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Lima, M. F. Ferreira, C. B. Estratégias de enfrentamento de pacientes com transtornos mentais

Estratégias de enfrentamento de pacientes com transtornos mentais

Coping strategies of patients with mental disorders

Las estrategias de afrontamiento de los pacientes con trastornos mentales

Mayna Ferreira Lima1

Cintia Bragheto Ferreira2

Resumo

O sofrimento psíquico é um tema pouco estudado em usuários dos serviços de saúde mental. Por isso,
o objetivo deste estudo foi identificar e descrever as formas de enfrentamento de indivíduos que
convivem com transtornos mentais. Para tanto, realizou-se uma pesquisa qualitativa que utilizou
entrevistas semiestruturadas audiogravadas com cinco usuários de um Centro de Atenção Psicossocial
(Caps). Posteriormente, as entrevistas foram transcritas na íntegra e lidas de forma exaustiva, visando
à identificação das estratégias de coping. Os resultados mostraram a utilização de estratégias focadas
no problema, como o uso de medicação e o apoio multiprofissional, e as estratégias focadas na emoção
que emergiram em tentativa de fuga e na reavaliação do evento estressor. As estratégias focadas na
religiosidade e no apoio familiar também se mostraram relevantes para a maioria dos entrevistados.
Diante disso, entende-se o usuário como importante ator para a construção do seu projeto terapêutico
de cuidado em saúde mental.

Palavras-chave: Pacientes. Saúde mental. Enfrentamento.

Abstract

Psychological distress in users of mental health services is a little-studied topic. Therefore, this study
aims to identify and describe the coping mechanisms of individuals with mental disorders. To attain
this objective, we carried out a qualitative study using the semi-structured, audio-recorded interviews
of five users of a Psychosocial Care Center (Caps). Subsequently, the interviews were transcribed and
studied exhaustively to identify coping strategies. The results showed that the interviewees used
strategies focused on their problems, such as the use of medication and multidisciplinary support.
Other strategies focused on the emotions that emerge in an attempt to escape, and a stressor
revaluation. Strategies focused on religion and family support were also relevant for most of the
respondents. Therefore, we can consider the users as important actors in the construction of
therapeutic plans for their mental health care.

Keywords: Patients. Mental health. Coping behavior.

Resumen

La angustia psicológica es un tema poco estudiado en usuarios de los servicios de salud mental. Por lo
tanto, el objetivo de este estudio es identificar y describir las formas de afrontamiento de las personas
que viven con trastornos mentales. Para eso, fue realizado un estudio cualitativo, que utilizó

1
Psicóloga do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) de Santa Helena de Goiás (GO)
2
Professora Adjunta do Departamento de Psicologia e Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (PPGP-UFTM)

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entrevistas semiestructuradas grabadas en audio, hechas con cinco usuarios de un Centro de Atención
Psicosocial (Caps). Posteriormente, las entrevistas fueron totalmente transcritas y leídas de forma
exhaustiva, de manera a identificar las estrategias de afrontamiento. Los resultados mostraron el uso
de estrategias centradas en el problema – como el uso de medicamentos y el apoyo de varios
profesionales –, así como que las estrategias centradas en la emoción surgieron en un intento de
escapar, y en la revalorización del factor estresante. Las estrategias centradas en la religión seguidas
por el apoyo de la familia fueron relevantes para la mayoría de los encuestados. De ese modo, se
entiende el usuario como un actor importante para la construcción de su proyecto terapéutico de
atención en la salud mental.

Palabras clave: Pacientes. Salud mental. Afrontamiento.

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Introdução revelaram a necessidade de um cuidado


psicossocial ofertado às pessoas com
Por mais de duzentos anos, em sofrimento psíquico. Contudo, a
nível mundial, ser portador de sofrimento consolidação da Reforma Psiquiátrica
mental foi associado a estereótipos brasileira se deu de modo vagaroso, mas
negativos, tais como a de que eram proporcionou o início da construção de
indivíduos irracionais que representavam uma rede de atenção à saúde mental
risco à sociedade (Amarante, 1995). Além visando à redução de leitos psiquiátricos,
disso, eram considerados insanos e apostando em um modelo substitutivo, em
passíveis de despersonalização (Assad & defesa dos direitos humanos dos
Pedrão, 2013; Salles & Barros, 2013), indivíduos com sofrimento mental, a fim
reafirmando assim a discriminação das de humanizar a assistência, construir um
pessoas com transtornos mentais (Assad & modelo de atenção comunitário (Ministério
Pedrão, 2013). Inicialmente, os indivíduos da Saúde, 2005) e consequentemente
com desordens mentais eram tratados em abandonar o modelo asilar predominante
hospitais psiquiátricos e/ou manicômios, no passado (Oliveira & Caldana, 2014).
que contavam com condições precárias, em Concordando com as prerrogativas
que a negligência e os maus tratos eram do movimento da Reforma Psiquiátrica
frequentes (Amarante, 1995). Na época, o brasileira, a Organização Mundial de
tratamento isolava os pacientes de sua rede Saúde (2005) afirma a necessidade de uma
social com o intuito de curá-los. Nesse visão multifatorial em relação à definição
cenário, a psiquiatria, além de apontar os de transtorno mental, que considere o
manicômios como o lugar adequado para o contexto social, cultural, econômico e legal
tratamento dos indivíduos com sofrimento das diferentes sociedades (Organização
psíquico, contribuiu também para uma Mundial de Saúde, 2005) no qual os
conduta alienante (Secretaria de Estado de transtornos estão inseridos e se
Saúde de Minas Gerais, 2006; Amarante, manifestam. As prerrogativas apresentadas
1995), ao circunscrever os diversos tipos pela Reforma, assim como pela
de transtornos baseados em descrições e Organização Mundial de Saúde,
sintomas (Secretaria de Estado de Saúde de concordam ainda com os princípios do
Minas Gerais, 2006). modelo biopsicossocial de cuidado em
Porém, em 1978 surgiram, no saúde, que considera os aspectos
Brasil, os primeiros movimentos biológicos, psicológicos e sociais de cada
construídos por familiares de pessoas com indivíduo para a compreensão dos
transtornos mentais, além de integrantes do transtornos mentais, envolvendo a inclusão
movimento sanitário e sindicalistas, que desses indivíduos no lugar da exclusão tão
denunciaram a repressão sofrida pelos reforçada no passado (Salles & Barros,
internos dos hospitais psiquiátricos, 2013). É nesse sentido que o Caps se
incitando movimentos para discutir uma destaca como a principal estratégia do
reorientação da assistência e o fim dos processo da Reforma Psiquiátrica.
manicômios (Amarante, 1995), os quais De acordo com o Ministério da
caracterizaram o movimento da Reforma Saúde (2013), o Caps é um dos principais
Psiquiátrica brasileira. Cabe acrescentar centros de tratamento para pessoas
que foi em meio a essas lutas que o acometidas por algum transtorno mental
primeiro Centro de Atenção Psicossocial grave e tem como intuito promover a
(Caps) foi fundado, assim como a criação reinserção social dos usuários, por meio do
do Núcleo de Atenção Psicossocial (Naps) trabalho, lazer, exercício dos direitos civis
(Ministério da Saúde, 2005), que e fortalecimento dos vínculos familiares e

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comunitários (Ministério da Saúde, 2004). como modos de enfrentamento. De acordo


O Caps deve oferecer atendimento com Lazarus e Folkman (1984), existem
psicoterapêutico individual e grupal, dois tipos de enfrentamento: focalizado no
atendimento para as famílias e para a problema e focalizado na emoção. Nas
comunidade, assembleias e reuniões de estratégias de enfrentamento focadas no
organização do serviço. Além disso, todos problema, os esforços do indivíduo estão
os usuários contam com o voltados para a definição do problema,
acompanhamento clínico de uma equipe produzindo soluções alternativas,
multiprofissional. avaliando-as baseando-se nos custos e
Mesmo com a instituição dos Caps, benefícios, na escolha e na ação – além
a convivência com um transtorno mental disso, tem o intuito de alterar a situação de
acarreta mudanças drásticas para o desconforto com base na relação pessoa-
indivíduo com sofrimento mental e para ambiente. Essa estratégia permite pensar
todo o seu contexto familiar, pois envolve nas possibilidades externas diante do
o uso de medicação, atenção especial e problema, como buscar auxílio e,
acompanhamento de um profissional de internamente, por meio de mudanças
saúde, exigindo assim toda uma cognitivas. Contudo, quando há uma
reestruturação familiar (Almeida, 2013). avaliação do indivíduo na qual não há o
Em alguns casos, essas repercussões que fazer para modificar as condições
podem ser equivalentes às consequências ambientais ameaçadoras, as estratégias
de algumas doenças crônicas, visto a focadas na emoção tornam-se mais
necessidade de convivência constante com propensas a ocorrer. As estratégias focadas
as manifestações do transtorno. na emoção estão relacionadas às mudanças
Concordando com Ferreira, Martins, Braga do estado emocional, como a diminuição
e Garcia (2012) ao afirmarem que uma do sofrimento por intermédio da
condição crônica de saúde desperta minimização, evasão, dirigido em um nível
sentimento de tristeza e acarreta mudanças somático e/ou em nível de sentimentos
no nível social, comportamental e/ou (Lazarus & Folkman, 1984), ou ainda em
físico, podendo despertar mal-estar não só mudanças comportamentais, como meditar,
no indivíduo, mas em toda a sua família buscar apoio emocional, dentre outras,
(Caetano, Fernandes, Marcon & Decesaro, realizando uma reavaliação cognitiva sobre
2011), exigindo assim que todos se a problemática em questão.
organizem a fim de encontrar estratégias
para melhor lidarem com o sofrimento Estratégias de enfrentamento em
experimentado na convivência com o pacientes crônicos
transtorno (Silva & Müller, 2007),
estendido também aos profissionais que O diagnóstico de um transtorno
trabalham diariamente nos Caps (Oliveira mental pode despertar sentimentos de
& Caldana, 2014). invalidez, acarretando perda da
Sobre as estratégias de independência e do autocontrole (Lyons &
enfrentamento ou coping, Lazarus e Chamberlain, 2006). Dessa forma,
Folkman (1984) afirmam que o considerando as dificuldades que a
enfrentamento é um processo que envolve condição crônica pode acarretar, os estudos
esforços cognitivos e comportamentais do que buscaram compreender os modos de
indivíduo para lidar com demandas lidar com condições crônicas no campo da
externas e internas que são avaliadas como saúde demonstram formas de
além dos recursos do próprio indivíduo. enfrentamento focadas tanto no problema
Contudo, comportamentos que se tornam quanto na emoção, além da religiosidade e
automáticos não podem ser concebidos do suporte social fornecido tanto pelas

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equipes de saúde quanto pelas famílias dos estratégias focadas na espiritualidade e na


pacientes com transtornos mentais, os fé se destacaram, seguidas pela estratégia
quais serão descritos na sequência. focalizada no problema de se ajustar às
Sobre as estratégias de mudanças decorrentes da condição crônica
enfrentamento ligadas à religiosidade, um de saúde e, posteriormente, focada na
estudo de Guerrero, Zago, Sawada e Pinto emoção, como o desejo de mudança de
(2011) com 14 pacientes oncológicos, de sentimento, contando ainda com o suporte
ambos os sexos, realizado a fim de social, definido no estudo como o diálogo
compreender a relação entre a com alguém sobre sentimentos e sobre a
espiritualidade e a doença, identificou situação atual. Em outra pesquisa, como na
estratégias de enfrentamento voltadas para de Pisoni, Kolankiewicz, Scarton, Loro,
a fé e para as crenças religiosas, as quais Souza e Rosanelli (2013), que procurou
podem corroborar para criar sentidos para compreender as dificuldades encontradas
lidar com a doença, possibilitando a em dez mulheres com diagnóstico de
redução da intensidade do sofrimento do câncer de mama em tratamento
paciente, ao mesmo tempo em que lhe oncológico, a religião também se
permite pensar na esperança de cura. sobressaiu como estratégia de
Uma pesquisa de Paiva, Ferrara, enfrentamento associada com o suporte
Santos e Parker (2013), ao investigarem o familiar.
enfrentamento da Aids em um estudo Mais recentemente, Reinaldo e
multicêntrico na perspectiva de religiosos, Santos (2016), ao buscarem compreender
por meio de pesquisa documental, estudos as percepções da relação entre
de caso, oficinas e entrevistas, religião/espiritualidade e os transtornos
identificaram que os participantes tendem psiquiátricos para pacientes, seus
a propagar os modos religiosos de familiares e profissionais de saúde,
enfrentamento da doença ancorados no mostraram que a vivência da
contexto sócio-histórico e político vigente, religião/espiritualidade pode proporcionar
incluindo a camisinha como eixo central da fortalecimento para o coping do transtorno
prevenção, mas, sobretudo, voltados para a mental. Contudo, a religião/espiritualidade
relação dos simbolismos religiosos e suas pode dificultar a convivência com o
influências no enfrentamento pessoal dos transtorno, na medida em que sua vivência
indivíduos, contribuindo assim para modos pode influenciar usuários e familiares a
de coping que privilegiam apenas a relação negarem o tratamento como algo
pessoal do indivíduo com dogmas, necessário. Além disso, os profissionais de
desconsiderando a participação de saúde que colaboraram com o estudo
dimensões psicossociais e político- demonstraram dificuldade em integrar em
institucionais mais amplas que também seu cotidiano de trabalho a vivência da
contribuem para a construção dos modos religião/espiritualidade por parte dos
de enfrentamento da Aids. usuários e familiares.
Ainda na perspectiva da Sobre o suporte social ofertado a
religiosidade, a fé e a espiritualidade pacientes crônicos, Gasparelo, Sales,
emergiram nos achados de um estudo de Marcon e Salci (2010), em um estudo com
Almeida (2013), no qual foram realizadas nove mulheres mastectomizadas,
sete entrevistas com homens com câncer concluíram que o apoio do cônjuge e/ou
em tratamento e seus respectivos família auxilia os pacientes crônicos a
cuidadores, com a aplicação conjunta da lidarem melhor com o adoecimento e as
Escala de Modos de Enfrentamento de dificuldades impostas pela enfermidade,
Problemas (Emep) adaptada à realidade pois a rede de suporte citada, muitas vezes,
brasileira. Os resultados mostraram que as pode ser fonte de motivação e

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encorajamento para enfrentar a doença com transtorno fóbico-ansiosos, usuárias


(Barbosa, Santos & Barbosa, 2012), visto de um Caps, no qual os resultados
que em uma variedade de casos é um evidenciaram a família como a
familiar que ocupa o lugar de principal fundamental estratégia de enfrentamento
cuidador do paciente com câncer para lidarem com os sintomas decorrentes
(Almeida, 2013). do transtorno.
O suporte social também foi Percebe-se, portanto, que os
estudado por Barbosa, Santos e Barbosa estudos destinados a compreender o
(2012) em uma pesquisa na qual sofrimento psíquico apresentam essa
procuraram investigar a rede de suporte compreensão a partir do ponto de vista
social de mulheres diagnosticadas com principalmente dos familiares e/ou
câncer de mama. Na amostra de vinte cuidadores que vivenciam o transtorno
mulheres, os resultados obtidos mostram a mental. Em contrapartida, há poucas
importância do apoio da família e dos pesquisas que procuraram identificar e
amigos como motivadores para a compreender as estratégias de
recuperação das participantes do estudo, enfrentamento utilizadas por indivíduos
assim como a religião, que se mostrou com sofrimento psíquico. Dessa maneira,
igualmente significativa para o considerando a lacuna de estudos que
enfrentamento da enfermidade. Além foquem a identificação de estratégias de
disso, dentre as emoções mais eficazes enfrentamento de pacientes com
para o enfrentamento da doença, transtornos mentais, o presente estudo
sobressaíram-se a esperança de cura e a surge da necessidade de investigação
valorização da vida. dessas estratégias, a fim de ampliar a
A partir dos estudos apresentados, é compreensão dos modos de enfrentamento
perceptível que o foco das pesquisas sobre dos sofrimentos psíquicos na perspectiva
o enfrentamento de doenças crônicas tem de indivíduos com transtornos mentais.
grande direcionamento para a população Desse modo, este trabalho objetivou
com câncer. Porém, Galera, Zanetti, identificar e descrever as estratégias de
Ferreira, Giacon e Cardoso (2011) chamam enfrentamento utilizadas por pessoas com
a atenção, em um estudo bibliográfico que transtornos mentais.
analisou pesquisas referentes à sobrecarga
de familiares cuidadores de indivíduos Método
com transtornos mentais, para a relevância
de estudos de enfrentamento na área da O estudo realizado foi do tipo
saúde mental, acrescentando que é qualitativo-descritivo. A escolha da
necessária a reflexão sobre a relação entre abordagem qualitativa se justifica pela
família e transtorno mental. Sobre isso, possibilidade de contato direto com os
Pegoraro (2007), em um estudo com significados de determinados fenômenos
familiares e indivíduos com sofrimento para grupos específicos (Turato, 2013), que
mental, aponta que a sobrecarga familiar no caso da presente pesquisa esteve
(econômica, física e emocional) pode centrada nas estratégias de enfrentamento
fragilizar os vínculos familiares amistosos de usuários de Caps.
devido à necessidade de reorganização O Caps deste artigo está localizado
familiar diante do membro com transtorno em um município do interior goiano, que
mental. Ainda em relação à população com iniciou suas atividades em 2003.
transtorno mental, Almeida, Silva, Classificado como Caps II, funciona no
Espínola, Azevedo e Ferreira Filha (2013) turno matutino e vespertino, de segunda a
buscaram compreender as estratégias de sexta-feira das 7h às 17h e atende à
enfrentamento utilizadas por vinte pessoas demanda adulta acometida por algum tipo

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de transtorno mental de grau leve a severo. entrevistadora com os usuários do Caps,


Desde quando foi instituído já atendeu ocorrida por meio das atividades de grupo
aproximadamente 14 mil pessoas. propostas pela instituição, momento no
Atualmente o Caps atende em torno de 400 qual era feito o convite para a participação
pessoas por mês, abrangendo a região rural na pesquisa, o que resultou inicialmente na
e municípios vizinhos. Os usuários realização de seis entrevistas. Entretanto,
participam do Caps de diversos modos, após a transcrição na íntegra das
desde consultas médicas para obtenção de entrevistas e a leitura exaustiva desta,
medicação até a participação diária nas foram selecionadas apenas aquelas nas
atividades oferecidas pela instituição. O quais as falas dos participantes remeteram
Caps conta com uma equipe às estratégias de coping relacionadas à
multidisciplinar nas seguintes áreas: convivência com o transtorno mental,
Psicologia, Psiquiatria e Medicina (clínico resultando assim em cinco entrevistas.
geral), Enfermagem, Técnico de As entrevistas foram realizadas nas
Enfermagem, Fisioterapia, Serviço Social, dependências do Caps, na sala onde
Nutrição e Farmácia. As atividades ocorrem os grupos terapêuticos, tendo
propostas pela instituição incluem oficinas duração média de 50 minutos. No
terapêuticas, compostas por pinturas em momento da entrevista estavam presentes
telas e tapetes, coral musical, construído apenas uma pesquisadora e o entrevistado.
pelos próprios usuários, atividades físicas e Após permissão de cada participante, foi
grupos terapêuticos. utilizado um gravador de voz como
instrumento de auxílio para a coleta dos
Participantes dados.

Os participantes da pesquisa foram Procedimento de análise dos dados


usuários do referido Caps, portanto, todos
diagnosticados com algum transtorno As entrevistas realizadas foram
mental, que após o convite e as transcritas na íntegra, sucedidas por
informações sobre a pesquisa se leituras exaustivas para a identificação das
prontificaram a participar. estratégias de enfrentamento utilizadas
pelos participantes. Em seguida, as
Instrumentos estratégias de enfrentamento foram
analisadas ancoradas na teoria de coping
O instrumento utilizado para a (Lazarus & Folkman, 1984) e nos estudos
coleta de dados da pesquisa foi a entrevista que versassem sobre a temática do
semiestruturada, subdividida em dois enfrentamento para pacientes crônicos.
momentos, primeiramente com enfoque
nos dados sociodemográficos dos Procedimentos éticos
entrevistados e, em seguida, focalizada nas
possíveis estratégias de enfrentamento O presente estudo foi analisado e
utilizadas pelos participantes na aprovado por um Comitê de Ética em
convivência com o transtorno mental. Pesquisa (Parecer nº 120/13). Em relação
às questões éticas, cabe ressaltar ainda que
Procedimentos de coleta de dados anterior à entrevista foi realizada a leitura
do Termo de Consentimento Livre e
Para a coleta dos dados, foram Esclarecido, assim como possíveis dúvidas
realizadas seis visitas à instituição, com puderam ser sanadas, além do
duração de aproximadamente uma hora e asseguramento da garantia do sigilo das
meia cada, visando à familiarização da

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informações prestadas e do anonimato dos Retomando a discordância entre o


participantes. diagnóstico apontado pelos pacientes e o
diagnóstico descrito nos prontuários,
Resultados e discussão aponta-se que esse desconhecimento
parece reafirmar a noção de alienação do
A amostra do estudo foi composta paciente com transtorno mental em relação
por cinco entrevistados, aos quais foram ao seu próprio tratamento e diagnóstico,
atribuídos nomes fictícios (Amélia, sendo essa uma das características do
Jacinto, Íris, Rose e Margarida) a fim de modelo asilar (Salles & Barros, 2013;
preservar suas identidades, sendo um do Assad & Pedrão, 2013), persistindo ainda
sexo masculino e quatro do sexo feminino. atualmente, como é possível verificar nas
Os participantes têm idade entre 38 e 80 falas apresentadas a seguir: “Disseram que
anos, todos frequentam o Caps entre duas e era esquizofrenia, aí depois quando eu já
três vezes na semana e geralmente tava tratando com os remédios disseram
permanecem durante todo o dia na que era depressão também, depressão e
instituição. As participantes Íris e Rose esquizofrenia” (Rose). “Eu não sei qual
residem com seus companheiros e filhos, que é direitinho... meu problema foi o
Margarida reside com seus filhos, Amélia AVC” (Jacinto).
reside com seu companheiro e Jacinto Amélia e Íris também afirmam:
reside com a mãe e o irmão.
Os diagnósticos indicados nos Antigamente não existia tratamento, então
prontuários dos participantes informam os a gente ficou com a doença muito velha.
Eu perguntei à médica daqui que doença
seguintes transtornos mentais: transtorno que eu tenho, ela disse que é depressão,
afetivo bipolar e retardo mental leve F depressão lipolar, bicolar, não sei falar, é
31/F 70 (Amélia); transtornos mentais uma coisa assim. (Amélia)
comportamentais devidos ao uso de álcool Olha, eu vim pra cá achando que eu tinha
F 10 (Jacinto); epilepsia e transtornos só depressão, mas chegando aqui, a
psicanalista foi ver que eu tenho uma
mentais devido à disfunção cerebral G 40/ doença que chama psiconeuroalucinação.
F 06 (Íris); esquizofrenia F 20 (Rose) e (Íris)
transtornos de adaptação F 43.2
(Margarida). Em contrapartida, os Sobre as estratégias de
pacientes relatam, respectivamente, os enfrentamento utilizadas pelos
seguintes diagnósticos: depressão bipolar entrevistados, seus depoimentos mostram a
(Amélia); acidente vascular cerebral utilização de estratégias focadas no
(Jacinto); neuroalucinação e depressão problema e focadas na emoção, além de
(Íris); esquizofrenia e depressão (Rose) e outras estratégias que foram apontadas
depressão (Margarida). como relevantes no processo de
O período de tempo de tratamento enfrentamento, como a fé, a religiosidade e
dos entrevistados mostrou uma variação o suporte familiar.
significativa, visto que esteve
compreendido entre oito meses e 29 anos. Estratégias de enfrentamento focadas no
Antes de o Caps ser instituído, os pacientes problema
com transtornos mentais eram internados e
tratados no núcleo de saúde mental do As estratégias com o foco no
município onde o estudo foi realizado. Por problema foram aquelas em que os
isso, o tempo de tratamento de alguns participantes utilizaram meios que visavam
participantes extrapola a data de criação do combater o problema, envolvendo novos
Caps. padrões de comportamentos e mudanças

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cognitivas por meio de reavaliações com Aí nos dias que a dor tá insuportável eu
foco na problemática vivenciada. De vou desabafar, a gente entra dentro da
sala e eu vou desabafar com ela
acordo com Lazarus e Folkman (1984), (psicóloga), eu vou chorar as mágoas, né,
essas estratégias são mais propensas a e aí melhora. É saudável pro coração,
ocorrer quando o problema em questão é coloca pra fora o que tá apertado. (Íris)
passível de mudança. Uma das estratégias
com foco no problema encontrada com É possível perceber que Rose,
frequência na fala dos entrevistados foi o Jacinto e Íris encontram no tratamento
uso de medicação, que se apresentou como medicamentoso e psicoterápico um suporte
um dos meios de melhorar e/ou minimizar que alivia as tensões desencadeadas pelo
as consequências advindas do sofrimento transtorno mental, concordando com
psíquico, como Rose, ao afirmar: “depois Almeida et al. (2013), ao afirmarem que a
que eu vim pra cá, eu melhorei com a procura por auxílio multiprofissional é
medicação”, concordando com a fala de válida, pois é fundamental para que o
Amélia: “É, a gente vem fazer o tratamento paciente desenvolva uma melhor qualidade
direitinho, usar o remédio do Caps de vida, que auxilia na sua recuperação e
direitinho, não pode esperar acabar o desencadeia uma postura positiva diante do
remédio [...] por qualquer coisa tava problema.
chorando, agora eu melhorei com o As atividades oferecidas pelo Caps,
remédio... o remédio do Caps não pode tais como a oficina de pintura, o coral de
parar de tomar não!” música, a oficina de tapetes e os grupos
As falas de Rose e Amélia terapêuticos também emergiram nas falas
permitem refletir sobre a importância que o da maioria dos participantes como
fármaco representa na vida dos facilitadores para a minimização do
participantes, sendo um auxílio para lidar sofrimento psíquico, como é possível
com as consequências do transtorno. Essa acompanhar na sequência: “Como pode, eu
conduta consiste em um modo de lidar vou pras oficinas de pintura, participo dos
diretamente com o problema, concordando grupos” (Íris). “Grupos ajuda, gosto de
com Lazarus e Folkman (1984), ao fazer tapetes, fiz dois e agora tô fazendo
afirmarem que as mudanças mais um que aí vou ganhar um (risos)”
comportamentais, como a de autocuidado, (Rose). Encontradas também nas falas de
exemplificado nas falas pela inserção do Amélia e Margarida.
medicamento na rotina das usuárias do
Caps, demonstram uma atitude a fim de As coisas aqui no Caps ajuda, eu faço
atingir um melhor quadro de saúde. pintura [...]. Aqui é um meio de enfrentar.
(Amélia)
As estratégias direcionadas ao Eu pensei que a única coisa que eu podia
problema estiveram ainda relacionadas à tentar fazer era tapete, mas não deu por
busca por auxílio multiprofissional, como é causa das minhas vistas. Aí deram a ideia
possível se acompanhar nas seguintes deu ir cantá, aí eu fui, agora eu tô no grupo
falas: da turma que canta [...] Ajuda demais, eu
gosto muito. E assim óh, cê tá cantando
aquelas músicas parece que você tá
Aí eu fiquei muito triste, aí eu vim e eles vivendo aquilo que você tá cantando,
já foram me orientando e também dando engraçado. (Margarida)
remédio. (Rose)
Eu participo mais do grupo da psicóloga
e da enfermeira. É o que me ajuda. Eu As falas de Íris, Rose, Amélia e
saio daqui pensando outras coisas, me Margarida corroboram com Assad e Pedrão
sinto melhor [...]. Algo que me ajuda é a (2013), ao afirmarem que as atividades
fisioterapia. (Jacinto) expressivas são elementos de grande
importância na reabilitação psicossocial,

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além de contribuírem para a compreensão transtorno é algo desafiador diante do qual


do indivíduo, de modo a estimular e a entrevistada desconhece uma maneira
priorizar as potencialidades individuais, satisfatória e, por isso, busca evitar
confirmada mais uma vez na fala de assuntos que se referem ao estímulo
Amélia, apresentada a seguir: “Canto mais estressor. Sendo assim, nas falas de Amélia
meu companheiro! Ele toca violão e canta e Íris fica evidente a forma de
e eu sento de pareia e canto com ele. Aqui distanciamento e evasão em relação ao
com o músico e meu companheiro a gente estímulo estressor (Lazarus & Folkman,
ensaia a música até decorar, é muito bom”. 1984).
Desse modo, podemos apontar que Alguns entrevistados também
a arte, em suas diferentes formas, tornou-se apontaram a reavaliação cognitiva em
um meio de enfrentamento, possibilitando relação ao sofrimento psíquico realizando
o redirecionamento do olhar do indivíduo manobras cognitivas (Lazarus & Folkman,
para além do transtorno mental. Além 1984) com o intuito de diminuir o
disso, o desenvolvimento de novos padrões sofrimento emocional ou amenizar a
de comportamentos ou novas habilidades ameaça que o problema representa, o que
são alternativas para lidar com o problema pode ser alcançado por meio de
(Lazarus & Folkman, 1984). comparações positivas, como se pode
visualizar a seguir.
Estratégias de enfrentamento focadas na
emoção A gente tem que enfrentar de cabeça
erguida, porque se ficar colocando na
cabeça, ah eu sou um doente, e não serve
As estratégias de enfrentamento pra fazer nada e ficar dentro de casa
focadas na emoção têm o intuito de desviar fechada, você não vive. Eu tava assim, não
ou diminuir a atenção gerada pelo saía de casa sozinha. A gente tem que
problema e são expressas, por exemplo, saber nossos limites, mas também temos
por fuga, não aceitação e comparações que pensar, a gente também é gente, tem
que viver, se a gente não fizer nada na vida
positivas (Lazarus & Folkman, 1984), fica difícil. (Íris)
sendo que no presente estudo a indagação Eu faço assim, sabe, eu combato essa
sobre como lidar com o transtorno psíquico doença de depressão com visitas que eu
e as dificuldades que ele acarreta levou os faço aos doentes, se tiver que fazer
entrevistados a um momento de descrição qualquer coisa pra eles melhorar eu faço
[...]. É isso, sabe, se você ficar, minha
de suas dificuldades e limitações utilizando filha, se martirizando queta em casa, vai ao
estratégias como a evasão em relação ao fundo, não tem fim. (Margarida)
sofrimento psíquico, como é possível
verificar na sequência: O processo de reavaliação cognitiva
ainda constitui uma estratégia de
É difícil, eu falo pros outros que eu não enfrentamento focada na emoção, pois leva
gosto nem de explicar, não gosto nem de
ficar falando, porque os outros fica
a uma mudança subjetiva sem alterar o
fazendo pergunta lá perto de casa, fica plano real da situação (Lazarus &
especulando, eu falo: óia, nem sei nem Folkman, 1984). Sobre isso, a participante
explicá procê. (Amélia) Íris demonstrou comparações dela mesma
Pra quê que você vai pensar na doença, com outros usuários do Caps, confirmando
temos que pensar na vida, porque se for se
martirizar com a doença a gente não vive.
os achados de Almeida (2013) sobre a
(Íris) postura em buscar algo positivo dentro da
situação desfavorável ocasionada pela
Como demonstrado anteriormente, desordem mental, o que pode minimizar o
de acordo com Amélia, lidar com o sofrimento psíquico, como pode ser

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verificado na fala apresentada na (em relação ao Mal de Parkinson) quem


sequência. “Foi bom chegar aqui no Caps me fez mesmo, foi Deus […]. (Margarida)
porque aqui eu encontrei muita gente de
cabeça erguida, e isso me deu força, vi A espiritualidade é apontada por
pessoas com doenças piores que a minha, Pisoni et al. (2013) como uma forma de os
então eu não vou abaixar a minha cabeça, pacientes encontrarem um sentido positivo
não posso” (Íris). de vida diante do sofrimento
Estar em um ambiente que oferece experimentado. Guerrero et al. (2011)
contato com pessoas na mesma situação ou também mostraram a importância da fé e
com dificuldades mais sérias do que as do da religiosidade dos pacientes como
próprio indivíduo, assim como relatado por alternativas para a esperança de cura. No
Íris, também produz uma regulação da discurso dos participantes, a menção a
emoção do sujeito por meio de Deus é feita investindo toda fé para aquele
pensamentos de conforto (Lazarus & que possa oferecer conforto e cura. Na fala
Folkman, 1984). de Margarida, torna-se evidente a relação
de Deus com a cura já realizada de uma
Fé e religiosidade como apoios doença anterior, concordando com as
considerações de Almeida et al. (2013), ao
A fé e a religiosidade destacaram-se afirmarem que a fé em Deus é apresentada
também como grandes aliadas no como uma forma de minimizar o
enfrentamento das dificuldades sofrimento do indivíduo, tornando menos
vivenciadas pelos participantes, que as dolorosa a aceitação da enfermidade. Em
consideraram como possibilitadoras de um estudo de Barbosa et al. (2012), a
minimização de seus sofrimentos e confiança depositada na religião também
esperança de cura, como exemplificado nas se destacou como uma das estratégias
falas a seguir. utilizadas por mulheres em situação
crônica de saúde, ajudando-as na
Acho a religião muito importante, é o que superação da doença e reconfortando as
tirou um pouco eu do fundo do poço. Se entrevistadas. Portanto, é perceptível que a
não fosse a igreja, eu acho que eu tava fé e/ou a religiosidade proporciona aos
runha ainda, porque até hoje ainda, às indivíduos uma sensação de conforto, que
vezes, sinto uma angústia mesmo indo pra
igreja. (Amélia)
pode fortalecer esses mesmos indivíduos a
Deus é muito misericordioso, tudo que nós lidarem com a situação estressante.
pedimos pra ele com fé, nós receberemos.
Eu tô afastada da igreja mesmo, mas eu Suporte familiar como facilitador e
oro em casa, porque a fé é que importa. obstáculo do tratamento
Sem a fé é impossível, tem que acreditar
[...]. Hoje eu consigo controlar, eu tinha
mau pensamento, tinha muita impureza na O apoio familiar, do cônjuge e/ou
cabeça, desejo ruim de matar, e a dos filhos destacou-se como outra
vizinhança me espiando, até hoje a estratégia que contribuiu, de acordo com a
vizinhança me espia, num sei por quê. Mas maioria dos participantes, para lidarem
hoje eu consigo controlar. Aí eu penso que
isso aqui é coisa à toa, que Deus é maior
com as dificuldades vivenciadas
que isso. (Rose) decorrentes do transtorno mental, como se
Mas sabe que toda vida eu fui uma pessoa pode acompanhar a seguir.
muito devota, sabe?! Tenho muita fé em
Deus [...], eu levei o pensamento em Deus, Agora eu arrumei um companheiro [...].
porque quem sabe da minha vida é Deus Ele tá me ajudando. Ele tem depressão
[...]. Eu trato aqui por uma segurança, eu também, ele faz tratamento aqui também, é
tomo remédio contra essa doença (Mal de uma boa pessoa, nóis vem junto [...]. Mora
Parkinson) que pode voltar, mas a cura nós dois, e tá ajudando um ao outro [...].

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Ele é muito atencioso com a gente, me


trata bem. (Amélia) As falas de Íris e Jacinto contestam
A minha família me ajuda, igual quando eu
contei pra um dos meus filhos que eu
a função de alicerce à reinserção social do
passei mal sexta ele disse: “mãe a senhora sujeito com transtorno mental, designada
tinha que ter me contado isso antes, não frequentemente à sua família, como
pode ficar passando mal não, tem que apontada no estudo de Almeida et al.
falar”. Eles cuidam de mim. (Rose) (2013), no qual a família é vista como
Ela (filha) não sai mais se não for comigo,
lá em casa devido eu ter minhas vistas
essencial para o desenvolvimento humano.
muito curtinha, enxergo muito pouquinho, Contudo, os dados do presente estudo
ela que toma conta do acervo, então ela concordam com Assad e Pedrão (2013), a
que lava as vasilhas [...], eu sei lidar com partir de um estudo realizado com cinco
ela, e na nossa casa não tem encrenca. pessoas com transtornos mentais graves no
(Margarida)
qual se depararam com ações ditas
questionáveis dos familiares em relação ao
O suporte social verbalizado pelos
familiar com transtorno mental, já que
participantes como estratégia que auxilia
prevalecia uma relação pautada na extrema
no enfrentamento das dificuldades
dependência do outro, impedindo qualquer
cotidianas é também evidenciado nas
autonomia do sujeito com sofrimento
pesquisas de Barbosa et al. (2012) e
mental. Ainda em relação ao papel da
Gasparelo et al. (2010) como um valor
família na vivência de um transtorno
positivo que fortalece o indivíduo,
mental, é preciso considerar as
servindo como um aliado no
ponderações de Pegoraro (2007), ao
enfrentamento da doença.
pontuar que a sobrecarga familiar
Em contrapartida, para alguns dos
vivenciada com a instalação do transtorno
entrevistados, a família ocupou um lugar
mental na família acarreta, em algumas
contrário ao de facilitador no
situações, a perda da autonomia do sujeito
enfrentamento das dificuldades, mas sim
adoecido em virtude da excessiva
como uma forma de intensificar o
prestação de cuidados provida pelos
sofrimento do indivíduo, promovendo a
familiares.
função de inibir e proibir os sujeitos de
Portanto, é possível perceber que
buscarem alternativas para ampliarem sua
diversos tipos de estratégias de
autonomia, como é possível verificar na
enfrentamento são utilizados pelos
fala de Íris: “Meu esposo é um homem que
entrevistados a fim de amenizar o
não conversa, é um homem bruto que não
sofrimento que o transtorno psíquico
conversa, aí eu tenho que ficar em casa o
acarreta, demonstrando a busca dos
tempo inteiro calada, porque ele não gosta
entrevistados por uma sensação de maior
de conversá”. Aliado a essa perspectiva,
bem-estar subjetivo.
outro participante descreve:

Meu povo não deixa eu trabalhar diz que


Considerações finais
eu vou machucar. Tem coisa que tem risco
de machucar, né, eu queria fazer uns rodos, A pesquisa possibilitou identificar
tem um pouco de risco e eles não quer um amplo leque de estratégias de
deixar [...] Meu irmão e minha mãe que enfrentamento utilizadas pelos usuários
cuida de mim, né?! Meu irmão rancou a
máquina de lavar roupa [...]. Ele já fez
entrevistados devido às limitações e
bastante, mas eu não quero que ele faz dificuldades impostas pelo transtorno
mais. Eu não gosto, não preciso, eu mental. As estratégias focadas no
precisei [...], minha mãe também faz desse problema, como o uso de medicação e a
jeito, faz pra falar que fez, [...] é muito busca pelo auxílio multiprofissional no
ruim, viver assim. (Jacinto)
Caps demonstram as tentativas dos

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entrevistados em lidarem diretamente com convivência com o sofrimento mental pode


seus transtornos. Em contrapartida, a também ser um importante ator na
discordância presente nos diagnósticos construção de seu projeto terapêutico de
registrados nos prontuários dos cuidado em saúde mental.
participantes e suas próprias definições de
diagnósticos apontam para a reprodução do Referências
movimento histórico de apagamento da
autonomia de pessoas com transtornos Almeida, S. S. L. (2013). Adoecer por
mentais, afastando-as assim da câncer: sentidos do cuidado,
possibilidade de lidarem diretamente com enfrentamento e bem-estar de
seus diagnósticos. Esse movimento homens e seus cuidadores.
também foi reproduzido por uma das Dissertação de Mestrado, Fundação
famílias dos entrevistados, ao impedirem o Oswaldo Cruz, Belo Horizonte,
familiar de realizar atividades cotidianas Minas Gerais, Brasil.
que proporcionam prazer ao usuário e Almeida, P. A.; Silva, P. M. C., Espínola,
ainda com as estratégias focadas na L. L., Azevedo, E. B., & Ferreira
emoção, como na tentativa de fuga e Filha, M. O. (2013). Desafiando
distanciamento da temática do sofrimento medos: relatos de enfrentamento de
psíquico. As estratégias de enfrentamento usuários com transtornos fóbico-
focadas na fé e na religiosidade também se ansiosos. Revista Brasileira de
mostraram relevantes para a maioria dos Enfermagem, 66(4), 528-534. doi:
entrevistados, que as utilizam a fim de 10.1590/S0034-
obter conforto e esperança de cura. Em 71672013000400010.
suma, cada participante mostra a tentativa Amarante, P. (1995). Novos sujeitos, novos
de criar possibilidades para lidar com o direitos: o debate em torno da
estresse gerado pelo sofrimento mental. Reforma Psiquiátrica. Cadernos de
Todavia, a pesquisa foi realizada Saúde Pública, 11(3), 491-494. doi:
apenas com usuários de um Caps de um 10.1590/S0102-
município do Brasil, evidenciando assim a 311X1995000300024.
necessidade de outras pesquisas que Assad, F. B., & Pedrão, L. J. (2013). O
possam dar voz a usuários de serviços de teatro espontâneo do cotidiano como
saúde mental de outros municípios um instrumento terapêutico nas
brasileiros, bem como às suas estratégias ressignificações de ser um portador
de enfrentamento para lidarem com o de transtorno mental. Texto Contexto
sofrimento psíquico. Além disso, estudos Enfermagem, Florianópolis, 22(4),
que possam investigar de forma conjunta 1089-1097. doi: 10.1590/S0104-
como o suporte é ofertado pelos familiares 07072013000400027.
de pessoas com transtornos mentais e Barbosa, M. R., Santos, F. U., & Barbosa,
como o usuário o percebe, ou mesmo o M. R. (2012). Fontes estressoras no
aprofundamento do processo de construção paciente com diagnóstico de
do diagnóstico do transtorno mental para neoplasia mamária maligna. Revista
profissionais de saúde e usuários dos Brasileira de Terapias Cognitivas,
serviços, tornam-se relevantes. 8(1), 10-18. doi: 10.5935/1808-
Finalmente, o contato direto com os 5687.20120003.
usuários do Caps demonstra a importância Caetano, J. P. M., Fernandes, M. V.,
da valorização do discurso do usuário dos Marcon, S. S., & Decesaro, M. N.
serviços de saúde mental, que por ser (2011). Refletindo sobre as relações
porta-voz de estratégias de enfrentamento familiais e os sentimentos aflorados
positivas e obstaculizantes para a no enfrentamento da doença crônica.

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Recebido em 15/12/2016

Aprovado em 09/04/2018

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