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Artes Plás�cas

F
iel a sua missão de interiorizar o ensino superior no estado Ceará, a UECE,
como uma ins�tuição que par�cipa do Sistema Universidade Aberta do
Brasil, vem ampliando a oferta de cursos de graduação e pós-graduação
Artes Plás�cas

Antropologia da Arte
na modalidade de educação a distância, e gerando experiências e possibili-
dades inovadoras com uso das novas plataformas tecnológicas decorren-
tes da popularização da internet, funcionamento do cinturão digital e
massificação dos computadores pessoais.
Comprome�da com a formação de professores em todos os níveis e
a qualificação dos servidores públicos para bem servir ao Estado, Antropologia da Arte
os cursos da UAB/UECE atendem aos padrões de qualidade
estabelecidos pelos norma�vos legais do Governo Fede-
ral e se ar�culam com as demandas de desenvolvi-
mento das regiões do Ceará.

Universidade Estadual do Ceará - Universidade Aberta do Brasil


Oswald Barroso

Geografia

12

História

Educação
Física

Ciências Artes
Química Biológicas Plás�cas Computação Física Matemá�ca Pedagogia
Artes Plásticas
Antropologia da Arte

Oswald Barroso

Geografia
3ª edição
Fortaleza - Ceará 9
12

História
2019

Educação
Física

Ciências Artes
Química Biológicas Plásticas Computação Física Matemática Pedagogia
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Sumário

Apresentação.....................................................................................................5
Capítulo 1 – Introdução....................................................................................7
1. Para uma crítica da modernidade......................................................................9
2. Premissas para um Novo Projeto Civilizatório.................................................14
3. O Artista Como Xamã.......................................................................................18
Capítulo 2 – Sobre a Origem do Homem.....................................................25
1. A Tese Modernista.............................................................................................27
2. As dificuldades em provar a superioridade do homem moderno...................29
3. Novas Descobertas da Ciência........................................................................35
Capítulo 3 – As Origens da Arte....................................................................47
1. Reparos e Advertências....................................................................................49
2. O Enigma das Catedrais de Pedra..................................................................51
Capítulo 4 – Arte, Magia e Máscara..............................................................75
1. Pensamento Selvagem e Magia......................................................................77
2. O Mana...............................................................................................................81
3. O Mágico e sua Performance...........................................................................85
4. Máscaras Rituais...............................................................................................89
Capítulo 5 – A Arte Tradicional Popular.....................................................105
1. O Belo e o Útil..................................................................................................107
2. Arte como Ofício..............................................................................................112
3. Mestres do Canto e da Palavra......................................................................115
4. A arte de Narrar................................................................................................119
5. O Imaginário Popular e seus Disfarces .........................................................128
Sobre o autor..................................................................................................144
Apresentação

Este é um livro diferente dos costumeiros manuais didáticos. Propõe-se a mar-


car um ponto de ruptura com visões e há muito estabelecidas sobre a arte e
a cultura nos meios acadêmicos e revisitar antigas percepções recuperadas
pelo pensamento conteporâneo. Busca colocar-se na atual discussão acerca
da responsabilidade do ser humano com o destino do Planeta, bem como da
necessidade da reintegração da arte na vida e do reencantamento do mundo.
Para tal, parte de uma crítica do pensamento moderno e de seu projeto
de civilização, confrontando autores e argumentos, instigando no leitor uma
atitude ao mesmo tempo curiosa e questionadora. Em seguida, sob esse mes-
mo ponto de vista crítico, revê teses sobre as origens do homem e da arte,
evitando os costumeiros enfoques que pecam tanto pelo antropocentrismo,
quando pelo eurocentrismo.
A partir de então, o livro procura estabelecer as premissas para a dis-
cussão dos fundamentos antropológicos da arte. Vai buscar tais fundamentos
na lógica do pensamento mágico ou anímico, que se assenta na percepção
sensível do mundo e na intuição, como móvel da criatividade, em contato
constante com o pensamento racional abstrato. Estabelece como próprio da
arte, a primazia da capacidade extática, e do inconsciente sobre o consciente
no processo criativo; e a participação indispensável do consciente no proces-
so construtivo, assim como no diálogo necessário entre ambos.
O livro mostra, em seguida, arte e magia como sinônimos de encanta-
mento, partilhando uma mesma origem ritual, numa orquestração de linguagens
múltiplas, onde não há separação entre protagonista e espectadores, espetá-
culo e vida. Tornar belo o mundo, renovar a vida em beleza, é inclinação da
natureza humana, como é dos pássaros encher as manhãs com seus cantos.
O livro revela o segredo dos mágicos e xamãs, mostra o como de seus
procedimentos e o porquê de seus poderes. Entra pelo universo enigmático
das máscaras, das danças, dos tambores, das encenações e dos transes
rituais. Transporta-se através de continentes e mares, atravessa eras e chega
aos griots, artífices e mestres do ofício, aos contadores de romances, trova-
dores e saltimbancos. Vai mais adiante e adentra ao rico cenário da cultura
popular brasileira. Caminha por entre as festas, folguedos, saberes e fazeres
tradicionais de nossa gente.
Em todas as unidades, como em todos os capítulos, trabalha interro-
gando, abrindo pistas, acrescentando informações e levantando novas ques-
tões. Nesse sentido, funciona também como uma introdução, uma abertura
para estudos mais aprofundados e como um guia para futuras pesquisas.

O autor
Capítulo 1
Introdução
9
Antropologia da Arte

Objetivo
• Buscar assentar as bases para um debate sobre a Antropologia da Arte, a
partir de uma crítica da modernidade e da tentativa de estabelecer algumas
premissas para um novo projeto civilizatório que incorpore um olhar diferente 1
José Abelardo Barbosa
sobre a arte. de Medeiros, o Chacrinha
(1917 – 1988), foi um
conhecido comunicador de
rádio, apresentador de TV e
1. Para uma crítica da modernidade de programas de auditório
nas décadas de 50 a 80,
Descobertas recentes (ou não tão recentes) no campo da ciência têm impli- que eternizou várias frases
cado em modificações profundas no pensamento humano, de modo geral, e nos seus programas, dentre
elas “Eu vim para confundir,
no pensamento acadêmico, de maneira particular. Especialmente, no cam- não para explicar!”.
po da física, estas descobertas têm mostrado de modo radical as limitações
das leis da física mecânica, assim como de toda uma ciência baseada no 2
O escritor John Powell
racionalismo positivista, hegemônico no universo acadêmico ocidental há delineia cinco tipos de
níveis de comunicação:
pelo menos três séculos. o primeiro nível é o da
Mostrando que o mundo real é constituído basicamente de vácuo, ou comunicação superficial;
seja, de um imenso espaço vazio (vazio que paradoxalmente é absolutamente o segundo, o da
comunicação de relatos
preenchido por fluxos de energia e mutações), onde minúsculas partículas e e fatos; o terceiro, os
ondas vibráteis se deixam por vezes perceber, a física quântica revoluciona julgamentos e as ideias;
o entendimento humano não apenas sobre a matéria, como sobre a própria o quarto, os sentimentos
natureza do real. O mundo material, tido até então como concreto e objetivo, e emoções; e o quinto
nível, o mais profundo
ou seja, com existência alheia à nossa subjetividade, revela-se absolutamente é o da autorevelação,
dependente da percepção do sujeito que com ele entra em contato. Em outras onde se compartilha
palavras, a realidade que percebemos é a um só tempo, a realidade que, a de forma verdadeira
nós, se deixa perceber, e a realidade que conseguimos perceber. todo o ser. Conferir:
http://comportamentos
Neste sentido, a realidade como é percebida pelos humanos, em gran- diferentes.nireblog.com/
de parte, é resultado de nossa subjetividade, não apenas de nossa formação post/2008/06/03/niveis-de-
étnica e de nossa capacidade imaginativa (muito mais do que supúnhamos), comunicacao-na-familia e
http://www.portaladventista.
como de nossos equipamentos de percepção (o corpo humano e todas as org/ministerios dafamilia/
suas extensões). Sendo assim, torna-se inconcebível a separação, que até index2.php?option=com_
muito recentemente se fazia (e que muitos ainda fazem até hoje) entre mundo content&do_pdf=1&id=25.
objetivo e mundo subjetivo, porque o que percebemos é nossa subjetividade
projetada no mundo. A física subatômica mostra inclusive que nossa percep-
10
BARROSO, O.

ção modifica o que é percebido, ou seja, ao percebermos algo já o estamos


modificando. De acordo com esse ponto de vista, uma percepção absoluta-
mente distanciada, absolutamente neutra, de qualquer realidade é não ape-
nas impossível, como falaciosa. Para os seres humanos, a realidade só existe
Ver série de DVDs: História
na forma como nós a percebemos, ou seja, a partir de uma percepção que
das Religiões, episódios nos é própria, isto é, sedimentada em nosso corpo e construída na coletivida-
sobre o cristianismo, o de como espécie, em sua existência no tempo e no espaço.
judaísmo e o islamismo.
Do mesmo modo, avanços recentes (ou não tão recentes) no campo da
Pegar referências nas
sugestões de DVDs. ecologia profunda, apontam na direção de um retorno da humanidade à natu-
reza, assim como no sentido de um reencantamento do mundo. A separação
radical entre natureza e cultura, operada pelo pensamento moderno, perde
seu fundamento e mostra-se perniciosa, pois se alimenta da noção de que a
natureza existe para servir ao homem, assim como de que este está autoriza-
do a servir-se da natureza, mesmo que em prejuízo desta.
A raiz desse pensamento está, possivelmente, na separação operada
pelas religiões monoteístas (ver Cristianismo, Islamismo e Judaísmo entre ou-
tras) entre Deus e natureza. Ao contrário das religiões panteístas, que conce-
biam (e concebem) a natureza, nela incluindo o ser humano, como emanação
de Deus (que por sua vez se multiplicam em inúmeros deuses particulares)
, essas religiões colocam Deus fora e acima da natureza, numa dimensão
apartada desta. Já a modernidade, com seu materialismo positivista, substi-
tuindo Deus pelos homens, desloca a espécie humana da natureza, a colo-
cando como senhora desta. Se a primeira operação, de retirada de Deus da
natureza, a dessacraliza, a segunda abre caminho para sua destruição.
Nas religiões monoteístas, o ser humano separa-se de Deus pelo peca-
do, ou seja, opera-se uma queda (não apenas do homem como do restante
dos seres) na qual o paraíso terrestre transforma-se num “vale de lágrimas”.
Com o “pecado original”, tanto o homem quanto a natureza perdem seu cará-
ter sagrado, apartando-se de Deus. Aparece uma natureza decaída, sendo o
homem redimido pela purgação do pecado e pelo perdão divino. Mas como a
natureza permanece fora de Deus, só com a morte surge a possibilidade do
homem se reintegrar ao sagrado.
Ao eleger a racionalidade como atributo que coloca os humanos acima
dos demais seres, deles apartado por uma qualidade superior, a modernida-
de substitui Deus pelo Homem. Despreza o que nos homens seria comum a
outros seres e erige a razão como medida de superioridade e de afastamento
destes da natureza. Ainda mais, separa o cérebro do restante do corpo huma-
no e define o letramento como instância da grande cultura. No documentário
cinematográfico de Victor Lopes, Vidas em Português, o grande escritor José
Saramago, criticando o empobrecimento da língua falada e escrita, afirma es-
11
Antropologia da Arte

tar havendo uma involução. Explica que estamos perdendo, com a pobreza
vocabular crescente, a complexidade da expressão humana dantes alcança-
da, inclusive para falar de sentimentos. Brincou dizendo que desse modo va-
mos voltar aos tempos primitivos, declarando nosso amor por alguém através
de um grunhido, como faziam os homens então.
Parece-me que aí está um bom exemplo do humanismo moderno, que
vê na complexificação da língua o índice por excelência do desenvolvimento
humano. Ora, o equívoco é facilmente demonstrado. Em primeiro lugar, os ho-
mens ditos primitivos não expressavam seus sentimentos apenas por grunhi-
dos, porém com o corpo todo, de modo talvez tão complexo quanto nós. Em
segundo lugar, não se pode ligar complexidade com evolução obrigatoriamente.
Muitas sociedades altamente complexas, como a egípcia, por exemplo, eram
marcadas por estruturas bem mais autoritárias que as da maioria das socieda-
des ditas primitivas. E em terceiro lugar, se na modernidade ocidental houve um
hiperdesenvolvimento da racionalidade nas línguas humanas, isto se deu em
detrimento dos outros meios de expressão e comunicação. O homem moderno,
hipervalorizando o pensamento cerebral, atrofiou os outros recursos corporais
de percepção e comunicação. Ou seja, se ganhou complexidade no letramento
e no vocabulário lingüístico, perdeu na expressividade do corpo e na sutileza da
percepção sensorial. O que se vê agora, com o crescimento dos multimeios de
comunicação, é a recuperação de muitos recursos da expressividade humana,
embora em prejuízo da riqueza vocabular, não poucas vezes. Talvez o que se
constate é a busca do reequilíbrio perdido, com a modernidade, entre os dife-
rentes recursos corporais no campo da percepção e da comunicação.
Ver livro: As Conseqüências
Como decorrência desse modo de pensar, a modernidade desenvolve da Modernidade, de
um projeto civilizatório antropocêntrico, convencido de que a natureza existe Anthony Giddens. Pegar
para servir ao homem. Outra não é a substância do humanismo moderno e referências nas sugestões
de leitura.
da racionalidade positivista da ciência ocidental, ideologia que norteou todo
o projeto civilizatório da modernidade. Pelo menos, desde o fim do renasci-
mento até os dias atuais, esta tem sido a “religião” hegemônica no Ocidente.
Tanto em sua forma capitalista quanto em sua forma dita socialista, a
civilização moderna assenta seu projeto na economia e na política, pilares a
serviço dos quais se estabelece seu projeto de desenvolvimento humano e
cultural. Submetida a lógicas econômicas, a espiritualidade se mercantiliza,
serve ao mundo do trabalho e da produção. Como outras instâncias da cultura,
a arte se desenvolve atrelada à economia, num campo de disputas intestinas,
movido a interesses monetários e políticos. Em nome de um conhecimen-
to dito científico, experimental e empírico, o saber popular é desacreditado,
condena-se a magia e o mito, elegendo a objetividade da ciência como critério
único da verdade. As grandes religiões se institucionalizam em hierarquias
12
BARROSO, O.

rígidas e autoritárias, adequando-se às conveniências do capital, enquanto a


religiosidade do povo é tratada como fonte de ignorância e alienação. A lógi-
ca pragmática considera supérflua qualquer possibilidade de transcendência
e o mundo se desencanta. Concebe-se a história de maneira evolucionista,
como uma sucessão de etapas, hierarquizadas no tempo, onde o passado é
o atraso e o futuro o progresso, indo do selvagem ao civilizado, da natureza
à cultura, do primitivo ao moderno, do animal ao humano, da magia à ciência
etc., e em que cada época representa uma superação melhorada da anterior.
Muitos sociólogos e cientistas políticos falam de uma pós-modernida-
de, que na verdade é um prolongamento e exacerbação da modernidade,
caracterizada por uma globalização a partir do mercado, pelo fim da alter-
nativa socialista a um capitalismo neoliberal, pela ausência de projetos po-
líticos diferenciados e pela penetração do capital em espaços ainda intoca-
dos da atividade cultural. O resultado dessa globalização, midiatizada pelo
mercado com a utilização de uma desenvolvida tecnologia digital, além de
facilitar a formação de grandes redes internacionais de criminalidade (como
a pedofilia e o tráfico de drogas), foi um crescente processo de homogenei-
zação cultural, apagando diferenças na conformação de uma indústria de
comunicação de massas em âmbito mundial.

Saiba mais
O Fórum Sociail Mundial (FSM) é uma mobilização “altermundialista”, organizada por mo-
vimentos sociais de diferentes continentes, com o objetivo de propor formas civilizatórias
alternativas para uma transformação social no Planeta. Tem como dístico: Um outro mun-
do é possível. Proposto como um contraponto ao Fórum Econômico Mundial de Davos, na
Suiça, em data coincidente (de janeiro), atualmente realiza-se em datas diferentes, uma
vez por ano. Trata-se de um espaço aberto e democrático, alternativo à globalização capi-
talista e ao “pensamento único neo-liberal”, que reúne dezenas de milhares de represen-
tantes dos mais diferentes movimentos sociais, assim como de grandes personalidades
e líderanças planetárias. Com uma participação em crescimento (de 10.000 pessoas, na
primeira, a 120.000, de 150 países, na última edição), os fóruns tiveram início em 2001. Os
três primeiros foram em Porto Alegre (Rio Grande do Sul), o quarto em Bombaim (Índia), o
quinto em Porto Alegre, o sexto em três cidades: Caracas (Venezuela), Karachi (Paquistão)
e Bamako(Mali), o sexto em Nairóbi (África), o sétimo foi descentralizado e o nono em
Belém do Pará. Entre outras, são discutidos, nas edições do FSM, temas como sustenta-
bilidade ambiental, aids, paz e conflito, juventude, situação das mulheres, migrações e
perseguições, dívida externa, os sem-terras e a privatização de bens comuns etc.
13
Antropologia da Arte

Como reação a esse estado de coisas, se propõe, em primeira instân-


cia, uma atitude que mais parece de adaptação. Neste sentido, fala-se em
investimentos na criatividade, em novos avanços na substituição do homem
pela máquina, em tecnologias que dispensam uma mão de obra numerosa,
na priorização de projetos voltados à indústria cultural e ao turismo, na eco-
nomia da cultura, na arte direcionada para projetos sociais, que combatam a
violência e desviem os jovens das drogas e da criminalidade. Seguindo este
parâmetro, os projetos culturais e artísticos passam a ser avaliados por um
viés econômico e social, que inclui a educação para o trabalho, o combate a
mazelas sociais (como o tráfego de drogas, a violência marginal etc.) e a ge-
ração de emprego e renda. O resultado é que conseguem retirar os jovens do
ócio, porém, em contrapartida, quase sempre, também do sono e do sonho.
Para outra corrente de pensamento, que inclui desde físicos, ecologis-
tas, filósofos, teólogos, artistas, até movimentos sociais (como os Fóruns So-
ciais Mundiais, o Green Peace, os movimentos ecológicos, a Via Campesina,
o MST etc.), estes fenômenos políticos e econômicos, assim como estas ino-
vações no capitalismo, longe de apontar para uma nova era civilizatória, si-
naliza o estertor da modernidade, abalada por crises econômico-financeiras
cada vez mais agudas e pela perspectiva de grandes catástrofes ecológicas.
Para esses militantes-pensadores trata-se de inaugurar um novo
projeto civilizatório para a humanidade, que faça a crítica, pelo menos, dos
últimos quatro séculos de modernidade. As mudanças exigidas no compor-
tamento humano são radicais e implicam retomadas de caminhos há muito
abandonados pelo Ocidente. O eixo dessa mudança de paradigmas inclui,
pelo menos, em primeira instância, cinco grandes questões, ou seja: o re-
encantamento do mundo, a recolocação dos seres humanos na natureza,
a quebra de barreiras entre natureza, cultura e sociedade, a relativização
do saber científico e a recuperação do saber tradicional, e o rompimento
com toda e qualquer idéia evolucionista valorativa. Como conseqüência,
exige um projeto que seja planetário, isto é, parta da idéia da Terra como
um grande ser vivo, que precisa ser preservado e renovado.

Atividades de avaliação
1. Ao seu ver, quais as principais contribuições da modernidade para o desen-
volvimento social?
2. Em que sentido a modernidade pode ser considerada antropocêntrica?
3. Em que medida a modernidade contribuiu para o desprezo do homem pela
natureza?
14
BARROSO, O.

2. Premissas para um Novo Projeto Civilizatório


O processo de hominização data de pelo menos 20 milhões de anos, sendo que
o homo sapiens, espécie a qual nós pertencemos, tem sua origem há cerca de
40.000 a 45.000 anos. Descobertas arqueológicas mostram que muitas linha-
gens hominíneas surgiram e desapareceram ao longo dos tempos, assim como
muitas delas coexistiram em um mesmo espaço durante milhões de anos. Algu-
mas dessas espécies, inclusive, apresentavam capacidade craniana superior
à do homo sapiens. É possível, mesmo, que muitas dessas espécies hajam
desaparecido devido à excessiva especialização e adaptação ao meio em que
viviam, o que as tornou inaptas à sobrevivência com o advento de mutações
ecológicas ou simplesmente climáticas. (KI-Zerbo, 1972, pp. 52 a 60)
Estas observações valem para relativizar a importância, no trajeto da hu-
manidade, do que a ciência chama de tempos históricos, notadamente quando
eles são circunscritos aos períodos e civilizações que utilizavam e utilizam a escri-
ta. Quando, hoje, se observa sobrevivências de certas construções do paleolítico
e do neolítico, nos surpreende a qualidade da técnica e da engenharia nelas con-
tidas. Deste modo, mostra-se despropositado reduzir a história a três ou quatro
mil anos, para daí concluir por um processo em progressão da humanidade. No
mínimo, ao se proceder assim, atrofia-se a ótica do observador na apreciação do
périplo humano, amesquinhando a perspectiva de seu julgamento.
Ao se alargar a abrangência da história dos povos e civilizações, fe-
nômenos como a retirada de Deus da natureza, assim como a posterior re-
tirada dos seres humanos do seu âmbito, mostram-se surpreendentemente
recentes. Até o advento das grandes religiões monoteístas contemporâneas,
no caso o cristianismo, o islamismo e o judaísmo, a idéia de uma natureza
separada de Deus era inconcebível. Na grande maioria das religiões, não ape-
nas a natureza é manifestação inseparável do divino, como cada um de seus
elementos corresponde a um deus em particular. Embora a noção de trans-
cendência esteja presente na concepção de Deus dessas religiões, sendo Ele
um grande espírito que perpassa todas as coisas, esta entidade geral nunca
se descola de todo da dimensão real do universo. Isto é, apareça com o nome
de Zeus, Espírito Santo (no catolicismo popular), Brahma ou Oxalá, Deus é
imanência, ou seja, vida que toma forma em tudo o que existe. Assim, para
essas religiões, a separação entre sagrado e profano é inconcebível, o univer-
so é sagrado e encantado, isto é, tem alma, que pode se manifestar, enquanto
matéria, de diferentes formas, conforme a percepção de quem o observa.
Estas noções de realidade, comum a muitas religiões, entre as quais
as religiões nativas da África e das Américas, assim como a maioria das reli-
giões orientais (entre elas o hinduísmo, o budismo e o taoísmo), segundo foi
demonstrado por Fritjof Capra (ver O Tao da Física e Ponto de Mutação) de
15
Antropologia da Arte

certa maneira é recuperada pela Física Quântica, como veremos ao longo


deste livro. Uma primeira grande percepção é que no Cosmos tudo é vivo e
que a diferenciação entre seres animados e inanimados é impertinente. Uma
segunda é que no Planeta, concebido como um imenso ser vivo, tudo está
ligado, formando um único ecossistema, em que cada ser tem parte na pre-
servação e renovação do todo.
Sendo assim, advoga-se para os seres humanos, uma cosmovisão,
que os traga de volta à natureza, para que contribuam com sua recuperação e
enriquecimento, exercendo a função que lhes cabe, enquanto consciência do
Planeta. Ao mesmo tempo, que reponha Deus na Terra, reencantando o mun-
do, e desautorizando qualquer pretensão humana de valer-se da natureza a
seu bel prazer. Esta virada ontológica não apenas descredencia a pretensão
de que a natureza existe para servir aos homens, como a ressacraliza, exigin-
do em relação a ela o respeito que se exige para com os deuses.
Entendendo a espécie humana como parte da natureza (e não desta-
cada dela, como o fez a racionalidade moderna), o resultado de seu fazer,
em conseqüência, também é natureza, ou mais precisamente, natureza pro-
duzida por homens e mulheres. Portanto, um novo projeto civilizatório só terá
conseqüências benéficas ao Planeta se conceber a cultura como um prolon-
gamento da natureza ou, melhor dizendo, uma parte desta.
Seguindo a mesma linha de pensamento, as sociedades humanas, as-
sim como as sociedades animais (sendo a humana também uma sociedade
animal), são como grandes ecossistemas. Tanto quanto as abelhas ou as for-
migas, os lagos ou as bacias fluviais, as sociedades humanas podem jogar
um papel na renovação ou destruição do Planeta, papel diferenciado na qua-
lidade, pois tendo a capacidade de mediar sua relação com a Terra, os seres
humanos têm uma maior responsabilidade na sua preservação.
Surpreendente é que muitas noções só alcançadas agora pelas ciên-
cias ocidentais, como algumas acima mencionadas, já eram corriqueiras para
muitas civilizações ditas primitivas, em várias épocas históricas e espaços
geográficos. Do mesmo modo, descobertas recentes da farmacologia, da bo-
tânica e da medicina, para citar apenas alguns campos da ciência, reafirmam
conhecimentos há muito dominados pelo saber popular.
Sabe-se que, mesmo na Europa Ocidental, pelo menos até o Renascimen-
to, magia e ciência eram saberes compartilhados por sábios e populares. Copér-
nico e Galileu, por exemplo, eram astrônomos e astrólogos, química e alquimia
dialogavam enquanto saberes válidos, ou seja, magia e ciência, longe de serem
excludentes, eram consideradas conhecimentos complementares. Na grande
maioria das civilizações, o mesmo diálogo acontecia e até hoje acontece no Orien-
te, onde a medicina científica convive com saberes de fundamentação mágica,
16
BARROSO, O.

como a acupuntura, a iridologia, o shiatsu e os estudos ungueais. Enquanto isto,


no Ocidente, práticas como a homeopatia, largamente difundidas, que utilizam
procedimentos fundados na magia simpática, só recentemente passaram a ser
reconhecidas como procedimentos válidos pelos cursos de medicina. Enquanto
no Ocidente a medicina caminhava para a fragmentação do corpo humano, para
a especialização profissional, e para o desenvolvimento de procedimentos cirúrgi-
cos, no Oriente se insistia em tratar o corpo humano de modo integral, procurando
conhecê-lo a partir de sinais exteriores em seu estado vivo.

Saiba mais
Acupuntura é um ramo da Medicina tradicional chinesa, que consiste num método tera-
pêutico de aplicações de agulhas ou outros tipos de estímulo, em determinados pontos
do corpo.Além de agulhas, são também utilizados o aqueximento promoido por moxa,
um bastão de artemísia em brasa, que é aproximado da pele para aquecer o ponto de
acupuntura.
Shiatsu é um processo de harmonização do corpo físico e emocional que, por meio de
massagens, ativa linhas de energia e desbloqueia tensões, corporais promovendo o seu
equilíbrio e ativando seu potencial de energia. Baseia-se numa visão psicossomática das
funções e sistemas corporais, votando-se para a compreensão e unificação do indivíduo,
integrando sua psique ao seu corpo e suas emoções à sua estrutura física.

Com o avanço do capitalismo industrial na Europa e das ciências ditas


exatas, como a física mecânica e a matemática, o pensamento racional ganhou
precedência sobre outras lógicas e formas de apreensão do mundo. O fazer
torna-se mais importante que o saber e o positivismo cartesiano mostra-se bem
mais apropriado, que todos os saberes tradicionais, ao desenvolvimento tec-
nológico e produtivo. O pragmatismo ganha terreno inclusive entre as religiões,
sendo inegável a influência do pensamento racional na reforma protestante e
na contra-reforma católica. Os saberes tradicionais são estigmatizados como
heréticos e supersticiosos. Bruxas e magos são queimados. Quando tolerados,
os saberes tradicionais são estigmatizados como inferiores e abandonados às
camadas pobres da população. A ciência passa a ser a fonte única da verdade
e a comprovação empírica a instância de legitimação da mesma.
Alguns séculos depois, paradoxalmente, descobertas científicas e
avanços tecnológicos, realizados no próprio Ocidente, alargam a consciên-
cia humana da percepção de seus limites, ou seja, da reduzida capacidade
de perceber a realidade em seus diversos aspectos e dimensões, bem como
da impossibilidade do pensamento racional (por si só) explicar o sentido da
vida. Nessa direção contribuíram enormemente não apenas revelações da
17
Antropologia da Arte

física quântica, como a cibernética e a tecnologia desenvolvida através de


computadores, que ao lado de uma linguagem digital (absolutamente simbóli-
ca e convencional), desenvolveu uma linguagem analógica, mais próxima da
comunicação artística e do pensamento mágico (pela utilização de ícones).
Tendo como referência o conjunto de percepções dos seres que com-
põem a paisagem natural (sejam minerais, vegetais ou animais), sabe-se
hoje que os humanos só conseguem perceber cerca de um por cento de seu
entorno, chegando a três por cento se contarmos com o auxílio de nossas
extensões tecnológicas. Desse modo, a pretensão não apenas de encontrar
verdades objetivas fica comprometida, como até mesmo de uma suposta su-
premacia dos humanos sobre os demais seres.
A idéia de uma evolução do homem e das sociedades por ele criadas,
mesmo que de modo fragmentário, cíclico ou descontínuo, em direção ao pro-
gresso e ao aperfeiçoamento, perde consistência. O mesmo acontece com a
tese utópica das religiões monoteístas e das ideologias materialistas de um
paraíso no final dos tempos. Ganha terreno a percepção de que não há uma
ligação obrigatória entre desenvolvimento tecnológico, crescimento econômi-
co e bem estar social. As relações entre tendências humanas opostas, como
competição e cooperação, violência e pacifismo, egoísmo e generosidade,
individualismo e coletivismo, já foram mais equilibradas em sociedades dis-
tribuídas desigualmente por diferentes épocas e espaços. Nada nos diz que
este equilíbrio, quando obtido, não será sempre precário e temporário.
Nas religiões, em que não se configurou a queda do homem pelo peca-
do e sua retirada da natureza, a utopia, o paraíso e a eternidade, a transcen-
dência, enfim, não são alcançadas após a morte, mas em momentos espe-
ciais durante a vida, em lampejos de encantamento, onde a essência divina
nos homens se manifesta. Momentos em que os deuses tomam a forma hu-
mana, incorporados a partir de máscaras, que definem novas dimensões do
ser. Nessas culturas, a eternidade nos é contemporânea, assim como o para-
íso utópico (seja celeste ou terrestre), já que realidades reveladas no encontro
do grande espírito, que faz dos seres humanos parte de Deus e da natureza.

Atividades de avaliação
1. Qual a diferença entre religião, filosofia e ciência?
2. Em que princípios estaria assentado um novo projeto civilizatório para a
humanidade?
3. Por que se diz que ao ser humano é impossível uma apreensão objetiva da
realidade?
18
BARROSO, O.

3. O Artista Como Xamã


O grande poeta cearense, Patativa do Assaré, cujo centenário de nascimento
foi comemorado em março de 2009, costumava dizer que não fazia meio de
vida de sua arte, porque ela era um dom divino, um privilégio que Deus lhe
havia concedido. Além de sua face de poeta cidadão, defensor dos pobres
e oprimidos, Patativa notabilizou-se por sua ligação com a natureza, sendo
conhecido como poeta pássaro. Poeta pássaro não apenas porque se tinha
como uma força da natureza, como porque cantar era a sua vida. Quem o
conheceu sabe, que o poeta pouco conversava e falava em prosa. Criava po-
emas a propósito de tudo. Se não os declamava de improviso, ruminava seus
versos por algum tempo, para depois torná-los públicos, quase sempre de viva
voz, embora registrasse alguns deles, em escrita, para posterior publicação.
Patativa vivia em estado permanente de criação. No início, como ele
mesmo revelou, buscava os versos. Por último, estes já vinham a ele prontos,
inclusive em sonhos. Isto porque à facilidade natural, de quem se criou num
ambiente em que poesia e poeta eram valorizados, Patativa acrescentou o
hábito desenvolvido ao longo da vida, na forma de técnicas xamânicas, ou
seja, de fazer brotar a inspiração. Assim, estivesse na roça, em casa, ou em
uma entrevista na televisão, Patativa tinha o corpo ligado: se estava na roça,
via “um verso em cada ganho, um poema em cada flor”, se estava em um
escritório, a poesia aparecia entre livros, papéis e canetas.
Destaque
O poeta de Assaré, assim como o mestre de ofício e o artífice em geral,
nas comunidades tradicionais (incluindo aí os brincantes – poetas, cantores,
atores, dançarinos, bonequeiros etc.), trabalham por hábitos incorporados.
Mesmo quando não há encomendas, ou quando não há previsão de apresen-
tações, eles estão em permanente exercício da arte. Caso típico é o de algu-
mas “artesãs”, extraordinárias artistas do bordado, como as labirinteiras das
praias cearenses, que trabalham permanentemente na elaboração demorada
de peças refinadas e complexas, como enxovais de noivas, para venderem
no final a atravessadores por preços insignificantes, frente ao labor que de-
senvolvem. Elas explicam que assim procedem “por distração” e porque é
o que sabem fazer. Assemelham-se, no caso, a aranhas tecendo suas teias
infinitamente, como a dar sentido às suas vidas.
O artista no cotidiano cria com o corpo todo. “Recebe o santo”, chegam-
-lhe as formas artísticas. Ele é ao mesmo tempo um ausente da realidade e o
Sobre o assunto, ver livro:
KEOWN, Damien - O mais presente nela. Vive numa dimensão outra, a da poesia. Está ligadíssimo
Budismo. Lisboa: Temas e ao seu entorno, mas numa dimensão que não é a da vida vulgar, a da con-
Debates, 2002. corrência, do comércio, ele vive, como se diz, nas nuvens. Porém este nas
19
Antropologia da Arte

nuvens quer dizer, em nuvens que lhe estão próximas, que baixam sobre ele,
que tomam seu entorno. Melhor dizendo, nuvens que dele brotam, porque os
deuses que possuem o artista, já estavam neles. No momento da incorpora-
ção se expandem, tomam todo o tempo e espaço do seu corpo.
O estado de nirvana, no budismo, é obtido por uma busca de alhea-
mento não só do entorno (em sua dimensão cotidiana), como de si mesmo.
No taoísmo (particularmente) se distingue três tipos de estágios no desenvol-
vimento humano: o dos homens e mulheres prisioneiros de seus egos, em que
o poder e a riqueza, o rancor e a ambição (entre outras tendências destrutivas)
dominam seus corpos; o dos homens e mulheres que conseguiram controlar
suas paixões egoístas, desenvolvendo sentimentos altruístas, de generosida-
de, solidariedade e compaixão, obtendo equilíbrio e serenidade; e o terceiro
estágio, o dos budas, daqueles que, ultrapassando o bem e o mal, se estabe-
lecem na transcendência. Diz-se que muitos monges budistas já poderiam dar
este terceiro passo, mas optam por ficarem no segundo, com o fim de ajudar
na evolução dos que lhes cercam.
Usando esta referência, o artista seria um ser híbrido, com um pé na trans-
cendência e outro no cotidiano, ou melhor, com os sentidos nas paixões, o cére-
bro na razão, mas com todo o corpo no transe. Ele pode ter um acervo menor ou
maior de informações, gerando uma arte mais ou menos complexa; ele pode ter
mais ou menos recursos técnicos (com formação acadêmica ou não), porém lhe
é indispensável a qualidade do insight e a frequência da inspiração. Talvez um
corpo formado por vivências múltiplas, que podem ou não incluir leituras, sonhe
um delírio mais informado. Também é possível que ao processo criativo seja ne-
cessário certo controle racional, entretanto cabe ao artista ultrapassar a racionali-
dade, trabalhar com o inimaginável, muito mais do que com o imaginável.
No ano de 1996, o Sepultura, grupo mineiro de thrash metal, com proje-
ção internacional, desenvolveu um diálogo musical com os índios xavante do
leste do Mato Grosso, que resultou na gravação da faixa Itsári, do seu álbum
Roots, lançado então. Durante as trocas culturais, chamou a atenção dos
índios não apenas a música barulhenta de Igor Cavalera e seus parceiros,
mas o modo estudado e minucioso como eles trabalhavam cada número.
Sereburã Xavante, o autor da canção gravada no álbum do Sepultura,
explicou como os xavantes criam suas músicas. “– A gente se prepara para
ter o sonho desejado, colocando um tipo de pauzinho no furo da orelha. Cada
pauzinho puxa determinado tipo de sonho.”, disse Suptó Xavante traduzindo
as palavras de Sereburã ditas na língua lá deles. E completou: “- A gente se
concentra no sonho para poder revelar a música que vem nele. Essa agora
foi o canto da madrugada, veio do pauzinho que ele está usando. Os adultos
cantam em cada casa quando está amanhecendo.”
20
BARROSO, O.

Suptó Xavante conta que a canção Itsári, gravada no álbum do Sepultura,


foi escolhida pelo grupo mineiro entre os muitos cantos rituais mostrados pelos
xavantes, quando em visita à sua aldeia no Mato Grosso. Itsári é uma canção
de cura, para recuperar aqueles que estão à beira da morte. “- No show, nós
cantamos para curar a platéia”, disse Suptó. (Este diálogo foi retirado da série
de DVDs: Música do Brasil – Disco 3, Música para Índios, Bloco: Sepultura e
Xavantes, Roteiro e Pesquisa: Hermano Vianna, Direção: Belisário Franca. Pro-
dução: Giros Produções e Produções Abril; Realização: Abril Entretenimento.)
Destaque
Sepultura: Banda de thrash metal formada em 1984, em Belo Horizonte e
mais popular nos Estados Unidos do que no Brasil, canta apenas em inglês.
O primeiro disco, “Bestial Devastation”, dividido com a também banda mineira
Overdose, foi lançado em 1985 por um selo independente, seguido por “Mor-
bid Visions” no ano seguinte. Com a entrada de Andreas Kisser na guitarra
gravaram “Schizophrenia”, que os projetou internacionalmente.
No ano seguinte assinaram contrato com a gravadora americana Roa-
drunner e passaram a se dedicar a conquistar o mercado externo. “Beneath
the Remains”, lançado em 1989, foi aclamado pela crítica especializada e fez
com que a banda se tornasse mais conhecida no Brasil e no resto do mundo,
fora dos EUA.
Em 1996 vieram ao Brasil pesquisar e gravar sons e ritmos das tribos
indígenas para lançar “Roots”. No mesmo ano, a saída do vocalista e líder
Max Cavalera causou contratempos, pois a banda decidiu não se desfazer e
teve que procurar um vocalista substituto, que acabou sendo Derrick Green,
oficialmente parte da banda desde junho de 1998. A formação do grupo ficou
assim: Derrick Green, substituto de Max Cavalera, voz e guitarra; Igor Cava-
lera, bateria; Paulo Jr., baixo; Andreas Kisser, substituto de Jairo T, guitarra.
“Against”, lançado em 1998, foi o primeiro CD do grupo depois da saí-
da do antigo vocalista. O álbum traz algumas experimentações interessantes,
como a percussão do grupo japonês Kodo. Contudo, a obra reflete ainda um
período conturbado para a banda. Talvez por isso, não tenha sido muito bem
aceito pelos fãs e pela crítica especializada.
Em 2002, sai o duplo ao vivo “Under a Pale Grey Sky”. O disco é um
registro de um dos shows da turnê do álbum “Roots”, gravado em 1996, ainda
com Max Cavalera nos vocais. Somente no seguinte, chegava às lojas o iné-
dito “Roorback”. Considerado melhor que os anteriores “Against” e “Nation”, o
disco deixou claro a intenção da banda de voltar às raízes.
Ainda em 2003, o Sepultura participou do festival Kaiser Music e teve
a honra de dividir o palco com um dos grandes nomes da história do Rock
21
Antropologia da Arte

Mundial, o Deep Purple. Em 2004, o grupo volta a fazer turnês internacionais,


ao lado da banda Motörhead.
O último trabalho do Sepultura, “Live In São Paulo” foi lançado em CD e
DVD, em 2005. Trata-se do primeiro show gravado desde o vídeo Under Siege
- Live in Barcelona, de 1992. Músicas como “Troops of Doom”, “Sepulnation”,
“Territory”, “Choke”, “Arise” e “Escape to the Void” são alguns dos destaques
deste álbum duplo, que contou com várias participações especiais, incluindo
Zé do Caixão, João Gordo e B-Negão.
Alguns artistas e teóricos falam do transe criador como um movimento
em direção aos deuses, outros falam de um movimento dos deuses em dire-
ção ao artista. Muitos ainda relacionam estes dois movimentos como com-
plementares. Talvez seja mais apropriado se referir a um só movimento, o do
artista cedendo espaço para os deuses que carrega dentro de si, fazendo
desencantar os arquétipos (na forma de figuras e seres em geral) nele ocultos
em estados muitas vezes incipientes. Cabe, então, ao artista a “iluminação”,
seguida por sua dilatação, por seu preenchimento com gestos, traços, pala-
vras e outras elaborações estéticas, construindo e dando acabamento cons-
ciente ao que foi esboçado intuitivamente.
Em “O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase (Ver: Mircea
Eliade, O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase, São Paulo; Martins
Fontes, 2002. p. 16), Mircea Eliade descreve o desenvolvimento dos xamãs,
como a aquisição de um acervo de técnicas apreendidas e de experiências
vivenciais, que são aproveitadas na execução dos ritos, eles mesmos uma
sequência de procedimentos rigorosamente ordenados e prescritos. (7) Re-
cursos, como as máscaras, fazem partir o processo “mediúnico” do exterior,
ou seja, partem da máscara e evoluem no sentido da contaminação completa
do corpo. Iniciam-se por processos técnicos e conscientes e caminham no
sentido da iluminação. Já outros, iniciam com a suspensão de qualquer ra-
cionalidade na busca do transe e, a partir dele, completam-se com técnicas e
outros procedimentos dirigidos pela consciência. Nos dois casos, contudo, a
construção de um estado criativo define a diferença do fazer artístico.
Certa feita, falando a cientistas, Einstein afirmou que o segredo da cria-
tividade está em dormir bem e abrir a mente às possibilidades infinitas. Depois
perguntou sobre o que seria de um homem sem sonhos. Se dito a cientistas
isto é pertinente, quanto mais se dito a artistas!
Cabe acrescentar, no caso da arte, que seu processo construtivo, dife-
rentemente da ciência, muito mais do que com uma lógica racional positiva,
trabalha com técnicas e lógicas próprias do pensamento mítico-mágico, ou
anímico. Esta forma de pensar, por correspondências, contraposições, com-
plementações, proximidades e distanciamentos, é comum tanto à estética,
22
BARROSO, O.

quanto à magia, e preside o trabalho do artista em seus procedimentos criati-


vos, como veremos adiante.
Portanto, na qualidade de xamã, o artista é aquele que opera prodígios.
Usa o próprio corpo e os mais diferentes recursos, para abrir as vias do encan-
tamento. Seu fazer suspende o tempo ordinário e estabelece o espaço do ma-
ravilhoso. Sua arte instaura uma dimensão que sendo imaginária não se opõe
ao real. Funda um território que se instala entre o visível e o invisível, o céu e a
terra, o aqui e o além, a matéria e o espírito. Trafega nos limites do real e do irre-
al, da história e da ficção, estabelecendo paralelos, correspondências, abrindo
conflitos, fazendo ligações. Trabalha para além da verdade e da objetividade, no
campo do imponderável e da poesia. Inaugura lógicas a cada nova criação, ló-
gicas múltiplas através das quais tudo pode ganhar vida. Lógicas absolutamen-
te rigorosas, que guardam a mais estreita coerência, e que, por isso mesmo,
podem fluir do realismo mais ortodoxo à fantasia mais delirante.

Síntese do Capítulo
A introdução começa com uma crítica da modernidade feita a partir de desco-
bertas recentes das ciências, especialmente da física quântica e da arqueolo-
gia que parecem recuperar conhecimentos antigos assentados em mitologias
e religiosidades anímicas, principalmente do Oriente. Questiona alguns prin-
cípios que dão base ao pensamento moderno, como a separação entre sub-
jetividade e objetividade, Homem e natureza (vista como uma decorrência da
separação entre Deus e natureza), corpo e mente, espírito e matéria, natureza
e cultura, assim como toda idéia de evolução ligada a progresso e hierarquia.
Mostra o propósito das teses antropocêntricas de privilegiar no ser humano
o pensamento abstrato racional e o uso da linguagem digital escrita, como
prova de superioridade do homem moderno urbano ocidental sobre os povos
ditos primitivos, assim como da ciência sobre outras formas de conhecimento,
como a magia e o animismo (e a arte, como conseqüência).
Em seguida, sob o título, “Premissas para um novo projeto civilizatório”, é
proposta uma antropologia não antropocêntrica, que veja o Homem como parte
da natureza e, como tal, junto com os outros seres que a compõem, responsá-
vel pela sua preservação e renovação. Ao mesmo tempo, propõe um reencan-
tamento do mundo, que rompa com a visão escatológica de uma utopia ou um
paraíso adiado para o final dos tempos, recolocando o prazer no presente.
O último item da introdução, intitulado: “O artista como xamã”, procura
tirar conseqüências dessas idéias para o campo da arte. A principal delas é
23
Antropologia da Arte

que a criação artística se dá numa relação entre intuição e razão, inconsciente


e consciente, implicando um empenho de corpo inteiro do artista, no qual, sua
capacidade de transcender os próprios limites racionais, joga o papel principal.

Atividades de avaliação
1. No trabalho do artista, qual a relação entre intuição e racionalidade?
2. O dom criativo no ser humano pode ser desenvolvido?
3. Em que sentido se pode dizer que o artista é um sedutor?

Texto complementar
René Descartes
Filósofo, fisiologista e matemático francês (1596-1650). Foi contemporâneo de Galileu e Pas-
cal, tendo trabalhado, como eles, sob a pressão religiosa da Inquisição. Escreveu cinco livros
sobre filosofia e ciência: O Mundo (sobre o universo físico), Discurso sobre o Método de Bem
Conduzir sua Razão e procurar a Verdade nas Ciências (seu trabalho mais conhecido), Medi-
tações (sobre epistemologia), Princípios de Filosofia (particularmente acerca da física) e As
Paixões da Alma (sobre fisiologia e psicologia). Sua frase mais conhecida, Cogito, ergue Sun
(Penso, logo existo) é considerada a síntese do chamado racionalismo positivista ou cartesia-
no (numa referência ao próprio Descartes), procedimento lógico fundador da metodologia
científica moderna. Segundo Descartes, o raciocínio é a operação mental, discursiva e lógica,
que usa proposições para extrair conclusões relativas à verdade. Os filósofos racionalistas,
entre eles, Leibniz e Descartes, utilizaram a matemática como instrumento da razão para
explicar a realidade. O método cartesiano, proposto para a ciência, baseia-se na Geometria
e pode ser resumido em quatro procedimentos: 1) Só acolher algo como verdadeiro, quando
sobre tal coisa não reste nenhuma dúvida. 2) Dividir cada dúvida no maior numero de partes
possíveis e em tantas partes necessárias para melhor resolvê-las. 3) Ordenar o raciocínio de
modo a começar pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, até alcançar, pouco
a pouco, os mais complexos, numa ordem crescente de dificuldades. 4) Desenvolver acerca
dos objetos observados enumerações tão completas e revisões tão gerais, com a certeza de
nada omitir. No campo da política, o racionalismo inaugurou o pensamento liberal, que bus-
ca caminhos de planejamento lógicos e ordenados para a obtenção do bem coletivo, através
de soluções técnicas e racionais, acima de quais quer outros interesses, sejam de classe ou
de simples grupos sociais.

Fórum Social Mundial (FSM)


É uma mobilização “altermundialista”, organizada por movimentos sociais de diferentes
continentes, com o objetivo de propor formas civilizatórias alternativas para uma trans-
formação social no Planeta. Tem como dístico: Um outro mundo é possível. Proposto como
um contraponto ao Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suiça, em data coincidente
(de janeiro), atualmente realiza-se em datas diferentes, uma vez por ano. Trata-se de um
espaço aberto e democrático, alternativo à globalização capitalista e ao “pensamento úni-
co neo-liberal”, que reúne dezenas de milhares de representantes dos mais diferentes
24
BARROSO, O.

movimentos sociais, assim como de grandes personalidades e líderanças planetárias. Com


uma participação em crescimento (de 10.000 pessoas, na primeira, a 120.000, de 150
países, na última edição), os fóruns tiveram início em 2001. Os três primeiros foram em
Porto Alegre (Rio Grande do Sul), o quarto em Bombaim (Índia), o quinto em Porto Alegre,
o sexto em três cidades: Caracas (Venezuela), Karachi (Paquistão) e Bamako(Mali), o sexto
em Nairóbi (África), o sétimo foi descentralizado e o nono em Belém do Pará. Entre outras,
são discutidos, nas edições do FSM, temas como sustentabilidade ambiental, aids, paz e
conflito, juventude, situação das mulheres, migrações e perseguições, dívida externa, os
sem-terras e a privatização de bens comuns etc.

MIrcea Eliade (1907-1986)


Historiador e romancista romeno, considerado um dos mais importantes historiadores e
filósofos das religiões na contemporaneidade. Escreveu, entre outros o livro O Xamanismo
e as Técnicas Arcaicas do Êxtase, Londres: Routledge & Kegan Paul, 1964,.um longo tra-
balho sobre o estudo do Xamanismo, um detalhado e valiosa fonte de informação sobre
estes fenômenos, publicado no Brasil, em 2002, pela Martins Fontes. Escreveu também
O Mito do Eterno Retorno, publicado em 1954, com o sub-título: “A filosofia da História”.
Neste último livro, Eliade cria a distinção entre a humanidade religiosa e não-religiosa,
com base na percepção do tempo como heterogênio e homogêneo respectivamente.
Defende que a percepção do tempo como homogêneo, linear, e irepetível é uma forma
moderna de não-religião da humanidade. O homem arcaico, ou a humanidade religiosa
(homo religiosus), em comparação, percebe o tempo como heterogênio; isto é, divide-o
em tempo profano(linear), e tempo sagrado (ciclico e reatualizável). Por meio de mitos e
rituais que permitem o acesso a este tempo sagrado, a humanidade religiosa proteje-se
contra o ‘terror da historia’ (uma condição de impotência diante os dados historicos regis-
trados no tempo, uma forma de existência aflitiva). No processo de estabelecimento desta
distinção, Eliade não esquece que a humanidade não-religiosa é um fenômeno muito raro.
Mitos e illud tempus estão ainda em operação, embora dissimulados no mundo da moder-
na humanidade, e Eliade claramente olha a tentativa de restringir o tempo real ao tempo
histórico linear como um caminho que leva a humanidade ao desespero ou à fé cristã
como única salvação. Pois o relativismo, existencialismo e historicismo modernos não são
capazes de criar mecanismos para fazer com que a humanidade suporte os sofrimentos
causados pela consciência da “história”, consciencia dos “acontecimentos” sem um senti-
do transhistórico escatológico, cíclico ou arquetípico.

ALBERT EINSTEIN
É autor, entre outras, das seguintes frases: “O tempo é relativo e não pode ser medido
exatamente do mesmo modo e por toda a parte.” “A menor distância entre dois pontos
não é uma linha reta.” “A religião do futuro será cósmica e transcenderá um Deus pessoal,
evitando os dogmas e a teologia.” “A religião cósmica é o móvel mais poderoso e mais
generoso da pesquisa científica.” “A imaginação é mais importante que a ciência, porque
a ciência é limitada, ao passo que a imaginação abrange o mundo inteiro.” “Minha religião
consiste numa admiração humilde ao Espírito Superior e Iluminado que se revela a si mes-
mo nos mínimos pormenores, que estamos aptos a captar com nossas fracas e irrelevan-
tes mentes. A profunda certeza de um Poder Superior que se revela no Universo, difícil de
ser compreendido, forma a minha idéia de Deus.” “A mais bela experiência que podemos
ter é a do mistério. É a emoção fundamental existente na origem da verdadeira arte e
ciência. Aquele que não a conhece e não pode se maravilhar com ela está praticamente
morto e seus olhos estão ofuscados.” “O Universo é finito, cilíndrico e ilimitado.” “A massa
de um corpo é uma medida do seu conteúdo de energia.” “A leitura após certa idade dis-
trai excessivamente o espírito humano das suas reflexões criadoras. Todo o homem que lê
demais e usa o cérebro de menos adquire a preguiça de pensar.”
Capítulo 2
Sobre a Origem do Homem
27
Antropologia da Arte

Objetivo
• Questionar as teses que reivindicam a superioridade do homem ocidental
moderno sobre os demais, bem como as que destacam a linguagem abs-
trata e a lógica racional-científica, como critérios dessa superioridade, em
detrimento da linguagem artística e do pensamento criativo.

1. A Tese Modernista
Até pouco mais de 60 anos, antropólogos e cientistas, de modo geral, acre- Ernst Cassirer (1874-
1945) foi um filósofo
ditavam que a condição humana havia sido inaugurada pela palavra e mais
judaico-alemão. Ensinou
precisamente pela palavra escrita em alfabeto digital. Daí, de certo modo, a nas universidades de
freqüência com que era atribuída à Grécia a origem de muitas artes e ciên- Hamburgo (Alemanha),
cias, como a filosofia, a matemática, a música e o teatro, por exemplo. Isto Gotemburgo (Suécia) e
Yale (Estados Unidos).
porque, teria sido a Grécia o lócus precursor da racionalidade moderna. Daí
Um dos mais importantes
também a conclusão pela superioridade do homem urbano ocidental e euro- da tradição neokantiana,
peu de modo particular, portador privilegiado do pensamento lógico-científico. desenvolveu uma Filosofia
da Cultura como uma
O livro do filósofo alemão Ernst Cassirer, Antropologia Filosófica, pu-
teoria dos símbolos.
blicado pela primeira vez nos Estados Unidos, em 1944, dois anos antes de Expandiu o campo da
sua morte, é talvez uma das sínteses mais bem articuladas do pensamento crítica kantiana a todas
moderno sobre a origem e a natureza do homem. De certa maneira ele re- as formas da atividade
humana. As categorias
presenta uma atualização e um desdobramento de outro livro de sua autoria:
a partir das quais Kant
Filosofia das Formas Simbólicas, publicado em alemão, 25 anos antes. pensa o fato científico
Em Antropologia Filosófica, Cassirer começa distinguindo o homem, são, para Cassirer, um
entre os animais e, especialmente, dos animais ditos superiores, pela racio- aspecto particular de
formas simbólicas que
nalidade. Cita Descartes: “penso logo existo”, mas acha insuficiente, pois para revelam também o fato
ele há muitas formas de pensar. E a racionalidade que caracteriza o homem mítico, estético e social.
é especial, um modo de raciocinar que se afirma pelo uso do símbolo. Define Entre seus principais livros
estão, Filosofia das Formas
assim o homem como um animal simbólico, sendo este atributo, o traço fun-
Simbólicas, publicado em
dador da civilização humana. Por isto segue o caminho da linguagem, mas 1929, pela primeira vez,
logo diferencia a linguagem conceitual da linguagem emocional, a linguagem e Filosofia do Iluminismo,
lógica da linguagem poética. Desqualifica a linguagem emocional por esta publicado em 1932.
ser partilhada com os animais “superiores”, citando a propósito o exemplo
28
BARROSO, O.

dos chimpanzés, para afirmar a superioridade da linguagem proposicional, no


caso exclusivo do homem.
Ainda no primeiro capítulo, intitulado: A Crise do Conhecimento do Ho-
mem Sobre Si Mesmo, Cassirer refere-se à linguagem animal como restrita ao
uso de sinais. Sendo parte do mundo físico do ser, apresenta-se, ela também,
como um ser físico e substancial, na qualidade de operadora do fazer. Só o
homem chega ao estágio da utilização de símbolos, criações mentais que
possuem fundamentalmente o valor funcional de designadores.
Já no segundo capítulo, que tem por título, Uma Chave Para a Nature-
za do Homem: O Símbolo, depois de se referir ao caso patológico de Hellen
Keller, surda-muda que se tornou célebre, como protagonista de experiências
desenvolvidas nos Estados Unidos, no final do século 19, Cassirer considera
a invenção da palavra, não apenas a descoberta de um conjunto de símbolos
ou de sinais mecânicos, mas também a de um instrumento inteiramente novo
do pensamento. Arrisca a afirmação de que: “O caso de Helen Keller, que
atingiu um altíssimo grau de desenvolvimento mental e de cultura intelectual,
mostra-nos de maneira clara e irrefutável que, na construção de seu mundo
humano, o ser humano não depende da qualidade de seu material sensível.”
(CASSIRER pp. 65 e 66) Considera, ele, o caso citado, como evidência de
uma relativa autonomia do cérebro humano em relação ao restante do corpo.
Em seguida, argumenta com evidências das limitações do pensamento
mítico, tanto no homem primitivo quanto no contemporâneo, afirmando que
nele, o símbolo ainda não se despregou de seu referente, ou seja: “ainda é
considerado propriedade da coisa”. Exemplifica, dizendo que o nome de um
deus ainda é parte deste mesmo deus e não seu representante, daí porque os
ritos têm que ser executados sempre da mesma maneira. Já o pensamento
simbólico pressupõe uma operação relacional, ou seja, uma capacidade de
designar abstrações, no caso, pontos comuns entre seres diferentes. Pres-
supõe, portanto, distinguir relações, ou melhor, o ato intelectual de chegar a
generalizações a partir do estabelecimento de relações entre particularidades.
Cassirer, porém, considera que nem todo pensamento relacional pres-
supõe um pensamento simbólico, ou seja, a recíproca não é verdadeira. Para
ele, o pensamento relacional está presente até mesmo nos mais simples atos
de percepção. Entretanto, o pensamento relacional próprio do homem vai
mais longe, e nisto ele se diferencia dos outros animais, pois só ele é capaz
de isolar relações, para produzir abstrações.
Outro índice de diferenciação do homem com relação ao mundo ani-
mal, para Cassirer, foi a descoberta do espaço e do tempo abstratos, o que
inicialmente teria se dado na Grécia de maneira mais completa. Mesmo os
animais ditos superiores, segundo ele, só são capazes de conceber espaço e
29
Antropologia da Arte

tempo orgânicos, ou seja, ligados à realidade sensível. Já o espaço matemá-


tico, concebido pelo homem (e aqui ele pede a ajuda de Isaac Newton) é pu-
ramente abstrato. Neste sentido, precisaríamos abandonar nossas relações
com o sensível para atingirmos uma “verdade real”, científica ou filosófica,
diferenciando-se assim do pensamento anímico, que não se separa do sensí-
vel e, pelo contrário, trabalha com ele.
Só abandonando, então, as concepções, afetivas e concretas, de tempo
e espaço do homem primitivo, podemos chegar ao tempo e ao espaço esque-
mático, homogêneo, universal, puramente imaginário, do homem moderno.

Atividades de avaliação
1. Segundo as principais correntes da ciência moderna, que atributo diferen-
cia o Homem dos demais seres da natureza?
2. Segundo Cassirer, o homem primitivo era capaz de abstração?
3. Em que sentido a ciência moderna fala do Homem como um animal sim-
bólico?

2. As dificuldades em provar a superioridade do homem


moderno
Em sua argumentação, Cassirer, no entanto, enfrenta muitas dificuldades.
Derrapa inúmeras vezes em contradições e sutilezas, que parecem indicar
mais que um achado, um esforço em provar uma hipótese previamente esta-
belecida, a da superioridade do homem moderno, no caso, ocidental e urbano.
Neste sentido, a primeira ordem de questões se estabelece na dificuldade em
lidar com experiências demonstrativas da inteligência animal, particularmente
dos animais ditos por ele “superiores” (primatas), já que dos animais menores
(e por isso inferiores?), Cassirer pouco se ocupa.
Começa por reconhecer que os animais ditos superiores usam vários
tipos de sinais, mas que estes seriam apenas operadores e que carecem da
qualidade de designadores.
Destaque: Então, seria o caso de se perguntar: mas a ciência também não
é por excelência operadora? A matemática e a física mecânica, principalmen-
te, saberes emblemáticos da modernidade, não estão voltadas prioritariamente
para resolver problemas, muito mais que para designar ou explicar o mundo?
Seus êxitos maiores não se deram na esfera da manipulação do mundo?
30
BARROSO, O.

Cassirer refere-se, inclusive, a várias experiências científicas comproba-


tórias de que os animais “superiores” (no caso os grandes símios) são capazes
de ter visões mentais e que respondem não somente a estímulos imediatos.
Admite que “nem todas as ações animais são governadas pela presença de
um estímulo imediato. O animal é capaz de toda a sorte de rodeios em suas
reações. Pode aprender não só a usar instrumentos, mas também a inventá-los
David Hume (1711-1776) para seus propósitos. Por isto, alguns psicobiologistas não duvidam em falar de
filósofo e historiador uma imaginação criadora ou construtiva dos animais.” (CASSIRER p. 61) Ainda
escocês. Juntamente com assim, conclui que estes atos de inteligência e imaginação animal se resumem
Adam Smith e Thomas a iniciativas de adaptação ao meio ambiente e têm caráter exclusivamente prá-
Reid, entre outros, foi tico. Deste modo, não alcançam o simbolismo, atributo diferencial do homem.
uma das figuras mais
importantes do iluminismo Para Cassirer, os animais são até mesmo capazes de, no processo de
escocês. É visto por vezes percepção de seu entorno relacionar elementos isolados, partes desse entor-
como o terceiro e o mais no. Portanto, são capazes de uma consciência relacional, até porque o mais
radical dos chamados simples ato de percepção já implica um processo de relacionamento entre o
empiristas britânicos, depois
de John Locke e George
que é percebido. Experimentos científicos, desenvolvidos por uma certa Sra.
Berkeley. A influente filosofia Kohts, obrigaram Cassirer a admitir que os animais ditos superiores sejam
de Hume é famosa pelo seu capazes de isolar fatores perceptivos, isto é, de isolar uma qualidade parti-
profundo cepticismo, apesar cular de uma situação experimental e de reagir de acordo com ela. Assim é
de muitos especialistas que esses animais se mostraram capazes de separar a cor, do tamanho e da
preferirem destacar a sua
forma, ou a forma, do tamanho e da cor, de determinados objetos. Diz ele,
componente naturalista.
literalmente: “Em algumas experiências, levadas a efeito pela Sra. Kohts, um
chimpanzé foi capaz de selecionar, de uma coleção de objetos extremamente
variados quanto às suas qualidades visuais, os que tinham alguma qualidade
em comum; conseguia, por exemplo, reunir todos os objetos de determinada
cor e colocá-los numa caixa.” (CASSIRER p. 71)

Saiba mais
A Teoria Restrita (ou Especial) da Relatividade (abreviadamente, TRR), publicada pela primei-
ra vez por Albert Einstein em 1905, descreve a física do movimento na ausência de campos
gravitacionais. Antes, a maior parte dos físicos pensava que a mecânica clássica de Isaac
Newton, baseada na chamada relatividade de Galileu (origem das equações matemáticas
conhecidas como transformações de Galileu) descrevia os conceitos de velocidade e força
para todos os observadores (ou sistemas de referência). No entanto, Hendrik Lorentz e ou-
tros, comprovaram que as equações de Maxwell, que governam o electromagnetismo, não
se comportam de acordo com a transformação de Galileu quando o sistema de referência
muda (por exemplo, quando se considera o mesmo problema físico a partir do ponto de vis-
ta de dois observadores com movimento uniforme um em relação ao outro). A noção de va-
riação das leis da física no que diz respeito aos observadores é a que dá nome à teoria, à qual
se apõe o qualificativo de especial ou restrita por cingir-se apenas aos sistemas em que não
se têm em conta os campos gravitacionais. Uma generalização desta teoria é a Teoria Geral
da Relatividade, publicada igualmente por Einstein em 1915, incluindo os ditos campos.
31
Antropologia da Arte

O filósofo alemão, entretanto, considerou o processo utilizado no ex-


perimento, raro, imperfeito e rudimentar, embora reconhecesse que o feito
daquele chimpanzé evidenciava o que Hume considerava “distinção da ra-
zão”. Resolve o problema dizendo que, mesmo aqueles animais, por ele con-
siderados superiores, não podem se desenvolver porque não possuem um
sistema de símbolos, já que só o homem é capaz de isolar relações e produzir
abstrações, para constituir um sistema de símbolos. Vai adiante, liga a lingua-
gem à capacidade de reflexão, dizendo que esta consiste “em discernir, na
correnteza dos fenômenos sensoriais, que flutuam como massa indiscrimi-
nada, certos elementos fixos a fim de isolá-los e concentrar a atenção sobre
eles”. (CASSIRER p. 71) Ora, mas esta mesma capacidade ficou provada no
experimento da Sra. Kots, por ele mesmo citado, com os chimpanzés!
No capítulo seguinte, em que Cassirer afirma a superioridade conceitu-
al do tempo e do espaço abstratos, retilíneos e progressivos, próprios da ma-
temática e da física modernas, o filósofo alemão é forçado a reconhecer que
não apenas as tribos primitivas são dotadas de uma excepcional percepção de
espaço, como até mesmo os animais (diferentemente das crianças, que preci-
sam aprender) possuem noções inatas de tempo e espaço. Mostra-se intrigado
com a orientação espacial das abelhas, formigas e aves de arribação, sem en-
contrar uma explicação plausível para seus comportamentos. Recusa-se, em
todo caso, a aceitar que aqueles animais se guiem por processos ideacionais,
atribuindo tal capacidade “a impulsos corpóreos de um gênero especial”. (CAS-
SIRER p. 76) Concluindo que eles “não possuem imagem mental nem idéia de
espaço”, (IDEM p. 76) nem têm uma prospecção das relações espaciais, ar-
ranja de todo modo um jeito de desqualificar a percepção espacial excepcional
daqueles animais, definindo de saída e sem discussão, a percepção racional
mecânica como a mais alta na escala das percepções espaciais.
Já que, em relação à percepção orgânica do espaço, como ele en-
tende, o homem mostra-se inferior aos animais, Cassirer afirma sua posição
hierárquica mais baixa. Parece também não levar em consideração as des-
cobertas de Einstein sobre a relatividade do tempo e do espaço, percepção
que de certa maneira já era observada no pensamento dito selvagem. Ou
seja, o homem primitivo sabia que a teoria na prática é outra. Isto é, que dois
períodos de tempo ou duas medidas de espaço, matematicamente iguais, no
mundo sensível são percebidos diferentemente. Como diz o povo: “há tardes
(ou caminhos) que parecem nunca acabar”.
Cassirer admite, inclusive, que “as tribos primitivas são habitualmente
dotadas de uma percepção extraordinariamente aguda de espaço. Um nativo
destas tribos tem capacidade de notar todos os pormenores mais sutis do seu
meio, é extremamente sensível a toda e qualquer mudança na posição dos
32
BARROSO, O.

Aqui estabelecemos um objetos comuns ao seu redor. Até em circunstâncias dificílimas é capaz de
parêntesis para fazer um encontrar seu caminho”. (CASSIRER p. 80)
paralelo com a arte que,
segundo o pensamento Ainda assim, Cassirer encontra argumentos para desqualificar esta ca-
moderno, se diferenciaria do pacidade perceptiva. Diz que a familiaridade do selvagem com o curso de um
rito. Isto, porque, enquanto rio, por exemplo, está longe de alcançar um conhecimento abstrato e teórico
o rito é presentificação, a
porque, enquanto o conhecimento do primitivo é “apenas apresentação”, o
arte seria representação. Daí
decorreria a superioridade conhecimento do homem moderno “inclui e pressupõe representação”. (CAS-
da arte moderna sobre a SIRER p. 81)
arte primitiva, ainda presa
Destaque: Aqui estabelecemos um parêntesis para fazer um paralelo
ao animismo (e como tal ao
rito). O mesmo aconteceria com a arte que, segundo o pensamento moderno, se diferenciaria do rito. Isto,
com os folguedos e outras porque, enquanto o rito é presentificação, a arte seria representação. Daí de-
criações da chamada arte correria a superioridade da arte moderna sobre a arte primitiva, ainda presa
tradicional popular (com os
ao animismo (e como tal ao rito). O mesmo aconteceria com os folguedos e
ex-votos, por exemplo) que,
como veremos em capítulos outras criações da chamada arte tradicional popular (com os ex-votos, por
seguintes, é uma arte de exemplo) que, como veremos em capítulos seguintes, é uma arte de presen-
presentificação, a vivência de tificação, a vivência de outra dimensão da realidade (no caso a dimensão
outra dimensão da realidade
artística) e não uma suspensão ou representação da vida.
(no caso a dimensão
artística) e não uma A segunda ordem de questões, que evidenciam a dificuldade de Cas-
suspensão ou representação sirer em afirmar a superioridade do homem moderno, decorre de sua visão
da vida. limitada do mito e, junto com ele, do pensamento mágico e anímico. Sobre
o tema, ele parece concordar com Edward L. Thorndike que, citado por ele,
usa o termo “mito”, como sinônimo de ilusão ou inverdade. (CASSIRER p. 61)
No capítulo em que trata do tempo e espaço, o autor de Antropologia Fi-
losófica afirma que a capacidade humana de generalizar parece ter origem na
astronomia babilônica. (Ver CASSIRER p. 85) De acordo com ele e segundo
muitos outros estudiosos, na Babilônia, provavelmente, teriam surgido todas
as concepções mitológicas, religiosas e científicas da humanidade. Foram os
babilônicos, por exemplo, que descobriram a álgebra simbólica, mesmo que,
de acordo com Cassirer, de maneira muito simples e rudimentar.
O filósofo alemão admite que na primitiva astronomia babilônica predo-
mine ainda uma interpretação mítica do universo, embora já ultrapassasse à
esfera do espaço concreto e corpóreo primitivo. Tal astronomia “transporta o
espaço, por assim dizer, da terra para o céu”, diz ele. Neste sentido, a astrono-
mia teria surgido da astrologia, como algo a ela superior, num processo evo-
lutivo. Isto porque, enquanto a astrologia ligava os acontecimentos humanos
às ocorrências celestes, a astronomia fez o espaço celeste se emancipar do
humano, transformando-se em espaço teórico.
O descolamento da astronomia em relação à astrologia, ocorrido no
Renascimento, teria se marcado no momento da ruptura entre o espaço geo-
métrico e o espaço mítico-mágico, o primeiro ocupando o lugar do segundo.
33
Antropologia da Arte

Cassirer precisa melhor seu pensamento ao afirmar, referindo-se a esta pre- Robert M. Yerkes (1876-
cedência do mito, que “a forma falsa e errônea de pensamento simbólico foi 1956) estudou psicologia
a primeira a preparar o terreno para um novo e verdadeiro simbolismo, o da comparada em Harvard,
ciência moderna”. (CASSIRER p. 85) tendo desenvolvido testes
de inteligência e aptidão
Aqui cabe outro reparo às posições de Cassirer. Como veremos em com soldados americanos
capítulos posteriores, na visão mítica do universo, tanto entre povos primiti- durante a Primeira Guerra
vos, quanto em comunidades contemporâneas, mesmo se mantendo preso Mundial. Depois, transferiu-
se para a Universidade de
ao concreto e ao sensível, o espírito humano, assim como de outros seres, é Yale, onde dedicou-se ao
passível de transcendência, indo, para usar a imagem de Cassirer, da terra ao estudo do comportamento
céu, do concreto ao abstrato, sendo o mundo sensível, uma manifestação do animal. Ajudou a criar a
mundo espiritual. Além do mais, ao contrário do que julgavam os pensadores Anthropoid Experiment
Station of Yale University,
modernos, o pensamento mítico tem se mostrado não uma forma rudimen- que depois tomaria, em
tar e anterior maneira do pensamento científico, mas outra forma de pensar sua homenagem, o nome
o mundo, outro procedimento racional, tão válido (e para a arte muito mais) de Yerkes Laboratories of
quanto a lógica da ciência moderna. Uma argumentação mais consistente Primate Biology. Tranferido
para Atlanta, em 1965,
neste sentido, porém, deixaremos para capítulos seguintes. sob a denominação de
No capítulo dedicado por ele à memória, Cassirer continua sua busca Yerkes Primate Center,
em provar a superioridade do homem moderno. Começa por reconhecer que transformou-se no principal
centro de pesquisas sobre
os animais têm memória, são capazes de lembrar e até sonham. Cita Robert primatas no mundo. Seus
M. Yerkes, para quem os animais são capazes de acumular experiências, an- testes de inteligência e
tecipar, esperar, imaginar e, baseados nessa consciência, preparar-se para aptidão com soldados,
acontecimentos futuros. Cassirer admite ainda, que os animais ditos supe- reforçaram tendências
racista da época.
riores podem “resolver problemas e, de modo geral, adaptar-se a situações
ambientais com a ajuda de processos simbólicos análogos aos nossos sím-
bolos verbais, e na dependência de associações que funcionam como sinais”.
(CASSIRER p. 89) Porém, apesar das provas apresentadas por Yerkes, Cas-
sirer insiste na sua tese, dizendo: “O que importa neste caso não é tanto o fato
da existência de processos ideacionais em homens e animais, mas a forma
destes processos.” (CASSIRER p. 89)
Nosso filósofo da antropologia pede a ajuda de diferentes autores, entre
eles Bergson e Goethe, para concluir que os animais não têm memória, porque,
segundo ele, a verdadeira memória “é um fenômeno muito mais profundo e com-
plexo (...) significa interpenetração de todos os elementos de nossa vida passa-
da”. (CASSIRER p. 90) Volta ao argumento do símbolo, dizendo que só há recor-
dação verdadeira, se houver imaginação, ficção, o que para ele (citando Goethe)
está ligado à poética e, só então, ao simbolismo. Assim, Cassirer chega à poética,
mas ainda reduzida ao simbolismo. Em sua poética não estão incluídas a criação
intuitiva, a revelação do invisível, a expressão dos sonhos, enfim.
Prosseguindo, Cassirer afirma que as ações instintivas dos animais,
mesmo quando dirigidas para um futuro, o são para um futuro tão remoto
34
BARROSO, O.

que suas conseqüências não podem ser notadas pelo animal que as executa.
Admite que os animais ditos superiores sejam capazes de antecipar fatos fu-
turos, mas deixa de observar, por exemplo, o trabalho minucioso e coletivo de
inúmeros pequenos animais, capazes de atividades antecipatórias, por exem-
plo, de preparação para mudanças climáticas, como os insetos do semi-árido
prevendo a aproximação das chuvas.
Mais adiante, Cassirer procura corrigir Kant, para quem intuições e
conceitos são condições fundamentais do conhecimento, decorrendo daí a
necessidade do ser humano de trabalhar a partir de imagens, para chegar a
conceitos. Afirma não se tratar propriamente de imagens simplesmente, mas
de símbolos, de imagens simbólicas.
Embora reconheça que as grandes descobertas científicas foram ini-
cialmente hipotéticas (e eu diria, intuitivas), Cassirer apega-se à matemática
como o “orgulho da razão humana”. (CASSIRER p. 102) Argumenta que a
matemática foi incompreendida, tendo muitos dos seus conceitos se mostra-
dos obscuros e equivocados, até que tomou um rumo claro e distinto, quan-
do se entendeu ser ela não uma teoria das coisas, mas de símbolos. Só a
partir daquele momento, os conceitos matemáticos fundamentais puderam
migrar para outros campos do conhecimento, como os das chamadas ciên-
cias humanas e da ética, em particular. Só então, segundo Cassirer, teríamos
chegado a uma compreensão da verdadeira natureza humana que, por meio
do pensamento simbólico, “supera a inércia natural do homem, conferindo-
-lhe nova capacidade, a de arquitetar constantemente seu universo humano”.
(CASSIRER p. 105)

Atividades de avaliação
1. Para você, onde a argumentação de Cassirer sobre a superioridade do
homem moderno não foi convincente?
2. Em que sentido o homem moderno pode ser considerado diferente ou su-
perior ao homem tradicional, segundo Cassirer?
3. Que consequências teve para o desenvolvimento da humanidade o antro-
pocentrismo do pensamento moderno?
35
Antropologia da Arte

3. Novas Descobertas da Ciência


O livro de Walter Alves Neves e Luís Beethoven Pilá, “O Povo de Luzia”, pu-
blicado no ano de 2008, em São Paulo (Neves, Walter Alves. O Povo de Lu-
zia: em busca dos primeiros americanos/ Walter Alves Neves, Luís Beethoven
Pilo. – São Paulo: Globo, 2008.), que trata da busca dos primeiros homens e
mulheres americanos, traz informações sobre descobertas recentes de bió-
logos e paleontólogos que confirmam a máxima de que as verdades científi-
cas são sempre provisórias. Confirma e desenvolve, não apenas afirmações
adiantadas na introdução do presente trabalho, como acrescenta dados sobre
novos achados que, de certa maneira, retificam pontos até então tidos como
pacíficos, entre os estudiosos das origens do Homem. Tais descobertas da-
tam das duas últimas décadas ou, pelo menos, só muito recentemente tive-
ram seus dados e conseqüências divulgados.
Segundo aqueles autores, fica evidenciado que se existe sentido em
se falar em evolução, este conceito de modo nenhum, pelo menos no campo
da biologia (e eu diria, em outros campos também), está ligado à idéia de
progresso. Dizem eles: “Evoluir na biologia não é melhorar. É apenas mudar,
mantendo-se adaptado. (...) Não existem espécies piores ou melhores. Exis-
tem espécies mais ou menos adaptadas a uma situação ambiental específica.
Mudadas as demandas ambientais, o quadro pode se alterar completamente.”
(NEVES 2008 p. 26)
Nem mesmo, evolução está ligada a complexificação e aperfeiçoamen-
to, idéia comprovada por eles, entre outros argumentos, citando o fato de que
os microorganismos (seres extremamente simples) representam um terço da
biomassa do nosso planeta. Por outro lado, longe de aproximar-se da perfei-
ção, a seleção natural, ao trabalhar no sentido da adaptação ao meio ambien-
te, introduz “remendos possíveis” nos seres, ou seja, resolve um problema e
cria novos, porque “mexendo-se positivamente em uma característica, várias
outras podem ser desastrosamente afetadas.” (NEVES p. 28) Como exemplo,
posso citar as dificuldades dos bípedes com suas colunas vertebrais, constitu-
ídas ao modelo dos quadrúpedes. Adaptando-se para alcançar com as mãos
planos mais altos, mas mantendo basicamente a mesma estrutura de vérte-
bras, os bípedes tiveram suas colunas vertebrais fragilizadas.
Estas descobertas recentes também implicaram modificações nos
cálculos sobre a origem e a presença dos hominíneos no mundo. Segundo
se sabe atualmente, nas regiões tropicais da Terra, data de aproximada-
mente 60 milhões de anos, a existência dos primatas. Já os antropóides,
tronco ao qual estamos ligados, que antes supúnhamos terem surgido em
torno de 35 milhões de anos, sabe-se terem aparecido entre 50 e 55 mi-
lhões de anos. Entretanto, os hominíneos, grupo que engloba os homens
36
BARROSO, O.

contemporâneos, considerados primatas completos, portanto bípedes, te-


riam surgido há cerca de apenas sete milhões de anos. Esta é a datação
das camadas geológicas do Chade, onde foi encontrado o fóssil do Sahe-
lanthropus tchadensis, considerado o bípede mais antigo conhecido pela
ciência. (Ver NEVES 2008 p. 36)
Vale acrescentar, que estudos do DNA mostram diferenças inexpressi-
vas, em termos de genes, entre os grandes símios e os hominíneos, mesmo
quando estes são representados pelo homem contemporâneo. Calcula-se
que temos uma identidade genética entre 95% a 98% com os chimpanzés,
estando muito mais próximos deles, do que eles, por exemplo, em relação a
outros grandes símios, como o gorila e o orangotango.

Gráfico retirado do livro História da Africa Negra - Vol. I Zerbo, Joseph.


Mira-sintra, publicações Europa-Américana, 2a ED. Em português, 1972, p. 52.
37
Antropologia da Arte

Outro dado sobre os primeiros hominíneos, só percebido muito recen-


temente, é que eles, apesar de bípedes, ainda conservam no esqueleto vá-
rias características arborícolas: eram baixos (entre 1 metro e 1,40 metros),
tinham os braços relativamente mais alongados e os dedos levemente cur-
vos. Aproximavam-se dos grandes símios atuais, quanto à capacidade cra-
niana (entre 400 e 500 m³). Assim como os chimpanzés eram basicamente
vegetarianos, alimentando-se secundariamente de pequenos animais, como
insetos, lagartos e roedores.
Com a savanização da África, por volta de 2,5 milhões de anos atrás,
duas diferentes linhagens de hominíneos se destacaram: os megadônticos
(hominíneos vegetarianos) e os hominíneos carnívoros, que apenas suple-
mentavam sua alimentação com recursos vegetais. Os megadônticos, entre-
tanto, que conviveram por muito tempo na África, em sítios ecológicos distin-
tos, extinguiram-se em torno de um milhão de anos depois.
Tendo por base estudos sobre os macacos, espécie na qual há uma
correlação entre o tamanho do cérebro e tamanho do grupo, se supõe “que
o crescimento inicial do nosso cérebro por volta de dois milhões de anos te-
nha ocorrido como resposta a demandas de interações sociais cada vez mais
complexas”. (NEVES p. 42) Há estudiosos, entretanto, que vêm no aumento
do cérebro do Homo erectus não um maior poder cognitivo, mas apenas uma
ocorrência correspondente ao crescimento do corpo como um todo.
Tendo surgido na África por volta de dois milhões de anos, os hominíne-
os começaram imediatamente a se expandir para outros continentes, primeiro
para o Oriente Médio e para a Europa e, em seguida, para outras regiões da
Ásia, só por fim tendo chegado até a Austrália e à América. Porém, só em
torno de 800.000 anos, também na África, surgiram os primeiros grandes cé-
rebros, com cerca de 1.2000 cm³. Outro achado importante foi a descoberta
de grandes lanças de madeira, encontradas a pouco mais de 10 anos na
Alemanha, datadas de mais de 400 mil anos atrás.
Os heidelbergensis, espécie da qual descendem tanto os neandertais
quanto os sapiens, que viviam no Norte da Europa Ocidental, há 300 mil anos,
já apresentavam uma morfologia craniana muito próxima à nossa, com a face
afastando-se do neurocrânio e projetando-se para frente. Um dos seus des-
cendentes diretos, o Homo de neandertal, surgido por volta de 200 a 250 mil
anos, como o Homo sapiens, possuía uma capacidade craniana ainda maior
que a nossa, medindo cerca de 1.500 cm³.
Os neandertais tinham ossos mais grossos e fortes que nós, certamente
como adaptação a trabalhos pesados e exaustivos, nos quais, inclusive, usa-
vam a boca. Conviveram com o Homo sapiens por muitos milhares de anos,
em muitas regiões, tendo se extinguido, provavelmente, há cerca de apenas
38
BARROSO, O.

Charles Sanders Peirce 29 mil anos, com a expansão de nossa espécie no Oriente Médio e na Euro-
(1839-1914) filósofo, físico, pa, por volta de 40 mil anos atrás. Fica evidente, portanto, que nessas regiões,
astrônomo e matemático sapiens e neandertais coexistiram, pelo menos, por mais de 10 mil anos.
americano. Foi o fundador
do pragmatismo e da A descoberta mais surpreendente, entretanto, talvez seja a de que o
semiótica.. No campo homem contemporâneo, que se pensava datar de somente 40 a 45 mil anos,
das ciências humanas teve sua conformação física definida já por volta de 200 mil anos. Isto ficou
estudou linguística, filologia
evidente após a descoberta, entre as décadas de 1960 e 1970, de fósseis na
e história, contribuindo,
ainda, na área da psicologia Etiópia, cujos estudos só tiveram seus resultados divulgados de forma mais
experimental. Sua sistemática, só muito recentemente.
semiótica, ou teoria geral
O comportamento desses sapiens, porém, correspondia ao do
dos signos, pretende ser
uma filosofia científica da Homo neandertalis, com a diferença de que enquanto a forma atarraca-
linguagem. da destes, favorecendo a manutenção do calor corporal, o adaptava aos
climas frios, a dos Homo sapiens, com seu perfil longilíneo, facilitando a
perda do calor, contribuía para sua adaptação às zonas mais tropicais
da África. Não por acaso, os tipos longos e esbeltos (tome-se como mo-
delo os atletas quenianos e tanzânianos, que vemos nas olimpíadas),
concentram-se nos povos tropicais.
Entretanto, se anatomicamente, o homem contemporâneo já tinha de-
finido sua configuração há mais de 200 mil anos, do ponto de vista compor-
tamental e tecnológico, ele só veio se diferenciar dos neandertais há pouco
mais de 40 mil anos. Entre as características comuns a sapiens e neander-
tais, considerados os primeiros 150 mil anos de existência de ambos, estão
a coleta e a caça pouco seletiva, a utilização de um pequeno repertório de
pedras lascadas como ferramentas e a ausência de rituais mortuários.
A mudança tecnológica e comportamental do Homo sapiens verificada
a partir do Paleolítico Superior (há cerca de 45 mil anos), entre outras evidên-
cias, incluiu a utilização de ossos, dentes e chifres na fabricação de objetos
utilitários e rituais, sepultamentos acompanhados de uma complexa ritualiza-
ção, ou seja, evidências de um rápido desenvolvimento criativo e expressivo,
além de noções de transcendência (no caso dos sepultamentos).
Aqui cabe um parêntesis, para uma crítica aos autores de “O Povo
de Luzia”. Walter Neves e Luís Piló ligam essa mudança de comportamento
humana ao que chamam capacidade de abstração simbólica, como Cassi-
rer. (NEVES p. 54) Decerto, como eles afirmam, desenvolveu-se uma ca-
pacidade de representação, porém, muito menos ligada ao símbolo, que ao
ícone. Até porque, de 10 a 15 mil anos depois, aparecem as extraordinárias
pinturas rupestres, executadas no interior de imensas cavernas, que tanto
estamos acostumados a admirar.
Ora, segundo a semiótica de Charles Pierce, os signos, de acordo com
o modo como representam o objeto ou referente, podem ser de três ordens: o
39
Antropologia da Arte

índice, o ícone e o símbolo. (Ver ECO 1973, p. 52) Enquanto o índice represen-
ta seu objeto pelo contado, ou seja, é afetado por ele (a fumaça, por exemplo);
o ícone representa seu objeto por semelhança (uma fotografia, por exemplo),
o símbolo o faz por pura convenção (os algarismos arábicos, por exemplo). Ao
detectarem cheiros característicos, por exemplo, assim como outros indícios
para se orientarem, os animais, certamente, reconhecem (e mesmo usam, por
ex., para marcar terreno) este tipo de signo, ou seja, o índice. Ao emitir sinais
para seu formigueiro ou colméia, por exemplo, formigas e abelhas produzem
símbolos. O mesmo acontece com outros animais, embora se diga que esta
emissão “não é deliberada, mas inata”, o que só é verdade sob certo ponto de
vista, já que acontece apenas sob determinadas condições, não sendo, a emis-
são desses signos, nunca absolutamente mecânica ou previsível.
O caso da produção de ícones, por parte de outros animais (que não os
humanos), é mais controvertido, registrando-se somente o caso da mimesis,
em que insetos e outros pequenos animais, assemelhando-se a outros seres
(geralmente vegetais ou minerais) do meio em que vivem, se disfarçam para
confundir seus caçadores.
Parece-me, então, que o desenvolvimento da representação através de
ícones foi o motor da grande virada no comportamento humano do Paleolítico
Superior. Isto porque, os sistemas simbólicos desenvolvidos posteriormente
pelo Homo sapiens o foram feitos a partir e como desdobramento das repre-
sentações icônicas, tanto no campo da linguagem oral e escrita, quanto nos
demais procedimentos rituais.
Sabendo-se que o ícone é o signo por excelência da arte, tanto que nela o
símbolo aparece como um auxiliar expressivo (na literatura artística, por exem-
plo, onde mais que a palavra é fundamental a imagética por ela construída), se
pode afirmar que esta virada (do Paleolítico Superior) antes de ser uma virada
em direção à racionalidade, foi uma mudança em direção à poesia. Uso poesia,
aqui, em seu sentido amplo, como um fenômeno de encantamento produzido
pela arte, (o que veremos adiante) seja literária, visual, performática ou musical.
Mais surpreendentes foram os resultados de escavações recentes,
que ainda estão acontecendo em Blombos e Katanda, África do Sul. Nelas
foram encontrados diversos objetos reveladores da vida humana há 80 mil
anos atrás. Entre esses objetos, incluem-se um pequeno bastão de hematita
(pigmento mineral), finamente decorado, além de um colar de conchas de
moluscos, o que indica uma prática artística bem anterior aos presumíveis 40
mil anos da alegada virada comportamental do Paleolítico Superior.
As razões possíveis dessa mutação comportamental (criativa, como de-
nominam os autores de O Povo de Luzia) ainda são desconhecidas. Segundo
alguns paleontólogos “é possível que o último grande passo na evolução homi-
40
BARROSO, O.

nínea tenha se restringido apenas a modificações neurológicas internas, impos-


síveis de ser detectadas e interpretadas com base nos ossos.” (NEVES p. 56)
Descobertas também surpreendentes foram feitas acerca da relação
do Homo sapiens, com o Homo neandertalis e outros hominíneos. Sabe-se
que a primeira incursão dos sapiens para fora da África foi em direção ao
Oriente Médio, onde conviveram com os neandertais sem entrecruzamentos
mútuos aparentes. Quando os sapiens chegaram àquela região da Ásia, há
38 mil anos, ela estava ocupada densamente pelos neandertais que desde
muito antes e por cerca de 60 mil anos reagiram à sua invasão. Por certo, esta
longa convivência de homínineos com características físicas e comportamen-
tais semelhantes (inclusive em matéria de tecnologia de guerra) resultou não
apenas em destruição mútua, como em alguma colaboração.
Provavelmente, este quadro mudou com a chamada Revolução Cria-
tiva do Paleolítico Superior (ver NEVES p. 58), dotando os sapiens de armas
mais eficientes, capazes de fazer frente com vantagens em relação aos ne-
andertais. Tanto é que aqueles foram capazes de atravessar a Europa em
apenas seis mil anos e ocupar toda a Península Ibérica já por volta de 32 mil
anos, enquanto os neandertais foram reduzindo-se rapidamente, até serem
dados como extintos há cerca de 29 mil anos. Os autores de O Povo de Luzia
levantam, inclusive, a possibilidade do homem moderno (os sapiens) terem
substituído outras espécies de hominíneos, além dos neandertais, que encon-
traram pelo caminho.
O fato de a África apresentar a maior taxa de diversidade genética entre
os humanos atuais corrobora não apenas para afirmar a origem do homem
moderno naquele continente, como o fato de que ele tenha vivido ali por mais
tempo. Porém, o resultado de algumas pesquisas recentes trabalha em sen-
tido contrário à crença anterior de que a origem do Homo sapiens correspon-
deria a um evento de especiação, ou seja, que ele pertenceria a uma espécie
diferente, incapaz de entrecruzar com outros hominíneos.
Cálculos matemáticos mais precisos aplicados ao estudo da diversi-
dade do DNA humano, feitos nos últimos três anos, desautorizam a hipótese,
até agora aceita, de que o conjunto dos homens contemporâneos descenda
de um ancestral comum, surgido na África há 150 ou 200 mil anos. Embora a
maioria da população humana tenha origem, provavelmente, do mesmo an-
cestral africano, o certo é que algumas de suas linhagens têm ascendência
muito mais antiga em linhagens não representadas na África. Esta descoberta
legitima a hipótese de que tenhamos trocado material gênico com outros ho-
miníneos, fora do território africano.
Há pouco mais de dois anos, na Romênia, foi descoberto um crânio de
cerca de 36 mil anos, com características típicas do homem moderno, mas
41
Antropologia da Arte

com alguns traços provavelmente de neandertais, o que reforça a hipótese


levantada no parágrafo anterior. Ou seja, há evidências, cada vez mais nu-
merosas, de que não somos uma espécie nova e superior, mas tão somente
uma raça de heidelbergensis (Homo eretus) ou talvez uma subespécie de
macacos, que tenha aprendido a sonhar acordado.
O fato é que muitas hipóteses têm sido levantadas para esta súbita mu-
dança comportamental do Homo sapiens. Há quem a atribua a mudanças
de hábitos alimentares ao lado da domesticação de animais para o trabalho,
como o professor norte-americano Jared Diamond, que dedicou parte de sua
vida a explicar a origem das desigualdades no desenvolvimento humano, liga-
da a esses fatores em diferentes continentes. (Ver A Evolução da Humanidade
– Armas, Germes e Aço, DVD produzido pela National Geographic Society,
episódio: Saindo do Jardim do Éden.)
Segundo aquele antropólogo, o pouco desenvolvimento tecnológico dos
papuas da Nova Guiné deu-se por motivo de um isolamento geográfico e con-
finação em uma grande ilha onde não existiam animais passíveis de domes-
ticação, com possibilidades de serem utilizados como força de trabalho pelo
Homem, assim como onde não existiam vegetais com capacidade nutricional
considerável, como o trigo e o arroz, por exemplo. O único animal apropriado
para a criação era o porco, que não se presta como auxiliar em trabalhos pesa-
dos (diferentemente do elefante, do camelo, do cavalo, do jumento, da lhama
etc.), assim como os papuas não conheciam o trigo, o arroz etc., cuja carga de
nutrientes compensa um trabalho duro e prolongado nas plantações.
Só a ausência desses fatores, fazendo com que os habitantes da Nova
Guiné consumissem a maior parte de seu tempo na obtenção de alimentos
para a subsistência básica, já implica um atrofiamento de suas possibilidades
criativas, segundo o professor Jared Diamond. De outra parte, alguns estu-
diosos atribuem esta mudança comportamental do Homo sapiens à criação
de circunstâncias de tempo e segurança, que o possibilitou dormir mais pro-
fundamente (e consequentemente, sonhar com mais desenvoltura). Outros,
já atribuem esta mudança de comportamento humano à conjugação de uma
série de circunstâncias fortuitas, o que me leva a pensar na possibilidade de
também os chimpanzés, por exemplo, ou outros símios superiores, conhece-
rem mudanças comportamentais no futuro.
De resto, muitas são as hipóteses ou, empregando outro termo, as intui-
ções acerca do que determinou esta virada comportamental do Homo sapiens.
Para fundamentar cada uma dessas hipóteses foram reunidas uma série de
indícios e até provas racionais, mesmo porque para toda boa intuição, como
para todo bom sonho, sempre se pode criar uma justificativa, construir uma
argumentação e fazê-la de acordo com a ciência, embora para tal sejamos,
42
BARROSO, O.

muitas vezes, obrigados a rever as regras científicas. Se no atual estágio de co-


nhecimento do Homem sobre sua origem, não se pode concluir ser sua capaci-
dade poética o atributo de diferenciação entre ele e os outros animais, por certo
não é absurdo levantar a hipótese de o Homem ter em seu dom de perceber e
criar poesia, sua qualidade, talvez, mais rara. Mesmo que esse privilégio não o
autorize a reivindicar supremacia sobre os demais seres da natureza.

Síntese do Capítulo
A segunda unidade tem por tema a origem do homem. Toma como principais
referências dois livros: Antropologia Filosófica, de Ernst Cassirer, e O Povo
de Luzia, de Walter Neves e Luís Piló. Na primeira parte, busca caracterizar
o pensamento moderno sobre a origem e a natureza do ser humano, a partir
do livro de Cassirer. Mostra como seu raciocínio parte da premissa de supe-
rioridade do homem moderno ocidental sobre, não apenas os outros animais,
como sobre o homem de outras épocas e geografias, para fundamentar um
pensamento eurocêntrico. Na parte seguinte, são apresentadas evidências
das dificuldades de Cassirer em comprovar suas teorias. A partir de desco-
bertas científicas, muitas delas citadas pelo próprio Cassirer, põe em dúvida a
propalada superioridade do homem moderno diante das evidências da inteli-
gência animal e do conhecimento mítico-anímico do saber popular tradicional.
Por último, tendo como referência os dados apresentados pelo livro de
Walter Neves e Luís Piló, informa as descobertas mais recentes da paleonto-
logia sobre o processo de hominização e procura tirar conseqüência delas.
Tais descobertas evidenciam as origens humanas e da arte em épocas bem
anteriores às que, até pouco tempo, se imaginava. Assim como, comprovam
um parentesco, do Homo sapiens, muito mais próximo aos grandes símios
e aos demais hominíneos do que se tinha até recentemente por certo. Mos-
tra que não há relação comprovada entre inteligência animal e tamanho do
cérebro, assim como entre pensamento simbólico racional e superioridade
intelectiva. Afirma a evolução não como um contínuo aperfeiçoamento dos
seres, mas como resultado de um processo adaptativo desligado da idéia de
progresso ou desenvolvimento. Enfim, destaca a importância da intuição poé-
tica não apenas na origem da arte, como na do próprio ser humano.
43
Antropologia da Arte

Atividades de avaliação
1. Na sua opinião, o que teria determinado a modificação comportamental do
Homo sapiens, 40 mil anos atrás?
2. O que para você é novidade nestas novas descobertas da arqueologia e da
paleontologia?
3. Que lugar o ser humano ocuparia na tarefa de renovação da vida e preser-
vação do Planeta?

Texto complementar
A Teoria Restrita (ou Especial) da Relatividade (abreviadamente, TRR)
Publicada pela primeira vez por Albert Einstein em 1905, descreve a física do movimen-
to na ausência de campos gravitacionais. Antes, a maior parte dos físicos pensava que a
mecânica clássica de Isaac Newton, baseada na chamada relatividade de Galileu (origem
das equações matemáticas conhecidas como transformações de Galileu) descrevia os con-
ceitos de velocidade e força para todos os observadores (ou sistemas de referência). No
entanto, Hendrik Lorentz e outros, comprovaram que as equações de Maxwell, que go-
vernam o electromagnetismo, não se comportam de acordo com a transformação de Ga-
lileu quando o sistema de referência muda (por exemplo, quando se considera o mesmo
problema físico a partir do ponto de vista de dois observadores com movimento uniforme
um em relação ao outro). A noção de variação das leis da física no que diz respeito aos ob-
servadores é a que dá nome à teoria, à qual se apõe o qualificativo de especial ou restrita
por cingir-se apenas aos sistemas em que não se têm em conta os campos gravitacionais.
Uma generalização desta teoria é a Teoria Geral da Relatividade, publicada igualmente por
Einstein em 1915, incluindo os ditos campos.

Robert M. Yerkes (1876-1956)


Estudou psicologia comparada em Harvard, tendo desenvolvido testes de inteligência e
aptidão com soldados americanos durante a Primeira Guerra Mundial. Depois, transferiu-
-se para a Universidade de Yale, onde dedicou-se ao estudo do comportamento animal.
Ajudou a criar a Anthropoid Experiment Station of Yale University, que depois tomaria, em
sua homenagem, o nome de Yerkes Laboratories of Primate Biology. Tranferido para Atlan-
ta, em 1965, sob a denominação de Yerkes Primate Center, transformou-se no principal
centro de pesquisas sobre primatas no mundo. Seus testes de inteligência e aptidão com
soldados, reforçaram tendências racista da época.

Emanuel Kant (1724-1804)


Filósofo alemão, foi um dos mais importantes filósofos da era moderna, tendo vivido exclu-
sivamente em Königsberg (atualmente Kaliningrado, então pertencente à Prussia), onde
nasceu e morreu, onde foi professor secundário e universitário de ciências naturais. Kant
é famoso sobretudo pela elaboração do denominado idealismo transcendental: todos nós
trazemos formas e conceitos a priori (aqueles que não vêm da experiência) para a experi-
ência concreta do mundo, os quais seriam de outra forma impossíveis de determinar. Sua
44
BARROSO, O.

filosofia da natureza e da natureza humana é historicamente uma das mais determinantes


fontes do relativismo conceptual que dominou a vida intelectual do século XX. Kant foi um
respeitado e competente professor universitário durante quase toda a vida. Por volta de
1770, com 46 anos, Kant leu a obra do filósofo escocês David Hume,. sentindo-se profun-
damente inquietado. Achava o argumento de Hume irrefutável, mas as conclusões inacei-
táveis. Então, dez anos depois, em 1781, publicou “Crítica da Razão Pura”, talvez sua obra
mais importante. Neste livro, ele desenvolveu a noção de um argumento transcendental
para mostrar que, em suma, apesar de não podermos saber necessariamente verdades
sobre o mundo “como ele é em si”, estamos forçados a percepcionar e a pensar acerca do
mundo de certas formas: podemos saber com certeza um grande número de coisas sobre
“o mundo como ele nos aparece”. Por exemplo, que cada evento estará causalmente co-
nectado com outros, que aparições no espaço e no tempo obedecem a leis da geometria,
da aritmética, da física,etc.

Leituras, filmes e sites


Leituras
CAPRA, Fritjof: O Tao da Física, um paralelo entre a Física Moderna e o Mis-
ticismo
Oriental. São Paulo, Cutrix, 1983.
O Ponto de Mutação, a Ciência, a Sociedade e a Cultura emergente. São
Paulo, Cultrix, 1982.
A Teia da Vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São
Paulo : Cultrix, 2006.
GIDDENS, Anthony: As Conseqüências da Modernidade. São Paulo, Editora
UNESP, 1991.

Filmes
A Evolução da Humanidade – Armas Germes e Aço. 1ª. parte: Saindo do Jar-
dim do Éden. National Geographic Society. O vídeo documentário apresenta
a teoria de Jared Diamond sobre a origem das desigualdades no desenvolvi-
mento humano.
História das Religiões (Religions of the World). Série de três DVDs, de 4hs.
de duração cada, produzida pela Libertty Internationl Entertainment Inc., com
narração de Ben Kinglen, produção da série de Clley Coleman e direção de
Gene Smith. O DVD traça uma história das mais importantes religiões, evi-
denciando as diferentes maneiras que elas encontram para dar significado
ao mundo e à vida humana. Além de pontos de divergência, há pontos de
convergência, que ajudam a clarear nossa compreensão relativa à natureza
não só de Deus como do Homem.
45
Antropologia da Arte

Referências
CASSIRER, Ernest. Antropologia Filosófica. São Paulo, Mestre Jou, 1977.
ECO, Umberto. O Signo. Lisboa, Editorial Presença, 1973.
ICLE, Gilberto. O Ator Como Xamã: configurações da consciência no sujeito
extracotidiano. São Paulo Perspectiva, 2006.
NEVES, Walter Alves. O Povo de Luzia: em busca dos primeiros americanos /
Walter Alves Neves Luís Beethoven Piló, - São Paulo, Globo, 2008.
KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra. Mira-Sintra, Publicações Euro-
pa-América, 2ª. ed. em português, 1972 (data da 1ª. ed. em francês).
Capítulo 3
As Origens da Arte
49
Antropologia da Arte

Objetivo
• Investigar a arte nos seus primórdios, assim como acompanhá-la em sua
trajetória inicial no tempo e no espaço.

1. Reparos e Advertências
Inicialmente, cabem alguns reparos ou advertências. O primeiro reparo diz res-
peito às chamadas idades arqueológicas, particularmente no que se refere aos
períodos Paleolítico e Neolítico, que deverão ser aqui tratados, ou, em outras
palavras, às chamadas Idades da Pedra Lascada e da Pedra Polida. Ao con-
trário do que pensa o sendo comum, esses períodos se distribuíram de modo
desigual no mundo e, mesmo no interior dos continentes, algumas vezes de
maneira bastante acentuada, ou seja, com datações e durações díspares.
Em seu livro “A Evolução Cultural do Homem”, V. Gordon Childe nos
chama atenção para o fato ao afirmar que

...a Velha Idade da Pedra, pelo menos no sentido econômico (...) dura
até hoje na Áustria central e na América ártica. A revolução neolítica deu
início à Nova Idade da Pedra no Egito e Mesopotâmia há aproximada-
mente sete mil anos. Na Grã-Bretanha ou Alemanha, seus efeitos são
perceptíveis primeiro três e meio milênios depois, digamos em cerca
de 2.500 a.C. Nessa época, a Nova Idade da Pedra já se consolidara
na Grã-Bretanha, enquanto Egito e Mesopotâmia já haviam ingressado,
aproximadamente mil anos antes, na Idade do Bronze. A Nova Idade
da Pedra não terminou, na Dinamarca, antes de 1.500 a.C. Na Nova
Zelândia, não havia acabado quando o Capitão Cook desembarcou; os
maoris ainda usavam ferramentas de pedra polida e praticavam uma
economia neolítica, quando a Inglaterra já estava nas vascas da Revo-
lução Industrial. A economia australiana era, então, ainda ‘paleolítica’.
(CHILDE, 1971, p. 58)

O segundo reparo ou advertência relaciona-se com o primeiro, ou seja,


o fato de ainda hoje existirem populações vivendo em estágios tecnológicos e
50
BARROSO, O.

Vitalino, Chico da Silva, com organizações econômicas semelhantes às da chamada Idade da Pedra
Noza e Nino foram artistas Polida ou mesmo da Pedra Lascada não significa que elas tenham uma vida
populares nordestinos que espiritual ou mesmo uma organização social semelhante a das populações
viveram e produziram no
século passado, tendo que viveram dez ou 20 mil anos atrás. Muitas vezes, podemos encontrar cor-
se notabilizado e feito respondências de formas tecnológicas e, até mesmo, artísticas entre povos
nome internacionalmente, que viveram e vivem em habitats e estágios de desenvolvimento econômico
mercê da excelência de semelhantes. Ir além disso, porém, é não apenas arriscado, como de certa
seus trabalhos. Vitalino
era mestre e escultor em forma preconceituoso, o que acontece, por exemplo, ao se supor que co-
cerâmica. Pernambucano, munidades isoladas do interior de Goiás pensem à semelhança do que se
nasceu e viveu em Caruaru, pensava no século XVIII, em Portugal, ou que os índios do Amazonas, ainda
onde produziu toda sua não contatados pelos ditos “civilizados”, tenham uma mentalidade parecida
obra e fez escola. Chico
da Silva, maranhense de com a dos homens do Neolítico europeu. Por que esses povos, no caso dos
nascimento, dedicou-se índios amazonenses – mesmo usando equipamentos simples e levando uma
à pintura, tendo vivido vida simples, em contato com a natureza, que satisfaz plenamente suas as-
grande parte de sua vida pirações materiais – teriam deixado estancar, num determinado ponto, sua
no bairro do Pirambu, em
Fortaleza, onde produziu a vida espiritual? O desenvolvimento mental do homem estaria em função tão
maior parte de sua obra e somente de responder a questões de subsistência material?
formou grande número de Respondendo negativamente a essas perguntas, soa sem propósito que-
discípulos. Noza foi santeiro
e escultor em madeira na rer compreender a vida e o pensamento de comunidades, cuja arte conhece-
cidade de Juazeiro do Norte mos por meio de achados arqueológicos, através do estudo de comunidades
sob orientação do Padre contemporâneas que, supostamente, vivem em condições próximas às daque-
Cícero, ficando afamado las. Ou seja, estudar uma comunidade de louceiras do Ipu ou de Viçosa do
entre os romeiros e devotos
daquele santo popular. Nino Ceará (ou mesmo uma comunidade do Xingu), a maneira como funciona na
foi escultor e criador em atualidade, pouco nos pode dizer sobre a arte dos tabajara 500 anos atrás, an-
madeira de Juazeiro do tes da presença europeia (a não ser acerca de determinadas técnicas ou estilos
Norte, que trabalhou temas das pinturas, porém certamente pouco sobre o significado ou o sentido delas).
diversos sempre ligados à
natureza e à vida popular O terceiro reparo vai junto com uma crítica e tem como alvo o concei-
sob uma ótica onírica e to de arte primitiva. Esse conceito, assim como o de arte pré-histórica, leva
muito pessoal. embutido uma ideia evolucionista de progresso que tem como ápice o Oci-
dente urbano moderno, particularmente as megalópoles contemporâneas da
Europa Ocidental e dos Estados Unidos. A ideia de atraso, nessa concepção
evolucionista, coincide com tudo que se afasta do Ocidente urbano moderno,
tanto no tempo quanto no espaço. Além disso, sob o rótulo de arte primitiva,
reúnem-se desde as pinturas rupestres do Paleolítico, passando pela arte das
grandes civilizações antigas (orientais ou americanas, como as indiana, chi-
nesa, asteca, inca e maia), até as pinturas ou esculturas de artistas populares
brasileiros falecidos há pouco tempo como Vitalino, Chico da Silva, Noza e
Nino. Quanto à divisão entre artes pré-históricas e históricas, no sentido de
artes de povos que usam e não usam a escrita, mesmo que se admita tal divi-
são, é preciso levar em conta o que postula José Alcina Franch:
51
Antropologia da Arte

“dentro da primeira destas categorias temos que incluir, evidentemen-


te, a arte ocidental, porém ainda a arte de civilizações tais que, pos-
suindo algum gênero de escrita, tenham produzido documentos que
completem nosso conhecimento de tais artes, em relação com a bio-
grafia dos artistas, ou em relação com outros pormenores ou aspectos
diferentes: China, Japão, Índia e outras civilizações antigas se acham
neste caso. Dentro das artes pré-históricas há que incluir a totalidade
daquelas que correspondem a povos que não chegaram a dispor de
um código escrito, e por conseguinte não podem oferecer documentos
que sirvam de base para escrever a história artística ou que a comple-
mentem de maneira substancial. Daí que consideremos por igual à arte
“parietal” do sul da França e norte da Espanha, ou a arte norte-africana
ou sahariana, ou a de povos agricultores ou criadores de todos os con-
tinentes: a arte da cultura Jomem no longínquo Oriente, ou a da cultura
Hohokam no sudoeste dos Estados Unidos, ou a da cultura de Malkata,
na desembocadura do Danúbio. Todas elas, pelo fato de não poderem
dispor de documentos escritos, são pré-históricas, o que implica uma
maneira diversa de tratar os dados, mais que uma situação cronológi-
ca, que, evidentemente, não é similar nos exemplos mencionados, ou
nem sequer uma identidade ou homologação cultural, o que tampouco
se dá nos casos mencionados”. (FRANCHA, 1982, pp. 25-26)

Atividades de avaliação
1. Há uma relação necessária entre antiguidade e maior rusticidade na
história da arte?
2. Podemos falar de arte primitiva de um modo geral?
3. A arte pré-histórica, mais rudimentar, seria aquela que precede a arte histó-
rica, mais sofisticada?

2. O Enigma das Catedrais de Pedra


Os conjuntos de pinturas rupestres encontrados em grutas e cavernas do Pale-
olítico superior (última etapa da Idade da Pedra Lascada, que data aproximada-
mente de 30.000 a 10.000 anos a.C) são talvez os mais antigos monumentos
artísticos do homem chegados até nós. Ainda hoje, o arrojo de suas execuções
e a beleza de suas formas nos encantam e nos desafiam a imaginação, assim
como encantarão e desafiarão o imaginário das futuras gerações.
Trata-se de uma arte tão surpreendentemente bela e executada com tal
maestria que questiona todas as teorias relativas não apenas à evolução da arte
52
BARROSO, O.

como à evolução do homem, já que produzida em um período considerado a


infância da humanidade. Suas manifestações conhecidas pelo homem moder-
no se encontram em grutas e cavernas concentradas especialmente em uma
região que vai do sudoeste da França ao norte da Espanha (grutas ou cavernas
de Lascaux, Trois-Frères, Font-de-Gaume, Dordonha, Ariège, entre outras, na
França; grutas ou cavernas de Altamira e Trés Cuevas, na Espanha, entre ou-
tras), mas também no Alasca, na Rodésia, no Peru, na Califórnia etc.
Tais pinturas estão gravadas em verdadeiras catedrais de pedras, espa-
ços imensos, ocultos sob o solo, ligados à flor do chão por estreitos labirintos de
difícil acesso, através dos quais não penetra a luz natural. Em seus interiores,
de maneiras diferentes, figuras de animais, solitárias ou em grupos, imóveis ou
em movimento, separadas ou em cenas de caça compartilhadas com homens,
aparecem em profusão, em ordens não definidas e, muitas vezes, superpos-
tas. São desenhos executados com admirável nível de exatidão e virtuosismo,
fixando gestos e movimentos, com toda complexidade e dinâmica, desde seus
traços mais destacados até suas mais imperceptíveis minúcias.

Lascaux
Arnold Hauser, em sua conhecida obra “História Social da Literatura e
da Arte”, nos chama a atenção para o fato de não existir qualquer aproxima-
ção entre essas pinturas rupestres do Paleolítico Superior e a arte infantil ou
mesmo as manifestações artísticas da maioria dos povos ditos “primitivos”
contemporâneos. Segundo ele,

os desenhos das crianças e as manifestações artísticas dos atuais po-


vos primitivos são racionais e não sensoriais: revelam o que a criança
e o artista primitivo conhecem, não o que no momento vêem; dão-nos
uma concepção teórica e sintética do objeto, e não uma sua represen-
53
Antropologia da Arte

tação ótica e orgânica. Eles consideram simultaneamente a perspec-


tiva de frente e de perfil do objeto que representam, e por vezes até a
perspectiva vista de um ângulo superior; nada omitem do que consi-
deram, por conhecimento, fazer parte do objeto; aumentam a escala
do que é importante biológica e praticamente; mas desprezam tudo,
por mais impressivo que em si seja, desde que não desempenhe papel
direto no conjunto do objeto. (HAUSER, 1972, pp. 13-14)

Já os artistas das cavernas paleolíticas trabalhavam com a mimeses, ou


seja, com a busca da semelhança mais completa. Eles reproduziam a imagem
viva do animal em plena natureza, como aparecia em suas imaginações, porque
lhe conheciam minuciosamente (já que eram caçadores). Dominavam comple-
tamente as ideias de perspectiva e de sombreamento, de proporcionalidade, de
movimento e de cromatismo, chegando às cambiantes mais delicadas.
Para Arnold Hauser, o naturalismo da arte paleolítica alcançou uma
impressão visual que talvez só encontre paralelo no impressionismo de um
Degas ou de um Toulouse-Lautrec e alcançou uma unidade de percepção
visual só atingida pela arte moderna após um século de controvérsias. É in-
teressante observar que as pinturas rupestres paleolíticas, ao contrário das
impressionistas, eram produzidas longe de seus modelos, distante mesmo da
natureza onde elas comumente encontravam-se, como dissemos, em caver-
nas iluminadas pela luz de tochas, com os artistas em posições quase sempre
incômodas (muitas vezes deitados ou em pé sobre os ombros de companhei-
ros para alcançar alturas maiores).
Tal exuberância artística, entretanto, não se deu sem que antes um lon-
go caminho houvesse sido percorrido. O próprio Hauser fala de

uma arte que, partindo da fidelidade linear à natureza, e na qual as


formas individuais estão ainda exteriorizadas rígida e laboriosamente,
se encaminha para uma técnica muito mais ágil e sugestiva, quase
impressionista. Trata-se de um processo que revela como se foi aper-
feiçoando a compreensão acerca da maneira de dar a impressão ótima
final numa forma progressivamente mais pictórica, instantânea e apa-
rentemente espontânea. (HAUSER, 1972, p. 13)

Também para V. Gordon Childe, a arte das cavernas do Paleolítico Su-


perior representa a maturação de um longo processo. Segundo ele, os caça-
dores daquele período entalhavam figuras em pedra ou marfim, modelavam
animais em barro, decoravam armas com representações e desenhos formais,
executavam baixos relevos nas paredes das cavernas, além de pintarem ce-
nas nos seus tetos. No início, porém, apenas esboçavam perfis, traçando-os
com o dedo no barro ou os desenhando a carvão, sem tentativas de pers-
pectiva ou detalhes. Só depois apareceram o sombreamento e a perspectiva.
54
BARROSO, O.

Segundo Köhler, Outra evidência desse aprendizado são os esboços, em pequenos blocos de
dois chimpanzés, um pedra soltos, encontrados nas cavernas, feitos como preparo para as grandes
chamado Tschengo e
obras-primas gravadas nas paredes das mesmas. (Ver CHILDE, 1971, p. 72.)
outro Grande, inventaram
uma brincadeira, em que Porém, é Joseph Campbell, em seu enciclopédico livro “As Máscaras
giravam vezes seguidas, de Deus”, quem vai mais longe na narrativa dos passos que levaram os ar-
que logo foi imitada por
tistas às obras magistrais das pinturas rupestres do Paleolítico Superior. In-
outros.
clui, na trajetória da origem da arte e do próprio homem, observações sobre
o comportamento deste “ser, tão próximo de nós”, o chimpanzé. Trata-se de
dois relatos extraídos do livro “A Mentalidade dos Macacos”, de autoria do
Dr. Wolfgang Köhler, por ele citado. O primeiro relato diz respeito à afeição
que alguns chimpanzés adquirem por certos objetos que passam a carregar
consigo como espécies de brinquedos ou amuletos. Até aqui, não há nada de
extraordinário, porque, até mesmo entre cachorros e outros animais domésti-
cos, podemos nos surpreender com fatos semelhantes
O segundo relato diz respeito à descrição de uma dança desenvolvi-
da pelos chimpanzés, inicialmente por um deles e logo seguida por todo o
grupo, que implica não apenas num ritmo, mas numa complexa coreogra-
fia. Encantado com a “alegria de viver” dessa brincadeira dos chimpanzés,
Köhler conclui: “Parece-me extraordinário, que pudesse surgir de modo
espontâneo, entre os chimpanzés, algo que sugere tão fortemente a dança
de algumas tribos primitivas” (KÖHLER, 1927, p. 95). De fato, ao reprodu-
zir uma narrativa de Radcliffe-Brown sobre uma dança dos pigmeus do
arquipélago de Andaman no Golfo de Bengala, Ásia, observada no século
passado, Joseph Campbell mostra a notável coincidência, não apenas de
ritmo como até mesmo de alguns movimentos, com a dança dos macacos
relatada por Köhler.
Destaque: Segundo Köhler, dois chimpanzés, um chamado Tschengo e outro
Grande, inventaram uma brincadeira, em que giravam vezes seguidas, que
logo foi imitada por outros.

Qualquer jogo a dois era capaz de acabar nessa brincadeira de “pião”,


que parecia expressar o clímax de uma amistosa joie de vivre. A seme-
lhança com a dança humana tornou-se mesmo impressionante quan-
do as voltas eram rápidas ou quando Tschengo, por exemplo, estendia
os braços horizontalmente enquanto girava. Tschengo e Chica – cuja
atividade preferida durante o ano de 1916 era esse “rodopio” – por ve-
zes combinavam com as rotações um movimento para a frente e assim
giravam lentamente em volta de seus próprios eixos e pela área que
lhes era destinada.Todo o grupo de chimpanzés, às vezes, unia-se em
padrões de movimento mais elaborados. Por exemplo, dois lutavam e
caíam perto de um poste, logo seus movimentos se tornavam mais re-
55
Antropologia da Arte

gulares e tendiam a descrever um círculo tendo o poste como centro.


Um por um, o resto do grupo aproxima-se, junta-se aos dois e, finalmen-
te, marcham todos de maneira ordenada em volta do poste. O caráter
de seus movimentos muda; eles não andam mais, trotam, e como regra,
dando ênfase especial a um pé, enquanto o outro pisa levemente, de-
senvolvendo assim algo próximo de um ritmo e tendendo a ‘manter o
compasso’ entre si... (CAMPBELL, 1992, p. 292)

Depois de estabelecer essa relação, Campbell descreve o arquipélago


de Andaman como um museu vivo e afirma encontrar-se ali uma situação
representativa do “nível elementar da ordem da vida humana: a força da sabe-
doria dos mais velhos; o tato, a benevolência e a competência dos indivíduos
socialmente orientados, e as experiências interiores e profundas dos ‘de men-
te sensível’”. (CAMPBELL, 992, p. 298). Ao discorrer longamente sobre a vida
dos andamaneses, Campbell mostra uma mitologia e, por consequência, uma
arte, nas quais os animais jogam um papel fundamental. Há não apenas uma
estreita relação entre homem e animal, mas um movimento de metamorfose
constante entre ambos.
Assim é que os animais provedores de alimentos para os homens são
representados como tendo sido homens originalmente; náufragos de uma
canoa viram tartarugas; homens viram porcos e porcos transformam-se em
pequenos seres fantásticos; animais mortos tornam-se “pais das matas” com
poderes sobrenaturais. Para se protegerem dos poderes dos animais, princi-
palmente daqueles que foram mortos pelos homens e que servem de alimento
para ele, ritos são encenados e ornamentações cerimoniais são produzidas.
Outras ocasiões nas quais os homens não podem prescindir da proteção
dos ritos, entre os andamaneses, se dão por ocasião do nascimento, do casa-
mento e da morte, bem como nos processos de iniciação dos jovens para a vida
adulta ou, até mesmo, em ocasiões fortuitas, como, por exemplo, no caso de
um homem matar alguém, ele precisa ser ornado e protegido cerimonialmente.
“Em todas essas ocasiões, os indivíduos envolvidos são protegidos dos poderes
desencadeados naqueles momentos por vários tipos de ornamentação cerimo-
nial – tinta vermelha, argila branca, desenhos incisados (escarificados), fibras
vegetais decorativas, conchas etc. – bem como por danças e prantos cerimo-
niais e a recitação de mitos.” (CAMPBELL, 1992. p. 301.)
Tais observações sobre as relações entre homens e animais no arquipé-
lago de Andaman podem nos ajudar a compreender o sentido das figuras pinta-
das nas cavernas do Paleolítico Superior, ainda mais se as juntarmos a outras
sobre o significado das próprias cavernas para os povos daquela época. Isso
se dá porque, naquele período, as cavernas eram comumente consideradas
espaços de encantamento, isto é, de magia animal e de ritos humanos. Além
56
BARROSO, O.

disso, eram tidas como um outro mundo, um reino de rebanhos subterrâneos,


um mundo oculto de onde procediam e para o qual retornariam os rebanhos
do mundo superior. Eram como uma réplica do mundo noturno, da esfera das
trevas na qual os animais são como estrelas de um céu notívago mortas pelo
sol e renascidas com o anoitecer. Faziam parte da cosmovisão de um universo
que ainda não perdera seu encanto. Eram, portanto, o locus privilegiado onde
tinham origem “as mitologias dos mestres animais e do xamanismo, a jornada
para o outro mundo por meio de cerimônia de sepultamento, os ritos de passa-
gem dos homens, o renascimento e a dança mascarada (que) inspiraram as
liturgias dessa época brilhante.” (CAMPBELL, 1992. p. 305.)

Lascaux
Além das pinturas rupestres, eram abundantes, nesse período, as es-
tatuetas de osso, marfim e pedra, representando a figura feminina e, curio-
samente, nas paredes das cavernas, as marcas de garras de ursos, sempre
próximas aos locais em que eram executadas as pinturas de animais, como a
indicar a propriedade dessa vizinhança. Não muito longe dali, para além das
garras do “mestre urso”, aparecem ainda contornos de mãos humanas.
Na caverna de Altamira, os touros são estrelas que cintilam no teto para
serem mortos pelas lanças do sol, que persegue os rebanhos do céu noturno
até o anoitecer seguinte. Em Lascaux, o bisão é o mestre animal que morre
voluntariamente, sacrificado na caça sacramental celebrada pelo xamã, que,
em Trois Frère, aparece em sua dança ritual. Trata-se, portanto, não somente
de um ensaio para a caça, através da aplicação de técnicas da magia, mas
da constituição de uma via, ou mesmo, de uma dimensão intermediária entre
57
Antropologia da Arte

a vida cotidiana e o sobrenatural, a dimensão do encantamento, como vermos


adiante, possibilitadora do diálogo entre ambas.

Altamira

Em sua apreciação sobre a natureza dessas cavernas-templo, Jo-


seph Campbell as distingue de simples santuários, os quais, segundo ele,
caracterizam-se por serem pequenos lugares para encontros com o divino
ou para a prática da magia. Já um templo é a projeção, no espaço terreno,
da dimensão transcendente, um lugar ao mesmo tempo interior e cósmi-
co, onde habita o grande espírito e suas manifestações. De acordo com
Campbell, essas cavernas-templos foram as primeiras grandes catedrais
concebidas e criadas pelos humanos, “como imagens do sobrenatural”,
na forma de um grande vazio interior, no qual os sentidos de tempo e de
espaço desaparecem para abrir caminho à “jornada visionária do profeta”.
(CAMPBELL, 1992. p. 322)
As pinturas rupestres das cavernas paleolíticas estão cercadas por uma
arquitetura de pedras que sugere um ritual complexo e minucioso, cheio de
mistérios e percalços. Os estreitos e intrincados labirintos subterrâneos que dão
acesso a muitas delas, a sequência de salas, a disposição de figuras e, algumas
58
BARROSO, O.

vezes, a presença de baixo-relevos e de esculturas parecem propor vias de ele-


vação espiritual. Para Campbell, a “localização do xamã na cripta de Lascaux, a
forma enfatizada do xamã dançarino de Trois Frères e a expressão plástica dos
dois bisões de Tuc d’Audoubert dizem muito sobre o grau de sensibilidade esté-
tica dos artistas dessas cavernas, que eram homens muito mais grandiosos do
que mágicos primitivos invocando animais. Eles eram mistagogos, conjurando
as mentes dos homens” (CAMPBELL, 1992. pp. 322-323), como que orienta-
dores dos espíritos pelos caminhos místicos do universo.
Para o autor de “As Máscaras de Deus”, a partir das cavernas locali-
zadas entre o sul da França e norte da Espanha, originaram-se os espaços
mágicos para a manifestação de Deus, reproduzidos pelos grandes templos
e pelas grandes catedrais, sejam do Oriente, sejam do Ocidente. A grandio-
sidade desses espaços – nos quais a mente, deslocando-se do corpo, flutua
no céu interior do templo para, em seguida, desprender-se no além cósmico
– situa a arte dos pintores rupestres no contexto da busca humana pelo divino,
enquanto via de transcendência e superação da morte.

Atividades de avaliação
1. As pinturas rupestres estavam incluídas entre as técnicas de magia de uma
sociedade de caçadores?
2. Qual o sentido de criar imensas obras de arte enterradas em cavernas de
difícil acesso?
3. Os animais são capazes de brincar, jogar e dançar? Os animais são capa-
zes de criar obras de arte?

Um lento caminho para a abstração


Enquanto no Sul da França e no Norte da Espanha os pintores tra-
balhavam com o que depois iria se chamar um quase impressionismo, logo
em seguida (e estamos a cerca de 10.000 anos a.C.), no Leste da Espanha
os pintores inclinavam-se ao que se pode classificar de uma tendência ao
expressionismo. Isso se deu porque os últimos buscavam dar expressão aos
gestos e movimentos de maneira mais intensa e enfática. Para tal, modifica-
vam formas anatômicas, proporções de membros e outras partes do corpo,
deslocavam articulações, suprimiam detalhes, evidenciando outros, de modo
a sugerir figuras vivas e em plena ação. Ao mesmo tempo, esses desenhos
parecem sugerir não determinados seres, mas seres genéricos, ou seja, não
aquele determinado animal, aquele determinado bisão, mas um exemplar da
espécie, um bisão genérico, para além de peculiaridades individuais.
59
Antropologia da Arte

Castellón
Aproximamo-nos do Neolítico e essa nova pintura, a pintura relativa a
esse período, se estende do Leste da Espanha em direção ao Norte da África
e de lá ao Oriente, passa pela Tunísia, avança até o Nilo, o Jordão, a Meso-
potâmia, a Índia e o Ceilão. Estende-se por regiões equatorianas, dominadas
pelas mulheres, nas quais as populações caçavam com bumerangues, cla-
vas e arcos, pescavam com arpões, coletavam frutas, raízes, enfeitavam-se
com braceletes e cintos feitos de contas de casca de ovos, penas, sementes
e conchas perfuradas. Eram civilizações em que os homens enfeitavam seus
órgãos genitais e as mulheres vestiam longas saias coloridas
Dentre esses povos – ao lado de uma diversificação tecnológica e míti-
ca, tanto no que diz respeito à prática da caça, quanto às performances rituais,
aparece uma pintura que, saindo das cavernas, irrompe na luz do dia. Sua
arte se expressa em cenas de intenso movimento, repletas de figuras ativas,
homens portando arco e flecha, inúmeros animais – entre eles cães de caça,
danças, ritos, sacrifícios, enfim, um mundo animado e cheio de vida. Apare-
cem também manadas de elefantes, girafas, rinocerontes e avestruzes, além
de macacos, felinos, carneiros, gazelas, homens com cabeças de burro e
chacais, leões, touros gigantes e carneiros sagrados.
Nessas pinturas, há uma presença marcante das mulheres, geralmente
com corpos sensuais, amplos quadris, grossas coxas, longas pernas, cinturas
finíssimas e poses elegantes, quase eróticas. Porém, o que nas pinturas mais
60
BARROSO, O.

se destaca é a presença do coletivo. O grupo, e não mais o xamã, é, agora, o


“cavalo” do poder sagrado.
Avançamos pelo Neolítico e então, além dos caçadores, aparecem tam-
bém os pastores e uma agricultura, a princípio, mais ou menos nômade. Há
uma maior sedimentação das comunidades e, dentre os temas míticos, além do
da morte, aparece o do nascimento. O poder de dar a vida não é menos miste-
rioso que o poder da morte. Daí a importância crescente da mulher no período.

Pintura na cova do civil, Barranco de Valtorta (Castellón).

A casa do mistério da vida é o corpo da mulher e o nascimento tem a ver


tanto com o leite materno, quanto com o ciclo menstrual e com sua relação
com os ciclos lunares. A magia da luz tem sua fonte no próprio corpo feminino.
Por isso, ele prescinde, ao contrário do corpo masculino, de fantasias mági-
cas, porque ele é fonte de sua própria magia. Daí a iconografia da deusa nua,
dando ênfase ao poder do corpo da mulher em si mesmo.
Em torno do ano 6.000 a.C., limiares do Neolítico, começaram a se de-
senvolver as artes artesanais, dentre elas a cerâmica, a tecelagem, o trança-
do, a carpintaria e a construção de casas. Animais foram domesticados tanto
como reserva para o suprimento alimentar, quanto para o auxílio no trans-
porte. Os instrumentos de trabalho se diversificam; surgem diversos tipos de
machados, arados, enxadas, botes, enxós, raspadeiras etc.
Para a arte, a descoberta da queima do barro foi, particularmente, im-
portante, porque significou a possibilidade de gravar pinturas em vasos, potes,
61
Antropologia da Arte

máscaras e outros objetos, utilitários ou lúdicos, moldados em uma cerâmica


mais consistente. Além disso, a própria argila era material dos mais apropria-
dos para a criação artística. Nas palavras de V. Gordon Childe:

O caráter construtivo da arte da cerâmica reagiu sobre o pensamen-


to humano. Fazer um pote era um exemplo supremo da criação pelo
homem. A argila era perfeitamente plástica: o homem podia modelá-la
à sua vontade. Ao fazer uma ferramenta de pedra ou osso, ele esta-
va sempre limitado pelo tamanho e forma do material original; podia,
apenas, tirar algumas lascas desse material. Nenhuma dessas limita-
ções restringe a atividade do ceramista. Ele dá à cerâmica a forma
desejada, faz-lhe acréscimos sem ter dúvidas quanto à resistência das
junções. Ao pensar na ‘criação’, a atividade livre do ceramista ‘fazendo
a forma onde não havia forma’ ocorre constantemente à mente do ho-
mem. (CHILDE, 1971, pp. 99-100)

Destaque:
Para mostrar a importância da descoberta da técnica da queima do barro
pelo homem, vale aqui revelar alguns detalhes do ofício como é hoje prati-
cado por nossos artesãos. Digo artesãos, porque a queima geralmente fica
por conta dos homens, devido ao forte calor envolvido. Há segredos, her-
dados dos indígenas, como, por exemplo, o de que na lua nova ou quarto
crescente não é aconselhável queimar louça, porque ela racha. Se a quei-
ma é feita ao rés do chão, a louça é colocada em círculos concêntricos e
movimentada, ora aproximada, ora afastada do fogo, durante cerca de cin-
co minutos. Se no forno, colocam-se as peças maiores primeiro, depois as
menores, botando fogo devagar, de acordo com a necessidade. Qualquer
deslize faz as peças racharem. Cobrem-se as peças com cacos de barro,
fechando bem as aberturas, de modo a não deixar sair o calor. O fogo vai
sendo ateado aos poucos na lenha colocada, em partes iguais, dos dois
lados, na parte de baixo do forno. Nesse trabalho, se passam mais de duas
horas, até chegar a um ponto em que a artesã testa a temperatura, despe-
jando um copo d’água. Se chiar, está no ponto de levantar o fogo com toda
a força. Quando as peças estão da cor de brasa, é sinal que estão prontas.
O ritual completo da queima dura de quatro a cinco horas. Só depois de
queimadas, as peças são pintadas com motivos geométricos, desenhos
ou leves arabescos em toar branco ou vermelho.
62
BARROSO, O.

Arnold Hauser
Nasceu na Hungria em
1892, estudou história
da arte e da literatura
nas universidades de
Budapeste, Viena,
Berlim e Paris. Em Paris,
seu professor foi Henri
Bergson, que o influenciou
profundamente. Após a
Primeira Grande Guerra,
Hauser passou dois anos
na Itália fazendo um
trabalho de pesquisa sobre
história da arte clássica e
italiana. Em 1921, mudou-
se para Berlim, onde
desenvolveu sua visão de
que os problemas da arte e
da literatura são problemas
fundamentalmente Forno em atividade durante a queima da louça de barro, na localidade de Alegria, no
sociológicos. Três anos município do Ipu.
mais tarde, estabeleceu-
se em Viena e, no ano Avançamos, agora, para o Neolítico Superior (entre 4.500 e 3.500 a.C.)
de 1938, mudou-se para e há uma tendência crescente, no campo da arte, para a criação de formas
Londres, onde começou
as pesquisas para sua
abstratas geometricamente organizadas, ao lado de uma também crescente
grande obra: A Historia organização geométrica do espaço social e de especialização na atividade
Social da Arte, cujo trabalho comunitária. Procura-se criar não mais imagens à semelhança dos seres e
consumiu dez anos de objetos, porém imagens correspondentes, signos icônicos (como vimos no
intensa dedicação. No início
dos anos 1950, foi professor
primeiro capítulo desse livro) que, aos poucos, vão se simplificando pela estili-
visitante na Universidade zação, perdendo particularidades e detalhes e assumindo feições mais gerais.
de Brandeis nos Estados Em outras palavras, há um deslocamento do concreto ao abstrato.
Unidos e, a partir de
1951, se tornou professor
Arnold Hauser procura explicar a passagem de uma arte “naturalista”
de História da Arte na para uma arte próxima ao expressionismo, tendendo ao geometrismo e ao
Universidade de Leeds. abstracionismo, comparando-a à passagem correspondente, no campo artís-
tico, da magia ao animismo. Para ele, o homem do Paleolítico “encontrava-se
totalmente dominado pelo medo da morte e da fome, preocupava-se em se
defender contra os assaltos dos inimigos e das necessidades materiais, con-
tra o sofrimento e a morte, por meio de práticas mágicas, mas não estabelecia
relação alguma entre a boa e a má fortuna que o acompanhava, e qualquer
poder situado para além dos acontecimentos.” (HAUSER 1972, p. 25)
Em outras palavras, a concepção mágica, própria do Paleolítico, se-
gundo Hauser, seria monista, ou seja, a realidade se estenderia por uma só
e única dimensão, por um todo contínuo e coerente. Isso se dava porque o
caçador, nômade e acossado por perigos e inquietações, não desfrutaria da
63
Antropologia da Arte

tranquilidade necessária para a aventura espiritual da transcendência. Essa


possibilidade só viria a aparecer no Neolítico, com o início da sedentarização
da vida comunitária, proporcionada pelo pastoreio e pela agricultura. Só en-
tão, os humanos teriam se apercebido de uma outra dimensão da realidade,
a dimensão divina, onde transitariam as almas dos animais e das plantas, dos
deuses e dos homens, de todos os seres, enfim.
Para Hauser, por trás da estilização geométrica da arte neolítica está
essa concepção dualista de mundo própria do animismo, ou seja, a visão de
uma realidade dividida entre o mundo concreto dos seres naturais e o mun-
do abstrato das ideias, dos conceitos e das representações. Para ele, nesse
momento teria início o processo de racionalização e intelectualização da arte.
Em suas palavras, houve

a substituição das representações das formas concretas por sinais e


símbolos, abstrações e abreviaturas, tipos gerais e sinais convencio-
nais; a supressão das experiências fenomênicas diretas substituin-
do-as por conceitos e interpretações, por acentuações e exageros,
distorções e desnaturalizações. A obra de arte deixa de ser a repre-
sentação pura de objetos materiais e converte-se na tradução de
uma idéia não somente uma reminiscência, mas também uma visão.
(HAUSER, 1972, p. 27)

Ora, o que já foi observado antes sobre a pintura rupestre do Paleolíti-


co põe em questão esse raciocínio de Hauser. As pinturas “naturalistas” das
grandes cavernas, como ficou demonstrado, não apenas implicam um desen-
volvimento intelectual e espiritual bastante avançado, como se distanciam,
em muito, dos desenhos infantis e, até mesmo, dos desenhos dos povos ditos
“primitivos” contemporâneos. Ao contrário, as “simplificações” acentuadas por
Hauser estão presentes inclusive nos desenhos infantis e não há nada que
indique uma ligação entre naturalismo e irracionalidade ou abstracionismo e
racionalidade. Prova são os diferentes estilos que se sucedem através da ge-
ografia e das épocas históricas, indo de um extremo ao outro, sem que haja
qualquer relação valorativa entre a intensidade intelectual de uma ou outra
arte. No mundo contemporâneo, por exemplo, em uma mesma cidade, cos-
tumam coexistir teatros que vão do mais extremo realismo psicológico até a
ritualização mais codificada. Para não falar no campo das artes plásticas, no
qual o paisagismo impressionista pode suceder, numa galeria de exposições,
o mais ousado abstracionismo cromático.
Feito esse reparo, é possível admitir, como Hauser, que, em relação ao
Neolítico, o estilo naturalista se ligaria preferencialmente a povos com organi-
zação social menos rígida, onde a iniciativa individual tem lugar mais proemi-
nente. Apareceria em sociedades menos hierarquizadas, menos ordenadas,
64
BARROSO, O.

com estruturas mais flexíveis e tendentes à anarquia, nas quais a cultura está
menos sedimentada e as tradições têm menos força de coerção. Já o for-
malismo geométrico floresceria mais abundantemente em sociedades com
instituições mais estáveis, com uma organização social mais uniforme e com
uma religião mais fortemente estabelecida.
Joseph Campbell parece compartilhar de opinião semelhante ao asso-
ciar o abstracionismo geometricamente organizado a um novo estilo de vida
nas aldeias, onde surge a diferenciação individual. Observa ele que, nas so-
ciedades caçadoras, as únicas diferenciações pareciam ser pelo sexo. Nelas,
“A importância destas
culturas e, por conseguinte,
cada indivíduo dominava, praticamente, todo o saber da comunidade. Já nas
de sua arte, não reside comunidades maiores e mais diferenciadas do Neolítico Superior, aparece
no fato de que sejam uma tendência à especialização e, consequentemente, à profissionalização
“primitivas” e de que dessa tanto no campo das artes como dos ofícios.
maneira ilustrem as etapas
antigas de nossa própria
evolução ou os momentos
antigos da história humana;
senão em que, por ser
mais simples que nossa
Atividades de avaliação
civilização – ao menos
1. Para você, a arte é uma imitação da natureza ou a criação de uma outra
relativamente - , se prestam
melhor a serem analisadas natureza?
com vistas a compreender 2. Você conhece e sabe descrever o trabalho artístico de alguma louceira,
os mecanismos sempre
tecelã ou trançadeira de seu município?
muito mais complexos de
nosso comportamento 3. Qual seria a diferença entre o naturalismo e o abstracionismo no campo
artístico ou estético.” das artes?

Um abstracionismo mágico
De certa maneira, não seria sem propósito dizer que a arte nasceu, nasce
e continuará nascendo em todo tempo e lugar onde esteja presente o ser
humano. Do mesmo modo, de alguma maneira, não soa absurdo afirmar que
todas as épocas nos são contemporâneas, ou seja, passado e futuro como re-
alidade têm sua existência no presente e, ainda mais, existem tão somente no
presente; porquanto, passado e futuro existem apenas como ficção, enquanto
construções de nossa imaginação.
Digo isso para introduzir algumas observações sobre a arte das so-
ciedades que José Alcina Franch classifica como “etnográficas”, ou seja,
sociedades contemporâneas ágrafas e, eu diria, que vivem em padrões
tecnológicos, em certa medida, correspondentes aos do Neolítico Superior.
Segundo Alcina Franch:
65
Antropologia da Arte

La importancia de estas culturas y, por consiguiente, de su arte, no Ver Franch, José Alcina:
Arte y Antropologia.
reside en el hecho de que sean ‘primitivas’ y de que de esa manera
Madrid, Alianza Editorial,
ilustren las etapas antiguas de nuestra propia evolución o los momen- 1982. p. 30.
tos antiguos de la historia humana; sino en que, por ser más sencillas
que nuestra civilización – al menos relativamente -, se prestan mejor
a ser analizadas con vistas a comprender los mecanismos siempre
mucho más complejos de nuestro comportamiento artístico o estético.
(FRANCH, 1982, p.28)

Faço essa abertura para justificar, na discussão acerca das relações


entre abstracionismo e racionalismo nas artes, a inclusão de um relato sobre
uma experiência artística bastante reveladora. Trata-se das pinturas resultan-
tes de ritos praticados pelos índios tukano, que habitam a Amazônia colombia-
na, região situada entre os rios Vaupés, Apaporis, Pira-Paraná e outros, onde
é frequente o uso de plantas alucinógenas com fins diversos.
O antropólogo Gerardo Reichel Dolmatoff, em seu livro “O Xamã e o
Jaguar”, publicado no México em 1978, estudou detidamente o significado do
uso de tais narcóticos, especialmente quanto às visões que provocam, bem
como a aparição das mesmas na arte, particularmente na ornamentação de
objetos e habitações. Em sua investigação dos significados simbólicos de tais
visões alucinógenas, enquanto imagens de um mundo social e religioso no
qual os tukano estão imersos, Reichel-Dolmatoff, para que alcançasse uma
percepção e uma compreensão bem mais próxima para um homem moderno,
participou de uma cerimônia de ingestão de iajé, a planta utilizada no caso.
Durante os rituais de iajé, os tukano têm acesso a visões chamadas,
pelos cientistas, de fosfenos. Imagens subjetivas surgem na mente dos indi-
víduos independentemente de toda fonte luminosa externa, consequência da
autoiluminação do sentido da visão. No cerimonial do iajé, esses fosfenos são
como que induzidos e aparecem em grande abundância, proporcionando um
“coito espiritual”, na expressão dos tukano, ou uma “comunhão espiritual”, no
modo de dizer dos sacerdotes. Segundo Reichel-Dolmatoff, entre os tukano,
os desenhos realistas de animais ou habitações são exceções, sendo seu
estilo artístico composto de desenhos baseados em fosfenos induzidos pelo
iajé. A maioria de seus elementos, se os relacionarmos com a vida social e
o imaginário tukano, gira em torno das relações sexuais e de parentesco e
recomenda a exogamia, relembrando essa lei ao indivíduo tendo em vista o
cuidado imprescindível com a preservação do seu povo. Suas expressões
estão gravadas em malocas, tamboretes, vasilhas, maracás, tambores etc.,
assim como também em suas próprias máscaras rituais.
66
BARROSO, O.

Alfabeto Tukano – retirado do livro Arte y Antropololgia de José Alcina Franch, da


Editora Alianza Forma, p. 32.
Esse simbolismo daí gerado, que alcança certo nível de abstração e
que se identifica com o sobrenatural, produz um sistema de ideogramas ge-
ométricos. Ernest Theodore Kirby aventa, inclusive, a hipótese de que essas
formas ideogramáticas das máscaras/figurinos tenham uma ligação com a
segunda fase do transe em que os mitos de origem do povo tukano são revisi-
tados em figuras maiores e não bem definidas. Tais figuras, inicialmente amor-
67
Antropologia da Arte

fas, passam, durante o transe, por mutações, metamorfoseando-se, seguidas


Ver artigo “Masques
vezes, em homens, animais e seres fantásticos, quase sempre sob formas
D’Amérique du Sud: la
aterrorizantes. A ausência de traços precisos nas máscaras (suas “neutralida- Transformation Homme/
des”) possibilita essas mutações latentes, propiciadas no decorrer do transe. Animal”, in Le Masque:
du Rite au Théâtre. Paris,
As máscaras tukano, assim como as de muitos outros povos amerín-
Editions du CNRS, 1988.
dios, que incluem além das máscaras propriamente ditas, coberturas de corpo p. 45.
inteiro ou, pelo menos, de parte dele, parecem relacionar-se não aos seres
reais, mas aos seus espíritos e aos seres sobrenaturais. Isso fica evidente na
utilização de motivos neutros e geométricos, absolutamente não realistas, na
representação dos animais e seres fantásticos. Geralmente feitas de tecidos
Ver artigo citado acima,
vegetais, cascas de árvores ou de frutos, as máscaras tukano não possuem
página 42.
aberturas para os olhos e suas formas privilegiam mais a superfície que o
volume, superfície onde se inscreve o ser representado através de um simbo-
lismo mínimo – uma mancha para identificar o jaguar, por exemplo.
O fato de as máscaras tukano não possuírem aberturas para os olhos é
por demais significativo. Ernest Theodore Kirby liga essa característica ao fato
de a comunicação, durante os rituais, estabelecer-se com os deuses de modo
introspectivo: o xamã volta-se para o interior de seu próprio espírito.
Destaque:
É interessante verificar que acontece o
mesmo fato de as máscaras rituais não
possuírem abertura para os olhos em
muitos dos ritos populares do Nordes-
te brasileiro, entre eles o Candomblé,
a Umbanda (onde Omulu é represen-
tado com a filha de santo cobrindo o
rosto com seus longos cabelos), e os
trajes dos Pankararu (de Brejo dos
Padres, em Pernambuco), por exem-
plo. Do mesmo modo, as narrativas
míticas encenadas durante os ritos e
mesmo por ocasião dos folguedos no
Nordeste brasileiro (a exemplo do que
ocorre entre os tukano da Amazônia)
são tidas, enquanto de autoria anô-
nima, como de procedência divina e
consideradas narrativas de fatos que
aconteceram “na origem dos tempos”,
como veremos mais adiante. Omulu Candomblé – De uma religião afro-brasileira, o
Candomblé, em que numa cobertura corporal, a más-
cara facial aparece sem abertura para os olhos.
68
BARROSO, O.

Pankararu – Aparece também uma cobertura corporal, desta vez dos índios Pankararu,
de Brejo dos Padres, Pernambuco, numa cerimônia-ritual Praiá; a máscara facial
aparece com uma pequena abertura para os olhos.
Dessa maneira, ao mimetizarem na dança os movimentos de um ani-
mal, do jaguar, por exemplo, os xamãs (e eles podem ser diversos) ganham
poder sobre o espírito desse animal, prevenindo os males resultantes de pos-
síveis feitiçarias que ele possa enviar aos homens durante uma caça. Diferen-
temente do que se possa pensar, não se trata de ganhar poder sobre o corpo
do animal, mas sobre sua alma, isto é, sobre sua ânima.
No mesmo sentido, e espero ter mostrado isso, o processo pelo qual
se originam os desenhos ornamentais tukano parece tornar evidente, ao con-
trário do que argumentava Hauser, que a abstração na arte ou, pelo menos,
uma tendência abstracionista, pode resultar de procedimentos não racionais.
(Uso racional, aqui, no sentido de uma racionalidade baseada numa lógica
científica matemática depois definida pelo positivismo.) No caso dos tukano,
como veremos adiante, o abstracionismo geométrico surge de procedimentos
rituais-anímicos, referenciados numa cultura em que o pensamento mítico é
largamente hegemônico.

Síntese do Capítulo
A unidade é aberta com uma pequena introdução em que são feitas algumas
críticas e estabelecidos alguns reparos. O primeiro deles volta a atenção para
os chamados períodos arqueológicos (Paleolíticos, Neolíticos etc.) ou idades
arqueológicas (da Pedra Lascada, da Pedra Polida etc.), para dizer que eles se
69
Antropologia da Arte

distribuem de maneira desigual no espaço e no tempo, com datações e dura-


ções bastante díspares. Em alguns continentes e mesmo em algumas regiões
dentro desses continentes, como em vastos territórios dentro da Amazônia, por
exemplo, o Neolítico nos chega até hoje. Porém, se isso ocorre do ponto de
vista tecnológico ou mesmo econômico, não significa ou não se pode esperar
que, no campo espiritual, essas populações conservem valores e pensamentos
semelhantes aos de comunidades que viveram milhares de anos atrás.
Em seguida, ainda na introdução, a Unidade critica a concepção se-
gundo a qual o desenvolvimento mental do homem dar-se-ia em função tão
somente de responder a questões de subsistência material. Continua a critica,
pondo em discussão o conceito de arte primitiva por seu caráter excessiva-
mente genérico, além de valorativo, já que reúne, sob um único rótulo, desde
a arte do Paleolítico, de até 30.000 anos atrás, até a arte contemporânea de
pintores ditos naifs. Termina relativizando a divisão entre arte pré-histórica e
arte histórica e chamando a atenção para a necessidade de se incluir, nessa
última, além das artes gregas e ocidentais como um todo, as artes das gran-
des civilizações orientais e ameríndias.
Sob o título ‘O Enigma das Catedrais de Pedra’, a seção seguinte come-
ça por constatar o encanto que as pinturas rupestres das cavernas do Paleolíti-
co exercem sobre o homem contemporâneo e que, certamente, continuarão a
exercer sobre as gerações futuras. Em seguida, localiza essas pinturas concen-
tradas em uma região que vai do sudeste da França ao norte da Espanha, em-
bora elas também apareçam na Rodésia, no Peru, no Alasca, na Califórnia etc.
Aparecem gravadas em imensas galerias subterrâneas, ligadas ao solo
por estreitos labirintos, que se constituem em verdadeiras catedrais de pedras,
ricamente ornadas com magníficas pinturas de cenas de caças ou de cerimô-
nias rituais, além de figuras isoladas de animais em pleno movimento, numa
arte só comparável em virtuosismo e leveza à do naturalismo impressionista
moderno. De acordo com estudos arqueológicos, tal arte, tomada por alguns
como primitiva, decorreu de um longo processo de aprendizagem e matura-
ção artística, transcorrido ao longo de dezenas de milhares de anos.
Observando fenômenos como esse, se pode deduzir ser a arte uma for-
ma de expressão inata ao ser humano, sendo encontrada de maneira rudimen-
tar até entre os animais. Há relatos de brincadeiras e jogos corporais dentre os
chimpanzés que em muito se assemelham a danças encontradas dentre povos
que vivem imersos na natureza, como os pigmeus do Golfo de Bengala, na Ásia.
Estudar a relação entre homens e natureza e entre homens e animais,
particularmente em sociedades caçadoras como a dos pigmeus de Bengala,
através de seus ritos, nos ajuda a compreender as origens da arte. Esse tipo
de estudo mostra-nos como as pinturas rupestres, mais que um exercício de
70
BARROSO, O.

caça, retratam relações espirituais que se passam numa dimensão mítica, em


espaços de encantamento.
As pinturas rupestres do Paleolítico são imagens do sobrenatural imer-
sas em catedrais-templos para a prática de ritos anímicos, movidos por xamãs
no diálogo com os deuses. A grandiosidade desses espaços situa a arte dos
pintores rupestres no contexto da busca do humano pelo divino.
No item sob o subtítulo ‘Um Lento Caminho Para a Abstração’, a abor-
dagem se detém no período de transição do Paleolítico para o Neolítico, ou
seja, de uma lenta transição do naturalismo para um estilo que tende a um
geometrismo abstrato. Enquanto no sul da França e norte da Espanha ainda
predominava uma tendência ao naturalismo, no leste da Espanha caminhava-
-se para o expressionismo, a exemplo do que acontecia tanto no Oriente Pró-
ximo, quanto no norte da África. Em comum a esses povos, havia o fato de
serem civilizações agrárias.
De certa maneira, fica evidente que, nas sociedades agrárias, mais se-
dentárias e com organizações sociais mais ordenadas e hierarquizadas verti-
calmente, havia uma tendência para o expressionismo e para o geometrismo
abstrato, enquanto nas sociedades caçadoras, predominava o naturalismo.
Outra evidência parece ser uma tendência ao individualismo nas sociedades
caçadoras, onde a criatividade e a iniciativa individuais prevaleciam, contras-
tando com uma inclinação à construção coletiva e com a divisão social do
trabalho, nas sociedades agrárias.
Em vez de retratar um determinado ser, animal ou indivíduo humano,
se passava a retratar seres genéricos. O grupo, e não mais o indivíduo, era o
grande autor da obra de arte. A mulher e seu corpo, por ser fonte da vida, por
deter o mistério do nascimento, passavam a ser alguns dos temas preferidos
por aquela arte. Surgiu o artesanato e a domesticação dos animais.
Segundo alguns teóricos, entre eles Arnold Hauser, no Neolítico Supe-
rior, os homens não mais procuravam, com sua arte, imitar a natureza, mas
criar uma imagem artística a ela correspondente. Segundo essa concepção,
só no Neolítico os homens teriam percebido uma dimensão espiritual na rea-
lidade, passando da magia ao animismo. Entretanto, como o capítulo já mos-
trou em seu início ao falar das pinturas rupestres do Paleolítico, não apenas
essa dimensão espiritual, como a criação de uma imagem artística da realida-
de já estava presente na arte das grandes cavernas paleolíticas. Admite-se,
todavia, que o naturalismo em arte, no que diz respeito ao Neolítico, estaria
ligado preferencialmente aos povos de organização social menos rígida, en-
quanto o formalismo geométrico se relacionaria principalmente a sociedades
mais hierarquizadas.
71
Antropologia da Arte

O subtítulo ‘Um Abstracionismo Mágico’ trata do relato de uma experi-


ência dos índios tukano, que habitam a Amazônia colombiana. Começa afir-
mando que a arte nasceu, continua nascendo e nascerá em todo tempo e
lugar. Depois, usa o relato do antropólogo Gerardo Reichel Dolmatoff sobre
uma experiência dos tukano para mostrar que não há uma relação necessária
entre abstracionismo e racionalidade.
Segundo esse relato, em seus rituais sagrados, os tukano, utilizando alu-
cinógenos, chegam à percepção de sinais abstratos que, depois, organizam
de forma sistemática. Com esse verdadeiro “alfabeto” de sinais, traduzidos
em desenhos, ornam não apenas seus objetos rituais, mas também malocas,
vasilhas, máscaras, tamboretes etc. Ditos sinais são uma espécie de ideogra-
mas geométricos obtidos em transes, desenvolvidos em danças mascaradas.
Nessas danças, os tukano utilizam coberturas de corpo inteiro, com
máscaras faciais neutras sem aberturas para os olhos, de modo absoluta-
mente não realista. A falta de abertura para os olhos denota relações intros-
pectivas com os espíritos dos animais mimetizados, o que revela, portanto,
procedimentos não racionais. Com isso, fica evidente que, pelo menos no
caso tukano, não há uma relação necessária entre abstracionismo geométri-
co e racionalidade.

Atividades de avaliação
1. Qual é o papel do delírio e do sonho na criação artística?
2. Qual é o papel da intuição e da racionalidade na construção artística?
3. Para você, existe alguma relação entre abstracionismo e racionalidade, na-
turalismo e irracionalidade?

Texto complementar
Vitalino, Chico da Silva, Noza e Nino
Foram artistas populares nordestinos que viveram e produziram no século passado, tendo
se notabilizado e feito nome internacionalmente, mercê da excelência de seus trabalhos.
Vitalino era mestre e escultor em cerâmica. Pernambucano, nasceu e viveu em Caruaru,
onde produziu toda sua obra e fez escola. Chico da Silva, maranhense de nascimento,
dedicou-se à pintura, tendo vivido grande parte de sua vida no bairro do Pirambu, em For-
taleza, onde produziu a maior parte de sua obra e formou grande número de discípulos.
Noza foi santeiro e escultor em madeira na cidade de Juazeiro do Norte sob orientação do
Padre Cícero, ficando afamado entre os romeiros e devotos daquele santo popular. Nino
72
BARROSO, O.

foi escultor e criador em madeira de Juazeiro do Norte, que trabalhou temas diversos
sempre ligados à natureza e à vida popular sob uma ótica onírica e muito pessoal.
Francha, 1982, pp. 25-26
“dentro da primeira destas categorias há que incluir, evidentemente, a arte ocidental, po-
rém ainda a arte de civilizações tais que, possuindo algum gênero de escrita, tenham produzido
documentos que completem nosso conhecimento de tais artes, em relação com a biografia dos
artistas, ou em relação com outros pormenores ou aspectos diferentes: China, Japão, Índia e
outras civilizações antigas se acham neste caso. Dentro das artes pré-históricas há que incluir a
totalidade daquelas que correspondem a povos que não chegaram a dispor de um código es-
crito, e por conseguinte não podem oferecer documentos que sirvam de base para escrever a
história artística ou a complementem de maneira substancial. Daí que consideremos por igual à
arte “parietal” do sul da França e norte da Espanha, ou a arte norte-africana ou sahariana, ou a de
povos agricultores ou criadores de todos os continentes: a arte da cultura Jomom no longínquo
Oriente, ou a da cultura Hohokam no sudoeste dos Estados Unidos, ou a da cultura de Malkata,
na desembocadura do Danúbio. Todas elas, pelo fato de não poderem dispor de documentos
escritos, são pré-históricas, o que implica uma maneira diversa de tratar os dados, mais que uma
situação cronológica, que, evidentemente, não é similar nos exemplos mencionados, ou nem se-
quer uma identidade ou homologação cultural, o que tampouco se dá nos casos mencionados.”
Joseph Campbell
Considerado um dos maiores mitólogos de todos os tempos, nasceu no dia 26 de mar-
ço de 1904, na cidade de Nova York, Estados Unidos. O seu interesse pela mitologia foi
despertado na primeira infância quando seu pai o levou para ver um espetáculo de Búfallo
Bill denominado Wild West Show e para visitar o Museu de História Natural de Nova York,
onde as estacas totêmicas e as máscaras dos índios fascinaram-lhe. Para Campbell, a ri-
queza dos mitos não está em elucidar ou revelar algum tipo de significado para a vida, mas
o de ser um registro simbólico da própria experiência de estar vivo. O mito capta a vida no
seu eterno fluir. Joseph Campbell morreu em Honolulu, Havaí, em 30 de outubro de 1987.
Segue uma lista de suas obras publicadas em português:
EXTENSÃO INTERIOR DO ESPAÇO EXTERIOR - A metáfora como Mito e Religião. Rio de
Janeiro:Campus, 1991 - 168 p.Contém o delineamento da interpretação que Joseph Cam-
pbell tem da mitologia e da religião.
HERÓI DE MIL FACES São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1995 - 414 p. Nessa obra, a mais
conhecida e difundida de Campbell, o autor procura elucidar a figura do herói: Apolo, Wo-
tan Buda e numerosos outros protagonistas da religião, dos contos de fada de uma mesma
história. O relacionamento entre os seus símbolos intemporais e os símbolos detectados nos
sonhos pela moderna Psicologia Profunda é o pponto de partida oferecida por Campbell.
IMAGEM MÍTICA (A) Campinas, SP: Papirus, 1994 - 506 p. Profunda análise da unici-
dade da existência e da espiritualidade humanas, evidenciada, sobretudo, por meio do
estudo comparativo da imagística onírica e da mitologia do oriente e do ocidente.
MÁSCARAS DE DEUS (AS) - Mitologia primitiva São Paulo: Palas Athena, 1992 - 418
p. É o primeiro volume, de uma série de quatro, daquela que é a obra monumental de
Joseph Campbell. Contém uma abordagem dos mitos dos povos primitivos.
MÁSCARAS DE DEUS (AS) - Mitologia oriental São Paulo: Palas Athena, 1994 - 447 p.
Estudo da mitologia oriental, sobretudo dos mitos que se desenvolveram no Egito, China,
Tibete e Japão. É o segundo volume de uma série de quatro.
PARA VIVER OS MITOS São Paulo: Cultrix, 1997 - 217 p. Joseph Campbell mostra a
permanência, na moderna sociedade tecnológica, da influência dos mitos que motivaram
as sociedades pré-científicas.
PODER DO MITO (O) com Bill Moyers São Paulo: Palas Athena, 1990 - 242 p. Contém o
texto de uma conversação entre Bill Moyers e Joseph Campbell do qual foi extraída a minisé-
rie do mesmo nome de seis horas da Public Broadcasting System, rede de TV educativa dos
Estados Unidos. Esse livro apresenta uma visão ampla e profunda sobre a questão do mito.
73
Antropologia da Arte

TODOS OS NOMES DA DEUSA Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997 - 204 p.
Essa é a última obra escrita por Joseph Campbell. O trabalho conta com a colaboração de
Riane Eisler, Marija Gimbutas e Charles Musès e aborda o tema da Grande Mãe, arquétipo
que configura o princípio feminino doador e nutridor da vida.
TRANSFORMAÇÕES DO MITO (AS) São Paulo: Cultrix, 1992 - 246 p. Coletânea de treze
palestras proferidas por Campbell quase no final de sua vida, abordando, dentre outros,
temas como as origens do homem e do mito, o mito dos índios americanos, deusas e deu-
ses no período neolítico, o Egito, o Êxodo e Osíres.
VÔO DO PÁSSARO SELVAGEM - Ensaios sobre a universalidade dos mitos Rio de Ja-
neiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997 - 284 p. Uma interpretação de Campbell sobre a
universalidade dos mitos e sobre o mistério da mitologia e a sua importância frente aos
desafios com os quais se defronta a sociedade contemporânea.

Alfabeto Tukano - Tradução das legendas


• Vashú (árvore do óleo ou Havea paucíflora, var. coriácea) representa o órgão viril pela carne gela-
tinosa do fruto ou o latex da árvore tem conotação seminal em muitos mitos; árvore “macho”.
• Órgão feminino com um ponto central: fecundação.
• De várias cores: a Canoa.
• Anaconda do mito da Criação.
• Representa um grupo exogâmico
Ponto vermelho: “nossa gente”
Ponto azul: “outra gente”
• Relação recíproca entre dois ou mais unidades exogâmicas.
• Linha de descendência, fecundidade e continuidade social.
• Representa o incesto e as mulheres que alguém não pode tomar como esposas. Também con-
cha de caracol e signo de yusupari.
• Representa a exogamia. Também duas nasas juntas vistas de cima > órgãos femininos “devora-
dores”; os peixes que entram nelas são elementos masculinos.
• Representa a Via Láctea.
• Representa o Arco Íris, em alguns contextos mitológicos se relaciona com a vagina celestial.
• Representa o Sol. Se há vários círculos concêntricos ou os raios vão até dentro: órgão feminino.
• Representam: tamboretes de madeira dos homens pintados de listras vermelhas; e simbolizam
estabilidade e bom juízo.
• Representa o útero feminino.
• Representa uma porta de entrada ao útero. Também; os céus. Transmissão de um estado de
consciência a outro no processo alucinógeno. Representa um marco que rodeia o espaço vazio;
a protuberância superior representa o clitóris.
• Representa gotas de sêmen; a descendência da vida mesma.
• Caixa de ornamentos plumários; em algum contexto mitológico: são elementos femininos ou
uterinos.
• Representa o milho ou a vegetação em geral.
• Representa marcas de cabaça.
• Representa portacigarros de madeira empregados nos rituais em que se reafirma a aliança en-
tre unidades exogâmicas.
74
BARROSO, O.

Leituras, filmes e sites


Leitura
Strauss, Claude Lévi. Antropologia Estrutural dois. Rio de Janeiro, Tempo Bra-
sileiro, 1993

Filme
O Poder do Mito – Joseph Campbell. Narrado por Bill Moyers. Public Broad-
casting System

Referências
CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus – Mitologia Primitiva. São Paulo,
Palas Athena, 1992.
CHILDE, V. Gordon. A Evolução Cultural do Homem; Rio de Janeiro, Zahar,
2a. ed., 1971.
FRANCHA, José Alcina: Arte y Antropologia. Madrid. Alianza Editorial,
1982.
HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da Arte. São Paulo, Mestre
Jou, 1972.
KÖHLER,Wolfgang: The Mentality of Apes. Nova York, Humanities Press,
1927. 2ª.ed.
LE MASQUE: DU RITE AU THÉÂTRE. Paris, Editions du CNRS, 1988. Textes
et études réunis et presentes par Odette Aslan et Denis Bablet.
Capítulo 4
Arte, Magia e Máscara
77
Antropologia da Arte

Objetivo
• Discutir a relação entre arte e rito a partir do estudo do mito e da magia,
detendo-se especialmente na análise das máscaras rituais.

1. Pensamento Selvagem e Magia


Uma observação mais detida sobre a lógica do pensamento selvagem e da ma-
gia justifica-se aqui, não apenas porque as origens da arte estão ligadas aos ritu-
ais do Paleolítico Superior e do Neolítico, como também porque a magia observa
o mundo a partir de suas formas exteriores, ou seja, de sua estética, portanto, com
o instrumento da sensibilidade. Nesse sentido, a visão do mágico, bem como a do
xamã, ou seja, o modo como eles abordam o mundo, se aproxima da maneira de
ver do artista, já que este também trabalha a partir do sensível.
Considerada por muitos como uma forma de conhecimento pré-cien-
tífico, ou uma ciência do concreto, a magia, no dizer de Marcel Mauss, ou
o pensamento selvagem, segundo Lévi-Straus, se apresenta limitações no
terreno da manipulação técnica da natureza, mostra-se absolutamente ante-
cipatória às modernas teorias da comunicação no plano da associação das
ideias. Configura-se, como veremos, numa lógica estética; por isso, pode ser
perfeitamente aplicada ao estudo das formas artísticas.
Desde sua origem, o homem sempre teve sua curiosidade atraída pelos
mistérios da natureza, seja pela magnitude de seus espaços, seja pela inesgo-
tabilidade de seus elementos, seja pela infinitude de suas formas, seja por fa-
tos outros que nos desafiam a razão. Desorientado nos confins de um mundo,
a primeira vista incompreensível e caótico, observando o comportamento do
universo, o homem buscou apreender nele, alguns direcionamentos. Para tal,
fez ligações entre seus diversos elementos, comparou, aproximou, distanciou,
engendrou relações, para, afinal, chegar a, nele, surpreender determinadas
ordenações. Daí estabeleceu significados e alcançou sentidos para a existên-
cia não apenas do mundo, como também de si mesmo. Dessa maneira, viver
tomava razão e o ser humano podia estar em paz com seus espíritos.
78
BARROSO, O.

O homem selvagem, não por acaso, concebe o universo como dotado


de uma ordem, onde “cada coisa sagrada deve estar em seu lugar” (LÉVI-
-STRAUSS, 1989, p. 25), sob pena de que todo o universo seja destruído.
Nesse sentido, o pensamento selvagem diferencia-se da ciência porque, en-
quanto esta trabalha com diferentes níveis de determinismos, o pensamento
selvagem postula um determinismo global e integral. Entretanto, essa busca
de uma ordem nas coisas é não apenas comum à magia (enquanto lógica do
pensamento selvagem) e à ciência moderna, como é também uma expressão
antecipatória da primeira sobre a segunda.
Disso não se pode concluir, no entanto, que o pensamento selvagem,
como a magia, tenha gerado uma espécie de pré-ciência, no sentido de uma
ciência atrasada ou rudimentar.

Como muito bem observou Claude Lévi-Strauss,

Não apenas por sua natureza, essas antecipações podem às vezes


ser coroadas de êxito; elas também podem antecipar duplamente; em
relação à própria ciência e aos métodos e resultados que a ciência só
Ver LÉVI-STRAUSS, assimilará num estádio avançado de seu desenvolvimento, se é ver-
Claude - O Pensamento
dade que o homem enfrentou primeiro o mais difícil, ou seja, a siste-
Selvagem, Campinas (SP),
matização no plano dos dados sensíveis, aos quais a ciência voltou
Papírus, 1989, p.25)
as costas por muito tempo e que apenas começa a reintegrar em sua
Ver LÉVI-STRAUSS p. 26. perspectiva. (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 27).

No sentido empregado O pensamento mágico é muito mais outra forma de abordar a realidade
por Lévi-Strauss, de e de construir conhecimento. Liga-se à ciência como um correspondente e
homem que vive imerso na está, em certo sentido, muito mais próximo da arte. Tanto quanto a ciência, o
natureza, que se vê como
parte dela. pensamento mágico foi constituído a partir de milhares de anos de observa-
ções minuciosas e de experimentações metódicas, incontáveis vezes repeti-
Essa busca em estabelecer das, resultando de um longo processo de acumulação de saberes.
alguma espécie de
ordenamento também é Ciência e pensamento mágico (ou mítico, como veremos adiante) são
comum à arte. duas formas diferentes de abordagem da realidade pelo ser humano, e não
dois estágios evolutivos do conhecimento. Diferem entre si porque, enquan-
to a magia aborda a natureza a partir da intuição sensível, com a ajuda da
imaginação, a ciência se aproxima dela de modo deslocado. Em sua busca
de conhecer a realidade, o mágico move-se por sentimentos estéticos. Ele
pressupõe que características externas dos seres, como forma, cor ou cheiro,
correspondam a propriedades interiores desses mesmos seres. A partir de
critérios assim estabelecidos, o homem dito primitivo define classificações,
hierarquias e ordenamentos.
É preciso afastar definitivamente a ideia de que os ritos, e os mitos dos
quais os ritos derivam, assim como as técnicas da magia, sejam fabulações
79
Antropologia da Arte

e procedimentos alheios à realidade. Pelo contrário, são processos de co-


nhecimento do mundo real e de intervenção no mundo real; são maneiras de
perceber e pensar o sensível, no plano do sensível, de especular sobre o exis-
tente a partir de como ele se apresenta aos nossos sentidos, entendendo o
mundo sensível como expressão do mundo espiritual, esferas de um mesmo
universo, diferentes, porém, indissociáveis.
Em seu livro Sociologia e Antropologia, Marcel Mauss refere-se à ma-
gia como uma “gigantesca variação do tema do princípio de casualidade”
(MAUSS, 1974, p. 93), desenvolvida através de raciocínios analógicos. Para
esse antropólogo, o pensamento mítico como que se desdobrou em dois se-
guimentos: um em direção ao animismo e à religião e outro em direção à ma-
gia, às técnicas e aos saberes práticos, que foram responsáveis por inúmeras
contribuições às ciências modernas. Segundo ele,

...certas técnicas de finalidades complexas e de ação incerta, métodos


delicados, como a farmácia, a medicina, a cirurgia, a metalurgia, a es-
maltação (as duas últimas são as herdeiras da alquimia) não poderiam
ter vivido se a magia não lhes tivesse oferecido apoio e, para fazê-las
perdurar, não as tivesse, em suma, quase absorvido. Encontramo-nos
no direito de dizer que a medicina, a farmácia, a alquimia, a astrologia
desenvolveram-se na magia, ao redor de um núcleo, ao máximo redu-
zido, de descobertas técnicas. (MAUSS, 1974, p. 169).

Enquanto, nas sociedades ditas primitivas, os sacerdotes enveredavam


em problemas metafísicos, os mágicos tinham sua atenção chamada pelo
concreto, dedicando-se a conhecer a natureza. Depressa organizaram índi-
ces dos mais diferentes seres e fenômenos, gerando os primeiros repertórios
que viriam a, no futuro, alimentar diversas ciências, como a astronomia, a
física, a medicina, a botânica, a química, a matemática etc. Nas grandes ci-
vilizações orientais e até mesmo na Europa, pelo menos até o Renascimen-
to, magia e ciência coexistiram como conhecimentos válidos no corpo e na
mente dos mesmos sábios. Assim é que alquimistas eram também químicos,
e astrólogos, astrofísicos. “As matemáticas por certo muito deveram às pes-
quisas sobre os quadrados mágicos ou sobre as propriedades dos nomes e
das figuras.” (MAUSS, 1974, p. 171).
O princípio mais geral observado na natureza pelos alquimistas, segun-
do Mauss (1974), é o de que “um é o todo, e o todo é um” (MAUSS, 1974, p.
102), no sentido de que o todo está na menor parte de um e de que essa me-
nor parte contém o todo. A partir desse princípio, o mundo é concebido como
um ser único, como um grande ser vivo, que é composto de partes indissocia-
velmente ligadas e no qual tudo se assemelha e se toca. Desse princípio mais
geral, derivam todas as demais leis da magia.
80
BARROSO, O.

Há o costume entre os O conjunto de suas variações pode ser sintetizado em três leis princi-
romeiros que vão aos pais, nomeadas pelos antropólogos como leis da magia simpática, estando
santuários de Canindé subentendido no termo simpatia, o termo antipatia, como seu contrário. São
e Juazeiro do Norte, elas: a lei da contiguidade ou do contato; a lei da similaridade, da semelhan-
no Ceará, de passarem
por Fortaleza em seus ça ou similitude; e a lei do contraste ou do contrário. Cabe observar que es-
transportes (antigamente sas leis correspondem a leis da percepção estética e funcionam tanto na arte
caminhões ‘paus-de-arara’ quanto na comunicação de um modo geral, sendo que, na magia, elas, não
e atualmente ônibus ‘semi- se limitando ao campo dito subjetivo, aplicam-se ao campo dos fatos conside-
leitos’) para conhecer o
mar. Geralmente fazem rados pela ciência como objetivos.
uma parada à beira- Pela lei da contiguidade ou do contágio, os seres (pessoas ou coisas)
mar, molham os pés nas colocados em contato permanecem unidos, mesmo depois de separados.
ondas que alcançam o
começo da praia e enchem Não apenas cada parte de uma pessoa (ou de uma coisa), mas também toda
muitas garrafas com água e qualquer coisa ou pessoa que com esta entrou em contato, mesmo depois
salgada. Voltam contentes de separada dela, permanece a ela ligada. Uma mecha de cabelo, um pedaço
por levarem consigo de unha, uma gota de suor, mas também um retalho de roupa, uma pegada,
uma lembrança do mar
e poderem mostrá-la aos uma impressão digital, uma cadeira onde ela sentou-se, uma pessoa muito
parentes e amigos que chegada, um filho, um cônjuge, um parente próximo, tudo está a ela ligado.
ficaram. Agindo sobre qualquer um desses elementos se está agindo sobre ela, porque
é também algo dela, de sua ânima, de sua energia, da essência de seu ser.
Nem mesmo precisa ser muito íntimo ou de contato muito frequente, basta
haver sido tocado por ela, ter entrado em contato com ela: restos de comida,
um copo usado ou coisas semelhantes.
Pela lei da similaridade ou similitude, o semelhante evoca e produz o
semelhante, atua sobre e cura o semelhante. Do mesmo modo que, na semió-
tica, o ícone está para o objeto representado, assim como o índice está para o
seu referente, na magia simpática, “a imagem está para a coisa como a parte
está para o todo” (MAUSS, 1974, p. 97)
Nos processos mágicos, muitas vezes, as leis da contiguidade e da
similitude se fundem e atuam concomitantemente através de metáforas e ima-
gens outras, as mais diversas. Assim é que o mar pode ser representado por
uma garrafa contendo água salgada, a chuva por um “pau de chuva”, o amor
por um laço etc.
"Pau de chuva"
Pela lei da contrariedade, o contrário atua sobre o contrário, ou seja, se
Trata-se de um grande
cilindro de bambu ocado o semelhante atrai o semelhante, afasta seu contrário. Daí tem-se a simpatia e
contendo sementes a antipatia como noções complementares. O “pau de chuva” chama a chuva
que, quando virado e afugenta a seca. Porém, se o caso é afastar a chuva, tem-se que trabalhar
verticalmente, produz um
com seu contrário, isto é, com algo que represente a seca. O que difere é
som semelhante ao da
chuva. o ponto de partida, que, nesse caso, não é atrair a chuva, mas afugentá-la.
Então, o mais aconselhável talvez seja usar o elemento fogo, quem sabe uma
fogueira, para evocar o sol, por exemplo.
81
Antropologia da Arte

Depois de descrever o que ele chamou de leis ou princípios da ma-


gia simpática, Mauss (1974), como Frazer já havia feito anteriormente em
O Ramo de Ouro (FRAZER, 1982, p. 34), as qualifica como “uma série de
formas vazias, ocas, de resto sempre mal formuladas, da lei da causali-
dade” (MAUSS, 1974, p. 105). Reconhece, entretanto, logo em seguida,
que os mágicos, em razão de suas observações e especulações sobre as
propriedades concretas de diferentes elementos da natureza, assim como
acerca das relações de causalidade entre eles, chegaram a estabelecer
rudimentos de leis científicas.

Atividades de avaliação
1. O que faz parecer e o que faz diferenciar a magia e a ciência?
2. O que aproxima e o que distancia a magia da arte?

2. O Mana
A magia, sempre e de alguma maneira, está ligada ao coletivo. Enquanto en-
cenação de mitos, ela refere-se à reprodução de narrativas associadas às
origens sociais dos grupos nos quais acontece. A uma primeira vista, trabalha
pela manutenção da ordem coletiva original, embora de modo sempre reno-
vado. Entretanto, por uma série de acontecimentos “extraordinários”, essa or-
dem “natural” das coisas é alterada – comportamentos mudam, catástrofes
acontecem, ciclos naturais se alteram, seres anormais aparecem, produzem-
se rupturas –, o que os mágicos procuram atribuir a uma força excepcional,
produzida ela também por seres excepcionais.
Essa força excepcional, que os mágicos dizem ter um poder mágico,
uma magia, aparece entre os mais diversos povos com diferentes designa- Ver LÉVI-STRAUSS,
Claude - O Pensamento
ções. Na Polinésia, toma o nome de mana; no norte da Indochina, de deng;
Selvagem, Campinas (SP),
em Madagascar, de hasina; entre os iroqueses da América do Norte, de oren- Papírus, 1989. Páginas 142
da; entre os algonquin também da América do Norte, de manitu; na Melanésia, a 145.
de kramât; no México e na América Central, de naual; na Austrália, de boolya;
Mana
na Nova Gales do Sul, de koochie etc.
A palavra será usada
A qualidade ou propriedade mágica, seja de um objeto (natural ou arti- daqui em diante como
ficial) ou de um ser vivo (vegetal, animal ou mesmo de uma pessoa), advém, uma denominação geral
incluindo todas as suas
geralmente, de características aparentemente fortuitas, raras ou paradoxais,
equivalentes.
como o de vegetais com formas humanas. No caso de objetos, pode-se exem-
plificar com aqueles de formatos inusitados ou descobertos fora dos locais
costumeiros, meteoritos, pedras furadas, fósseis de animais pré-históricos etc.
82
BARROSO, O.

No caso de pessoas, são exemplos: deficientes físicos ou mentais, gêmeos,


bebês nascidos precocemente, crianças que falaram antes do tempo ou que
tinham comportamentos outros estranhos na barriga da mãe, mulheres ou
homens que alcançam idades muito avançadas etc.
Na concepção anímica do pensamento mágico, em que a natureza é
manifestação do divino e cada ser é dotado de alma, o mana é especialmente
uma força espiritual, embora não possa ser confundido com o espírito de modo
geral. Isso porque, se ele está presente nos homens e nas mulheres, mas tam-
bém entre os bichos e as plantas e mesmo nos minerais, ele está desigualmen-
te distribuído. Entre os mortos, têm mana apenas os espíritos dos chefes de clãs
ou daqueles indivíduos nos quais, em vida ou por milagre após a morte, o mana
manifestou-se. Os demais, mesmo dotados de espírito, não possuem mana e
“se perdem na multidão das sombras vãs” (MAUSS, 1974, p. 139). Paradoxal-
mente, ele pode estar ligado a uma pedra que tenha um formato especial ou a
um objeto pertencente a alguém dotado de poderes mágicos.
No mundo da magia, o mana tem um sentido polivalente, porque ele
não apenas designa a força, como também o estado e a ação mágica de algo
ou de alguém. Ou seja, o termo pode funcionar tanto como adjetivo, quanto
como substantivo ou verbo. Pode-se dizer que certa pessoa ou certo objeto
tem mana, no sentido em que dizemos que alguém tem carisma, ou seja, que
é carismático, imantado, no caso, impregnado de mana. Em outro sentido
se pode dizer que alguém age com mana, ou seja “manamente”, do mesmo
modo como se diz que alguém age magicamente. Finalmente, se pode referir
ao mana de um objeto ou de alguém, assim como ao ato de um pajé ou xamã
impregnar de mana (“manar’)” determinado ser ou objeto.
Mesmo sendo propriedade do objeto, o mana o transcende, dele des-
prega-se. Seguindo os princípios da magia simpática, o mana transfere-se
de ser a ser, de objeto a objeto, de ser a objeto, de objeto a ser, acumula-se,
esvai-se, por contagio, por similitude, por contraste. O mana manifesta-se ma-
terialmente. Toma forma, é visto, ouvido, sentido, tocado. Desprende-se das
coisas feito chama, feito vento, feito nuvem.
Os Huron da América do Norte, que nomeiam o mana como orenda, o con-
cebem como poder místico, inerente a tudo o que existe na natureza e além dela.

Os fenômenos naturais, como o temporal, são produzidos pelo orenda


dos espíritos desses fenômenos. Caçador feliz é aquele cujo orenda
venceu o orenda da caça. O orenda dos animais de difícil apreensão
é considerado inteligente e maligno. Vêem-se por toda parte, entre os
Huron, as lutas dos orenda, como se vêem, na Melanésia, as lutas dos
mana. Também o orenda é distinto das coisas às quais se liga – e a tal
ponto que pode ser exalado e lançado: o espírito fazedor de tempestades
lança seu orenda representado pelas nuvens (MAUSS, 1974, p. 142).
83
Antropologia da Arte

Esse carisma, essa energia mágica, esse fluido místico, que na Me-
lanésia se chama mana e os Huron chamam orenda, não pode ser con-
fundido com alma ou espírito individual, muito menos com força, vigor ou
poder material. É antes uma potencialidade que se manifesta no som que
os seres emitem: no berro dos bichos, no sopro do vento, no farfalhar das
árvores, no marulho da água, no canto dos pássaros e dos xamãs e nas
preces dos sacerdotes. É ele que se manifesta como força nos encanta-
dos, nos amuletos, nos fetiches, nos talismãs, nos mascotes, nas mezi-
nhas, nos ex-votos, nos remédios etc.
Diferentemente de outras ideias que presidem o funcionamento lógi-
co da magia simpática, como os princípios do contágio, da similitude e do
contraditório, o mana não é uma categoria do entendimento individual. Ten-
do seu funcionamento condicionado pelo coletivo, sua existência pressupõe
uma crença partilhada socialmente. Melhor dizendo, enquanto os princípios
lógicos sistematizados pelos mágicos podem ser perfeitamente aplicados ao
homem moderno, no terreno da comunicação de massas, como já foi mos-
trado anteriormente, a crença na força mágica (no mana) fica cada vez mais
restrita a setores da sociedade em que a racionalidade moderna não moldou
completamente. Daí que, como afirma Marcel Mauss, tudo leva a crer que a
associação de ideias por contágio, similitude e contradição seja algo inerente
à espécie humana, como a noção de tempo e espaço, por exemplo.
A noção de mana, porém, faz das associações naturais de ideias pre-
ceitos imperativos, que implicam consequências práticas necessárias e obje- Ver MAUSS p. 148.
tivas. A crença na objetividade dos preceitos gerados por tais associações de
ideias, para torná-los eficazes, necessita do compartilhamento comunitário, Para os mágicos, esses
ou seja, que elas sejam reproduzidas na mente do conjunto dos indivíduos são princípios gerais que
se referem ao conjunto
envolvidos nos rituais de magia. Nesse sentido, se pode dizer que a magia
da natureza e não apenas
só existe no coletivo, em sociedade, que ela só tem lugar em culturas onde a às leis do pensamento
massa dos indivíduos compartilha seu modo de ver o mundo. humano.
Nos rituais mágicos, a comunidade inteira atua, não havendo ofi-
ciante único ou protagonistas exclusivos, nem separação atores/especta-
dores, palco/plateia. Neles, toda a comunidade participa ativamente, atua
como um bloco único, por assim dizer, como um só indivíduo, na forma de
um grande corpo social. Referindo-se à dança com sabres das mulheres
dayak, uma tribo marítima da Nova Guiné, na ocasião em que os homens
se ausentam para a caça, a pesca ou a guerra, Marcel Mauss nos dá uma
magnífica descrição:

Anima-se todo o corpo social num só movimento. Não há mais indiví-


duos, que, por assim dizer, são as peças de uma máquina, ou ainda,
os raios de uma roda, uma ronda mágica, dançante e cantante, seria a
imagem ideal, talvez primitiva, mas que com certeza se reproduz ainda
agora nos lugares citados e ainda alhures. Este movimento rítmico,
84
BARROSO, O.

uniforme e contínuo, é a expressão imediata de um estado mental em


que a consciência de cada um é monopolizada por um só sentimento,
uma só idéia alucinante – a da finalidade comum. Todos os corpos
têm o mesmo balanço, todos os rostos têm a mesma máscara, todas
as vozes têm o mesmo tom, sem contar a profundeza da impressão
produzida pela cadência, pela música e pelo canto. Vendo em todas
essas figuras a imagem do desejo comum, ouvindo de todas essas
bocas a prova da certeza comum, cada um sente-se, sem resistência
possível, aderir à convicção de todos. Confundidos no transporte de
sua dança, na febre de sua agitação, formam um só corpo e uma só
alma (MAUSS, 1974, p. 161).

Para que a tribo tenha êxito na guerra, tanto a coragem dos homens nas
armas, quanto o empenho das mulheres na dança são imprescindíveis. Como
imprescindível é que ambos, homens e mulheres, acreditem nos seus ritos e
acreditem na crença de uns nos outros. Só então, a passagem do mana gera-
do pela dança das mulheres efetiva-se no corpo dos guerreiros dayak.
Destaque:
Atualmente, mesmo em sociedades ditas modernas, como a brasileira, ocor-
rem fenômenos semelhantes. Tome-se, por exemplo, o que acontece no mun-
do do futebol, durante as Copas do Mundo, quando dezenas de milhões de
brasileiros formam “aquela corrente prá frente”, torcendo freneticamente pela
seleção canarinha, em frente à televisão, acreditando (mesmo inconsciente-
mente, tal o fervor com que o fazem) estar contribuindo para o desempenho
dos atletas como se estivessem presentes ao local dos jogos.
Essa não observância do espaço tridimensional, em que a distância não
impede sua transmissão imediata, coloca o mana e o mundo da magia em uma
dimensão da realidade separada, oculta, por assim dizer, destacada das que cos-
tumeiramente percebemos. Sem deslocar-se de todo do mundo natural, constitui-
-se, entretanto, como que uma quarta dimensão do espaço, que se superpõe ao
mundo real, unido a ele e, contudo, dele apartado. Penetrar essa dimensão invisí-
vel do real requer poderes e saberes raros e complexos, que incluem acervos de
gestos, palavras e procedimentos, entendimento de princípios e conceitos, assim
como de atos formais, conhecimentos completos de substâncias e de conexões
entre seres e objetos, enfim, o domínio do ofício da magia.
85
Antropologia da Arte

Atividades de avaliação
1. Segundo a concepção anímica do mundo, como se explicam as mutações
na ordem natural do universo?
2. Por que se diz que a noção de mana não é uma categoria do entendimento
individual?
Ver MAUSS p. 56.
3. O Mágico e sua Performance
Ver ELIADE 1976, p. 25.
O mágico é sempre alguém especial dentro da comunidade, alguém particular-
mente vocacionado para viver experiências místicas. Pode ser distinguido por “não se trata, de maneira
nenhuma, de alucinações
certos atributos ou sinais. Em certos casos, a magia aparece como atributo de
e sua fabulação se atém
famílias inteiras detentoras de determinados segredos e receitas, assim como a modelos tradicionais
de castas completas, no caso da Índia, onde a dos ksatriya detinha o privilégio. coerentes, bem articulados
Particularmente inclinadas à magia são figuras consideradas estranhas e de um conteúdo teórico
assombrosamente rico.”
ou excêntricas, que chamam a atenção por defeitos físicos ou habilidades
raras, causando temor, piedade ou repugnância, como aleijados em geral,
corcundas, cegos ou, ao contrário, ventríloquos, malabaristas, acrobatas, far-
santes etc. Em muitas sociedades, a magia aparece associada a profissões
que guardam com ela alguma correspondência, como a do médico, a do ator,
a do coveiro, a do ferreiro, a do pastor, a do barbeiro, sendo, nesse caso, o
poder mágico atributo da corporação, mais que do sujeito. Em direção seme-
lhante, são considerados como presumivelmente mágicos, grupos errantes
que cruzam povos sedentários, como ciganos e mercadores.
Na Sibéria, assim como ao norte do Oriente asiático, onde tomam o
nome de xamãs, os mágicos são recrutados tanto por transmissão hereditária
de saberes, quanto por vocação espontânea. Embora alguns se tornem má-
gicos por vontade própria ou por designação de seus clãs, são considerados,
nesses casos, mais frágeis do que aqueles que recebem o ofício por herança
ou por chamamento dos deuses.
De todo modo, para serem reconhecidos como verdadeiros xamãs, os
candidatos carecem passar por um processo de iniciação que inclui um duplo
aprendizado: um primeiro de natureza extática, no qual procura desenvolver a
capacidade mediúnica e imaginativa (transes, sonhos, delírios, danças, jejuns
prolongados etc.) e um segundo de natureza tradicional, no qual são aprendidos
técnicas de magia, ritos, nomes e atributos dos espíritos, códigos secretos, mito-
logia e genealogia do clã, alquimia, astrologia e demais saberes ocultos.
Referindo-se aos sonhos xamânicos experimentados durante os pro-
cessos de iniciação, Mircea Eliade é enfático: “no se trata, em ningún caso,
86
BARROSO, O.

de alucinaciones y esta afabulación se atienen a modelos tradicionales co-


herentes, bien articulados y de un contenido teórico asombrosamente rico”
(ELIADE, 1976, p. 30).
Está claro, portanto, que, embora inclinado a viver experiências místicas, o
mágico é um profissional que detém um saber técnico; ele é senhor de um ofício,
de instrumentos de trabalho, de um acervo de utensílios, de preceitos, de receitas
e de ritos. A esse acervo, ele recorre nas mais diferentes situações, para solucio-
nar os mais diversos problemas com que se depara durante sua lida, como um
bricoler. No seu ofício, o mágico pode lançar mão de colaboradores, de espíritos
auxiliares, que em muitos casos são espíritos de animais, ou de entidades parti-
culares, que dão nome aos terreiros. Cabe aqui o exemplo dos homens-animais
e, particularmente, do homem-jaguar, entre os Tukano do alto Amazonas, em que
o espírito daquele animal funciona como um auxiliar dos pajés, ou ainda o caso
do espírito do cangaceiro Pai Francisco – ex-membro do grupo de Lampião, que
tem função idêntica no terreiro de Umbanda, por nome Rei do Cangaço, no bairro
Presidente Kennedy, em Fortaleza –, que funciona como entidade auxiliar da Mãe
de Santo Maria Linduína Souza, a Linduína do Cangaço.
O rito mágico exige, de seu oficiante, uma série de preparativos, cuida-
dos e ritos preliminares que, algumas vezes, podem se estender às suas famí-
lias e aos seus grupos sociais, assim como à pessoa ou ao grupo de pessoas
objeto do rito, se for o caso. Há prescrições no sentido comportamental, como
a observação da castidade, do isolamento e do jejum, assim como relativas a
pequenos ritos, como o de ungir-se ou o de fazer abluções prévias, ou ainda
em relação ao visual adequado, incluindo trajes, pinturas, máscaras, cobertu-
ras de cabeça etc. Além disso, e mais importante ainda, é preciso manter-se
concentrado e circunspecto: presente na fé.
Destaque:
No ano de 2003, pude acompanhar os preparativos do terreiro de umbanda
Pai do Cangaço, citado acima, para os rituais da Festa de Iemanjá, na Praia do
Futuro, em Fortaleza. A Filha de Santo escolhida para incorporar a entidade, na
semana anterior à festa, observou um período de retiro, jejum e abstinência se-
xual. Para o ritual do dia, vestiu-se de acordo com o figurino de Iemanjá, sendo
acompanhada de um séquito de meninas trajadas de branco com pequenas
grinaldas na testa, ao modelo dos trajes católicos de anjos ou de 1ª comunhão.
Durante toda a cerimônia, ela manteve-se absolutamente concentrada e em po-
sições correspondentes ao imaginário da entidade, embora os rituais tenham se
prolongado durante muitas horas seguidas sob a luz ardente do sol, à beira-mar.
O mágico executa seu rito, recorrendo a uma performance absoluta-
mente estudada. Seus gestos são bruscos, suas palavras cortantes, há uma
tensão que perpassa todo o seu corpo. Muda o ritmo usual da fala, joga com
87
Antropologia da Arte

as palavras, usa códigos incompreensíveis. Mostra certo nervosismo, pode De acordo com Marcel
cair em transes nervosos, crises de histeria, estados catalépticos, êxtases, Mauss, acreditava-se que
isso acontecia inclusive
provocados ou não. Parece estar fora de si e transitar, num estado anormal,
com as almas vulgares (Ver
por uma outra dimensão do real. MAUSS, 1974, p. 64). Mas,
Ao mesmo tempo, ao executar seus procedimentos, o mágico demons- ao contrário das outras
almas, no caso do mágico,
tra uma habilidade manual extraordinária e completo domínio sobre si mesmo.
a alma se solta ao seu
Sua movimentação é extremamente formal e refinada, repleta de preciosismo. comando.
Ele trabalha com os mais diferentes materiais: madeira, metal, barro, cera,
mel, gesso, papel mascado, plástico etc. Esculpe, modela, pinta, desenha, Ver MAUSS p. 65.
borda, tricota, tece, grava, marcheteia. Manipula essências, mezinhas, raízes
Penso também no dom
etc. Fabrica manipanços, escapulários, talismãs, amuletos etc. de ubiquidade de que se
Durante sua performance, o corpo do mágico permanece imantado. fala sobre certos santos
católicos como Santo
De seus movimentos, de seus gestos (sejam os mais largos, ou os mínimos,
Antônio e São Francisco.
como o piscar de olhos), de seus próprios pensamentos, emanam eflúvios
que contagiam o mundo da natureza e dos espíritos. Seus poderes especiais Claro que há inúmeros
o fazem infenso à lei da gravidade; por isso, pode elevar-se no ar, deslizar casos de falseamento,
simulações, charlatanismo
sobre o chão, flutuar, transportar-se para onde queira. Tem, ainda, o poder
etc.
da ubiquidade: é capaz de dilatar seu próprio corpo e de realizar movimentos
impossíveis para os outros.
A ubiquidade do mágico se exerce a partir do deslocamento de sua
alma. Acredita-se, ainda hoje, nas sociedades animistas, que as almas dos
mágicos deixam seus corpos, durante o sonho, e passeiam sob formas de
moscas ou de borboletas. Um dos sinais reconhecíveis desse deslocamento
é o de uma mosca sobrevoar-lhe a boca enquanto dorme. Mas a alma do má-
gico pode também deixar seu corpo durante uma sessão espírita e deslocar-
-se para agir fisicamente, como um duplo. Marcel Mauss (1974) cita o exem-
plo de um feiticeiro dayak que se transportava para procurar seus remédios.
Só aparentemente ele continuava presente na sessão; os assistentes o viam,
mas, de fato, ele estava ausente de corpo e alma.
Especialmente em sua forma xamânica, a magia inclui o estado de pos-
sessão. O feiticeiro cede seu corpo, anulando sua individualidade, à incor-
poração de uma personalidade, de certa maneira, a ele estranha. O mágico
é como que possuído por uma entidade. Entretanto, as entidades a serem
incorporadas, quase sempre arquetípicas de algum modo (mesmo que de
maneira embrionária), subjazem no inconsciente do indivíduo. Cabe ao xamã,
por processos extáticos, extraí-las e ampliá-las, dando-lhes forma com seu
próprio corpo: ação, voz, gesto, movimento, expressão facial etc.
Cada mágico, cada xamã, cada médium, cada pai ou mãe de santo têm
suas entidades, seus espíritos, seus orixás, que incorporam e que, de algum
modo, trazem dentro de si e são capazes de exteriorizar. Se eles são possuí-
88
BARROSO, O.

dos, conhecem o espírito que os possui. Se a incorporação acontece em tran-


se, ela se realiza de modo controlado, provocado, consciente. De alguma ma-
neira, dominam o processo de sua própria possessão, dirigem de dentro seu
processo, tornam mais lentos ou aceleram os passos da dança, diminuem ou
apressam o ritmo da música, alternam a coreografia, usam o fumo, a bebida,
o perfume etc. “Em suma, a qualidade de ser possuído é uma qualidade pro-
fissional do mágico não apenas mítica, mas física e é uma ciência da qual os
mágicos têm sido desde muito tempo os depositários” (MAUSS, 1974, p. 69).
Em sua atuação, o mágico trabalha com o corpo e o espírito alterados,
seus gestos são solenes, sua voz aparece modificada, soa como se não sa-
ísse dele, sua linguagem não parece humana, assemelhando-se a um código
cifrado por deuses. Trabalha com toda concentração. Em nenhuma hipótese,
pode ser interrompido, sob pena de quebrar-se a magia.
Os processos extáticos nos transes xamânicos, em todo caso, envol-
vem não apenas o mágico, mas o conjunto dos circunstantes. Desenvolvem-
-se em ritos nos quais participam não apenas o feiticeiro e seus clientes, mas
quase sempre toda uma coletividade. A música contínua e repetitiva, os man-
tras cantados, as defumações, a coreografia circular, os fluidos diversos, entre
outras técnicas, levam o grupo dos circunstantes a comungar uma atmosfera
espiritual e fisiológica única.
Durante o rito mágico, oficiante e coro, sacerdote e fiéis, feiticeiro e co-
munidade formam um corpo único. Mas embora ele, mágico, possa sozinho
alcançar o transe e desejar, de fato, obter o resultado mágico pretendido por
mais difícil que se apresente, sua força, seu mana, seu poder mágico, acaso
ele hesite, duvide ou fraqueje, sustenta-se no coletivo, na ânsia da comunida-
de para conseguir o objetivo projetado.
De certa maneira, a atuação do mágico situa-se entre o dirigir e o ser
dirigido pela coletividade. Durante o rito, ele conduz e é conduzido do êxtase
à catarse, do estado de exaltação absoluta ao de serenidade, do descome-
dimento ao equilíbrio, pelo apaziguamento das paixões. Em torno do mágico,
todo o grupo coloca-se em movimento, movido por uma vontade única.

Trata-se de todo um meio social que se emociona só porque num de


seus setores realiza-se um ato mágico. Forma-se em volta desse ato
um círculo de espectadores apaixonados, que o espetáculo imobili-
za, absorve e hipnotiza, que, tanto quanto espectadores, sentem-se
também atores da comédia mágica, como o coro no antigo drama
(MAUSS, 1974, p. 160).
89
Antropologia da Arte

Atividades de avaliação
1. Nas sociedades tradicionais, qualquer indivíduo pode ser um mágico (ou
um xamã)?
2. O mágico é um ilusionista, ou seja, suas técnicas estão voltadas para iludir
os sentidos dos circunstantes? Ou, de fato, através de rituais extáticos co-
letivos, ele consegue proezas de outro modo inconcebíveis?

4. Máscaras Rituais
As mascaradas, enquanto ritos coletivos, ligam-se, costumeiramente, à re-
novação da vida comunitária: não apenas aos laços da comunidade consigo
mesma, mas dela com a natureza e com o universo. Até hoje, nas sociedades
tradicionais africanas e ameríndias, o uso ritual das máscaras está relacio-
nado aos ritos agrários, de morte e de iniciação, quando não diretamente à
encenação dos mitos de origem do universo.
Uma das primeiras funções da máscara é a de apagamento do indiví-
duo. Nos rituais de iniciação da África Ocidental, entre os Komo e os Nama
Koro, as danças mascaradas relembram que “o adolescente deve morrer na
sua condição anterior para nascer na sua condição de adulto” (DIETERLEN, A citação tão extensa
1988, p. 28). Elas funcionam como uma via de comunicação entre a vida e justifica-se, como o
a morte, um ponto de ruptura da ordem cósmica, uma abertura entre planos leitor verá, porque, mais
diferentes da realidade. adiante, estabelecerei uma
correspondência entre
As máscaras rituais quase nunca se restringem a um adereço de ros- essa máscara bambara e
to, aparecendo na forma de coberturas de corpo inteiro. Nos ritos de renova- a máscara do Jaraguá, tal
ção cósmica, geralmente, elas não representam uma entidade única, mas qual aparece nos Bois e
Reisados brasileiros. Trata-
procuram expressar o conjunto de elementos que estão incluídos no mito fun- se, como verão os leitores,
dador do universo de uma determinada sociedade. Germaine Dieterlen, em no caso da máscara
pesquisa desenvolvida na África Ocidental, antigo reino de Bambara, região do Jaraguá, de uma
do atual Mali, margens do Rio Níger, faz uma constatação muito reveladora ressignificação cômica de
uma antiga máscara ritual
nesse sentido:

Nas grandes sociedades de iniciação Bambara, quando um iniciado


fala da “cabeça de Komo”, ele entende, com isso, um conjunto que
constitui a máscara propriamente dita: a cabeça que toma emprestado
seus elementos morfológicos ao crânio estreito da velha hiena, asso-
ciado ao conhecimento profundo, à boca (goela) do crocodilo, que car-
rega o primeiro ser por entre a maré no arco da criação, e aos cornos
do antílope que simbolizam, por suas extremidades pontudas, o brilho
90
BARROSO, O.

inicial da criação; a túnica feita de bandas de algodão sobre as quais


são fixadas as plumas de abutre carregadas de 266 signos da criação;
as patas de elefante, fixadas à cabeleira do dançador simbolizando os
pilares, as vigas ou os esteios do universo; o apito em ferro ou em cou-
ro evocando, por seu grito estridente, o sopro inicial da criação; o esti-
lete de taumaturgia [magia], instrumento por excelência das execuções
rituais etc. Enfim, a cabeça de Komo, dito komo ku, designa igualmente
o portador de todos esses objetos e a dança que esse portador efetua.
(DIETERLEN, 1988, p. 27)

De um modo mais geral, porém, como dissemos anteriormente, elas


estão voltadas para a anulação do indivíduo. Trata-se, num primeiro momen-
to, de máscaras neutras, quase sempre sem abertura de olhos ou traços de
identificação, cujos invólucros ocultam o corpo dos portadores. Em regiões do
mundo tão distantes como a Sibéria, a América do Sul e a África, máscaras
de diferentes materiais – até mesmo uma franja espessa de cabelos ou uma
cortina de fitas sobre o rosto – anulam a visão do xamã.

Máscaras Waurá MT

Por meio dessas máscaras, procura-se apagar a visão humana, trans-


portando os atores do rito à dimensão do invisível. Nesse plano, eles se olham
apenas a si mesmos, tornando-se invisíveis uns aos outros. É daí que, por
ocasião dos transes coletivos, dançam e cantam durante toda a noite, evi-
tando se colocarem de frente uns aos outros e se olharem nos olhos. Isso
porque, embora eles, os xamãs, estejam ali durante os rituais, o estão numa
91
Antropologia da Arte

espécie de presença ausente, em uma dimensão outra que não a dos mortais. Mais adiante, veremos que
esse alheamento nunca é
Encontram-se, no caso, voltados para dentro de si próprios, não tomando co-
completo.
nhecimento do que acontece no mundo em volta.
Em princípio, trata-se de máscaras sem traços identificadores, conce- Tanto é que, muitas
vezes, quando não utiliza
bidas para evidenciar o anonimato de seu portador, pois fazem com que sua
a máscara, o mágico
voz não pareça vir de parte alguma. Compreende-se que assim seja, porque lança mão do recurso da
os mitos são narrativas de autoria anônima e coletiva, comumente concebidas ventriloquia para causar
como de origem divina. essa mesma sensação.

Essa ausência de traços das máscaras, aqui chamadas de ‘neutras’, Ver KIRBY p. 49.
entretanto, está longe de se constituir numa inexpressividade ou até mesmo
num vazio no sentido literal. Pelo contrário, constitui-se muito mais numa po-
tência, numa disponibilidade total para a incorporação de significados, numa
base para toda expressividade possível.
O uso de máscaras-vestimentas, confeccionadas com materiais os
mais diversos retirados da natureza e trabalhados posteriormente (plumagens,
peles, couros, ossos, dentes etc. animais; sementes, madeira, fibras, folhas
e tecidos vegetais; pedras, conchas etc. minerais) é comum entre os índios
brasileiros. Para os Chamacoco e os Bororo da Amazônia, assim como para
os Tapiripe e os Caraja do Brasil Central, essas ‘coberturas de corpo todo’,
sem traços ou abertura de olhos, têm a função de criar anonimato. Elas são
utilizadas no curso de ritos durante os quais são invocados espíritos vários dos
animais, assim como (no caso dos Tapiripe) dos “hóspedes maus da floresta e
[d]os fantasmas dos mortos que restam na terra dentro das vilas abandonadas
até que sejam transformados em animais” (KIRBY, 1988, p. 42).
Como é costume entre os povos de cultura anímica, os Tukano da fron-
teira Brasil/Colômbia acreditam que animais e humanos compartilham uma
mesma natureza espiritual. Por isso, os animais podem trocar suas peles e cou-
ros por formas humanas e viver entre os homens em suas aldeias. Do mesmo
modo, através de máscaras-vestimentas, que figurem animais, pode ser feita a
passagem inversa. Essa metamorfose, homem/animal, acontece durante dan-
ças cerimoniais em que são utilizadas máscaras em estilo geométrico.
Enquanto a máscara neutra faz com que, tão somente, a partir da per-
formance de seu portador, se possa identificar a entidade nela incorporada, a
máscara geométrica traz inscritos em si os motivos de sua figuração. Entre os
Tukano, como vimos anteriormente, essas inscrições aparecem numa espécie
de código abstrato. Em suas máscaras, geralmente figurações de animais, tais
inscrições costumam aparecer em torno da boca. Buscam, desse modo, indicar
que o som advindo da máscara é a voz do espírito do animal por ela figurado.
92
BARROSO, O.

Máscara Baule, Costa do Marfim


Distanciando-se da mimese naturalista, o geometrismo acentua a su-
perfície das máscaras e, praticamente, anula seus volumes, além de reduzir a
identificação do espírito manifestado a traços mínimos. No caso dos Tukano,
são conhecidos os homens-jaguar, figurados por máscaras em que o animal
é identificado por traços resultantes de um sofisticado processo de simplifica-
ção e abstração de sua figura.
Cabe aqui tratar, mesmo que de passagem, de uma questão frequen-
temente discutida em relação às máscaras: sua condição ou não de disfarce.
Ou seja, em que medida a máscara é um meio de ocultamento ou de revela-
ção? Há quem diferencie máscara de disfarce, como Elie Konigson (1988) ao
tratar da máscara do demônio na cena da Idade Média. Para ele, a máscara
propriamente dita é, ela mesma, um objeto mágico, dotado de poder mágico,
que substitui a entidade que figura, sendo, ela própria, a entidade e não seu
disfarce. Dá, como exemplo, “a efígie real - que substitui o rei morto durante o
breve interregno que separa sua queda, seus funerais, e a ascensão do novo
rei ao trono – marcando a continuidade do poder real para além da morte dos
93
Antropologia da Arte

reis. Nesse caso é uma máscara ritual ao mesmo tempo religiosa e social e
em alguns casos um disfarce” (KONIGSON, 1988, p. 103).
Para Konigson (1988), todas as outras máscaras – entre as quais inclui
as máscaras neutras, as de animais, as grotescas, as de “homens selvagens”
e as do diabo – não seriam máscaras propriamente ditas, mas disfarces. Isso
é porque, tais “máscaras” não estariam ligadas, por laços especiais, a ritos
codificados, a interditos ou a seus portadores.
Entretanto, como já vimos, se tal observação tem pertinência aplicada
à cena medieval europeia, perde o propósito quando o foco se concentra nas
sociedades aborígenes da América do Sul. Nessas sociedades, as máscaras
rituais são disfarces e máscaras a um só tempo: disfarces, porque meios de
apagamento da identidade de seus portadores e porque formas encantadas
dos deuses, ou seja, elas ainda não são os deuses propriamente, mas seus
disfarces; máscaras, porque identidades que tomam corpo durante os ritos,
receptáculos de entidades metafísicas, ou seja, elas mesmas são objetos sa-
grados, carregados de poderes mágicos.
Isso fica claro entre os astecas, para quem “os disfarces se chamam
nahualli (...), derivação lingüística de nahual, termo que significa feiticeiro-
-transformador” (KIRBY, 1988, p. 47). Quando em seus rituais se quer rea-
firmar uma presença humana interior, a máscara é posta de lado; usa-se a
pintura de rosto. O mesmo procedimento aparece também entre os xamãs
siberianos, que utilizam com frequência o recurso de banhar com fuligem ou
cobrir o rosto com os cabelos.
O mágico, ao apagar sua própria personalidade através da máscara,
para personificar um deus, joga um papel, como o ator teatral. Entretanto, não
o faz arbitrariamente, já que incorpora um arquétipo coletivo, uma entidade
concebida pela tradição. Dentro desses limites, ao construir seu personagem,
ele exerce sua liberdade criativa no âmbito do sistema simbólico de uma de-
terminada cultura.
Na Grécia clássica – para alguns autores, é onde, pela primeira vez no
Ocidente, o teatro se destaca do rito – a figuração canônica dos deuses tem
por modelo imagens antropomórficas ligadas a ideais de perfeição do corpo
humano, beleza, juventude, força, equilíbrio, proporcionalidade etc. Entretanto,
não apenas Dioniso, o deus das metamorfoses, como outras potências divinas,
entre elas, Górgona e Ártemis, figuram ou operam através de máscaras.
Não por acaso, dessas máscaras rituais, especialmente da máscara de
Dioniso, surge a máscara teatral, tão estreitamente ligadas, entre os gregos,
quanto o são o teatro e o rito, por ocasião dos grandes concursos dramáticos
de Atenas. Tais concursos, como se sabe, que aconteciam por ocasião das
festas em louvor a Dioniso, tinham caráter de cerimônias sagradas e faziam
94
BARROSO, O.

parte das celebrações de seu culto. Exatamente de suas encenações ritu-


ais, surge, nas palavras de Jean Pierre Vernant e Françoise Frontisi Ducroux,
“un genre littéraire où le masque n’est qu’un accessoire, peut-être secondaire,
destiné à résoudre des problèmes d’expressivité tragique... ” (VERNANT; DU-
CROUX, 1988, p. 19), no caso o teatro em sua forma grega, digo eu. Daí, para
esses autores, haver a necessidade e a possibilidade de distinguir máscara
teatral de máscara ritual: a máscara do herói trágico (Édipo, Agamenon etc.),
que o ator usa para reviver ficcionalmente os fatos do passado, e a máscara
de Dioniso (por exemplo), que o sacerdote usa para incorporar essa entidade
divina em transe extático.
Vernant e Ducroux (1988), no estudo sobre as máscaras gregas, traba-
lham ancorados em divindades – Górgona, Ártemis e Dioniso – que mantêm
relações distintas com elas. Começam por uma entidade, no caso a Górgona,
ela mesma é mascarada e atua através de máscaras. Passam a Ártemis, uma
deusa que, sem figurar com máscara, opera em seus cultos, reiteradamente,
através dela. Por fim, chegam a Dioniso, a divindade da máscara por excelên-
cia. No confronto entre essas divindades e suas relações com as máscaras,
surgem diferenças e aproximações que nos ajudam a esclarecer algumas ve-
lhas questões e lançar novas dúvidas sobre o lugar da máscara, não apenas
no âmbito religioso da Grécia antiga, como também, e em certa medida, no
universo do rito e da arte de um modo mais amplo.
Górgona apresenta-se como uma máscara feminina de feições mons-
truosas. Trata-se de um ser terrível e amedrontador, embora em sua versão
grotesca – quando o terror aparece misturado ao sexo – torne-se risível. Jean
Pierre Vernant, um dos maiores especialistas franceses em cultura grega, as-
sim descreve sua carantonha:

A cabeça, larga, arredondada, evoca uma face leonina, os olhos são


Um gênero literário onde encarquilhados, o olhar fixo e penetrante, a cabeleira tratada como cri-
a máscara não é mais na de animal ou eriçada de serpentes, as orelhas aumentadas, defor-
que um acessório, talvez
madas, por vezes semelhantes às do boi, o crânio pode levar cornos,
secundário, destinado a
resolver problemas de a boca, aberta num ricto, alonga-se com presas de fera ou defesas de
expressividade trágica... javali, a língua, projetada para diante, avoluma-se no exterior, o queixo
é peludo ou barbudo, a pele por vezes sulcada por rugas profundas
(VERNANT, 1991, p. 70).

Os poderes mágicos de Górgona se fixam nos olhos. Em uma de suas


versões, como no caso de Medusa, a máscara de Górgona tem o poder de
petrificar quem ousa mirar-lhe nos olhos. Ela é a personificação da ira e do
terror em estado bruto, primário e sobrenatural. Está associada ao pavor que
paralisa e gela o coração dos inimigos. Por isso, sua efígie está gravada em
bronze na armadura e no escudo dos guerreiros e é seu grito terrificante que
95
Antropologia da Arte

eles lançam, junto com o som estridente da trombeta, na hora do ataque. Mas
ela também afugenta os espíritos malfazejos. É por isso que sua máscara é fi-
xada em locais públicos e privados, como nas oficinas dos artesãos, sobre as
fontes, na entrada das residências (mas também em ânforas, jarros e objetos
de cerâmica em geral) ou nos adornos da égide de Atena, montando guarda
com seus olhos de pupilas sempre acesas a esconjurar o perigo. Assim como
acontece com Dioniso, sua figuração se dá na forma de máscara.
Ártemis, como sabemos, é a virgem caçadora, a arqueira infalível que
atinge, com suas flechas certeiras, os mais ferozes animais da floresta. Ela é a
divindade do mundo selvagem, senhora das feras e das transfigurações. Mas
é também a instrutora dos jovens na arte da caça e nos caminhos da civilida-
de, assim como é a condutora das jovens mulheres na busca da beleza e da
sabedoria. Nessa qualidade, ela opera entre o mundo selvagem e o civilizado,
ajudando a passagem dos jovens de um universo ao outro, conduzindo sua
iniciação à vida adulta.
No curso da devoção a Ártemis, através de mascaradas e jogos rituais,
jovens e crianças gregas, especialmente em Esparta, mas também em Ate-
nas, eram instruídos a viver as mais diversas e contrastantes atitudes e sen-
sações. Sob a proteção da deusa, com a ajuda de máscaras e travestimen-
tos, eram levados a mimar os mais diferentes personagens (reis e mendigos,
tiranos e escravos, virgens e prostitutas, velhos e bebês etc.), atitudes (doçura
feminina, ferocidade bestial, pudor e obscenidade, vigor guerreiro e debilida-
de senil, descaramento e sinceridade etc.) e inversões (homens vestidos de
mulher ou de animais e vice-versa, jovens fantasiados de velhos e vice-versa,
servos disfarçados de reis e vice-versa, padres trajados de bêbados e vice-
-versa, empregados fazendo patrões e vice-versa etc.). A cada máscara figu-
rada correspondia uma nova experiência de vida, quase sempre de excesso,
de transgressão. Por esse meio, os jovens aprendizes tomavam contato com
toda sorte de comportamentos marginais e sensações estranhas. Exercita-
vam o descomedimento e a alteridade, conhecendo a subversão, para mais
valorizar a regra à qual eles deveriam obedecer dali em diante.
No culto a Ártemis, portanto, a máscara aparece como um instrumento
educativo no processo de formação do jovem como cidadão. Ela, a máscara,
como que apressa essa formação, fazendo com que a experiência de vida
do jovem se enriqueça e dando mais rapidez ao seu amadurecimento, ao
permitir que ele viva muitas vidas, em um curto período de tempo, no papel de
múltiplos personagens.
Se com Ártemis, o jovem experimenta o descomedimento para apren-
der o comedimento, com Dioniso, parece acontecer exatamente o contrário:
o adulto equilibrado, perfeitamente integrado à ordem social, experimenta a
96
BARROSO, O.

imprevisibilidade e o exagero. Dioniso é o deus das metamorfoses e dos tra-


vestimentos, que introduz a dimensão sobrenatural na vida cotidiana através
de sua máscara de aparência ambígua: homem-mulher, deus-humano; é um
ser de olhar estranho e enigmático.
O culto a Dioniso acontece sob a luz do sol, em plena natureza: esse é
seu templo, seu chão sagrado. Através de sua máscara, o homem se deixa
possuir pelo deus, torna-se outro, experimenta a alteridade e penetra as vias
do divino. O ator que porta a máscara dionisíaca abandona os limites da natu-
reza ordinária e irrompe a dimensão do extraordinário, o plano do invisível no
qual ficção e realidade se fundem.
Por meio das máscaras, o homem grego experimenta a possibilidade
de tornar-se outro, ou ainda, de deixar de ser ele, como é o caso de Górgona,
que, com seu olhar paralisante, destrói suas vítimas pelo terror. Como é o
caso, também, de Dioniso, embora em sentido contrário: o transe leva o pos-
suído a um estado de prazer e gozo além dos limites da realidade aparente.
Nos dois exemplos de alteridade radical, ou seja, de abandono do próprio eu
individual, o transporte se dá em direção vertical: para baixo no referente a
Górgona e para cima no referente a Dioniso.
Quanto a Ártemis, o deslocamento se dá no plano vertical, tanto no
tempo quanto no espaço, já que os jovens sob sua orientação experimentam
máscaras que os levam do espaço urbano das sociedades, então conside-
radas civilizadas, às margens da selvageria. Mas, em seu culto, esse mundo
selvagem, do qual Ártemis é tão íntima e que a aproximaria de Górgona – uma
potência em estado bruto –, é, pelo contrário, motivo de rejeição. Isso se dá
porque, Ártemis prefere tê-lo à distância e sob controle, conduzindo meto-
dicamente os jovens, no curso de rituais aparentemente transgressivos, até
uma completa integração na vida civil. A máscara de Dioniso, pelo contrário,
ao retirar o cidadão da vida familiar e levá-lo à possessão, incita à indiferença
às regras, à abolição das proibições, à inversão dos valores, à instauração da
Ernest Theodore Kirby nos
dúvida e à desintegração dos quadros sociais.
informa sobre o uso de
máscaras com essa função Como veremos adiante, esses três tipos de máscaras, a máscara ater-
entre os índios da América rorizante ao modo de Górgona, a máscara carnavalesca de Ártemis (ficamos
do Sul e cita o exemplo devendo a explicação) e a máscara dionisíaca de possessão, encontram
dos Chamacoco de
Araucan, no Chaco, onde é
correspondências e ressignificações em máscaras de períodos posteriores
costume, entre os homens, e de outras regiões do globo. A máscara aterrorizante comum nos ritos das
encapuzarem suas cabeças sociedades arcaicas, que tem na Górgona seu exemplo mais completo entre
dentro de sacos, durante os as divindades da Grécia clássica, aparece com destaque na Europa Medieval
rituais, para amedrontarem
e se estende até o Renascimento, nas encenações dos chamados mistérios,
as mulheres. (KIRBY, 1988,
p. 41) através da figuração do demônio.
Elie Konigson publicou um interessante artigo, em 1988, sobre esse assun-
to, onde se pode perceber a correspondência da máscara do demônio com as
97
Antropologia da Arte

máscaras dos ritos mágicos dos povos selvagens. Informa ele que, no espaço de
encenação dos chamados mistérios medievais, levados a cabo pela Igreja cató- KONIGSON, Elie. Le
Masque Du Démon:
lica, o Inferno está comumente situado a Oeste ou à esquerda e só raramente ao Phantasmes et
Norte. Constitui uma espécie de máscara-cenário, na forma de uma grande goela Métamorphoses sur la
articulada que abre e fecha: a Garganta do Inferno, onde agem, não por acaso, os Scène Médiévale. In LE
únicos personagens mascarados sobre a cena, os próprios demônios. MASQUE: DU RITE AU
THÉÂTRE. Textes et
Ao contrário dos demais personagens – santos, anjos e o próprio Deus – Études Réunis et Presentes
que atuam vestidos e com os rostos descobertos, os demônios figuram par Odette Aslan et Denis
mascarados e nus. Além disso, enquanto os demais personagens, sempre Bablet. Paris, Editions du
CNRS, 1988.
apresentados sob aparência humana (inclusive Deus e os anjos), aparecem
segundo uma ordem histórica e/ou alegórica, os diabos surgem em cena ale-
atoriamente, de modo deliberadamente caótico, sob aspecto animalesco.
Nos mistérios medievais, a máscara diabólica é uma máscara de corpo
inteiro – facial, corporal e manual inclusive –, já que o demônio usa o tridente
É interessante notar
e outros instrumentos de tortura. Trata-se de um antifigurino ou de um figurino que, na cena medieval,
de outra natureza, de uma natureza infernal, do mesmo modo que o Inferno, além do demônio, outro
com sua garganta, está fora da Terra e da esfera celeste, assim como a músi- personagem que aparece
ca se opõe ao ruído e ao alarido diabólico dos demônios. costumeiramente nu é o
“homem selvagem”.
Na máscara medieval, o diabo tem garras de mamífero ou de ave de
rapina, focinho com aspecto ora canino ora de um javali, cabeça com traços
indefinidos – não se sabendo se de urso, se de lobo –, chifres, ferrões, e trom-
bas. A isso, se some, pelo resto do corpo, escamas, caudas, asas de morcego
ou o que se queira colocar. Em todo caso, deve parecer um monstro apavorante
como uma Górgona, o terror em seu estado bruto, feito uma força da natureza.
A figuração da máscara do demônio nos mistérios medievais procu- Ver KONIGSON pp. 108 a
rava, assim, associar a ela elementos ligados a ritos de magia praticados por 111.
povos tidos como pagãos e/ou heréticos, assim como a figura da mulher e
do “homem selvagem”. Possuía, em sua função aterrorizante, a finalidade de
afastar os fiéis da tentação de continuar executando ou aderir a tais práticas
heterodoxas, chamar os “incivilizados” à ordem e as mulheres à submissão.

Síntese do Capítulo
Assim como o artista, o mágico observa a realidade a partir de suas formas
exteriores e através de sua sensibilidade. Daí haver a aproximação entre arte
e magia, assim como a necessidade de estudar o funcionamento das leis do
pensamento mágico para a compreensão do fenômeno estético. Considera-
do como uma forma de conhecimento ou percepção do real, o chamado pen-
samento mágico ou selvagem responde a uma necessidade humana de dar
98
BARROSO, O.

significado ao universo e sentido à existência. Diferencia-se da ciência porque


não admite a falta de sentido, o acaso, e postula um determinismo global e
integral na natureza.
Ao contrário do que muitos pensam, não se trata de uma forma rudi-
mentar de conhecimento ou de uma pré-ciência, porém de outro modo de
abordar a realidade, mais ligado ao concreto e a partir da intuição sensível.
Sendo, portanto, movida, quase sempre, por sentimentos estéticos, a magia é
muito próxima da arte. Trata-se, pois, de um conhecimento atento às formas,
às cores, aos cheiros, aos sons, enfim, a tudo que pode ser percebido por
nossos sentidos e intuído por nossa imaginação.
Atento à observação da realidade desde seu todo até seus mínimos de-
talhes, o homem “selvagem” busca ordenar seus elementos, estabelecendo
correspondências, comparações, contrastes, ligações de diferentes naturezas.
Prova, experimenta, deduz, faz analogias; daí tira conclusões iniciais, volta a ex-
perimentar, num processo empírico sempre renovado. Chega a princípios muito
amplos e genéricos, que os teóricos chamaram leis da magia simpática.
Segundo Marcel Mauss (1974), toda a magia parte de um princípio mais
geral que afirma: “um é o todo, e o todo é um” (p.102). Daí se desdobra em três
leis básicas: a lei da contiguidade ou do contágio, segundo a qual os seres que
entram em contato permanecem unidos; a lei da similaridade ou similitude,
segundo a qual o semelhante produz o semelhante; e a lei da contrariedade
ou do contrário, de acordo com a qual o contrário afasta o contrário.
Com base nesse princípio geral e nessas leis básicas, os mágicos pro-
duziram todo um conjunto de saberes sistemáticos, que sobreviveram na Eu-
ropa como válidos por toda a Idade Média até, pelo menos, o Renascimento
e que alimentaram ciências diversas como a física, a química, a matemática,
a medicina e a astronomia.
Um dos elementos básicos na constituição do pensamento mágico é
a noção de mana, uma espécie de propriedade especial ou poder mágico de
que são dotados os xamãs ou magos.
Esse poder é privilégio de determinados seres, pessoas, animais ou ob-
jetos e pode ser transferido, acumulado, transportado, ou seja, manipulado
através de técnicas e procedimentos ditos mágicos. Tais procedimentos, no
entanto, nunca se dão fora da coletividade, porque implicam a crença comu-
nitária. Exigem a participação do grupo e incluem a cumplicidade do corpo
social para que tenham êxito.
O mágico é sempre alguém especial dentro da comunidade. Recebe
a atribuição seja por herança ou por distinções especiais (de ofício, de cas-
ta, por sinais físicos, por características psicológicas ou étnicas etc.). Poucas
vezes torna-se mágico (ou xamã) por iniciativa voluntária. Passa, obrigato-
99
Antropologia da Arte

riamente, por um processo de iniciação e dele é exigido um comportamento


místico e exemplar.
Trabalha como um profissional especializado, detentor de um saber,
que inclui conhecimentos teóricos e técnicos, além de habilidades. Executa
seus ritos com meticuloso apuro, cercado de um aparato numeroso de ins-
trumentos e materiais vários. Desenvolve poderes especiais sobre o próprio
corpo e sobre a atenção dos circunstantes. Trabalha com o corpo e com o
espírito alterado. Usa auxiliares espirituais e envolve o conjunto dos circuns-
tantes em seus transes.
Para sua comunicação com o mundo dos espíritos, mágicos e xamãs
utilizam, ainda, o recurso das máscaras nos rituais de renovação da vida co-
munitária, tanto no plano interno, quanto na comunicação com a natureza ou
com outras dimensões do universo. Geralmente, as celebrações mascaradas
relacionam-se com ritos agrários, de iniciação ou de morte, quando não direta-
mente com a encenação dos mitos de origem do universo. Nesse último caso,
as máscaras rituais procuram expressar o conjunto de elementos cosmogô-
nicos de determinada sociedade. Já nos demais, principalmente nos ritos de
iniciação, o xamã tem por ponto de partida a máscara neutra, sem abertura de
olhos nem traços de identificação, que trabalha pelo apagamento do indivíduo.
Faz-se morrer o portador da máscara, para dar lugar a um novo personagem.
No passo seguinte à máscara neutra, aparece a máscara geométrica,
na figuração dos chamados homens-animais. Essas máscaras configuram os
animais por elas incorporados através de traçados geométricos simplificados,
num simbolismo quase abstrato. Nesse caso, a máscara passa da condição
anterior de ocultamento (máscara neutra) para a de revelação.
Na Grécia antiga, durante o período clássico, podia-se distinguir, entre
outros, basicamente, três tipos de máscaras: a máscara aterrorizante de Gór-
gona, as máscaras educativas ou “carnavalizadas” de Ártemis e a máscara
embriagadora de Dioniso.
Cada uma delas tinha funções e jogava papéis diferenciados na socie-
dade, produzindo sensações e proporcionando experiências diversas ao indi-
víduo e ao corpo social. Se as máscaras operadas por Ártemis trabalhavam
pela maturação dos indivíduos e pelo estabelecimento da ordem social, se a
máscara de Dioniso propiciava a liberação da libido e dos afetos, a máscara
de Górgona reprimia o desejo de transgressão e impunha a autoridade pelo
terror. O mesmo acontecia com a máscara do demônio nos mistérios medie-
vais, quando a Igreja manipulou, pelo medo, a crença dos fiéis e impôs suas
verdades sob a ameaça do fogo dos Infernos.
100
BARROSO, O.

Atividades de avaliação
1. Para você, a principal função da máscara é ocultar ou revelar?
2. Pode se estabelecer alguma diferença entre disfarce e máscara? Qual?
3. Diz-se que a máscara é um meio de comunicação com os espíritos. Como
se dá esse processo?

Texto complementar
Máscaras Rituais Pankararu
No interior do Nordeste brasileiro, mais precisamente na localidade de Brejo dos Pa-
dres, município de Tacarutu, sertões de Pernambuco, podemos encontrar um exemplo
notável do uso de máscaras rituais. Trata-se das máscaras praiás dos índios pankararu,
pertencentes ao grupo cultural lingüístico dos kariri, originários de Curral dos Bois (hoje
Santo Antônio da Glória), na Bahia, depois aldeados pelos padres oratorianos no lugar
onde habitam até hoje.
As máscaras praiás são coberturas de corpo inteiro e se compõem de cinco partes: 1) O
tunã, tecida em fibra de caroá ou ouricuri, ocultando inteiramente o rosto e cobrindo a cabeça,
contendo apenas dois pequenos furos no lugar dos olhos e com os fios soltos a partir do pesco-
ço, caindo sobre os ombros até os joelhos. 2) O saiote, feito com a mesma fibra do tunã, preso
na cintura e estendendo-se até as canelas. 3) O cocar de penas de peru, em forma esférica,
como um grande sol, fixo no alto do tunã. 4) O penacho de plumas atado a uma pequena vara
fixa no alto do tunã. 5) A cinta, uma pequena túnica de tecido, geralmente chita estampada ou
pano bordado com uma cruz ou outro símbolo, que se coloca sobre as costas do tunã.
Completando o traje ritual praiá, os pankararu portam o maracá, feito de coité e adornado
com penas, o bordão de compasso, igualmente enfeitado de penas, e a gaita de marcação.
Entre os pankararu, as máscaras acima descritas são de uso exclusivo dos dançarinos
mascarados da tribo, os praiás, uma espécie de sociedade secreta de caráter hereditário,
formada por membros das velhas famílias fundadoras da comunidade. Tem por função
ocultar a identidade de seus portadores e preservar o caráter secreto do grupo. Segundo
testemunho dos mais antigos, após suas danças cerimoniais, os praiás recolhiam-se às suas
choças e permaneciam nelas reclusos. Hoje, eles já aparecem em feiras e romarias, embora
se mostrem comumente arredios e procurem manter distância de grandes aglomerados.
Durante seus rituais, e por via das máscaras, os praiás incorporam espíritos ancestrais
que acreditam encantados nas cachoeiras de Itaparica e Paulo Afonso, situadas não muito
distantes de Brejo dos Padres. Muitas vezes são surpreendidos lançando longas baforadas
de fumo em suas direções.
Os praiás participam e muitas vezes protagonizam com exclusividade os principais ritos e
cerimoniais pankararu. O mais importante desses rituais é a Dança dos Praiás. Sua execução
é puxada por uma cantadeira que entoa loas durante horas seguidas, em tom melancólico e
lamentoso, acompanhada pelo toque dos maracás sacudidos pelos praiás, que respondem
ao canto soltando sons que se assemelham a uivos guturais e longos gemidos.
Envergando seus trajes rituais e movidos por esse ambiente sonoro, os praiás dançam
em passos curtos e rápidos, às vezes arrastados e presos ao solo, às vezes de modo brusco
e aos pulos, batendo com força no chão. Seguem mudando a direção, ora para um lado,
ora para o outro, em fileiras ou em pares, em roda ou formando ziguezagues e SS, inclinan-
101
Antropologia da Arte

do-se ora para a esquerda, ora para a direita, em um movimento contínuo e imprevisível,
puxado pelos guias de uma fila e de outra. Em certos momentos, os dançarinos dividem-se
em grupos e, de braços colados, adiantam-se em carreira até a cantadeira, freando repen-
tinamente junto a ela, conseguindo um forte efeito de suspense.
A iniciação de novos membros no grupo desses “protetores mágicos da aldeia” (PINTO
p. 300) se dá por um rito que eles chamam de “Festa do Menino no Rancho”, por meio do
qual, as crianças não apenas são iniciadas nos segredos dos praiás, como se tornam in-
termediários entre eles e o restante da comunidade. Isto porque, quando os praiás estão
reunidos em seu reduto sagrado, que chamam rancho ou poró, não podem ser vistos por
pessoas fora do grupo. Sendo assim, fica a cargo da criança em iniciação trazer-lhes o que
necessitam: água, fogo, fumo etc., ficando a ela vedado revelar qualquer fato ou detalhe
do que se passa no rancho, sob ameaça de dormir em uma cama coberta com urtigas.
Para a “Festa do Menino no Rancho”, levanta-se primeiramente um rancho, e nele se faz
entrar o pré-adolescente a ser iniciado. O menino traz o corpo pintado de tauá branco, leva
a tiracolo rolos de fumo e tem na cabeça um capacete de ouricuri. Na entrada do rancho, se
coloca a guarda do menino, sentinelas e padrinhos armados de cacetes. Do outro lado, se
postam os praiás, guerreiros sagrados, igualmente armados, que buscam a posse do meni-
no. O combate acontece do modo ritual, mas com grande vigor. Termina com a destruição
do rancho e com a conquista do menino pelos praiás que, em meio a grande alegria, cantan-
do e dançando, levam o menino à presença de uma menina da mesma idade.
Entre os pankararu, o tuxaua é eleito democraticamente pela comunidade. Quando
alcança a decrepitude, é substituído. Ainda assim, sua opinião é levada em conta, nota-
damente em questões relativas ao sagrado. O mesmo ocorre com as velhas cachimbeiras
da tribo, espécies de pajés que, até atingirem idades muito avançadas, encarregam-se
da cura dos enfermos, e ainda de outros procedimentos mágicos, como “tirar o atraso”
das pessoas e “atrair a chuva”. Nessas práticas, o fumo costumeiramente joga um papel
importante, ajudando a exorcizar malefícios e imunizar espíritos.
Na Festa do Ajucá, como é chamada entre os pankararu o culto da jurema, se fazem
presentes, além dos praiás, o tuxaua, os guerreiros e as velhas cantadeiras. A cerimônia
acontece em local afastado, dentro de um bosque sombreado, em terreiro previamente
forrado com esteiras de ouricuri. No centro do terreiro se coloca uma laje, com numerosas
raízes de jurema em cima.
Depois de raspadas e lavadas, as raízes de jurema são colocadas dentro de uma gran-
de vasilha de coité cheia d’água. A vasilha, em seguida, é agitada até formar uma densa
escuma, estando pronta para ser bebida. Em meio a cantos e falas sagradas, o tuxaua,
tirando baforadas de seu cachimbo, inicia o ritual de sagração da bebida. Em seguida, seu
cachimbo passa de mão em mão, entre os presentes, que fazem o mesmo.
Terminada a benzedura do ajucá, o tuxaua ajoelha-se e bebe o primeiro gole, no que
é imitado pelos demais. Circunspectos e concentrados, todos provam do filtro mágico que
lhes proporcionará comunicar-se com os encantados, em sonhos e visões. O que restar do
sumo da raiz da jurema é colocado em um buraco profundo aberto no chão.
Os pankararu de Brejo dos Padres podem ser observados costumeiramente nas
grandes romarias do Juazeiro do Norte, no Ceará, e de Santa Brígida, na Bahia. Costu-
mam estabelecer sincretismos e correspondências entre seus encantados, entidades
afro-brasileiras e santos do catolicismo popular, como Padre Cícero, Conselheiro Pedro
Batista e Mãe Dodô. Daí, muitas vezes, realizarem peregrinações a santuários católicos
junto com irmandades cristãs, especialmente com as de Nossa Senhora da Boa Morte e
de São Gonçalo, que tem sedes tanto em Santa Brígida (BA), quando na Estrada Velho
do Horto, em Juazeiro do Norte.
As máscaras dos praiás, como vimos, embora com pequenas aberturas para os olhos
(demasiadamente pequenas, por sinal), possuem todas as características das máscaras-
-vestimentas neutras, que procura criar o anonimato e transportar seus portadores à di-
mensão do invisível, no caso a de seus ancestrais “encantados”.
102
BARROSO, O.

Marcel Mauss
Sociólogo e antropólogo francês nascido em Épinal, França, cuja obra foi marcante na so-
ciologia e na antropologia social contemporânea e considerado como o pai da antropolo-
gia francesa. Sobrinho de Émile Durkheim e nascido quatorze anos mais tarde e na mesma
cidade, estudou com o tio e foi seu assistente e tornou-se professor de religião primitiva
(1902) na École Pratique des Hautes Études, em Paris. Fundou o Instituto de Etnologia
da Universidade de Paris (1925) e também lecionou no Collège de France (1931-1939).
Sucedeu o tio como editor da revista L’Année Sociologique (1898-1913), onde publicou
um de seus primeiros trabalhos, com Henri Hubert, Essai sur la nature et la fonction du
sacrifice (1899) e também Essai sur le don: forme et raison de l’échange dans les sociétés
archaïques (1925), sua obra mais conhecida. Escreveu também numerosos artigos para
periódicos especializados, especialmente os produzidos e publicados em colaboração com
Henri Hubert (1899-1905), que reuniu em Mélanges d’histoire des religions (1909). Os
trabalhos mais importantes do autor, que morreu em Paris, aparecem no livro Sociologie
et antropologie (1960). Entre outros trabalhos de sua autoria, ganharam notoriedade La
sociologie: objet et méthode (1901), Esquisse d’une théorie générale de la magie (1902),
Essai sur le don (1924), Sociologie et anthropologie (1950).
É interessante verificar, como já iniciamos em capítulo anterior, a ligação dessas leis com
os tipos de signos, com relação ao referente, na semiótica. Enquanto a lei da contiguidade
diz respeito ao índice, ou seja, à representação por contato porque o signo foi afetado pelo
objeto através do contato, a lei da similaridade diz respeito ao ícone, ou seja, à representa-
ção por semelhança, pela relação de semelhança do signo com o objeto representado. Na
propaganda, assim como na arte, essas analogias ou associações de ideias são costumeira-
mente empregadas do mesmo modo como o são nos rituais das religiões populares.
Para dar um exemplo da propaganda, podemos ficar com os famosos cartazes de pe-
ças de carros ao lado de moças seminuas pregados nas portas de oficinas. Não há outra
relação entre as peças e as garotas na propaganda senão a de contiguidade, mas a pro-
ximidade entre ambas acaba por associar uma a outra na percepção do mecânico. Se o
objeto a ser vendido fosse um violão, a lei da similaridade entre o objeto da propaganda e
o corpo da garota reforçaria a analogia.
Nos rituais do catolicismo popular, há o exemplo clássico do romeiro que leva um ex-
-voto e o coloca aos pés da estátua de seu santo protetor. Por similaridade, ele manda
esculpir a expressão de sua doença na madeira ou em outro material qualquer. Por esse
mecanismo, a “energia negativa” (o mana) de sua enfermidade é transferida para o ex-
-voto (como se chama à escultura). Em seguida, ele leva o ex-voto e o deposita ao pé da
imagem de seu santo de devoção, ou seja, ele o leva a um lugar carregado da “boa ener-
gia” do seu santo, que neutraliza, por contágio, a “energia negativa” do ex-voto colocado
aos seus pés. Curado o ex-voto, por contágio, está curado o doente, por similaridade.
Bricoleur
É um termo francês que designa, ordinariamente, alguém que é afeito a fazer trabalhos
manuais por conta própria, fabricar objetos ou fazer pequenos consertos em casa, a partir
de um acervo de recursos e ferramentas caseiros. Antropólogos franceses, entre eles Lévi-
-Strauss, usam o termo bricoleur para nomear o modo de operar do mágico que utiliza
materiais já elaborados e fragmentários. Executa tarefas diversificadas. Tem seu repertó-
rio de instrumentos e materiais pré-estabelecidos. Seu universo instrumental é fechado.
O conjunto de seus meios não é definido pelo projeto. Arranja-se sempre com meios li-
mitados. Usa um estoque de meios cumulativos. Pensa: “Isto sempre pode servir”. Cada
elemento de seu estoque representa um conjunto de relações e possibilidades. Como o
bricoleur, tem atitude retrospectiva, voltando-se para seu estoque. Verifica as respostas
possíveis que o conjunto pode oferecer ao problema colocado. Ex.: uma tábua de carvalho
pode servir como calço, pode ser utilizada numa janela etc. As possibilidades são limitadas
pelo tipo de peças que ele tem no seu acervo. Ele volta-se para uma coleção de resíduos
de obras humanas ao operar seu projeto.
103
Antropologia da Arte

Referências
MAUSS, Marcel, Sociologia e Antropologia, com uma introdução à obra de
Marcel Mauss, de Claude Lévi-Strauss, tradução de Lamberto Puccinelli,. São
Paulo, EPU, 1974. (VOLUME I)
ELIADE, Mircea. El Chamanismo y las Técnicas Arcaicas del Extasis. México,
Fondo de Cultura Económica, 1976.
FRAZER, Sir James George. O Ramo de Ouro. Rio de Janeiro, Zahar Edito-
res (edição do texto: Mary Douglas, Resumido por Sbine MacCormack), 1982.
LÉVI-STRAUSS, Claude - O Pensamento Selvagem, Campinas (SP), Papí-
rus, 1989.
LE MASQUE: DU RITE AU THÉÂTRE. Textes et Études Réunis et Presentes
par Odette Aslan et Denis Bablet. Paris, Editions du CNRS, 1988.
Do qual constam, entre outros, os seguintes artigos, citados no texto:
DUCROUX, Françoise Frontisi- et Jean-Pierre VERNANT. Divinités Au Mas-
que Dans La Grèce Ancienne
DIETERLEN, Germaine. Masques: Sociétés Traditionnelles d’Afrique Occi-
dentale.
KIRBY, Ernest-Théodore. Masques d`Amérique du Sud – La Transformation
Homme/Animal
PATUREAU, Mirella Nedelco. Jeux Masqués et Théatre Paysan em Roumanie.
KONIGSON, Elie. Le Masque Du Démon: Phantasmes et Métamorphoses sur
la Scène Médiévale.
PINTO, Estevão. As Máscaras-de-Dansa dos Pancararu de Tacaratu, in So-
ciété des Américanistes, Année 1952, Volume 41, Numero 2, pp. 295 – 304.
VERNANT, Jean-Pierre. Figuras, Ídolos, Máscaras. Tradução de Telma Cos-
ta.Lisboa, Editorial Teorema, 1991.
Capítulo 5
A Arte Tradicional Popular
107
Antropologia da Arte

Objetivos
• Verificar a transformação da produção estética ritual em produção artística
como ofício unindo estética e utilidade, em sua produção.
• Tratar mais detidamente da arte do canto, da palavra e da narração oral.
• Debater as transformações pelas quais passa a arte tradicional popular.

1. O Belo e o Útil
Nas sociedades tradicionais, a estética está intrinsecamente vinculada ao co-
tidiano dos grupos humanos, não havendo separação entre o belo, o útil e o
bom. Arte, trabalho e religião estão indissoluvelmente ligados. As manifestações
artísticas nos diversos campos, sejam pinturas, esculturas, cantos, narrativas ou
performances corporais, relacionam-se, de algum modo, a cerimônias e rituais
religiosos e sociais. As obras de arte perdem o sentido se separadas do contex-
to em que se inscrevem, ou seja, do conjunto de crenças e rituais, assim como
do estilo e das técnicas das diferentes etnias que as conceberam.
Mais do que motivo de contemplação, os objetos artísticos são criados
para serem manipulados, durante os ritos, pelo mágico ou xamã. Nas ceri-
mônias de iniciação ou renovação, muitos deles guardam caráter secreto e
ligam-se aos seus donos de tal maneira que, quando de suas mortes, são co-
locados junto com eles em suas sepulturas. Estudando a arte africana, espe-
cialmente na África Central, alguns antropólogos chegaram a definir algumas
das funções desses objetos (SYLLA, 1988, pp. 127 -129). Entre outras, as
seguintes funções foram definidas:
Função mágico-religiosa: Os objetos de arte servem como canal de comuni-
cação entre o mundo visível e o invisível, entre a dimensão material e espiritu-
al da realidade, funcionando como suportes para captar, transmitir ou afastar
fluxos de energia benéficos ou maléficos que transitam na coletividade.
Função terapêutica: os objetos e outras manifestações artísticas, durante os
ritos, cerimônias e outras práticas sociais, podem contribuir para a manuten-
ção do equilíbrio psicológico dos indivíduos e da coletividade.
Função pedagógica: os objetos e práticas artísticas são úteis para o pro-
cesso de aquisição e transmissão de conhecimentos nos sistemas de inicia-
108
BARROSO, O.

ção, nos rituais de passagem, nas associações e sociedades secretas, assim


como nas demais formas de aprendizagem conduzidas pelos mais velhos.
Função social: as manifestações artísticas, além de meios de diversão, ex-
pressam as relações sociais. Os objetos, particularmente os de natureza esté-
tica, traduzem o imaginário social e transmitem seus valores.
Função política: Os objetos como cetros, armas, assentos, instrumentos
musicais etc representam, simbolicamente, a hierarquia social. Por exemplo,
entre os legas, povo que vive na África Central – ao sudeste do Congo –,
algumas figuras de marfim simbolizam não apenas o posto mais elevado na
hierarquia de poder de sua associação secreta – bwami, como até mesmo o
Lega grau, a ocupação e a especialização de cada um dos seus membros.
Povo africano que habita
Além dessas funções, as esculturas em marfim, enquanto bens coletivos
o sudeste do Congo, na
África Central. de clãs e linhagens familiares, funcionam como símbolos agregadores, unindo
indivíduos e gerações, e prestam-se como instrumentos comemorativos que
exaltam os méritos de seus membros falecidos. Nesse sentido, adquirem uma
função funerária e são colocados nos túmulos de seus donos como sinal de res-
peito e veneração, além de amuleto para atrair e apaziguar o espírito do morto.
Na arte tradicional popular, a qualidade estética de um objeto depen-
de de uma série de variantes. Seria difícil enumerar todas; porém, algumas
delas são inegáveis. A primeira, por certo, é a utilidade do objeto criado, sua
finalidade. Ou seja, obra bem feita é aquela que cumpre o objetivo a que se
propôs. Depois, aparecem outras, como a matéria prima empregada – onde
entra a influência do meio-ambiente –, a tecnologia e habilidade técnica de
quem a manipula, o meio social e cultural local, o estilo da corporação, isto
é, do agrupamento de artífices formado pelo mestre e seus aprendizes e, por
fim, o talento e o estilo individuais de cada artista.
O fato de que, nas sociedades tradicionais, os objetos artís-
ticos quase nunca são produzidos para a pura contemplação não
significa um desprezo pelo prazer estético.
Pelo contrário, significa a introdução do prazer estético nos ob-
jetos de uso cotidiano. Basta ver o capricho com que um guerreiro
tukano orna a ponta de sua flecha ou como um artista lega esculpe
um corpo feminino em sua colher.
A divisão entre arte (fine arts) e artesanato (crafts), estabelecida
pelo capitalismo, a partir da Europa Ocidental, pretendeu “libertar” a
arte de seu valor utilitário. Deixando a confecção de objetos úteis ao
artesanato, proclamou a “arte pela arte”, ou seja, a arte sem interesse
outro senão a pura contemplação. Ao final de algumas décadas, essa
Colher lega concepção mostrou sua impossibilidade já que a arte como expres-
109
Antropologia da Arte

são da subjetividade humana não pode deixar de refletir interesses sociais, até Caruaru
mesmo o interesse mercantil de obter dividendos. Cidade de Pernambuco.
Engana-se quem considera irrelevante a autoria das obras de arte pro- Pirambu
duzidas nas sociedades tradicionais, bem como nas comunidades ou seg- Bairro de Fortaleza.
mentos tradicionais que vivem no interior de sociedades modernas. Mesmo
quando produzindo em grupo, dentro de “escolas” específicas, o indivíduo não
se apaga no seio da coletividade.
Embora o mestre exerça um papel preponderante na determinação do
estilo de uma tradição por ele fundada, daí o dito “fazer escola”, seus apren-
dizes não se furtam da marca individual. Tal é o caso, por exemplo, da escola
de ceramistas de Caruaru, que teve Vitalino como mestre, e da escola de
pintores do Pirambu, cujo mestre foi Chico da Silva. Ambos fizeram escola e
tiveram inúmeros discípulos que assinavam como o mestre, porém guarda-
vam particularidades inconfundíveis no estilo.
O caso de Chico da Silva é exemplar. Sua arte fez escola no Piram-
bu entre os anos 60 e 70 do século passado. Chico trabalhava com muitos
aprendizes que seguiam, em grandes linhas, o estilo do mestre. Para aten-
der à grande demanda de obras, Chico obrigava- se, muitas vezes, a apenas
assinar as telas produzidas em guache. Com o tempo e com a indisposição
do mestre por motivo de saúde, os próprios discípulos começaram a assinar,
eles mesmos, a marca do atelier, ou seja, a assinatura ‘Chico da Silva’. A es-
cola era a mesma: no quadro estava registrada a sua marca, mas, para quem
conhecia, o estilo de cada artista era inconfundível. Além do próprio Chico,
destacavam-se Claudionor, Ivan de Assis e Raimundo Neto, que introduziu o
fundo preto nas pinturas.

Tela de Chico da Silva


110
BARROSO, O.

Ex-voto ou Milagre é uma


peça em madeira ou outro
material que o devoto
coloca no altar do santo,
por motivo de promessa
feita e graça alcançada,
como representação do
mal sofrido.

Tela de Claudionor
Destaque
A escolha de Chico da Silva em trabalhar coletivamente, ao modo das corpora-
ções medievais, bateu de frente com o mercado capitalista das artes plásticas,
para o qual não importa a qualidade estética da obra, mas a cotação do autor no
mercado. Acusado de vulgarizar suas próprias obras e de ajudar na falsificação
das mesmas através de antigos aprendizes e discípulos, foi abandonado por me-
cenas e admiradores. Vítima de cirrose hepática e tuberculose crônica, encerrou
sua carreira artística prematuramente em 1976, vindo a falecer em 1985.
No caso, os discípulos de Chico da Silva assinavam com o nome do
mestre não por terem anuladas suas individualidades, mas por uma exigência
de valorização do mercado capitalista. Cada um deles tinha um estilo marcan-
te, que faziam questão de afirmar. Não havia uma preocupação em imitar o
mestre, em “falsificar” um quadro ou até mesmo a assinatura.
Pelo contrário, a preocupação com a autoria, bem como com o valor
estético do objeto, é marcante nas tradições populares. No final da década de
70 do século passado, pude testemunhar um fato elucidativo nesse sentido.
Em visita à oficina de Noza, famoso mestre santeiro do Juazeiro do Norte já
falecido, presenciei a demanda de um ex-voto por parte de um romeiro aco-
metido de grave enfermidade. Embora Noza explicasse que a encomenda
sairia cara para alguém visivelmente pobre como o romeiro e que já estava
sobrecarregado de trabalhos, o outro insistia. Argumentava ter sido Noza o
primeiro a esculpir uma imagem do Padre Cícero, ser exímio artífice e só ele
poder esculpir o ex-voto capaz de representar o milagre de sua saúde.
Os ex-votos, assim como objetos outros manipulados pelos mágicos, xa-
mãs ou pajés, não são denominados como objetos artísticos por seus usuários
originais, mesmo quando possuem qualidades estéticas evidentes, senão pelos
111
Antropologia da Arte

que os ressignificam. Entretanto, de modo algum, isso pode ser entendido como
ausência de interesse estético por parte das comunidades tradicionais. Em mui-
tos casos, mesmo entre povos ágrafos, as questões relativas ao belo e à arte
têm tratamento explícito. Em sua dissertação para obtenção do título de Mestre
em Arqueologia, sob o título Imagens e Palavras: Suas Correspondências na
Arte Africana, Maria Corina Rocha recorre a Farris Thompson, para quem “en-
tre os iorubas existe não só um comportamento voltado para a crítica da arte
como também um vocabulário muito preciso. Ou seja, não se pode afirmar que
inexistem meios de expressar valores estéticos entre os povos africanos produ-
tores de arte, ainda que esses sejam peculiares a eles, como os nossos meios
revelam a nossa visão ocidental da cultura e do mundo” (ROCHA, 2007, p. 60).
É preciso lembrar, porém, que o valor estético de determinado objeto,
numa sociedade tradicional, nunca está dissociado de seu valor simbólico,
ou seja, do prestígio de seu dono, dos rituais e fatos outros em que esteve
presente, das divindades às quais está ligado, das lembranças que desperta
etc. Do mesmo modo, se a forma do objeto pertence ao artista, seu significa-
do é dado pela comunidade a partir do contexto de uso do mesmo, isto é, a
sua inserção em determinada situação cênica, que pode envolver o canto, a
fala, a música instrumental e a performance corporal em suas diferentes mo-
dalidades. Há como que um hiato entre a criação do objeto pelo artista e sua
utilização pela comunidade, que, reiteradamente, o ressignifica: um ex-voto
tanto pode virar brinquedo infantil quanto Menino Deus na Lapinha; um pote
transforma-se em uma urna funerária; alguidar, em jarro de flores etc.
Em pesquisa desenvolvida em regiões do Congo, próximas à Gâmbia
e à Angola, nos anos 60 do século passado, com o objetivo, dentre outros, de
saber se os tshokwe, povo nativo do lugar, faziam distinção entre o que é arte e
o que não é, Daniel Crowley observou que eles estabeleciam uma ligação entre
saber como fazer bem um objeto e saber como fazê-lo belo (ROCHA, 2007 p.
94). Ao final de seu trabalho, o pesquisador norte-americano conclui com uma
lista de 19 itens por ele considerados como “expressões de valor estético”, entre
os quais constavam: máscaras e esculturas de madeira, objetos de uso domés-
tico em cerâmica ou fibra, objetos de metal com função utilitária ou decorativa,
instrumentos musicais, vestimentas de fibra, narrativas orais, cânticos, contos,
lendas, provérbios, músicas, danças e ritos em geral (ROCHA, 2007, p. 94).
Na maior parte das vezes, esses objetos de valor estético estão ligados
a ritos de iniciação ou passagem, na condição de objetos sagrados. Funcio-
nam, quase sempre, como expressão de conceitos, valores e referências na
narrativa da história de seu povo, afirmando a presença da arte em momentos
cruciais da vida dos grupos sociais e do indivíduo, exatamente quando se
processam nela mudanças fundamentais.
112
BARROSO, O.

Durante os ritos de iniciação nas sociedades tradicionais, ao se prepa-


rarem para a vida adulta, os jovens são iniciados nas diferentes linguagens ar-
tísticas dentre outros conhecimentos. Esse aprendizado inclui o conjunto das
artes – o canto, a dança, a música instrumental, a narrativa oral, a pintura cor-
poral, a escultura, a confecção de máscaras etc. – o conhecimento minucioso
do meio-ambiente, sua diversidade de matérias-primas, bem como as técni-
cas de manipulação de cada uma delas. Dessa maneira, o jovem não apenas
aprende o valor e o significado de cada uma daquelas expressões artísticas,
de cada um daqueles objetos sagrados, mas também como assenhorear-se
deles, como produzi-los.

Atividades de avaliação
1. Como se dá a relação entre arte e artesanato nas sociedades tradicionais?
2. Como se expressa a preocupação estética nas sociedades tradicionais?

2. Arte como Ofício


Na África Ocidental, antigo Império Mandinga, atuais Mali, Guiné e Burkina
Faso, o povo malinca vivia dividido em três castas. A primeira era a dos nobres
e a terceira a dos escravos. Entre as duas, situavam-se os ñàmàkálá, casta que
reunia os griots (mestres da palavra), ferreiros, tecelões, artífices do couro e da
madeira. Ser um ñàmàkálá era condição herdada por nascimento e para toda a
vida. Como forma de assegurar a transmissão e a manutenção dos segredos de
ofício, os casamentos só podiam se realizar entre pessoas da mesma casta. Os
ñàmàkálá, considerados como pessoas com poderes especiais, eram temidos
e respeitados, não podiam ser escravizados e recebiam dos nobres deferências
especiais, como presentes, consideração e sustento (BERNAT, 2008, p. 65).
Cada ofício constituía-se numa forma de poder oculto e, entre eles,
havia uma hierarquia determinada pelo tipo de conhecimento e iniciação exi-
gidos. O ferreiro ocupava o posto mais alto na escala, seguido pelo tecelão,
pelo trabalhador de madeira e de couro, todos superiores ao griot. No interior
de cada ofício, havia subdivisões, muitas das quais perduram ainda hoje.
Entre os ferreiros, por exemplo, ocupa o posto primeiro o ferreiro de mina ou
de altoforno, para virem, em sequência, o ferreiro de ferro negro e o ferreiro
de metais preciosos.
O ferreiro, não por acaso, é considerado como o primeiro filho da terra,
como o mestre do fogo e senhor das transmutações.
113
Antropologia da Arte

Suas habilidades remontam a Maa, o primeiro homem, a quem o criador


Maa Ngala ensinou entre outros, os segredos da “forjadura”. Por isso,
a forja é chamada de Fan, o mesmo nome do ovo primordial, de onde
surgiu todo o universo e que foi a primeira forja sagrada. Os elementos
da forja estão ligados a um simbolismo sexual, sendo esta a expressão,
ou o reflexo, de um processo cósmico de criação. Desse modo, os dois
foles redondos, acionados pelo assistente do ferreiro, são comparados
aos testículos masculinos. O ar com que são enchidos é a substância
da vida enviada, através de uma espécie de tubo, que representa o falo,
para a fornalha da forja, que representa a matriz onde age o fogo trans-
formador (HAMPÂTÉ BÂ, 1980, p. 197 apud BERNAT, 2008, p. 65).

Em toda a África Ocidental, a metalurgia é arte por demais respeita-


da mercê dos conhecimentos e mistérios que a cerca. Seu exercício é rito
executado em recinto igualmente sagrado, cerimônia cercada de interditos e ñàmàkálá
prescrições, durante a qual, apenas homens circuncidados e a esposa mais Palavra que significa força
antiga do mestre ferreiro se podem fazer presentes na ferraria, sob pena da oculta contida em todas as
forja não funcionar. coisas.
Nas culturas tradicionais, em que o ferro é de uso antigo, costuma acon-
tecer de ele ser considerado metal celeste, porque de origem meteorítica, car-
regado, portanto, de potência sagrada. Seu poder mágico passa ao ferreiro e
às ferramentas por ele produzidas. Com as mãos, o ferreiro forja tanto instru-
mentos capazes de tornar a terra prolífica, quanto armas de destruição. Daí
seu poder sobre a vida e a morte, sua habilidade sobre-humana e sua condi-
ção, ao mesmo tempo, divina e demoníaca.
Na África Ocidental, na antiga sociedade malinca, o ofício do tecelão, o
segundo na lista de importância na casta dos ñàmàkálá, está ligado à palavra
criadora que se distribui no tempo e no espaço. A faixa de pano em torno do
abdome do tecelão simboliza o passado e o rolo de fio a ser tecido representa
o mistério do futuro. A performance do tecelão mimetiza os gestos da criação.
As palavras por ele pronunciadas tornam-se o próprio canto da vida. O movi-
mento que seus pés imprimem ao tear traduz o ritmo mesmo da vida. Desse
modo, o ofício do tecelão liga-se diretamente à força criativa do canto em
ação (Ver em BERNAT, 2008, p. 65).
É importante observar que, no caso das sociedades tradicionais africa-
nas (assim como nas sociedades tradicionais de modo geral), não há separa-
ção entre ofício e vida, assim como entre trabalho e espiritualidade, ou arte e
utilidade. Na produção artística, o artífice está integralmente, de corpo e alma,
ou melhor, de corpo inteiro. O aprendizado pelo qual ele passa quando da sua
iniciação é dado por vivências seguidas que abrangem a totalidade do ser.
Para cada ofício, forma-se um homem particular, um artífice (ou um artista,
por que não?) dotado de um saber especial (oculto), de uma ética e de uma
114
BARROSO, O.

estética, repassados por tradição, através de um processo prático/teórico que


adentra o plano do sagrado. Por esse caminho, o aprendiz é levado a encarar
sua arte não apenas como um trabalho útil, mas principalmente como algo
que dá sentido à sua vida, que deve ser exercido de maneira íntegra, honesta
e superior, na condição de missão divina.
Concepção semelhante a essa, da arte como ofício e missão divina, foi
posta em prática na cidade cearense do Juazeiro do Norte, pelo Padre Cíce-
ro Romão Batista, entre seus seguidores, quando lá viveu de 1872 a 1934.
Como pároco e líder religioso, o Padrinho Cícero (forma como os romeiros lhe
chamavam) fez da cidade um centro de peregrinações do povo pobre do Nor-
deste brasileiro. Recebia, em sua casa, não apenas os moradores da cidade,
mas também todos os que lá buscavam abrigo, encaminhando a todos. Sob
o lema ‘trabalho e oração’, havendo um oratório e uma oficina em cada casa,
encaminhava a todos para um ofício.
Tais ofícios cobriam um arco amplo de atividades, desde a de cuidar do
gado, passando pela de plantar roça, até a ocupação de professora primária.
Entretanto, como o município praticamente não tinha zona rural, os ofícios,
na maioria das vezes, exigiam habilidades manuais e as artes mais recorren-
tes eram as dos ferreiros, funileiros, latoeiros, santeiros, tecelões, xilógrafos,
sapateiros, seleiros, cesteiros, carpinteiros, marceneiros, oleiros, ourives, das
louceiras, trançadeiras, rendeiras e outras do gênero. Mas não faltavam os
vocacionados para artes outras, além do trabalho braçal: os que ganhavam
como obrigação brincar reisado, encenar pastoril, acompanhar romaria tocan-
do em banda cabaçal, cantar bendito em irmandade de penitente, cumprir jor-
nada em dança de São Gonçalo, tornar-se cantadora de bendito e incelença,
escrever romances para cordel, enfim fazer do ofício uma arte e da arte uma
missão sagrada seguida por toda vida e prosseguida pelo filho, porque passa-
da a cada nova geração através dos tempos.
Muitos desses romeiros tornaram-se mestres em seus ofícios e, jun-
tamente com suas famílias, constituíram oficinas que funcionavam como ir-
mandades, em torno das quais se somavam inúmeros agregados. Fizeram
escola e definiram estilos diferenciados, ao modo das corporações da Europa
Medieval, sem que, no entanto, fosse apagada a marca da individualidade.
Exemplos são: o santeiro Noza, os poetas cordelistas Damásio de Paula e
João de Cristo Rei, o tipógrafo José Bernardo da Silva, os mestres de reisado
Zuza Cordeiro e Olimpo Boneca, o cantor e rabequeiro Cego Oliveira, a can-
tadeira Maria dos Benditos e a louceira Ciça do Barro Cru, entre outros.
Tanto as artes de ofício prosperaram em Juazeiro do Norte que, por
muitas décadas, inúmeras ruas centrais da cidade eram nomeadas por ofí-
cios: Rua dos Ourives, Rua dos Alfaiates, Rua dos Ferreiros etc. Ainda hoje, a
marca dessa tradição é notável na cidade, que vive essencialmente das artes
ditas artesanais e do pequeno comércio.
115
Antropologia da Arte

Atividades de avaliação
1. Em sua opinião, entender a arte como ofício implica sua desvalorização?
2. Em que implica ter a arte como missão, além de profissão?

3. Mestres do Canto e da Palavra


Essa dedicação especial a uma determinada linguagem artística – por meio de
uma iniciação e de um aprendizado sistemáticos, implicando em obrigações
que ultrapassam o plano do trabalho e da sociabilidade cotidiana para entrar
no território do sagrado –, chega até a contemporaneidade entre os povos in-
dígenas brasileiros. Myriam Martins Álvares fez um estudo sobre os Maxakali,
povo que vive no nordeste de Minas Gerais em várias aldeias espalhadas ao
longo dos afluentes do rio Umburanas, em que estuda o comportamento dos
Yãmiy, seres cantores “donos dos cantos e das belas palavras” (ÁLVARES,
2006, p. 297), espíritos do além que voltam ao mundo dos vivos para, através
dos mestres cantores, cantarem e dançarem para os humanos.
Segundo os Maxakali, após a morte, a alma dos humanos, assim como
o espírito dos animais, especialmente os dos pássaros, se transformam em
cantos ou em yãmîy: o espírito cantor ou o mestre criador de cantos que mora
no além, mas que volta ao mundo dos mortais para cantar e dançar com eles.
Para que isso aconteça, os yãmîy precisam ser chamados pelos mortais. De
princípio, todos os homens possuem essa capacidade; porém, alguns se tor-
nam especialistas nos rituais de chamar e controlar o trânsito dos yãmîy.
Entre os Maxakali, os cantos são elo, movimento e expansão, via que
une as diferentes dimensões da realidade, o mundo visível e o mundo invi-
sível, a esfera dos viventes e a esfera onde habitam os yãmîy. “Por isso, os
cantos são chamados – transporte e passagem -, são caminhos através dos
quais os Maxakali e os yãmîy comunicam-se” (ALVARES, 2006, p. 301). Essa
comunhão espiritual, propiciada pelo canto dos yãmîy, se estabelece de modo
pleno e coletivo. Por se ter como dom natural, seu canto é próximo ao dos
pássaros e é sempre antecedido e finalizado por trinados e assovios de aves.
É sempre um canto em grupo. Um yãmîy nunca canta só.
Cabe ainda observar que, entre os Maxakali, os cantos constituem-se
em veículos não apenas de comunicação com os espíritos da natureza e dos
antepassados, mas também de referência às diversas facetas das relações
humanas: políticas, sociais, familiares e de trabalho. Por isso, possuir yãmîy
é parte da formação para a vida adulta. Implica um longo processo de apren-
dizado, iniciado na infância através de uma sequência de ritos e da obtenção
116
BARROSO, O.

de conhecimentos que se intensifica na adolescência e se estende por toda a


vida, só se concluindo com a morte.
Todo esse processo de constituição do indivíduo tem como veículo a
música e o próprio ato de cantar. Por força do canto (do sopro divino) se nas-
ce, por um processo de cânticos sucessivos se amadurece e, no final da vida,
se passa para a dimensão do além pela via da transformação do espírito em
canto. Na forma de yãmîy, se volta para estar entre os vivos. Na pele de um
mestre criador de cantos, se é recebido por pajés e xamãs através de sonhos
ou mesmo em vigília, para com eles cantar e dançar.
Em seu artigo, Myriam Álvares refere-se à prática, comum entre os Ma-
xakali e também entre os Pataxó e os Krenak de Minas Gerais, de “receber”, por
meio de sonhos ou diretamente, o canto dos espíritos que, em seguida, são tor-
nados coletivos. Cita, inclusive, dois mestres cantores, Waldemar Krenad e Kaná-
tio Pataxó, particularmente especializados no trabalho de “receber” cantos: “esse
trabalho exigia que ele se afastasse do convívio com os outros, ficasse próximo à
natureza ou em sonhos” (ÁLVARES, 2006, p. 300). Ao contrário de outras cultu-
ras, nas quais os xamãs ou os mágicos vão ao mundo dos espíritos para comuni-
car-se com eles, entre os indígenas do nordeste de Minas Gerais, são os espíritos
que viajam até os homens, que só precisam estar receptivos para recebê-los.
Entre os povos bantos da África Ocidental, como já foi dito neste capítu-
lo, no interior da casta dos ñàmàkálá, formada por mestres de artes e ofícios,
aparecem os griots, igualmente mestres, mas da fala e do canto. Sua arte é
a da palavra. A base de sua formação se dá em torno do canto e da música,
que animam a poesia lírica e a narrativa épica. Os griots são os depositários
da memória de seu povo, da história dos reis e das comunidades às quais per-
tencem. São eles os encarregados de colher, acumular e fazer essa memória
circular, de fazer dela algo vivo e em permanente renovação.
Os griots podem ser divididos em três tipos: os músicos, os embaixado-
res e os historiadores, genealogistas e poetas. Os músicos compõem, tocam
instrumentos e cantam tanto músicas antigas, quanto novas de sua autoria.
Os embaixadores, também chamados cortesãos, mediam diálogos entre as
grandes famílias, notadamente as de nobres. Os historiadores, poetas e gene-
alogistas são grandes viajantes e, além das ocupações antes mencionadas,
são exímios contadores de histórias.
Nas sociedades africanas, os griots, como mestres da palavra, pos-
suem uma posição independente de relativa liberdade de opinião, podendo
emitir juízos muitas vezes nem aos nobres permitidos. Suas falas são temi-
das, porque flutuam do elogio à crítica. Como porta-vozes de notícias e reca-
dos, podem semear desavença e mentira na mesma medida que concórdia e
conciliação. No interior de uma sociedade, a atuação de um griot tanto pode
117
Antropologia da Arte

contribuir com a paz quanto fomentar a guerra. Mestre na arte de seduzir, ele
pode trazer o bem ou o mal. Diz-se, por isso, que ele tem duas línguas. Mas o
verdadeiro griot deve saber escolher a palavra certa, a palavra esclarecedora
que propicie o entendimento no intrincado dos conflitos humanos.
Os africanos costumam comparar o trabalho do griot ao de alguém que
ajuda a fazer circular o sangue pelo corpo humano. No caso, o sangue é a
palavra. Os griots a ajudam a circular pelo corpo social, de modo a que esse
permaneça sadio, sem que adoeça pela exacerbação dos conflitos. Entre os
outros de sua casta, ele é o único a não ter um ofício manual ou desempenhar
uma atividade prática; entretanto, sua fraqueza no terreno material é compen-
sada pelo domínio no campo da palavra e da memória. A mente de um griot
será sempre a grande enciclopédia de saberes da história de sua gente, de
suas lutas e amores, de seus hinos guerreiros e canções apaixonadas.
Sotigui Kouyaté, griot do antigo Império Mandinga da África Ocidental,
assim se define:

Eu sou griot. Sou eu, Djeli Mamadou Kouyaté, filho de Bintou Kouyaté
e de Kjeli Kedian Kouyaté, mestres na arte de falar. Desde tempos ime-
moriais os Kouyaté estão a serviço dos príncipes Keita do Mandinga:
nós somos os sacos de palavras, nós somos os sacos que guardam os
segredos muitas vezes seculares. A arte de falar não tem segredo para
nós: sem nós os nomes dos reis cairiam no esquecimento, nós somos a
memória dos homens, pela palavra damos vida aos fatos e gestos dos
reis perante as novas gerações (BERNAT, 2008, p. 58).

O griot não é apenas aquele que fala, mas também o que escuta a palavra,
quem a acolhe e armazena. Por isso, é o grande depositário das tradições orais de
sua gente, desde os mitos fundadores, passando pelos contos iniciáticos, até os
provérbios e anedotas, assim como o cancioneiro, enfim, toda a memória constitu-
ída pelo povo. Seu ofício é recolher e fazer circular esse acervo oral, participando
de eventos, batismos, casamentos, funerais, festas familiares ou coletivas, fazendo
aconselhamentos em famílias ou em encontros individuais. Por isso, o griot está
sempre em viagem. Ele é mestre de uma escola nômade, que vai à casa do aluno
com ele trocar saberes. Sua pedagogia é a do conto, da dança e da música. Sua
arte, a da palavra dita de viva voz e corpo inteiro.
A vida de um griot é feita de travessias, encontros, histórias ouvidas e
histórias contadas. Os anos de existência se somam como anos de sabedo-
ria. Por isso, quando na velhice o saber já lhe pesa sobre os ombros, torna-se
urgente que mais se empenhe na transmissão do que aprendeu. É necessário
que seu legado passe ao filho como um novelo sem fim de palavras, em que
uma puxa a outra, ou como um mar de saberes, onde alguém pode se aven-
turar de barco para pescar o que precisa para alimentar o espírito.
118
BARROSO, O.

A mochila de um griot é leve. Ele é do tempo em que só a memória se


guardava. Uma memória feita de palavras faladas e cantadas: palavras que são
sopros, emanações do espírito, precisando, por isso, ser tratadas com simpli-
cidade e delicadeza, tanto na arte de contar histórias, quanto no empenho em
estabelecer conciliação e concórdia entre iguais e diferentes. A memória que
traz consigo, o griot sabe não ser sua apenas, mas um bem coletivo, herdado de
uma cadeia ancestral. Sua missão é ampliá-la e partilhá-la sempre mais. Assim
se explica sua avidez pelas viagens e pelos encontros, pelas falas trocadas.
Sedutor por natureza, o griot tem o poder de fazer calar seu interlocutor
e ser ouvido, mas dessa magia não abusa, pois saber ouvir também é uma
arte. Saída de sua boca, a palavra do griot pode fazer o mundo entrar pela por-
ta das casas que visita, mas pelos ouvidos pode receber outros mundos em
seu coração. Nesse sentido, o griot tem sede do desconhecido. Na África, por
costume se recebe bem o estrangeiro. Diz-se, inclusive, que todo estrangeiro
é rico, porque traz consigo algo que se desconhece. Por isso, tem direito a boa
acolhida, hospedagem e alimentação. Em troca, pede-se que conte tudo que
sabe acerca de si mesmo e de seu povo.
Isaac Bernat, em seu estudo sobre os griots, destaca a importância que
eles dão ao conhecimento do outro, ao saber dar atenção ao outro, querendo
enfatizar que o griot, ao contrário do que se possa pensar, não é apenas um
emissor contínuo, mas um receptor atento. A propósito dessa questão, Bernat
reproduz uma fala de Sotigui Kouyaté:

Na África acreditamos que o pior mal é a ignorância. Isto é, não saber o


que se passa com os outros. Temos provérbios que nos ensinam a não
nos perdermos no olhar dos outros. Olhar, olhar bem para nos encon-
trarmos no olhar do outro. Desta maneira, veremos que há mais coisas
que nos aproximam do que coisas que nos afastam. Assim podemos
encontrar nas outras pessoas todas as nossas qualidades, e caminhar
em direção ao melhor de nós mesmos. (BERNAT, 2008, p.36)

Atividades de avaliação
1. De sua convivência, você conhece alguém que pode ser comparado a um
griot ou que tenha o dom de receber um yãmîy?
2. Qual o tipo social ou artístico cuja função no interior da cultura brasileira, na
sua opinião, mais se aproxima do griot?
119
Antropologia da Arte

4. A arte de Narrar
Quando nos debruçamos na pesquisa e no estudo dos griots e de outros con-
tadores de histórias, acabamos convencidos de que o teatro tem entre suas
origens e manifestações, a arte de narrar. Isso fica bem evidente tanto na
África Ocidental, quando um griot se põe a contar uma história num quintal
qualquer, quanto numa feira do Nordeste brasileiro, quando um mascate atrai
o público com a narrativa de uma missa cômica ou outro fato picaresco qual-
quer antes de apresentar a excelência de seus produtos.
O griot, particularmente, é um ator que faz da palavra o centro de sua atua-
ção. Em sua boca, a palavra adquire poderes mágicos, contém mana, para usar-
mos um termo explicitado em capítulo anterior. Por via de sua fala, o invisível se
manifesta. Soam as palavras dos espíritos. O que se ouve é a voz da grande tra-
dição, seus ensinamentos. Ao alcance dos homens, é colocado um saber múltiplo
que inclui a religião, a arte, a natureza, a história, o corpo, o riso e o jogo.
Em povos de culturas eminentemente orais, como as africanas, o te-
atro aflora a cada instante do cotidiano. Os fatos circulam pelas falas e se A propósito, quando os
transmitem aos ouvidos. Para que haja teatro, só basta que alguém escute críticos classificavam as
obras de Gabriel Garcia
um narrador e, entre eles, se trave uma relação dialógica. Formam-se rodas Marquez dentro do realismo
em torno de quem tem a palavra. Ali está o ator e seu público. Basta que um fantástico, ele costumava
mascate, numa feira, admita discutir o preço de um produto e que o cliente protestar dizendo que
barganhe na compra. elas apenas são realistas;
o fantástico é parte da
Em suas narrativas, os griots falam de um mundo em que as metamor- realidade do mundo por ele
foses homem/animal são frequentes. No imaginário de seus contos, animais retratado.
se comportam como homens e vice-versa, não apenas como recurso esti-
lístico ou para efeito didático, mas porque muitos povos africanos acreditam
na metamorfose homem/bicho, ou seja, que homens podem se encantar em
bichos, assim como animais podem se encantar em humanos. Daí o maravi-
lhoso flui, com realismo, de suas narrativas.
Os contos tradicionais africanos são divertimentos, ou melhor, (a)diver-
timentos sobre a vida e o comportamento em sociedade, que repassam, com
sabedoria, o legado ético das antigas gerações. Sua pedagogia evita moralis-
mos repressivos e imposições intimidantes, trabalhando através de jogos me-
tafóricos e correspondências alegóricas, uma didática sutil e bem humorada
muito ao gosto das crianças, embora voltada para todas as idades.
120
BARROSO, O.

Texto complementar
A Arte do Gato Maravilhoso
Era uma vez um mestre de esgrima que se chamava Shoken. Era um homem maravilhoso,
de uma gentileza rara. Ele gostava de todo mundo, de todo o gênero humano e, sobretu-
do, da natureza. No entanto, ele não gostava dos ratos. Ora, na sua casa, um grande rato
causava desordem. Mesmo em pleno dia, ele corria por toda parte. Um dia, o dono da
casa o trancou no seu quarto e disse ao seu gato doméstico para apanhá-lo. Mas o rato
saltou no pescoço do gato e o mordeu tão cruelmente que ele escapou miando muito alto.
Em seguida, Shoken trouxe vários gatos da vizinhança, famosos pela suagrande valen-
tia, e os fez entrar no quarto. O rato estava sentado, encolhido sobre si mesmo num canto
e, no momento em que um dos gatos se aproximou, o rato saltou sobre ele e o fez fugir.
O rato tinha um ar tão feroz que nenhum dos gatos ousava se aproximar dele novamente.
Então, o dono da casa ficou com raiva e correu ele mesmo atrás do rato para matá-lo. Mas
este evitava todos os golpes do sábio mestre de esgrima, que quebrou portas, shojis, kara-
mis e outros objetos, enquanto o rato escapulia rapidamente pelo ar como um relâmpago,
esquivando-se de cada um dos movimentos do esgrimista. Enfim, pulando no seu rosto,
o rato o mordeu. Finalmente, ofegante e pingando de suor, Shoken chamou seu serviçal e
lhe disse: “Parece que, há seis ou sete Cho (medida de distância) daqui, vive o gato mais
valente do mundo. Vá e traga-o”
Dito e feito. O serviçal trouxe o gato em questão, que era, de fato, uma gata que não
parecia muito diferente dos outros gatos; ela não tinha o ar nem particularmente inteli-
gente, nem particularmente perigoso. Assim, o mestre de esgrima não ficou, a princípio,
particularmente confiante. No entanto, ele abriu a porta e a fez entrar. Calma e silenciosa,
como se não esperasse nada de especial, a gata avançou dentro do cômodo. O rato teve
um sobressalto e não se mexeu mais. A gata, com toda simplicidade, se aproximou lenta-
mente dele, o pegou pelo focinho e o levou para fora. E durante a noite, os gatos que ti-
nham apanhado se reuniram na casa de Shoken. Respeitosamente, eles ofereceram, à ve-
lha gata, o lugar de honra, ajoelharam-se na sua frente e disseram modestamente: “- Nós
todos temos a reputação de sermos valentes. Nós treinamos nesse caminho e afiamos
nossas garras a fim de vencermos qualquer rato ou até mesmo as lontras ou as doninhas.
Jamais poderíamos acreditar que existisse um rato tão forte. Por qual arte você conseguiu
vencê-lo tão facilmente? Não faça disso um segredo, conte para nós.”
Então a velha gata riu e disse: “– Vocês, jovens gatos, mesmo sendo valentes, igno-
ram o verdadeiro caminho. É por isso que vocês deixam de ser bem sucedidos quando se
encontram diante de alguma coisa que vocês não têm a menor ideia. Mas, primeiro, me
digam como vocês treinaram?” Então um gato preto se aproximou e disse: “– Eu venho de
uma linhagem célebre em capturas de ratos. Assim, eu decidi prosseguir nesse caminho.
Eu sei saltar sobre altos biombos de dois metros. Eu sei entrar num buraco minúsculo
onde só um rato pode se enfiar. Desde criança, eu pratiquei todas as artes acrobáticas.
Mesmo acordando, quando eu não estou ainda totalmente presente, no momento em
que encontro meu espírito e eu vejo um rato correr sobre uma viga, de um salto, PLIF,
eu o apanho. Mas este rato era o mais forte que já encontrei e eu fui submetido ao mais
espantoso fracasso de toda a minha vida. Eu tenho vergonha disso.”
Então a velha gata disse: “Pobrezinho, isso no que você se exercitou não é propriamen-
te nada além de uma técnica, uma arte puramente física. Quando os antigos ensinavam
a técnica, para eles era apenas uma das formas do caminho. A técnica deles era simples,
mas havia, no seu seio, uma grande sabedoria. O mundo hoje em dia se ocupa unicamente
de técnica. Com certeza, muitas coisas foram inventadas dessa forma, de acordo com a
receita: ‘Com a condição de fazer isto ou aquilo, obtemos isto ou aquilo.’ Mas o que se
121
Antropologia da Arte

obtém? Nada além da habilidade. Abandonando o caminho tradicional, instauramos, com


uso da inteligência até o excesso, a competição dentro da técnica e agora avançamos mais.
É sempre assim: ou só pensamos na técnica ou só nos servimos da nossa inteligência. É
claro que a técnica é uma das funções do espírito, mas se ela não tem raiz no caminho e
se ela visa somente uma habilidade, ela se torna o germe do falso e o resultado é nefasto.
Portanto, recolha-se e exercite-se daqui para frente no caminho justo.”
Então, um grande gato malhado se aproximou e disse: “- É, eu penso que unicamente o
espírito é que conta na arte cavalheiresca. Assim, desde sempre eu me exercitei nesse poder.
Agora, me parece, meu espírito está duro como o aço e livre, cheio do espírito que preenche
terra e céu. Assim que eu percebo o inimigo, logo esse espírito todo poderoso o fascina e,
por antecedência, a vitória é minha. Então, aí somente eu me aproximo sem refletir, assim
como a situação exige. Eu me oriento de acordo com o som do meu adversário. Eu fascino
o rato de acordo com o meu querer: à direita, à esquerda, eu apreendo cada um dos seus
movimentos. Oh! Quanto à técnica como tal, eu não me preocupo. Ela se faz por ela mesma:
um rato que corre sobre uma viga, eu o fixo e PAF! Assim que ele cai, ele é meu. Mas, aqui,
este rato misterioso chegou sem forma e se foi sem deixar traços. O que é? Eu o ignoro.”
Então, a velha gata disse: “Só porque você se deu ao trabalho, não é nada além de uma for-
ça psíquica e não sai nada de bom que mereça o nome de bom. Estar consciente do poder do
qual você quer se servir para vencer é suficiente para agir contra a sua vitória. O seu EU entra
em jogo. Mas se o EU do outro é mais forte que o seu EU, o que vai acontecer a você? Se você
quer vencer o seu inimigo unicamente pela sua força superior, ele vai se opor com a dele. Você
imagina ser o único forte e crê que todos os outros são fracos? Mas como se comportar se
existe alguma coisa que não se pode vencer, com a melhor boa vontade, por sua própria força,
seja ela superior? Eis a questão: a força espiritual que você sente em você ‘dura como o aço,
livre e preenchendo terra e céu’ não é a grande Potência ela mesma, mas apenas seu reflexo. E
assim o teu próprio espírito é a sombra do grande Espírito. Diz o ditado: ‘Um rato encurralado
morde até mesmo o gato.’ O inimigo diante da morte não depende de nada. Ele esquece sua
vida, ele esquece toda a necessidade. Ele se esquece dele mesmo e está livre para vencer ou
fracassar. Ele só visa preservar a sua existência. É assim que a sua vontade é forte como o aço.
Então, como vencer uma força espiritual que nós mesmos nos atribuímos?”
Então, um gato cinza mais idoso se inclinou e disse: “- Sim, na verdade, é da forma
como você diz. Por maior que seja a potência psíquica, ela tem em si uma forma. Mas tudo
que tem uma forma, mesmo que seja sutil é atingível. É por isso que, há muito tempo,
eu passei a exercitar a minha alma (a potência do coração). Não sou eu que exerço essa
potência que arrasa o outro espiritualmente (o ‘eu’ como o segundo gato). Eu também
já não brigo mais (como o primeiro gato). Eu me concilio com aquele que está na minha
frente, eu me torno um com ele e não me oponho de forma nenhuma. Quando o outro é
mais forte que eu, eu cedo e me abandono, digamos assim, à sua vontade. De certa forma,
a minha arte consiste em apanhar um jorro de cascalhos com uma rede maleável. O rato
que quer me atacar, por mais forte que seja, não encontra nada onde se apoiar, nada de
onde ele possa se lançar. Ora, este rato não jogou o jogo; ele chegou, ele partiu, sem poder
ser pego como uma divindade. Eu nunca vi algo parecido.”
Então a velha gata respondeu: “Isso que você chama de conciliação não procede do Ser
da grande Natureza. É uma conciliação desejada, artificial. Uma astúcia. Conscientemente,
você não pode escapar, dessa forma, da agressividade do inimigo. Mas se você pensar bem,
ainda que furtivamente, ele percebe a sua intenção. Ora, se dentro de tal disposição você se
mostra conciliador, o seu espírito pronto para o ataque se confunde. A sua percepção e a sua
ação são perturbados desde o seu interior. Tudo que você começa a fazer com uma intenção
consciente entrava a vibração original da grande Natureza, atrapalha o aparecimento da sua
fonte secreta e perturba o curso do seu movimento espontâneo. De onde viria, então, essa
eficácia milagrosa? É unicamente não pensando em nada, não querendo nada e não fazendo
nada, mas se abandonando no teu movimento com a vibração do ser, que você não teria
mais nenhuma forma atingível. Só uma coisa importa: que a menor suspeita de consciência
122
BARROSO, O.

de si não entre em jogo. Senão, tudo está perdido. Se pensarmos no objetivo, mesmo de
uma forma fugidia, tudo se torna artificial. Somente se você está no estado onde você é
livre da consciência do eu, somente se você age sem agir, sem astúcia, abandonando toda a
intenção, treinando a não intencionalidade e deixando o ser atuar, então somente aí é que
você está no verdadeiro caminho. Esse caminho é inesgotável.”
E, depois, a velha gata acrescentou: “Você não deve acreditar que o que eu acabo de
vos dizer seja o que há de mais elevado. Não faz muito tempo, num vilarejo vizinho ao
meu vivia, um gato doméstico. Durante os dias ele dormia. Nada nele transparecia alguma
coisa que se assemelhasse a uma força espiritual. Ele estava lá estendido como um pedaço
de madeira. Ninguém jamais o tinha visto pegando um rato. Ora, lá onde dormia e vivia,
assim como nas redondezas, não havia ratos. Onde ele aparecia e se deitava não havia
mais nenhum rato.
Um dia, eu o visitei e perguntei como se podia interpretar esse fato. Eu não recebi
nenhuma resposta. Três vezes ainda, eu coloquei a minha questão. Ele se calou. Não era
que ele não queria responder, mas que ele não sabia o que responder.
Então eu soube: ‘aquele que sabe alguma coisa, não sabe que sabe’.
Esse gato doméstico tinha se esquecido dele mesmo e tinha, ao mesmo tempo, esque-
cido todas as coisas em volta dele: ele tinha se tornado ‘nada’ e tinha alcançado o mais
alto degrau da não intencionalidade. E nós podemos dizer que ele havia encontrado o
divino Caminho do cavalheiro: vencer sem matar. Eu estou muito longe atrás dele.” (Conto
tradicional africano, recolhido por Isaac Bernat, ver BERNAT, 2008, p. 288)

Muitos dos contos tradicionais africanos são de conhecimento público


geral. Esse fato, porém, não impede que eles possam ser contados e recon-
tados inúmeras vezes por diferentes griots. Importa o enredo; porém, importa
muito mais o modo como o ato de contar é desenvolvido pelo contador. A
ação de contar uma história implica três instâncias: a dos personagens da
história que está sendo narrada; a do narrador da história, que não deixa de
ser também um personagem; e uma terceira instância, a da pessoa mesma
do contador de história, no caso o ator que, através do seu corpo, possibilita a
entrada de cada um dos personagens em cena.
Ao colocar-se no lugar do narrador, o contador o faz por inteiro, com
todos os recursos de seu corpo. Como narrador, ele desenvolve a história,
situando-a no tempo e no espaço, estabelece sua progressão e a mudança
de cenários. Ao se deslocar para o corpo de cada um dos personagens, o
contador o faz de maneira a não deixar dúvidas, de forma inconfundível e
marcante. Ao notar alguma dificuldade da plateia, ele pode se comunicar di-
retamente com ela, combinar gestos e sinais, trocar comentários, tornando-a
cúmplice não apenas da maneira como a história está sendo contada, mas de
seu próprio enredo. Uma velha história contada por um novo contador pode se
tornar uma nova história, se esse novo contador introduzir uma nova maneira
de contar a velha história, porque uma nova maneira de contar uma velha his-
tória sempre a transforma em uma nova história. Ou seja, um novo olhar torna
o já conhecido algo inusitado.
O fundamental é que a história seja entendida pela plateia. Na África
Ocidental, entre os malinca, há a figura do námúnamulá (‘respondedor’ em
123
Antropologia da Arte

maninca), alguém encarregado de observar se a recepção dos ouvintes está


justa e de responder: naamu (é verdade, eu escuto). Isto quando não aconte-
ce de a própria plateia responder, ela mesma, cantando refrões ou intervindo
das maneiras mais diversas durante as narrativas.
Daí haver a preocupação do contador de história de, com simplicidade
e segurança, iniciar por situar a plateia no tempo e no espaço da ação. Sua
fala, seu gesto e até mesmo seu olhar devem ser de tal modo naturais, que não
desviem a atenção da plateia para si. O bom narrador sabe como focar o pensa-
mento do público na história contada e, sem impor sua visão, deixar que a ima-
ginação de cada espectador construa sua imagem dos acontecimentos. Para
isso, evita fechar o sentido de sua performance, não colocando uma intenção
em cada fala ou um significado em cada gesto, com demasiada técnica, sem
dar abertura às diferentes subjetividades dos receptores. Em outras palavras,
o bom fabulador é o que sabe colocar-se em segundo plano para dar lugar à
fábula. Ou seja, o contador tem que se apagar para que o conto brilhe.
Ao mesmo tempo, o griot, como todo bom contador de histórias, está
sempre atento ao tempo presente, ao que se passa em torno, a cada reação
do público. Do público, ele se alimenta para renovar a história, trazê-la de um
tempo e de um espaço quase sempre distante para o presente e o local e
fazê-la viva e útil, experiência prática, ação vivida. Só assim, sua palavra soa
sólida, pedra, contundente, carne viva, como algo nascido de uma vivência,
feito para experimentar novas vivências.
O griot fala sem eloquência, sem afetação, num tom de diálogo com
a plateia. Na sua figura, está presente o narrador da história, ele mesmo um
personagem (como foi dito acima) e o contador de histórias (o griot). O griot
alterna esses dois papeis de modo sutil e com simplicidade, a vista da plateia,
sem nenhum subterfúgio. Se o compromisso maior de um griot é a transmis-
são de conhecimentos, sua primeira preocupação é com a clareza na emis-
são de sua mensagem.
Para que as mesmas velhas histórias continuem vivas, seu referencial é
o público. Em sua performance, mais que contar para a plateia, ele deve contar
com a plateia, num jogo de parceria, de cumplicidade (Ver BERNAT, 2008, p.
256). Entretanto, é preciso evitar algumas armadilhas, tanto a de se perturbar
com aquele ouvinte sonolento, como a de se deixar seduzir pelo riso fácil ou
pelo enternecimento excessivo daquele espectador que busca monopolizar a
atenção do narrador para si. É preciso não perder a atenção (dada) ao conjunto.
Finalmente, outro elemento é fundamental para uma boa narração: a
empatia entre o contador e a história a ser contada. Ou seja, embora se tratan-
do de contos tradicionais, passados em épocas e lugares distantes ou imagi-
nados, o contador deve dominá-los de tal modo que os faça seus, tornando-se
124
BARROSO, O.

senhor de todos os seus mistérios e detalhes. Só conhecendo as inúmeras


possibilidades de interpretação e a multiplicidade de caminhos que o narrador
pode percorrer em sua fabulação, o contador de histórias poderá tirar do conto
o maior proveito possível em sua performance junto à plateia. Nesse sentido,
o contador de história é uma via pela qual as velhas histórias atualizam-se, um
canal através do qual a tradição se renova e o verbo se faz carne.
Diz-se sempre que o bom ator é aquele que atua com o corpo todo. Por
consequência, o bom contador de histórias é aquele que narra com o corpo
inteiro. No caso da Commedia dell’Arte, por exemplo, como veremos adiante,
o ator, com o auxílio da máscara, utiliza ao máximo o gestus corporal em seu
trabalho narrativo. No caso do griot, assim como dos bons contadores africa-
nos, de modo geral, o contrário parece ser verdadeiro. Seu instrumento narra-
tivo concentra-se na fala. Simplesmente, ele senta-se e, com gestos mínimos,
debulha sua história, envolvendo toda uma roda de ouvintes com sua narra-
tiva. Tal capacidade de empatia, no entanto, só é conseguida por contadores
com muita experiência. Em todo caso, deve haver uma adequação entre a
expressão oral e a postura corporal do contador, assim como entre a maneira
de apresentação do conto e a disposição do público.
Essa capacidade de sedução, essa “autoridade” sobre o público, para
ser melhor entendida, pode ser exemplificada pela performance de dois ar-
tistas geniais, contadores de histórias, espécies de griots brasileiros, guar-
dadas as diferenças. Um é Valdemar dos Passarinhos, artista potiguar, ha-
bitante de Mossoró, que se apresenta imitando pássaros, fazendo outros
números e contando pequenas histórias nas feiras do Rio Grande do Norte.
Ao contrário de muitas tradições orientais, em que o ator emprega o máximo
de energia para o menor gesto, Valdemar dos Passarinhos, na simplicidade
de sua atuação, parece empregar a menor energia possível até nos gestos
mais amplos. Atua por costume, através de hábitos incorporados por anos
de atuação, tal a facilidade como se apresenta perante o público. Não po-
deria ser diferente porque, sua performance numa roda de feira, por vezes,
dura horas seguida, tornando desaconselhável, para um homem de sua ida-
de, tanto dispêndio de energia.
Exemplo mais apropriado ainda é o do notável poeta Patativa do Assaré,
falecido há poucos anos, capaz de guardar toda a sua extensa obra de me-
mória. Grande parte da obra de Patativa é composta de pequenos romances
populares, histórias de trancoso, fábulas exemplares, versos líricos e narrativas
épicas, poemas por ele criados ao modo dos trovadores, cordelistas e cegos
de feira (ele próprio, quase inteiramente cego). Testemunhei, inúmeras vezes,
o fascínio de suas narrativas, cantadas ou faladas, sobre seus ouvintes. Pouco
ele gesticulava e, com a idade avançada, sua voz, por vezes, parecia vacilar.
Porém, seguia em frente, com a mesma coerência no estilo, na cadência, na
pontuação, nas inflexões, no modo de dizer; enfim, encantava a todos.
125
Antropologia da Arte

No final da década de 1980, Patativa foi convidado pelo cantor e com-


positor Raimundo Fagner, de quem se tornara parceiro, para se apresentar
com ele em um grande show de rock ao ar livre na praia de Santos. Fagner,
que havia a pouco conhecido Patativa e dele se encantara, queria apresen-
tar o bardo de Assaré ao grande público do Rio e de São Paulo. Na hora
de chamá-lo ao palco, entretanto, temeu pela sorte do seu convidado. Isso
porque, o público, formado por uma multidão de jovens barulhentos aficio-
nados do rock, como era de se esperar, mostrava-se mais disposto a cantar
e a pular que a ouvir.
Para surpresa de Fagner, porém, deu-se exatamente o contrário. Aque-
le velhinho, baixo, raquítico, sotaque de matuto, voz pouco potente, não se
intimidou. Falou para aquela multidão como já conhecesse a todos. Falou
sem pressa. Contou suas histórias, disse seus poemas, cantou suas canções:
“Seu doutor, me dê licença pra minha história contar. Hoje eu tô em terra estra-
nha, é bem triste o meu penar....” A multidão foi calando, sossegando. Fez-se
silêncio absoluto. Ao final de cada número, havia aplausos inúmeros. Entre
astros famosos e festejados, Patativa foi a estrela da noite.
É importante notar que, na poesia de Patativa, assim como na literatura
de cordel, a escrita é só uma parada provisória da voz. Na verdade, Patativa,
Em disco tendo por nome
assim como os poetas de cordel o fazem, criava seus versos de memória,
Nordeste: Cordel, Repente
servindo-se da métrica e da rima como auxiliares para a memorização tan- e Canção, lançado em
to no processo de criação quanto no de difusão. Apenas pela necessidade 1975 pela Tapecar, junto
de publicação, os versos são registrados pela escrita. No caso de Patativa, com filme documentário
sabe-se que muito de sua poesia nunca foi transposta para o papel. Daí a produzido pela Embrafilme.
propriedade de se incluir a obra de Patativa do Assaré, assim como a chama-
da literatura de cordel do Nordeste brasileiro, no rol da literatura oral.
Contadores de histórias, ou melhor, cantadores de romances, griots can-
tores (para usar a designação africana) foram também alguns cegos cearenses,
como o Cego Heleno e, entre os mais famosos, Cego Oliveira e Cego Aderal-
do. Os três tinham em comum cantarem acompanhados de rabecas. Os dois
primeiros eram pedintes de feira e viveram no Cariri, mais particularmente entre
o Crato e Juazeiro do Norte. Cantavam benditos, incelenças, baiões, cocos
e outros ritmos; porém, a preferência recaía sobre um repertório vasto de ro-
mances tradicionais em rimas que depois foram fixadas em literatura de cordel.
Cego Oliveira, a quem ouvi inúmeras vezes, era dono de uma voz possante e
expressiva; quase sempre, cantava acompanhado de seu filho, também cego.
Costumava vender folhetos de cordel, principalmente romances, sendo o seu
preferido, o Romance de João de Calais. Vendia ainda folhas soltas contendo
canções de amor, entre as quais uma intitulada Na Porta dos Cabarés, que foi
posteriormente gravada em disco por Tânia Quaresma. Já o Cego Aderaldo,
morador de Quixadá, fez nome no Brasil como cantador, mercê sua voz operís-
tica e suas qualidades excepcionais no repente e na canção.
126
BARROSO, O.

A ligação dos cegos à narrativa cantada dos romanceiros é tradição


muito antiga e largamente cultivada. Não apenas entre os gregos, em cuja
história/mitologia aparecem as figuras marcantes de Homero e Tirésias, mas
também entre outros povos, ao cego é ampliado o poder da voz, em contra-
partida à perda da visão. Na Europa Medieval, os primeiros dos “cantores de
gesta” a se especializarem na transmissão do romanceiro tradicional foram os
jograis cegos. Segundo Paul Zumthor,

essa especialização dos cegos constituiu um fato etnológico marcante,


que se pode observar, ainda em nossos dias, em todo o Terceiro Mundo.
Sem dúvida, numa sociedade em que nenhuma instituição assegura nem o
cuidado nem a reinserção do cego, a solução mais óbvia de seu problema
é a mendicância, e o canto pode ser o meio (ZUMTHOR, 1993, p. 58).

Na Europa Medieval, o romanceiro era cantado, isto é, a publicação de


seus textos fazia-se pela voz dos artistas populares (jograis, saltimbancos,
cantores, recitadores, atores, contadores de história etc.), no sentido de que
eles os tornavam públicos. Geralmente o recitador era também cantor e músi-
co. Ele cantava a história e se acompanhava. O mesmo passou a acontecer
no Nordeste brasileiro a partir do século XIX, com os cantadores. Inicialmente,
eles não eram apenas repentistas que se batiam em desafios; também can-
tavam canções e narravam romances épicos ou líricos, acompanhando-se
de rabecas ou violas. Viajavam em animais, aos pares ou sozinhos, arran-
chando-se nas fazendas, onde se apresentavam para o povo das cercanias.
Cantavam também nas feiras, mercados e, especialmente, durante as festas
religiosas. Quase sempre, como bons improvisadores, não decoravam as his-
tórias que contavam, mas as recriavam a cada apresentação, adaptando-as
aos fatos e costumes locais.
Destaque
Em sua Antologia Ilustrada dos Cantadores, Francisco Linhares e Ota-
cílio Batista abrem o rol de ilustrações com uma foto de Fabião das Queima-
das tendo nas mãos sua rabeca. Fabião foi um cantador negro, nascido no
Rio Grande do Norte e criado na Paraíba, em lugar por nome Queimadas.
Fabião mereceu essa distinção dos autores da antologia, por ter comprado a
liberdade de sua mãe, uma escrava, com o ganho de suas cantorias.
127
Antropologia da Arte

Fabião das Queimadas

Além dos cegos de feira e cantadores, circula, nas praças e feiras do


Nordeste brasileiro, a figura do folheteiro, nome dado a quem vende o folheto de
cordel. O folheteiro, geralmente, expõe seus folhetos em um vistoso mostruário
e, por último, com o auxílio de um microfone ligado a uma caixa de som, faz a
leitura de seus cordéis. Lucas Evangelista, cearense de Crateús, também autor
de muitos folhetos, é um dos folheteiros mais famosos em atividade. Por força
de seu ofício, viajou por quase todo o Brasil, do Sudeste à Amazônia, embo-
ra principalmente pelo Nordeste. Em conversa que tivemos, em 2005, ele me
contou que, na década de 1950, muitas vezes, chegou a vender centenas de
exemplares de um mesmo romance após uma só lida. Fato semelhante foi tes-
temunhado pelo folheteiro Antonio ‘Sola Crua’, na década de 1940, que vendeu
300 exemplares de “A Louca do Jardim” na Praça da Estação, em Fortaleza,
depois de apenas uma leitura (BARROSO, 1982, p. 92).
Por fim, com referência à arte de narrar, cabe dizer que tanto o conto
quanto a canção trabalhada pela oralidade tendem a se adequar não apenas
ao espaço da transmissão direta, ao vivo, quase sempre numa roda de feira
ou praça, a céu aberto, como também ao filtro operado pelo gosto popular. A
circunstância de uma roda de feira, principalmente, com os ouvintes quase
sempre em pé e de passagem, não tolera narrativas de longa duração nem
enredos muito complexos. Em vista disso, é frequente, por parte dos narra-
dores, a recorrência à redundância, à compactação e até à simplificação dos
enredos, quando não apelam a variações de histórias já conhecidas do públi-
co. Em grande parte dos casos, a curiosidade dos ouvintes não é pelo enredo,
128
BARROSO, O.

mas sim por como o fio do enredo será desenrolado daquela feita. Quanto ao
gosto popular, ele retém o que é essencial na história e na canção; o mais é
perdido no processo de transmissão. Como enfatiza Peter Burke:

Daí o estilo lacônico, a transição abrupta de um episódio para outro, ou


a simples justaposição de duas imagens sem comentários. Esse estilo
elíptico é uma das características estéticas mais atraentes das canções
e estórias tradicionais, e resulta não tanto de decisões individuais, mas
do desgaste provocado pela transmissão oral, uma forma negativa, de
‘criação coletiva’. Por tudo isso, ouvir uma canção ou uma estória tradi-
cional não é tanto ouvir a voz de um indivíduo, por talentoso que seja,
mas ouvir a voz da tradição que fala através dele (BURKE, 1989, p. 170).

Atividades de avaliação
1. Qual a função do conto no interior da cultura africana?
2. Quais as principais qualidades de um bom contador de história?
3. Que relação o contador de história deve estabelecer com a plateia?
4. Como o uso da máscara pode interferir na gestualidade corporal do ator?

5. O Imaginário Popular e seus Disfarces


Na Europa Medieval, assim como na África Ocidental, entre as artes de ofí-
cio como a do pedreiro, a do ferreiro, a do tecelão etc., listava-se a do ator,
ou melhor, a do comediante profissional. Acerca da questão, Dário Fo afirma
: “Antes de tudo, Commedia dell’Arte significa uma comédia encenada por
atores profissionais, associados mediante um estatuto próprio de leis e regras,
através do qual os cômicos se comprometiam a proteger-se e respeitar-se
reciprocamente” (FO, 1998, p. 20). Organizados em corporações, sob a pro-
teção dos reis, esses artistas defendiam-se não apenas das imposições dos
grandes comerciantes, como da prepotência dos nobres e da alta hierarquia
da Igreja. Além disso, defendiam privilégios de exclusividade para atuação no
interior dos muros das cidades, contra saltimbancos, jograis e outros artistas
de menor cotação.
Tratava-se de companhias ambulantes formadas por atores profissio-
nais de várias nacionalidades, cujo eixo de atuação procedia principalmente
da Itália e França, mas se estendia pelos países vizinhos. Trabalhavam com
vasto repertório, o que permitia às companhias assentarem praça durante me-
ses num mesmo lugar, sem repetir espetáculo. Tomavam por base um argu-
mento, espécie de roteiro, que partia de determinadas situações dramáticas
129
Antropologia da Arte

alicerçadas em personagens típicos, em torno do qual o elenco, respaldado


por um rico acervo de diálogos, gestos, movimentos, tiradas e outras fórmulas
cênicas, improvisava a ação necessária ao desenvolvimento do enredo.
No repertório, havia peças para todos os gostos: comédias, dramas e
farsas. A grande experiência dos atores tornava desnecessário o trabalho de
ensaiar e decorar textos. A cada novo espetáculo, o poeta da companhia reu-
nia o elenco, distribuía os personagens, relembrava o enredo e, em seguida,
pregava, nos bastidores, a escala das entradas de cena, bem como o conteú-
do de cada uma delas. O importante era colocar bem a situação dramática de
abertura e saber conduzi-la até o final.
Os atores da Commedia dell’Arte, ao contrário dos griots africanos,
usavam ao máximo a gestualidade corporal, pelo fato de atuarem mascara-
dos, bem como por falarem, na maioria dos casos, em grammelot, uma espé-
cie de língua falsa inventada por eles, que imita a língua da plateia por meio de
uma paródia macaqueada, o que possibilitava os atores se fazerem entender
mesmo quando não conheciam a língua do lugar. Essa gestualidade corporal
dos atores da Commedia dell’Arte é feita a partir da máscara de cada um de
seus personagens típicos, cuja movimentação toma por referência a forma
de comportar-se de animais domésticos, daí a alcunha recebida por esses
adereços: “máscaras de quintal”.
Na Commedia dell’Arte portar uma máscara implica a incorporação do
personagem que a ela corresponde de modo integral, tanto no aspecto físico
quanto no psicológico. Seguindo esse preceito, a aparência e o comportamen-
to do Capitano deve variar entre os de um cão perdigueiro, os de um mastim
napolitano e os de um homem. Já a performance do ator, que porte a máscara
do Pantalone, obriga-se a mimetizar os movimentos entrecortados de um galo
e ter uma aparência que lembre algo entre um galo, um peru e uma galinha.
Já a máscara do Arlecchino pede do ator um comportamento entre o do gato
e o do macaco, com gestos pequenos e suaves acompanhados de grandes e
enérgicos saltos. O Dottore é o porco e o Brighella associa o cão com o gato.
É importante observar a ligação entre esses animais de quintal e os per- Isso acontecia porque
sonagens da Commedia dell’Arte, membros da baixa corte à época, servos tratava-se de atores de
e subordinados em geral. Em seus espetáculos, apenas a alta nobreza não diferentes nacionalidades
que quase sempre não
aparecia com máscaras, nem era criticada, ficando subentendido que, para dominavam as línguas
essas companhias, somente a alta corte era humana. Nas palavras de Dario das cidades em que se
Fo, aprendemos que apresentavam. O grammelot
era uma espécie de
aqui [na Commedia dell’Arte] se mostra claramente a dominação de imitação da língua local, um
uma classe: só não eram ridicularizados os detentores do poder abso- fazer de conta que estavam
luto, os demais, como, por exemplo, os nobres decaídos e miseráveis, falando determinada língua.
os médicos ou os vendeiros, eram tratados como vulgares, imposto-
130
BARROSO, O.

res e embusteiros. Os nobres poderosos, os grandes mercadores e


banqueiros nem sequer eram citados: os que se atreviam a fazê-lo se
arriscavam a ser expelidos para fora da cidade com os ossos quebra-
dos. Portanto, a ironia só era permitida em relação aos personagens
e profissões odiosos à burguesia capitalista nascente, que, naquele
tempo, estava gerindo toda a cultura, inclusive o teatro. É essa a classe
que solicita aos cômicos o desenvolvimento de temas particulares e as
variações sobre o próprio tema (FO, 1998, p. 40).

Saltimbancos e jograis pareciam bem mais próximos do pensamen-


to popular. Sempre em busca de artimanhas para burlar a vigilância das
autoridades, subiam, de surpresa, sobre bancas de feira ou saltavam sobre
um banco qualquer (Ver FO, 1998, p. 135) e apresentavam seus números.
Sozinhos, interpretavam dúzias de personagens ao mesmo tempo, inclusive
diálogos entre vários. Em suas comédias grotescas, sátiras e tiradas bufas,
denunciavam a ladroagem dos latifundiários, o roubo dos comerciantes, a
corrupção dos padres e bispos, a hipocrisia dos luteranos. Se não bastas-
sem as cenas, distribuíam panfletos aos presentes com caricaturas e diabri-
tes contra os ricos e bem postos.
Pelos impressos, porém, logo eram presos e faziam encher de provas
Origem provável da palavra contra eles os arquivos das delegacias e dos tribunais. Por isso, aprenderam
‘saltimbanco’.
a usar, com sutileza, as inflexões da voz e as variações dos gestos corporais.
Assim, puderam mostrar, nas entrelinhas, através de ironias e insinuações,
as vigarices não só dos policiais, médicos, advogados, padres e mercadores,
como faziam os atores da Commedia dell’Arte, mas também da alta nobreza.
O riso, a troça, a gargalhada, a risada, enfim, sempre foi o grande recur-
so do povo contra o poder instituído, seja ele qual for. Mete medo nos pode-
rosos e por eles é considerado perigoso; logo, tratam de combatê-lo, porque
denota astúcia, imaginação, perspicácia, capacidade de distanciamento crí-
tico, de livre raciocínio e afastamento de qualquer pensamento fechado, de
qualquer ideia cega.
Mikhail Bakhtin, em seu livro A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento, mostra como, na Europa, a festa popular foi o grande reduto
da comédia grotesca, quando a ordem do mundo era invertida pelo riso, pelo
menos até o Século XIV. Nos carnavais e outras festas populares, mesmo na-
quelas que faziam parte do calendário religioso, pobres diabos – corcundas,
mendigos e outros tipos considerados párias sociais – eram coroados reis,
monarcas do desgoverno. Prostitutas eram feitas rainhas e levadas em cortejo
pela cidade. Pobres e ricos, por alguns dias, misturavam-se nas ruas. Vivia-se
um mundo de igualdade e liberdade, prazer e liberalidade, em antecipação à
quaresma que se seguiria.
131
Antropologia da Arte

Até o Renascimento, elite e povo compartilhavam uma mesma cul-


tura. Com a modernidade, entretanto, a partir mais precisamente da reforma
protestante e da contrareforma católica, a elite não apenas abandonou a cul-
tura popular, como passou a perseguí-la. Amparando-se numa lógica racional
positivista, pretensamente científica, como já vimos nos primeiros capítulos
desse livro, passou a condenar o ponto de vista mágico/anímico da cultura
popular como herético e supersticioso.
O livro de Peter Burke, Cultura Popular na Idade Moderna, é pródigo em des-
crever os ataques das igrejas cristãs contra as manifestações da cultura popular.

Os reformadores objetavam particularmente contra certas formas de


religião popular, como as peças de milagres ou mistérios, sermões po-
pulares e, acima de tudo, festas religiosas como os dias de santos e
peregrinações. Também objetavam contra inúmeros itens da cultura
popular secular. Uma lista abrangente atingiria proporções enormes,
e mesmo uma lista curta teria de incluir atores, baladas, açulamentos
de ursos, touradas, jogos de cartas, livretos populares, charivari, char-
latães, danças, dados, adivinhações, feiras, contos folclóricos, leituras
da sorte, magia, máscaras, menestréis, bonecos, tavernas e feitiçaria.
Um número considerável desses itens criticados associava-se ao Car-
naval, de modo que não surpreende que os reformadores concentras-
sem suas investidas contra ele. Além disso, proibiam - ou queimavam -
livros, destruíam imagens, fechavam teatros, picavam mastros de Maio Febo
e dissolviam ‘abadias de desgoverno’ (BURKE, 1989, p. 232). Deus romano equivalente a
Apolo.
Acunhadas de pagãs, as manifestações da cultura popular tradicional
eram, de costume, taxadas pelos teólogos reformadores como coisas do dia- Flora
Deusa romana da
bo. Viam-se demônios por toda parte: em invocações a Febo às vésperas de
primavera.
Reis, em festas de Flora nos jogos de Maio, em deuses gregos na noite de
São João. Aliás, demônios eram todos os deuses pagãos. Chegou-se a proi- Proibir danças
bir danças e queimar rabecas. Denúncia de escândalo maior recaiu contra os e queimar rabecas
O que não era de se
skomorokhi, cujos homens se vestiam de mulher e cujas mulheres se vestiam
admirar, pela quantidade
de homens, além de terem ursos para seduzir os incautos. de protagonistas da cultura
Protestantes e católicos estavam em acordo quanto ao caráter de- mágica popular queimadas
moníaco das manifestações da cultura mágico-popular. Mas enquanto os nas fogueiras da Santa
Inquisição.
primeiros intentavam a eliminação pura e simples de suas práticas, os cató-
licos optaram por buscar sua modificação através da retirada de seu ‘paga-
nismo’ e da sua ‘licenciosidade’.
Em muitos países e regiões da Europa, houve resistência a essas re-
formas e Burke cita, como exemplo, sublevações camponesas ocorridas
em Toscana entre 1788 e 1791, que obrigaram a renúncia de um bispo (Ver
BURKE, 1989, p. 260). Em algumas regiões da própria Europa, distantes dos
132
BARROSO, O.

centros de controle das instituições eclesiásticas, esse catolicismo ‘pré-Refor-


ma’, ou seja, ainda prenhe de elementos mágicos e anímicos, perdurou por
longo tempo ou nunca desapareceu de todo.
Com o final do Renascimento, a partir da Europa e se estendendo ao
mundo colonizado pelos europeus, houve como que um processo de ‘cristia-
nização’ da cultura popular tradicional. Na esfera do catolicismo, por iniciativa
de diversas irmandades e padres seculares, mas, principalmente, por iniciati-
va dos jesuítas, aconteceu uma política de adaptação deliberada do calendá-
rio festivo católico aos ciclos festivos ditos pagãos. Assim é que a festa pagã
do Solstício do Inverno foi ressignificada como o Natal e a festa do Solstício de
Verão, como a festa do nascimento de São João Batista.
Se esse esforço adaptativo, ou melhor, se essa apropriação das festas
populares, com seus ritos e folguedos, foi feita pela Igreja em sua cateque-
se, em sentido contrário movimentaram-se os sujeitos das culturas populares.
Como forma de fazer sobreviver seus deuses, criaram correspondências com
os santos católicos. Assim é que Nossa Senhora da Conceição corresponde
a Iemanjá, Iansã, a Santa Bárbara, São Jorge, a Ogum etc. Para continuar
coroando seus reis negros nos autos dos reisados, fizeram de Baltazar, um
dos Reis Magos que vão a Belém, o Rei de Congo e assim por diante.
O caso das Folias de Reis é exemplar. Segundo Câmara Cascudo
(1998, p.69), elas teriam origem nas Kalendas Januari, cultos agrários de fer-
tilidade, que incluíam danças mascaradas para espantar maus espíritos, algo
próximo aos nossos Caretas. Além disso, de acordo com Curt Sachs, as folias
eram “uma dança de procedência portuguesa, relacionada aos ritos de fecun-
didade - um antigo ritual no qual homens mascarados e vestidos de mulher
atiravam-se em transe no chão, como se estivessem possuídos” (SACHS,
1944, 64 apud MONTEIRO, 2004, p. 37).
Adaptando-se ao ciclo natalino, as Janeiras transformaram-se em gru-
pos de Tirações de Reis, que ainda hoje no Brasil saem de porta em porta,
cantando e pedindo prendas. Já dos autos europeus natalinos, surgidos no
interior das igrejas e abadias entre os séculos X e XIII, que depois passaram a
ser encenados nas praças e ruas, derivaram uma série de folguedos, bailados
e danças dramáticas espalhados pelas mais diferentes regiões brasileiras.
Dentre todos, destacam-se os Pastoris ou Lapinhas e, especialmen-
te os Reisados que, no Brasil, apresentam-se com inúmeras variantes de
acordo com cada região. Caracterizam-se como folguedos do ciclo natalino
que giram em torno da figura do Rei e do nascimento do Menino Deus. Entre
outras denominações, aparecem como: Folia de Reis, Reisado de Congo,
Congada, Reisado de Caretas, Boi de Reis, Reisado de Caretas, Reisado
de Bailes, Cavalo Marinho, Moçambique etc. No Ceará, ganha os nomes
133
Antropologia da Arte

de Reisado de Congo, Reisado de Careta, Reisado de Baile, Reisado de


Couro, Reisado de Caboclo e Boi.
Em todos esses Reisados, são numerosos e evidentes não apenas Caretos ou Chocalheiros
traços europeus pré-cristãos, como de culturas afrobrasileiras e indígenas. Refiro-me às festas de
inverno que têm lugar na
Nas Folias de Reis fluminenses, os desenhos gravados nos trajes dos palha-
região da Galícia e em
ços são pontos visuais de orixás, assim como a performance corporal dessas Bragança, principalmente.
figuras marca uma referência africana direta. Nos Reisados de Congos nor-
destinos, tão abundantes no Cariri cearense, a influência cultural dos negros é
tão acentuada que se torna redundante citá-la. Cabe destacar, porém, a figura
do Mandu, entidade africana que consta entre seus entremeios e aparece
também nas Folias de Reis do Sudeste brasileiro.
É interessante notar que algumas das características que Monteiro
(2004) anota como provenientes da cultura ioruba na sua tese sobre o pa-
lhaço das Folias de Reis, também encontradas nos Reisados de Caretas do
sertão cearense, bem poderiam ser atribuídas como de origem ibéricas, por-
que encontradas, por exemplo, nas mascaradas desenvolvidas pelos Care-
tos ou Chocalheiros do Sul de Portugal e Norte da Espanha. Senão vejamos
os traços comuns entre as Folias de Reis e as mascaradas portuguesas e
espanholas: o uso do bastão ou cacete, assim como da máscara; o desen-
volvimento por jornadas através das casas e santuários; o pedido de dinheiro
no círculo de adeptos e associados numa forma de economia de escambo;
o uso do verso em improviso e da memória narrada; a performance gestual
quase acrobática da figura a partir do centro da roda, permitindo a interação
constante do mascarado com o público; a irreverência, as traquinagens, o
jogo e a brincadeira, relembrando antigos ritos em que se invocava espíritos Ver livro BARROSO,
Oswald. Reis de Congo:
ancestrais, anunciando a relatividade dos poderes terrenos e a duplicidade do Teatro Popular Tradicional.
mundo (Ver MONTEIRO, 2004, p. 49). Fortaleza-CE: MinC/Flacso/
Nas festas e folguedos populares brasileiros, operou-se, no geral, um MIS, 1996.
duplo movimento. Um primeiro aconteceu no sentido de estabelecer corres-
pondências entre elementos das religiões afrobrasileiras e ameríndias com o
catolicismo, apresentando as manifestações das primeiras sob uma aparên-
cia cristã, num processo que usualmente se chama de sincretismo religioso.
Um segundo movimento se desenvolveu com a transformação de antigos mi-
tos, ritos e outros procedimentos mágicos em contos, romances, festas, fol-
guedos, jogos, brincadeiras, danças etc. Por essa dupla via, operou-se como
que um mascaramento da cultura tradicional popular, ou melhor, da cultura
mágico/anímica primitiva, que, se por um lado permitiu sua sobrevivência, por
outro, comprometeu muito da sua complexidade e riqueza, principalmente
nas regiões onde as elites procuraram imprimir, à cultura, uma feição moderna
e racional/positivista no seu todo.
134
BARROSO, O.

No Nordeste brasileiro e no Ceará, particularmente, esse processo, lon-


ge de se completar, encontrou forte resistência em tradições populares pro-
fundamente arraigadas em uma população praticamente abandonada pelas
elites: daí as nítidas marcas pré-cristãs em seu catolicismo, notadamente nos
seus rituais de peregrinação, e, consequentemente, a recorrência constan-
te ao riso e à comédia de modo geral em suas festas e folguedos, mesmo
quando de motivação religiosa como os Reisados, as Quadrilhas Juninas, os
Pastoris e as Malhações de Judas.
Na passagem do rito à festa, quase sempre vem junto outro movimento
igualmente importante, ou seja, a passagem do aterrorizante ao grotesco, do
medo ao riso. Digo melhor, exemplificando. Os espíritos sombrios da floresta,
que na Europa Medieval eram representados, entre outras figuras, pelo Ho-
mem Selvagem, entidade aterrorizante mascarada de corpo inteiro com folhas
e outros tecidos vegetais, já aparecem, nas tradições populares brasileiras,
como o ‘Camarada Folharal’, figura alegre e brincalhona, assídua frequenta-
dora dos Sábados de Aleluia da Festa dos Caretas de Jardim (cidade do Cariri
cearense) e dos Reisados de Caretas nordestinos. Os mascarados com voz
mudada e máscara neutra, que nos ritos, como vimos nos capítulos anteriores
desse livro, tinham a função de apagar seus portadores, transformam-se, nos
carnavais populares, em duplos cômicos das entidades anímicas com o nome
de papangus. Testam seu anonimato indagando: - Você sabe quem sou eu?
Os crânios nus e as carcaças de animais são enfeitados e coloridos festiva-
mente: o terror sagrado e a solenidade fúnebre ganham paródias grotescas
nas festas e nos folguedos populares.
Exemplo particularmente interessante é o do Jaraguá, figura dos Bois
e Reisados nordestinos. Ele tem, por base inicial, uma longa vara de madei-
ra tendo numa das extremidades, atada, uma caveira de cavalo ou jumento
que, acionada por um cabo, bate incessantemente estalando a queixada. É
conduzido, em seu interior, por um brincante que vem coberto por um tecido.
Sua canção de chamada diz: Estava debaixo de um arvoredo/ ao meio-dia es-
tava descansando./ Ouvi um canto tão saudoso,/ só me parece um passarim
cantando.// Ó que bicho feio, Virgem Mãe de Deus, é o Jaraguá, ó maninha,/
vem pegar Mateus. / Vem com a boca aberta, ó maninha,/ pra pegar Mateus.//
Chegou, chegou,/ lá chegou meu Jaraguá./ O bichinho é bonitinho,/ ele sabe
vadiar./ Brinca bem, meu Jaraguá/ brinca bem, meu Jaraguá./ O bichinho é
bonitinho,/ ele sabe vadiar.
O Jaraguá, como acontece também com o Babau, por ser represen-
tado por um crânio nu (no caso de jumento, burro ou cavalo), está ligado ini-
cialmente à morte. Sua aparição ritual é acompanhada pelo apito do mestre,
assemelhando-se a um grito agudo, e pelo soar seco da batida dos seus den-
135
Antropologia da Arte

tes. Não se sabe exatamente o que ele é. Sua ação, além de rodopiar, é agar-
rar alguém pelo braço, fazendo medo principalmente às mulheres e crianças.
Para soltar sua presa, é preciso que receba uma prenda em troca, seja em
forma de dinheiro ou de alimento.
Em muitos Reisados, porém, como denota sua própria peça de cha-
mada, o Jaraguá toma a forma de sua paródia alegre e transforma-se num
pássaro ou até numa girafa (talvez por causa de seu pescoço comprido). Sua
queixada ganha cobertura colorida e seu corpo, tecido estampado com flores.
Outras vezes, sua cabeça, confeccionada em madeira, tem crina e bico de
pássaro. Traz na boca um lenço ou uma espada para trocar por uma prenda
com a assistência. Já não é o bicho feio de que fala a segunda estrofe da
peça de entrada, mas o ‘passarim’ a que se refere a primeira.
A lista de elementos oriundos dos ritos mágicos nos folguedos popula-
res é praticamente inesgotável. Para ficar somente nos reisados cearenses,
poderia citar, ainda, o Urubu, que aparece nos Bois e Reisados de Careta
por ocasião da morte do Boi. Ele desempenha papel importante no episódio
da morte e ressurreição do Boi, assim como o abutre, ao lado da hiena, nos
ritos que explicam a origem do universo entre os povos Bambara e Malinké da
África Ocidental (Ver DIETERLEN, 1988, p. 27). De certo modo, a frequência
como as figuras de animais aparecem nos folguedos populares, fazendo so-
los ou formando dupla com personagens humanos, também tem relação di-
reta com a crença antiga das metamorfoses homem/animal e animal/homem.
Essa transformação fica mais evidente no último dia do ciclo de apresenta-
ções dos Bois do litoral cearense, que coincide com o dia 20 de janeiro, dia de
São Sebastião. Nessa data, se faz a Matança dos Bichos e o Boi é sacrifica-
do. No momento da sua morte, o detalhe mais significativo é que sua imagem
se funde à de São Sebastião, também amarrado e morto junto a um mourão.
Exemplos de outras figuras de animais ou entidades mágicas oriundas
de ritos populares carnavalizados que migraram para os Reisados e/ou ou-
tros folguedos populares são o Bode (e outros animais de chifre), oriundo das
mascaradas de Ano Novo medievais da Europa (PATUREAU, 1988, p. 62), o
casal de Velhos Caretas, os Cazumbas dos Bois maranhenses, os Mateus e
Catirinas dos Cavalos Marinhos e Reisados de Congos, os Palhaços das Fo-
lias de Reis, os Demônios das Quilombadas etc. Muitas dessas figuras eram,
originalmente, espíritos obscuros das florestas e de outros ermos desconhe-
cidos; alguns eram incorporados por meio de máscaras aterrorizantes que,
por muito tempo, encheram de medo a noite dos homens e, particularmente,
das mulheres e crianças. Pelo brinquedo e pelo riso, a festa popular, através
dos séculos, teve o trabalho de exorcizar esses fantasmas. Fez deles figuras
risíveis e simpáticas, babaus que já não privam as criancinhas do sono. Mas
se neles desaparece a função ritual, especialmente para as figuras cômicas,
136
BARROSO, O.

Velhos e Velhas, Palhaços, Cazumbas, Mateus e Catirinas, Diabos e Demô-


nios, cabe agora, a eles, a tarefa da sátira social.
Mirella Patureau, em artigo sob o título ‘Jogos Mascarados e Teatro
Camponês na Romênia’, analisa o processo de transformação dos ritos pri-
mitivos em manifestações cênicas. Mostra como entidades anímicas indefini-
das, criadas pelo inconsciente humano e incorporadas através de máscaras,
ganharam, no teatro camponês da Romênia, a partir do riso e da festa, rosto e
procedimentos humanos. Vale a citação mais longa:

Porém esse teatro que reabilita uma ordem e consagra uma moral é
levado a delimitar seu espaço. Agora, depois de muito tempo, os anjos,
os diabos, os animais demoníacos ou somente bizarros são apagados
para dar lugar aos humanos, à afirmação do meio social e cultural. Os
fantasmas são civilizados em proveito de formas mais restauradoras
da ordem. Porém as máscaras, signos do além, imagens turvas do in-
consciente primitivo, estão prontas a surgir cada vez que o equilíbrio e
o sentido da vida moderna são postas em questão. As máscaras dos
cortejos comunitários continuam a delimitar um espaço de liberdade, de
anarquia, de extracotidiano. Elas funcionam nesse sentido como uma
válvula de escape social da violência e do descontentamento e parecem
então inofensivas e convenientes. Mas as máscaras oferecem também a
chance de outro discurso. Elas abrem fendas – sem perigo permanente,
sem consciência aplicada – na fortaleza de um discurso oficial afirmado
como única religião possível e tolerável (PATUREAU, 1988, p. 68).

A propósito, cabe referência a fato ocorrido ultimamente com os Reisa-


dos de Congo no Juazeiro do Norte. Costumeiramente, a figura do Demônio
aparece apenas em um dos entremeios do Reisado, naquele em que o Anjo
Maldito disputa a Alma com São Miguel, cena inclusive toda cantada e oriunda,
talvez, da catequese jesuítica. Também, de costume, durante as Quilombadas,
encontro e batalha entre dois Reisados precedido por cortejo pelas ruas da ci-
dade, o dito Demônio, com seu chicote e tridente quando era o caso, vinha na
frente do cortejo como uma espécie de baliza. Até aqui, tudo está normal.
De cerca de cinco a sete anos para cá, porém, à frente desses cortejos,
houve um aumento não apenas no número desses Demônios, como também
no de Ursos, que, nos Reisados de Congos, fazem um entremeio com o Italia-
no. Munidos de longos chicotes e tridentes, esses Demônios e Ursos, ocultos
sob máscaras de corpo inteiro, escuras e assustadoras, saem em grande nú-
mero pelas ruas, fazendo piruetas e dando carreiras, não apenas amedron-
tando as pessoas, como até praticando arruaças e pequenos furtos. Tal fato
levou as autoridades policiais a proibir, por tempo indeterminado, a prática das
Quilombadas com a presença dos Demônios e dos mascarados em geral.
137
Antropologia da Arte

Urso Juazeiro do Norte

Nas sociedades tradicionais, a arte faz parte do cotidiano, estando a


estética intrinsecamente ligada à ética e a beleza, à utilidade dos objetos. Nes-
sas sociedades, os objetos artísticos desempenham, entre outras, funções
mágico-religiosas, terapêuticas, pedagógicas, sociais e políticas. Constituem-
-se enquanto bens coletivos de clãs e familiares. Embora sejam produzidos
com grande preocupação estética, nunca o são para a pura contemplação.
A divisão estabelecida pelo capitalismo, a partir da Europa Ocidental, entre
arte (para a pura contemplação) e artesanato (com fins utilitários) se mostrou
equivocada, pois tudo o que é produzido pelo ser humano não pode deixar de
refletir interesses sociais.
Ainda nas comunidades tradicionais, o talento individual não de dissolve
na coletividade. O mestre faz escola, mas cada discípulo encontra a marca
diferencial de seu talento. Muitas padronizações aparecem, não em decor-
rência de uma possível tendência imitativa do aprendiz, mas de distorções
provocadas pelo mercado capitalista de arte que valoriza a assinatura em de-
trimento da qualidade da obra.
Nas comunidades tradicionais, se a forma estética do objeto é dada
pelo artista, seu valor simbólico é dado pela coletividade. É a coletividade que
significa e ressignifica o objeto a partir de seu contexto de uso. É ela, inclusive,
que decide se determinado objeto ou determinada manifestação cultural tem
valor estético ou não.
Na África, assim como na Europa, as artes apareceram inicialmente
como ofícios. Os artistas formavam uma casta intermediária entre os nobres
e os escravos. Encabeçavam esses ofícios os ferreiros; logo após vinham os
tecelões e os artífices de outras artes práticas. Só por último, vinham os griots,
mestres do canto e da palavra. Esses ofícios eram exercidos, no caso da África,
não apenas como uma profissão, mas como uma missão de vida. É importante
anotar que concepção semelhante foi adotada no Juazeiro do Norte ao tempo
do Padre Cícero, sob o lema: “em cada casa um oratório e uma oficina”.
138
BARROSO, O.

Os índios Maxakali, do nordeste de Minas Gerais, acreditam que, após


a morte, a alma dos homens e dos animais, especialmente dos pássaros, se
transforma em yãmiy, um espírito cantor que volta ao mundo para cantar e
dançar com os mortais. Por isso, é preciso que se esteja pronto para recebê-
-lo. Através dos yãmiy, se tem acesso aos conhecimentos sobre as duas di-
mensões da vida: o aqui e o além.
Na África Ocidental, os mestres da fala e do canto são os griots. Eles
podem ser divididos em três tipos: os músicos, os embaixadores e os historia-
dores, genealogistas e poetas. Eles são os encarregados de acumular, guar-
dar e fazer circular a memória de seus povos. Por isso, estão sempre viajando,
aprendendo e ensinando. O bom griot é aquele que domina a arte de ouvir e
contar histórias. Para tal, deve fazer da palavra o centro de sua atuação. Ele
deve se ocultar perante a plateia para que o conto apareça.
Na África, os contos funcionam como ricas fontes de ensinamentos:
através deles é repassada a sabedoria e o legado ético de gerações.
Como bom narrador de histórias, o griot está sempre atento ao público: não
conta para ele; conta com ele. Sua fala é simples, direta, viva, sem afetação. Deixa
livre a imaginação do ouvinte. Conhece cada nuança do enredo e tira partido disso,
explorando uma nova possibilidade a cada narração que faz do mesmo conto.
No Nordeste brasileiro, onde a tradição oral também é muito viva, como
na África, há uma grande quantidade de bons narradores. São nossos conta-
dores de história, que como os griots, o fazem com a máxima discrição. Quase
sempre, simplesmente sentam-se numa cadeira e debulham a sequência de
fatos. Outras vezes o fazem numa roda de feira. Há também os cegos que can-
tam romances acompanhados por violas ou rabecas. Todos são herdeiros de
tradições muito antigas que remontam à Grécia clássica ou à África medieval.
Toda essa cultura popular alicerçada numa cosmovisão ao mesmo tem-
po mágica, mítica e anímica perdurou inclusive na Europa em toda a sua
pujança, pelo menos até o Renascimento. Sua força aparecia especialmente
nos carnavais populares, através do riso grotesco, na sátira dos jograis e sal-
timbancos, bem como, em certa medida, no teatro mascarado da Commedia
dell’Arte. Antigos ritos e entidades aterrorizantes passaram por um processo
de carnavalização, que resultou na transformação de entidades míticas em
figuras de folguedos e brincadeiras populares.
Com o advento da Reforma protestante, assim como da Contra-reforma ca-
tólica, essa cultura passou a ser combatida como pagã e licenciosa, quando não
diretamente demoníaca. Processou-se, a partir daí, um movimento de mascara-
mento ou de cristianização dessa cultura ou, ainda, de sincretização dessa cultura
com o catolicismo, como alguns preferem considerar. Por outro lado, muitos deu-
ses e entidades outras da cultura mágica popular e mesmo das religiões mítico/
populares sobreviveram, com seus ritos e procedimentos, sob rótulos diversos.
139
Antropologia da Arte

Atividades de avaliação
1. Que diferença se estabelece entre o estilo narrativo dos griots e da Com-
media dell’Arte?
2. Marque a diferença entre a arte dos jograis e saltimbancos e a da Comme-
dia dell’Arte.
3. Como se deu o processo de “cristianização” da cultura popular na Europa
a partir do Renascimento?
4. Cite algumas estratégias de sobrevivência das culturas populares no Ocidente.

Texto complementar
Vitalino Pereira dos Santos
Mestre Vitalino, nasceu no Sítio dos Pintos, Caruaru, no dia 10 de Julho de 1909, filho de
Marcelino Pereira dos Santos e Josefa da Conceição. A cerâmica figurativa sempre o fasci-
nou. Tanto que Vitalino, aos 6 anos, fez seu primeiro trabalho. Dedicou-se também à arte
musical e aprendeu a tocar pífano. Foi músico e brincante de bandas de pífanos ou zabum-
bas, como eram chamadas. Mas a confecção de bonecos de barro, que vendia na feira,
era seu trabalho permanente. A fama chegou em 1945, depois do encontro com Augusto
Rodrigues, desenhista famoso e colecionador. Jornais e revistas de todo o país passaram
a dar atenção à arte da cerâmica popular. Em 1947, seus trabalhos foram expostos no Rio
e, em 1955, integraram a exposição “Artes Primitivas e Modernas do Brasil”, que fez gran-
de sucesso na Suíça. Revistas internacionais, então, se ocuparam do Mestre Vitalino. Sua
maior exposição, “A Noite de Caruaru”, ocorreu no Rio em 1960, promovida pelo Jornal de
Letras. Famoso e reconhecido como um dos maiores artistas populares do Brasil, Mestre
Vitalino faleceu no Alto do Moura, Caruaru, no dia 20 de Janeiro de 1963.
Francisco Domingos da Silva
Nasceu na localidade de Alto Tejo, estado do Acre, em 1910. Foi pintor, desenhista, sapa-
teiro e ajudante de marinheiro. Mudou-se para Fortaleza, indo morar no bairro de Piram-
bu aos 10 anos. Perdeu o pai alguns anos depois e começou a fazer todo tipo de serviço
(consertava sapatos e guarda-chuvas, fazia fogareiros de lata para vender, entre outras
coisas) para ajudar no seu sustento e de sua família.
Nos intervalos de suas caminhadas a procura de trabalho, parava em frente aos muros
e paredes das casas dos pescadores e fazia desenhos com carvão, giz e lascas de tijolos,
colorindo-os com folhas.
Semi-analfabeto e autodidata, ele pintava sem regras, mas com incrível habilidade.
Foram esses painéis que chamaram a atenção do artista e crítico suíço Jean-Pierre Cha-
bloz, que passou a procurá-lo pela cidade. Pelos moradores da Praia Formosa, Chico era
chamado de “indiozinho débil mental”. Chabloz perguntou para alguns habitantes quem
era o autor daqueles desenhos, mas a constante resposta que ouvia era: - “É um cara
meio louco. Um caboclo que veio não se sabe de onde; se diverte rabiscando os muros e
desaparece, sem deixar endereço”.
Chabloz não encontrou Chico facilmente, pois este, ao saber que um estrangeiro alto
e forte estava a sua procura, fugiu, achando que o suíço fosse um dos donos das casas de
140
BARROSO, O.

muros recém ornados por ele. Após o encontro, Chabloz ficou admirado com a simplicida-
de do artista e passou a incentivá-lo na pintura à guache; além de fornecer todos os mate-
riais para a produção dos trabalhos, Chabloz comprou mais de 40 obras prontas levando-
-as a diversas exposições (como o Salão Cearense de Pintura e o Salão de Abril de 1943).
Chico da Silva foi estimulado por Chabloz a desenhar e pintar cada vez mais. Essa ami-
zade e confiança mútua foi o suficiente para tornar as obras de da Silva, peças de qualida-
de para o mundo das artes.
Por ter sido criado, desde menino, frente às exuberantes paisagens da amazônia, com
cores e formas exóticas, a genialidade de Francisco da Silva floresceu, resultando em pin-
turas primitivistas (pinturas Naifs) e sedutoras para os olhos dos artistas, críticos e pesqui-
sadores do Brasil e da Europa.
Pintor de lendas, folclore nacional, cotidiano e seres fantásticos, Chico seduz o obser-
vador por sua originalidade, pela diversidade de cores e formas e pela genialidade nas pin-
turas primitivistas. Com seu talento e a influência de Chabloz, Francisco da Silva conseguiu
reconhecimento no cenário artístico mundial.
Nos últimos anos, a Secretaria de Cultura do Estado do Ceará conseguiu reunir vários
trabalhos do artista que pertenciam a Chabloz. Um deles tem exposição permanente no
Museu de Arte da UFC e outros fazem parte de acervos de museus e pinacotecas do mundo.
Em 1945, na companhia de Chabloz, Antônio Bandeira, Inimá de Paula e outros artis-
tas, expôs na Galeria Askanasy (Rio de Janeiro).
Chico da Silva não foi influenciado por nenhuma escola ou grupo específico. Na ver-
dade, ele criou um estilo novo. Fundou uma escola no bairro de Pirambu (onde cresceu)
formada por seguidores de suas obras.
Pela supervalorização de seus trabalhos, quis produzir cada vez mais obras recorrendo a
ajudantes para desenhar, deixando, para ele, somente a assinatura. Uma pesquisa estimou
que 90% dos quadros posteriores a 1972 eram falsos. Tal acontecimento cercou o artista de
aproveitadores que vendiam essas falsificações em qualquer lugar por pequenos preços.
Mesmo havendo questionamento de suas obras no mercado de arte, foi convidado a
participar da Bienal de Veneza em 1966, onde recebeu Menção Honrosa). Três anos de-
pois, Chabloz cortou relação com Chico, afirmando mais tarde, em uma entrevista para um
jornal, que estava insatisfeito com a qualidade do artista. Na década de 70, além de lutar
contra a falta de crédito de suas obras, enfrentou a perda da esposa e seus próprios pro-
blemas de saúde. Se recuperou fisicamente, mas não conseguiu sua recuperação artística.
Faleceu em Fortaleza no dia 6 de dezembro de 1985.

Inocêncio Medeiros da Costa


Conhecido como Mestre Noza, Inocêncio Medeiros da Costa ou Inocêncio da Costa Nick,
nasceu em Taquaritinga do Norte, Pernambuco, em setembro de 1897.
Mudou-se para Juazeiro do Norte, no Ceará, em 1912, aonde chegou como romeiro,
após caminhar cerca de 600km desde o município de Quipapá, PE, local onde foi criado.
Exerceu diversas atividades, entre as quais a de soldado de polícia, funcionário da Rede
Viação Cearense e funileiro.
A partir de 1930, tornou-se conhecido como imaginário (escultor de imagens) e xiló-
grafo. Sua primeira escultura foi um São Sebastião e sua primeira xilogravura, uma capa de
cordel encomendada por José Bernardo da Silva para ilustrar o folheto, de José Pacheco,
A propaganda de um matuto com um balaio de maxixe.
Entre as décadas de 1960 e 1970, trabalhou para o Juizado de Menores no Cine Eldo-
rado, em Juazeiro do Norte, função que lhe possibilitou conseguir uma aposentadoria.
Recebia também gratificações da Prefeitura de Juazeiro e do Governo do Estado do Ceará.
No seu ateliê, localizado em um pequeno sobrado na Rua Santo Antonio, 265, em
Juazeiro do Norte, Mestre Noza trabalhava com duas moças chamadas Zefa (Josefa Fran-
cisca da Silva) e Loura (Íris Dália Medeiros), que o auxiliavam na confecção das imagens e
também no artesanato de cabos de revólver em madeira.
Aproveitando a ideia de um amigo, resolveu esculpir uma imagem do Padre Cícero. Se-
gundo ele, levou a peça para apreciação do próprio Padre, que achou graça e perguntou:
141
Antropologia da Arte

“Eu sou assim?”. A partir daí, fez milhares de imagens do Padim Cícero por encomenda. Só
para um comerciante do mercado de Juazeiro, disse ter feito mais de duas mil imagens.
Usava, preferencialmente, a madeira da imburana (árvore comum na caatinga) e seus
instrumentos de trabalho resumiam-se em canivetes, serras, machadinhas, formões, li-
mas e furadeiras.
Contava muitas histórias e uma delas é que por pouco não havia entrado para o bando de
Lampião, numa de suas passagens pela cidade. Não o fez por medo do que pudesse acontecer
no futuro, mas chegou a tomar uma cervejinha junto com os cabras do famoso cangaceiro.
Em 1963, Sérvulo Esmeraldo, um artista do Crato, de projeção internacional, lhe deu
uma série de gravuras da Via Sacra e lhe encomendou as matrizes em madeira. Ficou mui-
to satisfeito com o resultado do trabalho de Mestre Noza e resolveu levá-las para a França,
numa viagem que fez em 1965. Conseguiu produzir uma edição especial da Via Sacra de
Noza com apenas 22 exemplares impressos à mão e lançá-la em Paris; onde todas as peças
foram vendidas. O sucesso foi tanto que produziu uma nova edição de mil exemplares,
que também se esgotaran rapidamente.
A partir daí, as encomendas para o Mestre Noza aumentaram muito e o artista passou a
ser objeto de estudo em várias universidades, inclusive europeias. Participou de diversas expo-
sições com obras de escultura e xilogravura no Crato, no Recife, no Rio de Janeiro e em Paris.
É autor também de alguns rótulos de cachaça e foi sempre considerado o grande ar-
tista popular do Cariri.
Suas obras mais conhecidas são: a Via Sacra, uma coleção de 15 gravuras, cuja primei-
ra edição foi publicada em Paris (1965) pelo editor Robert Morel, com apresentação de
Sérvulo Esmeraldo; Os doze apóstolos (13 pranchas); e A vida de Lampião (22 pranchas).
É autor de inúmeras xilogravuras para ilustrar capas de folhetos de cordel, além de
milhares de estatuetas do Padre Cícero e de diversos santos, espalhadas pelo Brasil e pelo
mundo. Segundo ele, em matéria de imagens, além do Padre Cícero, gostava muito de
fazer as de São Francisco e Santo Antônio.
Doente, Mestre Noza foi morar em São Paulo, onde faleceu no dia 21 de dezembro de
1983, vítima de uma parada cárdio-respiratória.
Fonte: GASPAR, Lúcia. Mestre Noza. Pesquisa Escolar On-Line, Fundação Joaquim Nabuco, Recife.
Disponível em: <http://www.fundaj.gov.br>. Acesso em:26 set. 2009.

Nordeste brasileiro
Região de forte tradição oral, o Nordeste brasileiro é berço de grandes mestres da fala e con-
tadores de história, que pouco ficam a dever na arte de narrar aos griots africanos. Para citar
aqui apenas alguns exemplos fico com os de: Joaquim Fernandes de Souza, conhecido como
Seu Quinca, um senhor de 85 anos de idade, que mora em Cachoeira do Fogo, povoado locali-
zado no Município de Independência, Estado do Ceará; e o de Luiza Tereza dos Santos, falecida
aos 74 anos de idade em Natal, cuja memória guardava mais de 300 contos, e mereceu livro
organizado pelo folclorista Altimar Pimentel e publicado pela editora Thesaurus. (Ver reco-
mendações bibliográficas)

Aderaldo Ferreira de Araújo


O Cego Aderaldo, nasceu no dia 24 de junho de 1878 na cidade do Crato — CE. Logo após seu
nascimento, mudou-se para Quixadá, no mesmo estado. Aos cinco anos, começou a trabalhar,
pois seu pai adoeceu e não conseguia sustentar a família. Tomou conta dos pais sozinho. Quin-
ze dias depois que seu pai morreu (25 de março de 1896), quando tinha 18 anos e trabalhava
como maquinista na Estrada de Ferro de Baturité, sua visão se foi depois de uma forte dor nos
olhos. Pobre, cego e com poucos a quem recorrer, teve um sonho em verso certa vez, ocasião
em que descobriu seu dom para cantar e improvisar. Ganhou uma viola, a qual aprendeu a
tocar. Mais tarde, começou a tocar rabeca. Algum tempo depois, quando tudo parecia estar
voltando à estabilidade, sua mãe morre. Sozinho, começou a andar pelo sertão cantando e
recebendo por isso. Percorreu todo o Ceará, partes do Piauí e Pernambuco. Com o tempo, sua
fama foi aumentando. Em 1914, deu-se a famosa peleja com Zé Pretinho (maior cantador do
Piauí). Depois disso, voltou para Quixadá, mas, com a seca de 1915, resolveu tentar a vida no
142
BARROSO, O.

Pará. Voltou para Quixadá por volta de 1920 e só saiu dali em 1923, quando resolveu conhecer
o Padre Cícero. Rumou para Juazeiro, onde o próprio Padre Cícero veio receber o trovador que
já tinha fama. Algum tempo depois, foi a vez de cantar para Lampião, que satisfez seu pedido
— feito em versos — de ter um revólver do cangaceiro.
Tentando mudar o estilo de vida de cantador, em 1931, comprou um gramofone e
alguns discos que usava para divertir o povo do sertão, apresentando aquilo que ainda era
novidade mesmo na capital. Conseguiu o que queria, mas o povo ainda o queria escutar.
Logo depois, em 1933, teve a ideia de apresentar vídeos, que também deu certo, mas não
o realizava tanto. Resolveu se estabelecer em Fortaleza em 1942, onde veio a abrir uma
bodega na Rua da Bomba, No. 2. Infelizmente, o seu traquejo de trovador não servia para
o comércio e, depois de algum tempo, fechou a bodega com um prejuízo considerável.
Em 1945, então com 67 anos, Cego Aderaldo parou de aceitar desafios. Mas também,
já tinha rodado o sertão inúmeras vezes e conseguira ser reconhecido em todo lugar, can-
tara para muitas pessoas, inclusive muitas importantes, tivera pelejas com os maiores
cantadores. E, na medida em que a serenidade, que só o tempo trás ao homem, começou
a dificultar as disputas de peleja, ele resolveu passar a cantar apenas para entreter a alma.
Cego Aderaldo nunca se casou e diz nunca ter tido vontade, mas costumava ter uma vida
de chefe de família, pois criou 24 meninos.
(Texto extraído do livro “Eu sou o Cego Aderaldo”, prefácio de Rachel de Queiroz, Maltese Editora —
São Paulo, 1994)

Síntese do Capítulo
Filmes
VALDEMAR DOS PASSARINHOS – Documentário. Direção Rosemberg Ca-
riry, Cariri Filmes
O CEGO QUE VIU O MAR – Documentário sobre Pedro Oliveira, Direção
Rosemberg Cariry, Cariry Filmes.

Referências
ÁLVARES, Myriam Martins; Yãmîy – o canto e pessoa maxakali – in Músicas
africanas e indígenas no Brasil / Rosângela Pereira de Tugny, Ruben Caixeira
de Queiroz (Organizadores). – Belo Horizonte : Editora UFMG, 2006.
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O
Contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi, 2ª edição, São
Paulo: Hucitec/Edunb, 1993.
BARROSO, Oswald e CARIRY, Rosemberg: Cultura Insubmissa, Fortaleza,
Nação Cariri Editora, 1982.
BERNAT, Isaac Garson. O Olhar do Griot Sobre o Ofício do Ator: Reflexões a
Partir dos Encontros com Sotigui Kouyaté. Tese submetida ao Programa de
Pós-Graduação em Teatro do Centro de Letras e Artes da UNIRIO – Universi-
143
Antropologia da Arte

dade Federal do Estado do Rio de Janeiro, para obtenção do grau de Doutor,


Abril de 2008.
BURKE, Peter - Cultura Popular na Idade Moderna; tradução de Denise Bott-
mann, São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
CÂMARA CASCUDO, Luis da. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10ª edição.
Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1998.
FO, Dario. Manual Mínimo do Ator / Dario Fo; Franca Rame (organização);
Lucas Baldovino, Carlos David Szak (tradução), - São Paulo: Editora SENAC
São Paulo, 1998.
HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. Vie et enseignement de Tierno Bokar. Paris: Editions
du Seul, 1980 b.
LINHARES, Francisco e BATISTA, Otacílio: Antologia Ilustrada dos Cantado-
res. Fortaleza, Edições UFC, 1982.
MONTEIRO, Ausonia Bernardes, Tese submetida ao Programa de Pós-Gra-
duação em Teatro do Centro de Letras e Artes da UNIRIO, como requisito
parcial para obtenção do grau de Doutor, sob a orientação do Professor Dr.
José Luiz Ligiéro Coelho. RIO DE JANEIRO, 2004.
ROCHA, Maria Corina. Imagens e Palavras: Suas Correspondências na Arte
Africana. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ar-
queologia, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Pau-
lo, para obtenção do Título de Mestre em Arqueologia. São Paulo, USP, 2007.
Orientador: Profa. Dra. Marte Heloísa Leuba Salum.
SACHS, Curt. História Universal de la Danza. Buenos Aires: Centurion, 1944.
SYLLA, Abdou. Création et Imitation Dans l’Árt Africain Traditionnel: eléments d’es-
thétique – Dakar: Université Cheikh Anta Kiop de Dakar, IFAN-Ch, A. Diop, 1988.
ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz – A Literatura Medieval. Tradução: Amalio
Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
ZUMTHOR, Paul – Introdução à Poesia Oral, trad. Jerusa Pires Ferreira. São
Paulo, Hucitec, 1997.
144
BARROSO, O.

Sobre o autor
Oswald Barroso: Possui graduação em Bacharel em Comunicação Social
pela Universidade Federal do Ceará (1986), especialização em Form. Nac. de
Resp. por Estrut. e Proj. Art. e Cul pela Association Nat. Pour La Form. Et In-
formation Artistique Et Culturelle (1990), mestrado em Sociologia pela Univer-
sidade Federal do Ceará (1997) e doutorado em Sociologia pela Universidade
Federal do Ceará (2007). Atualmente é Professor da Universidade Estadual
do Ceará e Redator do Fundação de Teleducação do Ceará. Tem experiência
na área de Antropologia. Atuando principalmente nos seguintes temas: Reisa-
do, Teatro Popular Tradicional.
A não ser que indicado ao contrário a obra Antropologia da Arte, disponível em: http://educapes.capes.gov.br,
está licenciada com uma licença Creative Commons Atribuição-Compartilha Igual 4.0 Internacional (CC BY-SA
4.0). Mais informações em: <http://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/deed.pt_BR. Qualquer parte ou a
totalidade do conteúdo desta publicação pode ser reproduzida ou compartilhada. Obra sem fins lucrativos e com
distribuição gratuita. O conteúdo do livro publicado é de inteira responsabilidade de seus autores, não representan-
do a posição oficial da EdUECE.
Artes Plás�cas

F
iel a sua missão de interiorizar o ensino superior no estado Ceará, a UECE,
como uma ins�tuição que par�cipa do Sistema Universidade Aberta do
Brasil, vem ampliando a oferta de cursos de graduação e pós-graduação
Artes Plás�cas

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na modalidade de educação a distância, e gerando experiências e possibili-
dades inovadoras com uso das novas plataformas tecnológicas decorren-
tes da popularização da internet, funcionamento do cinturão digital e
massificação dos computadores pessoais.
Comprome�da com a formação de professores em todos os níveis e
a qualificação dos servidores públicos para bem servir ao Estado, Antropologia da Arte
os cursos da UAB/UECE atendem aos padrões de qualidade
estabelecidos pelos norma�vos legais do Governo Fede-
ral e se ar�culam com as demandas de desenvolvi-
mento das regiões do Ceará.

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Oswald Barroso

Geografia

12

História

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Química Biológicas Plás�cas Computação Física Matemá�ca Pedagogia

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