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iel a sua missão de interiorizar o ensino superior no estado Ceará, a UECE,
como uma ins�tuição que par�cipa do Sistema Universidade Aberta do
Brasil, vem ampliando a oferta de cursos de graduação e pós-graduação
Artes Plás�cas
Antropologia da Arte
na modalidade de educação a distância, e gerando experiências e possibili-
dades inovadoras com uso das novas plataformas tecnológicas decorren-
tes da popularização da internet, funcionamento do cinturão digital e
massificação dos computadores pessoais.
Comprome�da com a formação de professores em todos os níveis e
a qualificação dos servidores públicos para bem servir ao Estado, Antropologia da Arte
os cursos da UAB/UECE atendem aos padrões de qualidade
estabelecidos pelos norma�vos legais do Governo Fede-
ral e se ar�culam com as demandas de desenvolvi-
mento das regiões do Ceará.
Geografia
12
História
Educação
Física
Ciências Artes
Química Biológicas Plás�cas Computação Física Matemá�ca Pedagogia
Artes Plásticas
Antropologia da Arte
Oswald Barroso
Geografia
3ª edição
Fortaleza - Ceará 9
12
História
2019
Educação
Física
Ciências Artes
Química Biológicas Plásticas Computação Física Matemática Pedagogia
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados desta edição à UAB/UECE. Nenhuma parte deste material
poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a
prévia autorização, por escrito, dos autores.
Editora Filiada à
Apresentação.....................................................................................................5
Capítulo 1 – Introdução....................................................................................7
1. Para uma crítica da modernidade......................................................................9
2. Premissas para um Novo Projeto Civilizatório.................................................14
3. O Artista Como Xamã.......................................................................................18
Capítulo 2 – Sobre a Origem do Homem.....................................................25
1. A Tese Modernista.............................................................................................27
2. As dificuldades em provar a superioridade do homem moderno...................29
3. Novas Descobertas da Ciência........................................................................35
Capítulo 3 – As Origens da Arte....................................................................47
1. Reparos e Advertências....................................................................................49
2. O Enigma das Catedrais de Pedra..................................................................51
Capítulo 4 – Arte, Magia e Máscara..............................................................75
1. Pensamento Selvagem e Magia......................................................................77
2. O Mana...............................................................................................................81
3. O Mágico e sua Performance...........................................................................85
4. Máscaras Rituais...............................................................................................89
Capítulo 5 – A Arte Tradicional Popular.....................................................105
1. O Belo e o Útil..................................................................................................107
2. Arte como Ofício..............................................................................................112
3. Mestres do Canto e da Palavra......................................................................115
4. A arte de Narrar................................................................................................119
5. O Imaginário Popular e seus Disfarces .........................................................128
Sobre o autor..................................................................................................144
Apresentação
O autor
Capítulo 1
Introdução
9
Antropologia da Arte
Objetivo
• Buscar assentar as bases para um debate sobre a Antropologia da Arte, a
partir de uma crítica da modernidade e da tentativa de estabelecer algumas
premissas para um novo projeto civilizatório que incorpore um olhar diferente 1
José Abelardo Barbosa
sobre a arte. de Medeiros, o Chacrinha
(1917 – 1988), foi um
conhecido comunicador de
rádio, apresentador de TV e
1. Para uma crítica da modernidade de programas de auditório
nas décadas de 50 a 80,
Descobertas recentes (ou não tão recentes) no campo da ciência têm impli- que eternizou várias frases
cado em modificações profundas no pensamento humano, de modo geral, e nos seus programas, dentre
elas “Eu vim para confundir,
no pensamento acadêmico, de maneira particular. Especialmente, no cam- não para explicar!”.
po da física, estas descobertas têm mostrado de modo radical as limitações
das leis da física mecânica, assim como de toda uma ciência baseada no 2
O escritor John Powell
racionalismo positivista, hegemônico no universo acadêmico ocidental há delineia cinco tipos de
níveis de comunicação:
pelo menos três séculos. o primeiro nível é o da
Mostrando que o mundo real é constituído basicamente de vácuo, ou comunicação superficial;
seja, de um imenso espaço vazio (vazio que paradoxalmente é absolutamente o segundo, o da
comunicação de relatos
preenchido por fluxos de energia e mutações), onde minúsculas partículas e e fatos; o terceiro, os
ondas vibráteis se deixam por vezes perceber, a física quântica revoluciona julgamentos e as ideias;
o entendimento humano não apenas sobre a matéria, como sobre a própria o quarto, os sentimentos
natureza do real. O mundo material, tido até então como concreto e objetivo, e emoções; e o quinto
nível, o mais profundo
ou seja, com existência alheia à nossa subjetividade, revela-se absolutamente é o da autorevelação,
dependente da percepção do sujeito que com ele entra em contato. Em outras onde se compartilha
palavras, a realidade que percebemos é a um só tempo, a realidade que, a de forma verdadeira
nós, se deixa perceber, e a realidade que conseguimos perceber. todo o ser. Conferir:
http://comportamentos
Neste sentido, a realidade como é percebida pelos humanos, em gran- diferentes.nireblog.com/
de parte, é resultado de nossa subjetividade, não apenas de nossa formação post/2008/06/03/niveis-de-
étnica e de nossa capacidade imaginativa (muito mais do que supúnhamos), comunicacao-na-familia e
http://www.portaladventista.
como de nossos equipamentos de percepção (o corpo humano e todas as org/ministerios dafamilia/
suas extensões). Sendo assim, torna-se inconcebível a separação, que até index2.php?option=com_
muito recentemente se fazia (e que muitos ainda fazem até hoje) entre mundo content&do_pdf=1&id=25.
objetivo e mundo subjetivo, porque o que percebemos é nossa subjetividade
projetada no mundo. A física subatômica mostra inclusive que nossa percep-
10
BARROSO, O.
tar havendo uma involução. Explica que estamos perdendo, com a pobreza
vocabular crescente, a complexidade da expressão humana dantes alcança-
da, inclusive para falar de sentimentos. Brincou dizendo que desse modo va-
mos voltar aos tempos primitivos, declarando nosso amor por alguém através
de um grunhido, como faziam os homens então.
Parece-me que aí está um bom exemplo do humanismo moderno, que
vê na complexificação da língua o índice por excelência do desenvolvimento
humano. Ora, o equívoco é facilmente demonstrado. Em primeiro lugar, os ho-
mens ditos primitivos não expressavam seus sentimentos apenas por grunhi-
dos, porém com o corpo todo, de modo talvez tão complexo quanto nós. Em
segundo lugar, não se pode ligar complexidade com evolução obrigatoriamente.
Muitas sociedades altamente complexas, como a egípcia, por exemplo, eram
marcadas por estruturas bem mais autoritárias que as da maioria das socieda-
des ditas primitivas. E em terceiro lugar, se na modernidade ocidental houve um
hiperdesenvolvimento da racionalidade nas línguas humanas, isto se deu em
detrimento dos outros meios de expressão e comunicação. O homem moderno,
hipervalorizando o pensamento cerebral, atrofiou os outros recursos corporais
de percepção e comunicação. Ou seja, se ganhou complexidade no letramento
e no vocabulário lingüístico, perdeu na expressividade do corpo e na sutileza da
percepção sensorial. O que se vê agora, com o crescimento dos multimeios de
comunicação, é a recuperação de muitos recursos da expressividade humana,
embora em prejuízo da riqueza vocabular, não poucas vezes. Talvez o que se
constate é a busca do reequilíbrio perdido, com a modernidade, entre os dife-
rentes recursos corporais no campo da percepção e da comunicação.
Ver livro: As Conseqüências
Como decorrência desse modo de pensar, a modernidade desenvolve da Modernidade, de
um projeto civilizatório antropocêntrico, convencido de que a natureza existe Anthony Giddens. Pegar
para servir ao homem. Outra não é a substância do humanismo moderno e referências nas sugestões
de leitura.
da racionalidade positivista da ciência ocidental, ideologia que norteou todo
o projeto civilizatório da modernidade. Pelo menos, desde o fim do renasci-
mento até os dias atuais, esta tem sido a “religião” hegemônica no Ocidente.
Tanto em sua forma capitalista quanto em sua forma dita socialista, a
civilização moderna assenta seu projeto na economia e na política, pilares a
serviço dos quais se estabelece seu projeto de desenvolvimento humano e
cultural. Submetida a lógicas econômicas, a espiritualidade se mercantiliza,
serve ao mundo do trabalho e da produção. Como outras instâncias da cultura,
a arte se desenvolve atrelada à economia, num campo de disputas intestinas,
movido a interesses monetários e políticos. Em nome de um conhecimen-
to dito científico, experimental e empírico, o saber popular é desacreditado,
condena-se a magia e o mito, elegendo a objetividade da ciência como critério
único da verdade. As grandes religiões se institucionalizam em hierarquias
12
BARROSO, O.
Saiba mais
O Fórum Sociail Mundial (FSM) é uma mobilização “altermundialista”, organizada por mo-
vimentos sociais de diferentes continentes, com o objetivo de propor formas civilizatórias
alternativas para uma transformação social no Planeta. Tem como dístico: Um outro mun-
do é possível. Proposto como um contraponto ao Fórum Econômico Mundial de Davos, na
Suiça, em data coincidente (de janeiro), atualmente realiza-se em datas diferentes, uma
vez por ano. Trata-se de um espaço aberto e democrático, alternativo à globalização capi-
talista e ao “pensamento único neo-liberal”, que reúne dezenas de milhares de represen-
tantes dos mais diferentes movimentos sociais, assim como de grandes personalidades
e líderanças planetárias. Com uma participação em crescimento (de 10.000 pessoas, na
primeira, a 120.000, de 150 países, na última edição), os fóruns tiveram início em 2001. Os
três primeiros foram em Porto Alegre (Rio Grande do Sul), o quarto em Bombaim (Índia), o
quinto em Porto Alegre, o sexto em três cidades: Caracas (Venezuela), Karachi (Paquistão)
e Bamako(Mali), o sexto em Nairóbi (África), o sétimo foi descentralizado e o nono em
Belém do Pará. Entre outras, são discutidos, nas edições do FSM, temas como sustenta-
bilidade ambiental, aids, paz e conflito, juventude, situação das mulheres, migrações e
perseguições, dívida externa, os sem-terras e a privatização de bens comuns etc.
13
Antropologia da Arte
Atividades de avaliação
1. Ao seu ver, quais as principais contribuições da modernidade para o desen-
volvimento social?
2. Em que sentido a modernidade pode ser considerada antropocêntrica?
3. Em que medida a modernidade contribuiu para o desprezo do homem pela
natureza?
14
BARROSO, O.
Saiba mais
Acupuntura é um ramo da Medicina tradicional chinesa, que consiste num método tera-
pêutico de aplicações de agulhas ou outros tipos de estímulo, em determinados pontos
do corpo.Além de agulhas, são também utilizados o aqueximento promoido por moxa,
um bastão de artemísia em brasa, que é aproximado da pele para aquecer o ponto de
acupuntura.
Shiatsu é um processo de harmonização do corpo físico e emocional que, por meio de
massagens, ativa linhas de energia e desbloqueia tensões, corporais promovendo o seu
equilíbrio e ativando seu potencial de energia. Baseia-se numa visão psicossomática das
funções e sistemas corporais, votando-se para a compreensão e unificação do indivíduo,
integrando sua psique ao seu corpo e suas emoções à sua estrutura física.
Atividades de avaliação
1. Qual a diferença entre religião, filosofia e ciência?
2. Em que princípios estaria assentado um novo projeto civilizatório para a
humanidade?
3. Por que se diz que ao ser humano é impossível uma apreensão objetiva da
realidade?
18
BARROSO, O.
nuvens quer dizer, em nuvens que lhe estão próximas, que baixam sobre ele,
que tomam seu entorno. Melhor dizendo, nuvens que dele brotam, porque os
deuses que possuem o artista, já estavam neles. No momento da incorpora-
ção se expandem, tomam todo o tempo e espaço do seu corpo.
O estado de nirvana, no budismo, é obtido por uma busca de alhea-
mento não só do entorno (em sua dimensão cotidiana), como de si mesmo.
No taoísmo (particularmente) se distingue três tipos de estágios no desenvol-
vimento humano: o dos homens e mulheres prisioneiros de seus egos, em que
o poder e a riqueza, o rancor e a ambição (entre outras tendências destrutivas)
dominam seus corpos; o dos homens e mulheres que conseguiram controlar
suas paixões egoístas, desenvolvendo sentimentos altruístas, de generosida-
de, solidariedade e compaixão, obtendo equilíbrio e serenidade; e o terceiro
estágio, o dos budas, daqueles que, ultrapassando o bem e o mal, se estabe-
lecem na transcendência. Diz-se que muitos monges budistas já poderiam dar
este terceiro passo, mas optam por ficarem no segundo, com o fim de ajudar
na evolução dos que lhes cercam.
Usando esta referência, o artista seria um ser híbrido, com um pé na trans-
cendência e outro no cotidiano, ou melhor, com os sentidos nas paixões, o cére-
bro na razão, mas com todo o corpo no transe. Ele pode ter um acervo menor ou
maior de informações, gerando uma arte mais ou menos complexa; ele pode ter
mais ou menos recursos técnicos (com formação acadêmica ou não), porém lhe
é indispensável a qualidade do insight e a frequência da inspiração. Talvez um
corpo formado por vivências múltiplas, que podem ou não incluir leituras, sonhe
um delírio mais informado. Também é possível que ao processo criativo seja ne-
cessário certo controle racional, entretanto cabe ao artista ultrapassar a racionali-
dade, trabalhar com o inimaginável, muito mais do que com o imaginável.
No ano de 1996, o Sepultura, grupo mineiro de thrash metal, com proje-
ção internacional, desenvolveu um diálogo musical com os índios xavante do
leste do Mato Grosso, que resultou na gravação da faixa Itsári, do seu álbum
Roots, lançado então. Durante as trocas culturais, chamou a atenção dos
índios não apenas a música barulhenta de Igor Cavalera e seus parceiros,
mas o modo estudado e minucioso como eles trabalhavam cada número.
Sereburã Xavante, o autor da canção gravada no álbum do Sepultura,
explicou como os xavantes criam suas músicas. “– A gente se prepara para
ter o sonho desejado, colocando um tipo de pauzinho no furo da orelha. Cada
pauzinho puxa determinado tipo de sonho.”, disse Suptó Xavante traduzindo
as palavras de Sereburã ditas na língua lá deles. E completou: “- A gente se
concentra no sonho para poder revelar a música que vem nele. Essa agora
foi o canto da madrugada, veio do pauzinho que ele está usando. Os adultos
cantam em cada casa quando está amanhecendo.”
20
BARROSO, O.
Síntese do Capítulo
A introdução começa com uma crítica da modernidade feita a partir de desco-
bertas recentes das ciências, especialmente da física quântica e da arqueolo-
gia que parecem recuperar conhecimentos antigos assentados em mitologias
e religiosidades anímicas, principalmente do Oriente. Questiona alguns prin-
cípios que dão base ao pensamento moderno, como a separação entre sub-
jetividade e objetividade, Homem e natureza (vista como uma decorrência da
separação entre Deus e natureza), corpo e mente, espírito e matéria, natureza
e cultura, assim como toda idéia de evolução ligada a progresso e hierarquia.
Mostra o propósito das teses antropocêntricas de privilegiar no ser humano
o pensamento abstrato racional e o uso da linguagem digital escrita, como
prova de superioridade do homem moderno urbano ocidental sobre os povos
ditos primitivos, assim como da ciência sobre outras formas de conhecimento,
como a magia e o animismo (e a arte, como conseqüência).
Em seguida, sob o título, “Premissas para um novo projeto civilizatório”, é
proposta uma antropologia não antropocêntrica, que veja o Homem como parte
da natureza e, como tal, junto com os outros seres que a compõem, responsá-
vel pela sua preservação e renovação. Ao mesmo tempo, propõe um reencan-
tamento do mundo, que rompa com a visão escatológica de uma utopia ou um
paraíso adiado para o final dos tempos, recolocando o prazer no presente.
O último item da introdução, intitulado: “O artista como xamã”, procura
tirar conseqüências dessas idéias para o campo da arte. A principal delas é
23
Antropologia da Arte
Atividades de avaliação
1. No trabalho do artista, qual a relação entre intuição e racionalidade?
2. O dom criativo no ser humano pode ser desenvolvido?
3. Em que sentido se pode dizer que o artista é um sedutor?
Texto complementar
René Descartes
Filósofo, fisiologista e matemático francês (1596-1650). Foi contemporâneo de Galileu e Pas-
cal, tendo trabalhado, como eles, sob a pressão religiosa da Inquisição. Escreveu cinco livros
sobre filosofia e ciência: O Mundo (sobre o universo físico), Discurso sobre o Método de Bem
Conduzir sua Razão e procurar a Verdade nas Ciências (seu trabalho mais conhecido), Medi-
tações (sobre epistemologia), Princípios de Filosofia (particularmente acerca da física) e As
Paixões da Alma (sobre fisiologia e psicologia). Sua frase mais conhecida, Cogito, ergue Sun
(Penso, logo existo) é considerada a síntese do chamado racionalismo positivista ou cartesia-
no (numa referência ao próprio Descartes), procedimento lógico fundador da metodologia
científica moderna. Segundo Descartes, o raciocínio é a operação mental, discursiva e lógica,
que usa proposições para extrair conclusões relativas à verdade. Os filósofos racionalistas,
entre eles, Leibniz e Descartes, utilizaram a matemática como instrumento da razão para
explicar a realidade. O método cartesiano, proposto para a ciência, baseia-se na Geometria
e pode ser resumido em quatro procedimentos: 1) Só acolher algo como verdadeiro, quando
sobre tal coisa não reste nenhuma dúvida. 2) Dividir cada dúvida no maior numero de partes
possíveis e em tantas partes necessárias para melhor resolvê-las. 3) Ordenar o raciocínio de
modo a começar pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, até alcançar, pouco
a pouco, os mais complexos, numa ordem crescente de dificuldades. 4) Desenvolver acerca
dos objetos observados enumerações tão completas e revisões tão gerais, com a certeza de
nada omitir. No campo da política, o racionalismo inaugurou o pensamento liberal, que bus-
ca caminhos de planejamento lógicos e ordenados para a obtenção do bem coletivo, através
de soluções técnicas e racionais, acima de quais quer outros interesses, sejam de classe ou
de simples grupos sociais.
ALBERT EINSTEIN
É autor, entre outras, das seguintes frases: “O tempo é relativo e não pode ser medido
exatamente do mesmo modo e por toda a parte.” “A menor distância entre dois pontos
não é uma linha reta.” “A religião do futuro será cósmica e transcenderá um Deus pessoal,
evitando os dogmas e a teologia.” “A religião cósmica é o móvel mais poderoso e mais
generoso da pesquisa científica.” “A imaginação é mais importante que a ciência, porque
a ciência é limitada, ao passo que a imaginação abrange o mundo inteiro.” “Minha religião
consiste numa admiração humilde ao Espírito Superior e Iluminado que se revela a si mes-
mo nos mínimos pormenores, que estamos aptos a captar com nossas fracas e irrelevan-
tes mentes. A profunda certeza de um Poder Superior que se revela no Universo, difícil de
ser compreendido, forma a minha idéia de Deus.” “A mais bela experiência que podemos
ter é a do mistério. É a emoção fundamental existente na origem da verdadeira arte e
ciência. Aquele que não a conhece e não pode se maravilhar com ela está praticamente
morto e seus olhos estão ofuscados.” “O Universo é finito, cilíndrico e ilimitado.” “A massa
de um corpo é uma medida do seu conteúdo de energia.” “A leitura após certa idade dis-
trai excessivamente o espírito humano das suas reflexões criadoras. Todo o homem que lê
demais e usa o cérebro de menos adquire a preguiça de pensar.”
Capítulo 2
Sobre a Origem do Homem
27
Antropologia da Arte
Objetivo
• Questionar as teses que reivindicam a superioridade do homem ocidental
moderno sobre os demais, bem como as que destacam a linguagem abs-
trata e a lógica racional-científica, como critérios dessa superioridade, em
detrimento da linguagem artística e do pensamento criativo.
1. A Tese Modernista
Até pouco mais de 60 anos, antropólogos e cientistas, de modo geral, acre- Ernst Cassirer (1874-
1945) foi um filósofo
ditavam que a condição humana havia sido inaugurada pela palavra e mais
judaico-alemão. Ensinou
precisamente pela palavra escrita em alfabeto digital. Daí, de certo modo, a nas universidades de
freqüência com que era atribuída à Grécia a origem de muitas artes e ciên- Hamburgo (Alemanha),
cias, como a filosofia, a matemática, a música e o teatro, por exemplo. Isto Gotemburgo (Suécia) e
Yale (Estados Unidos).
porque, teria sido a Grécia o lócus precursor da racionalidade moderna. Daí
Um dos mais importantes
também a conclusão pela superioridade do homem urbano ocidental e euro- da tradição neokantiana,
peu de modo particular, portador privilegiado do pensamento lógico-científico. desenvolveu uma Filosofia
da Cultura como uma
O livro do filósofo alemão Ernst Cassirer, Antropologia Filosófica, pu-
teoria dos símbolos.
blicado pela primeira vez nos Estados Unidos, em 1944, dois anos antes de Expandiu o campo da
sua morte, é talvez uma das sínteses mais bem articuladas do pensamento crítica kantiana a todas
moderno sobre a origem e a natureza do homem. De certa maneira ele re- as formas da atividade
humana. As categorias
presenta uma atualização e um desdobramento de outro livro de sua autoria:
a partir das quais Kant
Filosofia das Formas Simbólicas, publicado em alemão, 25 anos antes. pensa o fato científico
Em Antropologia Filosófica, Cassirer começa distinguindo o homem, são, para Cassirer, um
entre os animais e, especialmente, dos animais ditos superiores, pela racio- aspecto particular de
formas simbólicas que
nalidade. Cita Descartes: “penso logo existo”, mas acha insuficiente, pois para revelam também o fato
ele há muitas formas de pensar. E a racionalidade que caracteriza o homem mítico, estético e social.
é especial, um modo de raciocinar que se afirma pelo uso do símbolo. Define Entre seus principais livros
estão, Filosofia das Formas
assim o homem como um animal simbólico, sendo este atributo, o traço fun-
Simbólicas, publicado em
dador da civilização humana. Por isto segue o caminho da linguagem, mas 1929, pela primeira vez,
logo diferencia a linguagem conceitual da linguagem emocional, a linguagem e Filosofia do Iluminismo,
lógica da linguagem poética. Desqualifica a linguagem emocional por esta publicado em 1932.
ser partilhada com os animais “superiores”, citando a propósito o exemplo
28
BARROSO, O.
Atividades de avaliação
1. Segundo as principais correntes da ciência moderna, que atributo diferen-
cia o Homem dos demais seres da natureza?
2. Segundo Cassirer, o homem primitivo era capaz de abstração?
3. Em que sentido a ciência moderna fala do Homem como um animal sim-
bólico?
Saiba mais
A Teoria Restrita (ou Especial) da Relatividade (abreviadamente, TRR), publicada pela primei-
ra vez por Albert Einstein em 1905, descreve a física do movimento na ausência de campos
gravitacionais. Antes, a maior parte dos físicos pensava que a mecânica clássica de Isaac
Newton, baseada na chamada relatividade de Galileu (origem das equações matemáticas
conhecidas como transformações de Galileu) descrevia os conceitos de velocidade e força
para todos os observadores (ou sistemas de referência). No entanto, Hendrik Lorentz e ou-
tros, comprovaram que as equações de Maxwell, que governam o electromagnetismo, não
se comportam de acordo com a transformação de Galileu quando o sistema de referência
muda (por exemplo, quando se considera o mesmo problema físico a partir do ponto de vis-
ta de dois observadores com movimento uniforme um em relação ao outro). A noção de va-
riação das leis da física no que diz respeito aos observadores é a que dá nome à teoria, à qual
se apõe o qualificativo de especial ou restrita por cingir-se apenas aos sistemas em que não
se têm em conta os campos gravitacionais. Uma generalização desta teoria é a Teoria Geral
da Relatividade, publicada igualmente por Einstein em 1915, incluindo os ditos campos.
31
Antropologia da Arte
Aqui estabelecemos um objetos comuns ao seu redor. Até em circunstâncias dificílimas é capaz de
parêntesis para fazer um encontrar seu caminho”. (CASSIRER p. 80)
paralelo com a arte que,
segundo o pensamento Ainda assim, Cassirer encontra argumentos para desqualificar esta ca-
moderno, se diferenciaria do pacidade perceptiva. Diz que a familiaridade do selvagem com o curso de um
rito. Isto, porque, enquanto rio, por exemplo, está longe de alcançar um conhecimento abstrato e teórico
o rito é presentificação, a
porque, enquanto o conhecimento do primitivo é “apenas apresentação”, o
arte seria representação. Daí
decorreria a superioridade conhecimento do homem moderno “inclui e pressupõe representação”. (CAS-
da arte moderna sobre a SIRER p. 81)
arte primitiva, ainda presa
Destaque: Aqui estabelecemos um parêntesis para fazer um paralelo
ao animismo (e como tal ao
rito). O mesmo aconteceria com a arte que, segundo o pensamento moderno, se diferenciaria do rito. Isto,
com os folguedos e outras porque, enquanto o rito é presentificação, a arte seria representação. Daí de-
criações da chamada arte correria a superioridade da arte moderna sobre a arte primitiva, ainda presa
tradicional popular (com os
ao animismo (e como tal ao rito). O mesmo aconteceria com os folguedos e
ex-votos, por exemplo) que,
como veremos em capítulos outras criações da chamada arte tradicional popular (com os ex-votos, por
seguintes, é uma arte de exemplo) que, como veremos em capítulos seguintes, é uma arte de presen-
presentificação, a vivência de tificação, a vivência de outra dimensão da realidade (no caso a dimensão
outra dimensão da realidade
artística) e não uma suspensão ou representação da vida.
(no caso a dimensão
artística) e não uma A segunda ordem de questões, que evidenciam a dificuldade de Cas-
suspensão ou representação sirer em afirmar a superioridade do homem moderno, decorre de sua visão
da vida. limitada do mito e, junto com ele, do pensamento mágico e anímico. Sobre
o tema, ele parece concordar com Edward L. Thorndike que, citado por ele,
usa o termo “mito”, como sinônimo de ilusão ou inverdade. (CASSIRER p. 61)
No capítulo em que trata do tempo e espaço, o autor de Antropologia Fi-
losófica afirma que a capacidade humana de generalizar parece ter origem na
astronomia babilônica. (Ver CASSIRER p. 85) De acordo com ele e segundo
muitos outros estudiosos, na Babilônia, provavelmente, teriam surgido todas
as concepções mitológicas, religiosas e científicas da humanidade. Foram os
babilônicos, por exemplo, que descobriram a álgebra simbólica, mesmo que,
de acordo com Cassirer, de maneira muito simples e rudimentar.
O filósofo alemão admite que na primitiva astronomia babilônica predo-
mine ainda uma interpretação mítica do universo, embora já ultrapassasse à
esfera do espaço concreto e corpóreo primitivo. Tal astronomia “transporta o
espaço, por assim dizer, da terra para o céu”, diz ele. Neste sentido, a astrono-
mia teria surgido da astrologia, como algo a ela superior, num processo evo-
lutivo. Isto porque, enquanto a astrologia ligava os acontecimentos humanos
às ocorrências celestes, a astronomia fez o espaço celeste se emancipar do
humano, transformando-se em espaço teórico.
O descolamento da astronomia em relação à astrologia, ocorrido no
Renascimento, teria se marcado no momento da ruptura entre o espaço geo-
métrico e o espaço mítico-mágico, o primeiro ocupando o lugar do segundo.
33
Antropologia da Arte
Cassirer precisa melhor seu pensamento ao afirmar, referindo-se a esta pre- Robert M. Yerkes (1876-
cedência do mito, que “a forma falsa e errônea de pensamento simbólico foi 1956) estudou psicologia
a primeira a preparar o terreno para um novo e verdadeiro simbolismo, o da comparada em Harvard,
ciência moderna”. (CASSIRER p. 85) tendo desenvolvido testes
de inteligência e aptidão
Aqui cabe outro reparo às posições de Cassirer. Como veremos em com soldados americanos
capítulos posteriores, na visão mítica do universo, tanto entre povos primiti- durante a Primeira Guerra
vos, quanto em comunidades contemporâneas, mesmo se mantendo preso Mundial. Depois, transferiu-
se para a Universidade de
ao concreto e ao sensível, o espírito humano, assim como de outros seres, é Yale, onde dedicou-se ao
passível de transcendência, indo, para usar a imagem de Cassirer, da terra ao estudo do comportamento
céu, do concreto ao abstrato, sendo o mundo sensível, uma manifestação do animal. Ajudou a criar a
mundo espiritual. Além do mais, ao contrário do que julgavam os pensadores Anthropoid Experiment
Station of Yale University,
modernos, o pensamento mítico tem se mostrado não uma forma rudimen- que depois tomaria, em
tar e anterior maneira do pensamento científico, mas outra forma de pensar sua homenagem, o nome
o mundo, outro procedimento racional, tão válido (e para a arte muito mais) de Yerkes Laboratories of
quanto a lógica da ciência moderna. Uma argumentação mais consistente Primate Biology. Tranferido
para Atlanta, em 1965,
neste sentido, porém, deixaremos para capítulos seguintes. sob a denominação de
No capítulo dedicado por ele à memória, Cassirer continua sua busca Yerkes Primate Center,
em provar a superioridade do homem moderno. Começa por reconhecer que transformou-se no principal
centro de pesquisas sobre
os animais têm memória, são capazes de lembrar e até sonham. Cita Robert primatas no mundo. Seus
M. Yerkes, para quem os animais são capazes de acumular experiências, an- testes de inteligência e
tecipar, esperar, imaginar e, baseados nessa consciência, preparar-se para aptidão com soldados,
acontecimentos futuros. Cassirer admite ainda, que os animais ditos supe- reforçaram tendências
racista da época.
riores podem “resolver problemas e, de modo geral, adaptar-se a situações
ambientais com a ajuda de processos simbólicos análogos aos nossos sím-
bolos verbais, e na dependência de associações que funcionam como sinais”.
(CASSIRER p. 89) Porém, apesar das provas apresentadas por Yerkes, Cas-
sirer insiste na sua tese, dizendo: “O que importa neste caso não é tanto o fato
da existência de processos ideacionais em homens e animais, mas a forma
destes processos.” (CASSIRER p. 89)
Nosso filósofo da antropologia pede a ajuda de diferentes autores, entre
eles Bergson e Goethe, para concluir que os animais não têm memória, porque,
segundo ele, a verdadeira memória “é um fenômeno muito mais profundo e com-
plexo (...) significa interpenetração de todos os elementos de nossa vida passa-
da”. (CASSIRER p. 90) Volta ao argumento do símbolo, dizendo que só há recor-
dação verdadeira, se houver imaginação, ficção, o que para ele (citando Goethe)
está ligado à poética e, só então, ao simbolismo. Assim, Cassirer chega à poética,
mas ainda reduzida ao simbolismo. Em sua poética não estão incluídas a criação
intuitiva, a revelação do invisível, a expressão dos sonhos, enfim.
Prosseguindo, Cassirer afirma que as ações instintivas dos animais,
mesmo quando dirigidas para um futuro, o são para um futuro tão remoto
34
BARROSO, O.
que suas conseqüências não podem ser notadas pelo animal que as executa.
Admite que os animais ditos superiores sejam capazes de antecipar fatos fu-
turos, mas deixa de observar, por exemplo, o trabalho minucioso e coletivo de
inúmeros pequenos animais, capazes de atividades antecipatórias, por exem-
plo, de preparação para mudanças climáticas, como os insetos do semi-árido
prevendo a aproximação das chuvas.
Mais adiante, Cassirer procura corrigir Kant, para quem intuições e
conceitos são condições fundamentais do conhecimento, decorrendo daí a
necessidade do ser humano de trabalhar a partir de imagens, para chegar a
conceitos. Afirma não se tratar propriamente de imagens simplesmente, mas
de símbolos, de imagens simbólicas.
Embora reconheça que as grandes descobertas científicas foram ini-
cialmente hipotéticas (e eu diria, intuitivas), Cassirer apega-se à matemática
como o “orgulho da razão humana”. (CASSIRER p. 102) Argumenta que a
matemática foi incompreendida, tendo muitos dos seus conceitos se mostra-
dos obscuros e equivocados, até que tomou um rumo claro e distinto, quan-
do se entendeu ser ela não uma teoria das coisas, mas de símbolos. Só a
partir daquele momento, os conceitos matemáticos fundamentais puderam
migrar para outros campos do conhecimento, como os das chamadas ciên-
cias humanas e da ética, em particular. Só então, segundo Cassirer, teríamos
chegado a uma compreensão da verdadeira natureza humana que, por meio
do pensamento simbólico, “supera a inércia natural do homem, conferindo-
-lhe nova capacidade, a de arquitetar constantemente seu universo humano”.
(CASSIRER p. 105)
Atividades de avaliação
1. Para você, onde a argumentação de Cassirer sobre a superioridade do
homem moderno não foi convincente?
2. Em que sentido o homem moderno pode ser considerado diferente ou su-
perior ao homem tradicional, segundo Cassirer?
3. Que consequências teve para o desenvolvimento da humanidade o antro-
pocentrismo do pensamento moderno?
35
Antropologia da Arte
Charles Sanders Peirce 29 mil anos, com a expansão de nossa espécie no Oriente Médio e na Euro-
(1839-1914) filósofo, físico, pa, por volta de 40 mil anos atrás. Fica evidente, portanto, que nessas regiões,
astrônomo e matemático sapiens e neandertais coexistiram, pelo menos, por mais de 10 mil anos.
americano. Foi o fundador
do pragmatismo e da A descoberta mais surpreendente, entretanto, talvez seja a de que o
semiótica.. No campo homem contemporâneo, que se pensava datar de somente 40 a 45 mil anos,
das ciências humanas teve sua conformação física definida já por volta de 200 mil anos. Isto ficou
estudou linguística, filologia
evidente após a descoberta, entre as décadas de 1960 e 1970, de fósseis na
e história, contribuindo,
ainda, na área da psicologia Etiópia, cujos estudos só tiveram seus resultados divulgados de forma mais
experimental. Sua sistemática, só muito recentemente.
semiótica, ou teoria geral
O comportamento desses sapiens, porém, correspondia ao do
dos signos, pretende ser
uma filosofia científica da Homo neandertalis, com a diferença de que enquanto a forma atarraca-
linguagem. da destes, favorecendo a manutenção do calor corporal, o adaptava aos
climas frios, a dos Homo sapiens, com seu perfil longilíneo, facilitando a
perda do calor, contribuía para sua adaptação às zonas mais tropicais
da África. Não por acaso, os tipos longos e esbeltos (tome-se como mo-
delo os atletas quenianos e tanzânianos, que vemos nas olimpíadas),
concentram-se nos povos tropicais.
Entretanto, se anatomicamente, o homem contemporâneo já tinha de-
finido sua configuração há mais de 200 mil anos, do ponto de vista compor-
tamental e tecnológico, ele só veio se diferenciar dos neandertais há pouco
mais de 40 mil anos. Entre as características comuns a sapiens e neander-
tais, considerados os primeiros 150 mil anos de existência de ambos, estão
a coleta e a caça pouco seletiva, a utilização de um pequeno repertório de
pedras lascadas como ferramentas e a ausência de rituais mortuários.
A mudança tecnológica e comportamental do Homo sapiens verificada
a partir do Paleolítico Superior (há cerca de 45 mil anos), entre outras evidên-
cias, incluiu a utilização de ossos, dentes e chifres na fabricação de objetos
utilitários e rituais, sepultamentos acompanhados de uma complexa ritualiza-
ção, ou seja, evidências de um rápido desenvolvimento criativo e expressivo,
além de noções de transcendência (no caso dos sepultamentos).
Aqui cabe um parêntesis, para uma crítica aos autores de “O Povo
de Luzia”. Walter Neves e Luís Piló ligam essa mudança de comportamento
humana ao que chamam capacidade de abstração simbólica, como Cassi-
rer. (NEVES p. 54) Decerto, como eles afirmam, desenvolveu-se uma ca-
pacidade de representação, porém, muito menos ligada ao símbolo, que ao
ícone. Até porque, de 10 a 15 mil anos depois, aparecem as extraordinárias
pinturas rupestres, executadas no interior de imensas cavernas, que tanto
estamos acostumados a admirar.
Ora, segundo a semiótica de Charles Pierce, os signos, de acordo com
o modo como representam o objeto ou referente, podem ser de três ordens: o
39
Antropologia da Arte
índice, o ícone e o símbolo. (Ver ECO 1973, p. 52) Enquanto o índice represen-
ta seu objeto pelo contado, ou seja, é afetado por ele (a fumaça, por exemplo);
o ícone representa seu objeto por semelhança (uma fotografia, por exemplo),
o símbolo o faz por pura convenção (os algarismos arábicos, por exemplo). Ao
detectarem cheiros característicos, por exemplo, assim como outros indícios
para se orientarem, os animais, certamente, reconhecem (e mesmo usam, por
ex., para marcar terreno) este tipo de signo, ou seja, o índice. Ao emitir sinais
para seu formigueiro ou colméia, por exemplo, formigas e abelhas produzem
símbolos. O mesmo acontece com outros animais, embora se diga que esta
emissão “não é deliberada, mas inata”, o que só é verdade sob certo ponto de
vista, já que acontece apenas sob determinadas condições, não sendo, a emis-
são desses signos, nunca absolutamente mecânica ou previsível.
O caso da produção de ícones, por parte de outros animais (que não os
humanos), é mais controvertido, registrando-se somente o caso da mimesis,
em que insetos e outros pequenos animais, assemelhando-se a outros seres
(geralmente vegetais ou minerais) do meio em que vivem, se disfarçam para
confundir seus caçadores.
Parece-me, então, que o desenvolvimento da representação através de
ícones foi o motor da grande virada no comportamento humano do Paleolítico
Superior. Isto porque, os sistemas simbólicos desenvolvidos posteriormente
pelo Homo sapiens o foram feitos a partir e como desdobramento das repre-
sentações icônicas, tanto no campo da linguagem oral e escrita, quanto nos
demais procedimentos rituais.
Sabendo-se que o ícone é o signo por excelência da arte, tanto que nela o
símbolo aparece como um auxiliar expressivo (na literatura artística, por exem-
plo, onde mais que a palavra é fundamental a imagética por ela construída), se
pode afirmar que esta virada (do Paleolítico Superior) antes de ser uma virada
em direção à racionalidade, foi uma mudança em direção à poesia. Uso poesia,
aqui, em seu sentido amplo, como um fenômeno de encantamento produzido
pela arte, (o que veremos adiante) seja literária, visual, performática ou musical.
Mais surpreendentes foram os resultados de escavações recentes,
que ainda estão acontecendo em Blombos e Katanda, África do Sul. Nelas
foram encontrados diversos objetos reveladores da vida humana há 80 mil
anos atrás. Entre esses objetos, incluem-se um pequeno bastão de hematita
(pigmento mineral), finamente decorado, além de um colar de conchas de
moluscos, o que indica uma prática artística bem anterior aos presumíveis 40
mil anos da alegada virada comportamental do Paleolítico Superior.
As razões possíveis dessa mutação comportamental (criativa, como de-
nominam os autores de O Povo de Luzia) ainda são desconhecidas. Segundo
alguns paleontólogos “é possível que o último grande passo na evolução homi-
40
BARROSO, O.
Síntese do Capítulo
A segunda unidade tem por tema a origem do homem. Toma como principais
referências dois livros: Antropologia Filosófica, de Ernst Cassirer, e O Povo
de Luzia, de Walter Neves e Luís Piló. Na primeira parte, busca caracterizar
o pensamento moderno sobre a origem e a natureza do ser humano, a partir
do livro de Cassirer. Mostra como seu raciocínio parte da premissa de supe-
rioridade do homem moderno ocidental sobre, não apenas os outros animais,
como sobre o homem de outras épocas e geografias, para fundamentar um
pensamento eurocêntrico. Na parte seguinte, são apresentadas evidências
das dificuldades de Cassirer em comprovar suas teorias. A partir de desco-
bertas científicas, muitas delas citadas pelo próprio Cassirer, põe em dúvida a
propalada superioridade do homem moderno diante das evidências da inteli-
gência animal e do conhecimento mítico-anímico do saber popular tradicional.
Por último, tendo como referência os dados apresentados pelo livro de
Walter Neves e Luís Piló, informa as descobertas mais recentes da paleonto-
logia sobre o processo de hominização e procura tirar conseqüência delas.
Tais descobertas evidenciam as origens humanas e da arte em épocas bem
anteriores às que, até pouco tempo, se imaginava. Assim como, comprovam
um parentesco, do Homo sapiens, muito mais próximo aos grandes símios
e aos demais hominíneos do que se tinha até recentemente por certo. Mos-
tra que não há relação comprovada entre inteligência animal e tamanho do
cérebro, assim como entre pensamento simbólico racional e superioridade
intelectiva. Afirma a evolução não como um contínuo aperfeiçoamento dos
seres, mas como resultado de um processo adaptativo desligado da idéia de
progresso ou desenvolvimento. Enfim, destaca a importância da intuição poé-
tica não apenas na origem da arte, como na do próprio ser humano.
43
Antropologia da Arte
Atividades de avaliação
1. Na sua opinião, o que teria determinado a modificação comportamental do
Homo sapiens, 40 mil anos atrás?
2. O que para você é novidade nestas novas descobertas da arqueologia e da
paleontologia?
3. Que lugar o ser humano ocuparia na tarefa de renovação da vida e preser-
vação do Planeta?
Texto complementar
A Teoria Restrita (ou Especial) da Relatividade (abreviadamente, TRR)
Publicada pela primeira vez por Albert Einstein em 1905, descreve a física do movimen-
to na ausência de campos gravitacionais. Antes, a maior parte dos físicos pensava que a
mecânica clássica de Isaac Newton, baseada na chamada relatividade de Galileu (origem
das equações matemáticas conhecidas como transformações de Galileu) descrevia os con-
ceitos de velocidade e força para todos os observadores (ou sistemas de referência). No
entanto, Hendrik Lorentz e outros, comprovaram que as equações de Maxwell, que go-
vernam o electromagnetismo, não se comportam de acordo com a transformação de Ga-
lileu quando o sistema de referência muda (por exemplo, quando se considera o mesmo
problema físico a partir do ponto de vista de dois observadores com movimento uniforme
um em relação ao outro). A noção de variação das leis da física no que diz respeito aos ob-
servadores é a que dá nome à teoria, à qual se apõe o qualificativo de especial ou restrita
por cingir-se apenas aos sistemas em que não se têm em conta os campos gravitacionais.
Uma generalização desta teoria é a Teoria Geral da Relatividade, publicada igualmente por
Einstein em 1915, incluindo os ditos campos.
Filmes
A Evolução da Humanidade – Armas Germes e Aço. 1ª. parte: Saindo do Jar-
dim do Éden. National Geographic Society. O vídeo documentário apresenta
a teoria de Jared Diamond sobre a origem das desigualdades no desenvolvi-
mento humano.
História das Religiões (Religions of the World). Série de três DVDs, de 4hs.
de duração cada, produzida pela Libertty Internationl Entertainment Inc., com
narração de Ben Kinglen, produção da série de Clley Coleman e direção de
Gene Smith. O DVD traça uma história das mais importantes religiões, evi-
denciando as diferentes maneiras que elas encontram para dar significado
ao mundo e à vida humana. Além de pontos de divergência, há pontos de
convergência, que ajudam a clarear nossa compreensão relativa à natureza
não só de Deus como do Homem.
45
Antropologia da Arte
Referências
CASSIRER, Ernest. Antropologia Filosófica. São Paulo, Mestre Jou, 1977.
ECO, Umberto. O Signo. Lisboa, Editorial Presença, 1973.
ICLE, Gilberto. O Ator Como Xamã: configurações da consciência no sujeito
extracotidiano. São Paulo Perspectiva, 2006.
NEVES, Walter Alves. O Povo de Luzia: em busca dos primeiros americanos /
Walter Alves Neves Luís Beethoven Piló, - São Paulo, Globo, 2008.
KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra. Mira-Sintra, Publicações Euro-
pa-América, 2ª. ed. em português, 1972 (data da 1ª. ed. em francês).
Capítulo 3
As Origens da Arte
49
Antropologia da Arte
Objetivo
• Investigar a arte nos seus primórdios, assim como acompanhá-la em sua
trajetória inicial no tempo e no espaço.
1. Reparos e Advertências
Inicialmente, cabem alguns reparos ou advertências. O primeiro reparo diz res-
peito às chamadas idades arqueológicas, particularmente no que se refere aos
períodos Paleolítico e Neolítico, que deverão ser aqui tratados, ou, em outras
palavras, às chamadas Idades da Pedra Lascada e da Pedra Polida. Ao con-
trário do que pensa o sendo comum, esses períodos se distribuíram de modo
desigual no mundo e, mesmo no interior dos continentes, algumas vezes de
maneira bastante acentuada, ou seja, com datações e durações díspares.
Em seu livro “A Evolução Cultural do Homem”, V. Gordon Childe nos
chama atenção para o fato ao afirmar que
...a Velha Idade da Pedra, pelo menos no sentido econômico (...) dura
até hoje na Áustria central e na América ártica. A revolução neolítica deu
início à Nova Idade da Pedra no Egito e Mesopotâmia há aproximada-
mente sete mil anos. Na Grã-Bretanha ou Alemanha, seus efeitos são
perceptíveis primeiro três e meio milênios depois, digamos em cerca
de 2.500 a.C. Nessa época, a Nova Idade da Pedra já se consolidara
na Grã-Bretanha, enquanto Egito e Mesopotâmia já haviam ingressado,
aproximadamente mil anos antes, na Idade do Bronze. A Nova Idade
da Pedra não terminou, na Dinamarca, antes de 1.500 a.C. Na Nova
Zelândia, não havia acabado quando o Capitão Cook desembarcou; os
maoris ainda usavam ferramentas de pedra polida e praticavam uma
economia neolítica, quando a Inglaterra já estava nas vascas da Revo-
lução Industrial. A economia australiana era, então, ainda ‘paleolítica’.
(CHILDE, 1971, p. 58)
Vitalino, Chico da Silva, com organizações econômicas semelhantes às da chamada Idade da Pedra
Noza e Nino foram artistas Polida ou mesmo da Pedra Lascada não significa que elas tenham uma vida
populares nordestinos que espiritual ou mesmo uma organização social semelhante a das populações
viveram e produziram no
século passado, tendo que viveram dez ou 20 mil anos atrás. Muitas vezes, podemos encontrar cor-
se notabilizado e feito respondências de formas tecnológicas e, até mesmo, artísticas entre povos
nome internacionalmente, que viveram e vivem em habitats e estágios de desenvolvimento econômico
mercê da excelência de semelhantes. Ir além disso, porém, é não apenas arriscado, como de certa
seus trabalhos. Vitalino
era mestre e escultor em forma preconceituoso, o que acontece, por exemplo, ao se supor que co-
cerâmica. Pernambucano, munidades isoladas do interior de Goiás pensem à semelhança do que se
nasceu e viveu em Caruaru, pensava no século XVIII, em Portugal, ou que os índios do Amazonas, ainda
onde produziu toda sua não contatados pelos ditos “civilizados”, tenham uma mentalidade parecida
obra e fez escola. Chico
da Silva, maranhense de com a dos homens do Neolítico europeu. Por que esses povos, no caso dos
nascimento, dedicou-se índios amazonenses – mesmo usando equipamentos simples e levando uma
à pintura, tendo vivido vida simples, em contato com a natureza, que satisfaz plenamente suas as-
grande parte de sua vida pirações materiais – teriam deixado estancar, num determinado ponto, sua
no bairro do Pirambu, em
Fortaleza, onde produziu a vida espiritual? O desenvolvimento mental do homem estaria em função tão
maior parte de sua obra e somente de responder a questões de subsistência material?
formou grande número de Respondendo negativamente a essas perguntas, soa sem propósito que-
discípulos. Noza foi santeiro
e escultor em madeira na rer compreender a vida e o pensamento de comunidades, cuja arte conhece-
cidade de Juazeiro do Norte mos por meio de achados arqueológicos, através do estudo de comunidades
sob orientação do Padre contemporâneas que, supostamente, vivem em condições próximas às daque-
Cícero, ficando afamado las. Ou seja, estudar uma comunidade de louceiras do Ipu ou de Viçosa do
entre os romeiros e devotos
daquele santo popular. Nino Ceará (ou mesmo uma comunidade do Xingu), a maneira como funciona na
foi escultor e criador em atualidade, pouco nos pode dizer sobre a arte dos tabajara 500 anos atrás, an-
madeira de Juazeiro do tes da presença europeia (a não ser acerca de determinadas técnicas ou estilos
Norte, que trabalhou temas das pinturas, porém certamente pouco sobre o significado ou o sentido delas).
diversos sempre ligados à
natureza e à vida popular O terceiro reparo vai junto com uma crítica e tem como alvo o concei-
sob uma ótica onírica e to de arte primitiva. Esse conceito, assim como o de arte pré-histórica, leva
muito pessoal. embutido uma ideia evolucionista de progresso que tem como ápice o Oci-
dente urbano moderno, particularmente as megalópoles contemporâneas da
Europa Ocidental e dos Estados Unidos. A ideia de atraso, nessa concepção
evolucionista, coincide com tudo que se afasta do Ocidente urbano moderno,
tanto no tempo quanto no espaço. Além disso, sob o rótulo de arte primitiva,
reúnem-se desde as pinturas rupestres do Paleolítico, passando pela arte das
grandes civilizações antigas (orientais ou americanas, como as indiana, chi-
nesa, asteca, inca e maia), até as pinturas ou esculturas de artistas populares
brasileiros falecidos há pouco tempo como Vitalino, Chico da Silva, Noza e
Nino. Quanto à divisão entre artes pré-históricas e históricas, no sentido de
artes de povos que usam e não usam a escrita, mesmo que se admita tal divi-
são, é preciso levar em conta o que postula José Alcina Franch:
51
Antropologia da Arte
Atividades de avaliação
1. Há uma relação necessária entre antiguidade e maior rusticidade na
história da arte?
2. Podemos falar de arte primitiva de um modo geral?
3. A arte pré-histórica, mais rudimentar, seria aquela que precede a arte histó-
rica, mais sofisticada?
Lascaux
Arnold Hauser, em sua conhecida obra “História Social da Literatura e
da Arte”, nos chama a atenção para o fato de não existir qualquer aproxima-
ção entre essas pinturas rupestres do Paleolítico Superior e a arte infantil ou
mesmo as manifestações artísticas da maioria dos povos ditos “primitivos”
contemporâneos. Segundo ele,
Segundo Köhler, Outra evidência desse aprendizado são os esboços, em pequenos blocos de
dois chimpanzés, um pedra soltos, encontrados nas cavernas, feitos como preparo para as grandes
chamado Tschengo e
obras-primas gravadas nas paredes das mesmas. (Ver CHILDE, 1971, p. 72.)
outro Grande, inventaram
uma brincadeira, em que Porém, é Joseph Campbell, em seu enciclopédico livro “As Máscaras
giravam vezes seguidas, de Deus”, quem vai mais longe na narrativa dos passos que levaram os ar-
que logo foi imitada por
tistas às obras magistrais das pinturas rupestres do Paleolítico Superior. In-
outros.
clui, na trajetória da origem da arte e do próprio homem, observações sobre
o comportamento deste “ser, tão próximo de nós”, o chimpanzé. Trata-se de
dois relatos extraídos do livro “A Mentalidade dos Macacos”, de autoria do
Dr. Wolfgang Köhler, por ele citado. O primeiro relato diz respeito à afeição
que alguns chimpanzés adquirem por certos objetos que passam a carregar
consigo como espécies de brinquedos ou amuletos. Até aqui, não há nada de
extraordinário, porque, até mesmo entre cachorros e outros animais domésti-
cos, podemos nos surpreender com fatos semelhantes
O segundo relato diz respeito à descrição de uma dança desenvolvi-
da pelos chimpanzés, inicialmente por um deles e logo seguida por todo o
grupo, que implica não apenas num ritmo, mas numa complexa coreogra-
fia. Encantado com a “alegria de viver” dessa brincadeira dos chimpanzés,
Köhler conclui: “Parece-me extraordinário, que pudesse surgir de modo
espontâneo, entre os chimpanzés, algo que sugere tão fortemente a dança
de algumas tribos primitivas” (KÖHLER, 1927, p. 95). De fato, ao reprodu-
zir uma narrativa de Radcliffe-Brown sobre uma dança dos pigmeus do
arquipélago de Andaman no Golfo de Bengala, Ásia, observada no século
passado, Joseph Campbell mostra a notável coincidência, não apenas de
ritmo como até mesmo de alguns movimentos, com a dança dos macacos
relatada por Köhler.
Destaque: Segundo Köhler, dois chimpanzés, um chamado Tschengo e outro
Grande, inventaram uma brincadeira, em que giravam vezes seguidas, que
logo foi imitada por outros.
Lascaux
Além das pinturas rupestres, eram abundantes, nesse período, as es-
tatuetas de osso, marfim e pedra, representando a figura feminina e, curio-
samente, nas paredes das cavernas, as marcas de garras de ursos, sempre
próximas aos locais em que eram executadas as pinturas de animais, como a
indicar a propriedade dessa vizinhança. Não muito longe dali, para além das
garras do “mestre urso”, aparecem ainda contornos de mãos humanas.
Na caverna de Altamira, os touros são estrelas que cintilam no teto para
serem mortos pelas lanças do sol, que persegue os rebanhos do céu noturno
até o anoitecer seguinte. Em Lascaux, o bisão é o mestre animal que morre
voluntariamente, sacrificado na caça sacramental celebrada pelo xamã, que,
em Trois Frère, aparece em sua dança ritual. Trata-se, portanto, não somente
de um ensaio para a caça, através da aplicação de técnicas da magia, mas
da constituição de uma via, ou mesmo, de uma dimensão intermediária entre
57
Antropologia da Arte
Altamira
Atividades de avaliação
1. As pinturas rupestres estavam incluídas entre as técnicas de magia de uma
sociedade de caçadores?
2. Qual o sentido de criar imensas obras de arte enterradas em cavernas de
difícil acesso?
3. Os animais são capazes de brincar, jogar e dançar? Os animais são capa-
zes de criar obras de arte?
Castellón
Aproximamo-nos do Neolítico e essa nova pintura, a pintura relativa a
esse período, se estende do Leste da Espanha em direção ao Norte da África
e de lá ao Oriente, passa pela Tunísia, avança até o Nilo, o Jordão, a Meso-
potâmia, a Índia e o Ceilão. Estende-se por regiões equatorianas, dominadas
pelas mulheres, nas quais as populações caçavam com bumerangues, cla-
vas e arcos, pescavam com arpões, coletavam frutas, raízes, enfeitavam-se
com braceletes e cintos feitos de contas de casca de ovos, penas, sementes
e conchas perfuradas. Eram civilizações em que os homens enfeitavam seus
órgãos genitais e as mulheres vestiam longas saias coloridas
Dentre esses povos – ao lado de uma diversificação tecnológica e míti-
ca, tanto no que diz respeito à prática da caça, quanto às performances rituais,
aparece uma pintura que, saindo das cavernas, irrompe na luz do dia. Sua
arte se expressa em cenas de intenso movimento, repletas de figuras ativas,
homens portando arco e flecha, inúmeros animais – entre eles cães de caça,
danças, ritos, sacrifícios, enfim, um mundo animado e cheio de vida. Apare-
cem também manadas de elefantes, girafas, rinocerontes e avestruzes, além
de macacos, felinos, carneiros, gazelas, homens com cabeças de burro e
chacais, leões, touros gigantes e carneiros sagrados.
Nessas pinturas, há uma presença marcante das mulheres, geralmente
com corpos sensuais, amplos quadris, grossas coxas, longas pernas, cinturas
finíssimas e poses elegantes, quase eróticas. Porém, o que nas pinturas mais
60
BARROSO, O.
Destaque:
Para mostrar a importância da descoberta da técnica da queima do barro
pelo homem, vale aqui revelar alguns detalhes do ofício como é hoje prati-
cado por nossos artesãos. Digo artesãos, porque a queima geralmente fica
por conta dos homens, devido ao forte calor envolvido. Há segredos, her-
dados dos indígenas, como, por exemplo, o de que na lua nova ou quarto
crescente não é aconselhável queimar louça, porque ela racha. Se a quei-
ma é feita ao rés do chão, a louça é colocada em círculos concêntricos e
movimentada, ora aproximada, ora afastada do fogo, durante cerca de cin-
co minutos. Se no forno, colocam-se as peças maiores primeiro, depois as
menores, botando fogo devagar, de acordo com a necessidade. Qualquer
deslize faz as peças racharem. Cobrem-se as peças com cacos de barro,
fechando bem as aberturas, de modo a não deixar sair o calor. O fogo vai
sendo ateado aos poucos na lenha colocada, em partes iguais, dos dois
lados, na parte de baixo do forno. Nesse trabalho, se passam mais de duas
horas, até chegar a um ponto em que a artesã testa a temperatura, despe-
jando um copo d’água. Se chiar, está no ponto de levantar o fogo com toda
a força. Quando as peças estão da cor de brasa, é sinal que estão prontas.
O ritual completo da queima dura de quatro a cinco horas. Só depois de
queimadas, as peças são pintadas com motivos geométricos, desenhos
ou leves arabescos em toar branco ou vermelho.
62
BARROSO, O.
Arnold Hauser
Nasceu na Hungria em
1892, estudou história
da arte e da literatura
nas universidades de
Budapeste, Viena,
Berlim e Paris. Em Paris,
seu professor foi Henri
Bergson, que o influenciou
profundamente. Após a
Primeira Grande Guerra,
Hauser passou dois anos
na Itália fazendo um
trabalho de pesquisa sobre
história da arte clássica e
italiana. Em 1921, mudou-
se para Berlim, onde
desenvolveu sua visão de
que os problemas da arte e
da literatura são problemas
fundamentalmente Forno em atividade durante a queima da louça de barro, na localidade de Alegria, no
sociológicos. Três anos município do Ipu.
mais tarde, estabeleceu-
se em Viena e, no ano Avançamos, agora, para o Neolítico Superior (entre 4.500 e 3.500 a.C.)
de 1938, mudou-se para e há uma tendência crescente, no campo da arte, para a criação de formas
Londres, onde começou
as pesquisas para sua
abstratas geometricamente organizadas, ao lado de uma também crescente
grande obra: A Historia organização geométrica do espaço social e de especialização na atividade
Social da Arte, cujo trabalho comunitária. Procura-se criar não mais imagens à semelhança dos seres e
consumiu dez anos de objetos, porém imagens correspondentes, signos icônicos (como vimos no
intensa dedicação. No início
dos anos 1950, foi professor
primeiro capítulo desse livro) que, aos poucos, vão se simplificando pela estili-
visitante na Universidade zação, perdendo particularidades e detalhes e assumindo feições mais gerais.
de Brandeis nos Estados Em outras palavras, há um deslocamento do concreto ao abstrato.
Unidos e, a partir de
1951, se tornou professor
Arnold Hauser procura explicar a passagem de uma arte “naturalista”
de História da Arte na para uma arte próxima ao expressionismo, tendendo ao geometrismo e ao
Universidade de Leeds. abstracionismo, comparando-a à passagem correspondente, no campo artís-
tico, da magia ao animismo. Para ele, o homem do Paleolítico “encontrava-se
totalmente dominado pelo medo da morte e da fome, preocupava-se em se
defender contra os assaltos dos inimigos e das necessidades materiais, con-
tra o sofrimento e a morte, por meio de práticas mágicas, mas não estabelecia
relação alguma entre a boa e a má fortuna que o acompanhava, e qualquer
poder situado para além dos acontecimentos.” (HAUSER 1972, p. 25)
Em outras palavras, a concepção mágica, própria do Paleolítico, se-
gundo Hauser, seria monista, ou seja, a realidade se estenderia por uma só
e única dimensão, por um todo contínuo e coerente. Isso se dava porque o
caçador, nômade e acossado por perigos e inquietações, não desfrutaria da
63
Antropologia da Arte
com estruturas mais flexíveis e tendentes à anarquia, nas quais a cultura está
menos sedimentada e as tradições têm menos força de coerção. Já o for-
malismo geométrico floresceria mais abundantemente em sociedades com
instituições mais estáveis, com uma organização social mais uniforme e com
uma religião mais fortemente estabelecida.
Joseph Campbell parece compartilhar de opinião semelhante ao asso-
ciar o abstracionismo geometricamente organizado a um novo estilo de vida
nas aldeias, onde surge a diferenciação individual. Observa ele que, nas so-
ciedades caçadoras, as únicas diferenciações pareciam ser pelo sexo. Nelas,
“A importância destas
culturas e, por conseguinte,
cada indivíduo dominava, praticamente, todo o saber da comunidade. Já nas
de sua arte, não reside comunidades maiores e mais diferenciadas do Neolítico Superior, aparece
no fato de que sejam uma tendência à especialização e, consequentemente, à profissionalização
“primitivas” e de que dessa tanto no campo das artes como dos ofícios.
maneira ilustrem as etapas
antigas de nossa própria
evolução ou os momentos
antigos da história humana;
senão em que, por ser
mais simples que nossa
Atividades de avaliação
civilização – ao menos
1. Para você, a arte é uma imitação da natureza ou a criação de uma outra
relativamente - , se prestam
melhor a serem analisadas natureza?
com vistas a compreender 2. Você conhece e sabe descrever o trabalho artístico de alguma louceira,
os mecanismos sempre
tecelã ou trançadeira de seu município?
muito mais complexos de
nosso comportamento 3. Qual seria a diferença entre o naturalismo e o abstracionismo no campo
artístico ou estético.” das artes?
Um abstracionismo mágico
De certa maneira, não seria sem propósito dizer que a arte nasceu, nasce
e continuará nascendo em todo tempo e lugar onde esteja presente o ser
humano. Do mesmo modo, de alguma maneira, não soa absurdo afirmar que
todas as épocas nos são contemporâneas, ou seja, passado e futuro como re-
alidade têm sua existência no presente e, ainda mais, existem tão somente no
presente; porquanto, passado e futuro existem apenas como ficção, enquanto
construções de nossa imaginação.
Digo isso para introduzir algumas observações sobre a arte das so-
ciedades que José Alcina Franch classifica como “etnográficas”, ou seja,
sociedades contemporâneas ágrafas e, eu diria, que vivem em padrões
tecnológicos, em certa medida, correspondentes aos do Neolítico Superior.
Segundo Alcina Franch:
65
Antropologia da Arte
La importancia de estas culturas y, por consiguiente, de su arte, no Ver Franch, José Alcina:
Arte y Antropologia.
reside en el hecho de que sean ‘primitivas’ y de que de esa manera
Madrid, Alianza Editorial,
ilustren las etapas antiguas de nuestra propia evolución o los momen- 1982. p. 30.
tos antiguos de la historia humana; sino en que, por ser más sencillas
que nuestra civilización – al menos relativamente -, se prestan mejor
a ser analizadas con vistas a comprender los mecanismos siempre
mucho más complejos de nuestro comportamiento artístico o estético.
(FRANCH, 1982, p.28)
Pankararu – Aparece também uma cobertura corporal, desta vez dos índios Pankararu,
de Brejo dos Padres, Pernambuco, numa cerimônia-ritual Praiá; a máscara facial
aparece com uma pequena abertura para os olhos.
Dessa maneira, ao mimetizarem na dança os movimentos de um ani-
mal, do jaguar, por exemplo, os xamãs (e eles podem ser diversos) ganham
poder sobre o espírito desse animal, prevenindo os males resultantes de pos-
síveis feitiçarias que ele possa enviar aos homens durante uma caça. Diferen-
temente do que se possa pensar, não se trata de ganhar poder sobre o corpo
do animal, mas sobre sua alma, isto é, sobre sua ânima.
No mesmo sentido, e espero ter mostrado isso, o processo pelo qual
se originam os desenhos ornamentais tukano parece tornar evidente, ao con-
trário do que argumentava Hauser, que a abstração na arte ou, pelo menos,
uma tendência abstracionista, pode resultar de procedimentos não racionais.
(Uso racional, aqui, no sentido de uma racionalidade baseada numa lógica
científica matemática depois definida pelo positivismo.) No caso dos tukano,
como veremos adiante, o abstracionismo geométrico surge de procedimentos
rituais-anímicos, referenciados numa cultura em que o pensamento mítico é
largamente hegemônico.
Síntese do Capítulo
A unidade é aberta com uma pequena introdução em que são feitas algumas
críticas e estabelecidos alguns reparos. O primeiro deles volta a atenção para
os chamados períodos arqueológicos (Paleolíticos, Neolíticos etc.) ou idades
arqueológicas (da Pedra Lascada, da Pedra Polida etc.), para dizer que eles se
69
Antropologia da Arte
Atividades de avaliação
1. Qual é o papel do delírio e do sonho na criação artística?
2. Qual é o papel da intuição e da racionalidade na construção artística?
3. Para você, existe alguma relação entre abstracionismo e racionalidade, na-
turalismo e irracionalidade?
Texto complementar
Vitalino, Chico da Silva, Noza e Nino
Foram artistas populares nordestinos que viveram e produziram no século passado, tendo
se notabilizado e feito nome internacionalmente, mercê da excelência de seus trabalhos.
Vitalino era mestre e escultor em cerâmica. Pernambucano, nasceu e viveu em Caruaru,
onde produziu toda sua obra e fez escola. Chico da Silva, maranhense de nascimento,
dedicou-se à pintura, tendo vivido grande parte de sua vida no bairro do Pirambu, em For-
taleza, onde produziu a maior parte de sua obra e formou grande número de discípulos.
Noza foi santeiro e escultor em madeira na cidade de Juazeiro do Norte sob orientação do
Padre Cícero, ficando afamado entre os romeiros e devotos daquele santo popular. Nino
72
BARROSO, O.
foi escultor e criador em madeira de Juazeiro do Norte, que trabalhou temas diversos
sempre ligados à natureza e à vida popular sob uma ótica onírica e muito pessoal.
Francha, 1982, pp. 25-26
“dentro da primeira destas categorias há que incluir, evidentemente, a arte ocidental, po-
rém ainda a arte de civilizações tais que, possuindo algum gênero de escrita, tenham produzido
documentos que completem nosso conhecimento de tais artes, em relação com a biografia dos
artistas, ou em relação com outros pormenores ou aspectos diferentes: China, Japão, Índia e
outras civilizações antigas se acham neste caso. Dentro das artes pré-históricas há que incluir a
totalidade daquelas que correspondem a povos que não chegaram a dispor de um código es-
crito, e por conseguinte não podem oferecer documentos que sirvam de base para escrever a
história artística ou a complementem de maneira substancial. Daí que consideremos por igual à
arte “parietal” do sul da França e norte da Espanha, ou a arte norte-africana ou sahariana, ou a de
povos agricultores ou criadores de todos os continentes: a arte da cultura Jomom no longínquo
Oriente, ou a da cultura Hohokam no sudoeste dos Estados Unidos, ou a da cultura de Malkata,
na desembocadura do Danúbio. Todas elas, pelo fato de não poderem dispor de documentos
escritos, são pré-históricas, o que implica uma maneira diversa de tratar os dados, mais que uma
situação cronológica, que, evidentemente, não é similar nos exemplos mencionados, ou nem se-
quer uma identidade ou homologação cultural, o que tampouco se dá nos casos mencionados.”
Joseph Campbell
Considerado um dos maiores mitólogos de todos os tempos, nasceu no dia 26 de mar-
ço de 1904, na cidade de Nova York, Estados Unidos. O seu interesse pela mitologia foi
despertado na primeira infância quando seu pai o levou para ver um espetáculo de Búfallo
Bill denominado Wild West Show e para visitar o Museu de História Natural de Nova York,
onde as estacas totêmicas e as máscaras dos índios fascinaram-lhe. Para Campbell, a ri-
queza dos mitos não está em elucidar ou revelar algum tipo de significado para a vida, mas
o de ser um registro simbólico da própria experiência de estar vivo. O mito capta a vida no
seu eterno fluir. Joseph Campbell morreu em Honolulu, Havaí, em 30 de outubro de 1987.
Segue uma lista de suas obras publicadas em português:
EXTENSÃO INTERIOR DO ESPAÇO EXTERIOR - A metáfora como Mito e Religião. Rio de
Janeiro:Campus, 1991 - 168 p.Contém o delineamento da interpretação que Joseph Cam-
pbell tem da mitologia e da religião.
HERÓI DE MIL FACES São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1995 - 414 p. Nessa obra, a mais
conhecida e difundida de Campbell, o autor procura elucidar a figura do herói: Apolo, Wo-
tan Buda e numerosos outros protagonistas da religião, dos contos de fada de uma mesma
história. O relacionamento entre os seus símbolos intemporais e os símbolos detectados nos
sonhos pela moderna Psicologia Profunda é o pponto de partida oferecida por Campbell.
IMAGEM MÍTICA (A) Campinas, SP: Papirus, 1994 - 506 p. Profunda análise da unici-
dade da existência e da espiritualidade humanas, evidenciada, sobretudo, por meio do
estudo comparativo da imagística onírica e da mitologia do oriente e do ocidente.
MÁSCARAS DE DEUS (AS) - Mitologia primitiva São Paulo: Palas Athena, 1992 - 418
p. É o primeiro volume, de uma série de quatro, daquela que é a obra monumental de
Joseph Campbell. Contém uma abordagem dos mitos dos povos primitivos.
MÁSCARAS DE DEUS (AS) - Mitologia oriental São Paulo: Palas Athena, 1994 - 447 p.
Estudo da mitologia oriental, sobretudo dos mitos que se desenvolveram no Egito, China,
Tibete e Japão. É o segundo volume de uma série de quatro.
PARA VIVER OS MITOS São Paulo: Cultrix, 1997 - 217 p. Joseph Campbell mostra a
permanência, na moderna sociedade tecnológica, da influência dos mitos que motivaram
as sociedades pré-científicas.
PODER DO MITO (O) com Bill Moyers São Paulo: Palas Athena, 1990 - 242 p. Contém o
texto de uma conversação entre Bill Moyers e Joseph Campbell do qual foi extraída a minisé-
rie do mesmo nome de seis horas da Public Broadcasting System, rede de TV educativa dos
Estados Unidos. Esse livro apresenta uma visão ampla e profunda sobre a questão do mito.
73
Antropologia da Arte
TODOS OS NOMES DA DEUSA Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997 - 204 p.
Essa é a última obra escrita por Joseph Campbell. O trabalho conta com a colaboração de
Riane Eisler, Marija Gimbutas e Charles Musès e aborda o tema da Grande Mãe, arquétipo
que configura o princípio feminino doador e nutridor da vida.
TRANSFORMAÇÕES DO MITO (AS) São Paulo: Cultrix, 1992 - 246 p. Coletânea de treze
palestras proferidas por Campbell quase no final de sua vida, abordando, dentre outros,
temas como as origens do homem e do mito, o mito dos índios americanos, deusas e deu-
ses no período neolítico, o Egito, o Êxodo e Osíres.
VÔO DO PÁSSARO SELVAGEM - Ensaios sobre a universalidade dos mitos Rio de Ja-
neiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997 - 284 p. Uma interpretação de Campbell sobre a
universalidade dos mitos e sobre o mistério da mitologia e a sua importância frente aos
desafios com os quais se defronta a sociedade contemporânea.
Filme
O Poder do Mito – Joseph Campbell. Narrado por Bill Moyers. Public Broad-
casting System
Referências
CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus – Mitologia Primitiva. São Paulo,
Palas Athena, 1992.
CHILDE, V. Gordon. A Evolução Cultural do Homem; Rio de Janeiro, Zahar,
2a. ed., 1971.
FRANCHA, José Alcina: Arte y Antropologia. Madrid. Alianza Editorial,
1982.
HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da Arte. São Paulo, Mestre
Jou, 1972.
KÖHLER,Wolfgang: The Mentality of Apes. Nova York, Humanities Press,
1927. 2ª.ed.
LE MASQUE: DU RITE AU THÉÂTRE. Paris, Editions du CNRS, 1988. Textes
et études réunis et presentes par Odette Aslan et Denis Bablet.
Capítulo 4
Arte, Magia e Máscara
77
Antropologia da Arte
Objetivo
• Discutir a relação entre arte e rito a partir do estudo do mito e da magia,
detendo-se especialmente na análise das máscaras rituais.
No sentido empregado O pensamento mágico é muito mais outra forma de abordar a realidade
por Lévi-Strauss, de e de construir conhecimento. Liga-se à ciência como um correspondente e
homem que vive imerso na está, em certo sentido, muito mais próximo da arte. Tanto quanto a ciência, o
natureza, que se vê como
parte dela. pensamento mágico foi constituído a partir de milhares de anos de observa-
ções minuciosas e de experimentações metódicas, incontáveis vezes repeti-
Essa busca em estabelecer das, resultando de um longo processo de acumulação de saberes.
alguma espécie de
ordenamento também é Ciência e pensamento mágico (ou mítico, como veremos adiante) são
comum à arte. duas formas diferentes de abordagem da realidade pelo ser humano, e não
dois estágios evolutivos do conhecimento. Diferem entre si porque, enquan-
to a magia aborda a natureza a partir da intuição sensível, com a ajuda da
imaginação, a ciência se aproxima dela de modo deslocado. Em sua busca
de conhecer a realidade, o mágico move-se por sentimentos estéticos. Ele
pressupõe que características externas dos seres, como forma, cor ou cheiro,
correspondam a propriedades interiores desses mesmos seres. A partir de
critérios assim estabelecidos, o homem dito primitivo define classificações,
hierarquias e ordenamentos.
É preciso afastar definitivamente a ideia de que os ritos, e os mitos dos
quais os ritos derivam, assim como as técnicas da magia, sejam fabulações
79
Antropologia da Arte
Há o costume entre os O conjunto de suas variações pode ser sintetizado em três leis princi-
romeiros que vão aos pais, nomeadas pelos antropólogos como leis da magia simpática, estando
santuários de Canindé subentendido no termo simpatia, o termo antipatia, como seu contrário. São
e Juazeiro do Norte, elas: a lei da contiguidade ou do contato; a lei da similaridade, da semelhan-
no Ceará, de passarem
por Fortaleza em seus ça ou similitude; e a lei do contraste ou do contrário. Cabe observar que es-
transportes (antigamente sas leis correspondem a leis da percepção estética e funcionam tanto na arte
caminhões ‘paus-de-arara’ quanto na comunicação de um modo geral, sendo que, na magia, elas, não
e atualmente ônibus ‘semi- se limitando ao campo dito subjetivo, aplicam-se ao campo dos fatos conside-
leitos’) para conhecer o
mar. Geralmente fazem rados pela ciência como objetivos.
uma parada à beira- Pela lei da contiguidade ou do contágio, os seres (pessoas ou coisas)
mar, molham os pés nas colocados em contato permanecem unidos, mesmo depois de separados.
ondas que alcançam o
começo da praia e enchem Não apenas cada parte de uma pessoa (ou de uma coisa), mas também toda
muitas garrafas com água e qualquer coisa ou pessoa que com esta entrou em contato, mesmo depois
salgada. Voltam contentes de separada dela, permanece a ela ligada. Uma mecha de cabelo, um pedaço
por levarem consigo de unha, uma gota de suor, mas também um retalho de roupa, uma pegada,
uma lembrança do mar
e poderem mostrá-la aos uma impressão digital, uma cadeira onde ela sentou-se, uma pessoa muito
parentes e amigos que chegada, um filho, um cônjuge, um parente próximo, tudo está a ela ligado.
ficaram. Agindo sobre qualquer um desses elementos se está agindo sobre ela, porque
é também algo dela, de sua ânima, de sua energia, da essência de seu ser.
Nem mesmo precisa ser muito íntimo ou de contato muito frequente, basta
haver sido tocado por ela, ter entrado em contato com ela: restos de comida,
um copo usado ou coisas semelhantes.
Pela lei da similaridade ou similitude, o semelhante evoca e produz o
semelhante, atua sobre e cura o semelhante. Do mesmo modo que, na semió-
tica, o ícone está para o objeto representado, assim como o índice está para o
seu referente, na magia simpática, “a imagem está para a coisa como a parte
está para o todo” (MAUSS, 1974, p. 97)
Nos processos mágicos, muitas vezes, as leis da contiguidade e da
similitude se fundem e atuam concomitantemente através de metáforas e ima-
gens outras, as mais diversas. Assim é que o mar pode ser representado por
uma garrafa contendo água salgada, a chuva por um “pau de chuva”, o amor
por um laço etc.
"Pau de chuva"
Pela lei da contrariedade, o contrário atua sobre o contrário, ou seja, se
Trata-se de um grande
cilindro de bambu ocado o semelhante atrai o semelhante, afasta seu contrário. Daí tem-se a simpatia e
contendo sementes a antipatia como noções complementares. O “pau de chuva” chama a chuva
que, quando virado e afugenta a seca. Porém, se o caso é afastar a chuva, tem-se que trabalhar
verticalmente, produz um
com seu contrário, isto é, com algo que represente a seca. O que difere é
som semelhante ao da
chuva. o ponto de partida, que, nesse caso, não é atrair a chuva, mas afugentá-la.
Então, o mais aconselhável talvez seja usar o elemento fogo, quem sabe uma
fogueira, para evocar o sol, por exemplo.
81
Antropologia da Arte
Atividades de avaliação
1. O que faz parecer e o que faz diferenciar a magia e a ciência?
2. O que aproxima e o que distancia a magia da arte?
2. O Mana
A magia, sempre e de alguma maneira, está ligada ao coletivo. Enquanto en-
cenação de mitos, ela refere-se à reprodução de narrativas associadas às
origens sociais dos grupos nos quais acontece. A uma primeira vista, trabalha
pela manutenção da ordem coletiva original, embora de modo sempre reno-
vado. Entretanto, por uma série de acontecimentos “extraordinários”, essa or-
dem “natural” das coisas é alterada – comportamentos mudam, catástrofes
acontecem, ciclos naturais se alteram, seres anormais aparecem, produzem-
se rupturas –, o que os mágicos procuram atribuir a uma força excepcional,
produzida ela também por seres excepcionais.
Essa força excepcional, que os mágicos dizem ter um poder mágico,
uma magia, aparece entre os mais diversos povos com diferentes designa- Ver LÉVI-STRAUSS,
Claude - O Pensamento
ções. Na Polinésia, toma o nome de mana; no norte da Indochina, de deng;
Selvagem, Campinas (SP),
em Madagascar, de hasina; entre os iroqueses da América do Norte, de oren- Papírus, 1989. Páginas 142
da; entre os algonquin também da América do Norte, de manitu; na Melanésia, a 145.
de kramât; no México e na América Central, de naual; na Austrália, de boolya;
Mana
na Nova Gales do Sul, de koochie etc.
A palavra será usada
A qualidade ou propriedade mágica, seja de um objeto (natural ou arti- daqui em diante como
ficial) ou de um ser vivo (vegetal, animal ou mesmo de uma pessoa), advém, uma denominação geral
incluindo todas as suas
geralmente, de características aparentemente fortuitas, raras ou paradoxais,
equivalentes.
como o de vegetais com formas humanas. No caso de objetos, pode-se exem-
plificar com aqueles de formatos inusitados ou descobertos fora dos locais
costumeiros, meteoritos, pedras furadas, fósseis de animais pré-históricos etc.
82
BARROSO, O.
Esse carisma, essa energia mágica, esse fluido místico, que na Me-
lanésia se chama mana e os Huron chamam orenda, não pode ser con-
fundido com alma ou espírito individual, muito menos com força, vigor ou
poder material. É antes uma potencialidade que se manifesta no som que
os seres emitem: no berro dos bichos, no sopro do vento, no farfalhar das
árvores, no marulho da água, no canto dos pássaros e dos xamãs e nas
preces dos sacerdotes. É ele que se manifesta como força nos encanta-
dos, nos amuletos, nos fetiches, nos talismãs, nos mascotes, nas mezi-
nhas, nos ex-votos, nos remédios etc.
Diferentemente de outras ideias que presidem o funcionamento lógi-
co da magia simpática, como os princípios do contágio, da similitude e do
contraditório, o mana não é uma categoria do entendimento individual. Ten-
do seu funcionamento condicionado pelo coletivo, sua existência pressupõe
uma crença partilhada socialmente. Melhor dizendo, enquanto os princípios
lógicos sistematizados pelos mágicos podem ser perfeitamente aplicados ao
homem moderno, no terreno da comunicação de massas, como já foi mos-
trado anteriormente, a crença na força mágica (no mana) fica cada vez mais
restrita a setores da sociedade em que a racionalidade moderna não moldou
completamente. Daí que, como afirma Marcel Mauss, tudo leva a crer que a
associação de ideias por contágio, similitude e contradição seja algo inerente
à espécie humana, como a noção de tempo e espaço, por exemplo.
A noção de mana, porém, faz das associações naturais de ideias pre-
ceitos imperativos, que implicam consequências práticas necessárias e obje- Ver MAUSS p. 148.
tivas. A crença na objetividade dos preceitos gerados por tais associações de
ideias, para torná-los eficazes, necessita do compartilhamento comunitário, Para os mágicos, esses
ou seja, que elas sejam reproduzidas na mente do conjunto dos indivíduos são princípios gerais que
se referem ao conjunto
envolvidos nos rituais de magia. Nesse sentido, se pode dizer que a magia
da natureza e não apenas
só existe no coletivo, em sociedade, que ela só tem lugar em culturas onde a às leis do pensamento
massa dos indivíduos compartilha seu modo de ver o mundo. humano.
Nos rituais mágicos, a comunidade inteira atua, não havendo ofi-
ciante único ou protagonistas exclusivos, nem separação atores/especta-
dores, palco/plateia. Neles, toda a comunidade participa ativamente, atua
como um bloco único, por assim dizer, como um só indivíduo, na forma de
um grande corpo social. Referindo-se à dança com sabres das mulheres
dayak, uma tribo marítima da Nova Guiné, na ocasião em que os homens
se ausentam para a caça, a pesca ou a guerra, Marcel Mauss nos dá uma
magnífica descrição:
Para que a tribo tenha êxito na guerra, tanto a coragem dos homens nas
armas, quanto o empenho das mulheres na dança são imprescindíveis. Como
imprescindível é que ambos, homens e mulheres, acreditem nos seus ritos e
acreditem na crença de uns nos outros. Só então, a passagem do mana gera-
do pela dança das mulheres efetiva-se no corpo dos guerreiros dayak.
Destaque:
Atualmente, mesmo em sociedades ditas modernas, como a brasileira, ocor-
rem fenômenos semelhantes. Tome-se, por exemplo, o que acontece no mun-
do do futebol, durante as Copas do Mundo, quando dezenas de milhões de
brasileiros formam “aquela corrente prá frente”, torcendo freneticamente pela
seleção canarinha, em frente à televisão, acreditando (mesmo inconsciente-
mente, tal o fervor com que o fazem) estar contribuindo para o desempenho
dos atletas como se estivessem presentes ao local dos jogos.
Essa não observância do espaço tridimensional, em que a distância não
impede sua transmissão imediata, coloca o mana e o mundo da magia em uma
dimensão da realidade separada, oculta, por assim dizer, destacada das que cos-
tumeiramente percebemos. Sem deslocar-se de todo do mundo natural, constitui-
-se, entretanto, como que uma quarta dimensão do espaço, que se superpõe ao
mundo real, unido a ele e, contudo, dele apartado. Penetrar essa dimensão invisí-
vel do real requer poderes e saberes raros e complexos, que incluem acervos de
gestos, palavras e procedimentos, entendimento de princípios e conceitos, assim
como de atos formais, conhecimentos completos de substâncias e de conexões
entre seres e objetos, enfim, o domínio do ofício da magia.
85
Antropologia da Arte
Atividades de avaliação
1. Segundo a concepção anímica do mundo, como se explicam as mutações
na ordem natural do universo?
2. Por que se diz que a noção de mana não é uma categoria do entendimento
individual?
Ver MAUSS p. 56.
3. O Mágico e sua Performance
Ver ELIADE 1976, p. 25.
O mágico é sempre alguém especial dentro da comunidade, alguém particular-
mente vocacionado para viver experiências místicas. Pode ser distinguido por “não se trata, de maneira
nenhuma, de alucinações
certos atributos ou sinais. Em certos casos, a magia aparece como atributo de
e sua fabulação se atém
famílias inteiras detentoras de determinados segredos e receitas, assim como a modelos tradicionais
de castas completas, no caso da Índia, onde a dos ksatriya detinha o privilégio. coerentes, bem articulados
Particularmente inclinadas à magia são figuras consideradas estranhas e de um conteúdo teórico
assombrosamente rico.”
ou excêntricas, que chamam a atenção por defeitos físicos ou habilidades
raras, causando temor, piedade ou repugnância, como aleijados em geral,
corcundas, cegos ou, ao contrário, ventríloquos, malabaristas, acrobatas, far-
santes etc. Em muitas sociedades, a magia aparece associada a profissões
que guardam com ela alguma correspondência, como a do médico, a do ator,
a do coveiro, a do ferreiro, a do pastor, a do barbeiro, sendo, nesse caso, o
poder mágico atributo da corporação, mais que do sujeito. Em direção seme-
lhante, são considerados como presumivelmente mágicos, grupos errantes
que cruzam povos sedentários, como ciganos e mercadores.
Na Sibéria, assim como ao norte do Oriente asiático, onde tomam o
nome de xamãs, os mágicos são recrutados tanto por transmissão hereditária
de saberes, quanto por vocação espontânea. Embora alguns se tornem má-
gicos por vontade própria ou por designação de seus clãs, são considerados,
nesses casos, mais frágeis do que aqueles que recebem o ofício por herança
ou por chamamento dos deuses.
De todo modo, para serem reconhecidos como verdadeiros xamãs, os
candidatos carecem passar por um processo de iniciação que inclui um duplo
aprendizado: um primeiro de natureza extática, no qual procura desenvolver a
capacidade mediúnica e imaginativa (transes, sonhos, delírios, danças, jejuns
prolongados etc.) e um segundo de natureza tradicional, no qual são aprendidos
técnicas de magia, ritos, nomes e atributos dos espíritos, códigos secretos, mito-
logia e genealogia do clã, alquimia, astrologia e demais saberes ocultos.
Referindo-se aos sonhos xamânicos experimentados durante os pro-
cessos de iniciação, Mircea Eliade é enfático: “no se trata, em ningún caso,
86
BARROSO, O.
as palavras, usa códigos incompreensíveis. Mostra certo nervosismo, pode De acordo com Marcel
cair em transes nervosos, crises de histeria, estados catalépticos, êxtases, Mauss, acreditava-se que
isso acontecia inclusive
provocados ou não. Parece estar fora de si e transitar, num estado anormal,
com as almas vulgares (Ver
por uma outra dimensão do real. MAUSS, 1974, p. 64). Mas,
Ao mesmo tempo, ao executar seus procedimentos, o mágico demons- ao contrário das outras
almas, no caso do mágico,
tra uma habilidade manual extraordinária e completo domínio sobre si mesmo.
a alma se solta ao seu
Sua movimentação é extremamente formal e refinada, repleta de preciosismo. comando.
Ele trabalha com os mais diferentes materiais: madeira, metal, barro, cera,
mel, gesso, papel mascado, plástico etc. Esculpe, modela, pinta, desenha, Ver MAUSS p. 65.
borda, tricota, tece, grava, marcheteia. Manipula essências, mezinhas, raízes
Penso também no dom
etc. Fabrica manipanços, escapulários, talismãs, amuletos etc. de ubiquidade de que se
Durante sua performance, o corpo do mágico permanece imantado. fala sobre certos santos
católicos como Santo
De seus movimentos, de seus gestos (sejam os mais largos, ou os mínimos,
Antônio e São Francisco.
como o piscar de olhos), de seus próprios pensamentos, emanam eflúvios
que contagiam o mundo da natureza e dos espíritos. Seus poderes especiais Claro que há inúmeros
o fazem infenso à lei da gravidade; por isso, pode elevar-se no ar, deslizar casos de falseamento,
simulações, charlatanismo
sobre o chão, flutuar, transportar-se para onde queira. Tem, ainda, o poder
etc.
da ubiquidade: é capaz de dilatar seu próprio corpo e de realizar movimentos
impossíveis para os outros.
A ubiquidade do mágico se exerce a partir do deslocamento de sua
alma. Acredita-se, ainda hoje, nas sociedades animistas, que as almas dos
mágicos deixam seus corpos, durante o sonho, e passeiam sob formas de
moscas ou de borboletas. Um dos sinais reconhecíveis desse deslocamento
é o de uma mosca sobrevoar-lhe a boca enquanto dorme. Mas a alma do má-
gico pode também deixar seu corpo durante uma sessão espírita e deslocar-
-se para agir fisicamente, como um duplo. Marcel Mauss (1974) cita o exem-
plo de um feiticeiro dayak que se transportava para procurar seus remédios.
Só aparentemente ele continuava presente na sessão; os assistentes o viam,
mas, de fato, ele estava ausente de corpo e alma.
Especialmente em sua forma xamânica, a magia inclui o estado de pos-
sessão. O feiticeiro cede seu corpo, anulando sua individualidade, à incor-
poração de uma personalidade, de certa maneira, a ele estranha. O mágico
é como que possuído por uma entidade. Entretanto, as entidades a serem
incorporadas, quase sempre arquetípicas de algum modo (mesmo que de
maneira embrionária), subjazem no inconsciente do indivíduo. Cabe ao xamã,
por processos extáticos, extraí-las e ampliá-las, dando-lhes forma com seu
próprio corpo: ação, voz, gesto, movimento, expressão facial etc.
Cada mágico, cada xamã, cada médium, cada pai ou mãe de santo têm
suas entidades, seus espíritos, seus orixás, que incorporam e que, de algum
modo, trazem dentro de si e são capazes de exteriorizar. Se eles são possuí-
88
BARROSO, O.
Atividades de avaliação
1. Nas sociedades tradicionais, qualquer indivíduo pode ser um mágico (ou
um xamã)?
2. O mágico é um ilusionista, ou seja, suas técnicas estão voltadas para iludir
os sentidos dos circunstantes? Ou, de fato, através de rituais extáticos co-
letivos, ele consegue proezas de outro modo inconcebíveis?
4. Máscaras Rituais
As mascaradas, enquanto ritos coletivos, ligam-se, costumeiramente, à re-
novação da vida comunitária: não apenas aos laços da comunidade consigo
mesma, mas dela com a natureza e com o universo. Até hoje, nas sociedades
tradicionais africanas e ameríndias, o uso ritual das máscaras está relacio-
nado aos ritos agrários, de morte e de iniciação, quando não diretamente à
encenação dos mitos de origem do universo.
Uma das primeiras funções da máscara é a de apagamento do indiví-
duo. Nos rituais de iniciação da África Ocidental, entre os Komo e os Nama
Koro, as danças mascaradas relembram que “o adolescente deve morrer na
sua condição anterior para nascer na sua condição de adulto” (DIETERLEN, A citação tão extensa
1988, p. 28). Elas funcionam como uma via de comunicação entre a vida e justifica-se, como o
a morte, um ponto de ruptura da ordem cósmica, uma abertura entre planos leitor verá, porque, mais
diferentes da realidade. adiante, estabelecerei uma
correspondência entre
As máscaras rituais quase nunca se restringem a um adereço de ros- essa máscara bambara e
to, aparecendo na forma de coberturas de corpo inteiro. Nos ritos de renova- a máscara do Jaraguá, tal
ção cósmica, geralmente, elas não representam uma entidade única, mas qual aparece nos Bois e
Reisados brasileiros. Trata-
procuram expressar o conjunto de elementos que estão incluídos no mito fun- se, como verão os leitores,
dador do universo de uma determinada sociedade. Germaine Dieterlen, em no caso da máscara
pesquisa desenvolvida na África Ocidental, antigo reino de Bambara, região do Jaraguá, de uma
do atual Mali, margens do Rio Níger, faz uma constatação muito reveladora ressignificação cômica de
uma antiga máscara ritual
nesse sentido:
Máscaras Waurá MT
espécie de presença ausente, em uma dimensão outra que não a dos mortais. Mais adiante, veremos que
esse alheamento nunca é
Encontram-se, no caso, voltados para dentro de si próprios, não tomando co-
completo.
nhecimento do que acontece no mundo em volta.
Em princípio, trata-se de máscaras sem traços identificadores, conce- Tanto é que, muitas
vezes, quando não utiliza
bidas para evidenciar o anonimato de seu portador, pois fazem com que sua
a máscara, o mágico
voz não pareça vir de parte alguma. Compreende-se que assim seja, porque lança mão do recurso da
os mitos são narrativas de autoria anônima e coletiva, comumente concebidas ventriloquia para causar
como de origem divina. essa mesma sensação.
Essa ausência de traços das máscaras, aqui chamadas de ‘neutras’, Ver KIRBY p. 49.
entretanto, está longe de se constituir numa inexpressividade ou até mesmo
num vazio no sentido literal. Pelo contrário, constitui-se muito mais numa po-
tência, numa disponibilidade total para a incorporação de significados, numa
base para toda expressividade possível.
O uso de máscaras-vestimentas, confeccionadas com materiais os
mais diversos retirados da natureza e trabalhados posteriormente (plumagens,
peles, couros, ossos, dentes etc. animais; sementes, madeira, fibras, folhas
e tecidos vegetais; pedras, conchas etc. minerais) é comum entre os índios
brasileiros. Para os Chamacoco e os Bororo da Amazônia, assim como para
os Tapiripe e os Caraja do Brasil Central, essas ‘coberturas de corpo todo’,
sem traços ou abertura de olhos, têm a função de criar anonimato. Elas são
utilizadas no curso de ritos durante os quais são invocados espíritos vários dos
animais, assim como (no caso dos Tapiripe) dos “hóspedes maus da floresta e
[d]os fantasmas dos mortos que restam na terra dentro das vilas abandonadas
até que sejam transformados em animais” (KIRBY, 1988, p. 42).
Como é costume entre os povos de cultura anímica, os Tukano da fron-
teira Brasil/Colômbia acreditam que animais e humanos compartilham uma
mesma natureza espiritual. Por isso, os animais podem trocar suas peles e cou-
ros por formas humanas e viver entre os homens em suas aldeias. Do mesmo
modo, através de máscaras-vestimentas, que figurem animais, pode ser feita a
passagem inversa. Essa metamorfose, homem/animal, acontece durante dan-
ças cerimoniais em que são utilizadas máscaras em estilo geométrico.
Enquanto a máscara neutra faz com que, tão somente, a partir da per-
formance de seu portador, se possa identificar a entidade nela incorporada, a
máscara geométrica traz inscritos em si os motivos de sua figuração. Entre os
Tukano, como vimos anteriormente, essas inscrições aparecem numa espécie
de código abstrato. Em suas máscaras, geralmente figurações de animais, tais
inscrições costumam aparecer em torno da boca. Buscam, desse modo, indicar
que o som advindo da máscara é a voz do espírito do animal por ela figurado.
92
BARROSO, O.
reis. Nesse caso é uma máscara ritual ao mesmo tempo religiosa e social e
em alguns casos um disfarce” (KONIGSON, 1988, p. 103).
Para Konigson (1988), todas as outras máscaras – entre as quais inclui
as máscaras neutras, as de animais, as grotescas, as de “homens selvagens”
e as do diabo – não seriam máscaras propriamente ditas, mas disfarces. Isso
é porque, tais “máscaras” não estariam ligadas, por laços especiais, a ritos
codificados, a interditos ou a seus portadores.
Entretanto, como já vimos, se tal observação tem pertinência aplicada
à cena medieval europeia, perde o propósito quando o foco se concentra nas
sociedades aborígenes da América do Sul. Nessas sociedades, as máscaras
rituais são disfarces e máscaras a um só tempo: disfarces, porque meios de
apagamento da identidade de seus portadores e porque formas encantadas
dos deuses, ou seja, elas ainda não são os deuses propriamente, mas seus
disfarces; máscaras, porque identidades que tomam corpo durante os ritos,
receptáculos de entidades metafísicas, ou seja, elas mesmas são objetos sa-
grados, carregados de poderes mágicos.
Isso fica claro entre os astecas, para quem “os disfarces se chamam
nahualli (...), derivação lingüística de nahual, termo que significa feiticeiro-
-transformador” (KIRBY, 1988, p. 47). Quando em seus rituais se quer rea-
firmar uma presença humana interior, a máscara é posta de lado; usa-se a
pintura de rosto. O mesmo procedimento aparece também entre os xamãs
siberianos, que utilizam com frequência o recurso de banhar com fuligem ou
cobrir o rosto com os cabelos.
O mágico, ao apagar sua própria personalidade através da máscara,
para personificar um deus, joga um papel, como o ator teatral. Entretanto, não
o faz arbitrariamente, já que incorpora um arquétipo coletivo, uma entidade
concebida pela tradição. Dentro desses limites, ao construir seu personagem,
ele exerce sua liberdade criativa no âmbito do sistema simbólico de uma de-
terminada cultura.
Na Grécia clássica – para alguns autores, é onde, pela primeira vez no
Ocidente, o teatro se destaca do rito – a figuração canônica dos deuses tem
por modelo imagens antropomórficas ligadas a ideais de perfeição do corpo
humano, beleza, juventude, força, equilíbrio, proporcionalidade etc. Entretanto,
não apenas Dioniso, o deus das metamorfoses, como outras potências divinas,
entre elas, Górgona e Ártemis, figuram ou operam através de máscaras.
Não por acaso, dessas máscaras rituais, especialmente da máscara de
Dioniso, surge a máscara teatral, tão estreitamente ligadas, entre os gregos,
quanto o são o teatro e o rito, por ocasião dos grandes concursos dramáticos
de Atenas. Tais concursos, como se sabe, que aconteciam por ocasião das
festas em louvor a Dioniso, tinham caráter de cerimônias sagradas e faziam
94
BARROSO, O.
eles lançam, junto com o som estridente da trombeta, na hora do ataque. Mas
ela também afugenta os espíritos malfazejos. É por isso que sua máscara é fi-
xada em locais públicos e privados, como nas oficinas dos artesãos, sobre as
fontes, na entrada das residências (mas também em ânforas, jarros e objetos
de cerâmica em geral) ou nos adornos da égide de Atena, montando guarda
com seus olhos de pupilas sempre acesas a esconjurar o perigo. Assim como
acontece com Dioniso, sua figuração se dá na forma de máscara.
Ártemis, como sabemos, é a virgem caçadora, a arqueira infalível que
atinge, com suas flechas certeiras, os mais ferozes animais da floresta. Ela é a
divindade do mundo selvagem, senhora das feras e das transfigurações. Mas
é também a instrutora dos jovens na arte da caça e nos caminhos da civilida-
de, assim como é a condutora das jovens mulheres na busca da beleza e da
sabedoria. Nessa qualidade, ela opera entre o mundo selvagem e o civilizado,
ajudando a passagem dos jovens de um universo ao outro, conduzindo sua
iniciação à vida adulta.
No curso da devoção a Ártemis, através de mascaradas e jogos rituais,
jovens e crianças gregas, especialmente em Esparta, mas também em Ate-
nas, eram instruídos a viver as mais diversas e contrastantes atitudes e sen-
sações. Sob a proteção da deusa, com a ajuda de máscaras e travestimen-
tos, eram levados a mimar os mais diferentes personagens (reis e mendigos,
tiranos e escravos, virgens e prostitutas, velhos e bebês etc.), atitudes (doçura
feminina, ferocidade bestial, pudor e obscenidade, vigor guerreiro e debilida-
de senil, descaramento e sinceridade etc.) e inversões (homens vestidos de
mulher ou de animais e vice-versa, jovens fantasiados de velhos e vice-versa,
servos disfarçados de reis e vice-versa, padres trajados de bêbados e vice-
-versa, empregados fazendo patrões e vice-versa etc.). A cada máscara figu-
rada correspondia uma nova experiência de vida, quase sempre de excesso,
de transgressão. Por esse meio, os jovens aprendizes tomavam contato com
toda sorte de comportamentos marginais e sensações estranhas. Exercita-
vam o descomedimento e a alteridade, conhecendo a subversão, para mais
valorizar a regra à qual eles deveriam obedecer dali em diante.
No culto a Ártemis, portanto, a máscara aparece como um instrumento
educativo no processo de formação do jovem como cidadão. Ela, a máscara,
como que apressa essa formação, fazendo com que a experiência de vida
do jovem se enriqueça e dando mais rapidez ao seu amadurecimento, ao
permitir que ele viva muitas vidas, em um curto período de tempo, no papel de
múltiplos personagens.
Se com Ártemis, o jovem experimenta o descomedimento para apren-
der o comedimento, com Dioniso, parece acontecer exatamente o contrário:
o adulto equilibrado, perfeitamente integrado à ordem social, experimenta a
96
BARROSO, O.
máscaras dos ritos mágicos dos povos selvagens. Informa ele que, no espaço de
encenação dos chamados mistérios medievais, levados a cabo pela Igreja cató- KONIGSON, Elie. Le
Masque Du Démon:
lica, o Inferno está comumente situado a Oeste ou à esquerda e só raramente ao Phantasmes et
Norte. Constitui uma espécie de máscara-cenário, na forma de uma grande goela Métamorphoses sur la
articulada que abre e fecha: a Garganta do Inferno, onde agem, não por acaso, os Scène Médiévale. In LE
únicos personagens mascarados sobre a cena, os próprios demônios. MASQUE: DU RITE AU
THÉÂTRE. Textes et
Ao contrário dos demais personagens – santos, anjos e o próprio Deus – Études Réunis et Presentes
que atuam vestidos e com os rostos descobertos, os demônios figuram par Odette Aslan et Denis
mascarados e nus. Além disso, enquanto os demais personagens, sempre Bablet. Paris, Editions du
CNRS, 1988.
apresentados sob aparência humana (inclusive Deus e os anjos), aparecem
segundo uma ordem histórica e/ou alegórica, os diabos surgem em cena ale-
atoriamente, de modo deliberadamente caótico, sob aspecto animalesco.
Nos mistérios medievais, a máscara diabólica é uma máscara de corpo
inteiro – facial, corporal e manual inclusive –, já que o demônio usa o tridente
É interessante notar
e outros instrumentos de tortura. Trata-se de um antifigurino ou de um figurino que, na cena medieval,
de outra natureza, de uma natureza infernal, do mesmo modo que o Inferno, além do demônio, outro
com sua garganta, está fora da Terra e da esfera celeste, assim como a músi- personagem que aparece
ca se opõe ao ruído e ao alarido diabólico dos demônios. costumeiramente nu é o
“homem selvagem”.
Na máscara medieval, o diabo tem garras de mamífero ou de ave de
rapina, focinho com aspecto ora canino ora de um javali, cabeça com traços
indefinidos – não se sabendo se de urso, se de lobo –, chifres, ferrões, e trom-
bas. A isso, se some, pelo resto do corpo, escamas, caudas, asas de morcego
ou o que se queira colocar. Em todo caso, deve parecer um monstro apavorante
como uma Górgona, o terror em seu estado bruto, feito uma força da natureza.
A figuração da máscara do demônio nos mistérios medievais procu- Ver KONIGSON pp. 108 a
rava, assim, associar a ela elementos ligados a ritos de magia praticados por 111.
povos tidos como pagãos e/ou heréticos, assim como a figura da mulher e
do “homem selvagem”. Possuía, em sua função aterrorizante, a finalidade de
afastar os fiéis da tentação de continuar executando ou aderir a tais práticas
heterodoxas, chamar os “incivilizados” à ordem e as mulheres à submissão.
Síntese do Capítulo
Assim como o artista, o mágico observa a realidade a partir de suas formas
exteriores e através de sua sensibilidade. Daí haver a aproximação entre arte
e magia, assim como a necessidade de estudar o funcionamento das leis do
pensamento mágico para a compreensão do fenômeno estético. Considera-
do como uma forma de conhecimento ou percepção do real, o chamado pen-
samento mágico ou selvagem responde a uma necessidade humana de dar
98
BARROSO, O.
Atividades de avaliação
1. Para você, a principal função da máscara é ocultar ou revelar?
2. Pode se estabelecer alguma diferença entre disfarce e máscara? Qual?
3. Diz-se que a máscara é um meio de comunicação com os espíritos. Como
se dá esse processo?
Texto complementar
Máscaras Rituais Pankararu
No interior do Nordeste brasileiro, mais precisamente na localidade de Brejo dos Pa-
dres, município de Tacarutu, sertões de Pernambuco, podemos encontrar um exemplo
notável do uso de máscaras rituais. Trata-se das máscaras praiás dos índios pankararu,
pertencentes ao grupo cultural lingüístico dos kariri, originários de Curral dos Bois (hoje
Santo Antônio da Glória), na Bahia, depois aldeados pelos padres oratorianos no lugar
onde habitam até hoje.
As máscaras praiás são coberturas de corpo inteiro e se compõem de cinco partes: 1) O
tunã, tecida em fibra de caroá ou ouricuri, ocultando inteiramente o rosto e cobrindo a cabeça,
contendo apenas dois pequenos furos no lugar dos olhos e com os fios soltos a partir do pesco-
ço, caindo sobre os ombros até os joelhos. 2) O saiote, feito com a mesma fibra do tunã, preso
na cintura e estendendo-se até as canelas. 3) O cocar de penas de peru, em forma esférica,
como um grande sol, fixo no alto do tunã. 4) O penacho de plumas atado a uma pequena vara
fixa no alto do tunã. 5) A cinta, uma pequena túnica de tecido, geralmente chita estampada ou
pano bordado com uma cruz ou outro símbolo, que se coloca sobre as costas do tunã.
Completando o traje ritual praiá, os pankararu portam o maracá, feito de coité e adornado
com penas, o bordão de compasso, igualmente enfeitado de penas, e a gaita de marcação.
Entre os pankararu, as máscaras acima descritas são de uso exclusivo dos dançarinos
mascarados da tribo, os praiás, uma espécie de sociedade secreta de caráter hereditário,
formada por membros das velhas famílias fundadoras da comunidade. Tem por função
ocultar a identidade de seus portadores e preservar o caráter secreto do grupo. Segundo
testemunho dos mais antigos, após suas danças cerimoniais, os praiás recolhiam-se às suas
choças e permaneciam nelas reclusos. Hoje, eles já aparecem em feiras e romarias, embora
se mostrem comumente arredios e procurem manter distância de grandes aglomerados.
Durante seus rituais, e por via das máscaras, os praiás incorporam espíritos ancestrais
que acreditam encantados nas cachoeiras de Itaparica e Paulo Afonso, situadas não muito
distantes de Brejo dos Padres. Muitas vezes são surpreendidos lançando longas baforadas
de fumo em suas direções.
Os praiás participam e muitas vezes protagonizam com exclusividade os principais ritos e
cerimoniais pankararu. O mais importante desses rituais é a Dança dos Praiás. Sua execução
é puxada por uma cantadeira que entoa loas durante horas seguidas, em tom melancólico e
lamentoso, acompanhada pelo toque dos maracás sacudidos pelos praiás, que respondem
ao canto soltando sons que se assemelham a uivos guturais e longos gemidos.
Envergando seus trajes rituais e movidos por esse ambiente sonoro, os praiás dançam
em passos curtos e rápidos, às vezes arrastados e presos ao solo, às vezes de modo brusco
e aos pulos, batendo com força no chão. Seguem mudando a direção, ora para um lado,
ora para o outro, em fileiras ou em pares, em roda ou formando ziguezagues e SS, inclinan-
101
Antropologia da Arte
do-se ora para a esquerda, ora para a direita, em um movimento contínuo e imprevisível,
puxado pelos guias de uma fila e de outra. Em certos momentos, os dançarinos dividem-se
em grupos e, de braços colados, adiantam-se em carreira até a cantadeira, freando repen-
tinamente junto a ela, conseguindo um forte efeito de suspense.
A iniciação de novos membros no grupo desses “protetores mágicos da aldeia” (PINTO
p. 300) se dá por um rito que eles chamam de “Festa do Menino no Rancho”, por meio do
qual, as crianças não apenas são iniciadas nos segredos dos praiás, como se tornam in-
termediários entre eles e o restante da comunidade. Isto porque, quando os praiás estão
reunidos em seu reduto sagrado, que chamam rancho ou poró, não podem ser vistos por
pessoas fora do grupo. Sendo assim, fica a cargo da criança em iniciação trazer-lhes o que
necessitam: água, fogo, fumo etc., ficando a ela vedado revelar qualquer fato ou detalhe
do que se passa no rancho, sob ameaça de dormir em uma cama coberta com urtigas.
Para a “Festa do Menino no Rancho”, levanta-se primeiramente um rancho, e nele se faz
entrar o pré-adolescente a ser iniciado. O menino traz o corpo pintado de tauá branco, leva
a tiracolo rolos de fumo e tem na cabeça um capacete de ouricuri. Na entrada do rancho, se
coloca a guarda do menino, sentinelas e padrinhos armados de cacetes. Do outro lado, se
postam os praiás, guerreiros sagrados, igualmente armados, que buscam a posse do meni-
no. O combate acontece do modo ritual, mas com grande vigor. Termina com a destruição
do rancho e com a conquista do menino pelos praiás que, em meio a grande alegria, cantan-
do e dançando, levam o menino à presença de uma menina da mesma idade.
Entre os pankararu, o tuxaua é eleito democraticamente pela comunidade. Quando
alcança a decrepitude, é substituído. Ainda assim, sua opinião é levada em conta, nota-
damente em questões relativas ao sagrado. O mesmo ocorre com as velhas cachimbeiras
da tribo, espécies de pajés que, até atingirem idades muito avançadas, encarregam-se
da cura dos enfermos, e ainda de outros procedimentos mágicos, como “tirar o atraso”
das pessoas e “atrair a chuva”. Nessas práticas, o fumo costumeiramente joga um papel
importante, ajudando a exorcizar malefícios e imunizar espíritos.
Na Festa do Ajucá, como é chamada entre os pankararu o culto da jurema, se fazem
presentes, além dos praiás, o tuxaua, os guerreiros e as velhas cantadeiras. A cerimônia
acontece em local afastado, dentro de um bosque sombreado, em terreiro previamente
forrado com esteiras de ouricuri. No centro do terreiro se coloca uma laje, com numerosas
raízes de jurema em cima.
Depois de raspadas e lavadas, as raízes de jurema são colocadas dentro de uma gran-
de vasilha de coité cheia d’água. A vasilha, em seguida, é agitada até formar uma densa
escuma, estando pronta para ser bebida. Em meio a cantos e falas sagradas, o tuxaua,
tirando baforadas de seu cachimbo, inicia o ritual de sagração da bebida. Em seguida, seu
cachimbo passa de mão em mão, entre os presentes, que fazem o mesmo.
Terminada a benzedura do ajucá, o tuxaua ajoelha-se e bebe o primeiro gole, no que
é imitado pelos demais. Circunspectos e concentrados, todos provam do filtro mágico que
lhes proporcionará comunicar-se com os encantados, em sonhos e visões. O que restar do
sumo da raiz da jurema é colocado em um buraco profundo aberto no chão.
Os pankararu de Brejo dos Padres podem ser observados costumeiramente nas
grandes romarias do Juazeiro do Norte, no Ceará, e de Santa Brígida, na Bahia. Costu-
mam estabelecer sincretismos e correspondências entre seus encantados, entidades
afro-brasileiras e santos do catolicismo popular, como Padre Cícero, Conselheiro Pedro
Batista e Mãe Dodô. Daí, muitas vezes, realizarem peregrinações a santuários católicos
junto com irmandades cristãs, especialmente com as de Nossa Senhora da Boa Morte e
de São Gonçalo, que tem sedes tanto em Santa Brígida (BA), quando na Estrada Velho
do Horto, em Juazeiro do Norte.
As máscaras dos praiás, como vimos, embora com pequenas aberturas para os olhos
(demasiadamente pequenas, por sinal), possuem todas as características das máscaras-
-vestimentas neutras, que procura criar o anonimato e transportar seus portadores à di-
mensão do invisível, no caso a de seus ancestrais “encantados”.
102
BARROSO, O.
Marcel Mauss
Sociólogo e antropólogo francês nascido em Épinal, França, cuja obra foi marcante na so-
ciologia e na antropologia social contemporânea e considerado como o pai da antropolo-
gia francesa. Sobrinho de Émile Durkheim e nascido quatorze anos mais tarde e na mesma
cidade, estudou com o tio e foi seu assistente e tornou-se professor de religião primitiva
(1902) na École Pratique des Hautes Études, em Paris. Fundou o Instituto de Etnologia
da Universidade de Paris (1925) e também lecionou no Collège de France (1931-1939).
Sucedeu o tio como editor da revista L’Année Sociologique (1898-1913), onde publicou
um de seus primeiros trabalhos, com Henri Hubert, Essai sur la nature et la fonction du
sacrifice (1899) e também Essai sur le don: forme et raison de l’échange dans les sociétés
archaïques (1925), sua obra mais conhecida. Escreveu também numerosos artigos para
periódicos especializados, especialmente os produzidos e publicados em colaboração com
Henri Hubert (1899-1905), que reuniu em Mélanges d’histoire des religions (1909). Os
trabalhos mais importantes do autor, que morreu em Paris, aparecem no livro Sociologie
et antropologie (1960). Entre outros trabalhos de sua autoria, ganharam notoriedade La
sociologie: objet et méthode (1901), Esquisse d’une théorie générale de la magie (1902),
Essai sur le don (1924), Sociologie et anthropologie (1950).
É interessante verificar, como já iniciamos em capítulo anterior, a ligação dessas leis com
os tipos de signos, com relação ao referente, na semiótica. Enquanto a lei da contiguidade
diz respeito ao índice, ou seja, à representação por contato porque o signo foi afetado pelo
objeto através do contato, a lei da similaridade diz respeito ao ícone, ou seja, à representa-
ção por semelhança, pela relação de semelhança do signo com o objeto representado. Na
propaganda, assim como na arte, essas analogias ou associações de ideias são costumeira-
mente empregadas do mesmo modo como o são nos rituais das religiões populares.
Para dar um exemplo da propaganda, podemos ficar com os famosos cartazes de pe-
ças de carros ao lado de moças seminuas pregados nas portas de oficinas. Não há outra
relação entre as peças e as garotas na propaganda senão a de contiguidade, mas a pro-
ximidade entre ambas acaba por associar uma a outra na percepção do mecânico. Se o
objeto a ser vendido fosse um violão, a lei da similaridade entre o objeto da propaganda e
o corpo da garota reforçaria a analogia.
Nos rituais do catolicismo popular, há o exemplo clássico do romeiro que leva um ex-
-voto e o coloca aos pés da estátua de seu santo protetor. Por similaridade, ele manda
esculpir a expressão de sua doença na madeira ou em outro material qualquer. Por esse
mecanismo, a “energia negativa” (o mana) de sua enfermidade é transferida para o ex-
-voto (como se chama à escultura). Em seguida, ele leva o ex-voto e o deposita ao pé da
imagem de seu santo de devoção, ou seja, ele o leva a um lugar carregado da “boa ener-
gia” do seu santo, que neutraliza, por contágio, a “energia negativa” do ex-voto colocado
aos seus pés. Curado o ex-voto, por contágio, está curado o doente, por similaridade.
Bricoleur
É um termo francês que designa, ordinariamente, alguém que é afeito a fazer trabalhos
manuais por conta própria, fabricar objetos ou fazer pequenos consertos em casa, a partir
de um acervo de recursos e ferramentas caseiros. Antropólogos franceses, entre eles Lévi-
-Strauss, usam o termo bricoleur para nomear o modo de operar do mágico que utiliza
materiais já elaborados e fragmentários. Executa tarefas diversificadas. Tem seu repertó-
rio de instrumentos e materiais pré-estabelecidos. Seu universo instrumental é fechado.
O conjunto de seus meios não é definido pelo projeto. Arranja-se sempre com meios li-
mitados. Usa um estoque de meios cumulativos. Pensa: “Isto sempre pode servir”. Cada
elemento de seu estoque representa um conjunto de relações e possibilidades. Como o
bricoleur, tem atitude retrospectiva, voltando-se para seu estoque. Verifica as respostas
possíveis que o conjunto pode oferecer ao problema colocado. Ex.: uma tábua de carvalho
pode servir como calço, pode ser utilizada numa janela etc. As possibilidades são limitadas
pelo tipo de peças que ele tem no seu acervo. Ele volta-se para uma coleção de resíduos
de obras humanas ao operar seu projeto.
103
Antropologia da Arte
Referências
MAUSS, Marcel, Sociologia e Antropologia, com uma introdução à obra de
Marcel Mauss, de Claude Lévi-Strauss, tradução de Lamberto Puccinelli,. São
Paulo, EPU, 1974. (VOLUME I)
ELIADE, Mircea. El Chamanismo y las Técnicas Arcaicas del Extasis. México,
Fondo de Cultura Económica, 1976.
FRAZER, Sir James George. O Ramo de Ouro. Rio de Janeiro, Zahar Edito-
res (edição do texto: Mary Douglas, Resumido por Sbine MacCormack), 1982.
LÉVI-STRAUSS, Claude - O Pensamento Selvagem, Campinas (SP), Papí-
rus, 1989.
LE MASQUE: DU RITE AU THÉÂTRE. Textes et Études Réunis et Presentes
par Odette Aslan et Denis Bablet. Paris, Editions du CNRS, 1988.
Do qual constam, entre outros, os seguintes artigos, citados no texto:
DUCROUX, Françoise Frontisi- et Jean-Pierre VERNANT. Divinités Au Mas-
que Dans La Grèce Ancienne
DIETERLEN, Germaine. Masques: Sociétés Traditionnelles d’Afrique Occi-
dentale.
KIRBY, Ernest-Théodore. Masques d`Amérique du Sud – La Transformation
Homme/Animal
PATUREAU, Mirella Nedelco. Jeux Masqués et Théatre Paysan em Roumanie.
KONIGSON, Elie. Le Masque Du Démon: Phantasmes et Métamorphoses sur
la Scène Médiévale.
PINTO, Estevão. As Máscaras-de-Dansa dos Pancararu de Tacaratu, in So-
ciété des Américanistes, Année 1952, Volume 41, Numero 2, pp. 295 – 304.
VERNANT, Jean-Pierre. Figuras, Ídolos, Máscaras. Tradução de Telma Cos-
ta.Lisboa, Editorial Teorema, 1991.
Capítulo 5
A Arte Tradicional Popular
107
Antropologia da Arte
Objetivos
• Verificar a transformação da produção estética ritual em produção artística
como ofício unindo estética e utilidade, em sua produção.
• Tratar mais detidamente da arte do canto, da palavra e da narração oral.
• Debater as transformações pelas quais passa a arte tradicional popular.
1. O Belo e o Útil
Nas sociedades tradicionais, a estética está intrinsecamente vinculada ao co-
tidiano dos grupos humanos, não havendo separação entre o belo, o útil e o
bom. Arte, trabalho e religião estão indissoluvelmente ligados. As manifestações
artísticas nos diversos campos, sejam pinturas, esculturas, cantos, narrativas ou
performances corporais, relacionam-se, de algum modo, a cerimônias e rituais
religiosos e sociais. As obras de arte perdem o sentido se separadas do contex-
to em que se inscrevem, ou seja, do conjunto de crenças e rituais, assim como
do estilo e das técnicas das diferentes etnias que as conceberam.
Mais do que motivo de contemplação, os objetos artísticos são criados
para serem manipulados, durante os ritos, pelo mágico ou xamã. Nas ceri-
mônias de iniciação ou renovação, muitos deles guardam caráter secreto e
ligam-se aos seus donos de tal maneira que, quando de suas mortes, são co-
locados junto com eles em suas sepulturas. Estudando a arte africana, espe-
cialmente na África Central, alguns antropólogos chegaram a definir algumas
das funções desses objetos (SYLLA, 1988, pp. 127 -129). Entre outras, as
seguintes funções foram definidas:
Função mágico-religiosa: Os objetos de arte servem como canal de comuni-
cação entre o mundo visível e o invisível, entre a dimensão material e espiritu-
al da realidade, funcionando como suportes para captar, transmitir ou afastar
fluxos de energia benéficos ou maléficos que transitam na coletividade.
Função terapêutica: os objetos e outras manifestações artísticas, durante os
ritos, cerimônias e outras práticas sociais, podem contribuir para a manuten-
ção do equilíbrio psicológico dos indivíduos e da coletividade.
Função pedagógica: os objetos e práticas artísticas são úteis para o pro-
cesso de aquisição e transmissão de conhecimentos nos sistemas de inicia-
108
BARROSO, O.
são da subjetividade humana não pode deixar de refletir interesses sociais, até Caruaru
mesmo o interesse mercantil de obter dividendos. Cidade de Pernambuco.
Engana-se quem considera irrelevante a autoria das obras de arte pro- Pirambu
duzidas nas sociedades tradicionais, bem como nas comunidades ou seg- Bairro de Fortaleza.
mentos tradicionais que vivem no interior de sociedades modernas. Mesmo
quando produzindo em grupo, dentro de “escolas” específicas, o indivíduo não
se apaga no seio da coletividade.
Embora o mestre exerça um papel preponderante na determinação do
estilo de uma tradição por ele fundada, daí o dito “fazer escola”, seus apren-
dizes não se furtam da marca individual. Tal é o caso, por exemplo, da escola
de ceramistas de Caruaru, que teve Vitalino como mestre, e da escola de
pintores do Pirambu, cujo mestre foi Chico da Silva. Ambos fizeram escola e
tiveram inúmeros discípulos que assinavam como o mestre, porém guarda-
vam particularidades inconfundíveis no estilo.
O caso de Chico da Silva é exemplar. Sua arte fez escola no Piram-
bu entre os anos 60 e 70 do século passado. Chico trabalhava com muitos
aprendizes que seguiam, em grandes linhas, o estilo do mestre. Para aten-
der à grande demanda de obras, Chico obrigava- se, muitas vezes, a apenas
assinar as telas produzidas em guache. Com o tempo e com a indisposição
do mestre por motivo de saúde, os próprios discípulos começaram a assinar,
eles mesmos, a marca do atelier, ou seja, a assinatura ‘Chico da Silva’. A es-
cola era a mesma: no quadro estava registrada a sua marca, mas, para quem
conhecia, o estilo de cada artista era inconfundível. Além do próprio Chico,
destacavam-se Claudionor, Ivan de Assis e Raimundo Neto, que introduziu o
fundo preto nas pinturas.
Tela de Claudionor
Destaque
A escolha de Chico da Silva em trabalhar coletivamente, ao modo das corpora-
ções medievais, bateu de frente com o mercado capitalista das artes plásticas,
para o qual não importa a qualidade estética da obra, mas a cotação do autor no
mercado. Acusado de vulgarizar suas próprias obras e de ajudar na falsificação
das mesmas através de antigos aprendizes e discípulos, foi abandonado por me-
cenas e admiradores. Vítima de cirrose hepática e tuberculose crônica, encerrou
sua carreira artística prematuramente em 1976, vindo a falecer em 1985.
No caso, os discípulos de Chico da Silva assinavam com o nome do
mestre não por terem anuladas suas individualidades, mas por uma exigência
de valorização do mercado capitalista. Cada um deles tinha um estilo marcan-
te, que faziam questão de afirmar. Não havia uma preocupação em imitar o
mestre, em “falsificar” um quadro ou até mesmo a assinatura.
Pelo contrário, a preocupação com a autoria, bem como com o valor
estético do objeto, é marcante nas tradições populares. No final da década de
70 do século passado, pude testemunhar um fato elucidativo nesse sentido.
Em visita à oficina de Noza, famoso mestre santeiro do Juazeiro do Norte já
falecido, presenciei a demanda de um ex-voto por parte de um romeiro aco-
metido de grave enfermidade. Embora Noza explicasse que a encomenda
sairia cara para alguém visivelmente pobre como o romeiro e que já estava
sobrecarregado de trabalhos, o outro insistia. Argumentava ter sido Noza o
primeiro a esculpir uma imagem do Padre Cícero, ser exímio artífice e só ele
poder esculpir o ex-voto capaz de representar o milagre de sua saúde.
Os ex-votos, assim como objetos outros manipulados pelos mágicos, xa-
mãs ou pajés, não são denominados como objetos artísticos por seus usuários
originais, mesmo quando possuem qualidades estéticas evidentes, senão pelos
111
Antropologia da Arte
que os ressignificam. Entretanto, de modo algum, isso pode ser entendido como
ausência de interesse estético por parte das comunidades tradicionais. Em mui-
tos casos, mesmo entre povos ágrafos, as questões relativas ao belo e à arte
têm tratamento explícito. Em sua dissertação para obtenção do título de Mestre
em Arqueologia, sob o título Imagens e Palavras: Suas Correspondências na
Arte Africana, Maria Corina Rocha recorre a Farris Thompson, para quem “en-
tre os iorubas existe não só um comportamento voltado para a crítica da arte
como também um vocabulário muito preciso. Ou seja, não se pode afirmar que
inexistem meios de expressar valores estéticos entre os povos africanos produ-
tores de arte, ainda que esses sejam peculiares a eles, como os nossos meios
revelam a nossa visão ocidental da cultura e do mundo” (ROCHA, 2007, p. 60).
É preciso lembrar, porém, que o valor estético de determinado objeto,
numa sociedade tradicional, nunca está dissociado de seu valor simbólico,
ou seja, do prestígio de seu dono, dos rituais e fatos outros em que esteve
presente, das divindades às quais está ligado, das lembranças que desperta
etc. Do mesmo modo, se a forma do objeto pertence ao artista, seu significa-
do é dado pela comunidade a partir do contexto de uso do mesmo, isto é, a
sua inserção em determinada situação cênica, que pode envolver o canto, a
fala, a música instrumental e a performance corporal em suas diferentes mo-
dalidades. Há como que um hiato entre a criação do objeto pelo artista e sua
utilização pela comunidade, que, reiteradamente, o ressignifica: um ex-voto
tanto pode virar brinquedo infantil quanto Menino Deus na Lapinha; um pote
transforma-se em uma urna funerária; alguidar, em jarro de flores etc.
Em pesquisa desenvolvida em regiões do Congo, próximas à Gâmbia
e à Angola, nos anos 60 do século passado, com o objetivo, dentre outros, de
saber se os tshokwe, povo nativo do lugar, faziam distinção entre o que é arte e
o que não é, Daniel Crowley observou que eles estabeleciam uma ligação entre
saber como fazer bem um objeto e saber como fazê-lo belo (ROCHA, 2007 p.
94). Ao final de seu trabalho, o pesquisador norte-americano conclui com uma
lista de 19 itens por ele considerados como “expressões de valor estético”, entre
os quais constavam: máscaras e esculturas de madeira, objetos de uso domés-
tico em cerâmica ou fibra, objetos de metal com função utilitária ou decorativa,
instrumentos musicais, vestimentas de fibra, narrativas orais, cânticos, contos,
lendas, provérbios, músicas, danças e ritos em geral (ROCHA, 2007, p. 94).
Na maior parte das vezes, esses objetos de valor estético estão ligados
a ritos de iniciação ou passagem, na condição de objetos sagrados. Funcio-
nam, quase sempre, como expressão de conceitos, valores e referências na
narrativa da história de seu povo, afirmando a presença da arte em momentos
cruciais da vida dos grupos sociais e do indivíduo, exatamente quando se
processam nela mudanças fundamentais.
112
BARROSO, O.
Atividades de avaliação
1. Como se dá a relação entre arte e artesanato nas sociedades tradicionais?
2. Como se expressa a preocupação estética nas sociedades tradicionais?
Atividades de avaliação
1. Em sua opinião, entender a arte como ofício implica sua desvalorização?
2. Em que implica ter a arte como missão, além de profissão?
contribuir com a paz quanto fomentar a guerra. Mestre na arte de seduzir, ele
pode trazer o bem ou o mal. Diz-se, por isso, que ele tem duas línguas. Mas o
verdadeiro griot deve saber escolher a palavra certa, a palavra esclarecedora
que propicie o entendimento no intrincado dos conflitos humanos.
Os africanos costumam comparar o trabalho do griot ao de alguém que
ajuda a fazer circular o sangue pelo corpo humano. No caso, o sangue é a
palavra. Os griots a ajudam a circular pelo corpo social, de modo a que esse
permaneça sadio, sem que adoeça pela exacerbação dos conflitos. Entre os
outros de sua casta, ele é o único a não ter um ofício manual ou desempenhar
uma atividade prática; entretanto, sua fraqueza no terreno material é compen-
sada pelo domínio no campo da palavra e da memória. A mente de um griot
será sempre a grande enciclopédia de saberes da história de sua gente, de
suas lutas e amores, de seus hinos guerreiros e canções apaixonadas.
Sotigui Kouyaté, griot do antigo Império Mandinga da África Ocidental,
assim se define:
Eu sou griot. Sou eu, Djeli Mamadou Kouyaté, filho de Bintou Kouyaté
e de Kjeli Kedian Kouyaté, mestres na arte de falar. Desde tempos ime-
moriais os Kouyaté estão a serviço dos príncipes Keita do Mandinga:
nós somos os sacos de palavras, nós somos os sacos que guardam os
segredos muitas vezes seculares. A arte de falar não tem segredo para
nós: sem nós os nomes dos reis cairiam no esquecimento, nós somos a
memória dos homens, pela palavra damos vida aos fatos e gestos dos
reis perante as novas gerações (BERNAT, 2008, p. 58).
O griot não é apenas aquele que fala, mas também o que escuta a palavra,
quem a acolhe e armazena. Por isso, é o grande depositário das tradições orais de
sua gente, desde os mitos fundadores, passando pelos contos iniciáticos, até os
provérbios e anedotas, assim como o cancioneiro, enfim, toda a memória constitu-
ída pelo povo. Seu ofício é recolher e fazer circular esse acervo oral, participando
de eventos, batismos, casamentos, funerais, festas familiares ou coletivas, fazendo
aconselhamentos em famílias ou em encontros individuais. Por isso, o griot está
sempre em viagem. Ele é mestre de uma escola nômade, que vai à casa do aluno
com ele trocar saberes. Sua pedagogia é a do conto, da dança e da música. Sua
arte, a da palavra dita de viva voz e corpo inteiro.
A vida de um griot é feita de travessias, encontros, histórias ouvidas e
histórias contadas. Os anos de existência se somam como anos de sabedo-
ria. Por isso, quando na velhice o saber já lhe pesa sobre os ombros, torna-se
urgente que mais se empenhe na transmissão do que aprendeu. É necessário
que seu legado passe ao filho como um novelo sem fim de palavras, em que
uma puxa a outra, ou como um mar de saberes, onde alguém pode se aven-
turar de barco para pescar o que precisa para alimentar o espírito.
118
BARROSO, O.
Atividades de avaliação
1. De sua convivência, você conhece alguém que pode ser comparado a um
griot ou que tenha o dom de receber um yãmîy?
2. Qual o tipo social ou artístico cuja função no interior da cultura brasileira, na
sua opinião, mais se aproxima do griot?
119
Antropologia da Arte
4. A arte de Narrar
Quando nos debruçamos na pesquisa e no estudo dos griots e de outros con-
tadores de histórias, acabamos convencidos de que o teatro tem entre suas
origens e manifestações, a arte de narrar. Isso fica bem evidente tanto na
África Ocidental, quando um griot se põe a contar uma história num quintal
qualquer, quanto numa feira do Nordeste brasileiro, quando um mascate atrai
o público com a narrativa de uma missa cômica ou outro fato picaresco qual-
quer antes de apresentar a excelência de seus produtos.
O griot, particularmente, é um ator que faz da palavra o centro de sua atua-
ção. Em sua boca, a palavra adquire poderes mágicos, contém mana, para usar-
mos um termo explicitado em capítulo anterior. Por via de sua fala, o invisível se
manifesta. Soam as palavras dos espíritos. O que se ouve é a voz da grande tra-
dição, seus ensinamentos. Ao alcance dos homens, é colocado um saber múltiplo
que inclui a religião, a arte, a natureza, a história, o corpo, o riso e o jogo.
Em povos de culturas eminentemente orais, como as africanas, o te-
atro aflora a cada instante do cotidiano. Os fatos circulam pelas falas e se A propósito, quando os
transmitem aos ouvidos. Para que haja teatro, só basta que alguém escute críticos classificavam as
obras de Gabriel Garcia
um narrador e, entre eles, se trave uma relação dialógica. Formam-se rodas Marquez dentro do realismo
em torno de quem tem a palavra. Ali está o ator e seu público. Basta que um fantástico, ele costumava
mascate, numa feira, admita discutir o preço de um produto e que o cliente protestar dizendo que
barganhe na compra. elas apenas são realistas;
o fantástico é parte da
Em suas narrativas, os griots falam de um mundo em que as metamor- realidade do mundo por ele
foses homem/animal são frequentes. No imaginário de seus contos, animais retratado.
se comportam como homens e vice-versa, não apenas como recurso esti-
lístico ou para efeito didático, mas porque muitos povos africanos acreditam
na metamorfose homem/bicho, ou seja, que homens podem se encantar em
bichos, assim como animais podem se encantar em humanos. Daí o maravi-
lhoso flui, com realismo, de suas narrativas.
Os contos tradicionais africanos são divertimentos, ou melhor, (a)diver-
timentos sobre a vida e o comportamento em sociedade, que repassam, com
sabedoria, o legado ético das antigas gerações. Sua pedagogia evita moralis-
mos repressivos e imposições intimidantes, trabalhando através de jogos me-
tafóricos e correspondências alegóricas, uma didática sutil e bem humorada
muito ao gosto das crianças, embora voltada para todas as idades.
120
BARROSO, O.
Texto complementar
A Arte do Gato Maravilhoso
Era uma vez um mestre de esgrima que se chamava Shoken. Era um homem maravilhoso,
de uma gentileza rara. Ele gostava de todo mundo, de todo o gênero humano e, sobretu-
do, da natureza. No entanto, ele não gostava dos ratos. Ora, na sua casa, um grande rato
causava desordem. Mesmo em pleno dia, ele corria por toda parte. Um dia, o dono da
casa o trancou no seu quarto e disse ao seu gato doméstico para apanhá-lo. Mas o rato
saltou no pescoço do gato e o mordeu tão cruelmente que ele escapou miando muito alto.
Em seguida, Shoken trouxe vários gatos da vizinhança, famosos pela suagrande valen-
tia, e os fez entrar no quarto. O rato estava sentado, encolhido sobre si mesmo num canto
e, no momento em que um dos gatos se aproximou, o rato saltou sobre ele e o fez fugir.
O rato tinha um ar tão feroz que nenhum dos gatos ousava se aproximar dele novamente.
Então, o dono da casa ficou com raiva e correu ele mesmo atrás do rato para matá-lo. Mas
este evitava todos os golpes do sábio mestre de esgrima, que quebrou portas, shojis, kara-
mis e outros objetos, enquanto o rato escapulia rapidamente pelo ar como um relâmpago,
esquivando-se de cada um dos movimentos do esgrimista. Enfim, pulando no seu rosto,
o rato o mordeu. Finalmente, ofegante e pingando de suor, Shoken chamou seu serviçal e
lhe disse: “Parece que, há seis ou sete Cho (medida de distância) daqui, vive o gato mais
valente do mundo. Vá e traga-o”
Dito e feito. O serviçal trouxe o gato em questão, que era, de fato, uma gata que não
parecia muito diferente dos outros gatos; ela não tinha o ar nem particularmente inteli-
gente, nem particularmente perigoso. Assim, o mestre de esgrima não ficou, a princípio,
particularmente confiante. No entanto, ele abriu a porta e a fez entrar. Calma e silenciosa,
como se não esperasse nada de especial, a gata avançou dentro do cômodo. O rato teve
um sobressalto e não se mexeu mais. A gata, com toda simplicidade, se aproximou lenta-
mente dele, o pegou pelo focinho e o levou para fora. E durante a noite, os gatos que ti-
nham apanhado se reuniram na casa de Shoken. Respeitosamente, eles ofereceram, à ve-
lha gata, o lugar de honra, ajoelharam-se na sua frente e disseram modestamente: “- Nós
todos temos a reputação de sermos valentes. Nós treinamos nesse caminho e afiamos
nossas garras a fim de vencermos qualquer rato ou até mesmo as lontras ou as doninhas.
Jamais poderíamos acreditar que existisse um rato tão forte. Por qual arte você conseguiu
vencê-lo tão facilmente? Não faça disso um segredo, conte para nós.”
Então a velha gata riu e disse: “– Vocês, jovens gatos, mesmo sendo valentes, igno-
ram o verdadeiro caminho. É por isso que vocês deixam de ser bem sucedidos quando se
encontram diante de alguma coisa que vocês não têm a menor ideia. Mas, primeiro, me
digam como vocês treinaram?” Então um gato preto se aproximou e disse: “– Eu venho de
uma linhagem célebre em capturas de ratos. Assim, eu decidi prosseguir nesse caminho.
Eu sei saltar sobre altos biombos de dois metros. Eu sei entrar num buraco minúsculo
onde só um rato pode se enfiar. Desde criança, eu pratiquei todas as artes acrobáticas.
Mesmo acordando, quando eu não estou ainda totalmente presente, no momento em
que encontro meu espírito e eu vejo um rato correr sobre uma viga, de um salto, PLIF,
eu o apanho. Mas este rato era o mais forte que já encontrei e eu fui submetido ao mais
espantoso fracasso de toda a minha vida. Eu tenho vergonha disso.”
Então a velha gata disse: “Pobrezinho, isso no que você se exercitou não é propriamen-
te nada além de uma técnica, uma arte puramente física. Quando os antigos ensinavam
a técnica, para eles era apenas uma das formas do caminho. A técnica deles era simples,
mas havia, no seu seio, uma grande sabedoria. O mundo hoje em dia se ocupa unicamente
de técnica. Com certeza, muitas coisas foram inventadas dessa forma, de acordo com a
receita: ‘Com a condição de fazer isto ou aquilo, obtemos isto ou aquilo.’ Mas o que se
121
Antropologia da Arte
de si não entre em jogo. Senão, tudo está perdido. Se pensarmos no objetivo, mesmo de
uma forma fugidia, tudo se torna artificial. Somente se você está no estado onde você é
livre da consciência do eu, somente se você age sem agir, sem astúcia, abandonando toda a
intenção, treinando a não intencionalidade e deixando o ser atuar, então somente aí é que
você está no verdadeiro caminho. Esse caminho é inesgotável.”
E, depois, a velha gata acrescentou: “Você não deve acreditar que o que eu acabo de
vos dizer seja o que há de mais elevado. Não faz muito tempo, num vilarejo vizinho ao
meu vivia, um gato doméstico. Durante os dias ele dormia. Nada nele transparecia alguma
coisa que se assemelhasse a uma força espiritual. Ele estava lá estendido como um pedaço
de madeira. Ninguém jamais o tinha visto pegando um rato. Ora, lá onde dormia e vivia,
assim como nas redondezas, não havia ratos. Onde ele aparecia e se deitava não havia
mais nenhum rato.
Um dia, eu o visitei e perguntei como se podia interpretar esse fato. Eu não recebi
nenhuma resposta. Três vezes ainda, eu coloquei a minha questão. Ele se calou. Não era
que ele não queria responder, mas que ele não sabia o que responder.
Então eu soube: ‘aquele que sabe alguma coisa, não sabe que sabe’.
Esse gato doméstico tinha se esquecido dele mesmo e tinha, ao mesmo tempo, esque-
cido todas as coisas em volta dele: ele tinha se tornado ‘nada’ e tinha alcançado o mais
alto degrau da não intencionalidade. E nós podemos dizer que ele havia encontrado o
divino Caminho do cavalheiro: vencer sem matar. Eu estou muito longe atrás dele.” (Conto
tradicional africano, recolhido por Isaac Bernat, ver BERNAT, 2008, p. 288)
mas sim por como o fio do enredo será desenrolado daquela feita. Quanto ao
gosto popular, ele retém o que é essencial na história e na canção; o mais é
perdido no processo de transmissão. Como enfatiza Peter Burke:
Atividades de avaliação
1. Qual a função do conto no interior da cultura africana?
2. Quais as principais qualidades de um bom contador de história?
3. Que relação o contador de história deve estabelecer com a plateia?
4. Como o uso da máscara pode interferir na gestualidade corporal do ator?
tes. Não se sabe exatamente o que ele é. Sua ação, além de rodopiar, é agar-
rar alguém pelo braço, fazendo medo principalmente às mulheres e crianças.
Para soltar sua presa, é preciso que receba uma prenda em troca, seja em
forma de dinheiro ou de alimento.
Em muitos Reisados, porém, como denota sua própria peça de cha-
mada, o Jaraguá toma a forma de sua paródia alegre e transforma-se num
pássaro ou até numa girafa (talvez por causa de seu pescoço comprido). Sua
queixada ganha cobertura colorida e seu corpo, tecido estampado com flores.
Outras vezes, sua cabeça, confeccionada em madeira, tem crina e bico de
pássaro. Traz na boca um lenço ou uma espada para trocar por uma prenda
com a assistência. Já não é o bicho feio de que fala a segunda estrofe da
peça de entrada, mas o ‘passarim’ a que se refere a primeira.
A lista de elementos oriundos dos ritos mágicos nos folguedos popula-
res é praticamente inesgotável. Para ficar somente nos reisados cearenses,
poderia citar, ainda, o Urubu, que aparece nos Bois e Reisados de Careta
por ocasião da morte do Boi. Ele desempenha papel importante no episódio
da morte e ressurreição do Boi, assim como o abutre, ao lado da hiena, nos
ritos que explicam a origem do universo entre os povos Bambara e Malinké da
África Ocidental (Ver DIETERLEN, 1988, p. 27). De certo modo, a frequência
como as figuras de animais aparecem nos folguedos populares, fazendo so-
los ou formando dupla com personagens humanos, também tem relação di-
reta com a crença antiga das metamorfoses homem/animal e animal/homem.
Essa transformação fica mais evidente no último dia do ciclo de apresenta-
ções dos Bois do litoral cearense, que coincide com o dia 20 de janeiro, dia de
São Sebastião. Nessa data, se faz a Matança dos Bichos e o Boi é sacrifica-
do. No momento da sua morte, o detalhe mais significativo é que sua imagem
se funde à de São Sebastião, também amarrado e morto junto a um mourão.
Exemplos de outras figuras de animais ou entidades mágicas oriundas
de ritos populares carnavalizados que migraram para os Reisados e/ou ou-
tros folguedos populares são o Bode (e outros animais de chifre), oriundo das
mascaradas de Ano Novo medievais da Europa (PATUREAU, 1988, p. 62), o
casal de Velhos Caretas, os Cazumbas dos Bois maranhenses, os Mateus e
Catirinas dos Cavalos Marinhos e Reisados de Congos, os Palhaços das Fo-
lias de Reis, os Demônios das Quilombadas etc. Muitas dessas figuras eram,
originalmente, espíritos obscuros das florestas e de outros ermos desconhe-
cidos; alguns eram incorporados por meio de máscaras aterrorizantes que,
por muito tempo, encheram de medo a noite dos homens e, particularmente,
das mulheres e crianças. Pelo brinquedo e pelo riso, a festa popular, através
dos séculos, teve o trabalho de exorcizar esses fantasmas. Fez deles figuras
risíveis e simpáticas, babaus que já não privam as criancinhas do sono. Mas
se neles desaparece a função ritual, especialmente para as figuras cômicas,
136
BARROSO, O.
Porém esse teatro que reabilita uma ordem e consagra uma moral é
levado a delimitar seu espaço. Agora, depois de muito tempo, os anjos,
os diabos, os animais demoníacos ou somente bizarros são apagados
para dar lugar aos humanos, à afirmação do meio social e cultural. Os
fantasmas são civilizados em proveito de formas mais restauradoras
da ordem. Porém as máscaras, signos do além, imagens turvas do in-
consciente primitivo, estão prontas a surgir cada vez que o equilíbrio e
o sentido da vida moderna são postas em questão. As máscaras dos
cortejos comunitários continuam a delimitar um espaço de liberdade, de
anarquia, de extracotidiano. Elas funcionam nesse sentido como uma
válvula de escape social da violência e do descontentamento e parecem
então inofensivas e convenientes. Mas as máscaras oferecem também a
chance de outro discurso. Elas abrem fendas – sem perigo permanente,
sem consciência aplicada – na fortaleza de um discurso oficial afirmado
como única religião possível e tolerável (PATUREAU, 1988, p. 68).
Atividades de avaliação
1. Que diferença se estabelece entre o estilo narrativo dos griots e da Com-
media dell’Arte?
2. Marque a diferença entre a arte dos jograis e saltimbancos e a da Comme-
dia dell’Arte.
3. Como se deu o processo de “cristianização” da cultura popular na Europa
a partir do Renascimento?
4. Cite algumas estratégias de sobrevivência das culturas populares no Ocidente.
Texto complementar
Vitalino Pereira dos Santos
Mestre Vitalino, nasceu no Sítio dos Pintos, Caruaru, no dia 10 de Julho de 1909, filho de
Marcelino Pereira dos Santos e Josefa da Conceição. A cerâmica figurativa sempre o fasci-
nou. Tanto que Vitalino, aos 6 anos, fez seu primeiro trabalho. Dedicou-se também à arte
musical e aprendeu a tocar pífano. Foi músico e brincante de bandas de pífanos ou zabum-
bas, como eram chamadas. Mas a confecção de bonecos de barro, que vendia na feira,
era seu trabalho permanente. A fama chegou em 1945, depois do encontro com Augusto
Rodrigues, desenhista famoso e colecionador. Jornais e revistas de todo o país passaram
a dar atenção à arte da cerâmica popular. Em 1947, seus trabalhos foram expostos no Rio
e, em 1955, integraram a exposição “Artes Primitivas e Modernas do Brasil”, que fez gran-
de sucesso na Suíça. Revistas internacionais, então, se ocuparam do Mestre Vitalino. Sua
maior exposição, “A Noite de Caruaru”, ocorreu no Rio em 1960, promovida pelo Jornal de
Letras. Famoso e reconhecido como um dos maiores artistas populares do Brasil, Mestre
Vitalino faleceu no Alto do Moura, Caruaru, no dia 20 de Janeiro de 1963.
Francisco Domingos da Silva
Nasceu na localidade de Alto Tejo, estado do Acre, em 1910. Foi pintor, desenhista, sapa-
teiro e ajudante de marinheiro. Mudou-se para Fortaleza, indo morar no bairro de Piram-
bu aos 10 anos. Perdeu o pai alguns anos depois e começou a fazer todo tipo de serviço
(consertava sapatos e guarda-chuvas, fazia fogareiros de lata para vender, entre outras
coisas) para ajudar no seu sustento e de sua família.
Nos intervalos de suas caminhadas a procura de trabalho, parava em frente aos muros
e paredes das casas dos pescadores e fazia desenhos com carvão, giz e lascas de tijolos,
colorindo-os com folhas.
Semi-analfabeto e autodidata, ele pintava sem regras, mas com incrível habilidade.
Foram esses painéis que chamaram a atenção do artista e crítico suíço Jean-Pierre Cha-
bloz, que passou a procurá-lo pela cidade. Pelos moradores da Praia Formosa, Chico era
chamado de “indiozinho débil mental”. Chabloz perguntou para alguns habitantes quem
era o autor daqueles desenhos, mas a constante resposta que ouvia era: - “É um cara
meio louco. Um caboclo que veio não se sabe de onde; se diverte rabiscando os muros e
desaparece, sem deixar endereço”.
Chabloz não encontrou Chico facilmente, pois este, ao saber que um estrangeiro alto
e forte estava a sua procura, fugiu, achando que o suíço fosse um dos donos das casas de
140
BARROSO, O.
muros recém ornados por ele. Após o encontro, Chabloz ficou admirado com a simplicida-
de do artista e passou a incentivá-lo na pintura à guache; além de fornecer todos os mate-
riais para a produção dos trabalhos, Chabloz comprou mais de 40 obras prontas levando-
-as a diversas exposições (como o Salão Cearense de Pintura e o Salão de Abril de 1943).
Chico da Silva foi estimulado por Chabloz a desenhar e pintar cada vez mais. Essa ami-
zade e confiança mútua foi o suficiente para tornar as obras de da Silva, peças de qualida-
de para o mundo das artes.
Por ter sido criado, desde menino, frente às exuberantes paisagens da amazônia, com
cores e formas exóticas, a genialidade de Francisco da Silva floresceu, resultando em pin-
turas primitivistas (pinturas Naifs) e sedutoras para os olhos dos artistas, críticos e pesqui-
sadores do Brasil e da Europa.
Pintor de lendas, folclore nacional, cotidiano e seres fantásticos, Chico seduz o obser-
vador por sua originalidade, pela diversidade de cores e formas e pela genialidade nas pin-
turas primitivistas. Com seu talento e a influência de Chabloz, Francisco da Silva conseguiu
reconhecimento no cenário artístico mundial.
Nos últimos anos, a Secretaria de Cultura do Estado do Ceará conseguiu reunir vários
trabalhos do artista que pertenciam a Chabloz. Um deles tem exposição permanente no
Museu de Arte da UFC e outros fazem parte de acervos de museus e pinacotecas do mundo.
Em 1945, na companhia de Chabloz, Antônio Bandeira, Inimá de Paula e outros artis-
tas, expôs na Galeria Askanasy (Rio de Janeiro).
Chico da Silva não foi influenciado por nenhuma escola ou grupo específico. Na ver-
dade, ele criou um estilo novo. Fundou uma escola no bairro de Pirambu (onde cresceu)
formada por seguidores de suas obras.
Pela supervalorização de seus trabalhos, quis produzir cada vez mais obras recorrendo a
ajudantes para desenhar, deixando, para ele, somente a assinatura. Uma pesquisa estimou
que 90% dos quadros posteriores a 1972 eram falsos. Tal acontecimento cercou o artista de
aproveitadores que vendiam essas falsificações em qualquer lugar por pequenos preços.
Mesmo havendo questionamento de suas obras no mercado de arte, foi convidado a
participar da Bienal de Veneza em 1966, onde recebeu Menção Honrosa). Três anos de-
pois, Chabloz cortou relação com Chico, afirmando mais tarde, em uma entrevista para um
jornal, que estava insatisfeito com a qualidade do artista. Na década de 70, além de lutar
contra a falta de crédito de suas obras, enfrentou a perda da esposa e seus próprios pro-
blemas de saúde. Se recuperou fisicamente, mas não conseguiu sua recuperação artística.
Faleceu em Fortaleza no dia 6 de dezembro de 1985.
“Eu sou assim?”. A partir daí, fez milhares de imagens do Padim Cícero por encomenda. Só
para um comerciante do mercado de Juazeiro, disse ter feito mais de duas mil imagens.
Usava, preferencialmente, a madeira da imburana (árvore comum na caatinga) e seus
instrumentos de trabalho resumiam-se em canivetes, serras, machadinhas, formões, li-
mas e furadeiras.
Contava muitas histórias e uma delas é que por pouco não havia entrado para o bando de
Lampião, numa de suas passagens pela cidade. Não o fez por medo do que pudesse acontecer
no futuro, mas chegou a tomar uma cervejinha junto com os cabras do famoso cangaceiro.
Em 1963, Sérvulo Esmeraldo, um artista do Crato, de projeção internacional, lhe deu
uma série de gravuras da Via Sacra e lhe encomendou as matrizes em madeira. Ficou mui-
to satisfeito com o resultado do trabalho de Mestre Noza e resolveu levá-las para a França,
numa viagem que fez em 1965. Conseguiu produzir uma edição especial da Via Sacra de
Noza com apenas 22 exemplares impressos à mão e lançá-la em Paris; onde todas as peças
foram vendidas. O sucesso foi tanto que produziu uma nova edição de mil exemplares,
que também se esgotaran rapidamente.
A partir daí, as encomendas para o Mestre Noza aumentaram muito e o artista passou a
ser objeto de estudo em várias universidades, inclusive europeias. Participou de diversas expo-
sições com obras de escultura e xilogravura no Crato, no Recife, no Rio de Janeiro e em Paris.
É autor também de alguns rótulos de cachaça e foi sempre considerado o grande ar-
tista popular do Cariri.
Suas obras mais conhecidas são: a Via Sacra, uma coleção de 15 gravuras, cuja primei-
ra edição foi publicada em Paris (1965) pelo editor Robert Morel, com apresentação de
Sérvulo Esmeraldo; Os doze apóstolos (13 pranchas); e A vida de Lampião (22 pranchas).
É autor de inúmeras xilogravuras para ilustrar capas de folhetos de cordel, além de
milhares de estatuetas do Padre Cícero e de diversos santos, espalhadas pelo Brasil e pelo
mundo. Segundo ele, em matéria de imagens, além do Padre Cícero, gostava muito de
fazer as de São Francisco e Santo Antônio.
Doente, Mestre Noza foi morar em São Paulo, onde faleceu no dia 21 de dezembro de
1983, vítima de uma parada cárdio-respiratória.
Fonte: GASPAR, Lúcia. Mestre Noza. Pesquisa Escolar On-Line, Fundação Joaquim Nabuco, Recife.
Disponível em: <http://www.fundaj.gov.br>. Acesso em:26 set. 2009.
Nordeste brasileiro
Região de forte tradição oral, o Nordeste brasileiro é berço de grandes mestres da fala e con-
tadores de história, que pouco ficam a dever na arte de narrar aos griots africanos. Para citar
aqui apenas alguns exemplos fico com os de: Joaquim Fernandes de Souza, conhecido como
Seu Quinca, um senhor de 85 anos de idade, que mora em Cachoeira do Fogo, povoado locali-
zado no Município de Independência, Estado do Ceará; e o de Luiza Tereza dos Santos, falecida
aos 74 anos de idade em Natal, cuja memória guardava mais de 300 contos, e mereceu livro
organizado pelo folclorista Altimar Pimentel e publicado pela editora Thesaurus. (Ver reco-
mendações bibliográficas)
Pará. Voltou para Quixadá por volta de 1920 e só saiu dali em 1923, quando resolveu conhecer
o Padre Cícero. Rumou para Juazeiro, onde o próprio Padre Cícero veio receber o trovador que
já tinha fama. Algum tempo depois, foi a vez de cantar para Lampião, que satisfez seu pedido
— feito em versos — de ter um revólver do cangaceiro.
Tentando mudar o estilo de vida de cantador, em 1931, comprou um gramofone e
alguns discos que usava para divertir o povo do sertão, apresentando aquilo que ainda era
novidade mesmo na capital. Conseguiu o que queria, mas o povo ainda o queria escutar.
Logo depois, em 1933, teve a ideia de apresentar vídeos, que também deu certo, mas não
o realizava tanto. Resolveu se estabelecer em Fortaleza em 1942, onde veio a abrir uma
bodega na Rua da Bomba, No. 2. Infelizmente, o seu traquejo de trovador não servia para
o comércio e, depois de algum tempo, fechou a bodega com um prejuízo considerável.
Em 1945, então com 67 anos, Cego Aderaldo parou de aceitar desafios. Mas também,
já tinha rodado o sertão inúmeras vezes e conseguira ser reconhecido em todo lugar, can-
tara para muitas pessoas, inclusive muitas importantes, tivera pelejas com os maiores
cantadores. E, na medida em que a serenidade, que só o tempo trás ao homem, começou
a dificultar as disputas de peleja, ele resolveu passar a cantar apenas para entreter a alma.
Cego Aderaldo nunca se casou e diz nunca ter tido vontade, mas costumava ter uma vida
de chefe de família, pois criou 24 meninos.
(Texto extraído do livro “Eu sou o Cego Aderaldo”, prefácio de Rachel de Queiroz, Maltese Editora —
São Paulo, 1994)
Síntese do Capítulo
Filmes
VALDEMAR DOS PASSARINHOS – Documentário. Direção Rosemberg Ca-
riry, Cariri Filmes
O CEGO QUE VIU O MAR – Documentário sobre Pedro Oliveira, Direção
Rosemberg Cariry, Cariry Filmes.
Referências
ÁLVARES, Myriam Martins; Yãmîy – o canto e pessoa maxakali – in Músicas
africanas e indígenas no Brasil / Rosângela Pereira de Tugny, Ruben Caixeira
de Queiroz (Organizadores). – Belo Horizonte : Editora UFMG, 2006.
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O
Contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi, 2ª edição, São
Paulo: Hucitec/Edunb, 1993.
BARROSO, Oswald e CARIRY, Rosemberg: Cultura Insubmissa, Fortaleza,
Nação Cariri Editora, 1982.
BERNAT, Isaac Garson. O Olhar do Griot Sobre o Ofício do Ator: Reflexões a
Partir dos Encontros com Sotigui Kouyaté. Tese submetida ao Programa de
Pós-Graduação em Teatro do Centro de Letras e Artes da UNIRIO – Universi-
143
Antropologia da Arte
Sobre o autor
Oswald Barroso: Possui graduação em Bacharel em Comunicação Social
pela Universidade Federal do Ceará (1986), especialização em Form. Nac. de
Resp. por Estrut. e Proj. Art. e Cul pela Association Nat. Pour La Form. Et In-
formation Artistique Et Culturelle (1990), mestrado em Sociologia pela Univer-
sidade Federal do Ceará (1997) e doutorado em Sociologia pela Universidade
Federal do Ceará (2007). Atualmente é Professor da Universidade Estadual
do Ceará e Redator do Fundação de Teleducação do Ceará. Tem experiência
na área de Antropologia. Atuando principalmente nos seguintes temas: Reisa-
do, Teatro Popular Tradicional.
A não ser que indicado ao contrário a obra Antropologia da Arte, disponível em: http://educapes.capes.gov.br,
está licenciada com uma licença Creative Commons Atribuição-Compartilha Igual 4.0 Internacional (CC BY-SA
4.0). Mais informações em: <http://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/deed.pt_BR. Qualquer parte ou a
totalidade do conteúdo desta publicação pode ser reproduzida ou compartilhada. Obra sem fins lucrativos e com
distribuição gratuita. O conteúdo do livro publicado é de inteira responsabilidade de seus autores, não representan-
do a posição oficial da EdUECE.
Artes Plás�cas
F
iel a sua missão de interiorizar o ensino superior no estado Ceará, a UECE,
como uma ins�tuição que par�cipa do Sistema Universidade Aberta do
Brasil, vem ampliando a oferta de cursos de graduação e pós-graduação
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Antropologia da Arte
na modalidade de educação a distância, e gerando experiências e possibili-
dades inovadoras com uso das novas plataformas tecnológicas decorren-
tes da popularização da internet, funcionamento do cinturão digital e
massificação dos computadores pessoais.
Comprome�da com a formação de professores em todos os níveis e
a qualificação dos servidores públicos para bem servir ao Estado, Antropologia da Arte
os cursos da UAB/UECE atendem aos padrões de qualidade
estabelecidos pelos norma�vos legais do Governo Fede-
ral e se ar�culam com as demandas de desenvolvi-
mento das regiões do Ceará.
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