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A INEFICIÊNCIA DO MODELO TRADICIONAL DE TREINAMENTO DE COMBATE


A INCÊNDIO EM PÁTIO ABERTO EM CAPACITAR BOMBEIROS PARA ATUAREM
EM TÁTICAS OFENSIVAS DE COMBATE A INCÊNDIOS ESTRUTURAIS

RESUMO

O presente artigo avalia, por meio de uma revisão bibliográfica, o modelo tradicional de
treinamento em combate a incêndio que se desenrola em pátio aberto e como é inadequado para
capacitar bombeiros para combaterem incêndios estruturais dentro das edificações sinistradas,
destacando a importância do treinamento para eficiência e segurança do combate, as diferenças
entre os incêndios estruturais e o que ocorre nos treinamentos em pátio aberto, o binômio
segurança-realismo que envolve os treinamentos que buscam eficiência e a doutrina
Compartment Fire Behavior Training (CFBT). Conclui-se que os treinamentos nos moldes da
doutrina CFBT são seguros e eficientes para capacitarem os bombeiros para conhecer o
comportamento do fogo em ambientes fechados, reconhecer os fenômenos que podem decorrer
do comportamento extremo do fogo e aplicarem técnicas adequadas ao combate a incêndio de
modo ofensivo.

PALAVRAS-CHAVE: COMBATE A INCÊNDIO. TÁTICAS OFENSIVAS.


TREINAMENTO.

ABSTRACT

The present article, by means of a bibliographical revision, evaluates the traditional model of
firefighting training that occurs in pen areas and how it is inadequate to train firefighters to fight
structural fires in offensive tactics, emphasizing the importance of training to ensure efficiency
and safety in fire control operations, the differences between structural fires and and what is
found in plain area trainings, the safety-realism binomial that involves the firefight training
methods that seeks efficiency and the doctrine of Compartment Fire Behavior Training (CFBT).
The study realizes that the CFBT methods are safe and efficient to develop in the firefighters the
skills to know the compartment fire behavior, to recognize the phenomena that may occur and to
apply adequate techniques in offensive firefight operations.

KEYWORDS: FIREFIGHTING. OFENSIVE TACTICS. FIREFIGHT TRAINING.


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1. INTRODUÇÃO

A fabricação de equipamentos de proteção individual, neles incluídos os de proteção respiratória,


muito foi incrementada em termos tecnológicos nas últimas décadas. Com o equipamento atual o
bombeiro é capaz de aproximar-se mais do fogo e do calor para combater incêndios de modo
mais eficiente. Desta feita, o combate a incêndio moderno pode ser realizado a partir do interior
das edificações. Com essa evolução, a doutrina de combate a incêndio passou a considerar para o
combate a incêndios táticas de duas classes: defensiva e ofensiva (OLIVEIRA, 2005, p. 68 e
GRIMWOOD, 2008). A primeira consiste no combate externo à edificação sinistrada e a
segunda, nas operações de combate realizadas a partir do interior da edificação sinistrada.

Ocorre que o treinamento dos bombeiros não se desenvolveu no mesmo passo. Ainda hoje, no
Brasil e até em países desenvolvidos como os Estados Unidos, bombeiros civis e militares são
preparados com métodos de treinamentos que eram aplicados no início do século passado,
quando o combate era feito exclusivamente de modo defensivo, distante do fogo e externamente à
edificação sinistrada. Não se preparam os bombeiros hoje para o combate ofensivo, o que torna
esse tipo de combate ineficiente e inseguro.

O presente artigo tem por escopo analisar: a importância dos treinamentos para a eficiência e
segurança do combate a incêndio, sobretudo no interior de edificações; a ineficiência do modelo
tradicional de treinamento em preparar bombeiros para o combate ofensivo; a necessidade de
implementar realismo nos treinamentos e como isso afeta a segurança e, por fim, a doutrina de
treinamento chamada de Compartment Fire Behavior Training como proposta eficiente e segura
de capacitação de bombeiros para combate a incêndios estruturais de modo ofensivo.

2. A IMPORTÂNCIA DO TREINAMENTO PARA EFICIÊNCIA DO


COMBATE E PARA A SEGURANÇA DOS BOMBEIROS

Os corpos de bombeiros (CBs) foram criados originalmente para combaterem incêndios. Depois,
com o desenvolvimento das sociedades e a conseqüente ampliação da natureza e fontes dos riscos
e ambientes, os CBs foram assumindo a tarefa de atender aos mais variados tipos de sinistros.
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Ao assumirem um espectro tão largo de atividades-fim, os CBs foram forçados a desenvolver


especialidades em cada área de atividade. Nesse processo, os bombeiros militares alcançaram a
expertise em várias áreas de atuação. Entretanto, no combate a incêndio, razão inicial da
existência dos CBs, o desenvolvimento de doutrina e técnicas estagnou por um longo período.

Esse decaimento no nível técnico concernente ao combate a incêndio não é exclusividade do


Brasil. Nos EUA, assim como no Brasil e nos demais países, a gama de atividades dos corpos de
bombeiros expandiu-se e também afetou a evolução do combate a incêndio. Segundo o relatório
técnico TR-100 da USFA (United States Fire Administration, 2003), “essa expansão das
responsabilidades dos serviços de bombeiros significa que menos tempo e energia estão
disponíveis para serem focados nas habilidades de combate a incêndio e nos cenários de
incêndio”.

Os bombeiros de hoje, por treinarem uma gama muito grande de atividades, treinam menos
combate a incêndio e, consequentemente, acumulam menos conhecimento prático acerca de
incêndios. Juntamente com isso, a diminuição das ocorrências de incêndio significa aumento na
segurança preventiva, mas tem se traduzido como fonte de insegurança nas operações de combate
ofensivo, pois, geram menos oportunidades para os bombeiros acumularem experiência e isso
tem sido causa de ferimentos e óbitos no combate.

Um estudo da NFPA sobre morte de bombeiros em incêndios estruturais de 2002 aponta que as
três maiores causas de mortes de bombeiros em incêndios são perder-se na edificação, colapso da
estrutura e progressão do fogo. O mesmo estudo aponta a falta de experiência em incêndios reais
como uma potencial causa das mortes de bombeiros por ferimentos graves conseqüentes do
colapso da estrutura ou da progressão rápida do fogo (FAHY, 2002)

No mesmo sentido vê-se um relatório técnico especial, da USFA (2003), cujo texto relata que

De 1987-2001 houve uma diminuição de 31% na quantidade de incêndios estruturais


nos Estados Unidos. Como resultado desse declínio nos incêndios, os bombeiros em
geral possuem menos experiência prática em incêndios que seus predecessores
possuíam uma geração atrás. Quando muitos dos mais experientes oficiais aposentam-
se, eles são substituídos por jovens e comparativamente menos experientes em
incêndios. Como a experiência dos bombeiros de hoje em dia em combater incêndios
diminui, há uma grande preocupação nos serviços de bombeiros que a inabilidade para
reconhecer flashover e colapso de estruturas – e reagir com rapidez suficiente para
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evitar ser pego por essas duas condições letais – continuará a ferimentos e baixas aos
bombeiros.
(sem destaque no original)

O chefe de bombeiros Edward Hartin (2007a) observa que “a segurança dos bombeiros nas
operações de combate a incêndio melhorou minimamente nos últimos 27 anos a despeito do
significante avanço tecnológico dos equipamentos de proteção individual”. No Brasil, nem sequer
se chegou a fazer estudo semelhante sobre a segurança no combate.

O relatório TR-100 da USFA (2003) que estuda fatalidades de bombeiros em ocorrências e


treinamentos, apresenta o seguinte como conclusão:

Os serviços de bombeiros estão diante de um desafio. Melhoras nas medidas contra


incêndio, na prevenção e nas técnicas de construção tem resultado em uma diminuição
no número de incêndio e em uma redução nos danos por eles causados, tanto em termos
de vidas quanto de dólares. Ao mesmo tempo, entretanto, isso tem reduzido as
oportunidades para que os bombeiros tenham experiência prática. Treinamento
permanece a chave no desenvolvimento de serviços de atendimento bem sucedidos
e seguros.
(sem destaque no original)

Some-se a isso os dizeres de Edward Hartin (2007b):


Bombeiros aprendem seu trabalho por meio de um mix de aulas teóricas e treinamentos
práticos. A maioria dos treinamentos é conduzido fora do contexto (por exemplo sem
fumaça ou fogo) ou em uma simulação de ambiente de incêndio (usando fumaça
atóxica, por exemplo). No entanto, isso isoladamente não prepara bombeiros para
atuarem sob o calor e a fumaça que eles encontram em um incêndio real ou desenvolve
habilidades cruciais na tomada de decisão. Desenvolver esse tipo de expertise requer
treinamento sob condições reais de incêndio.

Vê-se assim o quão importante são os treinamentos para conferir eficiência ao combate e
segurança aos bombeiros.

3. O DESCOMPASSO DOS TREINAMENTOS EM PÁTIO ABERTO COM


INCÊNDIOS ESTRUTURAIS E O COMBATE OFENSIVO

Quase a totalidade dos treinamentos em combate a incêndio no Brasil baseia-se na prática de


armação de linhas de mangueira e combate a focos em pátios abertos. Esse tipo de treinamento é
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eficaz para desenvolver as habilidades de manuseio de equipamentos hidráulicos armação de


linhas e operação de esguichos. A questão é que essas habilidades não são as únicas existentes e
necessárias para um eficiente combate a incêndio. Na verdade, nas fases do atendimento a
ocorrências de incêndio, o combate começa efetivamente após a armação das linhas.

Esse tipo de treinamento exclusivamente em pátio aberto apresenta alguns problemas sérios. O
primeiro deles é que o treinamento em pátio aberto não prepara para reconhecer e agir ante aos
fenômenos do comportamento do fogo em ambientes fechados.

O comportamento do fogo é completamente diferente em um foco ao ar livre e um cômodo de


uma edificação. Focos ao ar livre recebem constante oxigenação e elevam na atmosfera a coluna
de ar e gases superaquecida. Quando o foco está dentro de um ambiente fechado, tudo muda. A
fumaça começa a ocupar a parte superior do ambiente acumulando-se de cima para baixo e
irradiando energia térmica. Essa energia liberada aquece o ambiente e o torna perigoso para os
bombeiros. Com o tempo, o combustível do foco sofrendo pirólise decompõe-se mais rápido do
que o foco é capaz de queimar. Os gases não queimados acumulam-se na fumaça tornando-a
combustível. O foco pode queimar e reduzir a quantidade de oxigênio no ambiente caso o
cômodo não seja ventilado (ventilation controlled fire) fazendo com que a queima fique mais
incompleta e mais combustível se acumule na fumaça que, superaquecida, pode deflagrar-se
violentamente ante à entrada de ar pela abertura de um acesso. Trata-se do backdraft (ou
backdraught na grafia britânica). Ou ainda, caso o cômodo seja constantemente ventilado
(acessos abertos), os vapores combustíveis liberados dos materiais no ambiente em conseqüência
da energia irradiada pela fumaça e os combustíveis presentes na fumaça podem entrar em ignição
repentina no que chamam de flashover. Além desses dois fenômenos, em um incêndio em
compartimento, os bombeiros estão sujeitos a encarar mais de 10 outros fenômenos de ignição
rápida dos gases (rapid gas ignition), tais como flash fire, smoke explosion, flame over, rollover,
entre outros (GRIMWOOD; DESMET, 2003, p. 67). Nada disso ocorre nos treinamentos de
acordo com os moldes tradicionais e nos incêndios ao ar livre.

Sobre os incêndios em compartimentos, Shan Raffel (1999a) explana o seguinte:

O ambiente em um incêndio estrutural típico pode mudar repentinamente de o que


aprece relativamente estável para um inferno com temperaturas acima de 1.000º C
próximo ao teto e acima de 300º C ao nível do piso. Apesar de repentinas essas
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mudanças podem ser antecipadas se os indicadores forem reconhecidos. A menos que o


bombeiro seja capaz de “ler” os sinais que o incêndio está enviando, ele pode tornar-se
uma vítima ao invés de um socorrista. Desta feita é essencial que o bombeiro tenha um
sólido entendimento dos fundamentos do comportamento do fogo. Isso só pode ser
alcançado dando-se ao bombeiro a oportunidade de testemunhar o desenvolvimento do
incêndio em um ambiente realista, seguro, controlado e previsível. O bombeiro pode,
então, ver os resultados das diferentes técnicas de combate na dinâmica do ambiente.
Isso leva à compreensão das implicações das ações não apenas no fogo, mas também
em ocupantes presos, outros bombeiros e nos possíveis efeitos de expansão do fogo
para as áreas vizinhas.
[...]
Para que os bombeiros possam atuar de modo completo e seguro nas situações e
ambientes perigosos nos quais eles são comumente colocados, eles devem acostumar-se
em treinamentos, em um ambiente seguro e menos estressante, às condições reais. Isso
gera confiança e permite o reconhecimento das condições que podem ameaçar-lhes a
vida.

Segundo o relatório Fire-Related Firefighter Injuries in 2004 (USFA, 2008, p. 6) os bombeiros


estão sujeitos a um risco cerca 15 vezes maior de ferimentos em incêndios estruturais do que em
outros tipos de incêndios como em veículos e ao ar livre.

Pode-se perceber que os incêndios estruturais são bem diferentes dos que ocorrem ao ar livre,
entretanto, continuamos a basear nosso treinamento quase que exclusivamente em ambientes
externos, sem reproduzir as condições ambientais e do comportamento do fogo em um incêndio
em compartimento. Isso causa ineficiência e insegurança no combate.

Treinar bombeiros para combate a incêndio estrutural sem que eles encarem um incêndio em
compartimento e vejam na prática o que se ensina na teoria acerca do comportamento e evolução
do foco e da fumaça é equivalente a mandar soldados para o combate sem que tenham disparado
um tiro. É como treinar mergulhadores sem que eles mergulhem.

Outro problema do treinamento exclusivamente em pátio aberto é que o ambiente físico de uma
edificação é completamente diferente do encontrado no pátio. Quando bombeiros treinados
exclusivamente em pátios abertos deparam-se com ocorrências eles sentem enorme dificuldade
em se adaptar às condições reais, o que só é mitigado após anos de serviço muitos incêndios
enfrentados. A armação de linhas no interior de uma edificação não é feita do mesmo jeito que se
faz no pátio aberto, onde se pode montar as mangueiras em linha reta. Em muitos casos não há
contato visual entre todos os integrantes da guarnição; o espaço para armação das mangueiras é
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reduzido pelas paredes, corredores, portas e mobília; o calor é maior e a visibilidade menor; etc.
Isso gera ineficiência no combate e insegurança para o bombeiro.

O treinamento exclusivamente em pátio aberto não auxilia os bombeiros a encararem as situações


reais de combate ofensivo pela simples razão de que o ambiente em pátio aberto e o fogo ao ar
livre em nada se parecem com o que será encontrado em um incêndio estrutural. Treinar os
bombeiros exclusivamente em pátios abertos, na verdade, os prejudica, pois os condiciona a atuar
em situações muitíssimo diversas daquelas que encontra em um incêndio real, reduzindo ou
anulando sua capacidade de atuar com eficiência por estarem condicionados a agir de um modo
que não se adequa às características do que está enfrentando.

Não se está aqui desprezando o treinamento em pátio aberto, afinal as habilidades adquiridas nos
treinamentos em pátio aberto são base para o desenvolvimento das habilidades necessárias para
combate a incêndio estrutural e são plenamente aplicáveis nas táticas defensivas de combate. O
que se quer dizer é que o treinamento deve ir além.

O realismo no treinamento no que tange às condições físicas das edificações e o comportamento


do fogo são, portanto, fundamentais tanto para a melhora na eficiência das operações de combate
desenvolvidas no interior de edificações quanto para evitar fatalidades com os bombeiros nesse
tipo de sinistro que podem ocorrer pelo desconhecimento e ou despreparo para lidar com
incêndios dessa natureza.

Grimwood e Desmet (2003, p. 45) afirmam que


Em países como a Suécia, Reino Unido e Austrália, programas de treinamento em
comportamento do fogo em compartimentos tem reduzido efetivamente a perda de
vidas e ferimentos sofridos pelos bombeiros por várias formas de progresso rápido do
fogo e resultantes de colapso de estrutura. (original sem destaque)

Nesses países, como também na França, o treinamento com fogo real foi introduzido exatamente
para contra-atacar as mortes e ferimentos graves de bombeiros relacionadas às várias formas de
progressão rápida do fogo (GRIMWOOD; DESMET, 2003).

Para suprir a falta de experiência prática, é necessário investir em treinamento. O mesmo


documento retro mencionado da USFA diz que o treinamento de bombeiros realista, seguro e
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efetivo é essencial para preparar os serviços de bombeiros para cumprirem suas missões de
preservação da vida e da propriedade (USFA, 2003).

Na Suécia, após a morte de dois bombeiros em 1982 devido a uma explosão dos gases
combustíveis presentes na fumaça, desenvolveram-se duas frentes de trabalho: pesquisa científica
e acadêmica acerca do comportamento do fogo e desenvolvimento de um programa de
treinamento para aumentar a segurança dos bombeiros no combate a incêndio incorporando
realismo nos exercícios e demonstrações práticas do comportamento do fogo. Nascia o
Compartment Fire Behavior Training – CFBT, explicado em detalhes adiante.

Nesse país, a teoria da combustibilidade da fumaça tem sido há muito entendida e os métodos de
treinamento prático pelos quais os bombeiros são ensinados a reconhecer, antecipar e como lidar
com fenômenos de ignição dos gases remontam meados dos anos 80. Isso reduziu o número de
bombeiros mortos por causa de fenômenos de combustão da fumaça de uma média de 3 a cada
dois anos para zero, desde a introdução de um programa de treinamento de comportamento do
fogo imbuído de realismo (CEDERHOLM apud RAFFEL, 1999b).

Na Inglaterra, em 1997, 3 bombeiros foram mortos em incidentes relacionados à ignição rápida


de gases da combustão. O serviço de bombeiros britânico respondeu a isso com a atualização dos
treinamentos e a implantação de um programa de CFBT (GRIMWOOD; DESMET, 2003, p. 57).

Próximo de sua conclusão, o relatório da UFSA apresenta um tópico chamado “lições


aprendidas” e o inicia dizendo que “o treinamento realista dos bombeiros é essencial para garantir
operações seguras em emergências reais” (2003, p.17)

Assim, vê-se o quão necessário é aprimorar os treinamentos de combate a incêndio no Brasil, de


modo a inserir o realismo necessário a garantir a segurança e eficiência nas operações de combate
a incêndios estruturais e como este trabalho deve estar associado a pesquisas acerca do
comportamento do fogo e das técnicas de combate.

4. REALISMO E SEGURANÇA NOS TREINAMENTOS


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Uma das práticas modernas em se tratando de treinamento em combate a incêndio que incorpora
realismo no treinamento é o Live Fire Training (treinamento com fogo real), ou seja,
treinamentos nos quais há simulacros de incêndio com fogo.

A introdução do realismo nos treinamentos, entretanto, apresenta um paradoxo. O incremento dos


treinamentos com realismo é necessário para garantir a segurança dos bombeiros nas operações
reais. Nesse sentido, quanto mais próximos forem os treinamentos das situações reais, melhor
será o treinamento, pois o bombeiro em um incêndio real estará mais alerta ao que pode
acontecer, será capaz de ler melhor os sinais que o comportamento do incêndio fornece e poderá
reagir com mais firmeza por já ter experimentado na prática as técnicas que precisam ser
empregadas. Por outro lado, quanto mais próximo do real forem os treinamentos, mais presentes
os riscos que tornam a operação real arriscada estarão nos treinamentos tornando-os menos
seguros.

O relatório TR100 (USFA, 2003) aponta que de 1987 a 2001 o índice de ferimentos resultantes
de treinamentos subiu 15% enquanto o número de bombeiros no mesmo período cresceu apenas
5%. O mesmo estudo observa que o treinamento com fogo real tem sido um dos tipos de
treinamento que lideram as estatísticas em causa de fatalidades.

Tão necessário quanto implementar o realismo nos treinamentos de combate a incêndio a fim de
aumentar a segurança nas operações, é necessário prover meios para que os treinamentos, apesar
de imbuídos de realismo, sejam seguros, pois não faz sentido que sés treine com mais realismo
para evitar mortes em operação e elas ocorram nos treinamentos. Grimwood (GRIMWOOD et al.
2005) observa que assim como as baixas de bombeiros durante o atendimento a emergências são
inaceitáveis e mais inaceitáveis ainda são as mortes ocorridas em treinamentos.

Os treinamentos com fogo real ocorrem de algumas formas: 1) pela queima de edificações
marcadas para demolição; 2) com simuladores a gás; 3) em edificações construídas para
treinamento e 4) em simuladores de incêndio construídos a partir de contêineres metálicos.

O documento TR-100 (USFA, 2003) faz uma análise dos modelos mais implementados de
treinamentos com fogo real e traça algumas observações acerca do realismo e da segurança. O
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relatório nem aborda os treinamentos em pátio aberto, pois, evidentemente, são muitíssimo
seguros mas não tem o realismo necessário.

Quanto aos treinamentos em simuladores a gás, o TR-100 aponta que

Em muitos casos, treinamentos em simuladores a gás levou a comportamentos


aprendidos que tem, na verdade, um impacto negativo na segurança em ocorrências e
resultaram em acidentes. Uma crítica aos simuladores a gás é que eles falham em
ensinar aos bombeiros como reagir às condições do fogo, não abordam a importância de
avaliar o tipo e a construção da edificação sinistrada e eficientemente “ler” as condições
da fumaça.

Acerca das pistas com gás, Grimwood e Desmet (2003, p. 48) afirmam que “o uso de sistemas
abastecidos com GLP não servem adequadamente para ensinar o comportamento do fogo”. O
mesmo raciocínio é válido para o GNV. Apesar do fogo ser real nesses simuladores, ele não se
desenvolve, não se comporta e não reage às técnicas de combate como um fogo real em
compartimento.

Em alguns corpos de bombeiros nos EUA e Inglaterra e outros países da Europa, usam-se
edificações abandonadas ou prestes a serem demolidas para treinamento provocando nelas um
incêndio. Essa situação é diametralmente oposta às pistas com focos sólidos ao ar livre. O
realismo é total, mas o controle sobre o fogo é praticamente nenhum, o que reduz a segurança a
níveis perigosos.

No parecer da USFA (2003, p.13),

O uso de uma estrutura adquirida geralmente oferece o cenário mais realista em que se
pode treinar bombeiros em métodos e operações de combate ao fogo. O elemento
simulação nesse tipo de treinamento é mínimo. Uma vez iniciado o fogo, ele mais
razoavelmente se aproxima da “coisa real” comparado a um simulador a gás.

Além de ser um treinamento economicamente inviável (a destruição da estrutura pelo fogo não
permite muitas execuções com segurança) não há “realismo”, já que realismo se refere ao que é
próximo ao real. Nos incêndios provocados em edificações abandonadas, o fogo é efetivamente
real. Isso não é de todo bom, pois não há controle sobre o desenvolvimento do fogo, o que
prejudica a segurança.

Sobre esses treinamentos, Grimwood e Desmet (2003, p. 46) observam que


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Experiências anteriores têm demonstrado que treinamentos com incêndios provocados


para esse fim em edificações abandonadas ou desocupadas podem frequentemente
romper a tênue linha entre realismo e segurança, mesmo onde padrões e diretrizes
nacionais são fielmente seguidos. Esses incêndios para treinamento também provêem
uma larga variedade de situações e condições que são normalmente imprevisíveis e que
podem ser difíceis de serem repetidas ou controladas a bem da uniformidade no ensino
dos princípios básicos.

Em contrapartida, quanto a estruturas específicas para treinamento, eles assinalam que


Na Europa, há muito se reconhece que estruturas especialmente projetadas com
otimização da carga incêndio geometricamente posicionada em um compartimento
provê o mais seguro ambiente em que se pode ensinar bombeiros como incêndios em
compartimentos se desenvolvem bem como demonstrar técnicas de controle e extinção
do fogo. Tais instalações também se apresentam como a opção mais viável
economicamente para treinar bombeiros que permitem recriar com eficiência condições
reais, mas seguras. (2003, p. 46)

A formatação inicial do CFBT, desenvolvida na Suécia nos anos 80 usa instalações construídas,
mas a partir de contêineres navais metálicos. Com essa modelagem, eles foram (e são) capazes de
demonstrar de modo eficiente a formação, acúmulo, transporte e ignição dos gases resultantes da
pirólise dos combustíveis sólidos em um compartimento, bem como técnicas de combate.

Grimwood e Desmet (2003, p. 47) fazem a seguinte observação:

É essencial lembrar que essas estruturas modulares são apenas simulacros de condições
mais realistas e o fogo no treinamento nunca poderá replicar o fogo real por questões de
segurança. Não há muita carga incêndio durante os treinamentos e os eventos
experimentados dentro dos simuladores, em geral, ocorrem mais rapidamente no
‘mundo real’ em um ambiente compartimentado que é genuinamente desconhecido para
o bombeiro. Ainda assim, os simuladores modulares são tão realistas quanto se pode
querer para o treinamento de bombeiros.

Vislumbra-se então a doutrina (denominada CFBT) de treinamento em comportamento do fogo


em ambientes fechados e técnicas de combate ofensivo com uso de contêineres marítimos como
opção que dosa de maneira adequada segurança e realismo no treinamento e prepara bombeiros
para o que enfrentarão na prática.

5. CFBT - COMPARTMENT FIRE BEHAVIOR TRAINING:


TREINAMENTO COM REALISMO E SEGURANÇA
O CFBT - Compartment Fire Behavior Training (treinamento em comportamento de incêndio em
compartimento) nasceu, como visto anteriormente, na Suécia em resposta à necessidade de
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aprimorar o treinamento dos bombeiros para melhor prepará-los para os combates realizados no
interior das edificações. O acidente com 2 bombeiro em 1982 que desencadeou a o surgimento do
CFBT foi investigado (como ocorre normalmente na Suécia, Inglaterra, EUA e outros países) e
chegou-se à conclusão que os bombeiros não conheciam adequadamente o comportamento do
fogo no interior de uma edificação e não estavam preparados para reagir aos fenômenos que
podem surgir.

Para um melhor conhecimento do comportamento do fogo, os suecos implementaram um


programa de pesquisas científicas. Para capacitar os bombeiros a entenderem o comportamento
do fogo em interiores, a reconhecer os sinais indicativos dos fenômenos que podem ocorrer e a
reagir adequadamente ante a tais fenômenos, foi implementado um programa de treinamento em
simuladores construídos a partir de contêineres metálicos, o CFBT. Finalmente, para a análise e
desenvolvimento de técnicas de combate os bombeiros associaram-se com o meio acadêmico nos
trabalhos científicos de pesquisa.

O CFBT é uma concepção de treinamento que visa, por meio de teoria e exercícios realistas,
preparar bombeiros para as situações que encontrará em um combate a incêndio estrutural. O
CFBT tem sido desenvolvido e aprimorado em outros países por estudiosos (bombeiros e
acadêmicos) do assunto.

Segundo Grimwood e Desmet (2003, p. 51),

O modelo sueco original de treinamento envolveu o incremento da percepção da


formação, transporte e ignição dos gases combustíveis. O objetivo era demonstrar
claramente como os incêndios tendem a evoluir sob variados parâmetros de ventilação,
ensinando os bombeiros como agir frente às várias formas de progresso rápido do fogo
e mostrando a eles o efeito prático de suas ações e omissões em um incêndio em um
compartimento.

Edward Hartin, um dos modeladores da concepção atual do CFBT explica da seguinte forma: O
CFBT integra tópicos relativos a comportamento do fogo, ventilação e convecção do foco em um
contexto de combate a incêndio estrutural.

Hartin (2007a) acrescenta que

operações de combate a incêndio seguras e eficientes exigem: 1) sólida compreensão de


como o fogo desenvolve-se dentro de um cômodo ou edificação; 2) habilidade para
“ler” os indicadores do comportamento do fogo; 3) conhecimento de como operações
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táticas irão influenciar o desenvolvimento do fogo e o ambiente no interior da


edificação; 4) elevado nível de destreza na aplicação desses conceitos.
Geralmente os tópicos de comportamento do fogo, ventilação, táticas de combate a
incêndio estruturais e treinamento com fogo real são considerados tópicos
relacionados,mas independentes nos treinamentos de bombeiros.
O CFBT provê uma grade integrada para o desenvolvimento do conhecimento e das
habilidades do combate a incêndio estrutural. Enquanto os programas CFBT variam em
duração e conteúdo específico, eles geralmente integram os seguintes tópicos e
treinamentos: comportamento do fogo (básico), evolução de um foco em
compartimento, comportamento extremo do fogo, indicadores de comportamento do
fogo e táticas de ventilação e extinção do fogo.
Apesar de parecer tão elementar, o básico sobre comportamento do fogo é o ponto de
partida para compreensão tanto do desenvolvimento do fogo [em compartimentos]
como das operações de combate ao incêndio. Entretanto, a maior diferença entre
simples definições de termos e conceitos em livros e o CFBT é a direta aplicação da
teoria em situações práticas e reais.

Segundo Grimwood e Desmet (2003),

Uma análise das baixas de bombeiros em incêndios estruturais mostrou erros comuns
que são geralmente resultado de inexperiência ou de uma abordagem reativa. Os
princípios do CFBT devem ensinar os bombeiros a serem mais proativos e antecipar
possíveis eventos antes de ocorrerem. Eles devem também tornar-se mais atentos no
desenvolvimento de uma abordagem tática e seus efeitos caso não adotada. [...] Tomado
como um dos meios de aumentar a segurança dos bombeiros, o CFBT até então provou-
se o mais seguro e efetivo método de atingir essa meta.

O manual de tática de combate a incêndio do Centro Para Gerenciamento de Crises e


Emergências (GRIMWOOD; DESMET, 2003, p. 46-47) traz o seguinte acerca da utilização de
contêineres para CFBT:

Os contêineres navais metálicos oferecem versatilidade, adaptabilidade e uma


abordagem modular pronta na construção barata, mas eficiente para construção de
“burn buildings” ou simuladores flashover. O módulo composto de compartimento de
observação, janela e compartimento de ataque construído a partir de contêiner tem sido
usado na Europa por mais de 20 anos para demonstrar o crescimento do fogo e os
fenômenos rollover, flashover e backdraft, por permitir aos bombeiros testemunhar a
formação, movimentação e ignição dos gases em ambientes extremamente próximos
com a segurança como primeira preocupação. Ë desses cômodos que os bombeiros são
capazes de praticar e avaliar as várias opções de técnicas de controle e extinção do
fogo, oferecendo a eles uma experiência inigualável e fornecendo um elemento de
confiança em relação aos incêndios estruturais. Os simuladores são também usados para
ensinar técnicas de abertura de portas enquanto reconhecem externamente uma gama de
condições do fogo, incluindo os focos subventilados.
...
à medida em que o programa de treinamento desenvolveu-se, os procedimentos de
segurança e o design dos simuladores para CFBT avançaram associados a muita
pesquisa científica. A intenção foi produzir simuladores que fossem seguros, mas
eficientes em reproduzir condições realistas. Com a geometria básica dos contêineres
metálicos sendo ideal para criar exercícios de ignição da fumaça que possam ser
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repetidos, uma abordagem universal evoluiu no design e uso dessas instalações para
ensinar vários aspectos do comportamento do fogo. Como exemplo, há módulos de
observação para flashover [nos quais os instruendos ficam dentro do módulo
observando o fenômeno], unidades com janelas para backdraft [para que a observação
possa ser feita do exterior] e módulos de combate tático onde a abordagem da porta e o
avanço da equipe são praticados. As especificações de design e métodos de uso variam
nos muitos tipos e ainda podem oferecer adaptações locais, enquanto permanecem
conforme o modelo sueco original.
(destaques no original)

Como se vê, há um largo espectro de estruturas que pode servir de base para treinamentos e
pesquisa, contudo, os relatos apontam para a modelagem sueca de treinamento com uso de
contêineres marítimos (CFBT) visando preparar os bombeiros no conhecimento do
comportamento extremo do fogo em compartimento e no uso de técnicas de combate adequadas

6. CONCLUSÃO
No presente estudo foi visto como os treinamentos são importantes para conferirem eficiência
para o combate a incêndio e segurança para os bombeiros, contudo, também se discutiu como o
modelo tradicional de treinamento em pátio aberto não prepara os bombeiros para as operações
de combate a incêndio ofensivas, mais comuns nos dias atuais devido aos avanços nos EPIs,
devido às diferenças entre o ambiente e o comportamento do fogo no treinamento e as condições
do ambiente e do fogo nos incêndios estruturais reais. Viu-se que uma saída é o incremento dos
treinamentos com realismo. No entanto, quanto mais os treinamentos parecem-se com incêndios
reais, mais os riscos de incêndios estão presentes nos treinamentos. Foi abordado que muitas das
práticas de treinamento com fogo real, ou não são realistas o suficiente ou não são seguras. O
modelo sueco do treinamento a partir de contêineres metálicos tem se mostrado eficiente no
treinamento, pela redução no número de mortes e acidentes nos países onde foi implementado e,
ao mesmo tempo, seguro, pelo baixo índice de acidentes relatados ao longo de mais de 20 anos de
aplicação.

Conclui-se que a modelagem do CFBT de treinar os bombeiros para analisar o comportamento do


fogo em recintos fechados e em técnicas de combate é algo a ser buscado nos treinamentos de
combate a incêndio para somar-se aos treinamentos em pátio aberto.
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REFERÊNCIAS

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