado. Ele não
parece preocupado por não ter ninguém aqui, então deve ser algo normal.
— Ah, ótimo, passageiros que não demoram para embarcar — uma
mulher fala.
Paro no alto da rampa, quase dentro da nave. Tem uma mulher alguns
passos para a frente e eu tenho a leve impressão de que ela não está usando
nenhum disfarce. Ela é negra, com o cabelo cacheado preso para trás e
vestida toda de preto. Aliás, a roupa dela está mais para pirata do que para
mercenária.
Ei’ri inclina a cabeça.
— Você é terráquea.
— Não, imagina, impressão sua.
Levanto as sobrancelhas. Isso é que eu chamo de resposta imediata. Fui
com a cara dela.
Ela se vira para mim.
— Você é a tal Ana Carolina.
Faço uma careta. Tudo menos isso.
— Carol. Só.
Ela assente.
— Talita. O capitão me mandou receber vocês porque não sabia se você
era uma das terráqueas que se assustam com qualquer coisa. Por favor, me
diz que não é.
Lucas resmunga alguma coisa que faço questão de não tentar entender.
Talita levanta as sobrancelhas.
— Não quis ofender. Só não sabia que Drek tinha terráqueas na
tripulação — Ei’ri fala, depressa.
Drek? Onde foi que eu ouvi esse nome antes?
— Só Sara e eu. E vocês são os dois Vertan. — Ela indica o corredor
com um movimento de cabeça antes de começar a andar.
Olho de relance para Ei’ri e vou atrás dela. Ele e Lucas ainda demoram
um pouco para nos acompanhar.
Certo. É uma terráquea no meio de um bando de piratas. Estou gostando
muito disso. Sem ironia nenhuma.
Ela nos leva até um elevador. Entro e me seguro nas barras laterais. Gabi
me avisou que a maioria dos elevadores dentro de naves não anda em linha
reta, para acompanhar o formato do casco. Os outros também se seguram e
Talita aperta alguma coisa no painel. Engulo em seco quando o elevador
começa a andar. Definitivamente não está em linha reta. Okay. Vou ter que
me acostumar com isso.
Estou meio tonta quando saímos do elevador, mas dessa vez presto
atenção nas linhas no chão: uma verde e uma azul. Isso quer dizer que é uma
das áreas habitacionais e que também é uma das zonas seguras. Certo. Talita
segue direto pelo corredor, ignorando todas as portas. Droga. Eu queria ficar
perto do elevador. Menos distância para andar. Ela vira em um corredor e
para.
Tá, não dá nem para chamar isso de corredor. É um beco sem saída,
pequeno, com quatro portas, duas de cada lado.
— Podem escolher os quartos aqui. Achamos que seria melhor deixar
vocês juntos. Não temos nenhuma acomodação de luxo, então vão ficar em
alojamentos idênticos ao da tripulação. Não adianta reclamar depois.
Tenho a impressão de que não é a primeira vez que ela fala isso.
— O sistema vai reconhecer vocês assim que entrarem nos quartos e
programar os sensores da porta para reconhecerem apenas vocês e o capitão.
Isso é uma regra da nave: o capitão sempre tem acesso a todas as áreas da
nave.
Lucas encosta a mão no sensor ao lado da porta mais no fundo do
corredor e entra assim que a porta se abre. Talita revira os olhos.
Definitivamente fui com a cara dela.
— A tripulação está fazendo uma simulação de treinamento agora, que
deve durar mais algumas horas. Assim que terminarem, o capitão vai querer
falar com vocês — ela avisa. — Vamos decolar assim que estiverem nos
quartos.
— Certo — Ei’ri responde e abre a porta na frente da que Lucas
escolheu.
Talita se vira para ir embora. Ah, não.
— Espera.
Ela olha para mim.
— Quais espécies estão na tripulação dessa nave? Ei’ri não quis me
contar e minha prima...
Paro de falar quando ela sorri.
— Tirando Sara e eu? São todos krijkare.
Pisco. Certo. Krijkare. Eles são uma das espécies consideradas de base
mista. Parte é a mesma base humana que várias espécies do Acordo
compartilham. A outra parte é algo completamente alien que a descrição mais
próxima que achei foi reptiliano.
Sorrio de volta. Isso vai ser divertido.
ONZE
Eu nem senti quando a nave decolou, mas vi o aviso no painel ao lado da
porta. É estranho, porque das outras vezes eu senti quando estávamos
decolando e pousando. Mentira, quando estava na nave de Kradisla também
não senti. Será que tem alguma coisa a ver com o tamanho da nave? Bem
provável.
Me sento na cama e encaro o monitor na parede. Já explorei todos os
painéis escondidos nas paredes, vi os controles de luminosidade e
temperatura, além das opções de avisos e alarmes. Configurei o monitor para
mostrar a câmera externa principal, e no momento estou vendo estrelas e
mais estrelas. Acho que estamos no meio do nada.
E eu estou no espaço. Puta que pariu, caralho.
Tá, agora eu posso surtar, não posso? Porque isso tudo é muito foda. E
acho que não tem ninguém me vigiando e esperando que eu seja profissional.
Me jogo de costas na cama. Eu amei esse colchão. Amei demais. Quero
levar para a Terra quando isso acabar, posso?
Na verdade... Tá, sendo bem honesta, eu estou amando isso. Apesar da
complicação toda, isso quer dizer que eu vou poder sair passeando por aí, por
assim dizer. Vou poder me enfiar em lugares que com certeza não ia ver se
não fosse assim. É arriscado? Claro que é. Mas o que não é, nessa vida?
Então vou aproveitar mesmo. Só espero que meu celular tenha memória para
tantas fotos.
Olho para o painel ao lado da minha cama. Ele é o maior dos que estão
aqui no quarto, com todos os controles da questão de habitabilidade do
quarto. Não tinha pensado nisso, mas é óbvio que espécies diferentes vão
estar acostumadas com temperaturas, cores de luz e intensidades de
iluminação diferentes. Quer dizer, a coisa de temperatura eu não preciso nem
sair da Terra para saber que tem diferença. Mas se tem estrelas com cores
diferentes, planetas em distâncias diferentes delas e tudo mais, isso faz
sentido. As áreas comuns das naves têm que estar em um meio termo que seja
relativamente confortável para todos, mas os quartos individuais podem ser
totalmente personalizados. Gosto disso. E depois que resolvermos tudo,
quero fazer umas experiências com isso aqui.
Quer dizer, se conseguir resolver tudo, não é? Se eu sobreviver para
contar a história. Porque é mais que óbvio que vai dar merda no meio do
caminho. Não importa o tanto que eu tente ignorar esse pequeno detalhe.
Merda. E eu estava tão feliz aproveitando meu colchão e as estrelas no
monitor... Respiro fundo e solto o ar devagar. Esse não é o tipo de “surtar”
que eu gosto.
Ninguém tem provas de que algum drilliano além de Arcen estava
envolvido no comércio de mulheres, mas não consigo tirar essa possibilidade
da cabeça. Assim, eles são a espécie do Acordo mais parecida conosco. É
meio estranho que isso não tenha nada a ver com nada dessa confusão toda.
E, mesmo que não tenha, só consigo pensar que seríamos mais úteis para
eles, justamente pela semelhança. Se fossem fazer algum tipo de experiência,
acho que valeria mais a pena...
Puxo um travesseiro para cima da cabeça. Não vou ficar pensando nisso.
Vou aproveitar que estou no espaço. Só isso. Me divertir.
Quase dou um pulo quando o painel ao lado da porta apita. Eu odeio essa
campainha. Jogo o travesseiro para o lado e me sento de novo. Está meio
cedo para Talita ou outra pessoa da tripulação ter vindo nos chamar, não? Ela
falou que iam demorar algumas horas e eu tenho certeza de que não passou
tanto tempo assim.
Aperto o controle no painel ao lado da cama e quase desabo no colchão
de novo quando vejo a imagem de Ei’ri parado do outro lado da porta.
— O que foi?
Ele suspira e levanta as mãos.
— Só queria conversar. Melhor que ficar parado pensando nas
possibilidades até terminarem o tal treinamento.
Okay, eu posso ter sido um tanto mais grossa do que o necessário.
E ele está certo. Qualquer coisa é melhor que ficar pensando em todas as
formas como isso tudo pode dar merda.
Mentira. Qualquer coisa não. Eu ainda não aceitaria Lucas dentro do
meu quarto.
Aperto o sensor para abrir a porta. Ei’ri fica parado no lugar, olhando
para dentro meio sem jeito. Ele que veio aqui e agora começa com isso?
— Entra logo. Ou estava pensando em ir para algum lugar?
Ele suspira e entra.
— Pensei nisso. Mas acho que não é uma boa ideia sairmos andando
pela nave enquanto estão fazendo uma simulação.
E isso sem mencionar que duvido que ele saiba andar aqui dentro. Vi
como ele estava andando quando entramos, olhando para os lados e prestando
atenção nas linhas no chão.
Cruzo as pernas e me encosto parede atrás da cama, apontando para a
outra ponta do colchão.
— Já revirei os armários escondidos aqui. Não tem nenhum tipo de
cadeira ou banco escondido, então é a cama mesmo.
Ei’ri levanta as sobrancelhas e vem na direção da cama. A porta se fecha
com aquele ruído de ar escapando.
— Você está mais tranquila do que imaginei — ele comenta, se
sentando.
Dou de ombros. Que bom que pelo menos parece que estou tranquila. A
menos que ele tenha imaginado que eu estaria surtando completamente.
— Entrar em pânico não serve para nada. Só atrasa a vida.
Se bem que Gabi é muito melhor em não entrar em pânico. Eu só
consigo fingir.
Ele suspira de novo.
Para alguém que queria conversar...
— O que você queria falar? — Pergunto.
Ei’ri dá de ombros. Por que isso não me surpreende?
— Nada específico. Só achei que seria melhor que ficarmos sentados
pensando...
— Pensando em como o Conselho deve estar torcendo para eu morrer
nessa missão?
Ele olha para mim e assente. Pelo menos não está tentando fingir que
isso é normal.
— Você e eu, na verdade. Mesmo que alguma coisa aconteça com você,
eu posso continuar a missão, por ter sido nomeado consultor do projeto.
Okay, não sabia disso. Pensei que eu fosse a única pedra no caminho
deles.
— E Lucas... — começo.
— Re’ni. Se você vai se passar por drilliana, é melhor se acostumar a
usar o nome drilliano dele.
Assinto. Ele está mais do que certo, mas é mais fácil continuar falando
“Lucas”. Esse é um nome que não me deixa esquecer o que ele fez. Re’ni é
alguém que eu não conheço.
— Re’ni é um observador, ele não tem autoridade para fazer nada
sozinho — Ei’ri continua. — Não precisam se preocupar com ele. Agora, se
ele...
Levanto uma sobrancelha quando ele para de uma vez e balança a
cabeça.
— O que foi?
Ei’ri respira fundo e balança a cabeça de novo.
— Minhas fontes disseram que não havia nenhuma menção a uma
missão assim envolvendo esse projeto. Pelo menos, não enquanto já estava
definido que Re’ni seria o consultor. E isso, na verdade, é algo estranho
desde o começo. Ele pode ter passado os últimos anos trabalhando nas
divisões diplomáticas, mas nasceu e cresceu na Terra. Não seria considerado
o mais qualificado simplesmente por fazer tão pouco tempo desde que ele e a
família voltaram para o Acordo.
Faz todo sentido. Eles não dariam um cargo de consultor para alguém
que estava há menos de cinco anos no Acordo, quem diria o de observador. A
prioridade seria de alguém que estivesse com eles desde sempre. Os aliens
podem até ter uns raciocínios que não fazem sentido para nós, mas isso é
estúpido demais.
— É a mesma coisa que ele ter escapado da pena — falo.
Ei’ri assente e olha para os lados.
— Estou falando isso porque você não parece uma das mulheres que vai
brincar de nos jogar um contra o outro, especialmente depois do que Re’ni
fez. Você tem motivos para querer que isso dê certo.
Reviro os olhos. Até no espaço tem gente assim? Puta que pariu.
— Só quero que essas alterações sejam implementadas. Ah, e quero
distância de Re’ni. O máximo de distância possível. Não vou ser idiota de
repetir qualquer coisa que você me falar para ele.
Ei’ri solta um suspiro aliviado e quase reviro os olhos de novo.
Drillianos. Ele não quer acreditar que alguém da sua espécie, tão superior aos
outros, esteja fazendo merda. Ou melhor, que seja comprado. Porque eu
tenho certeza de que é isso que está acontecendo aqui.
— Tem alguma ideia de quem está puxando as cordas?
Ele me encara, surpreso. Dessa vez eu reviro os olhos. Previsível.
— Não faço ideia. Somos primos, mas nunca tive contato com esse lado
da família antes de voltarem para o Acordo. E, depois que chegaram, Re’ni
não foi exatamente a pessoa amigável. Eu não teria imaginado que ele
aceitaria algo assim, uma sabotagem, mas sabendo do que ele fez com você...
Assinto. Até entendo que seja difícil para ele admitir que um drilliano
está fazendo merda. Isso vai contra toda a cultura deles. Normalmente,
quando um drilliano faz algo condenável, é algo que ele consegue justificar
usando as bases das crenças deles. O que Lucas – Re’ni – fez comigo vai
contra tudo o que eles são ensinados. Então, se ele fez isso, poderia fazer
qualquer coisa. Inclusive ser comprado para sabotar um projeto do Conselho.
Acho que vai ser demais para Ei’ri se eu disse que é provável que
alguém do Conselho esteja por trás disso tudo, então fico calada. Posso
deixar isso para depois.
E, no fim das contas, eu dei foi muita sorte. Se tivessem mandado
alguém que não fosse Lucas, eu não teria insistido para trabalhar com outra
pessoa. Isso quer dizer que estaria trabalhando com um consultor comprado,
que provavelmente estaria planejando foder comigo para essas alterações não
serem aprovadas. Sorte. Muita sorte. Ao menos Ei’ri está do meu lado, se é
que posso pensar assim.
Mas não consigo deixar de imaginar o que pediram para Lucas fazer – e
até onde ele está disposto a ir.
DOZE
Ei’ri não falou mais nada e agora eu não consigo parar de pensar se
teriam pedido para Re’ni me matar ou coisa assim. Aliás, de repente está até
fácil usar só o nome drilliano. Ele é um estranho. Não é o cara que foi meu
amigo por anos e depois meu namorado.
Droga. Eu odeio isso de não poder fazer nada, ter que esperar para ver...
Mas juro que se não morrer no meio do caminho, vou descobrir qual é o
acordo de Re’ni. E, se possível, ter provas o suficiente para ele não conseguir
escapar da sentença dessa vez. Só que, enquanto isso, não posso fazer nada.
Nada. E isso não vai sair da minha cabeça.
Olho para Ei’ri, que está sentado no pé da cama, encarando a parede. É,
pelo visto eu não sou a única pensando demais nas coisas. Na verdade, parece
que ele está mais preocupado que eu. Não sei por que, quem está sem saber
se pode ser transformada numa marionete a qualquer momento não é ele.
E, aliás, acho que tem uma coisa que posso fazer. Tirar ao menos uma
preocupação da minha cabeça.
Corro os olhos pelo corpo de Ei’ri. Não é nem a primeira vez que estou
reparando nos músculos na medida exata que ele tem. Só o suficiente para
não parecer magrelo, levando em conta sua altura, mas não o suficiente para
ser grande. Do jeito que eu gosto. Já estou fodida mesmo, o que pode dar
errado?
— Você pode me ensinar — falo.
Ele olha para mim.
— O quê?
Assinto e sorrio.
— A reconhecer quando um drilliano está me usando.
Matar dois coelhos com uma cajadada. Isso vai relaxar nós dois e ainda
vai ser uma preocupação a menos para mim. Odeio isso de ficar sempre
pensando que alguém pode estar me usando de lanchinho. E conheço minha
cabeça. Se voltar para a Terra sem saber disso, nunca vou conseguir parar de
pensar que está acontecendo de novo, mesmo que tenha certeza de que a
outra pessoa é um terráqueo. É por isso que passei esses anos solteira e
sozinha. Simplesmente não dá para esquecer isso.
Não é grande coisa, mas é melhor que ficar parada pensado no que pode
acontecer.
Ei’ri puxa o ar com força.
— Reconhecer quando um de nós está usando suas habilidades é algo
que não pode ser ensinado. É quase uma habilidade à parte. Ou você nasce
com essa sensibilidade, ou não.
Assinto.
— Eu sei. Não é disso que estou falando.
Ele me encara. Levanto uma sobrancelha e desço o olhar pelo seu corpo
de novo. Pelo volume que consigo ver no meio das suas pernas, ele não está
achando que me ensinar é uma má ideia. Sorrio.
— E você confiaria em mim para não passar a te controlar? — Ei’ri
pergunta.
Isso não foi uma negativa. Promissor.
E não preciso de confiança quando tenho informações.
— Tanto eu quanto Gabi estudamos os drillianos. Você não vai
conseguir fazer isso de uma vez. E, se eu consegui mandar Lucas pra puta
que pariu depois do tempo que passamos juntos e do tempo que ele
provavelmente estava me usando, uma vez com você não vai ser problema.
Ele ri.
— Tenho pena de quem ainda subestima vocês.
Dou de ombros. Na verdade, estou achando ótimo nos subestimarem.
Deixa tudo mais fácil.
Ei’ri me encara e não fala nada. Oi, climão. Não tenho paciência para
isso.
— Sim ou não? Foi só uma sugestão, se não rolar, não rolou, só isso.
Ele suspira.
— Tem certeza de que não vai se arrepender depois se Re’ni ficar
irritado? Porque pela forma como ele olha para você, vai ficar.
Reviro os olhos.
— Vai por mim, não tem a menor chance de eu querer qualquer coisa
com seu primo de novo. E não foi você quem falou que vocês são
praticamente estranhos?
Ele sorri.
— Só queria ter certeza.
Quase reviro os olhos de novo. Não mesmo. Comigo a pessoa só pisa na
bola uma vez. Uma pisada de bola do tamanho da de Re’ni? Nunca mais.
Ei’ri me encara de novo. Odeio esse momento meio estranho de “oi,
quero te pegar mas não tenho certeza do que posso fazer”. E não tenho
paciência para esperar ele se decidir sobre o que quer fazer. Puxo Ei’ri para
trás, até que ele cai de costas na cama, e me ajoelho com uma perna de cada
lado dele. Ele sorri. Hmm. Gostei desse sorriso.
Ele me puxa para baixo e paro tão perto do seu rosto que consigo sentir
sua respiração nos meus lábios.
— Última chance de mudar de ideia — falo.
Ele ri.
— Eu que deveria estar falando isso.
Ei’ri me puxa para baixo de novo e dessa vez eu vou. Ele morde meu
lábio, puxando um pouco antes de me beijar para valer, me segurando pela
nuca. E que beijo. Que beijo. Ele definitivamente sabe o que está fazendo,
porque estou toda arrepiada e acho que podemos passar as próximas horas
assim. Não. Mentira. Se isso é um beijo, preciso saber o que mais ele sabe
fazer com essa boca, porque puta merda. Me aperto contra o corpo dele,
sentindo sua ereção. Começo a me esfregar nele, mas Ei’ri coloca uma mão
logo acima da minha bunda, me segurando no lugar. Droga. Mas não quero
parar esse beijo nem para reclamar. Caralho.
Enfio as mãos por baixo da sua blusa e passo as unhas pelos lados do seu
tronco. Ei’ri puxa o ar com força, sem parar de me beijar, e me segura com
mais força ainda. Ótimo, porque isso está me apertando contra o seu pau
duro. E eu não quero nem saber se estamos os dois vestidos, só sei que não
consigo ficar parada. Preciso de mais.
Levanto a cabeça e respiro fundo, quase querendo que Ei’ri continue me
segurando no lugar. Esse cara é perigoso, caralho. Não estava esperando por
isso.
Tiro minha blusa e jogo para o lado. O olhar dele desce pelo meu corpo
e ele sorri de novo. Definitivamente adorei esse sorriso. Ele pode prometer o
tanto de coisas que quiser com ele, porque depois desse beijo não vou
duvidar de nada.
Ei’ri me segura pela bunda e me puxa para a frente. Mordo o lábio e
seguro um gemido, sentindo sua ereção no meio das minhas pernas. Mais um
pouco e eu vou tacar o fodas para isso tudo e só arrancar as roupas dele de
uma vez. Ou sentar na cara dele. Depois desse beijo, isso é uma ótima ideia.
Ele aperta minha bunda antes de subir uma mão pelas minhas costas e
me puxar para baixo de novo. Apoio os braços no colchão, sentindo a
respiração de Ei’ri na minha pele.
— O que quer que você esteja pensando, depois.
Sim, depois. Posso esperar. Definitivamente posso esperar,
especialmente porque ele acabou dar um beijo molhado no meu peito e está
usando a língua para brincar com um mamilo. Eu quero essa língua em outro
lugar, mas posso esperar. Eu acho. Caralho.
Me concentro em não desabar em cima dele enquanto Ei’ri continua
brincando com meus mamilos, lambendo e mordendo, e explorando meu
corpo com as mãos. Estou toda arrepiada e cada toque vai exatamente nos
lugares certos. Ou melhor, o toque dele é certo, porque só de passar um dedo
na linha da minha coluna ele já está me fazendo me remexer, querendo mais.
Ei’ri aperta minha bunda de novo e enfia uma mão no meio das minhas
pernas, por trás. Puta merda. Puta. Merda. Quase desabo em cima dele. Ele ri
em voz baixa e acho que está meio rouco. Ótimo. É bom ele não estar de boa
enquanto faz isso comigo. Bom mesmo. Ei’ri aperta os dedos contra mim,
empurrando a costura da calça bem em cima do meu clitóris. Isso é tortura.
Puta que pariu. Não dá, só não dá. Especialmente depois de quatro anos me
resolvendo entre dedos e brinquedos.
Me levanto de uma vez e me sento, com a mão de Ei’ri ainda no meio
das minhas pernas.
— Sem tortura — resmungo.
Ele sorri e mexe os dedos. Respiro fundo e tento não gemer. Foco em
“tentar”.
— Não? Estava pensando em ir devagar, aproveitar que já estou por
baixo mesmo e te colocar sentada em outro lugar...
Exatamente o que eu estava pensando.
Aperto as pernas e gemo. Não. Agora não.
— Só me come.
E eu consegui falar três palavras em sequência. Mereço um prêmio,
porque olha...
Ei’ri mexe os dedos de novo antes de tirar a mão do meio das minhas
pernas. Ele põe uma mão nas minhas costas e se senta de uma vez, me
segurando enquanto sinto sua ereção de novo. Puxo o ar com força e fecho os
olhos. Caralho. Caralho. Esse homem é um perigo.
Eu devia ter insistido para vir para o espaço antes.
Ele puxa o cós da minha calça e me levanto. Isso vai ser mais rápido
assim. Chuto minhas meias para o lado enquanto ele sorri e tira sua blusa.
Paro. Músculos na medida. Mesmo. Bem na medida. Será que ele não pode
ficar andando sem camisa dentro da nave? Seria uma ótima paisagem.
Ele ri.
— Vai ficar de calça?
Não vou nem responder.
Ei’ri ainda está sorrindo, mas vejo como está me olhando. Acho que ele
só tem um pingo de autocontrole a mais que eu. O suficiente para não parar e
ficar encarando. Porque encarando ele definitivamente está.
Tiro a calça e a calcinha de uma vez, enquanto ele ainda está abrindo sua
calça. Ei’ri para o que está fazendo e me puxa para perto.
— Ei!
— Só estou fazendo o que você pediu — ele murmura.
Não foi impressão minha. Ei’ri está rouco. Passo a língua pelos lábios e
vejo que ele acompanha o movimento. Gostei disso.
— Nem tente me distrair.
Distrair? Mas eu não fiz nada.
Sorrio. Ele morde meu lábio antes de me virar de frente para a cama e
me empurrar para baixo. De quatro? Isso está ficando mais interessante.
Apoio os braços na cama e chego para a frente, até ter certeza de que tem um
bom espaço atrás de mim. Escuto quando ele joga o resto da sua roupa no
chão e empino a bunda. Vantagens de estar transando com um alien:
nenhuma das espécies do Acordo é próxima o suficiente dos terráqueos para
alguma doença ser transmitida para qualquer um dos lados e todos os homens
trabalhando para a força-tarefa recebem supressores de fertilidade.
E eu acho que Re’ni me deixou paranoica com tudo, se estou pensando
nisso agora. Não que seja algo ruim. Eu só não era assim antes.
Ei’ri passa dois dedos pelo meio das minhas pernas, da minha entrada
até o clitóris e descendo de novo. Fecho as pernas com força, segurando sua
mão no lugar. Ele ri e sobe na cama. Ótimo. Espero que tenha entendido o
recado. Abro as pernas de novo.
Ele para atrás de mim e passa uma mão ao redor da minha cintura. Sinto
quando ele passa seu pau na minha entrada e sobe até o clitóris de novo. Me
viro para ele e estreito os olhos. Ei’ri sorri e assente. Ótimo. Sem mais
brincadeiras.
Ele não é muito grande, parece, mas é grosso o suficiente para eu sentir
cada centímetro quando entra dentro de mim. Nem tento segurar meu
gemido. Puta merda, isso é bom. Isso é muito bom. Ele entra em mim
devagar e só não chego para trás de uma vez porque ele está me segurando no
lugar, o filho da mãe.
Ei’ri para se inclina para frente, com uma mão ao redor da minha cintura
e outra apoiada no colchão ao lado da minha cabeça, até que ele está
praticamente deitado em cima de mim. Sinto sua respiração na minha orelha.
— Tudo bem aí? — Ele murmura.
Enfio as unhas no seu braço. É a única coisa que posso responder.
Ele ri e morde minha orelha antes de sair de dentro de mim na mesma
velocidade. Ou seja, devagar quase parando. Dessa vez chego para trás de
uma vez. Não quero devagar. Só quero sentir ele entrando e saindo de dentro
de mim. E se for possível, essa mão que está na minha cintura pode ir para
outro lugar.
Ei’ri não fala nada. Só me segura com força no lugar enquanto acerta o
ritmo, entrando e saindo, entrando e saindo... Fecho os olhos, sentindo o
movimento dos seus músculos onde ele está encostado em mim, o som
molhado dos nossos corpos se chocando, esse vai e vem e a forma como ele é
quase grosso demais para mim. Puta merda. Eu precisava disso. E ele não
precisa nem mudar a mão de lugar. Pode continuar me segurando, porque só
isso... Caralho. Que caralho.
Ele morde minha orelha de novo.
— Consegue sentir?
Consigo sentir que estou quase lá e que estou amando essa voz rouca. E
se ele parar agora, eu vou...
Ei’ri grunhe alguma coisa.
— Carol! Consegue sentir?
Ah, merda. Respiro fundo. Eu estou quase gozando... Ou não. Não, isso
não sou eu. Isso é ele fazendo alguma coisa com meu corpo.
Travo os dentes com força. Ele não vai puxar nada de mim. Nem para
me mostrar. Não mesmo.
Ele grunhe de novo.
— Isso. Agora... Puxe de volta.
Puxar de volta? Respiro fundo e abafo um gemido quando ele entra em
mim de uma vez. Como ele quer que eu...
Sinto Ei’ri puxando o que quer que isso seja de novo. É bom, é muito, é
quase como se eu fosse gozar, mas...
Puxo de volta. Ei’ri geme e quase cai em cima de mim. E caralho, isso
foi bom. Tento repetir o que fiz e dessa vez sinto uma resistência, ao mesmo
tempo em que aquela sensação que não é bem quase um orgasmo fica mais
forte.
Ei’ri aperta minha cintura com força e acelera. Puta merda. Cada
movimento dele é um gemido e eu acho que qualquer controle que ele ainda
tinha acabou. Não que eu esteja reclamando, porque se já estava quase lá,
agora então...
Abafo um grito no colchão quando gozo de uma vez. E Ei’ri ainda não
parou, ele continua indo depressa, enquanto todos os meus músculos estão
tremendo e eu consigo sentir ainda mais dele. Puta merda. Puta merda. Eu
devia ter vindo para o espaço antes. Bem antes.
Ei’ri se aperta contra mim, ofegante. De novo. E de novo. Respiro fundo
quando ele para. Se ele tivesse continuado, das duas uma: ou eu ia gozar de
novo ou eu ia morrer. Ia ser uma boa morte.
Ele continua do mesmo jeito por alguns segundos, só respirando fundo
perto demais da minha orelha. Se ele continuar fazendo isso, não vai ter
tempo para se recuperar. Não mesmo.
Gemo de novo quando Ei’ri se afasta. Sinto o colchão afundar quando
ele se deita na cama, do meu lado, mas a única coisa que consigo fazer é
esticar as pernas e continuar estirada do jeito que estou mesmo. Puta merda.
Meu coração está disparado e eu acho que estou mais morta que viva, da
melhor forma possível.
Não sei quanto tempo passa antes de eu conseguir pensar em alguma
coisa além do que acabou de acontecer – e puta merda, o que foi isso. E eu
ainda quero saber o que mais Ei’ri consegue fazer com a boca.
Foco. Respiro fundo e olho para Ei’ri. Foco, certo. Ele me mostrou o que
eu queria. Mas tem uma coisa que eu não entendi.
— Por que a sensação dessa coisa é tão parecida com um orgasmo?
Ei’ri dá de ombros, sem nem abrir os olhos.
— Porque fazer uma presa se sentir bem é garantia de que ela vai
continuar a voltar.
Fazer uma presa se sentir bem. Respiro fundo. Não vou falar o que estou
pensando. Não vou. Ele só respondeu minha pergunta. E isso só serve para
me deixar mais puta com Re’ni. Fazer uma presa se sentir bem... É, era bom.
Era muito bom. E o tempo todo, era isso. Filho da puta.
Na verdade, isso faz sentido. Tanto sentido que nem acredito que
precisei perguntar. É que nem aquela história de vampiros fazerem as vítimas
gozarem com a mordida. Nada de novo. Respiro fundo de novo. Eu odeio
drillianos.
— Mas tem uma boa notícia — Ei’ri fala.
Me viro de lado na cama. É melhor ser uma ótima notícia mesmo,
especialmente porque eu fiz o esforço de me mexer.
— Você conseguiu puxar de volta quando eu estava sugando sua
energia.
Assinto. Isso é o óbvio, não é nenhuma boa notícia.
— Eu sei, ninguém mais vai conseguir fazer a mesma coisa comigo.
Ele balança a cabeça e abre os olhos, se virando para mim.
— Isso quer dizer que Re’ni te deu mais de nós do que devia. Mesmo se
ele tentar te controlar, não vai conseguir.
Abro a boca, mas não sei o que falar. Isso quer dizer que...
— Você está segura. Não precisa se preocupar com essa possibilidade —
Ei’ri continua.
Solto o ar de uma vez. Isso... Puta merda. Se ele estiver falando a
verdade, essa é a melhor notícia que alguém me dá em anos. Sem exagero.
Caralho. Se eu não precisar me preocupar que em algum momento Re’ni vai
aparecer e tentar me usar como um fantoche...
Não. Calma. Não posso empolgar assim. Ei’ri também é um drilliano e
primo de Re’ni. Ele pode estar falando isso só para eu baixar a guarda. Odeio
estar paranoica desse jeito, mas é a realidade. E o jeito mais fácil de conferir
isso é avisando Gabi do que ele me falou e pedindo para ela ver se procede.
Certo. Faço isso depois.
— Isso merece uma comemoração — falo.
Ei’ri sorri.
TREZE
Dou um pulo quando escuto o apito da porta. Merda. Será que tem como
desativar isso?
Ei’ri tira o braço de cima de mim enquanto me viro para o painel ao lado
da cama. Onde é que ativa só som? Eu sei que Gabi me explicou isso...
Achei.
— O que é?
— A simulação terminou. O capitão quer falar com vocês — Talita fala.
Certo. Respiro fundo. Caralho, não tinha hora melhor?
Ei’ri se levanta e começa a se vestir, sem falar nada.
Merda. O que foi que eu fiz? Não vou nem mentir e dizer que foi ruim,
mas... Sei lá. Acho que estava mais nervosa do que pensei. Não vou dizer que
estou arrependida – foi bom e ele me ensinou o que eu pedi. Agora só falta
conferir se o que ele falou sobre Re’ni não conseguir me controlar é verdade.
Mesmo assim, eu devia pelo menos ter mandado Ei’ri de volta para o quarto
dele, ao invés de ficar deitada abraçada com ele.
E ao invés de ficar olhando enquanto ele se veste.
— Já vamos — respondo.
Me levanto também e pego minhas roupas. As botas especiais para andar
dentro da nave ainda estão dentro de um dos armários escondidos, então as
puxo assim que termino de me vestir. Tenho certeza que alguém vai reclamar
se eu sair daqui de tênis. E não quero nem saber se vão reclamar por eu estar
demorando. Pego meu celular e mando uma mensagem para Gabi. Ainda não
estamos nos infiltrando em lugar nenhum, então não preciso me preocupar
com rastrearem o sinal ou coisa assim.
Quando abro a porta do quarto, Talita está encostada na parede do outro
lado, olhando para o corredor. Ela levanta as sobrancelhas quando vê Ei’ri
saindo atrás de mim, mas não fala nada. Ótimo. Lucas sai do quarto pouco
depois e passa por nós sem nem olhar para os lados. Ui, alguém está irritado.
Deixo ele e Ei’ri irem andando na frente. Eles sabem o caminho para o
elevador, tenho certeza. Talita me acompanha, ainda sem falar nada. Ela
inclina a cabeça para o lado, olhando para os dois, antes de se virar para mim.
— Vendo as coisas por esse ângulo, definitivamente não te julgo.
Respiro fundo e não respondo. Não é que eu tenha algum problema com
alguém saber da minha vida sexual – qual é, com uma prima como Gabi eu
estaria fodida se ficasse com vergonha ou coisa assim. Mas, por mais que
tenha sido bom e que tenha servido para me distrair do problema maior, ainda
não tenho tanta certeza sobre o que fiz. Ei’ri continua sendo um drilliano e eu
já aprendi o que drillianos fazem com as pessoas. Argh. Odeio isso. E odeio
Re’ni por me deixar com essas paranoias.
Subimos mais alguns andares, e dessa vez nem estou tonta quando saio
do elevador. Acho que vou acostumar com isso mais depressa do que pensei.
Talita passa na frente dos dois drillianos e sai andando pelo labirinto de
corredores. Certo. Quando Gabi me explicou sobre as cores, achei que fosse
ser fácil me localizar aqui dentro. Mas, mesmo com elas, vou precisar de um
tempo para entender isso aqui direito. Meu consolo é que nem Ei’ri nem
Re’ni parecem saber para que lado ir, também.
Depois de não sei quanto tempo andando, Talita abre uma porta e coloca
a cabeça para dentro.
— Drek? Seus passageiros.
Alguém rosna alguma coisa que meu tradutor não entende, mas que
tenho certeza que foi um palavrão. Já descobri que isso é praticamente uma
linguagem universal.
— Quero uma análise detalhada dessa simulação pronta em menos de
uma hora. E não vou aceitar ignorarem os conflitos internos de novo.
O homem que falou tem um sotaque meio sibilante. Krijkare, com
certeza. Talita se afasta da porta e cruza os braços. Um homem sai de dentro
da sala e nos encara dos pés à cabeça. Encaro de volta. Ele é verde musgo,
com escamas opacas nas laterais do pescoço e em alguns pontos do braço,
cabelo azul comprido e grosso que de longe até parece dreads. Pelo que li, as
escamas krijkare são tão resistentes quanto as drillianas, mas eles não
conseguem controlar quando as escamas aparecem ou em quais partes do
corpo. Elas simplesmente nascem no lugar. No caso desse krijkare, as
escamas estão cobrindo pontos vulneráveis. Se isso for uma adaptação por
causa do trabalho dele vai ser foda demais. E ele está vestido de preto, com
uma calça justa, botas, um colete e proteções nos braços. Totalmente pirata,
nada mercenário. Não que eu esteja reclamando.
— Venham — ele chama e se vira na direção oposta da que viemos. —
Você também, Talita.
Ela respira fundo e solta o ar de forma bem audível antes de começar a
andar, acompanhando o capitão. Ela falou o nome dele mais cedo, eu acho,
mas já me esqueci. Ei’ri olha para mim e dou de ombros. Vê lá se vou saber
alguma coisa do que está acontecendo aqui.
O capitão atravessa mais uns tantos corredores depressa. Fazer
caminhada para quê, se vou ter que andar de um lado para o outro dentro
dessa nave enorme. Ele abre uma porta e gesticula para entrarmos. Aproveito
para dar uma boa olhada nas mãos dele. É, minha memória não estava
falhando. Ele tem garras. Só queria saber como os krijkare fazem para mexer
nos controles das naves com essas garras. E, se eu lembrei a coisa das garras
certo, não devo estar confundindo a coisa dos dentes. Esperar ele sorrir ou
algo do tipo para ver se tem dos dentes afiados mesmo.
A sala onde entramos é pequena e só tem quatro sofás ao redor de uma
mesa. Me sento e me inclino para a frente, olhando o tampo da mesa. É um
projetor. Legal. Só vi uma dessas uma vez antes. Olho para o lado quando
Ei’ri se senta no mesmo sofá que eu. Ele dá de ombros. Re’ni se senta no sofá
da esquerda, Talita no dá direita e o capitão na nossa frente, depois de fechar
a porta.
— Gabi já me informou do que aconteceu na reunião do Conselho — ele
começa e Ei’ri se endireita. O capitão olha para ele. — Foi uma boa
precaução não ter me falado tudo quando entrou em contato. Mas meu bando
é parte da força-tarefa praticamente desde o começo.
— Não podia arriscar — Ei’ri fala.
Assinto. Eu estava lá quando ele mandou a mensagem, falando que
queria transporte para um dos planetas drillianos e um espaço para podermos
fazer análises técnicas.
— Fez bem — o capitão repete. — Meu nome é Drek. Já conheceram
Talita. Ela vai trabalhar com vocês e ser seu contato quando estiverem em
terra.
— Ei! — Talita cruza os braços. — Por que eu?
Drek olha para ela e não fala nada.
— Primeiro, Carol não tem medo de vocês. Pode colocar qualquer um da
tripulação para trabalhar com eles — ela começa.
— Você confiaria uma missão dessas a alguém que não seja uma
terráquea? Levando em conta o que está em jogo? — Drek interrompe.
Talita respira fundo.
— Tá. Mas eu não sou a única terráquea na nave. Sara é melhor que eu
com praticamente todos os equipamentos.
— Sabe o que vai acontecer se eu tentar tirar Sara da engenharia? — Ele
resmunga.
Talita revira os olhos e bufa.
— Pois é. Quando se vive dentro de uma nave, a primeira regra é manter
o pessoal da engenharia feliz.
— Não vai achando que vai conseguir se livrar de mim assim — Talita
avisa.
Drek revira os olhos.
— Nem tenho mais essa esperança. Mas acho que você vai conseguir dar
um suporte melhor para eles que qualquer um da tripulação. Seria a mesma
coisa que eu diria para Suelen, se ela ainda estivesse conosco.
Eu não sei qual é a história de Suelen com o bando de Drek, mas isso é o
suficiente para Talita assentir, parecendo até mais animada. Interessante. E,
aliás, eu queria é saber qual é essa história dela com Drek, porque parece que
tem alguma coisa aí.
— Isso quer dizer que tenho carta branca? — Talita pergunta.
Drek assente.
— Pegue uma das salas de controle reserva e bloqueie para uso de vocês.
Os recursos da nave estão liberados. Se precisar de mais pessoal ou precisar
contar o plano real para alguém, passe por mim primeiro, por garantia.
— Certo.
E não vou negar que estou bem satisfeita por Drek não estar pensando
em contar o que vamos fazer para toda a sua tripulação. Eles até podem ser
confiáveis, mas se vamos entrar em lugares que o Conselho do Acordo não
teve permissão para entrar, é questão de bom senso garantir que meio mundo
não fique sabendo disso.
Drek se vira para mim.
— Se precisarem de mais alguma coisa, é só me avisar.
Assinto e ele sai da sala sem falar nada.
Talita se levanta, quase saltitando. Levanto as sobrancelhas quando ela
sorri e esfrega as mãos. Okaaay, já vi que você está se divertindo, valeu. Me
desculpe se estou preocupada demais para aproveitar com você.
— Certo. Já sei até qual sala pegar, então. Vamos.
Me levanto devagar. Ei’ri está segurando para não rir da empolgação de
Talita e Re’ni está com a maior cara de bosta do mundo. Nada de novo nisso.
— Você pode aproveitar e ir explicando as linhas e tudo mais no
caminho, sabe? — Falo.
Ela assente, já no corredor.
QUATORZE
Empurro um galho para fora do meu caminho, vendo os espinhos
minúsculos crescerem com o movimento. Bizarro. E agora eu entendo porque
os drillianos têm escamas. Se isso é o padrão da vegetação aqui, era isso ou
ter couro de jacaré. Prefiro as escamas. Respiro fundo. Até o ar aqui é úmido
e pesado. E, mesmo sendo dia, estamos na penumbra. Árvores demais, para
todos os lados, e algumas que parecem literalmente estar crescendo em cima
das outras.
De umas quatro ou cinco localizações possíveis, tínhamos que vir parar
justamente na selva. É claro. Com a minha sorte, tenho que agradecer não por
ser um pântano. E eu nunca teria imaginado que o planeta de origem dos
drillianos é uma selva. Sim. A porra do planeta inteiro é assim. Na verdade,
parece que estamos numa das áreas mais de boa. Quer dizer, levando em
conta o que sobrou das selvas originais ao redor das cidades e propriedades
deles e o que eu vi no mapa, quando estávamos na nave, é o que parece.
Algumas regiões seriam impossíveis de atravessar sem equipamento pesado.
Hmm. Se bem que isso pode ser outra utilidade das escamas.
Minha perna afunda até o joelho na lama. Puta que pariu. Sorte do
caralho, viu.
Tento sair, mas a lama está me segurando no lugar. Que delícia.
— Ei’ri! — Chamo.
Ele para e olha para trás. Re’ni faz a mesma coisa, o filho da puta. Ele
deveria estar atrás de mim, mas ficou irritado porque eu estava indo muito
devagar e passou na frente. Não tenho culpa se não estou acostumada a andar
no meio da selva. Nunca tive nada contra ir para o meio do mato e tudo mais,
mas isso aqui é outra coisa completamente diferente.
— Não se mexa — Ei’ri fala e vem na minha direção.
Bufo. Como se tivesse como eu me mexer sem cair. Já estou achando
que consegui uma puta façanha por não ter enfiado a outra perna na lama
nem caído de uma vez.
Ei’ri olha para o chão antes de dar uma volta de bom tamanho até parar
atrás de mim. Continuo parada enquanto ele me segura pela cintura e me
puxa para trás. Minha perna se solta com um barulho de peido. Ew. Só não
caio no chão porque Ei’ri ainda está me segurando. Aliás, ele é mais forte do
que parece. Gostei disso.
Me endireito e olho para o buraco na minha frente. Que merda. Os dois
passaram por aqui sem o menor problema, por que justo comigo? Argh.
Ei’ri ri em voz baixa e aponta para o chão.
— Está vendo como essa grama está crescendo de forma uniforme nessa
área? — Ele pergunta e eu assinto. — Isso quer dizer que o chão não é firme.
Sempre que ver essa grama, dê a volta.
Reviro os olhos. E eu jurando que onde tinha grama seria o ponto mais
firme, porque raízes e tudo mais. Desisto de tentar entender isso aqui. Me
apoio no ombro de Ei’ri enquanto sacudo a perna para me livrar do pior da
lama. E essa coisa fede, para piorar.
— Não precisa se preocupar, a lama vai secar depressa e cair sozinha.
Certo. Que seja. Respiro fundo e solto o ar devagar. Ei’ri sorri e balança
a cabeça.
— Vamos. Vou com você.
Deixo ele ficar do lado que tem a grama estranha e o acompanho. Estou
parecendo uma retardada, olhando para o chão e para cima depressa. Preciso
vigiar a tal grama e preciso vigiar os galhos no caminho. Posso estar com o
corpo todo coberto pelas escamas, mas levando em conta o tamanho que os
espinhos ficam, não quero arriscar. Prefiro mil vezes tomar outro tiro de
pistola híbrida.
Ei’ri segura meu braço e me puxa para o lado. Olho para o chão. Não
tem nada de diferente aqui, mas não vou discutir.
Pelo que ele me contou quando ainda estávamos na nave, a maior parte
do planeta não tem mais as selvas. Elas foram desmatadas quando estavam no
auge do avanço tecnológico. As áreas que foram preservadas, como onde
estamos agora, acabaram indo parar no controle dos clãs mais tradicionais –
ou mais ricos, o que dá praticamente no mesmo. Eles tinham a obrigação de
preservar essas áreas e qualquer construção nelas precisava respeitar uma
lista gigantesca de regras de preservação ambiental. Por que será que não me
surpreende nem um pouco que Arcen seja de uma família mega tradicional e
podre de rica? Se bem que ele era o último descendente direto deles. Só
sobraram parentes distantes que não podem nem reivindicar as propriedades
que não foram para Gabi.
Foi essa a justificativa que o governo drilliano deu para bloquear o
acesso das tropas do Corpo Militar quando Arcen foi preso: área de
preservação. E, infelizmente, Kernos não conseguiu achar uma forma de
contornar isso. Nem podia arriscar mandar uma equipe sem autorização, igual
estamos fazendo agora. Só espero que isso tudo não seja uma armadilha.
E aí, do nada, a selva termina e tem uma estrutura enorme e retangular
de concreto e metal na nossa frente. Certo. Muito coerente. Bastante. Eu
definitivamente não estava esperando isso. O tal complexo parece um galpão
industrial. Enorme, sim, mas nada demais. Nem aqueles detalhes da
arquitetura em Nehyna que estavam gritando “alien” para mim.
Re’ni está parado logo antes das últimas árvores, com um sensor
apontado para a estrutura. Ei’ri para ao lado dele, também olhando para o
sensor. Confiro onde estou pisando e paro pouco atrás deles. Não sei ler os
dados desse sensor – é tecnologia drilliana. Se fosse só Re’ni, não sei se
confiaria no que ele dissesse, mas Ei’ri está conferindo as informações
também, então acho que posso relaxar um pouco. Quer dizer, não tem como
Re’ni modificar os dados captados na mesma hora. Eu espero.
— Está deserto — Ei’ri fala.
Estreito os olhos e encaro o retângulo de concreto.
— Não faz sentido. Por que deixariam um lugar desse tamanho sem
nenhum tipo de vigilância?
— Porque nenhum drilliano vai aceitar trabalhar em uma propriedade de
Arcen. O nome dele está manchado — Ei’ri responde.
Idiota. Devia ter me lembrado disso. Ninguém ia querer “se contaminar”
por trabalhar na propriedade de alguém que foi condenado tanto pelo
Conselho quanto pelo governo local. E os drillianos nunca contratariam
alguém de fora para fazer a segurança de qualquer coisa deles.
Certo. Então o complexo estar deserto não é exatamente uma surpresa.
— Os geradores locais ainda funcionam — Re’ni avisa.
— Ótimo — murmuro.
Menos uma gambiarra para fazer, porque se nada estivesse funcionando
íamos precisar dar um jeito na questão da energia.
Re’ni dá um passo para a frente. Ei’ri segura seu ombro. Fico parada no
lugar, sem saber o que está acontecendo. Mesmo de costas, a postura de Ei’ri
mudou completamente. Re’ni se vira para ele.
— Se você colocar essa missão em risco de qualquer forma, se fizer
qualquer coisa que nos atrapalhe, te garanto que não vai voltar para Oorreir.
Pelo menos, não inteiro.
Re’ni segura a mão de Ei’ri e a tira do seu ombro.
— Não faça ameaças que não está preparado para cumprir.
Levanto as sobrancelhas. Okay. Eu estou fora do caminho, não estou?
— Ah, eu estou preparado. Não seria considerado nem mesmo um
ataque. Seria considerado justiça, levando em conta o que você fez.
Re’ni olha para mim e tenho a impressão de que as escamas no rosto
dele ficaram mais claras. Ele esperava o quê? Que eu não fosse contar para
ninguém que foi por causa dele que consegui as minhas escamas? Ah, faz
favor! Ele tem é sorte por eu estar preocupada demais em fazer essas
alterações passarem, senão teria jogado isso no meio daquela reunião com o
Conselho para me livrar dele de vez.
Ele respira fundo, olha para Ei’ri de novo e estende o sensor para ele.
— Sou só um observador.
Ótimo. Que bom que ele sabe. Espero que isso realmente queira dizer
que ele não vai causar problemas, porque a ameaça de Ei’ri me pareceu bem
séria. Queria ter visto a cara dele, o que ele fez para Re’ni responder desse
jeito, sem nem tentar discutir.
Ei’ri pega o sensor e confere os dados de novo antes de olhar para mim e
assentir.
— Vamos logo.
Passo por Re’ni e saio do meio das árvores atrás de Ei’ri. Dessa vez meu
ex realmente fica por último, sem reclamar que estou andando devagar nem
nada do tipo. Acho que depois disso, ele não reclamaria mesmo se ainda
estivéssemos no meio da selva.
Não sei se é uma boa ideia fazer uma infiltração em terreno hostil –
porque no fim das contas, é isso que estamos fazendo – com uma equipe
nesse clima. Não. Tenho certeza de que é uma péssima ideia. Mas não
consigo achar o que Ei’ri fez ruim. Estou é bem satisfeita por ver ele tomando
essa posição, mesmo que não tenha necessariamente nada a ver comigo. É só
um insulto à superioridade drilliana que um deles faça o que Re’ni fez.
Mesmo assim, gostei. E gostei muito.
E se alguma coisa acontecer e ele precisar cumprir a ameaça, espero que
Ei’ri me deixe ajudar.
QUINZE
Aponto minha lanterna para o teto do corredor. Ou melhor, bem para
onde o teto se encontra com a parede. Eu odeio aranhas. Odeio, odeio, odeio,
odeio. Quer dizer, não gosto muito de insetos de forma geral, na verdade.
Mas os outros não são um problema. Nem me incomodei com eles quando
estávamos atravessando a selva. Tá, eu estou com o corpo inteiro coberto de
escamas, não preciso me preocupar com insetos. Mas aranhas... Um arrepio
me atravessa quando a luz da minha lanterna bate em outra teia de aranha.
Aranhas são um caso à parte. E esse lugar realmente está abandonado. Com o
tanto de poeira que vi no chão quando entramos, não duvido nada que
ninguém tenha vindo aqui desde que Arcen foi preso.
E eu devia estar olhando para o chão, não para o teto. Se tem aranhas
aliens aqui, as teias pelo menos são pequenas. E lá no alto. Não tem nada
descendo e...
Balanço a cabeça com força e aponto a lanterna para o chão. Foco. Isso.
Olhar para o chão. Ver se não tem nada estranho, tipo pegadas que não
deveriam estar aqui... Mas as únicas marcas na poeira são as pegadas de Ei’ri,
que está na minha frente.
Eu vou ser a pessoa mais feliz do mundo se não tivermos problemas
aqui. De verdade. E isso é até uma possibilidade. Isso é uma área de
preservação ambiental do governo que está abandonada. Drillianos são
“honrados” demais para invadir e depredar uma propriedade pública, e é pior
ainda dentro das áreas de preservação. Se não me engano, tem algum tipo de
punição religiosa envolvida também. Ou seja: não tem o menor motivo para
alguém estar monitorando esse complexo. Nem para imaginarem o que
estamos fazendo, já que tanto o consultor quanto o observador do projeto são
drillianos. Aliás, acho que isso explica parte da irritação de Re’ni. E é
interessante como Ei’ri nem parou para pensar quando Talita nos passou os
dados. Para alguém tão preocupado em ser um drilliano certinho, isso não faz
nenhum sentido.
Ei’ri para na frente de mais uma porta. Paro ao seu lado e aponto a
lanterna para o painel que a abre. Já desisti de entender como ele está fazendo
isso, mas ele definitivamente aprendeu algumas coisas interessantes enquanto
trabalhava para Kradisla. No mínimo, arrumou uns fornecedores não
exatamente legais, porque tenho certeza de que o aparelho que ele está
usando para abrir todas as portas, desde a entrada, não é o tipo de coisa que
se consegue comprar em qualquer esquina.
A porta se abre e ele aponta sua lanterna para dentro.
— Finalmente.
Entro atrás de Ei’ri. Sem marcas na poeira, além dos nossos passos.
Ótimo. E fodas se estou sendo paranoica. Paro e viro a lanterna para as
paredes. Terminais e mais terminais. Não acho que isso seja uma sala de
controle ou coisa assim, os terminais e monitores são simples demais. Sem
mencionar que está muito perto da entrada. Não acho que teriam uma sala de
controle no térreo, assim. Mas tem terminais aqui, o que quer dizer que temos
acesso ao sistema local.
Re’ni passa por mim e vai direto para um dos terminais. Olho ao redor
de novo, passando a luz da lanterna pelas paredes e então pelo teto. As luzes
parecem estarem inteiras. Estamos longe o suficiente de qualquer porta ou
janela para não ter perigo de ninguém ver se acendermos as luzes, então...
As luzes se acendem e Ei’ri sorri, perto de um painel. Sorrio de volta.
Adoro quando alguém pensa a mesma coisa que eu. Olho ao redor de novo e
paro. Puta merda. Os terminais estão cobertos de teias de aranha. Não vou
chegar perto deles. Não mesmo. Me desculpem, mas isso é pedir demais.
Onde tem tanta teia, tem aranhas, com certeza. E eu não quero chegar perto
de aranhas aliens que amam eletrônicos. Não.
— Carol?
Me viro para Re’ni no piloto automático. Ele indica o terminal atrás dele
com a cabeça.
— Usa esse aqui. Está limpo.
Respiro fundo e encaro o terminal. É. Re’ni tirou as teias de aranha dele,
porque juro que não tinha nenhum terminal limpo assim quando olhei pela
primeira vez.
— Obrigada.
Ele não responde. Respiro fundo de novo enquanto paro na frente do
terminal e o ligo. Isso é tão normal – Lucas conferindo se não tem nenhuma
aranha em algum lugar. Balanço a cabeça. Tenho que parar de pensar nele
com esse nome. E não quero nem pensar em por que ele decidiu fazer alguma
coisa para ajudar, dessa vez.
Sei o suficiente sobre os sistemas do Acordo para me virar sem precisar
de nenhum dos dois perto de mim, mas não sei o suficiente sobre
computadores em geral para invadir isso aqui, e é óbvio que a primeira tela
está pedindo uma senha. Enfio a mão no bolso e puxo um dos aparelhos que
Gabi me entregou. Esse é o que ela chamou de “projeto conjunto com Suelen
em andamento”. Pelo que entendi, ela quer fazer uma versão digital de uma
ferramenta do mercado negro que abre qualquer tipo de fechadura. E eu virei
a cobaia. Ou melhor, a doida que vai testar isso.
Acho uma entrada que encaixa e enfio o treco. O terminal apita e uma
luz vermelha acende. Por favor, não seja um alarme, não seja...
Acesso negado.
Merda. Ia ser fácil demais se isso funcionasse. Argh.
— Merda — Ei’ri resmunga. — Travado.
Olho para ele, que está em um terminal mais perto da porta, ao mesmo
tempo em que Ei’ri olha para trás.
— Consegui abrir o sistema, ele está conectado ao servidor local, mas
não consigo acessar nada — ele conta.
Olho para o aviso piscando na tela do meu terminal. O que é que Gabi
tinha falado sobre os aliens e computadores mesmo? Programas de
computador são feitos com base em lógica e matemática. E a lógica dos
aliens, de forma geral, é bem diferente da dos terráqueos, por isso quando ela
acessou a rede do Acordo pela primeira vez passou por todas as defesas deles
como se não existissem.
Quer saber? Fodas. Já estamos fodidos mesmo.
Tiro o aparelhinho do meu terminal.
— Tenta com isso.
Ei’ri pega o cubo de alguma coisa plástica da minha mão e o encara
como se fosse uma bomba. Reviro os olhos.
— Gabi queria algo que conseguisse contornar qualquer sistema de
segurança digital. Só isso. Mas não funcionou para acessar o terminal que eu
estava usando.
Ele olha para mim e levanta as sobrancelhas.
— Se não conseguiu passar pelo primeiro nível de acesso...
Dou de ombros.
— É Gabi. Certeza que você conhece a história de como ela invadiu a
rede do Acordo.
— Eu não diria isso no passado — Re’ni resmunga.
Nem eu. Ela continua invadindo a rede sempre que precisa, mesmo
depois que os aliens começaram a mudar os sistemas de segurança, mas não
preciso confirmar nada para eles.
— Eu nem vou estranhar se essa coisa funcionar para os sistemas de
segurança mais complicados, mas travar nos mais simples. A cabeça de vocês
é estranha — continuo.
Ei’ri vira o aparelho e o enfia em uma entrada no terminal.
— A nossa cabeça é estranha. Certo.
E isso é mais seguro eu nem responder.
— Re’ni, conseguiu alguma coisa? — Ei’ri pergunta.
Ele resmunga alguma coisa que não entendo. Olho para trás. É, pelo
visto ele também não conseguiu nem passar da tela inicial. Aliás, como foi
que Ei’ri fez isso? Preciso perguntar depois.
Ei’ri segura meu braço com força. Olho para o terminal de novo.
Caralho. Estamos dentro.
— O que eu tenho que procurar?
Ai caralho. Ainda tem isso. Droga, queria que Gabi estivesse aqui.
— Busque qualquer coisa sobre terráqueas.
Ele resmunga um palavrão e começa a digitar no terminal. Encaro a
porta, então Re’ni ainda brigando o seu terminal, antes de voltar a olhar para
o que Ei’ri está fazendo. O texto está passando tão depressa na tela que não
consigo ler e tenho a leve impressão de que se forçar vou ter uma puta dor de
cabeça. Devia ter me acostumado antes com os alfabetos alienígenas. Posso
ter um implante, mas ele não faz milagres se eu não pratico o suficiente para
me adaptar.
— Nada — Ei’ri fala.
Olho para o monitor.
— Como assim, nada?
Não tem como. Só não tem como. Se esse complexo era de Arcen, se
tem um servidor local separado da rede do Acordo... Não é possível que não
tenha nada.
— Nada — ele repete.
Certo. Pensa, Carol, pensa. Temos que tirar alguma coisa daqui.
Qualquer coisa. Sei lá, nem que seja o boteco que Arcen gostava de ir,
porque aí pelo menos vamos ter uma noção de onde tentar achar alguém...
— Tem algum tipo de registro de viagens, compromissos, essas coisas?
— Pergunto.
Ei’ri assente.
— Menções repetidas? — Ele pergunta.
— Isso.
E eu amo que ele acompanha meu raciocínio. Não que isso seja grandes
coisas. Mas puta merda, a gente precisa achar alguma informação. Senão,
está tudo acabado aqui mesmo.
Re’ni para atrás de nós.
— Precisamos sair daqui.
— O quê...? — Começo.
— Agora! Sem discutir, só vamos embora!
Ele puxa tanto Ei’ri quanto eu pelo braço e nos empurra para fora da
sala.
Ei’ri se vira para ele.
— Você está louco? Precisamos pelo menos copiar os dados!
Re’ni empurra nós dois de novo, sem nem se preocupar em ligar a
lanterna.
— Não dá tempo!
Puta que pariu.
O que é que eu estava pensando antes, sobre terem pedido Re’ni para me
matar para não deixar o projeto passar?
Olho para Ei’ri. Ele liga sua lanterna e começa a correr pelo corredor.
DEZESSEIS
Paro na porta do meu quarto e encaro o monitor na parede. Fogo. A área
de preservação de onde acabamos de sair está pegando fogo. Merda. Me viro
para voltar para o elevador, mas Ei’ri me empurra para dentro do quarto e
fecha a porta, também encarando a tela.
— Isso não foi um acidente.
Me afasto dele e paro na frente do monitor.
— É claro que não — respondo.
Da mesma forma que não foi um acidente Re’ni ter praticamente nos
arrastado para fora assim que começamos a conseguir alguma coisa e bem a
tempo de escaparmos do que quer que tenha acontecido. Nós atravessamos a
selva praticamente correndo, sem nada do cuidado que tivemos na ida. E,
mesmo assim, é bem provável que o fogo tenha começado quando ainda
estávamos em terra. Puta que pariu.
— Até onde vai sua paranoia? — Ei’ri pergunta.
Boa pergunta. Uma ótima pergunta, na verdade, considerando que ele
paga de drilliano modelo, com toda essa história de limpar o nome da espécie
depois da confusão com Arcen e de me provar que nem todos drillianos são
como Re’ni, mas estava abrindo todas as portas do complexo e conseguiu
passar pelo sistema de segurança básico do complexo. São dois lados que
simplesmente não encaixam. Se ele realmente acredita nessa coisa toda que
falou para Gabi e para mim, nunca que saberia como arrombar uma porta.
Olho para ele.
— Vai longe o suficiente para te perguntar como um drilliano tão
preocupado em provar que “nem todos são assim” conseguiu abrir aquelas
portas e sabia o suficiente para passar pelas telas de acesso nos terminais.
Ei’ri dá um passo atrás e faz uma careta.
— Não era disso que eu estava falando.
Jura? Nem notei.
Cruzo os braços.
— Mas eu estou esperando uma resposta.
Ele suspira e passa uma mão pelo cabelo.
— Kradisla. Foi a condição dela para me aceitar na sua tripulação: que
eu ia ser tratado como qualquer outra pessoa sob suas ordens e aprender tudo
que os meus superiores considerassem necessário, sem direito a usar
restrições morais ou religiosas para tentar escapar — Ele cruza os braços e
encara o monitor. — Ela achou bem divertido ter um drilliano aprendendo
todo tipo de coisa que só o submundo da galáxia deveria saber. Dizia que
ninguém nunca suspeitaria de mim quando estivesse em missões externas.
Até faz sentido, mas não sou louca de confiar no que ele está dizendo,
depois do que aconteceu. Abro um dos armários escondidos e tiro meu
celular. Tem uma mensagem não lida.
Gabi: Isso procede. E quero detalhes quando voltar.
Sorrio. Então realmente tenho uma preocupação a menos. Nessa
confusão toda já tinha até me esquecido da coisa de Re’ni não conseguir me
controlar. Mas já tenho mais uma coisa para Gabi conferir.
Carol: Ótimo. Confere uma coisa com Kradisla? Ei’ri diz que aprendeu
a invadir sistemas de segurança e arrombar portas por ordens dela. Seu
aparelhinho não funcionou 100%, aliás. Não abriu as telas de login, mas
abriu o sistema do servidor.
Envio a mensagem e levanto a cabeça. Ei’ri está me encarando e não
preciso ser um gênio para ver que está chateado. O quê? Achou que eu não ia
confirmar qualquer coisa que fosse falada, especialmente agora?
— Alguém tentou nos matar. Nós nem temos informação nenhuma, e
podíamos estar todos mortos agora. Já tenho certeza sobre Re’ni, mas você
ainda está na área cinza.
Ei’ri balança a cabeça.
— Era disso que eu estava falando. Re’ni ter insistido para sairmos bem
naquela hora, e o fogo... Nenhum de nós viu o que ele estava fazendo.
Assinto. Dois idiotas, levando em conta que nós dois estávamos
desconfiados dele. Mas tem coisas que são querer demais. Nunca precisei
pensar nesse tipo de coisa. Nem imaginei que fosse precisar desse nível de
paranoia. Lição aprendida: daqui para a frente, tudo o que nosso observador
fizer vai ser observado.
— Ele pode ter sabotado alguma coisa lá dentro ou só ter avisado
alguém que estávamos lá.
Ou os dois podem ter feito isso juntos. Não posso descartar essa
possibilidade até Gabi responder. E mesmo depois... A verdade é que não sei
se existe alguma forma de Ei’ri me convencer de que realmente posso confiar
nele.
Meu celular apita.
Gabi: Isla botou ele pra treinar com Suelen. Ele provavelmente sabe
mais um monte de coisas que não deveria.
Então pelo menos existe uma explicação. Uma preocupação a menos... E
cada vez que eu penso isso descubro mais coisas para me preocupar.
Digito uma mensagem agradecendo e levanto a cabeça. Ei’ri ainda está
me encarando, agora com uma sobrancelha levantada.
— Não vou pedir desculpas. Você teria feito a mesma coisa no meu
lugar.
Ele continua me encarando. Vou até a cama e me abaixo. Paro logo antes
de me sentar. Ainda estou com a roupa imunda que usei na selva. Não vou
me sentar aqui. E não tem nenhuma cadeira no quarto. Merda.
Ei’ri solta o ar com força e abaixa os braços.
— Eu pelo menos teria sido mais discreto.
Sorrio.
— Para quê ser discreta? Você não é idiota.
— Vou considerar isso como um elogio.
Dou de ombros. É.
Olho para o monitor de novo. O fogo está apagando. Ou melhor, sendo
apagado. Tá. Nenhuma surpresa nisso, mas mesmo assim...
— Quero detalhes sobre isso — Ei’ri fala.
Assinto. Exatamente o que eu estava pensando.
Aponto para a porta.
— Vou tirar essa roupa imunda primeiro, e aí vamos atrás de Talita. E
não avise seu primo.
Ei’ri estreita os olhos.
— Ah, então agora eu sou de confiança?
Reviro os olhos.
— Quer a resposta honesta?
Ele balança a cabeça e vai para a porta. Pelo menos entendeu o recado
sem eu precisar pedir para sair com todas as letras.
— Você confia em alguém, Carol?
Bom, ele perguntou.
— Em Gabi.
Porque depois do que aconteceu, de Lucas, dos agentes da APLA
alterando as memórias dos meus pais e da minha irmã para nos mudarmos de
cidade, alterando as memórias deles e dos meus amigos para ninguém se
preocupar quando Gabi desapareceu... Como é que vou confiar em alguém?
Gabi, pelo menos, eu sei que não vai ser afetada se tentarem mexer com as
memórias dela. Sem mencionar que Kernos faria um inferno se tentassem
algo assim.
Ei’ri sai do quarto sem falar mais nada. Ótimo. E é melhor ele nem ficar
ofendido – só respondi o que ele perguntou.
Entro no banheiro minúsculo e encaro o terminal do chuveiro. Tenho
certeza de que tem uma configuração para limpeza a seco, só não tenho
certeza de que é a padrão. Deveria ser, levando em conta que estamos em
uma nave e temos que racionar água. Mexo no painel. Seria mais rápido só
tirar a roupa, mas tenho certeza que a hora que esse tecido se dobrar em
qualquer lugar diferente, vai ter lama seca caindo para todo lado.
Quando saio do banheiro, não estou totalmente limpa – tenho a leve
impressão de que vou precisar de água mesmo para terminar de tirar a lama –
mas é o suficiente por agora. Visto outro dos conjuntos de calça e blusa de
mangas compridas que Gabi me deu e calço botas limpas antes de sair do
quarto. Me encosto na parede, esperando Ei’ri. Pelo visto ele também preferiu
ir trocar de roupa. Ótimo, porque aquela lama fede mesmo seca.
Uma das krijkare da tripulação entra no nosso corredor. É a mesma que
pilotou a nave pequena que usamos para ir para a superfície. Ela tem o cabelo
pintado de preto com as pontas rosa. Isso, junto com a pele verde-musgo e a
roupa preta, só me faz lembrar da Gamora. Será que se eu comentar ela vai
entender a referência? Acho que não. Mas seria mais fácil que o nome dela,
Dsara.
— Drek está chamando vocês — ela fala e indica os outros quartos.
Balanço a cabeça.
— Ei’ri já deve estar saindo e...
Paro quando uma das portas se abre. É o quarto de Ei’ri, por sorte. Ele
sai e vem na nossa direção.
— Vamos.
Dsara olha para a porta do quarto de Re’ni e não fala nada antes de
começar a andar na direção do elevador.
Vamos direto para a sala que usamos mais cedo, que Talita bloqueou só
para o nosso acesso. Drek está sentado de frente para um dos terminais, com
Talita de braços cruzados ao lado dele, os dois encarando um dos monitores.
Parece que é o fogo na área de preservação.
— Isso não faz sentido — Talita resmunga.
— Se não faz, é porque não temos todas as informações — Drek
responde.
É uma boa lógica.
Dsara fecha a porta atrás de nós.
— Eles suspeitam de Re’ni — ela fala.
Drek e Talita se viram para nós.
Porra. Posso até “suspeitar” dele – suspeitar nada, tenho certeza – mas
não ia jogar na cara de todo mundo assim. Pelo menos, não ainda.
— O que aconteceu lá embaixo? — Drek pergunta.
Suspiro e me sento em uma das cadeiras perto do terminal onde ele e
Talita estão.
— Re’ni nos mandou sair de lá — conto. — Mal tínhamos começado a
pegar alguma coisa útil... Se é que pegamos alguma coisa.
Olho para Ei’ri e ele assente. Ótimo. Então teve alguma coisa útil.
— Ele praticamente nos arrastou para fora e correu direto para dentro da
selva. Não parei para discutir.
Drek olha para Talita. Ela se vira para o terminal e faz alguma coisa. Um
dos monitores maiores, no alto da parede, acende e mostra a imagem da selva
vista do alto.
— Estávamos monitorando a região, obviamente — Drek fala.
Sorrio. Eu realmente não esperava isso. Se fosse uma equipe só
contratada, não se dariam a esse trabalho, tenho certeza. Mas Drek é parte da
força-tarefa para valer. Não faço a menor ideia do que Gabi ofereceu para um
bando de piratas fazer tanta questão de ajudar assim.
No monitor, uma nave branca começa a sobrevoar a selva. Ela é
achatada e parece um pentágono meio torto. E...
— Essa mancha azul no casco é o símbolo do governo?
— É — Talita responde.
Merda.
— O governo não tem o menor motivo para ter enviado uma nave
justamente para essa propriedade — Ei’ri começa. — Está abandonada e é
uma das áreas de preservação. Nenhum drilliano de respeito invadiria um
lugar assim.
Exatamente o que eu pensei.
Drek aponta para o monitor.
— Olhe.
A nave continua sobrevoando a região lentamente. Quando ela acelera e
começa a se afastar, já consigo ver o fogo. Puta que pariu.
— Eles atiraram? — Pergunto.
— Duas bombas incendiárias — Talita responde. — E fica melhor.
Melhor? Só se ela estiver querendo dizer que fica pior.
— Isso foi logo que vocês decolaram — Drek conta. — Dsara precisou
camuflar a nave para não ser detectada.
Caralho. Se não tivéssemos saído naquela hora, se tivéssemos tentado
copiar os dados...
No monitor, o fogo continua ficando mais forte. A nave já desapareceu
da câmera e parece que estava ventando, porque o fogo está se espalhando
depressa demais. Engraçado, quando estávamos em terra nem pareceu nada
disso. O ar parecia até parado, na verdade.
Duas naves idênticas à primeira aparecem na tela. Na verdade, eu não
duvidaria nem um pouco se uma delas fosse a mesma. Elas sobrevoam o
incêndio, devagar, e então se afastam. O fogo já está mais baixo e parou de se
espalhar.
— Supressores de incêndio — Talita fala antes que eu pergunte. —
Jogaram um bocado ali e deixaram.
Abaixo a cabeça. Caralho.
— Eles foram avisados. É a única explicação — Ei’ri fala.
E eu não tenho nenhum motivo para discordar.
— Por favor, me diz que conseguiu ver alguma coisa útil quando
estávamos lá — murmuro.
Ele assente.
— Não tenho certeza de que vai ser útil, mas é a única coisa que estava
se repetindo o tempo todo sem uma explicação.
E isso já está me desanimando.
— Fala de uma vez.
Ei’ri dá de ombros.
— Várias viagens e compromissos em um lugar chamado Im’liah’ka.
Drek olha para ele.
— Como?
— Im’liah’ka. — Ei’ri repete.
Drek e Dsara começam a rir.
DEZESSETE
Uma boate em um antro do submundo. Por que é que isso me
surpreende? E tenho certeza de que Drek e Dsara não estão contando tudo
sobre essa tal de Im’liah’ka. Eles estão se divertindo demais com a coisa toda
para ser só uma boate de piratas e mercenários. Aliás, como é uma boate de
piratas e mercenários?
— Im’liah’ka fica em um dos planetoides controlados pelo submundo,
mas não é o tipo de lugar onde vocês vão conseguir entrar sem problemas.
Falei que estava bom demais para ser verdade.
— O que tem de especial nesse lugar?
— É um clube exclusivo — Dsara conta. — E não do tipo que você paga
para fazer parte. Você é convidado para se tornar um membro.
Estreito os olhos.
— Isso está mais parecendo um clube de riquinhos do que uma boate.
Os dois assentem.
Merda.
Certo. Respiro fundo. Tem que ter um jeito. Olho para Ei’ri e ele balança
a cabeça. Okay, foi treinado como alguém do submundo mas não tem
contatos no alto escalão. Gabi não tem contatos no alto escalão do submundo,
tenho certeza. Se bem que Suelen pode ter, mas vai ser mais complicado
entrar em contato com ela, especialmente falando sobre coisas que não
podem ser detectadas por ninguém. E...
Caralho.
Olho para Ei’ri.
— Tem alguma chance do seu primo não ter sido comprado?
Ele abre a boca para me responder e para. Ótimo. Pense bem mesmo,
porque eu posso estar deixando algum detalhe passar. Não acho que seja o
caso, mas vai que...
Ei’ri balança a cabeça.
— É a única explicação.
— Então quem quer que esteja puxando as cordinhas dele seria parte
desse alto escalão.
Ele me encara como se eu fosse a alien aqui. O que foi? Faz todo
sentido. Se Arcen ia nessa tal Im’liah’ka para negociar coisas das terráqueas,
faz sentido que a pessoa que está tão preocupada com nossa investigação
tenha contatos lá também. Ou seja, Re’ni pode conseguir um convite para
nós.
— Você é louca — Ei’ri murmura.
Ei!
— Tem alguma ideia melhor?
Ele dá de ombros.
— Não falei que isso era uma coisa ruim.
Melhor não ser mesmo.
Olho para Drek.
— Vocês têm vigilância dentro dos quartos?
Ele inclina a cabeça. Acho que peguei o capitão de surpresa. Gosto
disso.
— Temos, mas não costuma estar ativa — ele fala, lentamente. — Vocês
querem pressionar Re’ni. A vigilância seria uma garantia caso ele tente
alguma coisa.
Assinto. Nem sou louca de jogar Re’ni na parede com uma bomba
dessas sem nenhum tipo de suporte. Não mesmo. Quero os aliens nos
assistindo e se possível prontos para entrar no meio.
— Posso cuidar disso — Dsara fala.
— E eu monitoro o sistema interno — Talita avisa.
Eu adoro esse povo. Queria que todas as equipes que já trabalhei na
APLA funcionassem assim, sem dez mil discussões desnecessárias.
Drek se levanta.
— Certo. Se precisarem de mim, avisem. Tenho algumas negociações
para terminar.
Reviro os olhos. Ele com certeza está aproveitando estarmos em espaço
drilliano para fazer o máximo de negócios que pode. Drek pode ser um pirata
– ou mercenário, como disse que está sendo chamado nos últimos tempos –
mas não tem nenhum problema com fazer negócios honestos, se forem render
bem. E como os drillianos são insuportavelmente chatos para negociar com
forasteiros, qualquer krijkare vai ter todo tipo de regalias possíveis. Suas
espécies têm a mesma origem, então os krijkare não são considerados tão
inferiores quanto o restante da galáxia. Foram justamente esses negócios que
Drek usou como cobertura para o governo não suspeitar dele aqui.
Olho para Talita.
— Precisa de quanto tempo para ativar o sistema de vigilância?
Ela sorri.
— Menos tempo do que vocês vão gastar para voltar para o quarto.
Podem ir andando.
Assinto.
— Vamos lá, então.
E eu espero que pelo menos isso não dê merda.
Ei’ri não fala nada enquanto saímos da sala e vamos para o elevador. Só
quando já estamos dentro dele, ele suspira.
— Isso é loucura.
Jura?
— Qual parte?
Ele olha para mim e dá um sorriso irônico.
— Todas?
E nessas horas eu acho que é bom esperar o pior das pessoas. Uma
situação dessas não me surpreende para valer, mas consigo ver que Ei’ri
ainda não aceitou o fato de que Re’ni foi comprado para não deixar as
alterações na lei passarem.
— Você viu o que ele fez na selva? — Ei’ri pergunta.
Balanço a cabeça e saio do elevador assim que as portas se abrem. Ele
me acompanha. A única coisa que vi foi Re’ni resmungando atrás de mim e
então passando na nossa frente.
— Ele foi na frente, tirando todas as teias de aranha nas árvores.
Uma arrepio me atravessa. Tinha teias de aranha no meio das árvores?
Puta que pariu, ainda bem que não vi.
Merda. Não quero pensar no que isso quer dizer.
— Ele sempre soube que tenho pavor de aranhas — murmuro.
E fez a mesma coisa lá dentro do complexo – tirou as teias de aranha,
conferiu se não tinha nenhuma mini-demônio no terminal... Argh.
Ei’ri assente e não fala mais nada. Ótimo, porque não quero nem pensar
nisso agora. Foco. Depois eu tento entender o que tem na cabeça desse louco.
Se bem que, no fim das contas, isso não faz a menor diferença. Só quer dizer
que Re’ni não é tão cuzão assim. Não muda nada do que ele fez – que foi me
usar, primeiro, e depois nos vender e quase nos matar com essa gracinha de
avisar o governo.
A porta se abre assim que Ei’ri aperta o painel.
— Estavam tentando puxar alguma informação? — Re’ni pergunta.
Estreito os olhos e entro no quarto. Exatamente igual o meu: uma cama e
mais nada à vista. Se ele tiver qualquer coisa escondida, vai estar nos
armários embutidos. E Re’ni está sentado na beirada da cama, o mais longe
possível das paredes. Ceeeerto.
Aliás, essa pergunta foi bem interessante.
— O que quer dizer com isso? — Ei’ri pergunta e fecha a porta atrás de
nós.
Re’ni dá de ombros.
— Estava esperando vocês virem atrás de mim. Demoraram mais do que
pensei. — Ele olha para mim. — E tenho certeza de que isso não é porque
estavam em dúvida.
Bom, já que ele quer assim...
Sorrio.
— Não temos a menor dúvida sobre você desde que entramos na nave —
falo e ele levanta as sobrancelhas. — Minhas únicas dúvidas, na verdade,
eram sobre o que tinham pedido, especificamente, e até onde você estava
disposto a ir. O que aconteceu mais cedo já respondeu pelo menos uma
dessas questões: te pediram para nos matar. Agora, até onde você está
disposto a ir... — Dou de ombros. — É bem possível que só tenha falado para
sairmos do complexo porque senão ia morrer conosco. O que quer dizer que,
de uma forma ou de outra, você é dispensável para os planos de quem quer
que esteja por trás disso.
Re’ni fica branco, mas sustenta meu olhar. Pelo menos isso. E essa
reação já é uma resposta.
— E então? — Insisto. — Era para você ter saído sozinho e nos deixado
lá ou coisa assim, ou iam te matar junto? Ficar livres de todos os problemas
de uma vez?
Ele respira fundo e balança a cabeça.
— Querem vocês fora do caminho, não importa como. Queriam
desacreditar o representante da APLA, e se tivessem mandado qualquer
pessoa que não fosse Carol, teriam conseguido.
— Mas Kernos re’Dyraiv considera Carol como família, então qualquer
coisa que fizessem para desacreditá-la teria que ser impecável, porque ele não
aceitaria algo assim — Ei’ri completa.
Re’ni assente.
Okay. Caralho. Não esperava por isso. Sei que os rhergari têm essa coisa
de família acima de tudo e uma lealdade absurda, mas não pensei que Kernos
fosse me considerar família. Quer dizer, sou só prima de Gabi, não irmã ou
coisa assim. Mas gostei disso. Ah se gostei.
— Eu sou dispensável. Não demorei muito para perceber isso, quando
fiz o acordo que me colocou na divisão diplomática — Re’ni conta. — Foi
por isso que avisei meu contato do que estávamos fazendo. Se eles
bombardeassem o complexo, seríamos dados como mortos. Todos nós. O que
quer dizer que não estaríamos sendo vigiados.
E poderíamos continuar a missão sem nos preocupar com mais tentativas
de nos matar. Respiro fundo e estalo os dedos. Pode até ser que isso seja
verdade e Re’ni tenha feito isso para tirar as pessoas por trás disso da nossa
cola, mas também é bem possível que ele só esteja desviando a atenção,
tentando limpar seu nome para não o entregarmos agora. Não que tenha
alguma chance de fazermos isso. Precisamos desse tal contato dele para
entrar na boate.
O que quer dizer que a ideia de não sermos vigiados não vai durar quase
nada.
Ei’ri olha para mim. Assinto. Vamos manter a nossa ideia original – até
porque é a melhor opção. Claro, podemos forçar Re’ni a dar nomes, mas isso
não vai ser tão fácil assim e ainda assim vamos precisar ir atrás de provas.
Sem mencionar que nada garante que o contato dele não seja alguém pequeno
nesse esquema todo. Temos que ir direto na fonte.
— Queremos o seu contato — Ei’ri fala.
Re’ni se vira para ele de uma vez. Sorrio. Não esperava por essa, é? Não
sei por que, se já estava nos esperando.
— Você vai falar com ele e nos conseguir um convite para entrar em
Im’liah’ka. Todos nós — ele continua.
Re’ni se levanta de uma vez e dá um passo na nossa direção. Descruzo
meus braços e deixo que ele veja os anéis que são os mini-tasers nas minhas
mãos. Ele para.
— Vocês estão loucos? Eu consegui dar um jeito de tirar todos que estão
vigiando da nossa cola e querem simplesmente virar pra eles e falar um “oi,
estamos aqui, venham nos pegar”? Não. Não mesmo.
Sorrio.
— Então você devia ter nos dado mais tempo antes de avisar que
estávamos no complexo, porque essa é a melhor pista que temos e vamos
atrás dela. Isso não está aberto para discussão.
Ele me encara. Sustento seu olhar. Re’ni respira fundo e balança a
cabeça.
— É loucura — ele repete.
Conta uma novidade.
— Você vai falar com seus contatos e conseguir esse convite — Ei’ri
fala. — E se tentar sabotar essa missão de qualquer forma, vai cair junto
conosco.
Re’ni balança a cabeça.
Bom, já que ele quer assim...
— Esta conversa está sendo gravada e vai ser encaminhada para Gabi
assim que saímos do quarto. Tenho certeza que ela vai ficar com os dedos
coçando para jogar tudo isso em modo público por aí. Re’ni Vertan, de uma
proeminente família drilliana, observador designado pelo Conselho,
comprado pelas próprias pessoas que deveria investigar...
E tenho certeza de que Talita vai encaminhar a gravação, mesmo que
isso não tenha sido combinado antes.
Ele abaixa a cabeça e respira fundo. Quase fico com pena. Ênfase em
quase. Ele se enfiou nessa ferrada. Se tivesse sido menos arrogante e
cumprido a porra da pena, ao invés de procurar um jeitinho de escapar disso,
não estaria nessa situação agora. Ou melhor: se não tivesse me usado, não
estaria nessa situação agora.
— Vou conseguir os convites — Re’ni murmura.
Ótimo.
Saio do quarto sem falar mais nada, com Ei’ri logo atrás de mim.
DEZOITO
— Quero morrer seu amigo. É isso que vocês terráqueas falam, não é?
Olho para Ei’ri e rio.
— Nem fiz nada.
Ele levanta as sobrancelhas e encosta na parede atrás da cama.
Depois da “conversa” com Re’ni, quando passamos na porta do meu
quarto vimos uma mensagem de Talita piscando no painel. Eu nem sabia que
dava para usar eles para mensagens de texto. Ela avisou que tinha gravado
tudo, estava encaminhando as coisas para Gabi e que ia pesquisar mais sobre
a tal boate. Podíamos aproveitar um tempinho para descansar e tirar o resto
de lama do corpo. E eu realmente espero que essa última parte não tenha sido
uma forma discreta de dizer que estávamos fedendo. De qualquer forma,
nenhum de nós achou isso ruim.
Eu mal tinha saído do meu banho quando Ei’ri chegou aqui. Nem
perguntei nada dessa vez, só deixei ele entrar. Já estava estirada na cama,
então só rolei para o lado para ele se sentar.
— Nem fez nada? — Ele faz um gesto de aspas. — Esta conversa está
sendo gravada e vai ser encaminhada...
Reviro os olhos. Como se eu fosse deixar de aproveitar Gabi numa hora
dessas. Especialmente levando em conta que Re’ni conhece muito bem minha
prima e tem uma boa noção do que ela está querendo fazer com ele.
— Funcionou, não funcionou?
Ei’ri sorri sem humor nenhum.
— Você massacrou Re’ni. Primeiro a questão de já não ter a menor
dúvida sobre ele, depois a fala sobre ele ser dispensável... Quero morrer seu
amigo.
Dou de ombros.
— Ele se meteu nessa sozinho. Agora aguente.
E não vai ser tirar umas teias de aranha no caminho que vai me fazer
mudar minha opinião sobre ele. Argh. Que merda, agora vou ficar pensando
nisso. Ia ser mais fácil se eu pudesse falar que ele estava sendo totalmente
cuzão o tempo todo, mas não, ele tem que ir lá e fazer uma coisa gente fina.
Não, gente fina coisa nenhuma. É só o mínimo que qualquer um com um
pingo de decência faria.
Ei’ri balança a cabeça e não responde.
Suspiro e fecho os olhos. Queria conseguir relaxar, mas já sei que isso
não vai acontecer tão cedo. Ainda mais depois dessa coisa do fogo. Ainda
não caiu a ficha de que poderíamos ter morrido ali, e quando cair não vai ser
legal, tenho certeza.
E Ei’ri está se mexendo demais. Nervoso, aposto, porque esse colchão é
confortável demais para ser outra coisa.
— O que foi? — Pergunto sem abrir os olhos.
Ele solta o ar de forma audível.
— Isso é maior que eu pensava.
Epa. Abro os olhos e me sento de frente para Ei’ri.
— O que mais você viu lá?
Ele bufa e balança a cabeça.
— Está vendo o que estou falando? Não é só como você massacrou
Re’ni, mas a forma como você liga as informações sem o menor esforço. Não
conheço ninguém que teria feito justamente essa pergunta agora.
Não vou falar que ele deve conhecer um pessoal bem lerdo, então. Não
me esqueci do que Gabi comentou sobre os aliens raciocinarem diferente de
nós. E eu já estava pensando nessa confusão toda, então foi a coisa mais
lógica para eu responder.
Dou de ombros e espero. Ei’ri olha para baixo e suspira. É, ele realmente
viu alguma coisa lá.
— Nenhuma movimentação financeira em cerca de dez anos — Ei’ri
fala.
Tá, isso não é nada novo. Bate com a informação que Gabi me passou
e...
— Não, espera. Nem no servidor local tinha alguma coisa?
Ele balança a cabeça.
— Usei esse padrão de tempo para pesquisar e não tinha nada. Nem
mesmo de gastos internos. Quem quer que tenha limpado os dados, fez o
trabalho completo.
Puta merda, eu não esperava por isso. Não mesmo. Jurava que íamos
achar tudo no servidor local. Inocente.
— Não foi só isso — falo.
Ei’ri balança a cabeça de novo e me encara.
— Im’liah’ka foi o nome que mais apareceu, mas não o único. Vi nomes
de várias pessoas conhecidas... Personalidades influentes, por assim dizer.
Tanto drillianos quanto de outras espécies.
E Ei’ri, como bom drilliano, queria continuar acreditando que Arcen era
uma anomalia. Às vezes eu realmente acho ótimo não ter esse tipo de
expectativa. É melhor esperar o pior das pessoas, porque pelo menos quando
te surpreenderem vai ser uma coisa boa.
Aliás, como foi que ele conseguiu reparar em tantas coisas nos poucos
minutos que estava dentro do servidor? Tá, o texto estava passando tão
depressa pela tela que nem por milagre eu conseguiria ler, mas isso é um
pouco demais. Habilidades drillianas, algo que ele aprendeu na tripulação de
Kradisla, ou outra coisa? Mas não vou perguntar agora, não quando ele está
encarando a parede com essa expressão perdida. É só mais um detalhe que a
minha paranoia pegou, e dessa vez não acho que faça alguma diferença saber
a resposta ou não.
— Talvez fossem só reuniões de negócios legítimos. Arcen não era rico
só por causa do comércio de mulheres — falo.
Okay, me julgue. Eu estou com pena dele. Se eu ainda estava duvidando,
a reação de Ei’ri está me fazendo pensar que ele realmente acredita naqueles
princípios todos, a coisa da honra, retidão e sei lá mais o quê. Nem se eu
ainda estivesse desconfiada dele ia pensar que estava fingindo agora.
— Não. — Ele respira fundo e balança a cabeça de novo. — Várias
reuniões e encontros estavam marcados, todos com os assuntos envolvidos.
Estes em específico eram apenas nomes, sem nenhum tipo de informação. Se
conseguir pensar em outro motivo para fazerem isso, agradeço.
É. Sendo assim... Complicado.
— Sabe, olhando por um lado... — começo. Acho que devia era ficar
calada, mas é estranho demais ver Ei’ri abatido assim. Então fodas. — Por
um lado, tem algo bom em crescer em um mundo onde você ainda pode
esperar o melhor das pessoas. Mesmo que isso doa nessas horas, sabe? Existe
um motivo para você esperar o melhor das pessoas. Não perca isso.
Ei’ri olha para mim e estreita os olhos. Dou de ombros. O que falei não
deixa de ser verdade, não importa o que ele pense. Sei lá, não consigo nem
imaginar um lugar onde você sempre vai esperar que as pessoas façam o que
é certo.
Ele segura minha mão. Olho para baixo. De onde veio isso agora? Mas
não me afasto.
Quando levanto a cabeça, Ei’ri ainda está me encarando.
— É tão diferente assim, na Terra?
— Do que eu sei sobre a sociedade de vocês? Bastante.
Mesmo que a sociedade drilliana tenha aquela coisa podre de se
considerar superior a todos os outros, além de se alimentarem de outras
pessoas, a verdade é essa. Se você ignorar esse detalhe, as colônias deles
estão entre os lugares mais seguros do Acordo. É um dos motivos para os
visitantes serem escaneados de sei lá quantas formas diferentes e vigiados.
Não querem forasteiros “contaminando” seus mundos.
— Você iria se dar bem na tripulação de Kradisla — Ei’ri fala.
Rio. Numa nave de mercenários de luxo? Escolta contratada e esse tipo
de coisa? Não tenho tanta certeza. Ia ficar entediada rapidinho.
— Acho que me daria melhor aqui, na tripulação de Drek. Pelo que vi
dos dois, acho que é mais meu estilo.
Ele levanta as sobrancelhas.
— Piratas? Porque ele pode dizer que agora é um mercenário, mas
sempre foi um pirata.
Dou de ombros e me viro para deitar de novo. Nem me surpreendo
quando Ei’ri não solta a minha mão. Tudo bem, não estou reclamando. Na
verdade, essa situação toda, com ele sentado na minha cama, é mais
confortável do que pensei que seria. Pontos para o drilliano, conseguiu me
fazer ficar à vontade perto dele.
— Mercenários têm que lidar com clientes em algum momento —
explico. — Não tenho paciência para isso. Piratas fazem o que querem. É
mais meu estilo.
A campainha maldita da porta apita bem quando Ei’ri abre a boca para
responder. Aponto o espaço ao lado dele onde o painel está escondido e me
sento de novo. Só porque eu tinha acabado de me deitar...
Ei’ri abre o painel e o monitor mostra Talita parada na porta. Tinha que
ser.
— Abre de uma vez.
Ele ri e aperta o sensor.
Talita levanta uma sobrancelha quando vê Ei’ri na minha cama. Não sei
por que essa cara.
— Desculpa interromper os dois pombinhos... — ela começa.
Mostro o dedo do meio e ela ri. Dois pombinhos o caralho.
— Estava puxando informações sobre Im’liah’ka. Parece que abriram o
lugar cerca de dez anos padrões atrás.
Solto o ar com força e olho para o teto. Dez anos. De novo. Já chega, né?
— Tem o nome dos fundadores? — Ei’ri pergunta.
Sorrio. Ele está pegando o jeito dessa coisa. É a mesma coisa que eu ia
pedir.
Talita assente.
— Cadê aquele seu tablet, Carol? É mais fácil eu passar tudo o que achei
e vocês se viram.
Boa. Me levanto e abro um dos armários escondidos na parede. Pego o
tablet, passo para ela e aproveito para olhar meu celular, que está na mesma
gaveta. Nenhuma mensagem. Não que eu estivesse esperando alguma coisa.
Quando me viro para Talita, ela está digitando alguma coisa. Paro do
lado dela.
— Só estou conectando no sistema da nave para carregar os arquivos —
ela avisa antes de me devolver o tablet.
Dou uma olhada na pasta que está aberta. Porra. Não esperava conseguir
até plantas da tal boate. E...
— Isso aqui é um servidor local? — Pergunto.
Ei’ri se levanta e para ao meu lado, encarando os dados.
— Um servidor local isolado e escudado, provavelmente — Talita fala.
— Não tenho certeza do que é, só que todas as leituras desse lugar em
específico saem vazias. Como não identificamos nenhuma conexão além do
estritamente necessário com a rede do Acordo...
— Eles precisam estar usando outro servidor — completo. — Certo.
Ela assente.
— Drek já mudou o curso da nave. Vamos passar em uma das bases de
abastecimento primeiro, e de lá vamos para o planetoide. Vamos gastar entre
dez e quinze horas para chegar lá, então vocês têm algum tempo para estudar
isso aí e descansar. — Ela estreita os olhos e encara a cama. — Ou fazer
outra coisa.
Mostro o dedo do meio de novo e ela ri antes de sair do quarto.
DEZENOVE
Seja profissional, Carol. Profissional. Isso quer dizer nada de encarar o
casal sentado em uma das alcovas. Merda. Eu bem que queria parar para
tentar entender o que está acontecendo ali. Quer dizer, ou eles têm alguns
pares de membros a mais – porque não dá para chamar aquilo de braços – ou
tem mais um alien ali no meio. E eles estão se pegando tão loucamente que
não tenho certeza de qual parte do corpo é de quem.
Okay. Beleza. Eu não esperava isso. E não posso nem falar um “caralho”
porque tenho medo de um aparecer na minha frente. E vai ser um dos
estranhos, tenho certeza. Okay, isso seria interessante.
— Carol? — Ei’ri chama.
Sorrio e vou até onde ele e Re’ni pararam, uns tantos passos para a
frente. Estou um pouco distraída demais, mas ei, não tem como não me
distrair aqui. Eu estava esperando uma boate ou um clube de riquinhos – não
que eu tenha a menor ideia de como um clube de riquinhos seria. Talvez uma
mistura dos dois. Não uma mistura dos dois com uma dose enorme de putaria
jogada por cima. Porque apesar do ar sofisticado desse lugar, a única coisa
que não vi ainda foi sexo explícito.
Ei’ri me oferece o braço, como um bom cavalheiro. Levanto as
sobrancelhas e aceito, ignorando quando Re’ni revira os olhos.
Continuamos atravessando o salão. Prefiro não pensar no que vamos ver
no próximo andar. O primeiro salão por onde passamos, no andar de baixo,
não tinha nada demais. Parecia só um bar e restaurante chique, com mesas
isoladas. E, pela reação de Re’ni enquanto estávamos lá, tenho certeza de que
pelo menos um dos seus contatos está sentado em uma das mesas. Quais as
chances de tentarem nos matar enquanto estamos aqui dentro? Bem baixas,
eu acho. Pelo menos com bombas e tals. Envenenamento ou assassinos são
outra história. Hmm. Começar a prestar atenção nisso.
Decidimos que eu não ia tentar me passar por drilliana aqui. Não que
fosse fazer alguma diferença, já que qualquer sensor que eles tenham vai me
reconhecer como terráquea. Ou não vai reconhecer minha espécie, o que
também é uma possibilidade. A ideia é que isso vai atrair a atenção de
qualquer pessoa envolvida nessa história toda, além de me dar uma vantagem
se tivermos problemas, porque ninguém vai estar esperando as escamas.
Eu sei que o ideal seria não chamar atenção. Assisti seriados de
investigação o suficiente para aprender isso, mesmo que não tivesse passado
os últimos anos na APLA. Não que eu tenha investigado alguma coisa
enquanto estava lá – só me mandavam para a rua para apreender aliens que
não tinham sido discretos ou que estavam aprontando alguma. Mas a questão
é que não temos outra opção. Ei’ri se lembra de alguns dos nomes que viu,
mas não quer repetir nenhum deles perto de Re’ni. Então, fora isso, a única
coisa que sabemos é que este lugar deve ter alguma coisa a ver com o
comércio de terráqueas. Só. Mais nada.
E eu estou vendo um alien com chifres? Não, espera. Chifres, escamas e
aparentemente é meio cobra.
Não encare, Carol, não encare!
Ei’ri coloca uma mão em cima da minha.
— Não precisa ter medo, não...
Rio, sem nem preocupar em tentar ser discreta. Ele realmente está
pensando que estou olhando tanto assim porque estou com medo? Coitado,
não me conhece.
E Re’ni também está rindo. Ele olha para mim e balança a cabeça. Dou
de ombros. Apesar de tudo, ele me conhece.
— Relaxa, eu gosto das coisas estranhas — respondo.
Se não for assim, qual é a graça de estar no espaço? Aliás, se estivesse
incomodada, com medo ou qualquer coisa assim não ia estar tão distraída
tentando não encarar os casais/trios/grupos nas alcovas. Estou realmente
repensando minha opinião sobre tentáculos. E sobre mais algumas coisa que
não sei nem como chamar, mas parecem interessantes. E preciso pesquisar
sobre essa espécie meio cobra depois, porque isso foi novidade para mim.
Ei’ri me encara. Acho que ele não acreditou no que falei, mas não vou
ficar discutindo. Tenho coisas mais interessantes para fazer, tipo olhar ao
redor. De novo.
Respiro fundo. Preciso sair daqui. Esse salão está me dando ideias
demais e não acho que seja uma boa ideia tentar fazer uma investigação – por
mais que nosso plano seja um “vamos entrar lá e ver no que dá” – louca para
ir para a cama. Quer dizer, nem precisa ser a cama, tem algumas alcovas
vazias e Ei’ri está bem aqui. Não esqueci das coisas que ele consegue fazer
com a boca. Olho de relance para ele. Pena que Ei’ri ainda está segurando
meu braço, porque estava ótimo enquanto ele estava andando na minha
frente. A calça escura e justíssima que Dsara mandou ele vestir está fazendo
maravilhas com essa bunda. Mas ele está sem camisa, então não tenho do que
reclamar.
Ei’ri grunhe alguma coisa que não entendo e começa a andar mais
depressa, praticamente me arrastando junto.
— Mas já, Carol? — Re’ni pergunta. — Na minha frente?
Ooops. Acho que ele me viu encarando o primo. Fodas. Ele é ex, não
devo nada para ele. Especialmente depois da merda colossal que fez.
Dou de ombros e não falo nada. Ei’ri suspira.
— Sério, Carol?
Olho para Re’ni. Ele levanta as mãos. Ótimo. Melhor não falar nada
mesmo, senão vai ouvir o que não quer.
A porta do outro lado do salão dá para uma escada. De novo. Tenho
certeza que esse lugar foi construído assim para forçar as pessoas a
atravessarem os salões. É a única explicação, na verdade.
O terceiro andar é mais um salão ocupando o andar praticamente inteiro,
mas aqui realmente parece uma boate. Está tudo mais escuro, com luzes
coloridas e música tocando. O espaço todo é uma pista de dança, pelo visto, e
tem palcos pequenos e redondos espalhados por toda parte. Com dançarinos
de sei lá quantas espécies vestindo quase nada.
Isso oficialmente é tortura. Puta merda.
Solto Ei’ri e cruzo os braços. Não quero nem saber, vou arrastar ele para
o quarto quando sairmos daqui. Mereço.
— Eu disse que não ia dar em nada — Re’ni murmura.
Rabugento de plantão, oi. Mas não vou falar nada. Tenho certeza de que
vamos achar alguma coisa. Ou melhor, alguém. E é interessante que Dsara
tenha passado esses detalhes só para mim, logo antes de sairmos: como ela e
Drek sabiam sobre Im’liah’ka por causa de uma das operações de Suelen. De
acordo com ela, tem pelo menos duas terráqueas que trabalham aqui e as duas
são informantes de Suelen. Vão nos ajudar, se conseguir encontrá-las.
Ei’ri responde alguma coisa, mas não consigo entender por causa da
música. Ou eu só não quero entender mesmo. Deixo os dois e começo a andar
pela pista de dança. As pessoas aqui também estão se pegando, mas não tanto
quanto lá em baixo. Uns tantos estão mais preocupados em encarar os
dançarinos e dançarinas. E dançarines? Porque alguns dos aliens aqui são
diferentes demais para eu pensar neles como homens e mulheres.
Tá, admito que pensei que estivesse rolando strip ou qualquer coisa do
tipo quando vi palcos e dançarinos pela primeira vez, mas prestando
atenção... Eles só estão dançando. “Só”. Certo.
Paro na frente de um dos palcos, assistindo duas mulheres dançando
juntas. As duas têm cabelo escuro e comprido, uma com mechas laranjas e a
outra com mechas roxas. E o que consigo ver do corpo delas – que não é
pouca coisa – está coberto de linhas tatuadas. Não demora muito para Ei’ri e
Re’ni pararem ao meu lado.
— O que acham? — Pergunto.
— Não são drillianas — Re’ni responde.
Sorrio. Sabia.
Continuo parada assistindo as duas. Uma horas elas vão tirar um
intervalo ou coisa assim. Os dois homens resmungam um pouco mas também
ficam por perto. Ótimo. Não sou a única sofrendo por causa da paisagem aqui
dentro. Dá até vontade de voltar depois, sem ser a trabalho. Ou daria, se eu
não me lembrasse que esse lugar está ligado ao comércio de terráqueas. Então
vou me contentar em arrastar Ei’ri para o quarto depois. Tenho ideias até
demais depois desse “passeio” por Im’liah’ka.
Uma das mulheres me vê e quase para. A outra a puxa de volta para a
dança. Ah, eu nem estou tão diferente assim das pessoas no salão. Quer dizer,
se ignorar o fato de que sou terráquea. Mas a roupa que Dsara me mandou
vestir – uma camiseta justa feita de tiras de um material que parece couro,
saia curta e botas – é bem na linha do que umas tantas mulheres aqui estão
usando. E meu cabelo rosa é até discreto, comparado com algumas coisas que
já vi.
Elas continuam dançando, mas dá para ver a diferença. Os movimentos
são mais leves e menos sensuais. Estão parando.
Espero, sem sair do lugar. Elas terminam a dança deitadas sobre o palco
e ficam nessa posição por alguns segundos, enquanto os aliens se aproximam
mais. Pelo que Dsara me contou, não existe prostituição aqui dentro. Pelo
menos, não em teoria. Os donos fazem questão de garantir que seus
dançarinos não sejam pressionados para nada, e é por isso que costumam ter
os melhores aqui. Mas isso não impede que algum deles resolva aceitar um
trabalho pago no intervalo. Tenho a leve impressão que os aliens estão
torcendo para isso acontecer.
As duas mulheres se sentam e descem do palco. Uma delas vem na
minha direção enquanto a outra conversa com as pessoas, que vão se
afastando devagar.
A mulher para na minha frente e inclina a cabeça.
— Viu alguma coisa que te interessou?
Ei’ri para atrás de mim na mesma hora. Resisto à vontade de revirar os
olhos. Como se precisasse disso tudo.
— Suli me disse que vocês têm bons vinhos — falo.
A mulher levanta uma sobrancelha e olha para a outra, que dá de
ombros.
— Podemos ter, para alguns amigos — ela responde. — Está
interessada?
Sorrio.
— Com certeza.
Ela me encara dos pés à cabeça antes de começar a andar na direção de
uma das paredes. A acompanho e a outra mulher vem andando ao meu lado.
Ei’ri chamou o primo, e os dois estão vindo logo depois.
— Dispense seus homens — a mulher que está ao meu lado murmura.
Olho para ela.
— Não fazemos negócios com drillianos.
Então tá. Pelo visto Gabi e eu não somos as únicas terráqueas com ranço
de drillianos. Olho para trás e balanço a cabeça. Ei’ri estreita os olhos. Dou
de ombros. Re’ni assiste a coisa toda e segura o braço de Ei’ri. Ótimo, ao
menos para isso ele serve. Re’ni não vai se esquecer de que o apaguei dentro
do meu escritório. Ele sabe que estou com os mini-tasers, não vai ser tão fácil
assim me arrastar para uma armadilha. Os dois param perto de outro palco.
Excelente.
A parede para onde elas estão me levando na verdade é uma cortina de
contas. Seguro um dos fios. Parecem miçangas, mas não é bem isso. Bonito,
de qualquer forma. Atrás das cortinas estão vários cubículos um pouco mais
privados que as alcovas do andar de baixo.
A primeira delas a entrar se senta e tira algo que parece uma bateria
daquelas redondinhas e achatadas do decote.
— Supressor de ruído — ela fala.
E aposto que isso é tecnologia do submundo, senão eu conheceria. Os
supressores de ruído que conheço são bem maiores. Claro, elas sempre
podem estar mentindo e me gravando, na verdade, mas vou arriscar. Quer
dizer, Dsara me falou sobre elas. Posso dar o benefício da dúvida.
Me sento.
— Como souberam que não sou drilliana?
A mulher que já está sentada sorri.
— Ouvimos falar de você. A terráquea de cabelo colorido que enviaram
em uma missão suicida.
Faço uma careta. Bom saber que estão me descrevendo assim. Só que
não.
— É por isso que está aqui? — A outra pergunta, parando de braços
cruzados na frente da “porta”.
— Sim. Se ouviram falar sobre essa missão... — Paro e as duas
assentem. Mais fácil, então. — Nossas informações indicaram Im’liah’ka,
mas só.
A que está de pé olha entre a cortina de contas.
— Não podemos demorar muito. E parece que um dos seus homens está
indo atrás de outras informações.
Olho para fora também. Ela está segurando a cortina um pouco aberta e
consigo ver Ei’ri conversando com um casal. Espero muito que isso não
queira dizer problemas.
— Precisamos de alguma garantia de que você é confiável — ela fala,
fechando a cortina de novo.
Tiro um anel do meu dedo e entrego para a mulher que está sentada. Este
foi Drek quem me deu, logo antes de desembarcarmos, e me avisou para usar
quando seguisse o conselho de Dsara. Agora o que ele falou faz todo sentido.
A mulher encara o anel e o vira contra a luz. Espero que ela consiga ler o
que está escrito por dentro dele, porque eu não consegui.
— Suelen e Drek. Certo — ela murmura.
Elas trocam mais um olhar.
— Você até poderia ter ouvido alguém nos dar a senha de Suli antes,
mas reconheço um dos anéis de Drek quando vejo um. — A mulher enfia o
anel em um dedo.
— Podemos te dar nomes, mas não temos provas nem seremos
testemunhas — a outra fala.
— Nós não seremos envolvidas de forma alguma.
Assinto. Isso vai complicar a vida um pouco, mas é melhor que nada. É
bem melhor que nada.
— Fechado. O que vocês têm?
As duas sorriem ao mesmo tempo.
VINTE
Encaro o cristal na minha mão enquanto subo a rampa da nave de Drek.
Quatro anos trabalhando com esse tipo de tecnologia, e ainda acho estranho
usarem pedras para guardar dados. Aliens. Por que não arrumar um pen drive
ou coisa assim? Mas não. Uma pedra. Até bonitinha, é verdade, mas pedras
bonitinhas, para mim, servem é de enfeite. Não guardando informações
secretas ou coisa assim.
— Carol? — Re’ni chama.
— Não fala comigo — resmungo.
E é melhor não insistir senão eu vou apagar ele de novo, sem nem pensar
duas vezes. Na verdade, já estou considerando um milagre não ter feito isso
ainda.
Enquanto eu estava conversando com as dançarinas – que se recusaram a
falar seus nomes, aliás, mas quem sou eu para julgar a paranoia alheia – ele
apresentou Ei’ri para um casal de investidores. Quando saí daquela salinha e
fui atrás deles, Re’ni estava me esperando e Ei’ri tinha desaparecido. Ele e o
casal estavam conversando sobre negócios no bar/restaurante do primeiro
andar, no fim das contas, e ele deixou claro que não queria que eu me
aproximasse. Certo. Sem problemas.
Puta que pariu, eu quero matar Re’ni. E Ei’ri está quase entrando para a
lista de “quero matar”, também, porque ele parecia bem confortável
conversando com o casal. O que investidores poderiam querer com ele?
Tem mais merda nisso tudo, e de um lado que eu não esperava mais
problemas. Mas também, o que eu queria? Tinha abaixado a guarda e
começado a relaxar com Ei’ri. Um drilliano. E drillianos não prestam.
Re’ni não fala mais nada enquanto vamos para o elevador. Entro
depressa e bato a mão no painel, fechando a porta antes que ele entre.
Infantil? Pode até ser, mas fodas. Cansei disso. Cansei mesmo.
Talita está na nossa sala de controle, monitorando os transmissores de
emergência. O transmissor, agora, já que Re’ni e eu voltamos para a nave. E
espero muito que Ei’ri não precise pedir ajuda. Ele foi atrás de problemas.
Agora se vire.
— Quem ficou para trás? — Ela pergunta.
— Ei’ri. Estava conversando com investidores.
Ela levanta as sobrancelhas mas não comenta. Ótimo também.
Coloco o cristal na frente dela.
— Nomes. Se puder repassar para Gabi e puxar as informações que
conseguir... As fontes deram certeza de que eles são os que organizaram o
comércio de mulheres, mas não têm provas. Precisamos saber onde ir atrás
delas.
Talita pega o cristal e coloca em uma entrada do terminal.
— Certo... E aliás, você realmente confia tanto assim em nós para só
entregar os dados?
Tenho opção?
Dou de ombros. Não é tão simples assim.
— Consegui essas informações por causa do que Dsara e Drek me
repassaram. Não tenho nenhum motivo para não confiar e eles têm direto a
ter acesso a isso também.
Na verdade, isso tudo só deu certo por causa deles. Se Ei’ri não tivesse
pedido ajuda justamente para Drek, estaríamos perdidos agora.
Provavelmente não teríamos nem conseguido sair do espaço drilliano, depois
que as naves soltaram as bombas incendiárias. Eu com certeza não teria
ficado sabendo sobre as duas dançarinas em Im’liah’ka nem teria como
convencê-las a me dar essas informações. Missão suicida, elas falaram.
Exatamente. Não era para termos chegado até aqui. E eu juro que, se
conseguir resolver essa merda toda, vou dar um jeito para que algo assim
nunca mais aconteça. Qualquer terráqueo que precisar fazer alguma coisa no
Acordo vai ter todas as informações possíveis em mãos e todos os reforços
necessários.
Uhul, nada como sonhar alto. Balanço a cabeça. Uma coisa de cada vez.
Primeiro, precisamos dar um jeito de conseguir as informações que o
Conselho pediu, sem morrer no processo. Depois... Bom, penso depois.
Melhor.
— Vou ver o que consigo encontrar, mas não precisa criar esperanças —
Talita fala.
Bufo. Nem estou esperando nada. Se ela achar alguma coisa, vai ser um
milagre, porque todas as trilhas foram muito bem escondidas até agora. Só
quero uma ideia de para onde ir quando sairmos daqui.
— Obrigada.
Ela assente e vira para o terminal. Okay, hora de cair fora daqui. Me
trancar no meu quarto parece uma ótima ideia, porque estou tão irritada que
nem a vontade de explorar a nave vai me fazer relaxar. Ninguém merece me
aguentar assim.
Volto para o quarto. Acho que minha cara está pior do que pensei,
porque até a tripulação de Drek está saindo do caminho. Por um lado, posso
me achar, não posso? Quer dizer, piratas krijkare não se intimidam com
qualquer coisa...
Fecho a porta do quarto e vou direto para o armário onde deixei meu
celular. Nenhuma mensagem nova, nenhuma surpresa.
Carol: Pode puxar as informações de Ei’ri para mim? Tudo, não só o
superficial. O mais fundo que você conseguir ir.
Me sento na cama com o celular na mão. Conheço Gabi. A essa altura,
ela provavelmente está com o celular do lado o tempo inteiro esperando
notícias.
Dito e feito. Não demora dois minutos para o meu celular apitar.
Gabi: Vou puxar. O que aconteceu?
E eu conheço Gabi bem demais para responder isso agora, mesmo que
esteja puta de raiva.
Carol: Não tenho certeza. Só quero conferir umas coisas.
Gabi: Aham, certo. Vou fingir que isso não quer dizer que você está
desconfiada pra caralho.
Não respondo. Estou desconfiada mesmo, mas falar isso com Gabi agora
não vai adiantar nada. Ela tem tanta raiva dos drillianos quanto eu, se bobear
mais, e tem um pavio tão curto que é inexistente. Não, melhor não dar
detalhes. Consigo me virar sozinha.
Me estico na cama de novo. Bom, consegui as informações que
precisávamos. Tenho nomes, pelo menos. Agora é só achar provas, o que é a
parte mais fácil. Já deixei os dados com Talita e não adianta eu querer fazer
nada agora, porque não sei nem o que procurar no sistema deles. Já pedi as
informações sobre Ei’ri, que é a única coisa que posso fazer sobre esse
problema específico. Re’ni eu já sei que não adianta pressionar. Na verdade,
até adianta, mas não vale a pena. Não acho que ele tenha nenhum contato útil
nessa história inteira. Ou melhor, não útil para o que realmente precisamos.
Aposto que quem negociou com ele está num lugar bem baixo na hierarquia
do esquema, tanto pela segurança deles quando pela questão de tempo. Se o
contato de Re’ni fosse um dos chefões, alguém já teria vindo atrás de nós
aqui. Esse nosso sossego quer dizer que demorou um pouco para os
importantes de verdade ficarem sabendo que não morremos. E isso quer dizer
que, quando formos atrás das provas, não vai ser nessa tranquilidade toda.
E eu preciso arrumar alguma coisa para fazer. Dormi demais no caminho
para cá, aí ainda tivemos aquele momento dentro da Im’liah’ka, vendo os
casais se pegando e os dançarinos, e agora não tenho nem a opção de arrastar
Ei’ri para o quarto – porque é óbvio que não vou fazer isso agora.
Me levanto de uma vez. Não vou conseguir ficar parada. Troco de roupa
depressa, enfio o celular no bolso, abro a porta e quase dou de cara com
Re’ni. Puta merda.
Respiro fundo. Não vou apagar ninguém agora. Não preciso.
— O que você quer?
Ele levanta as mãos e dá dois passos para trás.
— Só quero conversar. Não precisa usar o taser de novo.
Eu não vou rir, eu não vou rir... Respiro fundo mais uma vez e saio do
quarto.
— Em qualquer lugar menos nos quartos — aviso.
Re’ni revira os olhos.
— Você já está pegando meu primo e ainda está com essa de “não vai
entrar no quarto”?
Estreito os olhos. Ele falou isso tranquilo demais para o meu gosto. Não
parece nem um pouco o cara que eu conheço, que quase comprou uma briga
na minha festa de despedida para conseguir falar comigo e que invadiu meu
escritório na APLA porque queria provar que tinha feito as merdas todas para
poder ficar comigo.
— Eu não confio em você. Então não vai pisar no meu quarto. Simples
assim. Quem eu pego ou deixo de pegar não faz a menor diferença.
E nem “estou pegando” Ei’ri, como ele deu a entender. Rolou uma vez,
okay. Eu estava pensando seriamente em pedir mais, mas depois de hoje...
Argh. Caralho, depois de hoje não sei nem se posso confiar em Ei’ri para essa
missão.
Re’ni suspira e balança a cabeça antes de começar a andar. Ótimo.
Andar é bom. Serve para tentar esfriar a cabeça.
Ele vai direto para o elevador e para, me esperando entrar também. Já
estou fodida mesmo, não estou? Então vamos lá. Descemos em um andar que
ainda não vi e Re’ni vira no primeiro corredor sem nem parar para pensar.
— Você sabe para onde está indo? — Pergunto.
— Sei. Aproveitei o tempo da viagem para explorar um pouco da nave.
Que era o que eu devia ter feito, também, ao invés de estar aproveitando
a cama com um drilliano que pode muito bem estar traindo tudo o que estou
tentando fazer. Respiro fundo.
Re’ni abre uma das portas do corredor. Entro. É uma sala pequena, não
muito diferente da sala onde Drek nos recebeu quando chegamos: três sofás,
uma mesa de centro e a diferença maior são os balcões nas paredes. Não faço
a menor ideia de para que serviriam.
Paro de braços cruzados enquanto Re’ni se senta em um dos sofás. Não
estou nem um pouco a fim de ficar confortável agora.
— É sério, Carol. Só quero conversar.
— Da última vez que você falou isso... — começo.
— Eu fui um idiota, para variar — ele interrompe. — Você estava certa.
Levanto as sobrancelhas. Essa é nova.
— É, eu falei isso. Você estava certa — Re’ni repete. — E se
resolvermos isso tudo sem nos matarem, eu vou me entregar para o Conselho.
Okay. Acho que é melhor eu sentar.
— Como é que é?
Ele revira os olhos.
— Você ouviu. Quando se aproximaram de mim pela primeira vez
oferecendo sumir com minha sentença, desde que eu fosse trabalhar nas
divisões diplomáticas, parecia o melhor acordo do mundo. Mas eu estava
devendo um favor para eles.
Bufo.
— E um favor virou vários — resmungo.
Re’ni assente.
Idiota. Idiota ingênuo. Até parece que ele foi criado entre os drillianos,
sem ter a menor noção do que esse tipo de coisa vira. Na verdade, acho que
nem os drillianos são tão ingênuos.
— O que é que você tinha na cabeça? — Pergunto.
Ele dá de ombros.
— Como você diria, merda.
Fecho a boca com um estalo. Às vezes é uma bosta quando alguém me
conhece bem. Eu ia falar exatamente isso se ele não respondesse.
Respiro fundo e apoio a cabeça no encosto do sofá, olhando para o teto.
— Por que é que você veio falar isso justamente pra mim?
Re’ni demora tanto a responder que abaixo a cabeça e olho para ele.
— Porque você foi quem mais se ferrou por causa das minhas merdas.
Eu acho que preciso mandar uma mensagem para Gabi conferir se não
tem um meteoro acertando a Terra ou algo assim, porque Re’ni – Lucas –
falando uma coisa dessas é sinônimo de fim do mundo.
— Você sabe que minha única resposta vai ser um “não faz mais que sua
obrigação”, não é? — Pergunto.
Porque, realmente, se entregar é o mínimo que ele pode fazer depois
disso tudo.
Ele assente.
— Sei. Mas mesmo assim você merece saber.
VINTE E UM
Nem me dou ao trabalho de sair do lugar. Esse sofá é confortável e não
tenho mais nada para fazer mesmo. De alguma forma, essa conversa com
Re’ni gastou minha raiva. Não esperava por isso. Tanto não esperava que
ainda estou desconfiada. Mas isso sempre foi uma coisa dele: quando Lucas
percebe que está errado ou fazendo merda, ele admite e tenta consertar. Dessa
vez ele passou de todos os limites, fato, mas não é algo completamente
impossível. O que não quer dizer que vou relaxar perto dele. Isso, nunca
mais. Não mesmo.
— Você não vai me perdoar, não é?
Olho para Re’ni. Ele podia ter continuado calado.
Ele suspira.
— Certo, entendi, não precisa me dar a resposta que pensou.
Ótimo. Agora eu achei vantagem ele me conhecer bem. Me poupa de dar
uma resposta daquelas, porque preguiça. O que é que eu tinha pensado, sobre
ele se encaixar perfeitamente no papel de macho escroto de um filme? Re’ni
sabe muito bem o que eu penso que devia acontecer com todos eles. Ele pode
até se entregar. Isso não vai mudar o que ele fez. Pode até ser que ele tenha
aprendido a lição e tudo mais, eu posso até acabar perdoando ele... Mas
nunca vou confiar de novo.
— Então... Você e Ei’ri...
Coloco uma mão no rosto. Qual a necessidade de insistir? Estava tão
bom enquanto ele estava calado...
— Aconteceu uma vez e só — resmungo e olho para Re’ni. — Só o
suficiente para eu aprender a reconhecer quando estão me usando de
lanchinho.
Re’ni tem o bom senso de parecer desconfortável. Ótimo.
Até porque, depois da cena em Im’liah’ka, eu duvido que aconteça
qualquer coisa de novo. Já basta um drilliano na minha lista de dedo podre.
Não vou repetir essa cagada.
— Uma vez e só? — Ele repete. — Nem vem com essa, Carol, eu te
conheço. Fomos amigos quantos anos mesmo antes de...?
Ele para quando olho para ele. Muito bem. Agora falta só entender o
recado e ficar calado. Puta que pariu. Cara inconveniente. Se eu não estivesse
com tanta preguiça de levantar...
— É sério, Carol. Quando é coisa de “uma vez e só”, você não se
aproxima da pessoa. Mal e mal conversa, depois que rola. Quando você
continua de boa com a pessoa...
Eu não tenho que ficar ouvindo meu ex embuste dar palpite no que eu
faço ou devo fazer. Me levanto de uma vez e vou para a porta.
— Converse com ele, está bem? — Re’ni insiste.
Fecho a porta atrás de mim. Muito obrigada, caralho. Agora estou puta
de novo. Argh. Posso matar Re’ni? Não, não posso, porque se fizer isso,
mesmo se disfarçar muito bem, o Conselho vai achar um jeito de botar a
culpa em mim e fazer as alterações não passarem. Merda. Então tenho que
terminar isso aqui primeiro. Depois, quem sabe, faço alguma coisa com ele. E
até convido Gabi para ajudar.
Falando em Gabi... Tiro o celular do bolso. Nada. Estranho. Na verdade,
estranho nada. Ruim, isso sim. Se ela está demorando esse tempo todo para
me mandar as informações sobre Ei’ri é porque existe coisa dele que estava
escondida. Que maravilha de dedo podre.
Dessa vez não passo por ninguém da tripulação enquanto vou para o
quarto. Aliás, agora que estou parando para pensar nisso, isso é um pouco
estranho. Uma nave desse tamanho não tem como ter uma tripulação
minúscula, então eu devia estar vendo pessoas nos corredores, indo para
algum lugar ou coisa assim, até porque tenho certeza de que não somos as
únicas pessoas nesse andar. Pelo que vi da nave, a maioria dos alojamentos
estão aqui, então a maioria da tripulação deveria estar aqui também. Mas é
raro eu ver alguém. O que eles estão aprontando?
Não, chega. Não é da minha conta. Tenho que colocar um limite na
minha paranoia. Gabi confia neles, está trabalhando com eles há anos, não
tenho porque ficar pensando merda. Se não fosse por Drek, essa missão já ia
ter dado em nada antes de começar. Deixa eles ficarem sumidos.
Entro no quarto e fecho a porta. De que adianta eu querer sair para dar
volta na nave se vou ter que aguentar ex dando palpite na minha vida? Argh.
Vou ficar quieta aqui. Melhor. E pelo menos assim não tem perigo de eu
encontrar com Ei’ri quando ele voltar para a nave.
Me estico na cama, sem nem tirar as botas. Isso. Vou ficar aqui e ponto,
melhor.
Acordo com o apito da porta. Puta que pariu, como que desativa essa
coisa? Viro para o lado. Não vou responder. Não, espera. Pode ser Talita com
informações.
Rolo na cama e bato a mão no painel. A imagem de Ei’ri parado na porta
aparece. Ah, não. Não mesmo.
Me sento e paro, com a mão quase apertando a opção que vai abrir o
som para quem está do lado de fora. Não. Isso merece ser cara a cara.
Abro a porta e dou um passo para fora.
— O que você quer?
E se soei grosseira, foi de propósito.
Ei’ri dá um passo para trás e levanta as mãos. Ele ainda está sem camisa
e usando aquela calça justa, mas nem um tanquinho vai melhorar meu humor
agora. Se for para ver alguma coisa interessante, posso fazer uma busca por
imagens. Tem a vantagem de que as imagens não vão tentar me enganar.
— Ei, sou eu — ele fala. — Não precisa disso tudo.
Levanto uma sobrancelha.
— Não?
Ele olha para os lados antes de me encarar.
— O que aconteceu?
Sério mesmo? Precisa perguntar?
— Deixa eu ver... Investidores?
Ei’ri continua me encarando como se isso não fosse nada demais.
— Estava tentando conseguir informações também, já que as dançarinas
não queriam falar conosco.
Sensatas, elas, na verdade. E já que ele insiste...
— Investidores não estariam conversando de boa com alguém que não
fosse conhecido ou que não tivesse potencial para ser tornar um parceiro de
negócios. Não ali. Fiz minha pesquisa, esqueceu?
Começo a cruzar os braços e paro. Não. Como é aquela coisa de que
cruzar os braços é uma postura defensiva? Não estou na defensiva aqui. Ele é
quem deveria estar.
Ei’ri olha para os lados de novo. E eu pensando que eu era a paranoica
aqui...
— Podemos conversar? — Ele pergunta.
Fecho a porta atrás de mim e começo a ir na direção do elevador. Escuto
o suspiro de Ei’ri atrás de mim, mas não me viro para conferir se ele está me
acompanhando. Se quiser vir, bem, senão, que se foda.
Ele entra no elevador atrás de mim.
— Precisa mesmo de tudo isso?
De ir atrás de outro lugar para conversar?
— Sim.
E se eu der sorte Re’ni já vai ter saído daquela sala onde estávamos,
porque é o único lugar que consigo pensar para ir. Se bem que se for o caso
sempre posso sair abrindo portas e tentando achar outra sala.
Ei’ri não fala mais nada enquanto saio para o corredor e vou direto para
a tal sala. Abro a porta. Vazia. Perfeito. Ele entra atrás de mim e fecha a
porta.
— O que você viu...
Ah, não.
— Se você soltar um “não é o que você está pensando”, eu vou só cair
fora daqui.
Ele suspira e passa uma mão pelo cabelo antes de se sentar. Acho que ia
falar exatamente isso. Filho da puta. Não tem como aquilo ter sido outra
coisa. Simplesmente não tem.
Meu celular apita. Tiro ele do bolso e desbloqueio a tela. Tem um
arquivo novo e uma mensagem.
Gabi: Isso é tudo que consegui. Não tinha puxado tudo antes porque ele
foi indicado por Isla. Ela continua dizendo que ele é confiável, mas é melhor
você ver por si mesma.
Bem na hora.
Olho para Ei’ri.
— É a sua chance de contar o que está escondendo.
Ele sorri.
— E se eu mentir vai me apagar do mesmo jeito que fez com Re’ni?
Está achando que estou brincando, é?
— Se precisar, sem pensar duas vezes.
O sorriso desaparece de uma vez. Ótimo.
Ei’ri balança a cabeça.
— Kradisla já tinha me avisado que ia ser difícil trabalhar com você e eu
percebi isso quando sua prima fez aquela entrevista comigo, mesmo que já
tivesse sido aprovado para a missão. Mas não pensei que seria impossível
fazer qualquer coisa sem voltar à estaca zero e ser tratado como um inimigo.
Difícil? Posso até ser, mas não é à toa. E se eu estivesse tratando Ei’ri
como um inimigo, não estaria aqui agora.
— Experimente ser usado por alguém em quem confiava e depois me
conta — resmungo.
Ele suspira e dá de ombros.
— Não estou te julgando. Provavelmente, se fosse eu no seu lugar, não
ia querer saber de nada com o Acordo pelo resto da vida.
É, eu pensei nessa possibilidade. Mas com essas escamas que ganhei de
presente, não tive muita opção.
Não falo nada. Se ele demorar demais a responder, sempre posso só
conferir o arquivo que Gabi me enviou.
Ei’ri suspira de novo e se inclina para a frente, apoiando os cotovelos
nas pernas.
— O nome Vertan é respeitado entre os drillianos. Também somos uma
família antiga. Não tanto quanto Arcen, mas antiga o suficiente. A maioria
das famílias antigas se espalhou e tem ramos em todas as nossas colônias. É
um dos motivos para eu nunca ter tido contato com Re’ni. A família dele é
uma das que está distante da linha principal.
Respiro fundo. Já sei para onde isso está indo e não estou gostando nem
um pouco.
— Minha família é próxima da linha principal. Isso quer dizer que temos
dinheiro o suficiente para um investidor que conheça o meu nome me levar a
sério.
Pelo menos ele não é o herdeiro da linha principal da família. Se fosse eu
realmente ia ter o momento “alguém por favor me acorda que eu só posso
estar tendo um sonho de enredo clichê ruim”.
— E isso continua não sendo explicação de por que você estava
conversando com investidores. Como era aquela coisa de ir atrás dos nomes
grandes e deixar os pequenos sem saber que estávamos atrás deles?
Ele assente, sério.
— Eu estava atrás de informações, mas não dessa missão.
Oi?
— Re’ni te contou que vai se entregar quando voltarmos? — Ele espera
eu assentir antes de continuar. — Ele tem informações que não estão ligadas
a essa investigação, mas que são importantes para os drillianos. Se ele se
entregar, não vai sobrar ninguém sabendo sobre isso. Re’ni me passou o que
já sabia e me apontou as pessoas que poderiam confirmar os dados.
Espera.
— Outra missão?
Ei’ri balança a cabeça, olhando para baixo.
— Não é uma missão. São só informações que não podem ser perdidas e
que alguém precisa acompanhar. Não é nada ligada ao comércio de
terráqueas.
Certo. E então por que a mensagem de Gabi estava com aquele tom de
“você não vai gostar nem um pouco disso”? Continuo calada, esperando.
Tenho certeza que tem mais.
— Se você abrir os arquivos da sua prima, vai ver que minha família tem
conexões diretas com o representante drilliano no Conselho. Foi por isso que
me aceitaram como consultor, mesmo que não fosse das divisões
diplomáticas. Posso não ter trabalhado lá, mas recebi o mesmo treinamento
básico que todos das famílias tradicionais recebem, focado em diplomacia.
Isso está ficando bom demais. Devia ter imaginado que tinha mais coisa
nessa história de terem aceitado alguém que trabalhava para uma mercenária
como consultor.
Ei’ri continua olhando para baixo, mas não fala mais nada.
— Já começou, agora termine — falo.
Ele olha para mim.
— O quê?
— Tem mais. Se não você não estaria tão concentrado em encarar o
chão. O que é que não falou?
Ele se endireita e me encara.
— Os Vertan, assim como os outros drillianos em todos os níveis do
Conselho, foram os principais opositores das alterações nas leis.
Respiro fundo. Por que é que isso não me surpreende?
VINTE E DOIS
Ei’ri continua encarando o chão. Okay, a família dele ter sido uma das
que estava contra as alterações não é nenhuma surpresa mesmo,
especialmente depois que ele contou isso de ser uma família antiga. Me
julgue, tenho implicância com famílias “tradicionais”. E até hoje não tive
nenhum motivo para mudar de ideia sobre isso. Mas se tem uma coisa que eu
aprendi é que família não quer dizer tudo. Assim, eu sou mineira. Quer mais
“família tradicional” que isso?
— E o que você estava fazendo enquanto sua família estava falando
merda?
Ele levanta a cabeça. Oi, surpresa. Porra, eu posso ser o cúmulo da
paranoia, especialmente com drillianos, mas não sou uma idiota. É só olhar o
que ele fez até agora para ver que as coisas não encaixam tão fácil assim.
— Estava trabalhando para Kradisla — ele murmura.
Imaginei.
Balanço a cabeça e me sento no sofá de frente para ele. Eu até poderia
pensar que ele está fazendo mais alguma jogada para me manipular ou coisa
assim, mas não tem como ele saber que falar isso ia adiantar alguma coisa.
Nem Lucas, antes de ser um cuzão, sabia que Gabi tinha se afastado da
família quase toda justamente por causa desse tipo de coisa. Família
tradicional demais. Ela praticamente não tem contato com ninguém até hoje.
Meus pais não são tão problemáticos quanto os dela, pelo menos, mas sei
exatamente do que ele está falando.
— Certo, agora vai parar de drama e me contar o que está acontecendo?
Ei’ri me encara de boca aberta. Levanto as sobrancelhas e ele balança a
cabeça, se endireitando e depois se inclinando para a frente de novo. Rá! Isso
é que eu chamo de pegar alguém de surpresa.
E preciso admitir que é um tantinho irritante que ele tivesse tanta certeza
assim de que eu não ia entender essa merda. Ele está pensando que eu sou o
quê, hein?
Ele balança a cabeça de novo e respira fundo, encarando o chão. Isso já
está ficando cansativo.
— Isso realmente não tem nada a ver com essa missão — ele começa. —
Tem a ver com o comércio de mulheres terráqueas, especificamente, mas não
de forma direta. É só uma consequência, por assim dizer. Não vai dar os
nomes que precisamos, da mesma forma que quando sua prima conseguiu
provar o envolvimento de Arcen, não conseguiu ligá-lo a nada maior no
esquema.
Reviro os olhos. Precisa mesmo dar esse tanto de voltas?
— Então Arcen estava atrás de mulheres terráqueas por causa de outra
confusão. Okay. Isso realmente explica porque ir atrás dele não deu em nada.
O que eu não entendo é como justamente Re’ni foi ficar sabendo disso.
Porque ele é o cara que cresceu na Terra e não tinha contatos no Acordo.
Bem conveniente isso, se quer saber. Conveniente até demais.
Ei’ri balança a cabeça de novo, me encarando. Puta merda, já deu, pode
deixar a surpresa passar.
— Eu não fui indicada como a representante da APLA só porque sou
prima de Gabi, sabe? — Resmungo. — Pode dar uma olhada na minha ficha.
Ele respira fundo.
— Certo. Me desculpe. Eu realmente esperava... — Ele dá de ombros.
— Outra reação, com certeza.
— O quê, um barraco?
Ei’ri me encara como se eu estivesse falando outra língua. Certo. Gírias
e tradutor não combinam.
— Uma confusão — explico.
— Algo assim.
— Sinceramente? Eu estou mais puta com vocês dois me deixando sem
saber de nada do que qualquer outra coisa. Isso é estupidez. Simples assim.
Estupidez. E se desse alguma coisa errada? E se fosse uma armadilha?
Ele balança a cabeça.
— Eles não tinham motivos para suspeitar de mim, por causa de todo o
histórico familiar.
Respiro fundo e solto o ar devagar.
— E é por isso que uma garota da Terra chegou no Acordo e em questão
de horas resolveu um problema que os rhergari estavam tentando dar um jeito
há sei lá quantos anos.
Ei’ri me encara sem falar nada.
— Não importa se têm motivos ou não. Se vai fazer alguma coisa, você
pensa nas piores possibilidades e se prepara para o caso delas acontecerem,
por mais improvável que seja. Você não confia no melhor cenário possível.
E é por isso que ninguém nunca chegou a lugar nenhum investigando o
comércio de mulheres. Se esse é o normal para os aliens, nenhuma surpresa.
O que é surpreendente, na verdade, é que alguém no meio desse esquema
pensou em se preparar para a pior possibilidade porque foi exatamente isso
que quem está por trás dessa merda toda fez. Os dados financeiros apagados e
a criação de um lugar seguro para discutirem os negócios não exatamente
legais pessoalmente – Im’liah’ka – sem correr o risco de ter nada gravado são
um planejamento assim.
— E se você está trabalhando em equipe, você não coloca a confiança da
equipe em jogo — continuo.
— Eu não...
Estreito os olhos. Ei’ri suspira.
— Eu sabia que isso ia acontecer. Me desculpe.
Assinto. Muito melhor assim.
— E dizem que eu tenho problemas para confiar... — murmuro.
Ele dá uma risada seca.
— Você não é drilliana. Confiar em alguém de fora não é natural.
Ah, claro.
— Típico. “O outro”. Imagino que isso deve ter funcionado bem quando
estava trabalhando com Kradisla.
Ei’ri passa uma mão pelo cabelo e apoia a cabeça no encosto do sofá.
— Se quer histórias sobre estupidez, é só perguntar para Kradisla. Ela
vai ter uma lista enorme para você.
Rio. Nisso eu com certeza acredito. Ainda não consigo imaginar um
drilliano trabalhando em um bando de mercenários. Deve ter sido hilário no
começo. Irritante pra porra, óbvio. Mas depois as histórias com certeza
ficaram divertidas, pela pura idiotice da coisa toda.
Se bem que... Para ser honesta, não foi só ele quem foi idiota dessa vez.
Merda.
— E eu não devia ter apelado daquele jeito. Exagerei. Me desculpe.
Ele levanta uma sobrancelha.
— Posso pensar que perdeu a cabeça assim porque está começando a
confiar em mim?
Estreito os olhos.
— Não precisa ficar convencido.
Ele sorri. Mesma coisa que falar “fique convencido”. Certo. Não que
Ei’ri esteja errado... Eu pirei justamente por isso. Estava achando que podia
confiar nele, e tomei aquele tapa na cara. Que poderia ter sido evitado se ele
não tivesse sido uma anta e falado comigo antes, até mesmo para o caso de
alguma coisa dar merda.
Mas eu vou tirar esse sorrisinho da cara dele.
— Na verdade, foi mais porque eu passei o tempo todo que estávamos lá
dentro pensando em voltar para a nave e te arrastar para dentro do quarto. —
Encaro o tanquinho de Ei’ri. — Tinha que fazer planos, senão ia acabar
entrando no meio de algum casal ou grupo que estava naquelas alcovas.
Ei’ri me encara, de boca aberta. Muito melhor assim. Sorrio.
Ele respira fundo e solta o ar devagar. Não vou rir. Não vou.
— Puta merda, mulher, dê um aviso antes de falar uma coisa dessas.
Me inclino para trás e cruzo os braços.
— O quê? Que queria entrar no meio de alguns casais nas alcovas? É
verdade. Fiquei bem curiosa sobre algumas coisas que estavam fazendo, sabe.
Tem coisas que simplesmente não são possíveis com anatomia humana.
Ele respira fundo de novo.
— Você está fazendo isso de propósito.
Jura?
— Eu? Imagina.
Ei’ri me encara. Não consigo segurar minha risada.
— Você é um perigo — ele resmunga.
— Mas nem falei nada demais! Se eu tivesse comentado alguma coisa
sobre...
Ele se levanta de uma vez e dá a volta na mesinha de centro. E a calça
justa dele me deixa ver exatamente o que ele está pensando dessa conversa.
Passo a língua pelos lábios e Ei’ri grunhe alguma coisa. Minha vontade é rir
de novo. Tão fácil de provocar...
Ei’ri para na minha frente.
— Posso? — Ele pergunta.
Sorrio e o puxo pelo cós da calça. Gosto disso. Gosto bastante disso.
Ele apoia as mãos no encosto do sofá, uma de cada lado da minha
cabeça. Ahh, podia ter caído em cima de mim. Eu não ia reclamar. Não
mesmo.
— Eu tinha outra ideia depois que que vi em Im’liah’ka, sabe... — Ei’ri
comenta, ainda se segurando.
Estreito os olhos. Ele sorri. Perigo. Esse sorriso, puta merda.
Puxo o cós da sua calça de novo. Ei’ri grunhe alguma coisa mas não sai
do lugar. Certo, então. Vamos ver quanto tempo ele aguenta. Solto sua calça
e desço a mão um pouco. Ele já está duro, e olha que eu nem falei nada
demais mesmo. Imagina só se tivesse provocado para valer.
Isso é bom. Quer dizer que eu realmente não era a única com ideias.
Ei’ri puxa o ar com força e fica imóvel. Desço a mão mais um pouco e
subo de novo, apertando de leve. Ele abaixa a cabeça e resmunga alguma
coisa que não entendo.
— Vai ficar parado aí? — Pergunto.
Dessa vez tenho certeza que a resposta é um palavrão. Paro, sem tirar a
mão do lugar. Ele respira fundo algumas vezes e balança a cabeça, mas isso
não é uma resposta. Sorrio. Pelo visto alguém estava se sentindo bem
torturado dentro da boate também.
— Você não dá uma chance... — Ele para e respira fundo de novo, antes
de abaixar a cabeça e me beijar.
Ei’ri não está me tocando, é só sua boca na minha, e mesmo assim estou
arrepiada, o puxando pela cintura como se minha vida dependesse disso. Não
quero só um beijo. Quero as mãos dele em mim, essa boca explorando o resto
do meu corpo, quero tudo dele. Mordo seu lábio quando ele começa a se
afastar e Ei’ri geme.
— Não — ele murmura.
Paro. Como assim, não? Ele balança a cabeça, ainda tão perto de mim
que consigo sentir sua respiração.
— Da última vez foi como você quis. Desta vez... — Ei’ri respira fundo.
— Desta vez quero que seja do meu jeito.
Mordo meu lábio, sem desviar os olhos dos dele. Isso não parece ser
uma má ideia, mas gosto da expectativa. Da expressão dele enquanto espera
uma resposta, como se precisasse fazer esforço para continuar onde estava,
sem me tocar.
— Carol...
Passo um dedo pelos seus lábios. Meu. Todo meu. Eu adoro isso.
Inclino a cabeça para trás no encosto do sofá e abro os braços.
— Fique à vontade.
Ele puxa o ar com força antes de se abaixar, me beijando de novo.
Seguro sua nuca. Se a ideia dele é só me beijar, então vai ficar fazendo isso
por um bom tempo, no mínimo. Não que isso seja ruim, porque puta merda, o
que Ei’ri faz com essa boca e com essa língua...
Ele puxa minha mão a segura contra o sofá. Levanto a outra mão. Ele se
afasta e estreita os olhos.
— Ei!
Não era para parar!
— Um dia eu ainda te faço aprender a ter paciência — Ei’ri murmura.
Sorrio. Se ele está resmungando isso, quer dizer que parou por um ótimo
motivo.
— Paciência para quê? — Pergunto.
Ei’ri grunhe alguma coisa que não entendo e puxa minha blusa para
cima. Agora está falando minha língua. Arqueio as costas quando ele para,
encarando meus seios. Tento soltar a mão e ele aperta meu pulso. Certo
então. Um pouco de paciência. Posso tentar.
Ele me solta e se ajoelha no chão, se inclinando para a frente. Isso. Ele
chupa um dos meus mamilos enquanto suas mãos passeiam pelas minhas
pernas. Droga, eu não devia ter trocado de roupa. Se ainda estivesse de saia...
Gemo e abro mais as pernas quando Ei’ri aperta a parte de dentro da minha
coxa. Ele continua a chupar meu mamilo, mordendo de leve e brincando com
a língua, o tempo todo massageando minhas pernas. Puta que pariu. Ele
realmente pode fazer o que quiser comigo, porque tudo o que faz... Meu
Deus, caralho, que boca, que mãos.
Ei’ri solta meu mamilo ao mesmo tempo em que dá um puxão na minha
calça. Isso! Estou amando a ideia dele. Amando mesmo.
Escuto uma risada alta e sibilante. Merda. Merda, merda, merda.
Estamos em uma nave de mercenários, no meio de uma missão. E em uma
sala que qualquer um pode entrar.
Seguro Ei’ri pelo cabelo e levanto sua cabeça.
— Para o quarto, agora. E aí você termina isso.
Ele sorri e lambe os lábios. Puta que pariu, eu estou fodida. Da melhor
forma possível.
VINTE E TRÊS
Ei’ri joga um braço por cima das minhas costas. Até penso em me
afastar, mas não. Está bom assim. Pode ficar com braço por cima de mim,
sem problemas. Continuo estirada de bruços na cama.
— Então você gosta de coisas diferentes — ele comenta.
De que ele está falando? Ah. Meu comentário sobre os aliens em
Im’liah’ka.
Dou de ombros e me mexo o suficiente para virar o rosto para Ei’ri. Ele
aperta minha cintura e continua me encarando. O que foi? Até parece que ele
está preocupado... Eu até poderia cantarolar um “você é normalzinho mas eu
gosto de você”, mas não vai ter graça porque ele não conhece a música.
Droga, agora vou ficar com ela na cabeça.
— O normal não tem graça — murmuro.
Ei’ri sorri e levanta uma mecha do meu cabelo. É, isso também.
— Aceito sugestões para a próxima cor, na verdade. Acho que cansei do
rosa.
Ele ri e me puxa para mais perto. Rolo na cama e paro deitada no braço
dele. Estou começando a pensar que estou confortável demais com Ei’ri. Isso
definitivamente não estava nos planos.
— Acho que decolamos — comento, olhando para o monitor na parede.
Quando voltamos para o quarto, ele estava mostrando o espaçoporto do
planetoide. Agora, só estou vendo estrelas distantes. Assim, é uma leve
impressão de que decolamos. Bem distante.
Ei’ri se vira para o monitor.
— Vocês decidiram para onde ir? — Ele pergunta.
Isso é uma das coisas dele que eu gosto: Ei’ri não tem a menor frescura
de “ai, não é hora de pensar em trabalho”. Levando em conta o que estamos
fazendo, o trabalho é a prioridade. Ele entende isso. Por incrível que pareça,
conheço caras demais que não conseguem enfiar isso na cabeça. E isso inclui
alguns colegas de trabalho na APLA, que sempre reclamam de namoradas
dando prioridade para alguma coisa que não seja eles, mesmo que eles
tenham horários insanos e na maior parte do tempo nem se lembrem que elas
existem.
— Não. As dançarinas me deram alguns nomes, mas só isso, sem mais
informações ou provas. Talita estava conferindo os dados.
E isso quer dizer que é hora de sair da cama. Me sento e começo a
procurar minhas roupas. Aliás, acho que preciso de um banho.
— Vocês terráqueas se adaptam em qualquer lugar, não é? — Ele
pergunta.
Olho para trás. Ei’ri também se levantou e está pegando suas roupas.
Tenho que parar de encarar enquanto ele se veste, mas isso é um pouco
complicado.
— Mais ou menos. — Dou de ombros e paro na porta do banheiro. —
Conheço muita gente que não ia se dar tão bem aqui, tanto é que Gabi
mandou a maioria das mulheres resgatadas de volta. Mas sempre tem as
loucas...
E me considero uma delas, muito obrigada.
— A gente se encontra no corredor? — Pergunto.
Ei’ri assente.
— Quer que eu avise...?
Ele não precisa terminar a pergunta. Devia ser algo óbvio, mas nada com
Re’ni está sendo simples. Não sei se é seguro contar nossos planos para ele.
Ele pode até estar planejando se entregar, mas não faço a menor ideia do que
pode fazer até lá.
— Melhor não — respondo.
Ele assente de novo, antes de sair do quarto.
Bom, pelo menos é um consolo que Re’ni não deu um chilique de ex por
eu estar pegando seu primo. Uma dor de cabeça a menos para mim, mesmo
que ainda ache isso estranho. Mas não faço questão de entender.
Quando saio do quarto, depois de tomar um banho rápido, Ei’ri já está
encostado na parede do corredor. Ele olha para trás e balança a cabeça, antes
de começar a andar na direção do elevador. Certo. Cair fora daqui depressa
antes de Re’ni resolver sair. Se é que ele está no quarto. Pode muito bem
estar andando pela nave. Espero que Drek tenha sido paranoico o suficiente
para nos colocar sob vigilância enquanto estamos andando por aqui. Okay, é
bem possível que ele tenha feito isso mesmo, levando em conta o tanto que
ele estava preparado para tudo que aconteceu até agora. Ótimo. Melhor
prevenir.
O elevador se abre assim que entramos no corredor e Talita sai de dentro
dele. Ela olha para nós, suspira, e volta para dentro, segurando a porta aberta.
Já falei que ela tem um timing perfeito, no pior sentido da palavra? Se nós
dois tivéssemos pensado em aproveitar mais uns minutinhos ela teria nos
interrompido.
— Tenho informações, não sei se vão gostar — ela fala assim que
entramos no elevador.
— E alguém gostou de alguma coisa desde o começo disso tudo? —
Resmungo.
Ela ri e não fala mais nada.
Vamos direto para a sala de controle e Talita liga um dos monitores.
Uma lista de nomes e informações já está na tela.
— Eu falei com Gabi e ela me ajudou a conseguir os dados. A maioria
dos nomes que você me passou é de pessoas que já morreram. Alguns nem
estavam vivos mais na época que Im’liah’ka foi criada. — Ela aponta para
dois nomes impronunciáveis. — Mas se a questão é descobrir quem começou
com o comércio de terráqueas, as datas são recentes demais.
Balanço a cabeça. Já pensei nisso.
— As abduções acontecem há tempo demais. Seria impossível descobrir
quem começou. O importante é quem transformou isso numa operação
organizada, ao invés da coisa esporádica que era antes.
Talita assente.
— Nesse caso, as datas batem. Quatro deles tiveram uma mudança
financeira brusca cerca de trinta anos padrões atrás. Isso é bem antes de
Im’liah’ka...
— Mas bate com os registros da APLA de quando os
“desaparecimentos” inexplicáveis se tornaram mais comuns — interrompo.
— Exato.
Escuto a porta se abrindo e olho para trás. Drek entra na sala, já
encarando o monitor com os dados. Impressão minha ou ele está parecendo
cansado? Se ele fosse humano, eu diria que está há pelo menos dois dias sem
dormir, mas sendo krijkare, não tenho certeza.
— Você vai ter que falar com Suelen — Talita fala e se vira para trás.
É, pela forma como Talita estreita os olhos, acho que eu estou certa.
Tem alguma coisa acontecendo aqui. E nem me surpreendo quando Drek
balança a cabeça e ela suspira. Já notei que, o que quer que seja, não vão
comentar conosco.
— Por que precisam de Suelen?
Talita indica o monitor com a cabeça.
— Não de Suelen. Dos contatos dela. Eles vão ter que ir em Nassi.
Drek xinga. Preciso de upgrade no meu tradutor, deve ter alguma coisa
que reconheça palavrões por aí, porque já estou cansada de não entender o
que estão falando. Aposto que seria interessante.
Ele apoia uma mão no encosto da cadeira de Talita e se inclina para a
frente, encarando o monitor.
— Esses dados...?
— Literalmente tudo o que existe sobre eles na rede — Talita
interrompe. — Gabi me repassou o que encontrou.
Drek não fala nada enquanto lê o que está na tela. Olho para Ei’ri, que dá
de ombros. Okay. Posso esperar para saber mais sobre Nassi. Dois
minutinhos não vão me matar.
Ficamos em silêncio, esperando.
Drek suspira.
— Nassi. Não tem outro jeito.
Minha hora, então.
— Tá, o que é Nassi?
Ele olha para mim.
— Um antro do submundo. O tipo de lugar onde você encontra tudo que
está disponível no mercado negro. E quando eu falo tudo, é tudo.
Engulo em seco. Isso não parece nada demais, mas pela forma como ele
falou...
Tudo. Inclusive mulheres terráqueas. Puta que pariu. É para lá que temos
que ir mesmo.
— Nós acabamos de sair de um planetoide que vocês descreveram como
antro do submundo. Não tem como ser muito pior, tem?
Drek balança a cabeça.
— Nunca faça essa pergunta.
Okay. Entendi.
— O que Talita falou, sobre chamar Suelen... — Ei’ri começa.
— Suelen é outra terráquea, que passou um tempo aqui com o bando de
Drek — Talita conta. — Atualmente ela está trabalhando como “agente
independente”, como ela diz, mas ainda tem contatos em Nassi.
— Contatos melhores que os meus — Drek completa e olha para Talita.
— Está pensando que podem ter mais informações?
Talita dá de ombros.
— Dizem que Pryinala sabe tudo o que existe para se saber sobre
qualquer pessoa.
Pisco. Oi? Eu ouvi certo? Pryinala? Esse nome até eu conheço, mas
pensei que fosse uma lenda, exagero, coisa assim. O que sei é que existe uma
mulher no Acordo que trabalha com venda de informações. Ela não é a única,
obviamente, mas é a melhor. Dizem que, se ela não tem uma informação, é
porque a informação não existe ou é falsa. Ela tem informantes e espiões
espalhados por todo o Acordo, é procurada por uns tantos governos, mas
ninguém nunca conseguiu provar se ela realmente existe.
— Ela negociaria com Suelen — Drek assente e olha para mim. — E
provavelmente negociaria com uma terráquea afetada pelas habilidades
drillianas.
Não sei se isso é um insulto ou um elogio, então não falo nada.
Ei’ri coloca uma mão no meu braço.
— Pelo que já ouvi falar, Nassi é o tipo de lugar que até mesmo os
mercenários evitam. Kradisla tinha negócios lá, quando começou, mas faz
anos que se afastou, depois de um acidente que ninguém na sua tripulação
comenta a respeito.
Drek assente.
— Nem eu tenho contatos lá. Sempre preferi ficar longe dos negócios de
Nassi, é mais seguro assim. Vocês vão estar por conta própria.
Fecho as mãos, sentindo os anéis dos mini-tasers nos meus dedos. Drek
foi um pirata por anos e nem ele vai em Nassi. Caralho. Isso vai ser bem pior
que o planetoide de Im’liah’ka. Não que a gente tenha alguma opção. Quer
dizer, é ir atrás de provas lá, ou desistir.
Olho para Ei’ri. Ele assente e segura minha mão.
— Então vamos para Nassi.
VINTE E QUATRO
Nassi não é o que eu esperava. Tá, eu não faço a menor ideia do que eu
esperava, mas caralho, com certeza não era um entreposto no meio de um
campo de asteroides. A pessoa tem que ser um pouco suicida para inventar de
vir aqui. Tenho minhas suspeitas de que, se Suelen não tivesse passado os
dados de navegação, Drek teria se recusado a nos trazer. E eu nem ia julgá-lo
por isso. Mesmo sabendo a trajetória segura, quase tive um treco enquanto
estávamos atravessando os asteroides.
Pelo que entendi, Nassi na verdade são vários mercados espalhados por
alguns asteroides próximos. A diferença principal entre eles é a gravidade, já
que eles têm áreas com atmosferas diferentes dentro de cada asteroide.
Obviamente os mercados de terráqueas em Nassi ficam no asteroide com
gravidade mais próxima da Terra.
Suelen disse que se encontraria conosco em Nassi – estava longe demais
e vindo de outra direção, então não valia a pena esperarmos por ela. Um dos
seus contatos de confiança se encontraria conosco lá. Eu ainda acho
engraçado ela chamar alguém que vive em Nassi de “contato de confiança”,
depois do que me contaram sobre o lugar, mas cada louco com sua loucura. E
o tal contato é um khanerri – uma das espécies que normalmente evita
interagir com o restante do Acordo – chamado Mal-lakri-irra. Porque é que
ainda me surpreendo com essas coisas? Ele se apresentou como Mal e a
primeira coisa que fez foi avisar Drek para não abastecer a nave usando o
terminal do espaçoporto. E logo depois encarou Drek dos pés à cabeça e
avisou que era melhor ele não vir conosco. Okay, estou ficando boa em fingir
que não notei que estão escondendo alguma coisa de mim, paciência. Puta
merda, ainda vou descobrir o que é que está acontecendo na nave de Drek e o
que isso tem a ver com Nassi. Pode ser um passatempo para depois que isso
terminar.
Ou seja: estamos saindo para as ruas de Nassi sozinhos. Eu, Ei’ri, Re’ni
– que ainda está puto por termos decidido vir para cá, mas que não aceitou
ficar na nave – e Mal.
— Como vocês são novatos aqui, acho que merecem uma bebida de
boas-vindas — Mal fala assim que entramos em uma das ruas propriamente
ditas.
Assim que saímos do cubículo fechado onde a nave pousou, demos de
cara com um corredor enorme, com várias portas dando para outros cubículos
– vagas individuais – e alguns elevadores do outro lado. A parede desse lado
é de vidro, então eu já estava esperando a mistura de paredes escuras e luzes
coloridas das ruas. A área ao redor dos elevadores é praticamente deserta.
Terra de ninguém, como Mal chamou. E eu prefiro não imaginar porque ele
usou essa expressão.
Encaro a rua na nossa frente, com prédios escuros que vão literalmente
até o teto e pontes estreitas entre os andares superiores, além de várias
lanternas coloridas dependuradas nas paredes e alguns letreiros brilhantes.
Certo. É estranho, mas não tanto quanto eu esperava.
— Isso é uma perda de tempo — Re’ni resmunga.
Mal olha para ele e então se vira para mim.
Okay. Uma bebida de boas-vindas parece uma perda de tempo. Mas o
recado de Suelen deixou claro que Mal era de confiança, e ele vive em Nassi,
enquanto nós não fazemos a menor ideia de nada aqui. Não sou idiota.
— Uma bebida, então — falo.
Mal assente e volta a andar.
Faço um esforço para não parecer uma turista deslumbrada enquanto o
acompanho. Mas é difícil, viu. Bem difícil. Pensei que tinha visto todo tipo
de aliens naquela sala do Conselho e no planetoide de Im’liah’ka, mas Nassi
leva a questão variedade a outro nível. Isso sem mencionar as vitrines de
algumas das lojas – se é que posso chamar os painéis expondo mercadorias
de vitrines. Acho que uma janela enorme com vidro não seria algo muito
seguro aqui. Tem de tudo aqui, desde comida e bebida até armas e umas
coisinhas que obviamente são última tecnologia mas eu não faço a menor
ideia do que sejam. E não tenho a menor dúvida de que isso são as
mercadorias genéricas. As coisas boas mesmo não estariam à vista, mesmo
em Nassi.
Entramos em uma rua mais larga e movimentada. Mal gesticula para
ficarmos perto dele, mesmo que seja um pouco difícil perder um cara alto e
de pele cinza de vista. Tá, nem tão difícil assim, levando em conta onde
estamos. Pelo menos não estamos vestidos como todos os outros: de preto ou
cores escuras. Quer dizer, isso é meio óbvio quando se está indo para um
antro do submundo que até membros do submundo evitam, mas é bom saber
que acertamos nisso. E eu quase queria uma capa, só para deixar tudo mais
dramático. Pena que assisti Os Incríveis vezes demais quando era mais nova.
Mal nos leva para um bar que tem várias mesas na rua, todas lotadas.
Certo. Se a ideia dele é conversar ou qualquer coisa do tipo, isso não vai
prestar. Ele balança a cabeça quando Ei’ri começa a andar mais devagar e
entra no bar. Lá dentro? Acho que isso vai ser pior ainda.
O bar propriamente dito é um salão enorme com mesas ocupando o
espaço inteiro e um balcão lá no fundo. Quase paro na porta quando um dos
aliens dá um berro tão alto que preciso fazer um esforço para não tampar os
ouvidos. Aparentemente isso é algo normal, porque ninguém nem se virou
para ver o que era. Puta que pariu.
Mal puxa meu braço e aponta para a parede da direita. Tem algumas
mesas fixas perto da parede, com divisórias de metal entre elas. Melhor que
nada. Assinto e vou para uma que está vazia – o bar está mais vazio que a
rua, aliás, o que não é nenhuma surpresa levando em conta o calor e o cheiro
– conferindo se os dois drillianos estão me seguindo. Desabo no banco, de
costas para a parede, e tento ver onde Mal foi parar. Acho que ele foi na
direção do balcão, mas não consigo ver nada ali. E nem vou perguntar se
Ei’ri ou Re’ni estão vendo. Paranoia, oi, mas não vou falar nada sem saber se
isso aqui é relativamente seguro.
Não demora muito para Mal voltar, carregando quatro canecas. Como
reconhecer alguém que é um bom amigo dos copos: quatro canecas e ele não
derrama nem uma gota nem parece estar tendo problemas. Ele coloca as
bebidas na mesa. Puxo uma caneca. Isso tem um cheiro parecido com
cerveja, mas é mais forte e tem algo estranho.
— Tem certeza que isso é seguro? — Pergunto.
Ele ri.
— É o que Suelen bebe quando está aqui. Diz ela que o resto é forte
demais.
Dou de ombros. Okay, acho que isso quer dizer que pelo menos não é
tóxico para mim.
Os dois drillianos trocam um olhar antes de puxarem a bebida. Mal
levanta sua caneca.
— Bem-vindos a Nassi. Que seu primeiro negócio aqui seja lucrativo.
Levantamos a caneca em resposta e tomo um gole. Ugh. Forte e
estranho. Não tenho certeza de que gostei disso aqui, mas não sou eu quem
está pagando mesmo...
Mal coloca sua caneca na mesa, enfia a mão num bolso e tira um disco
escuro de metal, que coloca na mesa. Tenho a impressão de que ouvi um
zumbido, mas ele desaparece assim que balanço a cabeça.
— Isso não é um bloqueador, então é melhor falarmos baixo — Mal
avisa. — Mas está encobrindo nossa fala. Se ninguém falar nada alto demais,
vai ser impossível nos entender.
Olho para o disco de metal. Quero um desses. Será que consigo
aproveitar e comprar um, já que estamos aqui?
— Antes de qualquer coisa, é melhor vocês saberem que eu sou um dos
intermediários de venda de terráqueas em Nassi.
Solto minha caneca e encaro Mal. Não vai ser muito difícil me inclinar
para segurar o braço dele, se precisar usar os mini-tasers.
Ele sorri.
— Gosto de você, Carol. É das minhas. Mas não precisa ativar seus
tasers. — Mal apoia os braços na mesa. — As terráqueas que passam por
Nassi normalmente são as que foram roubadas por mercenários e piratas.
Antes de prenderem Arcen, atacar naves-mercado era uma das coisas mais
lucrativas por aqui. Depois pergunte seu amigo Drek sobre isso. Nenhum de
nós faz parte do esquema maior do comércio de terráqueas ou pessoas de
outras espécies que não são parte do Acordo. A maioria consegue pensar que
não seria difícil algo assim acontecer com sua espécie, então evitam esse tipo
de coisa.
Tá, menos mal. E preciso me lembrar que esse cara é um contato de
Suelen. Ela trabalha para a força-tarefa, não teria nos mandado direto para
alguém que é parte da merda toda. Agora...
— Se as terráqueas que passam por aqui são só as que foram roubadas,
ninguém vai ter o tipo de informação que precisamos — falo.
Mal balança a cabeça.
— Era o que eu pensava, até Pryinala entrar em contato comigo.
Ei’ri se inclina para a frente e Re’ni fica completamente imóvel. Pryinala
de novo. Ótimo, isso é bom.
— Cada asteroide que é parte de Nassi tem vários níveis, com
configurações de gravidade e atmosfera diferentes o suficiente para qualquer
espécie conhecida poder vir aqui. Além disso, alguns níveis são exclusivos.
Você só entra se for convidado e algumas pessoas passam a vida toda em
Nassi sem nem saber que eles existem.
E ele falou essa última frase um tantinho irritado demais.
— Você? — Pergunto.
Ele grunhe alguma coisa e toma um gole da bebida.
— Eu sempre soube dos níveis exclusivos. Mas não sabia que um deles
era especializado no comércio de mercadoria viva.
E mercadoria viva, no Acordo, quer dizer seres sencientes. Filhos da
puta.
Isso vai dar trabalho pra caralho. Se um dos mercados principais está
aqui, vai ser quase impossível fazer alguma coisa para pará-los. Quer dizer,
Nassi é o mais perto que eles têm de uma terra sem lei – e só não é
completamente sem lei porque eles têm as regras deles, senão isso aqui já ia
ter sido destruído.
Mal assente.
— Pryinala conseguiu acesso ao nível exclusivo. Você vai estar lá como
sua representante.
Certo. Só que não.
— E convidaram justamente alguém que vende informações?
Não sei não, isso está me cheirando mal.
Ele sorri.
— Você fala isso porque se esquece que Pryinala tem informações sobre
as pessoas que controlam os níveis. Ou eles acreditam que tem. — Mal dá de
ombros. — Ninguém arrisca irritá-la. E toda Nassi sabe que Pryinala tem
sombras como guarda-costas. Eles são uma espécie que não é parte do
Acordo. A teoria é que ela os comprou há muito tempo, e ela não fez nada
para desmentir.
Agora faz um pouco de sentido. Mas, porra, o que essa mulher fez para
todo mundo cagar de medo dela desse jeito? Se bem que acho que ela nem
precisa fazer nada. Se alguém tem algo a esconder, com a fama que ela tem
de saber de tudo...
— Não é um pouco conveniente demais que Pryinala tenha se
interessado pelo mercado deles e enviado uma representante justamente
quando o Conselho está no processo de implantar as alterações nas leis? —
Ei’ri pergunta.
Mal dá de ombros de novo.
— É Pryinala. A família dela está em Nassi desde que Nassi existe.
Nunca vão pensar que ela está ajudando um representante do Conselho.
Paro com minha caneca a meio caminho da boca.
— Isso quer dizer que ela está colocando o nome dela em jogo para
conseguirmos as provas?
O sorriso de Mal desaparece.
— Agora é tudo ou nada. De acordo com ela, é um risco que vale a pena.
Puta que pariu. Olha a pressão. Depois de uma dessas, não podemos nem
sonhar em não conseguir.
— Além disso, quem sabe sobre essa questão do Conselho está
esperando uma terráquea e um drilliano investigando os mercados. Não uma
drilliana e seus dois guarda-costas. Pryinala mandou modificadores capazes
de enganar os sensores.
Sorrio. Gosto disso. Gosto muito disso. Oi, sou foda, tenho guarda-
costas. No plural.
— Acha que consegue se passar por uma compradora drilliana? — Re’ni
me pergunta.
Meu sorriso fica mais largo.
— Não tenho a menor dúvida.
VINTE E CINCO
Mal estava resmungando quando saímos do bar – e todos nós deixamos
mais da metade da bebida para trás. De acordo com ele, Suelen estava a
caminho, mas não podíamos esperar por ela se quiséssemos aproveitar o
convite de Pryinala. Sem mencionar que não seria uma boa ideia subir com
ela para o nível exclusivo. Ao contrário de mim, ela não tinha como se passar
por alguma coisa além de humana e já era conhecida.
Encaro o elevador na nossa frente. Ele também é feito todo de vidro,
apesar de que tenho quase certeza de que esse material é à prova de balas e
qualquer outro tipo de arma. Estamos em Nassi, não é? Pelo que Mal contou,
podíamos subir pelas escadas, que é o que ele preferia fazer. Mais seguro que
o elevador. Mas isso iria passar a imagem errada para o pessoal do mercado,
e agora tudo depende de imagem.
Ei’ri coloca uma mão no meu ombro assim que entramos no elevador.
Olho para ele.
— Você sabe que metade daqueles nomes são de membros passados do
Conselho, em vários níveis, não é? — Ele murmura.
Dou de ombros. Não sabia, mas não me surpreendo. Isso só quer dizer
que vou ter que tomar mais cuidado ainda. Não que estivesse pensando em
chegar berrando que queria informações e tudo mais, mas... Puta que pariu,
isso só complica.
Mal olha para mim e assinto. Tudo sob controle. Já sabia que ia dar
merda mesmo. Ele não fala nada e volta a olhar para a frente.
Esse elevador não é como o outro, saindo do espaçoporto, que fica
encostado em uma parede e desce por um espaço aberto que nos deixou ver
uma boa parte de Nassi. Esse aqui está em um tubo. E vou só falar que não é
nada legal ver rocha escura por todos os lados. Custava muito fazer umas
paredes bonitinhas?
Quando o elevador para, estou fazendo um esforço para não ficar
mudando o peso de uma perna para a outra. Respiro fundo. Agora é tudo ou
nada, como Mal disse. Não vamos ter outra chance dessas nunca na vida,
porque se eu foder com as coisas, acabou. Vou ter queimado um dos
melhores contatos de Gabi e a única pessoa que conseguiria algo assim para
nós.
Ou seja, não posso nem sonhar em deixar as coisas darem errado.
Certo. Moleza.
Mal sai do elevador primeiro e gesticula para nós. Ei’ri sai na minha
frente, como um bom guarda-costas conferindo se estamos em lugar seguro.
Saio e olho para os lados. Nem parece que estamos no mesmo lugar.
Enquanto o outro nível de Nassi era escuro, apesar das luzes coloridas, aqui
tudo é iluminado por luzes fortes e azuladas que correm pelo teto. As paredes
ainda são daquela rocha escura, mas foram polidas até quase estarem
refletindo a luz. E as pessoas que estão aqui – não que esteja vendo muitas –
estão usando roupas claras, com muitos tons pastéis, quase como se fizessem
questão de ser diferentes do restante de Nassi.
— Seja bem-vinda, senhora — um alien com quatro braços e pele laranja
fala, vindo na nossa direção. Um eeiharan. Não esperava ver um deles aqui.
Eles raramente saem do seu planeta.
Mal para ao meu lado, de braços cruzados. Ei’ri para à minha direita e
sei que o combinado era Re’ni ficar atrás.
Assinto. Sou uma compradora drilliana fodona, representante de
Pryinala. Não tenho que responder isso, porque é o mínimo que deveriam
fazer. Certo. Caralho, isso vai dar trabalho.
— Soube que têm um carregamento que pode ser do meu interesse.
O alien assente, inclinando a cabeça e gesticulando para eu o
acompanhar. Lá vamos nós.
Ele me leva através de um corredor largo, completamente vazio.
— Imagino que sim, senhora. Mas antes gostaria de saber com quem
estamos lidando.
Paro e olho para ele.
— Você sabe quem eu represento.
O alien assente depressa, cruzando um par de braços e gesticulando com
o outro.
— Sim, sim, claro. Ainda assim, temos orgulho de dizer que
conhecemos toda a nossa clientela. E seu nome não foi encontrado em nossos
registros.
Fodeu. Eu até pensei em arrumar um nome falso drilliano, mas Ei’ri me
avisou que não ia funcionar. Seria fácil demais conferirem se o nome
realmente existia, levando em conta a obsessão dos drillianos com famílias e
tudo mais. Vai ter que ser na marra agora.
— O único nome que importa é o de Pryinala. — Inclino a cabeça, ainda
encarando o alien. — Esse vocês têm nos registros, não é?
O alien sustenta meu olhar. Merda. Antes ele estava parecendo nervoso,
mas agora nem isso.
— E Drekkor? Sabemos que você chegou na sua nave. Ele é um pirata e
mercenário conhecido e não transporta passageiros.
É, tem isso também.
Sorrio.
— Pelo preço certo, ele faz qualquer trabalho. Não é minha culpa se as
pessoas nunca lhe oferecem um valor à altura.
Ele me encara por mais alguns segundos antes de voltar a andar.
Ei’ri olha para mim e levanta uma sobrancelha. Assinto. Vai dar merda,
certeza. Quer dizer, o alien nos trouxe justamente para um corredor que está
completamente deserto. É óbvio que não estamos indo para onde o mercado
funciona de verdade. Argh. Por que esse alien não podia ser burro?
O alien para na frente de uma porta e a abre, gesticulando para
entrarmos. Ei’ri vai na frente, de novo, e assente para mim. Certo. Sala
aparentemente vazia, de paredes claras – estou tomando antipatia disso,
preferia que fosse que nem os outros níveis de Nassi – e provavelmente onde
vão tentar alguma armadilha. Beleza. Espero o alien entrar antes de o
acompanhar. Nem fodendo que vou entrar numa sala sem nosso “guia”. Seria
fácil demais se livrar de nós assim.
A única coisa na sala é uma porta do outro lado. Por algum motivo isso
me lembra da sala de espera da APLA. Olho ao redor de novo. Nenhum sinal
de nada nas paredes. Okay. Isso com certeza é uma armadilha.
— Teria sido melhor se tivesse colaborado — o alien fala.
Ah, claro.
Ei’ri e Mal correm na minha direção. Campos de energia aparecem ao
redor deles e de Re’ni. Ei’ri ainda tira alguma coisa do bolso e tenta usar, mas
o campo se move, os arrastando para perto de uma das paredes.
Olho para o alien, que está me encarando.
Ele é eeiharan. Isso quer dizer articulações sensíveis. Hmm.
Cruzo os braços e fico parada onde estou. Se ele quer me intimidar e não
me colocou em um dos campos de força, o próximo passo é intimidação
física...
O alien vem na minha direção. Perfeito. Sustento seu olhar, como se isso
não fosse nada demais. Quatro braços. Vou ter que ser rápida.
— Você... — ele começa.
Seguro um dos seus braços logo acima do cotovelo, com o dedão
pressionando o osso do cotovelo para baixo. O alien fica completamente
imóvel.
— Se quiser usar seu braço de novo, vai liberar meus companheiros. E
nem sonhe em tentar alguma coisa com os outros braços. Posso quebrar esse
aqui antes de conseguir fazer qualquer coisa, e aí vou parar de ser gentil.
Ativo o mini-taser, só o suficiente para ele sentir um choque leve e
entender do que estou falando.
Ele levanta os outros três braços.
— Só estou seguindo minhas ordens, senhora.
É claro que está.
Uma das portas se abre. Formo minhas escamas no piloto automático,
antes de me virar, arrastando o alien. O tiro me acerta no ombro. Puta que
pariu, que tara é essa de atirarem no meu ombro?
Ativo os mini-tasers e apago o alien que estou segurando, quebrando seu
braço no processo. Não acho que tenho que pegar leve com ninguém aqui.
Especialmente se estão atirando em mim.
O novo alien entrou pela mesma porta que nós e está segurando uma
pistola híbrida. Tinha que ser. E eu nunca amei tanto minhas escamas
drillianas.
Corro na direção dele, sem me dar ao trabalho de desviar dos tiros. Vou
ficar com alguns roxos depois, mas sei que minhas escamas vão absorver o
pior do dano.
O alien levanta a pistola quando me aproximo, tentando mirar no meu
rosto. Ah, não vai mesmo, filho da puta.
Me jogo no chão e deslizo até ele. Quando o alien abaixa a pistola, já
estou com as mãos na sua perna e usando o mini-taser.
Também amo esses anéis, aliás.
Pego a pistola e me levanto, olhando ao redor. De onde é que vai vir o
próximo agora?
Que merda, porque eles não podiam nos levar direto para o mercado,
falar o que precisamos saber e pronto? Não, têm que resolver pensar e tentar
nos prender. Quer dizer, conseguir prender, no caso dos meus “guarda-
costas”.
Olho para os campos de energia. Mal está batendo palmas lentamente – e
os campos bloqueiam o som, porque não estou ouvindo nada – Re’ni está de
braços cruzados e Ei’ri está encarando o teto. Estreito os olhos. O que é que
ele está procurando?
Ei’ri olha para mim e aponta para onde o campo de força se encontra
com o teto. Levanto a pistola e olho para ele. Ele assente. Certo. Não custa
tentar e ver no que dá. Me aproximo do campo de força e miro com cuidado.
Olho para Ei’ri de novo.
— Tem certeza?
Ele dá de ombros. Ou não me ouviu, ou não tem certeza. Maravilha. Por
que é que eu perguntei mesmo?
Atiro e dou dois passos para trás quando começam a sair fagulhas do
teto. Espero que não tenha feito merda. Pelo menos dessa vez não foi ideia
minha.
O campo de força desaparece.
— Boa!
Ei’ri sorri e estica a mão para a pistola. Entrego. Ele provavelmente é
melhor com uma dessas do que eu, depois de anos trabalhando com Kradisla.
Paro, encarando a porta por onde entramos, enquanto Ei’ri desativa os
outros campos de força. Mal se aproxima, resmungando, mas Re’ni para no
lugar e inclina a cabeça.
— Tem alguém vindo — ele avisa.
As escamas dele e de Ei’ri aparecem na mesma hora. Mal suspira e para
atrás de nós. Isso, aproveite os escudos vivos.
A porta se abre e outro alien entra, com as mãos para cima. Esse é muito
alto, com pele azul escura que tenho quase certeza que também tem algum
tipo de escamas. Droga, não lembro o nome da espécie.
— Por favor, não atirem. Vim para levá-los até o mercado.
Ei’ri aponta a pistola para o alien.
— Estamos em alerta de segurança, precisávamos ter certeza de que
eram quem dizem ser — o alien explica.
Um teste, então. O que é que Mal tinha falado? Estavam esperando uma
terráquea e um drilliano. Não uma terráquea modificada, que pode se passar
por drilliana.
Certo. Isso ainda pode ser uma armadilha, mas fodas, precisamos das
informações.
Olho para o alien.
— Agora podemos fazer negócios? Ou devo dizer para minha superiora
que não têm nada que a interessa? — Pergunto.
Ele inclina a cabeça.
— Minhas desculpas, senhora. Nos perdoe pelo mal-entendido.
Estreito os olhos e não respondo. Ele olha para Mal.
— Você é o intermediário?
Mal assente, fingindo que está tirando poeira das roupas. Quase reviro os
olhos.
— Não deveria estar aqui, então. Vou providenciar para que um dos
nossos o leve de volta para o elevador. — Ele olha para mim. — Tem minha
garantia de que nada vai acontecer com ele.
Certo, acredito.
Olho para Mal, que assente de novo. É, não temos outra opção mesmo.
— Senhora? — O alien chama. — Por favor, me acompanhe.
VINTE E SEIS
— Está procurando algo específico? — O alien pergunta, enquanto
saímos do labirinto de corredores para um espaço relativamente aberto.
Aqui pelo menos estou vendo mais algumas pessoas – a maioria vestidos
de cores claras, também, mas uns tantos de preto. Todos estão saindo de
vários corredores e indo na mesma direção: as portas largas e enormes na
nossa frente. Elas também são claras e um pouco transparentes. Consigo
ouvir o barulho de várias pessoas falando ao mesmo tempo quando alguém
passa por elas, e tenho a impressão de que o outro lado está bem
movimentado.
Achamos o mercado.
Balanço a cabeça.
— Não temos preferências de espécie. Estamos procurando mercadorias
que podem ser úteis, apenas.
Ei’ri olha para mim depressa e então volta a olhar para a frente. Pelo
visto ele não sabia que não é só terráqueas que andam vendendo. Não que
isso seja uma surpresa. Gabi só ficou sabendo porque o acordo que fez com
Pryinala envolve isso, e me contou por motivos óbvios. Fora isso, a maioria
das pessoas que sabe desse detalhe está envolvida no esquema de alguma
forma.
E isso me lembra que não posso só esperar ouvir tudo. Enfio a mão no
bolso e passo o dedo com força sobre o gravador que Dsara me deu. Ele é tão
fino que não é visível, mesmo com minha calça justa. Ei’ri e Re’ni também
ganharam gravadores, por via das dúvidas, e nós usamos a fita que Gabi me
deu para esconder meus mini-tasers dos sensores para escondê-los também.
— Temos um novo carregamento de humanas, mas também temos
algumas sombras — o alien fala. — Caso tenha interesse em material
adequado para trabalho pesado, temos os últimos de um carregamento que
veio da orla do espaço conhecido, dos planetas com civilizações primitivas
ou bárbaras. Alguns dariam bons gladiadores, caso tenha sejam do seu
interesse.
— As sombras me parecem interessantes.
O alien sorri.
— Sim, elas sempre são úteis. No momento, tenho conhecimento de
clientes que as estão usando...
Deixo o alien falando sozinho. Não preciso prestar atenção em uma lista
de usos possíveis para as sombras. Eles são de uma espécie que não é
conhecida no Acordo, pelo menos não oficialmente. O planeta de onde vêm
ainda é considerado primitivo e a maioria dos nativos é capaz de se mesclar
com as sombras do ambiente ou até mesmo se camuflar usando outra pessoa.
Não sei como isso funciona, mas Gabi me jurou que existe e é indetectável. E
só sabemos de tudo isso porque Pryinala tem algumas sombras trabalhando
para ela – pessoas que sua família resgatou e que preferiram ficar no Acordo
e ajudá-la. Uma dessas agentes passou um tempo no complexo, atualizando
as informações de Gabi.
A porta se abre sozinha assim que nos aproximamos. Entramos em um
salão enorme, dividido em pequenas áreas. Não. Olho ao redor de novo. Puta
que pariu, isso aqui está me lembrando um parque de exposições. Aqueles de
festa de gado e coisas de cavalos mesmo, só que mais limpo. Caralho. Eu
quero matar as pessoas por trás disso. Quero mesmo. Quais as chances de eu
conseguir soltar todo mundo e explodir esse lugar antes de ir embora? Baixas,
eu sei. Merda. Mas não vou conseguir sair daqui sem fazer nada.
Começamos a andar entre os cercados de mercadorias. Tento não prestar
muita atenção no que estou vendo, senão vou fazer merda, mas é fácil demais
notar que não conheço nenhuma das espécies que estão aqui. Todos são de
planetas que não são parte do Acordo e, ao contrário da Terra, não têm a
“sorte” de ter aliens passeando por lá o tempo todo. Foi isso que obrigou os
aliens a aceitarem a APLA, que é a única proteção que temos, por menor que
seja. Essas pessoas não têm nada.
Essas alterações nas leis precisam passar. Não vai ser uma resolução de
nada, mas pelo menos vai complicar a vida do pessoal dos mercados e dar
carta branca para o Corpo Militar os interceptar sem precisar de uma pilha
gigantesca de provas.
E por falar em provas, eu preciso delas, não de detalhes sobre quais são
os pontos fortes de cada espécie que eles têm nos cercados.
— Vocês têm uma estrutura muito bem organizada para um lugar
recente. Estou impressionada — comento.
O alien ri e balança a cabeça.
— Adoraria poder aceitar o elogio, mas a verdade é que não somos
recentes.
Inclino a cabeça. Morda a isca, por favor.
— Estranho não termos ouvido a respeito antes disso, então.
Ele gesticula, parecendo sem saber o que dizer. Isso. Hora de se gabar
porque Pryinala, que sempre sabe de tudo, não sabia sobre a operação de
vocês, logo em cima da cabeça dela.
— Estamos em funcionamento há cerca de trinta ciclos padrões, em
localidades variadas. Faz pouco mais de dez ciclos que nos estabelecemos
aqui. Mas isso me surpreende. Sei que sua superiora tem sobras a seu serviço.
Se não as conseguiu conosco...
Ela as resgatou de vocês, na verdade.
Sorrio.
— Pryinala é da opinião que se você tem a opção de ir atrás da
mercadoria na fonte, é sempre melhor. Isto aqui é uma experiência para saber
se trabalhar com intermediários realmente será melhor. Pelo que me lembro,
quando ela comprou de intermediários antes teve bastante trabalho para tirar
os maus hábitos que sua mercadoria tinha adquirido.
E eu devia ganhar um troféu por falar tanta merda perfeitamente séria.
O alien assente.
— Sim, sim, ela está certa. Este era um problema constante quando
havia vários intermediários independentes. Depois que centralizamos as
operações os problemas do tipo caíram de forma drástica. Nosso fundadores
foram claros com relação a este ponto. Temos regras simples que todos os
fornecedores devem...
Paro de prestar atenção de novo. Vou sair daqui com um detalhamento
completo de como o mercado funciona, o que é útil mas está me dando
náuseas. O alien fala como se a mercadoria em questão fosse gado. É assim
que eles nos veem. Gado. Filhos da puta. Queria muito que alguém matasse
eles.
E eu não faço a menor ideia de como fazer ele mudar de assunto e nos
dar as informações que precisamos sem ser óbvia.
Olho para Ei’ri. Ele está encarando um dos cercados, que está cheio de
mulheres terráqueas. Estava tentando não olhar para lá. Quando ele se vira
para mim, indico o alien ao meu lado com a cabeça e levanto as sobrancelhas.
Ele dá de ombros. Certo. Lá vamos nós fazer loucuras.
— Vamos fazer uma experiência, então — falo e paro na frente do
cercado com terráqueas. — Vou querer duas dessas.
O alien assente.
— Vocês drillianos amam as terráqueas. Pode escolher, senhora.
Ao meu lado, Ei’ri ficou completamente imóvel. Por favor, espero que
ele não faça merda. Se alguém aqui tem direito de perder a cabeça, sou eu.
Não precisa apelar, porque temos provas de que Arcen não era o único
drilliano comprando terráqueas.
Estreito os olhos e encaro as mulheres. Vamos ter que sair daqui e voltar
para a nave, e tenho a leve impressão de que isso não vai ser um passeio
turístico por Nassi. Especialmente se fizermos o que estou pensando. Então
preciso de mulheres que estão em condições de correr.
Aponto duas das mulheres, que parecem estar melhor que as outras. E só
para não ficar na cara...
— E uma das sombras. O homem que estava nos encarando.
O alien assente de novo e gesticula para uma das pessoas vestidas de
branco. Um ziittan – baixinho, verde e parecendo aqueles ETs da Coca-Cola
de uns bons anos atrás – vem na nossa direção. Eles conversam em voz baixa
por um instante, mas nem me preocupo em tentar entender.
— Imagino que forneçam roupas quando estão efetuando as vendas? —
Pergunto, olhando ao redor.
O alien mais alto olha para mim. Dou de ombros.
— Vim para ver o mercado, mas não pensamos que comprar aqui seria
viável.
O que é uma boa explicação para o fato de que eu esperava muito não
precisar comprar ninguém, mesmo que Gabi tivesse me liberado uma conta
especificamente para isso, com mais dinheiro do que eu vi na minha vida
toda.
O ziittan assente.
— Providenciaremos coberturas.
Coberturas. Nem para dizer que são roupas. Certo. Posso matar alguém?
Só uma pessoazinha? Por favoooor?
— Vou levá-los para uma das salas de espera enquanto preparam sua
mercadoria — o alien alto fala. — Se preferir, podemos entregá-los em algum
lugar aqui em Nassi...
O que é uma ótima forma de tentar conseguir a localização de Pryinala.
Balanço a cabeça.
— Obrigada, mas não será necessário. Eles irão comigo para um dos
investimentos da minha superiora em uma das colônias. Veremos como vão
funcionar lá.
Ele inclina a cabeça.
— Compreendo.
Olho para Ei’ri e Re’ni, antes de começar a seguir o alien quando ele vai
na direção de uma das saídas laterais do mercado. Espero que tenham
entendido o que quero fazer e espero que estejam coordenando os detalhes
entre si, porque não vou poder falar nada dentro da sala de espera. Sou capaz
de apostar que eles têm um sistema de vigilância excelente. Mesmo com
bloqueadores, não podemos bloquear som e vídeo. Um dos dois
provavelmente é aceitável – duvido que as pessoas que fazem negócios aqui
deem todas as informações para os donos do mercado – mas os dois? É pedir
para sermos investigados.
A sala para onde o alien nos leva tem paredes claras – surpresa! – e dois
sofás de três lugares com uma mesinha de tampo de vidro no meio. Ou
melhor, um terminal. Estreito os olhos, percebendo os controles ao redor do
tampo da “mesa”.
— O terminal já está programado com os dados da sua compra.
Garantimos a segurança dos nossos clientes, por isso pedimos para que todas
as transações financeiras sejam feitas através do nosso sistema — o alien
explica. — Estaremos aguardando a confirmação do pagamento para trazer
suas mercadorias. Por padrão, nossa mercadoria não tem tradutores
implantados. Caso deseje, pode usar o painel para programá-los e instalá-los.
Assinto e entro na sala. O alien fecha a porta atrás de nós.
Pagamento primeiro, então, para trazerem as pessoas e termos mais
tempo.
Me sento no sofá, cruzo as pernas e gesticulo para Ei’ri. Deixe meu
guarda-costas fazer todo o trabalho, porque eu sou importante demais para
isso. E porque ele provavelmente vai conseguir passar pelos primeiros níveis
de segurança desse sistema também. Re’ni tira um disco escuro e pequeno do
bolso e o coloca na mesa. Bloqueador de som. Perfeito.
— Estou gravando nossas imagens para projetar um loop — ele avisa. —
Não vai ficar perfeito porque nunca usei esse material antes e não tenho
certeza de como calibrar, mas...
— Vai ser o suficiente — interrompo.
Tem que ser.
Não falamos nada por alguns minutos.
— Pagamento efetuado — Ei’ri avisa e olha para mim.
Acho que esse olhar quer dizer que ele conseguiu entrar no sistema.
Ótimo. Agora é só esperar trazerem a “mercadoria” para “programarmos os
tradutores”.
Alguém bate na porta. Que educados, sem apito. Re’ni assente e se
levanta. Certo. Sou importante demais para abrir a porta.
As duas terráqueas e o sombra que escolhi entram na sala, andando
devagar e olhando para o chão. Eles estão com as mãos amarradas para trás,
mas esta é a única forma de restrição que estou vendo. Ótimo. O alien que
nos atendeu para na entrada, olhando para mim.
— Caso precise, podemos escoltá-la até sua nave. Mercadorias recém
adquiridas podem ser um pouco imprevisíveis...
Isso é uma forma de dizer que vão tentar fugir? Balanço a cabeça.
— Não é necessário. — Olho para os dois drillianos. — Entre nós três, a
mercadoria não será problema.
O alien assente mais uma vez e aponta para a esquerda.
— Quando terminarem, basta seguir este corredor, e estarão na área dos
elevadores. Seu guia está esperando por vocês.
E espero que esse guia seja Mal.
Assinto e fecho a porta.
VINTE E SETE
Re’ni tira mais um disco escuro do bolso e coloca em um dos sofás,
antes de se virar para vigiar nossas compras. Argh. Não acredito que tive que
fazer isso. Mas pelo menos eles vão sair daqui... Eu espero.
Tiro o aparelhinho de que Gabi do meu bolso e o jogo para Ei’ri, que o
conecta em uma das entradas no tampo da mesa. Ainda bem que me lembrei
de tirar ele do terminal no complexo de Arcen, senão estaríamos fodidos
agora.
— Grave os dados enquanto procura — aviso.
Ei’ri assente. Ótimo. Não quero uma repetição daquela cena linda de
sairmos correndo sem ter salvado nada. Já basta uma vez.
Olho para Re’ni.
— Quanto tempo?
Ele balança a cabeça.
— Dez minutos, no máximo.
Ou seja, sem tempo para pensar em arrumar tradutores. Daria muito na
cara se a projeção de imagens que Re’ni ativou desaparecesse depois de dez
minutos e ainda estivéssemos começando a programar os tradutores. Não.
Me viro para as terráqueas.
— Por favor, me digam que vocês falam português.
As duas levantam a cabeça de uma vez. É. Pelo menos isso.
— Conseguem correr? Porque tenho quase certeza de que vamos
precisar disso para sair daqui — continuo antes de falarem alguma coisa.
Elas assentem. O sombra olha para mim e depois para elas. Merda. No
caso dele eu precisava de um tradutor, porque não faço nem ideia de qual é a
língua nativa dele e tenho certeza que não tenho programada no meu tradutor.
— Você... — uma delas começa e olha para os dois drillianos.
— É, sou da Terra também. Eles não, mas estão ajudando.
— O quê... — Ela para e balança a cabeça. — Não. Faz o que precisa
fazer aí.
Levanto as sobrancelhas. Gostei dela.
A outra terráquea se virou para o sombra e está gesticulando loucamente.
Tentando fazer ele entender que vamos precisar fugir? Gostei dela também.
Espera. Quando foi que elas soltaram as mãos? Estreito os olhos e a
primeira mulher aponta para uma lâmina discreta na mão do sombra. Caralho.
Como foi que ele conseguiu esconder isso? E eu definitivamente escolhi as
melhores pessoas possíveis, pelo visto.
— Ei’ri...
— Estamos dentro. Estou copiando tudo que consigo — ele avisa. —
Re’ni, me dê o tempo.
Re’ni olha para o disco no sofá e assente.
As duas terráqueas não falam mais nada. Não quero nem saber o que
aconteceu para ficarem assim – no lugar delas eu estaria perguntando todos
os detalhes, ainda mais que estamos parados aqui. Mas elas só ficam em
silêncio, olhando dos drillianos para mim. O sombra gira a lâmina na mão,
tão depressa que não sei como ele não se corta. Quero aprender a fazer isso.
— Agora — Re’ni fala.
Ei’ri levanta a cabeça, já puxando o trequinho de Gabi e o jogando de
volta para mim.
— Não tivemos nem cinco minutos direito... — ele começa.
Re’ni balança a cabeça e aponta para a porta.
Certo. Não vou discutir. Sou capaz de apostar que ele ainda tem algum
tipo de contato com as pessoas que estão – estavam – puxando suas cordas.
Sem mencionar como ele sempre escuta o que não deveria.
Ei’ri abre a porta e sai, olhando para os lados. Nada. Certo. Como se eu
tivesse alguma ilusão de que nossa sorte fosse durar. Gesticulo para as
mulheres e o sombra, e os dois vão logo depois. Saio atrás dele, com Re’ni
vindo depois de mim. Ei’ri já está seguindo pelo corredor, andando depressa,
mas não tão rápido a ponto de parecer que esteja quase correndo. E suas
escamas estão visíveis. Tenho certeza de que as de Re’ni também estão, mas
não posso deixar as minhas aparecerem agora. Seria o mesmo que dizer que
espero ser atacada. Se conseguirmos chegar no elevador sem problemas, já
vai ser uma puta vantagem, porque descer sei lá quantos níveis pela escada
não vai ser nem um pouco legal.
Já estamos no espaço aberto logo antes dos elevadores quando escuto os
primeiros gritos. Ei’ri continua andando no mesmo passo, na direção de um
dos elevadores. Solto um suspiro quando vejo Mal parado segurando a porta
aberta, mas ele está sorrindo de orelha a orelha. Pelo pouco que vi dele, já dá
para saber que isso não é boa coisa.
Entramos no elevador. Ainda vejo vários aliens vestidos de cores claras
saindo dos corredores, mas a porta se fecha antes de chegarem perto. Não que
isso vá ajudar muito. Estamos em um elevador. A coisa mais fácil do mundo
é desligar a energia ou o que quer que seja e nos prender aqui dentro...
O elevador para com um solavanco.
— Puta que pariu!
Mal solta uma gargalhada e enfia um bastão pequeno e prateado no
painel do elevador. Enfia, como se fosse uma lança. Certo. E começa a contar
em voz alta. Caralho, ele está louco. Luzes vermelhas começam a piscar e o
elevador começa a descer depressa. Puta que pariu. Estamos caindo e não
temos nem onde segurar. Eu sabia que ia dar merda, sabia...
Mal puxa o bastão de uma vez. O elevador para com um solavanco pior
ainda e caio em Ei’ri, que está apoiado em uma das paredes.
Não tenho tempo nem para perguntar o que foi isso, porque as portas se
abrem e Mal já está pulando para fora, no mesmo nível onde pegamos o
elevador para ir para o mercado.
— Depressa!
Ele não precisa gritar duas vezes.
Puxo uma das mulheres, que caiu no chão. Re’ni puxou a outra e o
sombra já está do lado de fora, olhando para os lados como se estivesse só
esperando aparecer alguém para enfiar sua faquinha. Civilização primitiva,
certo. Primitiva pode até ser, mas ele definitivamente sabe lutar. Já vi essa
postura antes.
— Mal?
Ele olha para trás e gesticula indicando uma ruazinha mais escura.
— Andem logo. Agora é torcer para não nos alcançarem.
Olho para a ruazinha. Ela mal e mal tem luzes e não estou vendo muitos
aliens por ali. Oi, estou fugindo com informações valiosas e vou entrar numa
rua escura e deserta.
Aponto para a rua mais larga e movimentada. Mal balança a cabeça
antes de eu conseguir falar qualquer coisa.
— Vão ver um grupo correndo e entrar no caminho só para ter certeza de
que ninguém está pagando uma boa recompensa por vocês. Quanto menos
movimento, melhor. Pryinala está mandando ajuda.
Ah, ótimo. Era só o que me faltava. Antro de mercenários e piratas do
pior tipo. Puta que pariu.
E eu espero muito que ninguém tenha oferecido uma recompensa
tentadora o suficiente para Mal. Só me falta essa agora.
Acompanho Mal pela ruazinha, conferindo de tempos em tempos se as
terráqueas e o sombra estão acompanhando nosso ritmo. Não estamos
correndo, porque aparentemente isso vai chamar atenção demais, mas
estamos andando bem depressa. E eu continuo não gostando nem um pouco
de estarmos passando justamente pela parte mais vazia desse nível. A
impressão que tenho é de que a qualquer hora vai aparecer uma armadilha.
Ou, pior, Mal vai virar para trás, tirar uma arma e mandar eu entregar os
dados. Quer dizer, ele mora em Nassi, não é? Pode até ser o contato de
Suelen, mas mesmo assim...
Mal vira em outra ruazinha, para e volta. Vejo alguma coisa brilhante
acertar a parede perto de onde ele estava. Certo, fodeu.
Já estou correndo de volta para a entrada da rua logo atrás de nós. Mal
passa por mim e vejo quando ele aperta alguma coisa na roupa. Por favor, por
favor, espero muito que ele não esteja nos traindo agora.
Puxo o sombra para ele ir na minha frente. As duas terráqueas já
passaram por nós, mas ele estava hesitando. Acho que quer briga. Mas a
faquinha dele não vai ter a menor chance contra pistolas híbridas. Eu e os
drillianos temos as escamas para nos proteger.
Ei’ri vira para trás e atira. O tiro acerta uma janela de vidro e ricocheteia.
Escuto um grito logo antes de um grupo de pessoas de roupas claras virar a
esquina atrás de nós. Puta merda. Fodeu.
E eu não tenho nada que ficar olhando para trás. Puxo Ei’ri e volto a
correr.
Caralho, como é que vamos sair dessa?
Sinto um dos tiros acertar minhas costas. Caralho. Se conseguir sair
daqui, vou ter um roxo gigantesco, certeza, porque isso doeu.
Alguma coisa brilha na nossa frente. Escuto Mal xingando e gritando
alguma coisa, antes de virar em outra ruela. Nós estamos fodiiiiiidos.
E não temos como transmitir os dados. Merda. Se nos pegarem agora, já
era. Quer dizer, se nos pegarem agora tenho a leve impressão de que estamos
mortos.
Ah, não. Não mesmo. Tem que ter um jeito. Tem que ter.
Mal vira em outra rua. As mulheres e o sombra o acompanham. Okay,
um caminho seguro. Vai dar certo.
Viro atrás deles e quase paro.
Tem uma parede de energia na outra ponta do quarteirão. Fodeu. Puta
que pariu esse caralho, fodeu.
VINTE E OITO
Mal vai direto para a parede de energia. Ela se abre no último instante e
ele passa. Certo. Que porra foi essa? Entro depois das terráqueas, em tempo
de ver Mal bater na mão de outra mulher loira que está ali atrás. Das duas
uma: ou ela é drilliana, ou é terráquea. Levando em conta que tem um alien
de pele laranja e cabelo preto perto da parede, estou apostando que ela é
Suelen, a doida que passou um tempo no bando de Drek.
— Todos aqui? — Ela pergunta.
Olho para trás. Re’ni acabou de passar pela parede de energia. Assinto.
O outro alien – que se não me engano se chama Ithori – fecha a parede logo
antes dos primeiros tiros. As pessoas atrás de nós gritam alguma coisa e
Suelen sorri antes de gesticular para voltarmos a andar. Olho para as duas
terráqueas. Elas estão ofegantes, mas não parecem estar cansadas demais.
Ótimo. Pelo menos escolhi duas que vão conseguir escapar conosco. O
sombra está ao lado da parede de energia, a encarando como se fosse a coisa
mais bizarra do mundo. Levando em conta que ele vem de um planeta
considerado primitivo, provavelmente é.
— Vamos logo — chamo.
Suelen fica parada no lugar enquanto Ithori começa a andar depressa na
outra direção. Ela para as duas terráqueas e entrega algo para elas, falando
alguma coisa em voz baixa antes de deixar elas irem. O sombra passa por ela
logo depois e ela o segura pelo braço. Ele se vira, já com a faca na mão, e
para com a lâmina quase encostando na pele dela. Começo a ir na direção
deles. O sombra franze a testa e parece que força a faca, mas ela continua no
mesmo lugar. Suelen assente e aponta para algo na sua roupa. Ela passa outro
dos discos escuros para o sombra e aperta algo nele. Ah. Escudos portáteis.
Ela olha para mim.
— Você não precisa de um, não é?
Balanço a cabeça. Eu pegar um escudo desses vai ser desperdício.
Suelen assente e olha para Mal.
— Mal?
Ele levanta a mão e Suelen joga outro escudo para ele.
Caralho. Eu sabia que Gabi tinha feito bons contatos e juntado uma
equipe excelente para a força-tarefa, mas não esperava algo assim. Quer
dizer, estamos em Nassi e estamos andando como se não tivesse um grupo de
aliens putos da vida do outro lado da parede de energia, tentando
sobrecarregá-la.
— Quantos tiros esses escudos aguentam? — Pergunto.
Suelen faz uma careta.
— Não muitos. Mas tenho mais aqui.
— Paranoica! — Ithori fala.
Ela estreita os olhos e não responde, só começa a andar também, indo
mais depressa até estar na frente do grupo. Ithori assente e corre à frente.
Olho para Ei’ri, que assente e continua atrás dos outros, junto com Re’ni. Mal
também está se deixando ficar por último. Ótimo. Se der merda, tenho pelo
menos duas pessoas que eu confio guardando a retaguarda. Quer dizer, uma e
meia. E a meia definitivamente não é Re’ni.
Acelero o passo até alcançar Suelen.
— Qual é o plano?
Ela nem olha para mim, só continua prestando atenção no que está na
nossa frente, mesmo que agora as ruelas estejam completamente desertas.
— Bloqueamos uma rota até os elevadores. Essas paredes de energia são
fortes, não acho que vão conseguir sobrecarregá-las.
Caralho. Eles prepararam uma rota de fuga completamente lacrada?
Porra, eu amo esse povo.
Só tem um problema. Não foi à toa que Mal chamou a área ao redor dos
elevadores que dão no espaçoporto de “terra de ninguém”.
— Então eles sabem exatamente onde tentar nos pegar.
Ela grunhe alguma coisa que não chega a ser um palavrão.
— Vamos ter que passar por eles à força — Suelen fala.
— Momento Mulher Maravilha. Não sei se isso é uma boa ideia —
resmungo.
Suelen olha para mim e bufa.
— Se isso for referência a algum filme, faça o favor de lembrar que
estou no Acordo há uns oito anos.
É, tem isso. Dou de ombros. Era uma boa referência.
— Com sorte, até chegarmos lá já teremos reforços.
Quase paro.
— Oi? Eu pensei que vocês fossem os reforços.
Desta vez Suelen sorri. Por algum motivo acho isso preocupante.
— Do mesmo jeito que pensou que Pryinala estava ajudando porque tem
um bom coração? — Ela pergunta.
— Não exatamente...
Suelen para.
— Se abaixem!
Obedeço e olho para trás. Uma das mulheres puxou o sombra para baixo.
Ótimo. Ele é o único que não ia entender Suelen.
Alguma coisa brilhante passa acima de nós e vejo arranhões fundos
aparecerem na parede mais próxima. Puta que pariu, que porra foi essa?
— Eles ativaram as defesas internas — Suelen fala.
Isso não me parece nada bom, então por que caralhos ela está sorrindo?
— Depressa! — Ela grita, se levantando e começando a correr.
Eu sabia que estava bom demais para ser verdade. Me levanto e espero
os outros pelo menos começarem a correr antes de voltar a acompanhar
Suelen. Devia voltar para trás, fazer um escudo humano se for o caso, mas
isso não é tão necessário agora. E se não derrubaram a parede de energia até
agora, não acho que vão conseguir. Ou seja, nosso problema vai ser quando
sairmos das ruelas e entrarmos na área ao redor dos elevadores. E aí ainda
vamos ter que conseguir chegar na nave e esperar até decolar. Puta merda.
— A nave... — começo.
— Drek está avisado. Vai estar preparado para dar cobertura no
espaçoporto e pronto para decolar.
Menos mal. Só fica faltando a terra de ninguém.
Merda, eu não devia ter lembrado do filme.
Uma luz laranja começa a piscar. Olho ao redor. Não consigo nem ver de
onde ela está vindo.
— Porra! — Suelen grita e olha para trás. — Se abaixem!
A coisa brilhante passa em cima de nós de novo, deixando mais marcas
nas paredes. Suelen se levanta e olha para nós.
— Isso é um alarme interno. Significa que pessoas procuradas estão
tentando escapar e que quem os capturar, vivos ou mortos, vai receber uma
recompensa.
E estamos em Nassi. Engulo em seco.
— Isso quer dizer correr como se nossas vidas dependessem disso.
Porque não podemos dar tempo para os mercenários chegarem no espaço
perto do elevador. Todos vão saber que qualquer fugitivo tem que ir para lá.
— Não. Suas vidas dependem disso — Suelen fala e começa a correr.
Muito obrigada pelo incentivo. Puta que pariu, muito obrigada mesmo.
Ninguém fala nada enquanto corremos, virando nas ruelas e ignorando
completamente as pessoas do outro lado das paredes de energia. Se fossem
conseguir derrubar alguma, já teriam feito isso. Então só continuamos
correndo o mais depressa que conseguimos.
Ithori está esperando perto da última parede.
— Posicionaram alguns atiradores, mas nada demais — ele avisa. — Se
forem agora, têm uma chance.
Certo, não vou parar para conversar.
Suelen entrega mais escudos para todo mundo e cala a boca de Re’ni
com um olhar quando ele começa a falar que não precisa. Encosto o meu na
minha blusa e ele gruda no lugar. Aperto o centro do círculo e sinto um
formigamento rápido no corpo todo. Acho que está ativo, então. Não sei que
diferença dois escudos vão fazer para os outros, mas espero que ajude.
Um elevador está nesse nível. Perfeito. Aponto para ele. Suelen assente.
— Cada um de um lado — Ei’ri fala. — Re’ni fica por último.
Assinto. Não vamos conseguir fazer uma parede viva se eles têm
atiradores, mas não precisa de tanto agora que todos têm escudos.
Suelen olha para nós e levanta um dedo. Ithori pega uma arma enorme
que estava no chão ao seu lado e a coloca no ombro, ao mesmo tempo em que
coloca a outra mão nos controles da parede de energia. Suelen levanta outro
dedo. Me inclino para a frente e vejo as duas terráqueas fazerem a mesma
coisa. Suelen levanta o terceiro dedo e começa a correr no mesmo instante em
que a parede é desativada.
Vamos atrás. Quando chegamos, esse espaço pareceu até pequeno. O
que são menos de dez minutos de caminhada? Nada. Agora, esse mesmo
espaço, com pessoas atirando em nós... Sinto o impacto nas minhas costas e
depois na minha perna. Puta que pariu. Quase tropeço, mas não posso vacilar
agora. A mulher que está mais perto de mim cambaleia. Seguro o seu braço e
a puxo comigo, continuando a correr. Ela se solta e acelera ainda mais. O
chão ao nosso redor está cheio de marcas escuras dos tiros. Estamos quase lá,
quase lá...
Suelen chega no elevador e abre a porta.
A porta do elevador de vidro.
E ainda estão atirando.
Suelen se joga para o lado assim que a primeira mulher entra no elevador
e começa a atirar de volta. Paro ao lado da porta e empurro o sombra para
dentro. Sinto o impacto no meu braço. Puta que pariu, mais um. E ninguém
vai chegar lá em cima se todos nós formos. Suelen e Ithori, sozinhos, não vão
conseguir distrair os atiradores. Eles vão atirar até quebrar o elevador e
acertar alguém. Sem mencionar o que pode estar nos esperando lá em cima.
Mal entra no elevador. Ei’ri vai atrás dele e puxo a arma pistola que ele
enfiou no cós da calça. Ele se vira para mim. Tiro o aparelho com os dados
salvos e entrego para ele.
— O quê... Não! — Ele começa.
Balanço a cabeça quando Re’ni nos alcança com última terráquea, e
empurro os dois para dentro. Ei’ri olha para fora, no mesmo instante em que
um tiro acerta o vidro.
— Você consegue se virar se estiverem esperando lá em cima — falo. —
Vai!
Ele me puxa e cola a boca na minha. Não consigo nem chamar isso de
beijo, porque ele se afasta na mesma hora.
— Não morra!
A porta do elevador se fecha antes de eu responder e corro para o outro
lado do tubo do elevador. Morrer não está nos planos, mas, depois do que vi
aqui, fazer essas informações chegarem nas pessoas certas é o mais
importante. Ei’ri passou anos com Kradisla, é mais treinado para isso que eu,
vai ser mais útil se tiver uma armadilha no espaçoporto. Enquanto isso, eu
atiro bem o suficiente para tentar distrair os atiradores que estão aqui.
Mais um tiro acerta o elevador. Certo. Ao trabalho. Me abaixo, levanto
minha pistola e tento calcular de onde veio o tiro. Posso não ter a melhor
mira, mas não preciso acertar ninguém. Só mantê-los preocupados o
suficiente com a possibilidade de eu acertar.
Sinto mais um tiro me acertar, dessa vez na coxa. Caralho, essa porra
doeu. Isso quer dizer que estou sem escudo. Merda. Não durou tanto assim,
se bem que não sei quantos tiros tomei enquanto estava correndo.
Atiro de novo. E de novo. Tenho certeza que achei onde dois atiradores
estão e começo a revezar meus alvos. Não tenho a menor chance de acertar,
mas pelo menos eles estão atirando em mim e não no elevador. Não tenho o
menor problema com ficar coberta de hematomas depois, desde que isso dê
certo.
Uma massa de mercenários e sei lá mais o que sai das ruas de Nassi para
a terra de ninguém. Ithori corre na nossa direção, ainda carregando sua arma.
Me levanto. Os atiradores pararam, e nem é difícil entender o motivo. Não
precisam mais atirar em nós. Os mercenários vão fazer o serviço, porque não
temos para onde escapar.
Fodeu. Fodeu pra caralho. Um ou dois aliens eu consigo encarar. Essa
multidão? Sem chances.
Olho para Suelen. Ela está sorrindo. Louca. Louca e suicida, pelo visto.
Um gato turquesa gigante com asas maiores ainda desce do alto,
abocanha alguns mercenários, os sacode e depois joga longe, como se fossem
um brinquedo.
Espera... Um gato turquesa gigante voador acabou de pegar os
mercenários e os jogar longe? Balanço a cabeça e olho para cima.
Tem um gato turquesa gigante voando. Puta que pariu.
Suelen grita quando o gato desce e pega mais alguns mercenários. Olho
para ela.
— Eu avisei que os reforços estavam a caminho! — Ela fala antes de
voltar a atirar.
Se ela está dizendo...
VINTE E NOVE
Quando chegamos no espaçoporto, a nave de Drek já decolou e uma
nave pequena está no lugar. Pelo menos Suelen me avisou que eles não nos
esperariam ali: era mais seguro nos esperarem no ar, por causa dos reforços.
E já aprendi que quando Suelen fala reforços, ela quer dizer reforços. No
melhor sentido gente pra caralho, o suficiente para não precisarmos nos
preocupar com mais nada.
Foi isso que aconteceu lá embaixo. Depois do gato turquesa gigante
aparecer, os elevadores ao nosso redor descarregaram mais uma leva de
mercenários. Pensei que iam vir para cima de nós, mas não: eles avançaram
direto nos que estavam vindo atrás de nós. E uns tantos dos que estavam
vindo das ruas de Nassi estavam atacando uns aos outros. Continuei atirando
por puro instinto de sobrevivência, mas minha vontade era parar e encarar.
Tentar entender que porra era aquela. Só parei quando Suelen e Ithori se
encostaram do outro lado do tubo do elevador, assistindo à luta sem a menor
preocupação.
Não que isso tenha demorado muito: um dos aliens recém-chegados
passou perto de nós e mandou darmos o fora de uma vez. Nenhum de nós
discutiu, só aproveitamos os elevadores que já estavam no nosso nível. Vi
mais uns tantos corpos no corredor maior, antes das vagas individuais dos
espaçoporto, mas qualquer coisa ali em cima já tinha terminado há tempo.
A rampa de embarque da nave se abre. Suelen gesticula para esperarmos
e entra primeiro.
— Está pilotando agora? — Escuto ela perguntar.
Ithori revira os olhos e gesticula para eu entrar na nave. Obedeço,
percebendo que a mulher na cadeira de piloto não se deu ao trabalho de
responder.
Estreito os olhos quando Ithori passa por mim e se senta na cadeira de
copiloto. A mulher tem o cabelo escuro pouco para baixo dos ombros e está
vestida como uma mercenária. Mesmo assim...
— Mais uma terráquea?
Ela olha para mim e sorri.
— Se sentem logo, vocês duas. Não acho que vamos ter problemas, mas
não quero ficar parada aqui esperando alguém resolver pensar e subir para o
espaçoporto de novo.
Obedeço. Suelen resmunga alguma coisa e se senta na cadeira do meu
lado, praticamente ao mesmo tempo em que a mulher decola.
— Suelen e Ithori eu sei quem são, mas você... — começo.
— Jéssica — ela responde sem tirar os olhos dos controles enquanto nos
afastamos dos asteroides.
É, eu realmente não faço a menor ideia de quem ela é.
E... Me inclino para a frente, encarando o monitor na frente de Ithori.
— Estamos passando no meio de destroços? Não tinha isso aqui quando
chegamos.
— Tivemos uma pequena confusão aqui fora — Jéssica conta. —
Tentaram ir atrás de Drek quando ele decolou, mas nós cuidamos do assunto.
“Cuidamos”? Abro a boca para perguntar, mas ela contorna o asteroide.
Pisco, ainda olhando para o monitor. A nave de Drek apareceu, mas tem
outra nave atrás dela. Okay, eu já sei que a nave de Drek não é grande, por
assim dizer. Me lembro de como coube tranquilamente no hangar da nave de
Kradisla. E com certeza caberia fácil no hangar da nave que está atrás dele.
Na verdade, caberiam umas dez da nave de Drek nos hangares dela – plural,
tenho certeza. Puta que pariu, essa coisa é gigantesca.
Suelen ri e Jéssica dá uma olhada para trás.
— Eu falei, cuidamos disso — ela repete antes de olhar para a frente. —
Essa é a nave de Dravos.
Espera, Dravos? Esse é outro nome que conheço. Um dos mercenários
mais temidos do Acordo, com fama de conseguir cumprir qualquer tipo de
contrato, desde que o preço seja bom. E eu estou falando literalmente
qualquer contrato mesmo.
Suelen ri de novo.
— Jéssica é praticamente casada com ele — ela fala.
Fecho a boca com um estalo. Okay então. Caralho.
Ninguém fala nada por alguns minutos. Até parece que estamos perto
das naves, mas levando em conta os tamanhos envolvidos, a impressão é um
pouco enganadora.
— Draco estava se divertindo lá embaixo — Suelen comenta.
Jéssica faz um ruído irritado.
— Se meu gatinho tiver um arranhão depois disso, Dravos e Pryin vão se
ver comigo e não quero nem saber se precisavam dele para o plano. Ele é só
um gatinho! Onde já se viu...
Ithori olha para o teto. Não vou falar nada. Se Draco era o gato turquesa
gigante, nem tenho o que falar mesmo. Quer dizer, gato gigante, né.
Ou melhor, tenho o que falar sim.
— Onde é que você arrumou ele? — Pergunto.
— Qual o problema de vocês, terráqueas? — Ithori pergunta.
Suelen dá um tapa no seu braço. Jéssica e eu o ignoramos.
— Draco? Ele é de um planeta não explorado. Invadiu a nave quando
pousamos lá para fazer reparos e fiquei com ele.
Ele pegou um gato de um planeta inexplorado. Isso quer dizer que
provavelmente é de espécie desconhecida. Louca. Completamente louca.
Eu teria feito a mesma coisa.
— É, mas quando ela pegou o gato não era gigante. Era do tamanho de
um gato comum — Suelen conta.
Jéssica não responde.
Olho para o monitor de novo. Já estamos quase na nave de Drek e
consigo ver o hangar se abrindo.
Acabou. Não acredito que acabou. Agora só precisamos conferir os
dados e encarar o Conselho de novo. Puta merda. Não acredito nisso. Eu
consegui.
E, aliás...
— O que vai acontecer em Nassi agora?
Porque ainda estavam lutando quando saímos de lá e não parecia que
iam parar tão cedo.
Vejo o sorriso de Ithori de onde estou sentada, mas quem responde é
Suelen.
— Agora Pryinala vai assumir o controle.
— Oi?
Suelen sorri.
— Acho que é o que ela sempre quis. Controlar Nassi. Quando usaram
as defesas internas e dispararam aquele alarme, o pessoal do mercado fez um
ataque direto ao pessoal dela. Vocês, que estavam lá como representantes.
Ithori, eu e Mal, que trabalhamos para ela. Isso lhe deu liberdade para
convocar todos que trabalham para ela ou lhe devem favores.
— E Pryinala tem pessoas por toda parte — murmuro.
— Não foi à toa que ela fez darmos uma volta pelo Acordo nos últimos
dias — Jéssica fala. — Trouxemos pessoal de planetas que eu nem sabia que
existiam. Pryin estava preparada para isso.
Suelen dá de ombros.
— É Pryinala. Não me surpreenderia nem um pouco se ela estivesse
planejando isso desde que Gabi conseguiu prender Arcen. Ou desde que
Kernos começou a ir atrás dele.
É, pelo que eu li sobre ela, também não me surpreenderia. Mas...
— Pryinala e Dravos? São dois dos nomes mais apelões do submundo,
pelo que sei, e trabalham juntos...?
— Acho que não faz mais diferença contar isso agora, não é? — Suelen
pergunta.
— São irmãos de criação — Jéssica conta, manobrando a nave para
dentro do hangar.
Irmãos de criação. Caralho. Ou seja, eles com certeza estão trabalhando
juntos nisso e não é de hoje.
— Isso quer dizer que, se ela está assumindo o controle de Nassi...
Jéssica assente.
— Faça as alterações serem implantadas. Pryinala vai estar de olho no
submundo. O Corpo Militar não vai ter que fazer tudo sozinho.
Abro a boca e paro, sem saber o que falar. O tamanho disso tudo...
Caralho. Caralho. Isso quer dizer que parar com o comércio de seres
sencientes não é tão impossível assim.
A nave pousa. Encaro o monitor, vendo as luzes vermelhas piscando.
Quero sair daqui correndo e ir ver se os dados que copiamos realmente têm as
informações que precisamos, mas preciso esperar até a atmosfera no hangar
estar normal de novo.
Caralho. E se as informações não forem o suficiente, agora podemos
voltar em Nassi de boa e ir revirar o mercado. Isso é, se não tiverem destruído
tudo.
A rampa de desembarque começa a descer. Me levanto de uma vez e
praticamente corro para baixo. Merda. Não devia ter feito isso. Agora estou
sentindo meu corpo todo dolorido. Ai. Okay, dolorido não é a melhor
palavra. Paro e rolo os ombros para trás. Péssima ideia. Péssima, péssima.
Ouch. E tem um roxo gigantesco no meu braço. Caralho. Minhas costas
devem estar uma maravilha, então.
Ei’ri entra no hangar e vem na minha direção, andando depressa. Sorrio.
Aquele “beijo” junto com o “não morra” dele entregou coisa demais. E não
estou achando isso ruim. Não mesmo.
Começo a andar na direção dele e faço uma careta. Tudo dói. Engraçado
que quando estávamos na nave eu nem senti nada, mas provavelmente é
porque eu ainda estava nervosa ou coisa assim. Ei’ri olha para o meu braço e
para, sem nem levantar uma mão na minha direção. E é por isso que eu gosto
dele.
— Eles têm um restorativo que vai cuidar dos hematomas. Os médicos já
o calibraram para mim e para Re’ni, não devem demorar muito para
prepararem para você.
Assinto e solto um suspiro. Isso é bom. Muito bom.
— Sabe o caminho para a enfermaria?
Ele sorri e começa a andar. Vou atrás dele.
— Os outros? — Pergunto.
— As terráqueas e o sombra estão em alojamentos. Dravos mandou
alguém que sabia o suficiente da língua do sombra. Re’ni fez uma confissão
formal e está em uma das celas.
Levanto as sobrancelhas. Tudo bem, ele falou que ia se entregar, mas
não esperava algo assim, nem tão depressa.
Talita para na porta do hangar.
— Conseguimos descriptografar os dados!
Olho para Ei’ri. Ele segura minha mão e me puxa na direção de Talita.
Exatamente. A enfermaria pode esperar.
TRINTA
Encaro o tablet que estou segurando, sem nem ver o que está na tela. Já
li tudo o que está aqui umas três vezes, enquanto espero o restorativo fazer
efeito. Dei azar, na verdade. Nos drillianos ele faz efeito em questão de
minutos, mas eu não peguei tantas características deles assim. Ou seja,
algumas horas de molho. Pelo menos eu tenho o que fazer, não que isso seja
exatamente agradável.
Nós conseguimos as provas. Temos documentos comprovando a
fundação do mercado em Nassi, as informações financeiras desaparecidas dos
últimos dez anos e algumas informações picadas sobre o comércio de seres
sencientes antes de Nassi. É muita coisa. De verdade. E não é nada bonito.
Os nomes que as dançarinas me passaram estão aqui. Depois do que
Ei’ri comentou quando estávamos em Nassi, sobre terem sido membros do
Conselho, eu parei para pesquisar um por um. A grande maioria dos nomes
eram pessoas importantes. Representantes políticos ou sociais em vários
níveis. Pessoas confiáveis, alguns que se tornaram quase figuras históricas.
Se essas informações se tornarem públicas, vai ser uma loucura. E não
no bom sentido. Vai ter muita gente questionando os dados, mas com o que
temos aqui Gabi vai conseguir puxar mais informações. Vai ser um caso de
destruir a imagem de várias figuras importantes. Não que eu tenha algo
contra isso, normalmente. Se fez merda, tem mais é que pagar, mesmo que
seja anos depois. Mas algo nessa escala...
Não vai ser só uma questão de destruir a imagem de figuras importantes.
Vai ser o caso de abalar as crenças de umas tantas espécies. Por mais que eu
ache que a verdade tem que vir à tona de qualquer forma, nesse caso não vai
render nada positivo. Só vai causar caos. Além disso, é bem possível que as
informações desestabilizem o Acordo o suficiente para o Conselho perder a
maior parte da sua autoridade por um bom tempo. O que, obviamente, vai dar
mais merda ainda. O Corpo Militar não consegue fazer tudo sozinho, nem
pode. A primeira autoridade tem que ser o Conselho.
O pessoal de Dravos já encaminhou os dados para Gabi usando um dos
sistemas de transmissão seguros, pelo menos. Ela prometeu não fazer nada
com os dados até eu voltar, só manter um backup de tudo em caso de algum
imprevisto. De acordo com ela, minha missão, minha decisão. Eu estou tão
fodida. Caralho. O que é que vou fazer com isso?
E isso sem mencionar que essa missão era só para provar que eu estava à
altura de trabalhar com o Acordo. Depois disso, ainda vamos ter todo o
processo de implantação das alterações. Se eu soltar essas informações, vou
encontrar todos os obstáculos possíveis e impossíveis para a implantação.
Não vou chegar em lugar nenhum. Vai ter tudo sido por nada. Nem o
testemunho de Re’ni vai adiantar, mesmo que ele tenha prometido contar
tudo, desde o começo e em detalhes, se for preciso. O vídeo da confissão dele
também está com Gabi, aliás.
Suspiro e olho para o teto. Só tenho uma opção. Chantagem. Não
acredito que vou ter que fazer isso. Não mesmo. Eu odeio essas coisas.
Merda. Mas é o único jeito de conseguir algum resultado. Posso combinar
com Gabi alguma forma de liberar as informações aos poucos, de forma
controlada, para não fazer essa bagunça toda...
Eu odeio isso tudo.
A porta do quarto apita. E ainda preciso descobrir como desativar isso.
Me viro para o painel ao lado da cama e levanto as sobrancelhas quando
vejo a imagem de Mal parado do outro lado. Ele é uma das últimas pessoas
que eu esperaria ver aqui. Na verdade, tinha quase certeza de que a essa hora
ele já teria voltado para Nassi.
Abro a porta e ele entra, olhando ao redor.
— Não achei que ainda estivesse aqui — falo.
Mal dá de ombros.
— Estava combinando algumas coisas com Drek. Contatos às vezes são
importantes.
Contatos, certo...
— Mas estou voltando para Nassi. Tenho trabalho lá.
— Ajudando Pryinala a assumir o controle, aposto.
Ele sorri de orelha a orelha.
— Só vim contar de uma conversa interessante que ouvi quando já
estávamos aqui.
Coloco o tablet ao meu lado na cama. Lá vem merda, aposto.
— O que foi?
— Seus dois drillianos estavam discutindo.
Interromper para falar que não tem nada de “meus drillianos” vai
adiantar alguma coisa? Não, né? Então deixo ele continuar falando.
— Um deles estava furioso, dizendo que se o outro lá tinha meio
interesse em você não deveria ter deixado você ficar para trás. Deveria ter te
protegido ou coisa assim.
Levanto as sobrancelhas. Isso foi Re’ni, certeza. É a cara dele. E é uma
das coisas que me fazem ter certeza de que não estaríamos juntos a essa
altura, mesmo que ele não fosse o alien que me usou de lanchinho.
Mal continua sorrindo e assente. Ele realmente está se divertindo com
isso, filho da mãe.
— O outro drilliano falou que se tinha algum interesse em você, a
primeira coisa a fazer era confiar que sabia o que estava fazendo, e que você
fez a escolha certa quando mandou eles na frente com os dados.
Inclino a cabeça para a frente. Mal ri. Queria ter visto a cara de Re’ni
ouvindo isso. Queria mesmo. Deve ter sido impagável.
— Por curiosidade... Por que veio me contar isso? — Pergunto.
Ele dá de ombros.
— Pela forma como as terráqueas estavam prestando atenção na
discussão, pareceu importante.
Certo. Aham.
Estreito os olhos.
— Contatos às vezes são importantes? — Repito o que ele falou.
Mal assente.
— Tão importantes quanto pessoas que se lembram de te passar
informações que podem ser úteis, mesmo quando não entendem exatamente o
que elas significam.
Reviro os olhos e Mal ri.
— Se precisar de alguma coisa em Nassi, é só entrar em contato comigo
— ele fala antes de sair do quarto.
— Bom trabalho! — Grito antes de fechar a porta.
É, Mal possivelmente vai ser um contato útil no futuro. Ele é meio
louco. Eu gosto dos loucos.
Estico a mão para pegar o tablet de novo e a porta apita. Puta que pariu.
Olho para o painel. É Ei’ri.
— Tem algum jeito de desativar essa porra desse apito? — Pergunto
assim que a porta se abre.
Ele ri.
— Não nos alojamentos da tripulação. Pelo que me lembro, isso é
privilégio de capitão.
Argh.
Ei’ri para ao lado da minha cama e me encara.
— Como você está?
Dou de ombros e faço uma careta.
— Melhor. O único problema agora é minhas costas. Acho que mais
uma hora, no máximo, e o restorativo termina de fazer efeito.
Ou pelo menos efeito o suficiente.
Ele continua me encarando, sem falar nada. Eu tinha pensado que
quando a gente se encontrasse de novo fora da sala de controle, podendo
pensar em alguma coisa que não fosse trabalho, ele ia resmungar sobre eu ter
feito uma loucura, me arriscado à toa ou coisa assim. Na verdade, tinha
certeza disso. Mas o que Mal me contou...
— Você realmente calou a boca de Re’ni falando que eu fiz a escolha
certa?
Ei’ri estreita os olhos. Oops, escapou. Começo a dar de ombros de novo
e paro no meio do movimento. Não sou tão masoquista assim.
Ele suspira.
— Posso não ter gostado nem um pouco, mas foi a escolha certa. Eles
teriam nos acertado no elevador se vocês não tivessem desviado o fogo dos
atiradores. Eu não ia ser o cara te atrapalhando a fazer o seu trabalho.
Sorrio. Isso eu com certeza já notei. Não precisava nem de Mal ter vindo
me contar. Só que existe uma diferença entre não atrapalhar e realmente
aceitar. Essa segunda parte, eu não tinha tanta certeza assim até agora.
— Já decidiu o que vai fazer? — Ele pergunta.
— Eu sei o que preciso fazer — falo. — Querer fazer... Aí é outra
história.
Ei’ri assente e se senta na cama, ao meu lado. Aproveito e me acomodo
encostada nele. É mais confortável. Ele pega o tablet.
— Posso?
Assinto.
TRINTA E UM
Não falo nada enquanto Ei’ri corre os olhos pelas informações. E falo
corre os olhos porque não tem como ele ler isso tudo nessa velocidade. Alien
ou não, é impossível. Mas vejo quando ele empalidece, encarando um dos
nomes. Não preciso nem conferir para saber que ele chegou na parte dos
drillianos. Quando Talita nos mostrou os dados, mais cedo, só passou por
alto. Eu sabia que ele não tinha percebido os nomes envolvidos.
— Foi inocência minha esperar que Arcen fosse o único, não é? — Ele
murmura.
Não respondo, mas empurro Ei’ri um pouco para a frente, até estar meio
atrás dele, com um braço ao redor da sua cintura e o queixo apoiado no seu
ombro, sem me importar que minhas costas estejam doendo. Não adianta nem
tentar falar nada. Já pesquisei o nome que ele está encarando. O homem em
questão já estava morto há anos, mas tinha sido uma personalidade conhecida
e respeitada dentro dos círculos religiosos dos drillianos. Provavelmente algo
perto de um santo, para eles. E estava envolvido com o comércio de seres
sencientes, não só de mulheres terráqueas.
Ei’ri suspira e continua passando as páginas do arquivo. Tem nomes de
praticamente todas as espécies do Acordo ali. Os rhergari são um dos poucos
que escaparam, o que faz sentido, levando em conta que descobriram sobre o
Acordo porque estavam sendo abduzidos e vendidos. Das outras espécies não
envolvidas, duas caem na mesma situação que os rhergari e a última são os
krijkare. O que, na verdade, me surpreendeu. Eles têm um parentesco distante
com os drillianos e são uma das poucas espécies com quem os drillianos
negociam sem muito estresse. Faria sentido se estivessem envolvidos,
também. Mas, por algum motivo, não estavam.
Se isso tudo não terminasse em merda, eu ainda ia atrás do motivo.
Talvez Drek soubesse alguma coisa sobre isso.
— Você estava esperando algo desse tamanho? — Ei’ri pergunta.
Balanço a cabeça, ainda apoiada nele.
— Sabia que não ia ser coisa pequena e que ia ter nomes grandes
envolvidos, é sempre assim. Mas não achei que fossem ser tantos nomes,
nem tão importantes.
E quem diria, eu fui otimista. Preciso contar isso para Débora, quando
voltar para a Terra. Ela que sempre diz que eu sou pessimista demais.
Ei’ri deixa o tablet na cama e aperta minha mão, que está na sua barriga.
— Você sabe o que vai acontecer se soltar essas informações, não é?
Solto o ar de uma vez. Como se eu não tivesse passado esse tempo todo
pensando nisso. Não esperava aquilo. Era para ser só uma missão para buscar
informações, não uma bomba de merda em potencial.
— Posso não soltar nada — falo. — Ou pelo menos oferecer não soltar
nada.
Ele se endireita. É, eu estou falando com o cara certinho, honrado e o
caralho a quatro. Suspiro e chego para o lado, o soltando. Ei’ri se vira para
me encarar.
— Você está falando de chantagem.
Assinto. Sabia que ele não ia gostar dessa ideia e, pela expressão dele,
Ei’ri está odiando pensar nisso. Mas ele é meu consultor. Querendo ou não,
precisamos trabalhar juntos. Se eu for fazer isso, ele tem que concordar. Não
tenho como chegar na sala do Conselho e falar um “olha, eu acho que as
coisas vão funcionar assim e fodas”, com Ei’ri discordando logo depois. Só
vou ter uma chance de fazer isso dar certo.
Ei’ri respira fundo e balança a cabeça.
— Se fizer isso, você pode forçar a implantação das mudanças nas leis
— ele fala. — A outra opção...
Dou de ombros. Ele não disse que recebeu aquele treinamento com foco
meio diplomático das famílias tradicionais drillianas? Então ele sabe melhor
que eu o que vai acontecer se formos com a outra opção: soltar essas
informações.
— Merda.
Sorrio. É a primeira vez que vejo Ei’ri falando um palavrão. Quer dizer,
pelo menos um que eu reconheço.
— É uma boa descrição.
Ele olha para mim e suspira.
— Que seja, então. E é possível que questionem termos invadido o
complexo de Arcen. Se isso acontecer, deixe que eu resolvo.
Não tenho certeza de que isso é uma boa ideia, mas não esqueci do que
ele falou sobre as informações que Re’ni passou para ele, relacionadas com
Arcen, de alguma forma. Certo então. Se desse mais merda, ele se entenderia
com o governo drilliano.
— Nem parece que conseguimos — Ei’ri murmura.
Balanço a cabeça. Não parece mesmo. Pensei que quando terminasse
isso ia dar a louca e sair comemorando, mas só consigo pensar que isso é só o
começo. Ainda tem muito mais dores de cabeça pela frente.
Pelo menos minhas costas pararam de doer. Rolo os ombros para trás e
depois para a frente. Bem melhor. Será que consigo contrabandear alguns
desses restorativos quando voltar para a Terra? Vai ser muito mais prático
injetar um desses depois de alguma missão.
Se é que eu vou ter alguma missão depois disso. Porra. A situação com o
Acordo vai mudar completamente e eu vou ficar marcada como a pessoa que
veio aqui e tudo mais. Não vai ser a mesma coisa de antes.
Eu não quero ficar pensando nisso.
— Tem alguma coisa pra fazer?
Ei’ri levanta as sobrancelhas.
— Isso é uma daquelas formas terráqueas de me mandar embora sem
falar exatamente isso?
Rio. Merda, nem pensei antes de falar.
— Definitivamente não. É uma pergunta honesta.
Ele sorri e balança a cabeça.
— Nada a não ser esperar.
Olha só, que ótimo.
Me levanto e pego o meu tablet. Melhor guardar isso de uma vez. Ei’ri
não fala nada enquanto abro o armário escondido, coloco o tablet lá dentro e
me viro para ele de novo.
— Então sou a favor de fazermos alguma coisa para passar o tempo.
Ele estreita os olhos
— E suas costas?
Olha que gracinha, a primeira preocupação dele é comigo, mesmo
quando estou oferecendo sexo. Gostei.
Rolo os ombros para trás e para a frente de novo. Só uma dorzinha de
leve. Excelente.
— Se eu ficar quietinha e você prometer não pegar pesado, acho que não
vai ser problema nenhum.
Ei’ri respira fundo quando paro na sua frente, mas me segura pela
cintura de forma quase automática, enfiando as mãos por baixo da minha
blusa.
— É sempre assim com você?
— Assim como?
— Sempre direta, sem todo aquele jogo de sedução...
Dou de ombros e só não me afasto porque ele está me segurando.
Sempre achei aquela enrolação de “ai, deixa eu fazer charme aqui e ver se
alguém entende o que estou querendo de dizer” uma perda de tempo. Não sou
assim. Nunca foi. E realmente pensei que já tínhamos passado disso há muito
tempo. Assim, aquele beijo mais um “não morra” de Ei’ri não foram à toa,
não é?
— Posso fazer isso, só achei que não precisava.
Ele balança a cabeça, me puxando mais para perto.
— Não estou reclamando. Só acho que uma hora você ainda vai me
matar com uma dessas.
— Dramático!
Ei’ri ri e sobe as mãos por baixo da minha blusa, até estar passando os
dedos logo debaixo dos meus seios. Respiro fundo e solto o ar de uma vez.
Eu que vou matar ele? Acho que Ei’ri entendeu alguma coisa bem errada,
porque o contrário é bem mais fácil de acontecer. Ele suspira e um arrepio me
atravessa quando sinto sua respiração na minha pele. Como é que ele faz isso,
caralho?
Ele olha para mim e sorri, antes de subir mais a mão e apertar meus
seios. Sinto seus dedos nos meus mamilos e ele passa as unhas por eles.
Caralho. Por que foi que eu tirei os piercings nos mamilos quando comecei a
trabalhar na APLA? Preciso colocar de novo. Ei’ri brincando com eles vai ser
uma coisa de outro mundo.
Coloco as mãos nos seus ombros quando ele passa as unhas pelos meus
mamilos de novo, gemendo. Preciso de um apoio. Não é justo que ele saiba
exatamente como me deixar louca assim, sem nem fazer esforço.
Ei’ri beija minha barriga antes de se levantar, puxando minha blusa.
Levanto os braços e ele para na minha frente, me encarando. Passo a língua
pelos lábios. Pode encarar, eu deixo. Vou fazer a mesma coisa daqui a pouco,
mesmo.
— Vai ficar só olhando? — Pergunto.
— Paciência, paciência... — ele murmura e ri.
Estreito os olhos. Ele passa uma mão pelo meu rosto e coloca meu
cabelo atrás da minha orelha, antes de descer os dedos pelo meu braço,
acompanhando onde ainda está um pouco roxo.
— Queria não ter visto você preparada para se sacrificar daquele jeito.
Ou então poder ter certeza que algo assim nunca mais ia acontecer.
Suspiro. Estava demorando. Essa é a falação que eu estava esperando
quando ele chegou no meu quarto.
Ei’ri balança a cabeça e coloca um dedo na frente da minha boca.
— Mas você não é assim, eu já sei. Tem o seu trabalho e se orgulha dele.
Então eu só queria poder estar ao seu lado e ajudar como puder, ou no
mínimo estar aqui depois.
Mordo o lábio, respirando fundo. Por isso eu não esperava. Nem depois
daquele beijo no elevador. Puta merda.
E não importa o que ele quer, porque Ei’ri ainda vai ter que se entender
com o governo drilliano e tem aquelas informações da “outra missão” para
resolver. Porra.
Respiro fundo de novo. Não vou ficar pensando nisso agora. Não
mesmo.
— Então é melhor você não desperdiçar o tempo que tem — falo.
Ei’ri sorri e me vira na direção da cama.
— Não pretendo desperdiçar. Mas o combinado é você ficar quietinha e
não pegar pesado.
Estreito os olhos. Ele não precisa levar o que eu falei tão a sério assim.
Rolo os ombros para trás. Nem estou sentindo mais nada nas costas.
Ele revira os olhos e me empurra para trás, até que minhas pernas batem
na cama.
— Vamos ter tempo para o que quer que esteja se passando na sua
cabeça depois que o restorativo terminar de fazer efeito, Carol.
— Eu vou cobrar isso.
Ei’ri sorri.
— Cobre. Mas primeiro, eu posso fazer o que quiser com você.
Ele me encara dos pés à cabeça de novo, antes de colocar as mãos nos
meus ombros. Deixo ele me empurrar até eu estar meio deitada na cama e
levanto o corpo quando Ei’ri puxa minha calça e minha calcinha de uma vez.
Ele para de novo, me encarando, e cruzo os braços atrás da cabeça. Estou
sendo paciente. Bem paciente.
Mas não preciso ser. Me lembro da primeira vez que transamos, quando
ele me ensinou sobre aquela coisa dos drillianos de puxar a força da outra
pessoa. Eu quase gozei com a sensação, mas tenho quase certeza de que não
fui só eu. E se posso usar isso, é melhor aproveitar.
Ei’ri sobre na cama e se abaixa para me beijar. Passo os braços ao redor
dos seus ombros e uma perna ao redor da sua cintura, o apertando contra
mim. Ele ri, sem se afastar, mas se fazer mais nada além de me beijar. Certo,
então.
Me concentro, quase como quando estava aprendendo a usar as escamas.
Não deve ser muito diferente... E eu consigo sentir Ei’ri. Puxo de leve, só o
suficiente para ele me sentir ali. Ele geme e morde meu lábio. Na mosca.
Puxo de novo e ele se aperta contra mim antes de se afastar de uma vez.
— Você é um perigo — ele resmunga, tirando a blusa e a jogando para o
lado.
Sorrio. Assim que eu gosto.
— Você gosta de brincar com o perigo — murmuro e puxo de novo.
Ele fecha os olhos e puxa o ar com força, com as mãos no cós da calça.
— Não sei se foi uma boa ideia te mostrar isso...
Ei’ri tira a calça e a deixa no chão. Nem me surpreendo quando vejo que
ele já está duro. Assim que eu gosto mesmo. Passo a língua pelos lábios. É,
ainda tem muita coisa que eu não fiz com ele e que quero fazer. De alguma
forma, ele sempre consegue o que quer e eu fico sem fazer o que pensei. Não
que eu esteja reclamando. As ideias dele são boas. Fodidamente boas.
Meu corpo todo arrepia quando sinto Ei’ri puxando. E é diferente, dessa
vez. Não é como se eu fosse gozar na hora, é mais como se ele tivesse pegado
meu vibrador favorito e encostado no meu clitóris por uns dois segundos
antes de se afastar. Fecho as pernas com força, gemendo. Se é essa a sensação
do que eu estou fazendo com ele...
Ei’ri me puxa mais para a beirada da cama e se ajoelha no chão. Estou
falando, amo as ideias dele. E amo o que ele sabe fazer com a boca. Mesmo
que agora ele tenha só parado perto demais de mim, o suficiente para eu
sentir sua respiração, mas sem me tocar. Tento fechar as pernas e o puxar
para perto, mas ele só ri enquanto me segura na posição que quer. Filho da
mãe. Puxo de novo. Sinto sua respiração em mim quando ele solta o ar de
uma vez e geme baixo. Caralho.
Ele puxa de volta, ao mesmo tempo em que se abaixa e chupa meu
clitóris. Agarro a beirada do colchão com força. Puta merda, eu não devia ter
começado com isso, porque ele não para mais de puxar, sem forçar hora
nenhuma, só o suficiente para me deixar no limite, com todo o meu corpo
sensível, queimando, enquanto Ei’ri me chupa e me lambe... E enfia dois
dedos dentro de mim.
— Porra!
Ele ri, sem se afastar, e dobra os dedos.
— Ainda não teve isso.
Puxo o ar com força. Filho da mãe. Ainda faz piada. Mas não consigo
responder, porque ele começa a mover os dedos, entrando, saindo, entrando
de novo e dobrando, acertando o lugar perfeito... E Ei’ri ainda está me
chupando, passando a língua pelos meus lábios, ao redor do meu clitóris,
antes de chupar de novo.
Ei’ri se afasta. Porra, eu estou quase lá! Tento prendê-lo no lugar com as
pernas, mas ele só ri e se levanta. Certo então. Respiro fundo e puxo, ao
mesmo tempo em que começo a me masturbar. Ele geme alto, com o olhar
preso na minha mão no meio das minhas pernas. Mordo o lábio, olhando para
ele enquanto desço com um dedo até minha entrada e subo de volta para o
clitóris. Estou ensopada, e é culpa dele. Ei’ri segura sua ereção e aperta. É a
minha vez de gemer. Ele não vai fazer isso. Por favor, isso é pedir para eu
morrer.
Se bem que é uma boa ideia para outro dia.
Puxo de novo. Ei’ri grunhe alguma coisa e vem na minha direção. Paro o
que estou fazendo e me arrasto para trás na cama logo antes de ele subir no
colchão.
— E você também gosta de brincar com o perigo.
Passo as pernas ao redor do quadril de Ei’ri, sem nem me dar ao trabalho
de responder. Estou sentindo sua ereção contra mim e é isso que importa.
Ele entra em mim de uma vez. Me seguro nos seus ombros, sentindo
cada centímetro dele entrando em mim, de novo, e como ele quase é largo
demais. Puta que pariu, eu amo isso. Ei’ri me beija, ao mesmo tempo em que
se afasta. Enfio as unhas nas suas costas quando ele volta, entrando em mim
devagar e puxando.
Gozo de uma vez, agarrando Ei’ri como se minha vida dependesse disso,
enquanto ele sai e volta de novo, devagar, ainda me beijando, engolindo meus
gemidos. Puta merda. Ele vai me matar aqui. Fecho os olhos com força
quando ele puxa de novo e eu faço o mesmo. Ei’ri geme e quase cai em cima
de mim. Puxo mais uma vez. Caralho, eu queria ter aprendido a fazer isso
antes.
Não. Não ia ter feito isso com outra pessoa.
Ei’ri grunhe alguma coisa e começa a se mover mais depressa, entrando
e saindo de mim. Me seguro nele, descendo as mãos pelas suas costas,
subindo de novo, sem conseguir fazer mais nada além disso, porque se Ei’ri
continuar assim eu vou gozar de novo e... Ele inclina o quadril, mudando o
ângulo. Gemo alto quando ele volta e vejo estrelas quando gozo de novo.
TRINTA E DOIS
A porta para a sala do Conselho se abre com um ruído de ar escapando.
Ei’ri aperta minha mão antes de me soltar. Respiro fundo e entro na sala, com
ele logo atrás de mim. É tudo ou nada agora.
Não tivemos chance de preparar nada. Assim que entramos em contato
com o Conselho, esperando que marcassem uma reunião nos próximos dias,
recebemos ordens para ir até lá imediatamente. Nossa teoria era de que já
tinham ficado sabendo sobre o que aconteceu em Nassi – o que não era
exatamente uma surpresa. Ou seja, qualquer chance de sentar e planejar como
apresentar o que descobrirmos, possivelmente aproveitar e usar Kernos para
ter uma ideia melhor de como o Conselho reagiria, foi por água abaixo. É na
base do seja o que deus quiser. Então, que seja.
Olho ao redor rapidamente. Depois de ter passado por Nassi os aliens do
Conselho nem parecem tão estranhos mais. E estou preocupada demais para
ficar prestando atenção neles, de qualquer forma. Do cubículo menor, Gabi
assente. Desta vez ela está sozinha ali. Re’ni foi levado direto da nave para
uma das prisões do Corpo Militar sob controle exclusivo dos rhergari. Isso
quer dizer que quem o comprou não vai ter como fazer nada. E, se tentar, vai
estar arrumando uma guerra particular com os rhergari. Acho que não tem
ninguém no Acordo louco o suficiente para isso.
— Agente Ana Carolina Dutra, consultor Ei’ri Vertan, o Conselho
reconhece sua presença.
Respiro fundo e me endireito assim que escuto a voz impessoal que eles
usam. Já cheguei até aqui, não vou deixar dar merda agora. Não vou.
— Agradecemos o reconhecimento do Conselho — respondo.
Vejo algumas expressões surpresas dentro do maior cubículo, onde
Kernos está. O protocolo é a pessoa com maior autoridade em uma equipe
responder ao Conselho. Fazendo isso, eu acabei de indicar que Ei’ri está
subordinado a mim. Na verdade, isso foi ideia dele: uma forma de
desestabilizar os membros do Conselho e nos dar uma vantagem, mínima que
seja, antes de caírem matando.
— Este Conselho foi informado de que a missão que lhes foi confiada
está completa.
— Correto.
— Dê seu relatório, agente.
Respiro fundo. Isso vai dar merda. Não tem outra opção.
— As abduções de terráqueas já vêm acontecendo há séculos. Existem
registros na Terra da presença de naves e seres claramente não humanos,
datados em épocas onde não era possível que isso fosse imaginação.
Obviamente, registros de desaparecimentos ou dados concretos sobre um
possível comércio de mulheres terráqueas desta época são impossíveis de
serem encontrados, até mesmo pelo fato de que é algo que começou antes da
criação do Acordo — começo. Essa parte eu tive tempo para ensaiar. — Ou
seja, nossa missão de investigar a origem do comércio de terráqueas deveria
ser investigar o comércio como ele é hoje: quando e como foi formado, sua
estrutura inicial e pessoas envolvidas.
Kernos sorri. Faço um esforço para não olhar para ele. Profissionalismo,
Carol.
Mas é bom saber que ele está se divertindo com isso. Quer dizer que
estou no caminho certo.
— O comércio de terráqueas como é hoje começou a se formar cerca de
trinta ciclos padrões atrás. Ele dependia de bases móveis, não muito
diferentes das que o Corpo Militar localizou nos últimos anos. O controle de
toda a operação era centralizado em uma delas, com mudanças de base de
tempos em tempos por segurança. Era um sistema experimental, já que não
tinha como se sustentar pela própria natureza das bases móveis. Cerca de dez
ciclos padrões atrás o mercado foi movido definitivamente para um
entreposto ilegal chamado Nassi. As bases móveis foram modificadas, se
tornando centros de treinamento da mercadoria. Além disso, foram criados
alguns mercados externos, as naves-mercado, para atender aos pedidos com
prazo de entrega e aos clientes que não podiam ou não queriam correr o risco
de ir até Nassi.
— O Conselho deseja saber de onde vieram estas informações — a voz
fala assim que pauso para respirar.
Certo.
— Do mercado principal, em Nassi.
Vejo alguns dos membros do Conselho se virarem para falar uns com os
outros. Alguém pergunta alguma coisa para Kernos e ele assente, sem tirar os
olhos de nós.
— E como chegaram à conclusão de que precisavam ir em Nassi?
Eu sabia que isso ia dar merda. Já estou até vendo.
— Fontes nos repassaram nomes e dados, mas não tinham provas.
Fomos até Nassi para consegui-las, já que era o único lugar onde estas
informações poderiam estar.
— Há uma denúncia de que chegaram a estas informações de forma
ilegal, o que invalidaria tudo o que foi falado até o momento.
Sabia. Merda.
Balanço a cabeça.
— Nossas fontes são confidenciais, por motivos óbvios, mas não são
ilegais.
A menos que eles considerem duas dançarinas terráqueas em Im’liah’ka
como uma fonte ilegal. Mas tenho a leve impressão de que estão falando de
outra coisa.
— Caso a denúncia seja especificada, faremos o possível para tirar
qualquer dúvida com relação a como conseguimos nossas informações —
completo.
Vejo movimento em um dos lados do cubículo maior. Puta merda, eu
nem sabia que tinham uma representante drilliana aqui. Pelo que me
lembrava, eles não estavam no Conselho Superior, só nos níveis abaixo.
A mulher passa entre os outros aliens e para na frente do vidro que nos
separa.
— Vocês invadiram uma propriedade drilliana, quebrando quatro leis de
imigração e cinco leis nativas — ela fala, mas o que sai é a mesma voz
impessoal das outras falas do Conselho.
Abro a boca para responder e Ei’ri coloca uma mão no meu ombro.
— Com sua permissão, senhora, este é um assunto interno que não deve
ser discutido em uma reunião aberta do Conselho. Existem mais informações
pertinentes que não são para os ouvidos de todos aqui.
Faço um esforço para não mostrar nenhuma reação. Ou ele está
enrolando a representante drilliana de forma magistral, ou isso está ligado
àquela coisa toda de Re’ni ter informações que não podiam se perder. Muito
difícil escolher uma opção. Muito difícil mesmo. Só que não.
A representante drilliana encara Ei’ri através do vidro. Acho que essa é
uma boa hora para ele pensar em usar o nome da família, porque se ela
insistir vai ser complicado escaparmos dessa.
A mulher assente.
— A questão da invasão vai ser tratada de forma interna, com
penalização dupla caso o governo drilliano considere que o sigilo não seja
necessário.
Okay então. Ei’ri não parece nem um pouco preocupado com a
possibilidade de penalização dupla, então vou confiar que ele sabe o que está
fazendo, também.
Um problema a menos, não sei quantos na lista.
— Ainda assim, resta a questão de que temos uma agente terráquea e o
consultor designado presentes. Onde está o observador indicado para o
projeto?
Ainda bem que nem comemorei.
— Re’ni Vertan confessou ter sido contratado para sabotar o processo de
implantação das alterações nas leis do Acordo — Ei’ri fala. — Neste
momento, ele está sob custódia do Corpo Militar. Sua confissão é parte das
informações relevantes para este processo e ela, assim como todos os dados
pertinentes às acusações feitas nela, também já está nas mãos do Corpo
Militar.
Uns tantos aliens olham para Kernos, que assente. E preciso admitir que
Talita fez um ótimo trabalho com os dados da confissão. E isso é algo que
não preciso me preocupar. O Corpo Militar vai ir atrás de quem estava
puxando as cordinhas de Re’ni, e isso não vai ser bonito. Ou vai, dependendo
do ponto de vista.
A representante drilliana inclina a cabeça e se afasta do vidro.
— Continue, agente — a voz fala.
Respiro fundo. É agora.
— Peço permissão para ter acesso a um terminal com projetor.
Uma área do chão sobe, mostrando um terminal não muito diferente do
que estávamos usando na nave de Drek. Tiro o cristal de dados que está no
meu bolso e o coloco na entrada certa.
Vamos lá, Carol. Você sabe o que precisa fazer.
— Tendo em mente as informações recolhidas, tenho uma proposta a
fazer para este Conselho.
Alguns dos aliens murmuram entre si. É, eu sei que isso não é parte do
protocolo.
— Prossiga.
— Em troca da não divulgação destes dados para o grande público,
gostaria que o processo de análise para implantação seja ignorado. Temos
relatórios aprovando a implantação vindos de duas agências do Acordo,
assim como o parecer da APLA e do Corpo Militar para substituí-lo.
E isso foi uma das poucas coisas que Gabi conseguiu me avisar quando
chegamos. Ela entrou em contato com agências independentes que analisam o
cenário político e econômico do Acordo, as mesmas que o próprio Conselho
usa para conseguir seus dados, e arrumou esses relatórios.
— Agente Dutra, o que você está propondo é potencialmente ilegal,
além de...
— Eu não faria isso, se fosse vocês — a voz de Gabi interrompe.
Resisto à vontade de olhar para trás.
— Não vou falar mais nada. Só sugiro que escutem o que eles têm a
dizer antes de tomar uma decisão.
Gabi, eu te amo.
Ninguém fala nada por alguns instantes, e então...
— Prossiga, agente.
Respiro fundo. Lá vamos nós.
— Das pessoas ligadas ao comércio de terráqueas, entre os fundadores
da rede que deu origem ao comércio como ele é hoje. Lk’rai Navide, dos
aikreli. Financiou as primeiras bases e teve retorno financeiro vindo do
comércio de terráqueas até sua morte. — Toco no terminal, ativando o
projetor e mostrando os documentos. — Seus descendentes continuam a
receber uma porcentagem do ganho bruto do mercado até hoje.
O representante aikreli vira as costas para o vidro.
Sorrio e continuo fazendo minha lista de nomes.
TRINTA E TRÊS
— Um brinde para a nova intermediária terráquea no Acordo! — Gabi
fala e levanta a taça.
É, ela arrumou taças para fazer esse brinde. É o fim do mundo.
Todo mundo levanta as taças. Olho ao redor. Estamos na sala enorme do
apartamento de Gabi e Kernos, em Nehyna: Tati, Darius, Suelen, Ithori, mais
duas terráqueas que Gabi me apresentou quando chegamos e alguns aliens,
Kradisla e mais alguns aliens da força-tarefa. É muita gente. Mais do que eu
esperava.
— Para Carol! — Quem puxa a resposta é Suelen.
Quero abaixar a cabeça e achar um buraco para me esconder.
Kratos levanta um daqueles copos tampados, cheio de suco azul, e grita
alguma coisa que não entendo. Ele já quase arrancou meu cabelo de novo,
mas continua sendo fofo. Rio quando ele balança o copo. Vantagens da
tecnologia do Acordo: não tem como ele derramar suco pela casa inteira. Não
faço a menor ideia de como isso funciona, só sei que funciona. E isso serviu
para todo mundo rir e parar de me encarar.
Hmm, será que agora que sou a representante do Acordo posso começar
a organizar um esquemazinho de comércio de tecnologia do Acordo na
Terra? Tenho certeza que esse copo ia vender pra caralho.
Eu não pensei que ia ser tão fácil convencer o Conselho a concordar com
minha proposta – e é mais bonitinho dizer isso do que falar que fiz uma
chantagem daquelas. Mas, quando terminei a lista de nomes, mostrando todos
os dados e documentos que conseguimos, não teve um membro do Conselho
que quisesse que aquela informação se tornasse pública. E, levando em conta
que Gabi já tinha feito sua ameaça sutil – escutem tudo senão eu jogo os
dados na rede – eu não precisei me preocupar com ameaças ou qualquer
merda do tipo. Mas eles concordaram. O conjunto de regras que Gabi me
pediu para criar, quatro anos atrás, já está com as mesmas agências que nos
passaram os relatórios, sendo analisado. Ao que tudo indica, elas vão ser
aprovadas.
E, com essa mudança, o Conselho achou necessário criar um cargo de
intermediário entre a APLA e o Conselho. Até então, quem fazia isso era
Kernos, mas era algo informal. No melhor estilo “se precisar, vai lá”. Agora
vai ser tudo organizado, com uma equipe trabalhando nisso e um suporte
muito maior do Acordo quando tivermos problemas na APLA. Eu realmente
esperava que esse cargo fosse oferecido para um dos diretores da APLA,
estava até torcendo para Andréia, a diretora que me recrutou, ser escolhida.
Mas Kernos disse que, depois de terem me enviado em uma missão para
provar que eu estava à altura de trabalhar com eles e do meu resultado, seria
hipocrisia chamarem qualquer outra pessoa.
Ou seja: continuo fodida.
Olho para Gabi, que virou metade da taça de uma vez. Louca. Isso é
aquela bebida que ela compra de uma amiga na Terra. Hidromel, acho. Nem
sou louca de virar assim.
— Esse cargo deveria ter ficado para você — falo.
Ela balança a cabeça, coloca a taça em cima de uma das mesas e vai
pegar Kratos, que está segurando um garfo como se fosse uma espadinha de
brinquedo. Okay. Bem filho do pai. Sei que Gabi proibiu Kernos de ensinar
qualquer coisa de luta para ele antes dos três anos, mas tenho a leve
impressão de que alguém não ficou sabendo disso.
— Eu tenho a força-tarefa. Tenho certeza de que isso vai me deixar
ocupada por uns bons anos.
Verdade. Mesmo com Pryinala assumindo o controle de Nassi – ela
entrou em contato logo depois que a reunião do Conselho acabou, quando
estávamos voltando para Nehyna – a força-tarefa precisa continuar existindo.
Não falamos nada que desse a entender que sabemos do comércio de outros
seres sencientes e não faço ideia do que os membros do Conselho sabem
sobre isso. Mas as alterações vão valer para as outras espécies também. Ou
seja, agora é com Gabi resolver as coisas sobre todas as pessoas que estavam
no mercado em Nassi, que Drek já foi buscar. Tanto as terráqueas quanto as
pessoas que nem sabemos de qual planeta vieram. E ainda tem toda a questão
de que as abduções não vão parar magicamente. É um negócio lucrativo
demais. Isso quer dizer que ela vai ter que continuar investigando e indo atrás
dos mercadores.
Okay, Gabi está mais fodida que eu.
Alguém dá uma risada alta. Olho para o lado. Tati desabou em um sofá,
enquanto Suelen e Ithori assentem. Tenho até medo de saber o que estavam
falando. Darius e Kernos estão conversando, um pouco afastados dos outros.
Trabalho, aposto. O Corpo Militar não é composto praticamente só de
rhergari à toa. Um bom tempo atrás, eram eles sendo abduzidos. Até que uma
nave caiu no planeta deles, eles estudaram a tecnologia, adaptaram para a
cultura deles, e quando os mercadores voltaram para levar mais rhergari
foram atacados pela frota deles. Levando em conta que os rhergari são uma
sociedade guerreira – eu diria quase militar – apresentar o Acordo para eles
desse jeito não foi uma boa ideia. Até hoje eles têm o maior poder de fogo do
Acordo. E é justamente por causa dessa história que Kernos foi o primeiro a
começar a fazer algo concreto sobre as abduções. Essas alterações nas leis
vão mudar tudo para eles, também.
Tomo um gole do hidromel. Tá, isso é bom. Mas parece que é daquelas
bebidas que você tem certeza que é fraquinha, aí um copo depois você se
levanta e está trocando as pernas. Não vou abusar. Não mesmo.
Alguém ligou o som e está tocando Michael Jackson. Se vier Queen
depois, eu vou ter certeza de que é a playlist da Gabi. Mas não quero
comemorar. Me encosto na parede, só olhando enquanto os outros
conversam. Todas as terráqueas que estão aqui, além de mim, foram
abduzidas. E eu deveria ter sido também, se não tivessem pegado Gabi por
engano. Os aliens que estão aqui passaram anos tentando fazer essas
alterações passarem. Todos eles têm motivos para comemorar. Eu sou só a
garota que chegou depois para colocar o ponto final na história – se é que
posso chamar isso de ponto final. Tanto é que nunca teria conseguido fazer
isso se não fosse pela rede de contatos que Gabi construiu nesses anos aqui.
Caralho. Eu odeio essa sensação de “trabalho concluído”. Argh. Podem
até dizer que é bom, mas não gosto mesmo. Ainda mais depois da coisa louca
que foi essa missão. Sei lá, bate uma coisa estranha depois disso tudo. Não é
bem que eu quero que aquela loucura continue, mas... Ah, sei lá. Acabou,
mas ainda está faltando alguma coisa.
Olho para Gabi, que está com Kratos perto da janela, e aponto para cima.
Ela assente. Ótimo. Vou subir para o teto. Gabi me mostrou ele da outra vez,
antes de irmos para a primeira reunião com o Conselho. O teto da torre onde
ela mora é um jardim gigante e fechado. Pelo menos lá eu sei que vou ficar
sozinha. Entro no elevador e aperto o indicador do teto.
E okay, parte do meu humor esquisito é porque Ei’ri sumiu depois da
reunião do Conselho. Vi quando ele saiu com a representante drilliana, mas
não tive notícias dele depois. Nem vou negar que estou preocupada. Nós
invadimos uma propriedade do governo drilliano, fato. A punição para isso é
bem alta e, ainda por cima, ele falou aquilo de ter informações que não
podiam ser discutidas no Conselho. Se o que ele tiver não for bom o bastante,
não quero nem pensar no que pode acontecer. E eu não vou nem ficar
sabendo. Isso é injusto demais. Ele podia pelo menos ter falado o que estava
acontecendo mesmo, ao invés de só sumir, e aí tentaríamos ajudar. Certeza
que tem alguma coisa que poderíamos fazer. Depois dessa missão insana, não
duvido de mais nada.
Saio do elevador e me aproximo da porta que dá para o jardim. Ela se
abre sem eu precisar fazer nada. Amo esses sensores. Saio para o jardim, sem
nem prestar muita atenção nas flores. Elas são enormes – estamos em
Nehyna, então tudo vai ser grande – mas não são tão estranhas assim. Quer
dizer, se eu ignorar os esquemas de cores. Mas só quero ficar sozinha, não
necessariamente ficar olhando para as flores.
Procuro um lugar na sombra, perto da parede, e me sento no chão. Nem
está quente hoje, e o vento é mais que o suficiente para compensar os dois
sóis de meio da tarde.
Acabou. Não acredito nisso. Acabou, e consegui. Não sei direito como,
mas consegui. Agora vou para a ferrada 2.0, que vai ser fazer essa porra toda
funcionar. Certo. Consigo fazer isso.
Respiro fundo e fechos os olhos, apoiando a cabeça na parede. Não
quero nem pensar agora.
Acho que posso tirar um cochilo aqui, não posso?
Acordo com alguém se sentando do meu lado. Ei’ri. Que lindo, ele some
do nada e aparece aqui. Posso esganar?
— Sua prima avisou que tinha subido — ele fala. — Também não
conseguiu comemorar?
Balanço a cabeça e cruzo os braços.
— É estranho demais pensar que acabou.
Ele bufa. Bom saber que não sou a única estranha sem saber como reagir
depois disso tudo.
— Você vai voltar para a Terra, não vai? — Ei’ri pergunta.
Dou de ombros.
— Não sei. Não faço a menor ideia de como isso vai funcionar agora.
Acho que vai ser mais fácil se eu ficar por aqui e for lá de tempos em tempos.
A APLA já é uma organização funcional. As coisas aqui no Acordo... Nem
um pouco.
Ele assente e olha para a frente.
O quê...?
Ah, me poupa.
— Se por algum acaso você não estiver ferrado com o governo drilliano
por causa do que falou lá na reunião, queria você por perto — falo.
Ei’ri olha para mim. Isso chamou sua atenção, é?
Homens. Qual a dificuldade?
Ele balança a cabeça.
— Eles aceitaram minha justificativa. Usei as informações que Re’ni me
passou. Alguém tem que cuidar disso direito.
Assinto.
— Ótimo. Porque eu quero te conhecer melhor. Fora das correrias, fora
das situações onde podem nos matar a qualquer momento, sem essas
preocupações todas.
Ele sorri e me puxa para um beijo. Passo um braço ao redor do seu
pescoço e o outro ao redor da sua cintura, colando nossos corpos. Ei’ri foi
uma das melhores partes disso tudo. Definitivamente vou aproveitar, já que
ele está aqui.
Ei’ri se afasta e olha para a porta.
— Quais as chances de alguém nos interromper aqui?
Considerando que não quero uma rapidinha e que conheço minha prima?
— Altas — respondo.
Ei’ri suspira.
— Você se importa?
Sorrio. Deixa eu pensar, estou nesse jardim, sozinha com Ei’ri. Temos o
tempo que quisermos. Se alguém resolver subir, problema.
— Nem um pouco.
TRINTA E QUATRO
Gabi
— Dez minutos para a chegada da nave.
— Obrigada — respondo e desligo o comunicador.
Kratos pula, tentando alcançar o terminal.
— Quero!
Reviro os olho e pego Kratos, saindo de perto do terminal na mesma
hora. Ele quer tudo, já sei. E se eu não me afastar dos controles, ele vai se
esticar até conseguir enfiar a mão em alguma coisa. Preciso descobrir como
deixar as coisas da nave à prova de bebês, porque daqui a pouco ele vai
conseguir pular o suficiente para mexer onde não deve. Deve ter algum jeito,
não é possível que nenhuma das espécies do Acordo leva crianças para as
naves, porque se tem uma coisa que não vou fazer é deixar ele em Nehyna o
tempo todo enquanto resolvo as coisas da força-tarefa. Tá, tenho quase
certeza de que ter uma criança a bordo não é tão incomum, ou então a
tripulação da Kradisla teria feito pelo menos algum comentário. Vou
perguntar isso para ela depois.
— Kernos? — Chamo. — Pode ficar com Kratos?
A porta da outra sala se abre e Kernos sai. Estamos revezando na sala de
controle, porque lá é um lugar que definitivamente não é uma boa ideia
deixar Kratos entrar.
— Drek está chegando?
Assinto. Já faz mais de uma semana desde a reunião com o Conselho,
quando aprovaram as alterações e tudo mais. Isso quer dizer que faz mais de
uma semana desde que Pryinala entrou em contato, contando que tinha
assumido o controle de Nassi e que precisava que alguma nave da força-
tarefa fosse buscar as terráqueas e as outras pessoas que estavam presas no
mercado de lá, porque não podia pedir Dravos para se afastar ainda. Repassei
isso para Drek porque, do meu pessoal, ele é quem teria mais facilidade para
chegar em Nassi, sem falar que tem terráqueas na tripulação há anos. Eu só
não esperava que ele fosse demorar tanto assim. Era uma viagem de três dias,
no máximo. Não uma semana. Mas finalmente estavam chegando.
— Kratos, vai com o papai.
Kratos se estica na direção dos controles. Teimoso. Pior que não posso
nem resmungar e falar que ele puxou isso de Kernos.
Kernos ri e pega Kratos, ignorando os resmungos dele.
— O que o papai já falou sobre mexer nos terminais?
— Quando crescer!
— E então?
— Eu cresci!
Respiro fundo e me viro para a porta depressa. Não posso rir, não posso
rir, não posso rir...
Não ouse rir. Kernos fala, usando a comunicação mental.
Saio da sala quase correndo e fecho a porta antes de começar a rir.
Isso ele não puxou de mim, comento.
Eu acho.
Kernos não responde.
Certo, boa sorte para ele. Eu realmente preciso lembrar de perguntar
Kradisla sobre crianças em naves e o que dá para fazer de medidas de
segurança. Se na Terra tem todas aquelas coisinhas para deixar casas à prova
de bebês, eles têm que ter alguma coisa aqui.
Vou direto para o hangar. Marina e Isathra já estão na sala de espera
quando chego. Acho que acostumei demais a ser sempre Tati me ajudando a
receber terráqueas, mas ela pediu uns dias de folga com o marido. Ou seja,
desta vez é Marina aqui. Normalmente ela fica em uma das outras naves que
recebem as terráqueas que resgatamos, mas com todas as pessoas do mercado
de Nassi vindo para cá, não tinha a menor chance de eu fazer isso sozinha. E
Isathra é uma sombra, parte da equipe de Pryinala, que apareceu aqui um dia
depois da reunião do Conselho, avisando que podia se entender com as outras
espécies, os que vinham de planetas desconhecidos. Nem sou idiota a ponto
de recusar.
— Só nós? — Marina pergunta.
Assinto.
— Mas Drek tem duas terráqueas na tripulação e posso chamar mais
algumas que estão na região, se for o caso.
E espero que não seja necessário. Chamar mais gente significaria que as
pessoas que Drek está trazendo estão em pânico demais para conseguirmos
acalmá-los. Já basta Kradisla ter colocado duas equipes de segurança de
prontidão ao redor do hangar, por via das dúvidas.
Marina balança a cabeça.
— Não é Drek — Isathra fala. — Pediram pra te avisar quando chegasse
aqui. É Dravos quem está vindo.
Estreito os olhos e balanço a cabeça. Mas Pryinala não tinha falado que
Dravos não podia sair de Nassi? E se é ele quem está chegando, onde é que
Drek foi parar?
As luzes do painel ficam verdes. Estamos liberadas.
Marina abre a porta que dá para o hangar antes de eu falar qualquer
coisa. É, definitivamente não é a nave de Drek aqui. Essa nave é bem menor
– mesmo que “menor” seja maior que minha casa na Terra – e de pequeno
alcance. Um transporte da nave de Dravos, então, porque a nave dele com
certeza não caberia no hangar.
Vou na direção dela, vendo as duas mulheres conversando em voz baixa
atrás de mim. Estou com uma sensação bem ruim sobre isso.
A rampa de desembarque se abre e Jéssica desce primeiro. Levanto as
sobrancelhas. Quem te viu, quem te vê. E pensar que quando resgatamos ela
e Dravos, dois anos atrás, Jéssica ainda estava morrendo de medo da maioria
das coisas do Acordo. Agora ela parece tão em casa quanto eu ou Suelen. E
isso é uma puta comparação para se fazer.
Ela olha para trás e gesticula, falando alguma coisa que estou longe
demais para entender. As mulheres terráqueas começam a descer atrás dela,
com alguns aliens de outras espécies misturados entre elas. Paro e cruzo os
braços. Não vou nem tentar contar, são pessoas demais. Queria muito poder
matar as pessoas que tiveram essa ideia genial de abduzir outras espécies. De
verdade.
Mas eu também preciso saber o que aconteceu com a nave de Drek.
Olho para Marina. Ela assente e corre para uma das caixas que estão perto
das paredes do hangar, gesticulando para as mulheres se aproximarem.
Isathra fala alguma coisa que faz as outras pessoas irem na mesma direção,
antes de subir na caixa ao lado de Marina. Certo. Elas sabem o que estão
fazendo.
Vou até onde Jéssica está, parada na frente da rampa de desembarque.
— O que houve? Pensei que vocês não pudessem sair de perto de Nassi.
Ela balança a cabeça.
— Nos primeiros dias era arriscado demais, e vamos voltar assim que
sairmos da sua nave. Mas como ninguém do seu pessoal apareceu, Pryin
achou melhor nos mandar logo.
Oi?
— Ninguém do meu pessoal apareceu?
Ela assente.
— Eu mandei Drek no mesmo dia que Pryinala entrou em contato.
Jéssica respira fundo e olha para trás, antes de balançar a cabeça.
— Ele não chegou em Nassi. Nem se aproximou do perímetro externo,
ou íamos ter notado.
Caralho. Fodeu.
— Tem certeza? — Pergunto.
Ela assente.
— Vou entrar em contato com Pryin, te aviso se ela souber de alguma
coisa.
— Obrigada.
Olho para trás. Marina e Isathra estão conversando com as pessoas que
vieram do mercado e parece que está tudo sob controle. Mesmo assim, tem
umas boas duzentas pessoas aqui, no mínimo. É mais do que eu esperava. E
agora, com mais essa...
Vou até a parede. Vai ser mais rápido usar um dos comunicadores
internos da nave do que esperar alguém atender se eu chamar com o meu
comunicador.
Ativo o primeiro comunicador que vejo e chamo a sala de controle que
cuida das operações da força-tarefa.
— Controle na escuta.
— Aqui é Gabi. Chamem Rose e Ana para ajudar. É urgente. Liberem
naves para buscá-las, se for necessário.
Desligo antes de alguém poder responder e chamo a ponte.
— Na escuta — Isla fala.
— Entre em contato com a nave de Drek.
Escuto quando ela dá ordens para o seu pessoal.
— O que houve? — Ela pergunta.
— Ele não chegou em Nassi. Não têm registro nem de aproximação.
— Filhos da puta.
Não falo nada enquanto ela dá mais ordens e manda andarem depressa.
Mas se Isla está mandando seu pessoal de comunicação tentar em outras
frequências, eu sei o que isso significa.
— Sem sinal — ela fala.
Respiro fundo. Sem sinal pode querer dizer muitas coisas, mas se resume
em: é como se a nave não existisse. Na melhor das hipóteses, eles desligaram
todos os sistemas. Na pior...
— Continuem tentando.
PRÓXIMO LIVRO: DREKKOR

E desta vez não tem capa nem sinopse prontos ainda, infelizmente.

Drekkor vai ser lançado em agosto/setembro. Para ficar sabendo em


primeira mão assim que eu tiver alguma coisa sobre ele, é só assinar a lista de
emails aqui. Ela é enviada mensalmente e prometo não fazer spam ;)
AGRADECIMENTOS
Esse é um livro que eu pensei que nunca seria escrito. Quando comecei a
escrever a cena da Carol encontrando Lucas no escritório, não fazia a menor
ideia de como as coisas iam andar a partir dali. Depois, quando comecei a
escrever Kernos, não sabia se ia chegar nesse livro. Neuras minhas.
Então, como sempre, começar com a Gaby Fraga, porque isso aqui
continua sendo culpa sua. Renata Barbosa, Jess Gomes, Lavínia del Busso, as
betas desse livro, que seguraram a barra dos surtos aqui. Ana Carolina, que
praticamente tomou posse da personagem na primeira vez que ela apareceu e
no fim das contas as coisas bateram demais, mesmo que não tivesse sido
minha intenção.
Como sempre, pessoal do grupo do whatsapp e pessoal do wattpad. Nem
sempre eu consigo responder os comentários, mas leio tudo e sim, fico rindo
sozinha aqui. Acho que criei um bando de paranoicos. Amo isso! E pessoal
do whats... Vocês sabem que tem muita louca que vem é do grupo, então
muito obrigada por acabarem dando ideia, no fim das contas.
E, claro, todo mundo que leu, avaliou, comentou, indicou e tudo mais.
Se a série chegou até aqui (eu realmente achei que não ia durar isso tudo) foi
por causa de vocês. Muitíssimo obrigada!
OUTROS TÍTULOS DA AUTORA
CRÔNICAS DE TÁIRAN
Os Guardiões
Sentinela
Vigilante
Protetora
Guardiã
Os Guardiões (Box)

Terceira Era
Pagamento

FILHOS DO ACORDO
Kernos
Darius
Sobre Rhergai (conto)
Ithori
Dravos
Vertan

SANTUÁRIO DA MORTE

Revelação
Ciclo da Morte

LIVROS ÚNICOS
Nilue
Perfume de Fogo
Tempestade

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