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https://lightnovelbrasil.com/kimi-no-hanashi-3/
Sem dúvidas, não era o tipo de sonho que um homem adulto deveria
ter.
Saí da cama sem pressa, fui até a cozinha e dei uma olhada embaixo
da pia. Não havia nenhum daqueles cup noodles[4] que pensei ter
comprado no supermercado local. Torci o pescoço. Parecia lembrar
de ter ao menos uns cinco deles. Ultimamente eu devia estar meio
esquecido, não foi graças à bebida.
Olhei no freezer para ver se tinha ao menos pão, mas só tinha duas
coisas ali dentro: gim e pacotes de gelo. Até olhei embaixo da
máquina de gelo, mas não encontrei nada além de pó de gelo.
Aprendi que não era adequado para serviços com muitas pessoas.
Por um tempo, assumi algumas funções em períodos diurnos que
foram apresentadas por cooperativas da universidade, mas isso tinha
seus próprios problemas, já que era irritante ter que construir um
relacionamento com uma pessoa, do zero, todas as vezes. O que
poderia se chamar de “capacidade de comunicação” pode ser
considerado a capacidade de construir relacionamentos humanos e a
capacidade de preservar os mesmo, mas eu não parecia ter algo
assim.
Todos os clientes eram gentis, por isso era um trabalho bem fácil.
Poderia até dizer que meu trabalho mais difícil era ficar acordado.
Não pagava muito, mas para alguém que não esperava
relacionamentos sociais, dignidade ou melhorar suas habilidades, era
mais ou menos o serviço ideal.
Lembrei do que Emori disse há dois dias, sobre a golpista que fingiu
ser uma velha conhecida para alcançar um objetivo.
“Parece que esses golpes clássicos estão voltando com tudo hoje em
dia. E jovens solitários são alvos fáceis. Você também pode virar um
em breve, Amagai.”
E se, de alguma forma, os detalhes de minhas Mimories vazassem da
clínica?
Emori supôs que seu desejo pelo que ela dizia ser verdade resultou
em suas próprias memórias sendo alteradas. Se esse tipo de
inclinação mental fosse comum, então sim, talvez um Substituto
fosse ainda mais adequado para esse tipo de golpe, ainda melhor do
que um conhecido real.
Substitutos são cuidadosamente projetados pelos engenheiros
de Mimories para preencherem todas as brechas mentais reveladas
na profunda análise do programa, era possível considerá-los a
personificação das grandes massas de desejos internos do indivíduo.
Quantas pessoas teriam calma e analisariam tudo objetivamente ao
serem confrontadas com o parceiro dos sonhos?
Nesse sentido, não há alvo mais fácil para um golpista do que alguém
que possui Mimories. Emori não mencionou isso também? “Não se
dedicam a seguir memórias. Eles se aproveitam da ausência delas.”
Não fui ao médico, então não sei a causa disso. Pode ser algo
psicossomático[7], pode ser falta de nutrientes. Ou talvez exista um
coágulo sanguíneo ou tumor em algum lugar do meu cérebro. Por
enquanto, não era tão inconveniente, então pude ignorar.
Nunca fui muito exigente com comida, desde o começo. Minha mãe
também não tinha interesse na comida e, até onde eu sabia, nunca
cozinhava sequer uma refeição. Com algumas exceções, como prática
culinária na escola, eu poderia muito bem nunca ter comido algo
caseiro. Desde criança, sempre estive bem com refeições de bentôs,
comida pronta ou fast food[8].
Cheguei ao apartamento.
Pressionei mais uma vez para ter certeza, mas o resultado foi igual.
Eu não podia ficar ali para sempre, então decidi que, por enquanto,
voltaria para meu quarto.
Mesmo quando notei que as luzes estavam acesas, ainda não fiquei
surpreso. Deixar as luzes acesas também era uma ocorrência
comum.
Mas, na minha frente, havia uma garota ainda mais absurda que
qualquer coisa.
Mesmo com o dono do quarto tendo aparecido, ela não tentou fugir
ou dar uma explicação, e apenas provou alegremente o conteúdo de
uma panela. Os ingredientes que parecia ter trazido estavam sobre o
balcão.
Por fim, fui capaz de perguntar isso. Então percebi que era uma
pergunta sem sentido. Ela estava invadindo e fazendo comida. Era
exatamente o que parecia.
— Sua roupa suja estava toda amontoada, então lavei tudo. Além
disso, você precisa cuidar melhor do seu futon[9].
Fiquei tonto.
— Quem… é você?
— Huh…
Ela apagou o fogo do fogão a gás e caminhou em minha direção.
Ao ver seu rosto de perto, parecia algo irreal. Sua pele era tão
branca que parecia artificial, mas estava ligeiramente vermelha ao
redor dos olhos, dando a impressão de que estava doente.
Como se fosse um fantasma!, pensei.
Pensando nisso, foi a primeira vez que senti vontade de discutir algo
com alguém. Acho que isso mostra o quanto aquela garota deixou
minha mente confusa.
— Bom, não posso imaginar que você esteja mentindo, Amagai, então
deve ser verdade que isso aconteceu. — Com isso, Emori sorriu. —
Ela é fofa?
— Parece uma maneira bem indireta para dar um golpe… mas não é
impossível. — Emori concordou. — Vamos pensar nisso. Amagai, sua
família é rica?
Eu ri de novo.
Minha risada solitária ecoou pelo parque e foi engolida pela noite.
— Não vou.
— Nem pense em fingir que foi enganado para ver como isso
funciona. As coisas podem acontecer tão rápido que nem perceberia
o que houve. Não arrisque.
Um pijama branco liso. Não havia nada de estranho nele por si só.
Talvez estivesse um pouco “indefesa” para visitar o quarto de um
estranho no meio da noite, mas não era ruim para o papel que estava
interpretando. Portanto, o próprio pijama não era motivo para
surpresa.
Oh, sim, essa garota sabe. Ela sabe exatamente como sacudir meu
coração de um jeito efetivo.
Ela tirou as sandálias e entrou no meu cômodo, parando ao meu
lado.
— Ah, tudo bem. Eu também estava com um pouco de fome. Ah, faz
um pouco para mim também.
— O que foi?
Ela olhou para mim virando os olhos para cima. Consegui me impedir
de desviar o olhar por reflexo e a questionei.
— Isso é tudo um blefe, não é? Acha que se disser palavras que soem
boas o bastante, cometerei um erro conveniente para você?
Parecia que isso não seria simples. Como qualquer bom golpista, ela
sabia quando avançar ou recuar.
Bajulei ela?
Mas bajular uma estranha – uma garota da minha idade – era um ato
ousado demais para me imaginar fazendo. Por mais bêbado que
estivesse, os fundamentos de minha personalidade não mudariam.
Ter esse tipo de dupla personalidade era simplesmente impossível.
Eu não tinha nenhuma memória ruim dali. Claro, fui uma criança
solitária, mas esse fato não me deu experiências desagradáveis (pelo
menos até onde posso lembrar). Se era uma tendência da minha
geração ou se estava cercado por algum tipo de gente estranha, não
sei, mas não havia nenhuma grande panelinha na escola que
frequentei, apenas três ou quatro grupos espalhados aos arredores.
Assim sendo, mesmo que tivesse alguns gostos diferentes, não havia
oportunidade para algo como pressão vinda dos colegas.
“Só para confirmar, Amagai, mas você nunca tomou Lethe em sua
vida, tomou?”
Mas quando pensei um pouco mais, percebi que não tinha provas.
Entre as opções para o Lethe está o fato de você esquecer ou não se
o usou, e é altamente recomendável que escolha o esquecimento.
Porque se não o fizer, será sempre perseguido pela pergunta do que
esqueceu ao usá-lo.
Foi isso que me fez ir até o local, mas eu tinha uma grande
preocupação. Se bem me lembro, quando saí de casa, fui e joguei a
maioria de meus pertences fora. O período entre a formatura do
ensino médio e minha mudança foi tão intenso que não lembro o que
joguei fora e o que guardei. Era possível que tivesse descartado
qualquer coisa que pudesse me informar sobre meus
relacionamentos passados.
Ao ver o rosto do filho pela primeira vez em um ano e meio ele falou
sem qualquer rodeio.
— Não parece que tenha algo nesse quarto para vir buscar.
— Isso mesmo. Não há.
— O que?
— Recebi uma carta de uma pessoa com esse nome. Diz que é uma
velha colega de classe. Achei que poderia ser algum tipo de golpe,
mas não confio muito na minha memória, então queria verificar com
você, só por precaução.
— Para mim?
Meu pai tomou um gole de uísque e voltou para a sala sem dizer
nada.
Depois de sair de casa, abri mais uma vez a carta sem remetente.
Dizia o seguinte:
Não chamou.
Ela estava na cama. Claro, quero dizer, minha cama, não na dela.
Estava enrolada naquele habitual pijama branco, deixando
respirações leves escaparem.
Chamei por ela, mas não mostrou qualquer sinal de que acordaria,
então timidamente toquei seu ombro. Por que eu, o proprietário do
quarto, tenho que me preocupar com uma invasora? Hesitar assim só
prolonga ainda mais as coisas, pensei. Mas não tive coragem de dar
um tapa para acordá-la ou coisa do tipo.
Depois de três sacudidas, ela abriu os olhos. Vendo meu rosto, disse
alegremente: “Ah, bem-vindo de volta.” Depois sentou e se alongou
um pouco.
Mas não havia ninguém tão próximo de mim por lá para me escrever
uma carta dessas. Era uma brincadeira de alguém? Mas o texto foi
reservado demais para isso. Uma brincadeira tentaria extrair alguma
reação minha. Chamariam ao fundo da escola ou escreveriam o nome
de algum remetente.
— O que houve?
— Meu pai disse que nunca ouviu o nome de Touka Natsunagi. Como
explica isso?
— Isso não significa simplesmente que um de nós, eu ou seu pai, está
mentindo? — respondeu na mesma hora. — Seu pai é um homem
honesto?
Agora que mencionou, não havia provas de que meu pai iria
responder minhas perguntas honestamente. Ele, que gostava de
viver em um mundo de ficção, era, ao mesmo tempo, alguém que
gostava de criar ficções. Se houve momentos em que mentiu sem
motivo, certamente também houve aqueles em que mentiu por
alguma causa. Se mentiu para se justificar, certamente também
mentiu para omitir algo.
— Certo. Entendi.
Notas: