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ESPECIAL

A outra face da psicopatia

Esse epifenômeno é uma disfunção neurocognitiva grave, fazendo a


pessoa se comportar contrariamente aos padrões sociais. É uma variação
mórbida da personalidade, uma deformação das qualidades morais do caráter.
Esse distúrbio psicoemocional é sinônimo de personalidade antissocial ou
dissocial. Sua existência acompanha a humanidade e seu conceito é recente.
Ela alcança, em maior ou menor escala, a população mundial na proporção de
4%. Ou seja, uma em cada cem pessoas tem essa neuropatologia. Desse
percentual, 1% é do sexo feminino e 3% do sexo oposto, diferença semiológica
que necessita ser melhor esclarecida. Essa entidade nosológica é definida pela
Organização Mundial de Saúde (OMS) e rotula a Classificação Internacional de
Doenças (CID).

O córtex órbito-frontal e o córtex pré-frontal, áreas encefálicas que


modulam o juízo moral e o sistema límbico, responsável pela amplitude e
adequação das emoções e dos sentimentos, hospedam esse embotamento
afetivo-emocional. A deficiência da amígdala cerebelar, órgão mais importante
do sistema límbico, ao se comunicar com os hemisférios cerebrais, desencadeia
a sociopatia. Ao estabelecer as conexões entre a amígdala e os lobos frontais,
por meio dos impulsos eletromagnéticos, ocorre um deficit conectivo e, face à
baixa atividade neural nos lobos pela hipofunção da amígdala, elabora-se um
comportamento lógico, mas despido de sentimentos. Não há, por esse motivo,
uma perfeita sintonia entre as emoções, elaboradas no sistema límbico e a sua
razoabilidade, formada nos lobos frontais, área cerebral que rege o
comportamento consciente.

Essa síndrome, além de inativar o sistema nervoso simpático, exime o


comportamento de constrangimento moral, em nítido contraste àquele aceitável.
Face a essa insuficiência neurológica, a pessoa não elabora sentimentos como
altruísmo, amor ao próximo, compaixão, culpa, empatia, gratidão, solidariedade
ou vergonha e, por isso, não consegue estabelecer relações emocionais com o
próximo. Observem, portanto, o que isso quer dizer!

A semiologia dessa entidade nosológica se estabelece pela ausência de


um comportamento neurocognitivo pró-social, pois o mecanismo psíquico do
seu portador diverge daquele de uma pessoa normal, situando-o à margem do
equilíbrio neurocognitivo. O sociopata é incapaz de se emocionar, de aprender
com a experiência e de obstar os seus impulsos associais, apesar de essas
conformações variarem entre os seus portadores, pois lhe falta o julgamento
ético. Ele não processa os estímulos sentimentais e, por isso, não se emaranha
num legado transpessoal. É, portanto, imperturbável e indiferente às emoções
alheias face ao seu embotamento psicoemocional.

Essa disfunção neurocognitiva provoca um egocentrismo patológico no


seu portador, fazendo-o buscar a satisfação dos seus interesses sórdidos. O
psicopata se encontra em todas as camadas sociais. Constitui família e, não
raras vezes, desfruta de significativos atributos pessoais. Ele tem consciência
das suas capacidades e da vulnerabilidade emocional de suas vítimas, por isso
as manipula para delas se aproveitar. Utiliza-se dos seus predicados para
ludibriá-las, conjugando, por exemplo, dotes intelectuais, profissionais ou
artísticos, com um desequilíbrio real de afetividade.

Por isso, o sociopata é incapaz de se colocar no lugar do outro, de


sentir afeto e emoção, de modo que o sofrimento alheio não lhe diz respeito.
Por causa dessa dinâmica neurocognitiva, ele não relaciona as suas palavras
às suas emoções. Daí a impossibilidade de o psicopata se deprimir ou possuir
baixa auto-estima. Ele fala qualquer coisa, envolve pessoas, mas permanece
alheio àquelas emoções provocadas nos outros.

Investigações etiopatogênicas mostram que os sintomas dessa


psicopatologia se manifestam ao longo da vida pessoal. Eles se iniciam na
infância, tonificam-se na adolescência e perpassam a vida adulta. O distúrbio
pode ser abúlico, amoral, astênico, compulsivo, delinquente, explosivo, fanático,
hipocondríaco, histérico, inadaptável, inseguro, ostensivo, sexual, dentre outros.
Os perfis leve e moderado de gravidade do distúrbio, se identificados
precocemente, podem ter o seu avanço impedido por meio de regras
educacionais e religiosas, podendo ou não a modulá-los. O perfil severo é
incorrigível e, se a pessoa tiver traços perversos e indômitos, pode evoluir para
o canibalismo, dentre outras degenerescências.

Na infância, essa neuropatogia se manifesta por meio de alterações


comportamentais perceptíveis: afeição a brigas, às intimidações, às
humilhações e à violência física contra amigos e a pequenos animais; assédio
psicológico; caráter dissimulado; desrespeito à autoridade dos pais e dos
professores; desapego aos sentimentos familiares; fácil colerização; fúria
incontrolável; imediatismo; indisciplina; mentiras contumazes; raivas gratuitas;
reduzida tolerância à frustração; trapaças para obter vantagens em jogos pueris,
dentre outras.

A adolescência é o estágio em que esse desequilíbrio psicoemocional


mais se evidencia. Potencializa-se pelos seguintes comportamentos: abandono
frequente do lar; ausência de remorso por um erro praticado contra alguém e de
empatia com os sentimentos alheios; baixo controle da impulsividade;
comportamento fantasioso, buscando adaptar a realidade à imaginação;
exacerbado zelo com os interesses pessoais e nenhum com os alheios; fascínio
pelo poder, daí a busca por profissões que “trazem” autoridade; incapacidade
de elaborar sentimentos nobres; iniciação ao uso das drogas; insensibilidade
emocional; megalomania; mitomania; prática de atos de vandalismo; procura de
excitação; propensão a falecer prematuramente por meios violentos; rebeldia;
sexualidade exaltada; trapaças pelo prazer, para citar alguns.

Esse embotamento psíquico, no adulto, mantém uma cadência


comportamental, sendo: agressões diversas; ausência de alucinações, de
ansiedade, de baixa auto-estima, de delírios, de depressão, de neuroses, de
sentimentos éticos e altruístas; chantagem emocional; desembaraço
comportamental; dificuldades conjugais face à promiscuidade sexual;
dificuldade para construir e manter amizades; estilo de vida parasita; frieza e
calculismo ao se comportar; incapacidade de se responsabilizar por suas ações,
em especial pelos compromissos financeiros e morais; inconstância nos
empregos; loquacidade; manipulação de estados mentais alheios para alcançar
o que se deseja; obsessão pelas mais variadas fantasias; prática de crimes
bárbaros; quando pais, eles utilizam os filhos para alcançar seus objetivos, não
lhes respeitando as escolhas; reduzida intuição; violência doméstica; voz
monocórdica; vivência isolada e, quando realizada em grupo, procura lhe
exercer o domínio.

O Direito brasileiro não considera esse distúrbio uma doença para os


fins de exculpar o seu portador. Se o psicopata cometer ilícito, civil ou penal,
será responsabilizado. Ele tem a capacidade de entender - libertas intellectus –
e a de se determinar – libertas propositi – sobre o ato que pratica, apesar de
não se autodeterminar com relação às emoções face aos deficits
neurocognitivos existentes no lobo frontal. Tem, portanto, hígida a sua curvatura
cognitiva e a exata consciência do seu comportamento anormal, não
apresentando deficiência algorítmica. Em função dessa desorganização afetivo-
emocional, ele tem a sua própria lógica, “definindo” o que é lei, o certo e o
errado, no seu mundo distorcido. Ele consegue maquiar a sua índole infratora.

Cesare Lombroso (1835-1909), estudando antropologia criminal,


etiquetou essa neuropatologia como oriunda de um determinismo biológico.
Brilhantemente, em parte, acertou! Nessa linha de raciocínio, indaga-se: a
pessoa nasce criminosa? Sim, o psicopata é o exemplo e, ao mesmo tempo, a
exceção. Seguramente, alguns crimes violentos são praticados por ele, como:
brutalidade sexual, corrupção, crueldade, depravação, homicídios em escala
(atos praticados pelos serial killers), latrocínio, liderança de crimes organizados,
rituais de sadismo, sequestros, terrorismo, torturas, tráfico e vício em drogas,
além de muitos outros. Os serial killers, particularmente, são criminosos
capazes de atos brutais, de mutilações e de pura maldade, enfim, de atos
incompreensíveis. Em busca do seu objetivo mórbido, às vezes com carisma e
charme fatais, têm a necessidade incontrolável de matar, além de sentirem
prazer com o sofrimento da vítima. Os seus cérebros não têm respostas
emocionais, pois é reduzida a atividade neural no córtex pré-frontal. Além da
ausência das emoções primárias (amor ao próximo, empatia e piedade), não
possuem emoções secundárias (ansiedade, alterações do ritmo cardíaco,
calafrios, medo, respiração ofegante e transpiração alterada), face à inativação
do sistema nervoso simpático. Nem todos os psicopatas são criminosos e a
recíproca é verdadeira. A maioria deles não é violenta e se comporta dentro de
padrões estreitos de tolerabilidade face às trágicas consequências psicológicas
e financeiras provocadas nas suas vítimas.

Na senda criminal não há alcance psicológico se o sociopata for


apenado. Ele não possui conexões cerebrais necessárias para associar a
reprimenda que cumprir à eliminação do comportamento ilícito, apesar de
dimensionar, subjetivamente, o dolo e a culpa. Noutra verve, ele sabe que o seu
comportamento é errado, mas, face à baixa atividade neural nos lobos frontais,
ele não consegue atingir um significado mais profundo de seu comportamento
ilícito. Por causa dessa síndrome ele é incapaz de aprender, de se intimidar e
de modificar a sua atitude com a pena que cumprir! Daí as reincidências
criminais. Na esfera cível, de igual modo, não há resultado efetivo e, condenado
a indenizar a vítima, ele continuará agindo pernosticamente face à sua
insuficiência afetivo-emocional.

Como a arqueologia do saber envolve multifacetários vieses, estudos


filogenéticos do distúrbio, aliados aos recentes avanços de investigação
neurológica, por meio de imagens por ressonância nuclear magnética funcional
(IRMf), têm permitido melhor análise da fisiologia cerebral. O IRMf atua medindo
as oscilações do fluxo sanguíneo cerebral, obtendo imagens com alta
resolução espacial e temporal. Esse instrumento consegue, em tempo real,
precisar o nível de conexão ou de repulsão emocional da pessoa perante um
estímulo visual. Um exemplo interessante e atual da performance do IRMf é o
detector de mentiras. Como mentir exige esforço cerebral, esse esforço
provoca um aumento do fluxo sanguíneo em determinada área cerebral e, por
isso, é denunciado pelo IRMf. Essa circunstância mostra que a pessoa
submetida ao IRMf está mentindo! Ou seja, ele registra e quantifica a atividade
cerebral, da cognição ao comportamento.
Com ele, pode-se examinar o campo magnético do tecido neural ao
rastrear as ondas cerebrais em tempo real, gerando imagens em qualquer
plano. Assim, foi possível mapear, topograficamente, os cérebros de alguns
psicopatas. Descobriu-se que eles têm menor atividade cerebral nas áreas
envolvidas no julgamento moral, possuindo alterações homeopáticas na sua
arquitetura cerebral. Além da constatação dessas discrepâncias morfológicas,
localizaram-se as regiões onde residem as deficiências. Essas notáveis
descobertas permitem intervenções farmacológicas para atenuar, modular ou
eliminar o distúrbio. Possibilitam, ainda, estimular as regiões cerebrais
específicas para se alterar comportamentos, face à neuroplasticidade cerebral.
É possível, também, microcirurgias neurofrontotalâmicas. As tentativas de
tratamento – e aqui se incluem as terapias – nem sempre potencializam efeitos
concretos, pois os sociopatas não lhes são responsivos.

Pesquisas pós-modernas sugerem multideterminados e importantes


fatores responsáveis por esse embotamento psicoemocional. Dentre eles se
destacam os sociais (extrínsecos – maus tratos na infância, traumatismo
cranioencefálico). Sabe-se, também, que lesões no lobo frontal podem apagar
as conexões cerebrais que definem os comportamentos coerentes, provocando
perda do auto-controle, impulsividade e violência. Destacam-se, ainda, os
fatores biológicos (intrínsecos – causas psicogênicas, doenças mentais, forças
neurobiológicas, do amor ao vício, tumores cerebrais) e os fatores genéticos
(genótipo). Estes fatores, isolados ou em conjunto, e aqui se inclui o
poliformismo (variação fenotípica num grupo, seja ou não com fundo genético),
provocam alterações na capacidade de julgamento da pessoa. Os fatores
genéticos, entretanto, prevalecem sobre os epigenéticos, pois se vinculam à
manutenção do código vital pela transmissão bioquímica dos caracteres
hereditários, de modo que filhos de psicopatas têm cinco vezes mais chances
de desenvolver o mesmo distúrbio. Apesar disso, a etiologia desse distúrbio
neurocognitivo merece esclarecimentos, mesmo em se tratando de uma
referência nosológica que sempre interessou aos neurocientistas.
O Brasil, na contramão de países mais bem sedimentados
culturalmente, ainda não elaborou procedimentos capazes de identificar os
portadores dessa síndrome e ajudá-los por intermédio de um planejamento
institucional, inclusive de lhes obstar o ingresso em determinadas profissões.
Esse embotamento neurocognitivo é complexo e muito mais grave do que se
imagina, pois, além do rastro de destruição e desalento deixado por seus
portadores, é crescente em todos os tecidos sociais.

Eis aí outro desafio a ser ultrapassado pelas ciências!

KLÉBER OLIVEIRA VELOSO

* Pós-doutor em Direito Penal pela Universidade Federal de Santa Catarina


(UFSC), Brasil. Doutor e Mestre em Direito Penal pela Universidade de
Barcelona, Espanha. Especialista em Direito Penal e em Direito Processual
Penal pela Universidade Federal de Goiás (UFGO), Brasil. Graduado em Direito
pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), Goiânia, Brasil.
Diretor Editorial da Revista Odisseia da Medicina. Membro das Comissões do
MEC/SESu/INEP para avaliação, autorização, supervisão, credenciamento e
reconhecimento dos cursos de graduação e de pós-graduação em Direito, Brasil.
Membro Fundador da Academia Goianiense de Letras. Escritor. Professor.

* Post-doctor in Criminal Law by the Universidade Federal de Santa Catarina


(UFSC), Brazil. PhD and Master of Criminal Law by the University of Barcelona,
Spain. Specialist in Criminal Law and Criminal Process by University Federal of
Goiás, Brazil. Graduated in Law by the Pontifícia Universidade Católica de Goiás
(PUC-GO), Goiânia, Brazil. Publisher of the Magazine Odisseia da Medicina.
State Committee member of MEC/SESu/INEP for evaluation, authorization,
oversight, accreditation and recognition of undergraduate and graduate in law,
Brazil. Founding Member of the Academia Goianiense de Letras. Writer.
Professor.

* Post-docteur en Droit Pénal pour l'Université Fédérale de Santa Catarina


(UFSC),  Brésil. Docteur et Maître dans le Droit Pénal pour l'Université de
Barcelone, l'Espagne. Spécialiste dans le Droit Pénal et dans Droit Procédural
Pénal pour l'Université Fédérale de Goiás (UFGO), Brésil. Diplômé en Droit pour
l'Université Catholique Papale de Goiás (PUC-GO), Goiânia, Brésil. Directeur
Éditorial de la Revue Odisséia de la Médecine. Membre des Commissions de
MEC/SESu/INEP pour évaluation, autorisation, surveillance, accréditation et
reconnaissance des formations diplômantes et de master en Droit, Brésil.
Membre Fondateur du Monde universitaire Goianiense de Lettres. Auteur.
Professeur.

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