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História da Arte I - Da arte rupestre ao neclassicismo

Artes Plás�cas

F
iel a sua missão de interiorizar o ensino superior no estado Ceará, a UECE,
como uma ins�tuição que par�cipa do Sistema Universidade Aberta do
Brasil, vem ampliando a oferta de cursos de graduação e pós-graduação
na modalidade de educação a distância, e gerando experiências e possibili-
dades inovadoras com uso das novas plataformas tecnológicas decorren-
Artes Plás�cas
tes da popularização da internet, funcionamento do cinturão digital e
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a qualificação dos servidores públicos para bem servir ao Estado, História da Arte I
os cursos da UAB/UECE atendem aos padrões de qualidade
estabelecidos pelos norma�vos legais do Governo Fede-
ral e se ar�culam com as demandas de desenvolvi-
Da arte rupestre ao neoclassicismo
mento das regiões do Ceará.

Dilmar Santos de Miranda

Universidade Estadual do Ceará - Universidade Aberta do Brasil


Geografia

12

História

Educação
Física

Ciências Artes
Química Biológicas Plás�cas Computação Física Matemá�ca Pedagogia
Artes Plásticas

História da Arte I
Da arte rupestre ao neoclassicismo

Dilmar Santos de Miranda

Geografia
2ª edição
Fortaleza - Ceará 9
12

História
2019

Educação
Física

Ciências Artes
Química Biológicas Visuais Computação Física Matemática Pedagogia
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Sumário

Apresentação......................................................................................................5
Capítulo 1 – Arte e sociabilidade....................................................................07
Introdução..............................................................................................................09
1. Pressupostos para uma história das artes......................................................12
1.1. A evolução das artes:................................................................................13
1.2. A história da arte ocidental tomada como a história da arte universal:..15
2. Hipóteses sobre as origens das artes.............................................................16
2.1. A pintura mágica paleolítica......................................................................17
2.2. Arte neolítica..............................................................................................18
2.3. Os objetos sagrados.................................................................................20
2.4. A voz encantatória.....................................................................................21
2.5. A narrativa mítica.......................................................................................22
2.6. O trabalho..................................................................................................23
Capítulo 2 – A Arte na antiguidade................................................................29
1. A arte no antigo Oriente Médio e Próximo.......................................................31
1.1. Mesopotâmia.............................................................................................32
1.2. Egito...........................................................................................................34
1.3. Creta...........................................................................................................40
2. Da narrativa mítica à arte do período arcaico.................................................42
2.1. Período homérico: o mito estrutura o sentido do mundo........................43
2.2. Período da Grécia arcaica: o mundo é dotado de racionalidade...........46
2.3. Características das artes gregas.............................................................55
3. O século de Péricles: apogeu das artes e doutrinas estéticas
da Grécia clássica............................................................................................58
3.1. A doutrina estética de Platão....................................................................60
3.2. A doutrina estética de Aristóteles..............................................................63
Capítulo 3 – Do Helenismo ao Medievo Cristão..........................................69
1. O surgimento do Helenismo.............................................................................71
2. O surgimento de Roma.....................................................................................78
3. O sistema das artes romanas...........................................................................81
3.1. Os templos.................................................................................................81
3.2. O teatro......................................................................................................81
3.3. A escultura.................................................................................................82
3.4. A pintura.....................................................................................................84
4. O fim do império................................................................................................85
4. As artes na alta Idade Média: o bizantino, o gregoriano
e os períodos merovíngio e carolíngio.............................................................86
4.1. A protoarte Cristã.........................................................................................86
4.2. A Arte Bizantina............................................................................................87
4.3. O canto gregoriano e a música medieval..................................................91
4.4. A Arte da fase merovíngia e carolíngia............................................94
5. As artes na baixa Idade Média: o românico e o gótico.....................................98
5.1. O Estilo Românico......................................................................................98
5.2. O Estilo Gótico...........................................................................................102
Capítulo 4 – Do Humanismo Renascentista
ao Neoclassicismo Iluminista.......................................................................117
1. A Renascença e o maneirismo........................................................................ 119
1.1. Contexto sociohistórico da Renascença................................................. 119
2. O sistema das artes renascentistas................................................................123
2.1. A arquitetura...............................................................................................123
2.2. A pintura.....................................................................................................124
2.3. A escultura.................................................................................................128
3. A Renascença europeia...................................................................................130
4. O maneirismo...................................................................................................132
5. A música profana da modernidade renascentista..........................................133
6. O barroco e o rococó.......................................................................................135
6.1. O contexto sociohistórico do barroco......................................................135
6.2. O rococó....................................................................................................148
7. O neoclassicismo iluminista.............................................................................149
7.1. O contexto sociohistótico do neoclassicismo.........................................149
7.2. O sistema das artes neoclássicas...........................................................154
7.3. O classicismo musical: tonalismo, forma-sonata e a
historicidade da consciência burguesa...................................................157
Dados do autor................................................................................................166
Apresentação

Este livro percorre uma grande linha de tempo da história das artes ociden-
tais. Ele se inicia na chamada pré-história, quando as primeiras manifestações
dos povos caçadores nos legaram impressionantes figuras que adornavam as
paredes de suas cavernas, esculpiam objetos e dançavam para espantar os
espíritos que tanto temiam. Tais manifestações passaram a ser vistas como as
primeiras figurações e experiências estéticas de nossos ancestrais.
Desde então, a humanidade passou a contar com um espantoso, diversifi-
cado e belíssimo acervo de linguagens artísticas, que nos vem encantando, cuja
análise, para efeito deste livro, detém-se na outra ponta que conclui aquela grande
linha de tempo: o período neoclássico, quase às portas da nossa contemporanei-
dade. Preenchendo esse grande trajeto, sucederam-se outros períodos que mar-
caram a história das artes ocidentais como a antiguidade clássica, o helenismo, o
medievo cristão e seus diversos estilos como o bizantino, o românico e o gótico, a
modernidade renascentista, o maneirismo, o barroco e o rococó.
Para evitar armadilhas dissimuladas nesse grande percurso, como, por
exemplo, tomar a história das artes plásticas como a história da arte em geral,
procuramos articular a análise das obras perpetuadas na materialidade das
rochas, bronzes, cerâmicas e telas, com outras linguagens, como a música,
a jardinagem, eventualmente o teatro e a literatura, mediante a busca de suas
afinidades estéticas expressas no interior do contexto sociohistórico que ilumi-
na e entretece as vias do entendimento dessas linguagens.
Todos nós nascemos, biológica e espiritualmente, incompletos. A hu-
manidade de cada um de nós se constrói na história. E as artes, de forma
manifesta e clara ou latente e tortuosa, parecem nos conduzir a este grande
termo: superar as incompletudes e insuficiências de nossa humanidade, nos
tornando cada vez mais humanos. E essa História da Arte I procura narrar um
pouco dessa construção e desse desafio.

O autor
7
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Capítulo 1
Arte e sociabilidade
9
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Objetivos
• A amplitude das possibilidades para definir e configurar os limites do campo
artístico.
• A obra de arte como produto irrecusável de uma rede de sociabilidade.
• Os pressupostos críticos em relação a certas abordagens usualmente recor-
rentes em textos sobre a história das artes.
• A natureza hipotética das origens das artes.

Introdução
A sentença que dá título a esta unidade – Arte é o que eu e você chamamos
arte –, é tomada aqui de empréstimo do curioso e provocativo título do livro do
crítico de arte Frederico Morais, graças a seu caráter instigante, adensador de
um leque de sentidos relevantes para a nossa História da Arte.
Dentre as dimensões constitutivas da existência humana, ou seja, as
esferas do saber (a episteme)*, do agir (a ética) e do sentir (a estética), objetos
da reflexão de uma linhagem de pensadores ocidentais (v. adiante a seção
Saiba mais), a arte é certamente a que apresenta uma riqueza e amplitude
maior de entendimento e de conceitos.
O subtítulo do livro de Morais, 801 definições sobre arte e o sistema de
arte, é um flagrante testemunho dessa realidade. Na verdade, não se trata
de definições conforme o rigor teórico das chamadas “ciências duras”, como
as ciências naturais, a exemplo da lei da gravitação universal formulada por
Isaac Newton, passível de formulações matemáticas.
A palavra arte, correspondente ao termo grego techné, que, por sua
vez, dá origem ao termo técnica, deriva do latim ars, artis, termo que, no cor-
rer dos anos, passou a constituir um certo saber, fazer e sentir. Em Reflexões
sobre a Arte, Alfredo Bosi, procurando elucidar a etimologia da palavra arte,
afirma: “a palavra latina ars, matriz do português arte, está na raiz do verbo ar-
ticular, que denota a ação de fazer junturas entre as partes de um todo” (BOSI,
1991, p.13). Portanto, o artista seria um articulador de porções da realidade,
agenciando-as num todo de sentido estético. Mas o que seria mesmo a arte?
10
MIRANDA, D. S. de

Em cursos sobre Estética e Filosofia da Arte, antes dos alunos entrarem


1
A linhagem de pensadores em contato com o teor das disciplinas, costumo apresentar-lhes um pequeno
ocidentais aqui implicitamente questionário com duas perguntas básicas: 1) o que cada um entende por arte;
referidos são aqueles 2) o porquê da arte (seu sentido para a existência humana).
filósofos que, apesar de
terem vivido em épocas e Obtendo um resultado de extrema variedade de formulações, algumas
lugares bem distintos, se com afinidades conceituais, outras totalmente díspares e antagônicas, nunca
dedicaram ao estudo dos completas, parece que somos remetidos à mesma situação de Santo Agosti-
grandes temas constituintes
nho, ao refletir sobre o mistério do tempo. “O que é o tempo? Dele sei quando
da filosofia ocidental: o saber,
o agir e o sentir. São eles, nada me perguntam. Dele nada sei quando me indagam sobre sua natureza”
sobretudo, Platão, Tomás de (AGOSTINHO, 1984, p. 318). Assim também podemos nos colocar diante da
Aquino e Kant. natureza da arte. Dela só se sabe quando nada dela se pergunta.
Platão, na antiguidade
clássica grega, subordina Tal situação aparenta ter sido vivenciada por Frederico Morais ao con-
as esferas do agir (ética) fessar na orelha do seu referido livro (1998):
e do sentir (estética) ao
conhecimento do mundo “depois de exercer durante quarenta anos a crítica de arte, devo dizer que eu
suprassensível (a episteme). também não sei mais o que é arte”. O crítico traz à cena outros pensadores1 e
Tributária da tradição grega, artistas que vivenciaram a mesma situação. Mário de Andrade, por exemplo,
infletindo-a no entanto para surpreende os participantes de um curso de Filosofia e História da Arte, com a
o campo da filosofia cristã
seguinte afirmação: “Devo confessar preliminarmente, que eu não sei o que é
em fins do medievo, a
Suma Teológica de Tomás belo e nem sei o que é arte” (op. cit. p.9). Ou então o escritor mineiro Rosário
de Aquino busca cobrir o Fusco que sentencia ser “a beleza a finalidade da arte” e, contudo, indaga de
domínio da verdade, do bem imediato: “o que é arte, que é beleza, que é finalidade?” (p. 11).
e do belo.
Já Emanuel Kant, importante Na verdade, são exemplos de expressões portadoras de afinidades
pensador na elaboração com o sentido da maiêutica socrática*, que sempre partia de uma questão
da doutrina filosófica do
seminal subjacente (sei que nada sei) para, desse patamar, dar prossegui-
idealismo iluminista alemão,
na modernidade madura mento ao método reflexivo dialógico. Sabemos que nem Andrade nem Morais
europeia, constroi a famosa abdicam do pensamento que pensa a arte: o curso de Filosofia da Arte e o
tríplice crítica, no final do livro com suas 801 definições são empenhos flagrantes da possibilidade de
século XVIII: Crítica da razão
se pensar sobre sua natureza.
pura, onde busca estabelecer
os fundamentos das Por outro lado, considerando a irredutibilidade da arte a uma definição
condições de possibilidades concisa capaz de dar conta das suas múltiplas determinidades, tendo como
do saber, Critica da razão
parâmetro o rigor das “ciências duras”, seria mais prudente e apropriado
prática, onde busca
estabelecer os fundamentos construir conceituações mais abrangentes capazes de dar conta daquelas
racionais das condições de determinidades a partir de considerações configurativas das várias linguagens
possibilidades para o agir artísticas. E a primeira consideração a ser feita refere-se à questão de sua
moral livre, e Critica do juízo,
sociabilidade constitutiva.
onde busca as condições
de possibilidade para a O professor de História da Arte Jorge Coli, ao se referir a obras porta-
construção do juízo do gosto, doras de valores estéticos que transcendem tempo e espaço, desenvolve,
ou seja, a construção do
no capítulo intitulado Arte para nós, uma reflexão bastante próxima à que fa-
julgamento crítico-estético da
obra de arte. remos, ao mencionar um tipo de noção que, a priori, atribui a tais obras uma
“‘essência’ artística, um valor ‘em si’, intrínseco e imanente, que lhes garantiria
11
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

o ‘ser’ obra de arte, ser perene, uma das manifestações ‘superiores’ da nature-
za humana” (COLI, 1981, p. 21/22). Mas logo o professor nos alerta:
A noção de arte que hoje possuímos, [...] não teria sentido para o artesão ar-
tista que esculpia os portais românicos ou fabricava os vitrais góticos. Nem
para o escultor que realizava Apolo no mármore ou Poseidon no bronze.
Nem para o pintor que decorava as paredes da gruta de Altamira ou Las-
caux. Desse modo, o “em si” da obra de arte, ao qual nos referimos, nâo é
uma imanência, é uma projeção. Somos nós que enunciamos o “em si”da
arte, aquilo que nos objetos é, para nós, arte. (COLI, op. cit. p. 22)

Dessa forma, uma obra de arte não detém um valor estético “em si”.
Seu estatuto artístico lhe é conferido por uma rede de agentes portadores de
sentidos e valores estéticos construídos socialmente.
Uma obra de arte, criada por uma individualidade, se apresenta como
um objeto singular nas suas origens e, a um só tempo, postulante de uma
dimensão social no seu destino. Assim, uma obra de arte detém uma objeti-
vidade que se inscreve num artefato particular e sinaliza para uma potencial
universalidade. Dessa forma, a alteridade e a sociabilidade tornam-se traços
constitutivos daquilo que denominamos arte. Para que uma determinada cria-
ção, fruto da pulsão inventiva e tensamente livre da subjetividade humana,
mediante suas mais variadas formas de expressão estética, se transforme
numa obra de arte, é preciso que essa mesma criação se “aliene” do seu cria-
dor e ganhe autonomia pela fruição de um “outro”.
Em O carteiro e o poeta, filme de Michael Redford (1994) sobre o exílio
do poeta chileno Pablo Neruda, na Itália, existe uma passagem bastante inte-
ressante. O carteiro, ao ser recriminado por Neruda por ter se apropriado de
um de seus poemas para presentear à mulher pela qual se apaixonara, lhe diz
que “a poesia não é de quem escreve, mas de quem dela precisa”.
A nosso ver, toda obra de arte só se constitui como tal, ao se descolar
do mundo particular da subjetividade do artista e imergir na receptividade do
“outro”. Se um quadro, ao ser pintado, for ocultado, impedindo assim sua con-
templação, será apenas um quadro pintado oculto e não uma obra de arte.
São os “olhadores” que fazem dele uma pintura artística, afirmava o artista
francês Marcel Duchamp no início do século XX (cf. COLI, 1981).
Vejamos dois interessantes episódios ocorridos com o pintor Pablo Pi-
casso que ilustram de forma bem expressiva a nossa reflexão. O primeiro
episódio refere-se à reação do artista ao final de uma entrevista concedida
a um jornalista num bistrô parisiense. Durante toda a entrevista, o jornalista
seguia com olhos ávidos os esboços desenhados pelo pintor, sempre jogados
numa cesta de lixo, após cumprir a tarefa de ilustrar algum trecho da entre-
vista. Finalizada a entrevista, quando o jornalista buscou recuperar no lixo os
12
MIRANDA, D. S. de

esboços, Picasso teria fixado um valor pelos desenhos. No lixo, eram apenas
papéis rabiscados. Na parede, para a fruição de algum olhar contemplante,
transformavam-se em obras de arte.
O sentido do segundo episódio, similar ao primeiro encontra-se expres-
so no filme Modigliani – paixão pela vida (2004), do cineasta Mick Davis, quan-
do Picasso, ao ser solicitado pelo dono do restaurante, onde comera e bebera,
para assinar o desenho que o artista lhe presenteara para pagar as despesas,
diz: eu só estou pagando a conta e não comprando seu restaurante (no caso,
a assinatura do artista atribuiria maior valor estético à obra).
Esta mesma reflexão pode ser estendida ao campo da arte musical,
visto que a sociabilidade é igualmente uma condição de viabilidade para o
acontecer musical. A música tem uma origem particular na produção autoral
do compositor. Mantendo-se nesse estágio, como qualquer outra criação com
pretensões de ser obra de arte, resta incompleta. Como vimos, a efetividade
da arte enquanto tal se dá na contemplação. No caso da música, sua incom-
pletude se supera na performance dos intérpretes (maestro, instrumentistas e
cantores) bem como na audição do público.
Portanto, a música, assim como qualquer arte conforme vimos, se faz
na alteridade. Ela se faz na escuta do outro. Quanto a esse caráter, o pensa-
2
A comunidade de sentidos dor alemão Theodor Adorno é enfático: "O sujeito que compõe não é uma enti-
e valores estéticos dade individual, mas coletiva. Qualquer música, por mais individual que o seu
refere-se à confluência da estilo possa ser, possui um caráter inalienável, um conteúdo coletivo: qualquer
compreensão e sensibilidade
som sempre diz Nós" (ADORNO, 1972, p. 11).
possível de ser detectada
em determinadas épocas, Em síntese, a nosso ver, no enunciado subjacente ao livro de Frederico
levando criadores e Morais – Arte é o que eu e você chamamos arte –, esse eu e você não se re-
contempladores (público,
duz a uma simples díade * stricto sensu, mas nos remete a uma comunidade
mecenas, etc.) a partilhar
uma certa consensualidade de sentidos2 e valores estéticos que constrói histórica e socialmente aquilo
instituída de apreciação que identificamos como obras de arte.
convergente das mesmas.
Na época dos grandes 1. Pressupostos para uma história das artes
estilos, como o classicismo
renascentista, o barroco, Autores que se ocupam da historia da arte, via de regra, costumam apresen-
o neoclassicismo e o
tar uma tendência que poderíamos denominar de reducionista, ao apresen-
romantismo, era possível
detectar esta comunidade de tar como foco quase exclusivo de sua abordagem, a história das artes plás-
sentidos, o que é rompido, ticas (arquitetura, escultura e pintura), centrada principalmente nesta última.
como será visto, pelas
Tal abordagem é compreensível, pois, desde “a aurora da humanidade”,
vanguardas artísticas no
início do século XX. tais modalidades de expressão artística possuem inúmeros registros físicos
como figuras fixadas em paredes e tetos de cavernas, templos, túmulos e di-
versas outras edificações que nos permitem visualizar estilos, formas e conte-
údos segundo épocas e lugares, algo totalmente impensável quando se trata,
por exemplo, da música.
13
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Considerada por muitos pensadores como a


mais abstrata das linguagens artísticas, a música é
uma arte totalmente incorpórea, que se realiza no
tempo, ou seja, só existe enquanto se faz, sendo,
portanto, totalmente incapturável na sua imateria-
lidade temporal. Ao contrário das artes plásticas,
a arte musical, até o momento de suas primeiras
notações gráficas na passagem do segundo mi-
lênio cristão, só era passível de hipóteses e espe-
culações a partir de seu registro visual em algum
suporte material como vasos e túmulos, ou via a
descrição literária como as normas da cultura mu-
sical antiga, a exemplo das contidas no livro III de A
República de Platão.
Mesmo delimitados por essa contingên-
cia histórica, estaremos atentos para não reduzir
nossa história da arte apenas ao campo das ar-
tes plásticas. Na medida do possível, será esta-
belecido um constante diálogo entre as várias
linguagens, a exemplo das artes cênicas, da arte
Figura 1 – Máscaras Africanas
musical e outras linguagens. Quanto à literatura,
apenas em casos especiais iremos nos referir a ela. Devido à especificidade
de suas propriedades estéticas com relação às demais linguagens, dela fare-
mos apenas menções pontuais quando necessárias para explicitar aspectos
analíticos da história das demais artes.
Partimos do princípio de que a arte é uma linguagem e, como tal, ela
não se reduz a um mero meio de comunicação entre os homens, mas é prin-
cipalmente um poderoso instrumento de estruturação de sentidos do mundo.
Daí a importância de se vincular a diversidade dessas linguagens a uma pers-
pectiva comum de busca de expressão e compreensão da vida. Por isso, a
despeito de suas especificidades, tais linguagens, em momentos marcantes
de sua história, chegaram a constituir grandes estilos e escolas com afinida-
des conceituais estéticas, a exemplo do renascimento, do barroco, do neo-
clássico e do romantismo, como veremos mais adiante.

1.1. A evolução das artes


Nenhuma noção de linha evolutiva estará pressuposta na análise da nossa
história da arte. A ideia de evolução pode eventualmente conotar uma con-
cepção de progresso. Sua adoção no campo das artes é bastante complica-
da. Herança da concepção iluminista dos séculos XVIII e XIX, subjaz, a essa
14
MIRANDA, D. S. de

noção evolucionista, a ideia de um processo valorativo incontornável em que


algo se movimenta, necessariamente, de um ponto para outro que lhe é su-
perior: de um menor para um maior, de um algo menos qualificado para algo
melhor, de um menos para um mais.
Esse “algo mais” pode ser visto como “mais qualidade”, mais arte, for-
ma mais perfeita, mais desenvolvimento estético, mais finesse, recaindo assim
numa atitude valorativista mediante a qual o evoluído torna-se necessariamen-
te superior ao que lhe antecede. Podemos, por outro lado, adotar a noção de
evolução e progresso dos meios e instrumentos técnicos utilizados pelas diver-
sas artes, o que não necessariamente implicaria evolução e progresso dessas
mesmas artes. O sociólogo alemão Max Weber, em Os fundamentos racionais
e sociológicos da música, ao analisar o processo de racionalização da música
euro-ocidental, cujo apogeu se dá na criação da linguagem tonal, alerta justa-
mente para o uso crítico do conceito de progresso.

A separação plena das esferas de valor em relação ao empírico eviden-


cia de modo característico que o emprego de uma técnica determinada
não tão “progressiva” diz muito pouco acerca do valor estético da obra
de arte. Obras de arte com uma técnica tão “primitiva” - p.ex. quadros
sem qualquer conhecimento de perspectiva - podem ser absolutamente
iguais às obras mais perfeitas, criadas sobre a base de uma técnica mais
racional, desde que se pressuponha que o querer artístico limitou-se
àquelas formações que são adequadas àquela técnica primitiva. A cria-
ção de novos meios técnicos significa inicialmente apenas diferencia-
ção crescente e fornece apenas a possibilidade de um “enriquecimento”
crescente da arte no sentido do aumento do valor. De fato não raras
vezes ela tem tido o efeito inverso do “empobrecimento” do sentimento
formal. (WEBER, 1995, p. 51, nota 51)

Ariano Suassuna costuma apresentar em suas Aulas-espetáculo, re-


produções representativas de duas épocas situadas na extremidade de uma
extensa linha de tempo - uma reprodução de pintura rupestre e de uma pintura
de Pablo Picasso -, perguntando qual seria a mais bela ou a melhor.
Os pintores da arte rupestre, do chamado período pré-histórico, que
detinham um nível de informação e técnicas infinitamente inferiores a de
um artista contemporâneo, seriam inferiores a um Picasso? Esse mes-
mo questionamento poderia ser aplicado às diversas linguagens artísticas
existentes. Enquanto o homem euro-ocidental permaneceu fechado em
seu círculo de ferro, atado à ideia da superioridade cultural e artística
da sua civilização, modelo e meta para as demais, o que foi reforçado
pelo projeto iluminista, ele foi incapaz de assimilar outras culturas e artes.
Isso talvez explique a reação dos contemporâneos do espanhol Marcelino
15
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Sautuola, descobridor das pinturas de Altamira na segunda metade do


século XIX: maravilhados com a beleza e precisão naturalista das suas
formas, impossível na visão deles, de serem criações primitivas, conside-
raram-nas um embuste.
Na arte musical o procedimento costuma ser o mesmo. A linguagem to-
nal euro-ocidental era vista como o apanágio do desenvolvimento racional da
arte musical universal. No entanto, exposta a outras culturas musicais consi-
deradas, até então, inferiores ao tonalismo, a estética musical europeia modi-
ficou-se, conforme ocorreu com o compositor francês Claude Debussy ao se
deparar com a escala de tons inteiros (hexatônica), de procedência oriental,
incorporando-a à sua obra. Além do mais, ao ver exaurida a linguagem tonal
cuja crise acompanha a crise da moderna razão iluminista, o homem euro-
-ocidental descobre o outro, e, ao fazê-lo, o vê como grande novidade. E essa
abertura para a alteridade representou a abertura para o múltiplo.
Algo idêntico ocorrerá também no campo das artes plásticas com Pablo
Picasso quando ele, conforme o próprio afirma, foi contaminado pelo “virus” das
máscaras tribais africanas. Picasso sentiu-se atraído pela arte africana, suas más-
caras e esculturas em madeira com formas angulosas, assimétricas, distorcidas,
não realistas, O que mais lhe chamou a atenção foi sua independência com rela-
ção à arte figurativa da tradição europeia, inspirando-lhe o estilo cubista, consoli-
dando, assim, a ruptura com a hegemonia milenar da pintura figurativa.
Para a história das artes, seria mais apropriado se falar de transforma-
ções de gêneros e estilos. Isso não nos impede que, por outros critérios e pa-
râmetros que não sejam os da evolução valorativista, avaliemos a qualidade e
a intenção da inventiva dos criadores de arte, caso contrário, sucumbiríamos
a uma espécie de neutralidade estética* que nos faria tornar impotentes para
avaliar a qualidade de uma obra de arte.
Máscaras Africanas

1.2. A história da arte ocidental tomada como a história


da arte universal
Mesmo que façamos eventualmente referência à arte de outros povos e con-
tinentes, estaremos cingidos à história da arte ocidental, não a tomando como
uma história universal das expressões artísticas da humanidade, juízo recor-
rente em determinadas abordagens.
Somos reconhecidamente herdeiros da cultura grega, incluindo nes-
sa concepção a ciência, a filosofia e a arte, cujo vigor e perdurabilidade
de seus conceitos irão atravessar épocas longínquas e estender-se-ão a
lugares distantes, chegando, em certos casos, às portas do século XIX, a
exemplo do que irá ocorrer com alguns cânones de sua estética, conforme
veremos mais tarde.
16
MIRANDA, D. S. de

A crítica à perspectiva euro-ocidental no campo da arte musical encon-


tra-se expressa na apresentação de O som e o sentido, em que o autor as-
severa que “habitualmente as histórias da música são histórias da zona tonal
[euro-ocidental], indo do barroco a Debussy, com breve incursão pelo dodeca-
fonismo...” (WISNIK, 2001, p. 10).
Não são muitas as obras voltadas para a arte que assumem delibera-
damente os limites de suas abordagens já no seu título, a exemplo da História
da música ocidental de Grout e Palisca ou, então, em advertências expressas
já na apresentação do livro, a exemplo de Uma nova história da música, de
Otto Maria Carpeaux, que, em sua “explicação prévia” (prefácio da 1ª edição),
de imediato, nos alerta: “O presente livro trata da música ocidental: isto é, da
música europeia (inclusive naturalmente, da Europa oriental) e das Américas”
(CARPEAUX, 1958?, p 333).
O livro de Carpeaux é também apreciado por Wisnik, ao afirmar que
aquele autor resolveu o “problema pelo avesso” ao assumir “com todas as
letras aquilo que considerou ser uma condição inevitável da nossa escuta, a
sua ocidentalidade” (WISNIK, op. cit., idem). Eis o juízo do próprio Carpeaux,
em sua explicação prévia: “em nenhuma outra civilização ocupa um com-
positor a posição central de Beethoven na história da nossa civilização; ne-
nhuma outra civilização produziu fenômeno comparável à polifonia de Bach”
(CARPEAUX, op. cit. p. 333).
Na verdade, a euro-ocidentalidade de Carpeaux tinha limites temporais,
ao recusar qualquer outra experiência que escapasse do paradigma por ele
mesmo traçado para definir o que considerava música, dele excluindo por
exemplo as músicas de vanguarda da sua época. Assim ele finaliza seu livro:
“[...] é imprevisível o futuro da música concreta e da música eletrônica. Só
está certo que nada têm nem poderão ter em comum com aquilo que a partir
do século XIII até 1950 se chamava música. O assunto do presente livro está,
portanto, encerrado” (CARPEAUX, idem, p. 333)

2. Hipóteses sobre as origens das artes


Podemos nos enganar ao pensarmos os começos das coisas como gêne-
sis, pois sempre é possível encontrar algo anterior que pode desmontar es-
ses pretensos começos. O pensador francês Michel Foucault, inspirado no
filósofo Nietzsche, costumava aludir aos começos sempre cinzentos das
coisas. E como tudo que envolve o mundo das artes, o entendimento de
suas origens é seguramente um dos temas menos consensuais e mais po-
lêmicos. Daí adotarmos, neste capítulo, o caráter hipotético dos começos
das artes, alertados pelo pensamento de Foucault. Eis algumas hipóteses
das origens das artes:
17
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

2.1. A pintura mágica paleolítica


O ser humano, desde os tempos mais recuados, vivendo em hordas nômades
na busca de alimentos mediante a coleta e a caça, ao enfrentar os desafios
da natureza, buscava inapelavelmente seu domínio, procurando superá-la, me-
diante o empenho tenaz na luta pela sua sobrevivência e auto-conservação.
E uma forma desse domínio estaria nas representações pictóricas de caráter
mágico, feitas nas paredes de abrigos e cavernas, seu primeiro habitat seguro,
lugares que ofereciam proteção contra as intempéries da natureza.
Assim, encontraríamos um dos testemunhos concretos das primeiras ex-
periências do fazer artístico, nas mais antigas inscrições rupestres do período
paleolítico superior (c. 40.000 a. C.) gravadas em tetos e paredes de cavernas,
utilizando-se, quando possível, das protuberâncias arredondadas das rochas
para passar a ideia de volume ao corpo do animal pintado.
São por demais conhecidos os exemplos europeus: as cavernas de Las-
caux e Chauvet (França), e Altamira (Espanha), considerada por muitos como a
capela Sistina* da pré-história, devido à riqueza de pinturas em seu teto. Chau-
vet, descoberta em 1994, apresentava um extraordinário estado de conserva-
ção. Nesses sítios arqueológicos, encontramos um impressionante acervo visu-
al de nossos antepassados, apresentando pinturas com inconfessável intenção
de reprodução naturalista, com o máximo de realismo possível.
Para historiadores como o húngaro Arnold Hauser em História social da
arte e da literatura, a expressão fiel de grandes animais selvagens - bisontes,
cavalos, cervos entre outros, - era resultado da observação acurada do pintor,
que também era caçador. A preocupação com a reprodução mais fiel possível
significaria sucesso no seu intento. Assim esse gesto da “magia propiciatória”
estava destinada a garantir o êxito do caçador.
Diferentemente da hipótese de Hauser, que atribui, como acabamos de
ver, a autoria das gravuras rupestres a caçadores-pintores, outra hipótese as
identifica como obra de xamãs que, na escuridão das cavernas e em estado
de transe, teriam reproduzido suas visões com os mesmos objetivos mágicos.
Segundo o húngaro, nossos ancestrais mais recuados, ao pintar um
animal transpassado por uma flecha, procuravam o domínio real sobre aquele
objeto, sem nenhuma pretensão, ainda, de representar estética e abstrata-
mente a espécie pintada. Daí o predomínio da arte mágica naturalista vigorar
no período paleolítico superior.
18
MIRANDA, D. S. de

Figura 2 – Pintura rupestre de Lascaux

Nossos ancestrais acreditariam, dentro da esfera mágica em que se


encontravam imersos, que o duplo pintado de um determinado animal trans-
passado por uma flecha representaria sucesso na sua captura. Na medida em
que conseguiam seu intento, essa relação mágica com a pintura naturalista
sairia fortalecida. Assim os primeiros objetos de arte não possuiriam uma in-
tenção estética de adornar suas vidas, mas a intenção de controlar as forças
fossem elas naturais ou sobrenaturais, a fim de obter êxito na caça.
Dentre as cavernas francesas, chamam-nos atenção as pinturas rupestres
diferenciadas de Les Trois-Frères, na região dos Pirineus. Suas pinturas apresen-
tam figuras híbridas – metade humanas, metade animais, a exemplo do bisonte-
-humanóide. O sentido desse hibridismo residiria na busca mágica de poderes so-
bre o animal representado, na medida em que porções de seu corpo são fundidos
à figura humana do xamã em danças ritualísticas de encantamento.

2.2. Arte neolítica


A pintura mais estilizada, enquan-
to representação mais abstrata do
retratado, seria própria do período
neolítico (c. 10.000 a.C.), quando o
homem da pré-história teria tomado
gosto pela forma obtida. Só a partir
daí é que ele teria se entregado a
uma espécie de experiência estéti-
ca. A passagem para esse período,
também conhecido como idade da Figura 3 – Arte Neolítica
pedra polida, representou uma grande evolução tecnológica, com importantes
ressonâncias para as manifestações artísticas posteriores.
19
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

O acontecimento mais relevante foi o início de atividades mais seden-


tárias como a agricultura e a domesticação de animais em grandes manadas.
A fixação dos agrupamentos humanos deu-se próxima aos rios, propiciando o
uso de terras férteis onde eram lançadas as sementes para o plantio. Assim, o
homem descobriu a atividade sedentária da agricultura mediante o cultivo da
terra. Verificaram-se assim os primeiros aumentos populacionais e o desen-
volvimento das primeiras instituições como a família e a divisão social do tra-
balho. Sedentário e construtor de suas primeiras moradias, o homem neolítico
desenvolveu a técnica de tecer panos e fabricar cerâmica, bem como a des-
coberta do fogo e de suas propriedades, dando início ao seu uso na fusão de
metais, criando utensílios, instrumentos de trabalho, armas e objetos de arte.
Tais descobertas e usos repercutiram fortemente na mente do homem
neolítico, com ressonâncias no campo estético. O olhar acurado e preciso 3
“Para o escultor que usava o
necessário para a observação precisa do caçador-coletor nômade cede lu- método da fôrma de barro, o
primeiro passo consistia em
gar para a abstração e racionalização, ainda que rudimentar, do sedentário
fazer uma fôrma com esse
homem neolítico. O estilo naturalista anterior, típico do paleolítico superior, material. Nela era despejado
transforma-se agora num estilo mais despojado e geometrizante. o metal já derretido em
fornos. O ferro fundido era
Ao invés de imitações fieis da natureza, iremos encontrar sinais e figuras
deixado dentro da fôrma
que mais sugerem do que reproduzem. Pesquisadores apontam tal fenômeno de barro até que esfriasse.
como a grande transformação da história da arte. Mas as mudanças não se Depois do frio, a fôrma
cingiram apenas às formas, mas repercutiram igualmente no teor temático das era quebrada. Obtinha-se
representações, voltadas agora para a vida coletiva, a exemplo do movimento assim, uma escultura com a
configuração, anteriormente
de danças ritualísticas associadas ao trabalho grupal de plantio e colheita. dada ao barro.
Aos poucos a simplificação pictórica mais livre, ágil e leve, vai cedendo Já o trabalho do artista que
lugar a uma simples insinuação de traços sugerindo formas mais abstratas. O usava a técnica da cera
perdida começava com a
“artista” neolítico também produzia artefatos de cerâmica cuja forma, além de
construção de um modelo
seu uso prático para o dia-a-dia, revelava uma preocupação com a formaliza- em cera. Esse modelo era
ção estética que expressasse talvez sua ideia de beleza. Além disso, serviu- revestido de barro aquecido.
-se de metais como matéria prima, a exemplo do ferro e bronze, para produzir Com o calor do barro, a
esculturas mediante a utilização de técnicas de uso de fôrmas de barro3 e de cera derretia-se e escorria
por um orifício que era
cera derretida (v. Anote) propositalmente deixado
Eis um dos pontos mais controvertidos da explicação da origem das ar- nas peças de cerâmica...
tes. Que tais imagens, bem como outras figurações que, dezenas de milênios Obtinha-se assim um objeto
oco. Depois, por esse mesmo
depois, iriam receber a designação de arte, teriam intenções funcionais, pare-
orifício, preenchia-se o objeto
ce não ser objeto de grandes polêmicas. O que é alvo de controvérsias refere- com metal fundido. Quando
-se à intenção mais ou menos consciente, por parte de nossos ancestrais este estivesse endurecido e
mais recuados no tempo, de buscarem, desde suas as primeiras expressões, frio, quebrava-se o molde de
barro. Dentro dele estava a
formalizações estéticas que despertassem seu interesse.
escultura em metal, igual à
Vários historiadores e arqueólogos não deixam de eliminar a hipótese que o artista tinha moldado
de um objetivo estético intencional desde o início. Ao pintar nas paredes das em cera”. (PROENÇA, 1989,
cavernas, já existiria uma intenção estética de encantamento com a forma, p.15)
20
MIRANDA, D. S. de

ainda que de modo bastante embrionária. Tal intenção de produção estética já


estaria, por exemplo, igualmente manifesta nos entalhes feitos em lanças de
caça, nas armas e utensílios feitos de pedra ou de cerâmica, nos ossos dos
animais abatidos, etc.
O mesmo dar-se-ia com os corpos pintados com cores fortes, enfeita-
dos adornos e pingentes, em celebrações, cerimônias e rituais dos mortos.
Para esses estudiosos, pinturas, esculturas e gravuras seriam demonstra-
ções irrecusáveis de protoartistas, do desejo de expressão mediante o uso
do sentimento estético como algo constitutivo e inerente à natureza humana.
Quaisquer que sejam as explicações e o entendimento dessas manifestações
estéticas, a arte preservada por milênios permitiu que as grutas pré-históricas
se transformassem nos primeiros museus da humanidade.

2.3. Os objetos sagrados


A experiência da inscrição rupestre, espécie de ancestralidade correspon-
dente à nossa arte pictórica pelo uso da superfície das paredes e tetos das
cavernas, teria permitido a ideia de volume, ao aproveitar, como vimos, as
saliências rochosas para expressar o volume dos corpos dos animais pin-
tados. Porém, uma outra modalidade será criada para realizar tal intento,
apresentando-se como protoforma da nossa arte escultórica, em que o vo-
lume da obra adquire uma solidez e tridimensionalidade distinta da bidimen-
sionalidade das inscrições rupestres.
Um dos exemplos mais expressivos dessa protoarte pode ser encon-
trado na Vênus de Willendorf. Também conhecida como Mulher de Willen-
dorf (encontrada na pequena vila de Willendorf, Áustria, em 1908), trata-se
de uma escultura em miniatura (apenas 11 cm), em cor ocre vermelha, ta-
lhada em pedra calcárea no período paleolítico superior (teria sido esculpida
há 25 mil anos). Diferentemente das pinturas rupestres, a estatueta não bus-
ca uma representação realista, mas uma transfiguração da forma feminina
idealizada. O tamanho dos braços é minimo. A cabeça é coberta por rolos
de tranças, e os seios, o ventre e o sexo são extremamente volumosos. Daí
vários estudiosos lhe atribuirem uma forte relação com a ideia de fertilidade,
fator crucial para a sobrevivência daqueles grupos.
O título de Vênus dado a essa figuração miniaturizada - com partes
opulentas de um corpo feminino, espécie de amuleto induzindo a ideia de
fertilidade - foi igualmente aplicado a outras descobertas em várias parte da
Europa, cujas características formais eram praticamente idênticas. Eis alguns
exemplos: Vênus de Kostienki (Rússia), de Grimaldi e Lespugue (ambas da
França), de Moravany (Eslovênia), de Dolni Vestonice (República Tcheca), de
Savignano (Itália).
21
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Outro objeto prefigurador da arte escultória é o


totem. Trata-se de uma das formas mais arcaicas de
expressão de sociabilidade ancestral, ao propiciar a
organização dos agrupamentos humanos a partir de
relações de parentesco. Os membros de um dado
agrupamento tomavam a escultura de um animal,
de uma planta ou de um determinado objeto e con-
feriam poderes mágicos, o que, ao mesmo tempo,
representava um poder articulador grupal. O totem,
enquanto objeto esculpido para outros fins, constitui-
-se, ele próprio, numa obra indutora de sensações e
experiência estética, portanto, um exemplo bastante Figura 4 – Vênus de
recuado de obra de arte. Willendorf

2.4. A voz encantatória


Enquanto protoforma da nossa arte musical, a voz encantatória teria se apre-
sentado de diversas maneiras. No interior do tempo primordial, para muitas
antigas religiões, o ruído, o som, a voz, a música, a palavra (no princípio era
o Verbo... e o Verbo era Deus) eram proferições iniciáticas do tempo. Paul
Ricoeur, coordenador de importante pesquisa da Unesco sobre o tempo, res-
salta o lado comum de várias culturas, onde um tempo iniciático se dá a partir
de uma fala fundante. Para ele, “a fundação das coisas [se dava] mediante
uma Palavra criadora” (RICOEUR, 1975, p. 30).
Antigas teogonias e cosmogonias (narrativas míticas para explicar a origem
dos deuses e do mundo, respectivamente) apresentam um fundamento musical
investido de caráter mítico. Marius Schneider, autor dedicado ao lastro mítico das
mais diferentes tradições do universo da música modal (fora do universo da mú-
sica tonal euro-ocidental), nos emoldura toda a dimensão do tema: “toda vez que
a gênese do mundo é descrita com a precisão desejada, um elemento acústico
intervém no momento decisivo da ação”; e “a fonte de onde emana o mundo é
sempre uma fonte acústica” (apud WISNIK, 1989: p. 33 e 34, respectivamente).
Em O Som e o sentido, Wisnik assevera que “a fonte de onde emana o
mundo é sempre uma fonte acústica” (1989, p. 34). A voz criadora surge como
um som que vem do nada, que aflora do vazio. No hinduísmo, tida como a
mais musical das religiões, atribui-se à proferição da sílaba sagrada OUM (ou
AUM) o poder de ressoar a gênese, assim como a dança e os atos festivos,
investidos de profunda sacralidade e celebrados em ritos encantatórios, são
vistos como momentos seminais.
Devido ao poder das palavras e da música em conferir sentido às coi-
sas, portando, dotadas de um poder sobre o mundo e os homens, a voz que
comandava certas atividades ritualizadas teria adquirido, por isso, um poder
encantatório sagrado. É a voz do xamã ou do feiticeiro.
22
MIRANDA, D. S. de

Outra voz que teria ganhado poderes encantatórios foi a do aedo (poe-
ta-cantor que entoava suas próprias criações) e do rapsodo (poeta-cantor que
entoava obras alheias), cuja função era a narração mítica (poemas religiosos
e/ou épicos), a exemplo da Ilíada e da Odisseia de Homero, cuja sabedoria
sagrada partia do seu interior, daí sua figura ser associada a um poeta cego.
Conforme apontam algumas teorias, os sentidos da comunicação en-
tre os nossos ancestrais mais “primitivos” poderiam ter sido dados pela estreita
articulação entre o canto (melodia e ritmo) e a palavra, cujo vínculo semântico
da linguagem era dado pela íntima relação entre os dois (música e palavra). O
filósofo enciclopedista Jean Jacques Rousseau, ao fundamentar sua noção
de música como linguagem dos sentimentos, desenvolve uma teoria sobre a
gênese da linguagem falada em Ensaio sobre a origem das Línguas.
Para ele, teria existido no passado mítico das sociedades, uma unida-
de entre fala e música. Essa indissolubilidade permitia ao homem em estado
natural, expressar suas paixões de modo pleno. A civilização teria rompido
tal unidade. As línguas, ab origine (em suas origens mais recuadas), eram
acentuadas musicalmente e, por um perverso efeito da civilização, ficaram
desprovidas daquela melodicidade original, tornando-se aptas apenas para
expressar uma linguagem racional.
Essa mesma unidade entre a música e a palavra como forma original
de articulação de sentidos teria sido usada no canto para o comando do traba-
lho. As cantigas de trabalho, quase sempre entoadas no sistema responsorial
(chamada e resposta), foram uma prática universal, encontrada em todas as
culturas onde existisse o gesto comunal para a busca da sobrevivência. O
canto durante o trabalho serviria, a um só tempo, para imprimir um ritmo co-
letivo, assim organizando e comandando o gesto comum para torná-lo mais
eficaz, bem como para minorar a fadiga de uma jornada de trabalho.

2.5. A narrativa mítica


Apresentando-se como protoforma da nossa arte literária, o mito é um sistema
de narrativas que busca explicar a origem sagrada do universo – dos deuses, do
mundo, do homem e da natureza das coisas – bem como as razões das origens
das forças sobrenaturais e/ou naturais que atuam sobre o mundo e os homens.
De natureza teogônica e cosmogônica, por se tratar de objeto de crença,
dotada de uma lógica fechada numa circularidade explicativa autoreferente,
não propiciando portanto o lugar para a contestação e o contraditório, costuma-
se colocar o mito em total oposição ao logos*, a racionalidade que confere
sentido objetivo ao kosmos, a boa ordem.
Porém, autores como Adorno e Horkheimer, em Dialética do Esclareci-
mento, proferem que alguns mitos já contêm, em si mesmos, certos elementos
racionais do logos. O maior exemplo estaria no mito da Odisseia (narrativa do
retorno de Ulisses à ilha de Ítaca, depois da guerra de Tróia), narrado por Ho-
23
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

mero. “Nenhuma obra presta um testemunho mais eloquente do entrelaçamento


do esclarecimento [procedimento da razão] e do mito do que a obra homérica, o
texto fundamental da civilização europeia” (ADORNO/HORKHEIMER, 1991, p.
55), noção corroborada no comentário de Olgária Matos sobre a obra destes dois 4
A descrição e análise
pensadores. “Tanto a mitologia quanto o Iluminismo filosófico (dos séculos XVII das manifestações
protoartísticas bem como
e XVIII) e científico encontram suas raízes nas mesmas necessidades básicas: das fases do processo de
sobrevivência, autoconservação e medo” (MATOS, 1989, p. 141). constituição das obras de
Na viagem de volta, Ulisses enfrenta vários obstáculos, como a deusa Cir- arte, partindo dos objetos
úteis ao momento de
ce, o ciclope Polifemo, o canto das sereias, o mergulho no Hades (morada dos constituição de objetos
mortos), o Lótus. Ulisses, para conseguir manter-se vivo e consciente e, assim, estéticos, são aqui
retornar são e salvo à sua pátria, usa de vários artifícios, as astúcias da razão. Ele apresentadas de forma
é capaz de ludibriar os próprios deuses, usando de meios adequados para alcan- destacada e aparentemente
linear apenas com o objetivo
çar seus fins. Segundo os autores citados, em Ulisses, ardil e razão constituem didático para auxiliar o
o núcleo de sua racionalidade. A Odisseia é a via constitutiva do sujeito racional entendimento deste capítulo
que deve rivalizar com as manifestações adversas da natureza exterior e de sua sobre as hipóteses das suas
própria natureza interior, a despeito de ser ele sempre fisicamente mais fraco em origens. Certamente suas
manifestações teriam sido
relação às forças contra as quais deve lutar para manter-se vivo. efetuadas de forma bem
mais complexa e articuladas
2.6. O trabalho entre si.
Manejo concreto de busca do domínio e de transformação da natureza, o
trabalho é uma atividade própria do humano, com vistas à sua sobrevivência. 5
Epistéme: ciência para a
Graças a ele, o homem efetiva sua passagem do mundo natural para o mundo tradição filosófica grega,
da cultura: caça, pesca, agricultura, domesticação de animais são atividades saber teórico das coisas
por meio de raciocínios e
de trabalho para a sobrevivência.
conceitos universais (i.é,
Vejamos como o trabalho teria exercido um papel fundamental para o válidos sempre em todos
surgimento de objetos protoformadores4 de sentidos estéticos no curso da os tempos e lugares) e
história das artes. Em suas origens mais recuadas, todas as atividades de necessários (do que é
trabalho visavam ao atendimento direto do consumo corrente, sem nenhuma impossível ser diferente
do que é; o que não pode
possibilidade de se gerar qualquer excedente. Para os defensores da carên-
ser de outro modo. A
cia de intencionalidade artística em figuras e objetos criados, nessa fase inicial epistéme se opõe à empeiria
em que o fruto do trabalho não propicia sobras do consumo corrente, dar-se-ia (conhecimento prático que
tão somente a criação de objetos úteis, portanto destituídos de esteticidade, se obtém via experiência
em decorrência da finalidade de uso imediato para a sobrevivência. sensível) (Cf. CHAUÍ, 2002,
p. 500).
Nessa fase então não existiriam ainda as condições de possibilidade para
se criar, ou, ao menos, para se perceber os objetos de arte. Com o desenvolvi- Díade: termo sociológico para
mento das técnicas de trabalho, provocando o aumento da produção e da produ- indicar a unidade mínima
tividade, e a possibilidade de se criar um excedente que transcendesse as neces- de uma relação social,
constituída por duas pessoas,
sidades imediatas do consumo corrente, o trabalho permitiria que o ser humano
como mãe/filho, marido/
transcendesse igualmente os limites da natureza (interna e externa), criando uma mulher, professor/aluno. Na
nova realidade subjetiva5: o humano humanizado pelo trabalho e, depois pelos teoria musical, é um acorde
objetos estetizados (o que posteriormente denominaríamos de arte). formado por duas notas.
24
MIRANDA, D. S. de

Com tal processo, os sentidos naturais humanos, como o olhar e a es-


6
Neutralidade estética:
análogo ao conceito de
cuta, serão alvos de importantes mudanças de qualidade, e agenciadores de
neutralidade científica, outros sentidos, agora, esteticamente operados. Aqueles sentidos naturais hu-
advogando a emissão apenas manizados seriam fruto concreto do processo dialógico estabelecido entre a
de juízos de realidade, a natureza (o mundo natural) e o homem (o mundo da cultura).
neutralidade estética defende
a impossibilidade de emissão Sua humanização não seria algo dado, mas conquistado. Para sua com-
de juízos de valor referentes provação, recorrer-se-ia ao confronto do universo humano com o mundo natural
às obras de arte, devido animal, ao se perceber que neste último inexiste qualquer fruição estética. Para
ao caráter relativo de sua
natureza essencialmente
que tal fruição ocorresse seria necessária a existência de uma esfera de atua-
cultural. ção psíquica que transcendesse a necessidade imediata de sobrevivência.
Tal necessidade lança o mundo animal diretamente sobre o objeto, sem
Maiêutica socrática (parto
de ideias ou parto das
mediação de qualquer ordem, e seus sentidos facilitam sua imersão nele.
almas): a palavra maieutiké, Para a contemplação estética, é preciso algo mais do que a simples satis-
em grego, significa parto. fação da necessidade material imediata. Para que existe fruição estética6, é
Criado por Sócrates, o preciso que o humano transcenda o mero reino da necessidade (mundo da
método do “parto intelectual”
para procurar a verdade
natureza), e desfrute das coisas do reino da liberdade (mundo da cultura).
continha dois momentos Para que haja a fruição estética, é preciso que o olhar contemplante esteja
importantes. No primeiro, liberado da necessidade imperiosa de lutar exclusivamente pela sua sobrevi-
o filósofo levava os seus vência, que o impede de se distanciar do objeto. Lembrando Marx, “a forma-
interlocutores a reconhecer
sua própria ignorância
ção dos cinco sentidos humanos” é obra do desenvolvimento histórico-social
acerca de um dado tema; da humanidade, fruto da passagem do mundo da natureza para o mundo da
depois, Sócrates os levava cultura e, por sua vez, da autocriação do próprio homem mediante o trabalho
a conceber por si mesmos, (cf. VAZQUEZ,1978, p. 84).
uma nova ideia sobre o
tema. Essa autorreflexão Devido ao aumento da produtividade humana pelo processo do traba-
expressa o princípio socrático lho, teriam surgido objetos que, para além de seu uso para consumo imediato,
de "conhece-te a ti mesmo" ganharam formas que passaram a ser apreciadas: são os objetos úteis esté-
(inscrição do templo de
Delfos dedicado a Apolo),
ticos, onde o artista acrescenta uma dimensão “inútil” (estetização do objeto
levando seus discípulos útil), uma dimensão “supérflua”: “se a arte é associada a um objeto útil ela é
ao encontro das verdades nele, o supérfluo” (COLI, id. p, 89).
universais que são o caminho
para a prática do bem, da
Eis aqui um passo importante para o aflorar de uma outra possibilidade,
virtude e da beleza. a criação de objetos totalmente independentes do uso prosaico do consumo,
i.é, a criação de objetos “inúteis” ou objetos puramente estéticos, o que irá
ocorrer, sobretudo, a partir do período renascentista.
Na contemporaneidade, com o vertiginoso desenvolvimento industrial,
possibilitou-se a criação de objetos estéticos úteis, ensejando inclusive a cria-
ção de uma modalidade de arte contemporânea, o desenho industrial (de-
sign), cuja expressão maior, no século XX, foi a criação da Escola de Bauhaus
(A Construção da Casa) na Alemanha, iniciativa do arquiteto Walter Gropius
durante a República de Weimar (1919 - 33).
25
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Conforme enfatizamos na se-


ção Anote, a despeito da apresen-
tação feita de forma linear e esque- 7
Capela Sistina: edificada
mática, para efeito de um melhor no interior do Palácio do
Vaticano no papado de
entendimento das origens das artes,
Sisto IV, por volta de 1480, a
importa frisar que, de fato, tal lineari- capela era apenas um templo
dade não se verifica. Podemos dar retangular relativamente
o exemplo de uma obra criada em simples destinado ao culto
religioso mais privado do
pleno período da arte clássica re-
papa e da alta hierarquia
nascentista: o Saleiro de Francisco da Igreja. Tornou-se
I (1543), peça de Benvenuto Cellini, mundialmente famosa por
Figura 5 – Saleiro de Francisco I de Cellini receber, em seu teto, uma
que fizera “um saleiro que em nada
das obras mais sublimes
se assemelha aos saleiros comuns”, conforme suas próprias palavras (apud,
da arte renascentista: os
COLI, op. cit., p. 89). A peça é, na verdade, uma extraordinária escultura afrescos de Michelangelo
apresentando os deuses do mar e da terra, Netuno e Ops, sobre um pedestal contendo várias passagens
ricamente ornado. Temos aqui um lídimo exemplo do período renascentis- do Velho Testamento (o mais
célebre é o da criação do
ta, acerca de uma obra estética útil, ou, como a evidência da “desproporção
homem, Adão recebendo a
entre a função banal e o trabalho artístico [...] assinala quanto fortemente o vida pelas mãos de Deus),
quanto a arte significa supérfluo” (COLI, passim). tarefa encomendada pelo
papa Júlio II e realizada entre
1508 e 1512.

Logos: no glossário que


Síntese do Capítulo acompanha sua Introdução à
História da Filosofia (p. 504),
Esta unidade examinou a riqueza de abordagens sobre a definição do que é Chauí aponta vários sentidos
arte, sobretudo sua distinção em relação às definições concisas das chama- para o verbo légein, que
dá origem ao termo grego
das “ciências duras”, bem como a natureza sociohistórica dos objetos que re-
logos: reunir, contar, calcular,
conhecemos como arte e as nomeamos como tal, i.é, a obra de arte enquanto narrar, nomear claramente,
objeto construído numa rede de sociabilidade. discutir, pensar, refletir.
Como substantivo significa
Além disso, foram apresentados alguns pressupostos que criticam
palavra. Teria sido o filósofo
perspectivas implicitamente contidas em textos voltados ao tema, tais como: Heráclito de Éfeso (540-470
a história da arte ocidental tomada como história da arte universal7; a história a. C.) que, pela primeira vez,
das artes plásticas como paradigma praticamente exclusivo da história de to- teria usado o termo com o
sentido de razão (ratio, para
das as artes; as transformações estéticas e estilísticas vistas como inelutável
os latinos)
processo evolutivo das artes. Examinou-se também um conjunto de hipóteses
sobre as origens das artes.
26
MIRANDA, D. S. de

Atividades de avaliação
1. Formule sua própria concepção sobre a arte.
2. Considerando a universalidade da expressão artística, justifique sua presen-
ça na existência humana.
3. Considerando o caráter relativo das abordagens sobre os pressupostos crí-
ticos em relação a determinadas perspectivas recorrentes sobre a história
das artes, emita sua opinião sobre as mesmas.
4. Emita sua opinião sobre as hipóteses das origens das artes apresentadas
por esta unidade.
5. Levando em conta todo o conteúdo apresentado pela unidade, elabore
um pequeno texto a partir de uma questão problematizada formulada por
você mesmo, e procure respondê-la desenvolvendo uma reflexão de for-
ma bem pessoal.

@
Leituras, filmes e sites
Leituras
Homero: A Odisseia
Platão: A República
Santo Agostinho: As Confissões

Filmes
Guerra do fogo (2003): do diretor Jean-Jacques Annaud, baseado no roteiro
assinado por Anthony Burguess, autor do livro Laranja Mecânica, o filme retra-
ta um período da pré-história a partir do encontro de dois grupos de homínidas:
o primeiro, ainda pouco diferenciado dos primatas, não possui o domínio da
fala, comunicando-se mediante gestos e grunhidos, e desconhece o fogo; o
segundo, mais evoluído, possui comunicação e hábitos mais complexos, in-
clusive a habilidade de fazer o fogo. O filme levanta algumas hipóteses sobre
a origem da linguagem.
2001 - Uma odisseia no espaço (1968): do diretor Stanley Kubrick, basea-
do na obra ficcional de Arthur Clarke. Um clássico da ficção científica, cobre
uma extensíssima linha de tempo, que vai desde a “aurora da humanidade”,
quando surge um misterioso monolito negro emissor de estranhos sinais de
outra civilização que perturbam os homínidas da terra até quatro milhões de
27
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

anos depois no século XXI, quando uma equipe de astronautas é enviada a


Júpiter para investigar o enigmático monolito, na nave Discovery, totalmente
controlada pelo computador HAL 9000. Durante a viagem HAL, em pane, ten-
ta assumir o controle da nave, eliminando um a um os tripulantes.

Referências
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Musique en jeu, no.7. Tradução de Dilmar Miranda. Paris: Seuil. 1972
BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. Ática. São Paulo, 1991.
CARPEAUX, Otto Maria. Uma nova história da música, Rio de Janeiro:
Ediouro, 1958?
CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da Filosofia. São Paulo: Companhia
Das Letras. 2002.
COLI, Jorge, O que é arte. São Paulo: Brasiliense, 2009.
GOMBRICH, E.H. A história da arte. Tradução de Álvaro Cabral, 15ª edição.
Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. Tradução de Álvaro
Cabral. Martins Fontes, São Paulo, 1995.
MATOS, Olgária. “A Melancolia de Ulisses: a Dialética do Iluminismo e o canto
das sereias”. In Os Sentidos da Paixão (org. Adauto Novaes). S. Paulo. Fu-
narte/Cia. das Letras. 1989.
MORAIS, Frederico. Arte é o que eu e você chamamos arte. Rio de Janeiro/
São Paulo: Record. 1998.
PROENÇA, Graça. História da arte. São Paulo: Ática. 1989.
RICOEUR, Paul, (org.) et al. Introduction: Les cultures et le temps. Tradução
de Dilmar Miranda. Paris: Payot, 1975.
VAZQUEZ, Adolfo Sanches. As ideias estéticas de Marx, São Paulo: Paz e
Terra, 1978.
WEBER, Max, Fundamentos racionais e sociológicos da música. Tradu-
ção de Leopoldo Waizbort. São Paulo: EDUSP. 1994.
WISNIK, José Miguel, O som e o sentido. São Paulo: Companhia Das Letras.
2001.
História da Arte: da Pré-história até a Arte Contemporânea. (DVD e folheto).
Edição: Grupo Cultural.
29
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Capítulo 2
A Arte na antiguidade
31
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Objetivos
• Examinar as manifestações artísticas da antiguidade (como a arte mesopo-
tâmica e egípcia);
• Percorrer seus períodos e obras mais marcantes e que irão provocar impor-
tantes influxos, sobretudo na arte da antiga Grécia;
• Analisar os períodos arcaico e clássico que irão fornecer padrões canônicos
constitutivos das artes ocidentais.
• Diversas linguagens artísticas da antiga Grécia, como a música, a escultura,
a pintura, a arquitetura e a tragédia, será articulada às principais doutrinas
estéticas do pensamento filosófico da época.

1. A arte no antigo Oriente Médio e Próximo


As contínuas e profundas mudanças climáticas, acarretando redução dos re-
cursos naturais para a subsistência dos povos nômades do paleolítico, a exem-
plo do esgotamento da caça, bem como o aumento de sua população, foram
importantes fatores para obrigá-los a buscar novos modos de vida como o se-
dentarismo, encontrando condições ideais para tal nas margens férteis dos rios.
Conforme vimos na unidade anterior, a fixação em solos propícios pas-
sou a ser uma necessidade imperiosa para aqueles povos, mediante o ma-
nejo de práticas produtivas coletivas, como a agricultura e a domesticação de
animais, além das atividades pesqueiras, realizadas todas por um rudimentar
sistema de divisão social do trabalho baseada no critério da idade e do sexo.
Como consequência, aos poucos, foram sendo nucleados, nas ba-
cias férteis de grandes rios no imediato período pós-neolítico, grandes agru-
pamentos que se transformaram em expressivos aldeamentos urbanos,
destacando-se dentre esses, duas grandes primeiras civilizações, a meso-
potâmica e a egípicia, cuja arte e cultura deixaram legados indeléveis à civi-
lização e cultura euro-ocidentais.
32
MIRANDA, D. S. de

1.1. Mesopotâmia
A Mesopotâmia (em grego, “entre dois rios”) encontra-se na região sul da ba-
cia dos rios Tigre e Eufrates. Nela, percebem-se duas regiões bem distintas. A
porção norte, fria e montanhosa, foi ocupada por assírios e acádios. A porção
sul, formada por planícies férteis de clima quente, foi habitada pelos sumérios
e babilônios. O adensamento de suas várias aldeias, com seu consequente
crescimento, propiciou a criação de cidades-estado. Por se tratar de uma re-
gião altamente produtiva, diversos povos sentiram-se atraídos por ela ao longo
de milênios, dando origem a uma sucessão de conquistas. E, à medida que as
várias ocupações iam se sucedendo, foi-se consolidando uma impressionante
riqueza cultural, sempre acolhida pelas novas gerações de habitantes da região.
O que talvez possa explicar esse fenômeno seria o fato dos mesopotâ-
micos, a despeito dos dialetos de cada povo, compartilharem a mesma escrita
denominada de cuneiforme, sinais gráficos obtidos por meio de estiletes em
formato de cunha, notabilizando-se, assim, pela invenção de um dos mais
antigos sistemas de escrita que se tem notícia. Os tabletes feitos de argila
e pedra, os sinetes e cilindros-selo, além de documentar todo um processo
sofisticado e complexo de desenvolvimento da escrita, registram igualmente
aspectos da administração palacial da região mesopotâmica, especialmente
entre os assírios e os babilônicos. Graças a essa unidade cultural, foi-nos
possível identificar o que denominamos de civilização mesopotâmica, na ver-
dade, um grande encontro de diferentes culturas em cuja encruzilhada se so-
brepuseram e se coesionaram durante milênios, nutrindo-se umas das outras.
A tradição historiográfica ocidental costuma atribuir seus começos por
volta do ano de 4.000 a. C., com a chegada dos sumérios, cuja hegemonia,
como vimos, não se tornou única ou duradoura. Assim como os sumérios, os
acadianos, a partir de 2.400 a. C. e, depois, os assírios e os babilônios foram
adotando a cultura de seus predecessores.
Em 539 a. C., a região foi conquistada pelo rei Dario I, da Pérsia, dando
início a um longo e tumultuado império que iria durar até 330 a. C. quando Ale-
xandre Magno, rei da Macedônia, o mais célebre conquistador da antiguidade,
unifica todos os países contíguos da região, criando um grande império que
passa a integrar o mundo helênico, conhecido como o período do Helenismo,
conforme veremos adiante.
Da civilização mesopotâmica, surgiram importantes inovações como a
moeda e a roda, o sistema aritmético sexagesimal, usado tanto para simples
contagem de tijolos como para o uso rudimentar da astronomia, o Código de
Hamurabi, o correio, a irrigação artificial, o arado, a vela, os arreios dos ani-
mais, a metalurgia do cobre e do bronze.
A arte mesopotâmica, assim como outras da época, possuía uma pre-
ponderante intenção funcional, destinada a incumbências bem precisas como
o serviço do poder e da religião. Dessa forma, serão os reis e sacerdotes que
irão pautar, em proveito próprio, a produção artística.
33
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

a) A arquitetura
Na arquitetura da Mesopotâmia, vislumbramos os primeiros traços de monu-
mentalidade característica da arte da antiguidade oriental. Ela irrompe dos
templos e palácios, principais construções na Mesopotâmia. Os sumérios,
excelentes construtores, fincaram os alicerces da sua arquitetura. Por ser a
região escassa em rochas pedregosas e rica em argila, o tijolo foi o material,
por excelência, de suas construções.
Dispostos compactamente, os tijolos configuravam um sólido e maciço
edifício, via de regra sem janelas. A luz e o ar provinham dos pátios internos e
das aberturas feitas no teto. Ao longo do dia, gigantescas portas e os desta-
ques dos muros provocavam um impressionante jogo de sombra e luz.
Uma típica construção da arte arquitetônica da Mesopotâmia era o zi-
gurate, espécie de torre-santuário construído de tijolos em forma piramidal.
Vários terraços eram sobrepostos uns aos outros, formando grandes degraus,
diferenciando-se da pirâmide egípcia de formato inclinado contínuo: cada an-
dar possuia área menor que a plataforma inferior, podendo ser retangular, oval
ou quadrada. O episódio da Torre de Babel, narrativa bíblica do livro do Gêne-
sis, refere-se à edificação de um imenso zigurate, cujas ilustrações costumam
representar a Torre na forma de uma gigantesca espiral.
As formas retangulares e quadradas nos remetem ao formato das pi-
râmides egípcias, nos induzindo à ideia de possíveis relações entre elas e os
zigurates. Procedendo tal hipótese permanece um grande mistério se levar-
mos em conta a existência de construções piramidais escalonadas similares
em regiões bastante longínquas como as do planalto andino (civilização inca),
da meseta mexicana (civilização asteca) e da Ásia. Delas sabemos que cer-
tamente possuíam uma clara função sagrada: altares, tronos, observatórios
astronômicos, oratórios, câmaras funerárias, tudo funcionava para propiciar a
comunicação dos homens com as entidades divinas.

b) A escultura
Nesta arte, manifestam-se mais nitidamente os estilos dos diversos povos
constituidores da civilização mesopotâmica: os esquemáticos relevos sumé-
rios, o naturalismo das placas penduradas semitas e acadianas, os suntuosos
relevos em tijolos vidrados coloridos da Babilônia. Porém, o destaque fica por
conta dos assírios, indiscutíveis mestres da arte escultórica que adornavam
as paredes de seus palácios com esplêndidos relevos de temática variada tais
como cruéis batalhas, cenas cortesãs ou caçadas com animais. Tais relevos
eram dotados de realismo e grande expressividade.
Merece ainda menção a arte escultórica do período assírio, com seus
baixos-relevos híbridos contendo o corpo de touros com cabeças de reis bar-
bados guardando as entradas dos templos.
O tijolo decorativo era usado nas entradas das cidades e salas. Era
igualmente comum o uso da escultura monumental representando demônios
34
MIRANDA, D. S. de

guardiães, representações com figura animal, bem como o uso do baixo-re-


A lei da frontalidade
8
levo narrativo em grande escala. As figuras humanas obedeciam ao princípio
O corpo humano egípcio
era sempre plasticamente da lei da frontalidade8, costume encontrado em várias manifestações plásticas
representado com a finalidade no Oriente Próximo Antigo, conforme veremos adiante na arte egípcia. Todas
de plasmar uma imagem essas obras careciam de autoria conhecida.
completa, mediante a escolha
criteriosa de suas partes mais
características, para articulá- 1.2. Egito
las num todo de sentido
Ao contrário da Mesopotâmia, o Egito, localizado ao norte da África, na grande
estético que expressasse
modos de vida e visões de e fértil bacia hidrográfica do Nilo (o país seria uma “dádiva do Nilo” na expres-
mundo de sua cultura. Mas são do historiador Heródoto), abrigou uma cultura bastante peculiar, graças a
a arte egípcia não permitia a seu relativo isolamento, mantendo pouco contato com outras civilizações em
inventiva pessoal de um estilo
individualizado. Este era o caso
grande parte de sua história.
da aplicação de um cânone A escrita e a monumentalidade das suas edificações, sobretudo de
pétreo: a lei da frontalidade seus templos e pirâmides, constituíram-se num fundamental legado material,
que foi respeitada por mais
de um milênio, em milhares revelando uma complexidade organizativa e uma riqueza de realizações artís-
de figuras humanas, de forma tico-culturais, cujo traço mais marcante foi, sem dúvida o papel que a religião
anônima, sem apresentar ocupava na vida do seu povo.
qualquer alteração. A cabeça
era sempre apresentada de Todo o sentido da existência, seja desta ou da vida pós-morte, encontra-
perfil, salvo os olhos que va-se contido nas diferentes expressões de sua arte religiosa. Isso certamente
eram sempre representados explica o fato do Egito ser visto como o país das tumbas e dos templos. O
frontalmente. No torso, os
ombros, o peito e o abdômen
desejo de ressurreição depois da morte parecia ser uma obsessão entre os
eram igualmente apresentados antigos egípcios. O Além não seria mais do que um reflexo e uma extensão da
de frente. As pernas e os vida terrena. Daí a profusão de cultos aos seus mortos e deuses.
braços sempre de perfil, com
os dedos das mãos e dos pés
O morto, em sua morada eterna, necessitava de provisões como alimen-
de tamanhos sempre idênticos, tos, bebidas, vestimentas, ferramentas, adornos e perfumes. Era necessário
sem diferenciar a mão direita manter a ordem e o equilíbrio cósmico, contando com o auxílio divino, que, gra-
da esquerda, transparecem ças à mediação do Faraó, outorgava paz e abundância a esse mundo. Suas
uma imobilidade solene.
ideias religiosas eram definitivamente estruturantes do sentido de suas vidas
e suas artes conferiam o sentido de triunfo sobre a morte. Daí a relevância de
nossa abordagem voltada para a arte religiosa e funerária da civilização egípcia,
compreendendo, sobretudo, a arquitetura, a escultura, o relevo e a pintura como
linguagens imprescindíveis para o entendimento da arte egípcia antiga.

a) A arquitetura
Os templos
O templo egípcio, ao contrário do uso corrente feito pelas religiões em geral
para o encontro de fiéis, era a morada da divindade, que possuía em seu
interior sua representação escultórica, alvo de um rito diário: lavada, vestida,
Figura 6 – A lei da frontalida- alimentada e objeto de oferendas, a divindade, em troca, concedia paz, pros-
de: pintura na câmara tumu- peridade e abundância nas colheitas propiciadas pelas boas cheias do Nilo.
lar de Nefertari, mulher de
Os templos do Antigo Império (3.200 a 2.300 a. C) eram, originariamen-
Ramses II.
te, simples e pobres, feitos de materiais perecíveis, deles restando poucos
35
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

vestígios arqueológicos. Não são também numerosos os do Médio Império


(2.000 a 1750 a. C.). No Novo Império (1580 a 1085 a. C.), com os faraós
reiniciando suas edificações, o Egito irá conhecer o apogeu de seu poderio e
o esplendor da arquitetura de seus templos, com o uso geral da pedra e a
monumentalidade característica de outras edificações como as pirâmides e
as estátuas. O país inteiro será inundado por templos e santuários fazendo
com que o povo convivesse à sombra de colossais construções que procla-
mavam ostensivamente a aliança entre o faraó e os deuses.
Muitas das edificações funerárias do período con-
seguem integrar a imponência da obra em si à sublimida-
de natural da paisagem rochosa das encostas egípcias,
como o túmulo da rainha Hatshepsut, que reinou entre
1511 a 1480 a. C. Majestoso e harmonioso, o templo se
integra ao cenário rochoso que lhe serve de fundo, cons-
tituindo um só ente estético em que o belo natural e o belo
humano se fundem numa só obra de arte arquitetônica.
Dentre as magnificentes construções do período,
os templos de Carnac e Luxor, dedicados ao deus Amon, Figura 7 – Templo de Hatshepsut
são os que nos chegam em melhor estado de conserva-
ção. Sua novidade reside no novo tipo de coluna, inspirada em motivos retirados
da natureza, como o papiro e a flor de lótus, a exemplo da colunata do templo
de Luxor, mandado construir por Amenófis III (entre o século XIV e XII a. C.),
composta de sete pares de colunas, com cerca de 16 m de altura, cujo capitel
(extremidade superior de uma coluna, pilar ou pilastra) representa a flor de lótus.
Alcançada a maturidade de sua criação, os templos ganham novas con-
figurações. Primeiramente, é erguida uma sólida muralha entre o espaço sagra-
do interno e o mundo externo. No interior do recinto sagrado, encontram-se os
pilares, constituindo seu elemento mais imponente, diante dos quais se erguem
grandes obeliscos honoríficos. Segue um pátio com pórticos. Por último, rodeado
pela câmara do tesouro, pela biblioteca e pela sala das oferendas, encontra-se o
santuário central, uma pequena sala escura onde reside a divindade.
A planta do templo obedece a certos recursos construtivos, como o teto
rebaixado articulado à elevação gradual do nível do solo para, assim, dar a
sensação de fechamento e convergência para a morada do deus homenage-
ado. O mesmo efeito é produzido com a redução gradual da luminosidade ex-
terna, que vai da ofuscante luz que brilha absoluta na entrada à total escuridão
que reina no local mais sagrado do templo.

As mastabas
Nos primórdios do Antigo Império, as tumbas eram câmaras mortuárias re-
vestidas com tijolos, construídas em grandes fossos escavados nos terrenos
arenosos do deserto e cobertas com simples construções retangulares. Esse
tipo de edificação recebeu o nome de mastaba (literalmente banco, derivado
36
MIRANDA, D. S. de

do árabe), por sua aparência lembrar um grande banco de pedra. Durante


todo aquele império, essa forma foi usada nas sepulturas das pessoas não
pertencentes à classe régia, com a pretensão de reproduzir a moradia terres-
tre do morto, reproduzindo o seu aspecto de morada, pois a mastaba era, ao
mesmo tempo, lugar de culto e uma morada para a eternidade.

A pirâmide: a escalonada e a clássica


As pirâmides, certamente o símbolo maior da arquitetura do antigo Egito, an-
tes do seu formato de laterais continuamente inclinadas da base ao seu vérti-
ce, partiram do formato da pirâmide escalonada de Saqqara, a tumba do faraó
Djoser, construída por volta de 2.800 a. C. Trata-se da primeira edificação
egípcia em verdadeira escala monumental, totalmente construída em pedra,
com seis enormes degraus. Caso excepcional, conhecemos o nome do autor:
o arquiteto Imhotep, chanceler do faraó Djoser. Atingindo uma altura de 62,5
metros, ela se ergue no interior de um recinto retangular que mede 278 por
545 metros, rodeado por uma grossa muralha de pedra.
A partir da IV dinastia do Antigo Império, a pirâmide ganha seu formato
pelo qual passou a ser mundialmente conhecida, uma gigantesca e suntuosa
tumba régia cujo sepulcro era colocado no interior da construção, buscando
assim proclamar a perfeita união do faraó com o símbolo místico do sol.
Entretanto, dentre todas as pirâmides, desta-
cam-se as três mais célebres localizadas no deserto
de Gizé: as Pirâmides de Quéops, Quéfren e Miqueri-
nos. A Pirâmide de Quéops é a maior delas, colossal
monumento de 230 metros de lado e 146 de altura,
com uma superfície de 54.300 metros quadrados.
Foi construída pelo impressionante ajuste de imen-
sos e pesados blocos de pedra, durante um período
de mais de vinte anos. A Pirâmide de Quéfren ainda
conserva o revestimento original de calcário na sua
cúspide (ponta alongada em seu vértice). A Pirâmide
de Miquerinos, menor em dimensão, possui duas câ-
Figura 8 – As três pirâmides do deserto de Gizé
maras funerárias e três pirâmides subsidiárias.
Junto à pirâmide de Quéfren, encontra-se a cé-
lebre esfinge* cujo rosto é o do próprio faraó Quéfren,
obra gigantesca com 20 metros de altura e 74 metros de cumprimento, em
forma de leão andrógino; a ação do vento e do tempo, ao longo dos séculos,
lhe conferiu uma aura de magia e mistério.
O costume do Antigo Império de sepultar os reis nos templos funerários
situados no interior das pirâmides, como lugar por excelência de culto ao fa-
raó que ali repousa, é mantido no império subsequente, embora as pirâmides
passem a ser menores e mais baixas.
37
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

b) A escultura
Dentro do princípio de uma arte voltada para a cultura da morte e da imortali-
dade do espírito, a escultura cumpria uma função muito precisa entre os egíp-
cios. Por acreditar convictamente numa vida eterna pós-morte regida pelos
deuses e pela figura divina do faraó, e para que o morto pudesse viver bem no
outro mundo, era imprescindível que seu corpo, morada de seu Ka, se con-
servasse intacto. Portanto, mumificavam os cadáveres mediante uma técnica
de embalsamento bastante sofisticada e desenvolvida.

Figura 9 – Máscara funerária de Figura 10 – Busto de Nerfertiti


Tutankhamon

A finalidade precípua das estátuas dos particulares (não pertencentes aos


estratos régios) era a de substituir o morto e receber as oferendas. As esculturas
representavam a morada do Ka, espécie do duplo do corpo ou energia vital do in-
divíduo, criado junto com a criação do corpo físico. Por isso, além da mumificação
do corpo físico, as estátuas exerciam um papel fundamental como representação
do Ka. Depois da morte, o Ka habitava no corpo mumificado ou nas estátuas que
o representavam, necessitando de comida e de bebida para continuar a existir,
sendo por isso necessário que os vivos realizassem oferendas.
Contando com a perícia e o esforço de uma legião anônima de artesãos
e artífices, era lavrada uma imagem idealizada da pessoa falecida, ainda jo-
vem, viçosa e vigorosa, com a coluna reta e o olhar fixo para frente, sem qual-
quer sinal de emoção (estilo que irá influenciar as primeiras esculturas gregas
– os kouroi, conforme veremos adiante), e com a inscrição do seu nome e
títulos, o que dotava a estátua de uma personalidade concreta.
Com o esplendor do Novo Império, época de maior contato com outras
culturas, inaugura-se um tempo de unidade que se manifesta na produção
38
MIRANDA, D. S. de

artística, na qual se observam, com nitidez, os influxos externos como conse-


quência da grande expansão que teve lugar durante o período.
Será, sobretudo, nos templos que verificaremos a manifestação de uma
grande inovação: a estatuária colossal com gigantescas esculturas do rei o
qual pode aparecer de pé, sentado ou em forma de múmia. O monarca, me-
diante sua estátua objeto de adoração, se apresenta como mediador entre
9
Os hipogeus o homem e a divindade e cujo poder desmesurado se percebe em seu des-
Por ocasião do Novo Império, comunal tamanho. Essas estátuas colossais e as esfinges com traços reais,
a tumba real sofreu uma pura encarnação da divindade para o homem comum, de quem recebiam
modificação radical: as preces e oferendas, eram colocadas nos antepátios externos aos templos.
sepulturas régias passaram
a ser túneis escavados A obra mais grandiosa obra de Ramsés II (século XII a. C.), o templo de
na rocha das encostas do Abu-Simbell, é um exemplar paradigmático da arte escultórica colossal do final do
deserto do Vale dos Reis, Novo Império: na parte externa da entrada do templo, quatro figuras rígidas e so-
próximo a Tebas. A despeito da lenemente sentadas, com mais de 20 m de altura, representam o poder do faraó.
inexistência de duas tumbas
iguais, elas apresentavam
No Antigo Império, encontramos um rico repertório de diferentes posi-
traços comuns, a exemplo ções e tipos de estatuária. Algumas de pé, outras com os homens na atitude
da escadaria, um corredor de caminhar, enquanto as mulheres mantêm as pernas juntas, com os braços
descendente abrindo colocados habitualmente ao longo do corpo, embora às vezes um braço se
para diversas câmaras e, dobre sobre o peito. Também são frequentes as estátuas em posição sentada
finalmente, a câmara do sobre um bloco, com os braços dobrados repousando nas pernas. São desse
sepultamento contendo o
período as estátuas de escribas, sentados sobre uma esteira ou no chão com
sarcófago real. No interior
da montanha tebana alguns as pernas cruzadas, lendo um rolo de papiro
hipogeus possuíam uma As estátuas podem ser individuais, mas também podem formar grupos ou
profundidade de mais de cem casais que podem estar acompanhados dos filhos. No Médio Império, a estatuária
metros. privada deixa de ficar fechada nas tumbas, destinando-se também aos templos
A esfinge Durante o Novo Império9, a escultura dos particulares procede dos tem-
O enigma da esfinge – plos, das casas e das tumbas, com imagens, salvo raras exceções, afastadas
incorporado pelos autores da da fidelidade aos retratados, pois adaptadas ao ideal do momento, geralmente
tragédia ática, como Sófocles, influenciadas pelas estátuas régias que mostram as pessoas na flor da idade,
para expressar a dor do herói embelezados pela moda e com os símbolos de sua posição social bem visíveis.
trágico Édipo que mata seu
próprio pai e casa com sua c) O artesanato mobiliário
própria mãe –, representa um
flagrante testemunho do influxo O repertório artesanal, a julgar pelo mobiliário encontrado nas tumbas, apre-
da cultura egípcia no mundo sentava grande riqueza de peças raras: camas de madeiras nobres marchete-
das artes e da cultura gregas. adas com outras madeiras, marfim e apliques de metais preciosos. Nas luxu-
Na narrativa mítica de Édipo, osas cabeceiras e dosséis, encontravam-se, penduradas, finas cortinas como
ele se vê frente a frente com a mosquiteiros, macios colchões vegetais com lençóis e colchas de puro linho.
esfinge que lhe desafia com o Foram encontradas, inclusive, camas dobráveis para viagem.
seguinte enigma: decifra-me ou
te devoro. Palanquins e cadeiras portáteis eram utilizados em percursos mais longos.
Para o ar livre eram utilizados guarda-sóis e tendas. Um grande número de pol-
tronas, cadeiras, banquetas e tamboretes era encontrado nos quartos e salões.
Na tumba de Kha, dignitário da XVIII Dinastia, foi encontrado um assento com um
buraco central para seu uso como vaso sanitário. A variada louçaria consistia em
peças esculpidas em pedras, outras de cerâmica decorada e algumas de ouro.
39
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

d) O relevo e a pintura O Escriba sentado


10

“Escultura em pedra calcária


A cultura egípcia foi uma das mais antigas a produzir um conjunto considerá- pintada, com as seguintes
vel de obras da arte da pintura, desenvolvido ao longo de três milênios e cuja dimensões: 53,7 cm de altura,
tradição foi marcada por rígidas convenções iconográficas que regulavam o 44 cm de largura, 35 cm de
profundidade. Foi encontrada
uso de imagens. Por todos meios e formas, a arte do relevo e da pintura de-
num sepulcro de um
sempenhava uma função mágica, visto que as imagens do faraó retratado cemitério do Antigo Império
deveriam proporcionar um modo de vida pós-morte similar à desfrutada em em Sacará [ou Saqqara,
vida e lhe assegurar seu sustento. mesmo local da pirâmide
A partir do Novo Império, a pintura passa a ser a arte preferida para o escalonada do faraó Djoser].
interior. Já o relevo refundido é reservado para os exteriores, mais resistente à Trata-se de uma obra de
autoria desconhecida,
exposição dos rigores do tempo. realizada entre 2620 e
Os templos funerários das pirâmides eram adornados com cenas varia- 2350 a.C. e que retrata,
das, como a oferenda de mantimentos para manter o faraó na vida pós-morte, provavelmente, um escriba
cenas de guerra e de caça ou o faraó em companhia dos deuses. A vitória so- ou um príncipe. Na atualidade
bre o inimigo era tema recorrente, simbolizando a supremacia do faraó, como encontra-se no museu do
Louvre, em Paris.
garantidor da ordem, da paz e da prosperidade.
Os escribas eram
No Novo Império, as tumbas são profusamente ornadas com pinturas importantes funcionários
e relevos. O rei, acompanhado pelos deuses, é tema próprio dos pilares e da do vasto império faraônico
sala de espera. As câmaras funerárias são adornadas com imagens e hieró- porque dominavam a escrita
glifos copiados, em folhas de papiros, dos textos escritos nos Livros do lnfra- e a leitura. Eram, então,
encarregados de transmitir as
-mundo e concebidos especialmente para decorar as tumbas reais. Ao incluir
determinações do faraó para
esses textos em seus sepulcros, os faraós se uniam ao ciclo solar para dele as mais distantes regiões.
renascer. Surgem também cenas de batalhas, totalmente estranhas no Antigo Além disso, podiam trabalhar
Império. Cenas de jogo e de dança adquirem maior complexidade. na administração militar ou
com os sacerdotes. De certa
e) O status de escriba forma contribuíram para
garantir a unidade do Egito na
A atividade que gozava de maior prestígio Antiguidade.
na alta burocracia da corte era a de es- A dúvida quanto à
criba, por pertencer à esfera próxima dos identificação da escultura
dirigentes. O monopólio da escrita confe- com um escriba é motivada
ria status a quem dela usava, converten- pela qualidade da obra. Os
do-o assim em fonte de autoridade. Altos cuidados com os detalhes
não eram comumente
burocratas costumavam relatar, em suas
dedicados pelos artistas
biografias, a trajetória nas carreiras ad- na representação dos
ministrativas com sucessivas ascensões funcionários da burocracia
devido à sua condição de escriba, o que do Império. Assim, pode ser
fazia deles serem bem próximos do faraó a figura de um príncipe em
e de outras esferas de poder. Num mundo alguma atitude própria da sua
condição”.
ágrafo, o homem que escrevia, lia e conta-
Autoria de Graça Proença,
va tinha a chave do poder. Os escribas no Editora Ática, 2001. Site:
Figura 11 – O Escriba sentado10 (Mu-
Egito pertenciam às minorias dirigentes. www. aticaeducacional.com.
seu do Louvre)
Altos personagens da corte incluíam o tí- br/imagens/complementos/
tulo de escriba entre os muitos outros de sua carreira. hda/img/imagem26.swf
40
MIRANDA, D. S. de

1.3. Creta
Para melhor entender o legado cultural que a Grécia antiga nos deixou, de-
vemos partir da história dos povos que gravitavam em torno do mar Egeu,
dando especial atenção para sua pujante produção mercantil articulada à an-
tiga estrutura escravocrata. A região em torno do Mar Egeu compreendia uma
vasta área entre a península balcânica (abarcada pela Grécia continental e o
Peloponeso) e a Ásia Menor. Foram várias as populações que iriam formar um
povo que passou a ser chamado de grego, designação dada pelos romanos.
Contudo, os próprios gregos se autodesignavam de helenos.
Trata-se de um contexto crucial para a compreensão da civilização gre-
ga, do seu pensamento, cultura e vida material, deixando-nos um impressio-
nante sistema de artes, mas, sobretudo, a invenção, por volta do século VII a.
C., de uma forma inusitada de pensar: a filosofia.
Os primeiros registros da região partem de um período pré-helênico, em
torno do terceiro milênio a. C. (a história da ilha de Creta), com referências à
sua esplêndida e rica cultura também conhecida como minóica (termo atribui-
do ao arqueólogo inglês Arthur Evans e originário do rei mítico Minos), cujo
apogeu se dá entre 1700 e 1450 a. C.
Os minóicos – graças à sua posição privilegiada como habitantes da
maior ilha do Mediterrâneo, no mar Egeu, cercada por vários povos do conti-
nente e exercendo um poder na região baseado no comércio marítimo (tha-
lassocracia, poder do mar em grego) –, desenvolveram uma impressionante
civilização urbana, cujo modo de vida girava em torno de grandes palácios
que eram, a um só tempo, centros administrativos, econômicos, religiosos
e políticos. O palácio de Knossos se destacou como o mais importante de
todos. Estudos de suas ruínas revelam que ele foi construído entre 1.700 e
1.500 a. C. e sua planta era bem evoluída, possuindo um pátio central cercado
por muitas salas, algumas delas agrupadas e ligadas umas às outras numa
ordem bem planejada.
De um modo geral, esses imensos palácios, com evidentes influxos da
arquitetura egípcia e de outras civilizações orientais, possuíam um pátio inter-
no, dezenas de aposentos, corredores e enormes depósitos. Seu refinamento
e luxo levavam-nos a contar com banheiros, privadas e bueiros. Além das
colunas em policromia de tons vivos e contrastantes, as paredes, os tetos e
pisos eram ricamente decorados com vistosos afrescos, um dos traços mais
notáveis da arte cretense.
De característica marcadamente naturalista, nela se observam nume-
rosas representações de plantas e animais, com uma acentuada paixão pelo
movimento rítmico e ondulante. As figuras humanas são igualmente constan-
tes com patente intenção ritualística.
41
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Enquanto Creta exerceu sua thalassocracia, a arte e cultura minóica se


espalharam pelas ilhas do Mediterrâneo e pelos povos do continente, inclu-
sive pela Grécia. Entretanto, o sistema palaciano minóico começa a decair
por volta de 1450 a. C. Depois de um breve período de pálida sobrevida de
seus tempos áureos, o palácio Knossos é incendiado em 1375 a. C. Invadida
e dominada pelos aqueus, povo vindo da Grécia, a civilização minóica perde 11
“Atualmente, grande parte
definitivamente sua posição de destaque no mar Egeu. dos pesquisadores acredita
Com características de uma gente aguerrida, os aqueus, povo de fala que foram os micênicos
grega, chegaram ao continente cerca de sete séculos antes (por volta de 2000 que fizeram a guerra
contra Tróia, da qual temos
a. C.), constituindo-se no curso da história, na poderosa civilização micênica, conhecimento por meio
dando claros indícios de uma intensa influência mínóica. A despeito disso, a dos poemas homéricos. Os
arte micênica apresentou traços próprios. Pintavam seus palácios com moti- locais descritos por Homero
vos distintos daqueles escolhidos pelos artistas cretenses: predominam cenas em seus versos podem ser
identificados com aqueles
de guerra e de caça, bem como desfiles de carros. em que os arqueólogos
Uma de suas obras de maior destaque – devido à sua monumentalidade, modernos encontraram o
força e agressividade –, é o Portal dos Leões, construído por volta 1250 a. C. Nes- maior número de vestígios
da civilização micênica.
sa escultura colocada em cima da entrada principal da muralha feita de imensos Além disso, os objetos
blocos de pedra, dois enormes leões parecem guardar a cidade de Micenas11. da ourivesaria micênica
A partir do século XII a. C., hordas dóricas invadem a Grécia continental encontram paralelo nos
objetos descritos pelo poeta
e a larga península do Peloponeso além das ilhas do mar Egeu. Os aqueus
na Ilíada e Odisseia. É o caso
se vêem forçados a migrar para o leste, para a Ásia Menor, onde fundam co- de uma expressiva máscara
lônias solidamente estruturadas, dissolvendo a sociedade ali estabelecida e funerária de um príncipe
substituindo a organização social agrária, patriarcal e tribal por uma poderosa micênico, encontrada
por Schliemann, que a
sociedade mercantil e artesanal baseada no comércio marítimo, em intenso
considerou como sendo de
contato com outros povos do Oriente. Agamenon, rei de Micenas,
Nas novas terras, os aqueus instituem o comércio baseado na moeda, que participou da guerra de
Tróia” (PROENÇA, 1989, p.
importante passo para a formulação do pensamento abstrato, criam o calen-
26).
dário e desenvolvem novas técnicas de cultivo. Dessa forma, surge uma rica
classe de comerciantes que irá competir com a velha e atrasada aristocracia
agrária, conseguindo superá-la. São alterações profundas e irreversíveis que
conduzem a sociedade grega a se tornar urbana e a adotar uma cultura laiciza-
da, ao contrário do pensamento mítico-religioso que predominava até então. As
formulações anteriores vão cedendo lugar a explicações de outro tipo e nature-
za: explicações racionais e abstratas que serão denominadas filosofia.
A Grécia (Hélade para os romanos) marcou esse período, no sentido de
ter experenciado as primeiras tentativas de explicações abstratas e racionais,
na medida em que definiu um conteúdo bastante preciso: uma cosmologia, ou
seja, uma explicação racional sobre a origem e a ordem do mundo, o cosmos,
afastando-se, pois, das explicações míticas do período anterior, conforme ve-
remos mais adiante.
42
MIRANDA, D. S. de

Seus historiadores afirmam que essa mudança foi possível graças à


prosperidade econômica das colônias gregas do leste (Ásia Menor) e do
oeste (Magna Grécia, ao sul da Itália) e à estrutura escravocrata que liberou
das funções de sobrevivência, setores das classes dominantes e possuido-
ras da riqueza.
O estímulo à filosofia e às artes, grande legado da civilização da Grécia
arcaica e clássica, teria partido do poder e riqueza dos comerciantes obtidos,
sobretudo, no período micênico, tendo compensado, assim, a falta de sangue
nobre da aristocracia agrária, com o próprio prestígio desses comerciantes,
conquistado pelo patrocínio às artes e à vida intelectual. Temos, assim, na
Antiguidade, uma antecipação, por vários séculos, do mecenato que caracte-
rizou o período de opulência da sociedade renascentista.
A ideia do trabalho como desonra aparece na sociedade grega, cujos
filósofos não cansam de proclamar o otium cum dignitate para ter-se uma
vida livre e feliz, para cultuar-se dentre outras coisas nobres, a filosofia, as
artes e as letras e para ter-se o cuidado com o vigor e a beleza do corpo pela
ginástica, dança e arte militar. O trabalho cabia aos escravos, como pena
advinda de sua condição de escravo, e aos homens livres pobres, como
desonra. Para Aristóteles, ação e ócio eram necessários, mas o ócio era
superior à ação, em razão do qual existia. Afinal, para o filósofo, o ócio era
nobre por ser a finalidade da ação.
A palavra scholé significa “tempo livre” ou “lazer”, daí derivando escola.
Para os antigos gregos, só era possível a uma pessoa se ocupar da ativida-
de do conhecimento, se ela estivesse liberada da obrigação do trabalho. As-
sim, o otium cum dignitate denotava o sentido de se dedicar aos estudos com
dignidade. Aos filósofos cabia a biós theoretikós (a vida contemplativa) em
oposição à vida ativa ou prática, onde o saber autotélico era visto como algo
inservível, ou melhor, um saber que servia apenas para si próprio.

2. Da narrativa mítica à arte do período arcaico


Para a análise da Antiguidade grega, a historiografia tradicional costuma des-
tacar quatro grandes períodos: homérico, também conhecido como período
mítico (século XII ao século VIII a. C.), arcaico (séculos VII e VI a. C.), clássico
(séculos V e IV a. C.) e helenístico (século IV ao século lI a. C.)
O impressionante legado artístico da antiga Grécia compreende esses
quatro períodos, cada qual com suas especificidades estilísticas. Porém, a
análise das diferentes linguagens e estilos necessita, muitas vezes, que não
seja feita de forma linear e estanque, usando, para isso, a recorrência de mo-
delos de obras de arte de épocas diferentes por meio de recuos, avanços e
abordagens simultâneas desses diferentes períodos.
43
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

2.1. Período homérico: o mito estrutura o sentido do mundo


Por um largo período, a sociedade grega era constituída por um conjunto de tribos
cujo rei-chefe era escolhido entre os chefes das várias tribos, elevado a tal posição
por apresentar a melhor genealogia. As decisões econômicas, políticas e militares
eram tomadas pelos conselhos compostos pelos chefes das tribos cujas deci-
sões mais importantes deviam ainda ser submetidas a uma assembleia que não
contava com a efetiva participação do povo que a elas comparecia. Na verdade,
seus membros apenas referendavam as decisões régias previamente tomadas
Entre os séculos IX e VIII a. C. aflorou a pólis, marcante invenção da civi-
lização grega, que a fará se notabilizar de todas as demais. Na verdade, as pó-
leis, ou cidades-Estado, eram constituídas pela cidade em si e pelo seu entorno,
com as terras que garantiam a produção de alimentos. Tratava-se de unidades
econômicas, políticas e culturais independentes entre si. Essa nova forma de or-
ganização política, além das transformações na vida social dos gregos, provocou
igualmente alterações fundamentais em suas mentalidades, hábitos e ideias.
Dentre elas podemos destacar duas. A primeira diz respeito ao ressur-
gimento da escrita, por volta do século IX a. C. Diferentemente da sua função
na civilização micênica, quando seu uso se restringia aos escribas e ao apa-
relho administrativo, a escrita ressurge com uma função muito mais pública,
ao divulgar aspectos da vida social e política dos gregos. Tornara-se públi-
ca por atender ao interesse comum, garantindo o que hoje denominamos de
processos transparentes e abertos, ao contrário dos interesses exclusivos da
estrutura cortesã à qual atendia anteriormente.
A outra alteração refere-se ao papel do rei que deixava de ter o coman-
do absoluto das decisões de natureza política, religiosa, econômica ou militar.
Elas passaram para a alçada absolutamente individual dos cidadãos da pólis,
após um processo de ampla discussão, tendo que contar depois com o apoio
dos conselhos e da assembleia. Assim, o destino da pólis passou a depender
de decisões humanas e laicizadas, fruto de uma interlocução coletiva de cida-
dãos e não de um único Rei divino.
Com tais procedimentos, estabeleceram-se as condições para os con-
ceitos de cidadania e democracia, fundamentais para o mundo grego. O caráter
humano e público das decisões, contudo só se desenvolveu plenamente bem
mais tarde, pois, durante certo tempo as leis eram promulgadas e exercidas por
aqueles que conheciam a tradição oral e os mitos, mediante sua interpretação.
Homero e Hesíodo são dois autores de fundamental importância para
o entendimento desse período. Obras como a Ilíada e a Odisseia de Homero
e Os trabalhos e os dias e Teogonia, de Hesíodo, além de constituírem docu-
mentos fundamentais para a compreensão histórica do período, constituem
igualmente fontes preciosas para desvendar as características do pensa-
mento então produzido.
44
MIRANDA, D. S. de

Homero teria vivido no século IX a. C na Jônia. Seus poemas épicos


cobrem dois momentos distintos: a Ilíada é uma narrativa de guerra que des-
creve o comportamento dos heróis da guerra de Tróia, que teria ocorrido entre
1280 e1180 a. C.; a Odisseia narra uma época de paz.
A figura de Homero está revestida de uma aura de mistério. Teria ele
realmente existido? Ou teria existido mais de um Homero? Ou ele seria uma
invenção da alma artística grega? Se existiu, era realmente cego? Ou tal con-
dição lhe conferia um ar a mais de mistério e magia, para quem a única visão
necessária seria apenas a do interior? Os dois poemas seriam fruto de uma
compilação e teriam sido redigidos com um século de diferença, após terem
sido transmitidos pela tradição oral?
A Ilíada apresenta feitos e fatos com características da civilização micê-
nica, como se viu. No entanto, é difícil isolar tais fatos de outros que se situa-
ram em épocas posteriores, como a da Odisseia provavelmente.
Hesíodo nasceu na Beócia, vivendo em fins do século VIII a. C. e início
do seguinte. Em seu poema mais conhecido, a Teogonia, Hesíodo narra a
genealogia dos deuses e do mundo. Em Os trabalhos e os dias narra a vida
no campo vinculada ao trabalho.
São patentes as diferenças entre os dois poetas, que nasceram em
épocas e lugares distintos. A obra homérica é marcada pela narrativa da vida e
do mundo, a partir de uma perspectiva aristocrática e voltada para a nobreza.
Hesíodo, ao contrário, coloca-se sempre na perspectiva das camadas popu-
lares, sobretudo a dos camponeses. Homero associava a noção de homem
às virtudes próprias da aristocracia. Já a concepção de virtude para Hesío-
do estava associada ao trabalho. Apesar das diferenças, ambos viveram um
mesmo momento histórico, época em que os gregos se emancipavam de ar-
raigadas tradições e preparavam um novo modo de viver.
O que mais ressalta é a afinidade das narrativas dos dois no que se
refere à relação entre o divino e o humano. A relação deuses-homem, explici-
tada por ambos, possui uma dupla característica. Em primeiro lugar, o homem
é valorizado na medida em que os próprios deuses eram humanizados com
aparência e sentimentos antropomorfizados. Os deuses eram, como qualquer
humano, portadores de sentimentos como amor, ódio, pena, vingança, que
poderiam ser dirigidos tanto a outros seres divinos como aos próprios huma-
nos mortais. Em segundo lugar, ambos os poetas estabeleram uma depen-
dência dos homens em relação aos deuses, vistos como seres imortais e com
amplos poderes para interferir em suas vidas. Se isso submetia os homens às
divindades, igualmente estruturava sentido às suas vidas, na medida em que
lhe conferiam uma razão de ser.
Outro importante aspecto nas narrativas míticas de ambos, no que se
refere à relação deuses-homem, situava-se na busca da compreensão do
cosmos e dos fenômenos da natureza. Se o cosmos é a boa ordem, busca-
45
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

ram igualmente uma organização do universo divino mediante a ordenação


dos deuses, cuja existência passava a ser vista dentro de uma certa ordem
hierárquica que, inclusive limitava seus poderes sobre a vida humana.
Ao contrário da tradição judaico-cristã que concebe o mundo criado
do nada, a tradição teogônica e cosmogônica grega buscava descrever uma
genealogia dos deuses, bem como a existência do cosmos, a boa ordem,
a partir da ordenação do caos, estado primeiro de um universo que sempre
existira antes de se tornar cosmos. A preocupação com a origem das coisas
que sempre partia de algo existente (para o grego era inconcebível a ideia de
algo ser gerado do nada, como o mundo criado por Deus conforme a narrativa
judaico-cristã), era abordada pelo mito e por meio de um estilo e modo que lhe
são bem próprios. Vejamos uma passagem típica retirada de Hesíodo:
Em verdade, no princípio houve Caos, mas depois veio Gaia (Terra) de am-
plos seios, base segura para sempre oferecida a todos os seres vivos, [para
todos os Imortais, donos dos cimos do Olimpo nevado, e o Tártaro (Abismo)
brumoso, no fundo da Terra de grandes sulcos] e Eros, o mais belo entre os
deuses imortais, o persuasivo que, no coração de todos deuses e homens,
transtorna o juízo e o prudente pensamento.

De Caos nasceram Érebo (treva) e a negra Noite. E da Noite, por sua


vez, saíram Éter e Dia [que ela concebeu e deu à luz unida por amor a
seu irmão Érebo]. Gaia logo deu à luz um ser igual a ela própria, capaz
de cobri-la inteiramente - Urano (Céu constelado) que devia oferecer aos
deuses bemaventurados uma base segura para sempre. Ela pôs também
no mundo os altos Montes, agradável morada das Ninfas, habitantes de
montanhas e vales. Ela deu à luz também a Ponto (Mal) de furiosas ondas,
sem a ajuda do terno amor.

(...)

Todos os que nasceram de Gaia e Urano, os filhos mais terríveis - o seu


pai lhes tinha ódio desde o nascimento. Logo que nasciam, em lugar de os
deixar sair para a luz, Urano escondia todos no seio da Terra e, enquanto ele
se deleitava com esta má ação, a imensa Gaia gemia, sufocada nas suas
entranhas por seu fardo. Ela imagina então uma artimanha cruel: produz
uma espécie de metal duro e brilhante. Dele faz uma foice grande, depois
confia seu plano a seus filhos. Para excitar sua coragem, lhes diz, com o
coração cheio de aflição: "Filhos saídos de mim e de um pai cruel, escutai
meus conselhos e nós nos vingaremos de suas maldades, pois, mesmo
sendo vosso pai, ele foi o primeiro a maquinar atos infames". (Hesíodo, Te-
ogonia, 116-132,153-210, apud ANDERY et al., p. 30)

Mesmo admitindo que mito e logos (v. glossário) são esferas distintas,
na medida em que o mito, ao contrário do logos, não permite o discurso dialó-
gico do contraditório, da argumentação e contra-argumentação, o mito abriga
46
MIRANDA, D. S. de

em seu interior, uma racionalidade, ainda que fechada em si mesma, que bus-
ca dar sentido ao mundo e à vida daqueles que a adotam.
No mito, a noção de origem confunde-se com a do nascimento e a no-
ção de produzir com a de gerar. Busca-se o sentido da vida na medida em
que, mediante a exposição genealógica, são desvelados os gestores (pai e
mãe), o que é igualmente buscado nas teogonias (racionalidade mítica) quan-
do somos projetados na escala cósmica.
Mediante sucessivos nascimentos, frutos da união e/ou confronto de for-
ças antagônicas, ficava estabelecida a ordem no mundo e entre os deuses. O
mundo dos deuses ordenado pela racionalidade mítica refletia o mundo orde-
nado dos homens e, por essa mesma racionalidade do mundo ordenado dos
deuses e dos mitos, estabelecia-se uma racionalidade para a vida humana.
Segundo o estudioso francês dos mitos, Vernant, tal racionalidade en-
volvia uma ambiguidade: "(...) operando sobre dois planos, o pensamento
apreende o mesmo fenômeno, por exemplo, a separação da terra das águas,
simultaneamente como fato natural no mundo visível e como geração divina
no tempo primordial" (VERNANT, 1973, p. 300)
Caberá ao período que se segue assumir a tarefa de superar a ambigui-
dade contida no mito e dar um novo caráter à elaboração desse pensamen-
to. Ele havia sido preparado pelos novos tempos trazidos pelo pensamento
racional laicizado e gestado no interior da pólis, onde os cidadãos participam
da vida pública, mediante as discussões da ekklesia *realizada na ágora*, e
12
Séries harmônicas movido pelo tipo novo de pensar advindo de pessoas especiais promotoras do
Uma corda esticada vibrando pensamento filosófico.
em dada frequência provoca
ressonâncias contínuas, 2.2. Período da Grécia arcaica: o mundo é dotado de racionalidade
mantendo relações
numéricas constantes Iniciado em fins do século VIII e indo ao começo do século V a. C., para a
entre si. Tomando o dó história da Filosofia, este período é também conhecido como pré-socrático. O
como 1º harmônico (nota
mito cede lugar ao logos como forma de explicar o universo. A denominação
fundamental), o 2º harmônico
é o mesmo dó, uma oitava de período arcaico vem de arkhé * (origem das coisas). Deve-se à caracterís-
acima; o 3º é o sol, que tica do pensamento dos primeiros filósofos, como Tales de Mileto (c. 625 - 548
compõe um intervalo de 5ª a. C.), Anaximandro (c. 610 - 547 a. C.), Pitágoras de Samos (c. 580 - 497 a.
justa com o 2º harmônico. C.), Heráclito de Éfeso (c. 540 - 470 a. C) Anaxímenes (c. 583 - 528 a. C.), que
O 4º é o dó, estabelecendo elaboraram explicações sobre a origem e a constituição do universo, identifi-
com o sol (3º harmônico)
cando, nos elementos como água, fogo, ar, terra, bem como no número ou no
um intervalo de 4ª justa;
o 5º harmônico é o mi, indeterminado (ápeiron), o princípio uno e originário de tudo.
estabelecendo um intervalo
de 3ª justa com o dó, e assim a) A música
por diante, conforme se pode Interessa-nos, examinar, de perto, a originalidade do pensamento pitagóri-
ver no seguinte exemplo:
co, responsável por uma inédita formulação teórica sobre a ordem do uni-
verso baseada na música e nas relações intervalares físico-matemáticas
das séries harmônicas12.
47
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

“E de fato, tudo o que se conhece tem número. Pois é impossível pen-


Filolau de Crotona (século
13

sar ou conhecer algumas coisas sem aqueles” (Filolau de Crotona13). Os pita- V a. C.) apud Andery et alii,
góricos não viam o número como mero símbolo, senão como princípio consti- 2000, p. 40. Filolau foi um
tutivo (arkhé) da estrutura do cosmos. Pelo conhecimento de suas relações e dos maiores divulgadores da
doutrina pitagórica.
da harmonia cósmica, todo o universo tornava-se cognoscível.
Número e harmonia eram a condição necessária para a explicação da
existência do universo. Assim, os pitagóricos concebem a música como algo
fundante da ordem do ser. Existe uma racionalidade arquetípica no âmago
das coisas e do cosmos, o que era evocado a partir da teoria das séries har-
mônicas. Dessa forma, os pitagóricos incorporam a música a uma cosmolo-
gia: eis aqui um belo exemplo da diferença entre o pensamento mítico (período
homérico) e o pensamento racional filosófico (período arcaico).
No primeiro período, a cosmologia se ocupa de deuses e homens que
se vêem imbricados numa complexa narrativa genealógica dos fatos de na-
tureza mítica. No segundo, os pitagóricos estabelecem uma cosmologia que
funda um princípio ordenador a partir dos sons musicais: o princípio de que as
relações intervalares são de ordem físico-matemática, ampliando tal princípio
para todo o cosmos, incluindo os astros e o mundo humano (a pólis). Trata-se
do mundo visto como ordem harmônica. A música seria o agente regulador da
harmonia cósmica, que, por sua vez, ressoaria na ordem social.
O conceito de harmonia estendido às diferentes esferas da existência
– a ordem epistêmica, ética e estética – passa a significar que verdade, virtu-
de e beleza expressam diferentes dimensões da harmonia, contidas no belo,
bom, justo e verdadeiro ou, conforme o princípio da Paidéia (formação dos
jovens): a busca do ideal do kalós kai agathós,o belo e o bom. Esse conceito
de harmonia deriva da matriz cosmogônica expressa pelas propriedades dos
sons musicais contidos nas séries harmônicas. Na verdade, os gregos não 14
Ditirambo do grego
concebiam a música como arte, como hoje a concebemos, mas como o que ditýrambos:
então se concebia como ciência. Era uma ode entusiástica
de intenso teor apaixonado,
b) O teatro entoada por um coro e
constituída por uma narrativa
O drama
recitada pelo corifeu, espécie
Outra rica herança deixada pelos gregos refere-se às artes cênicas. O anti- de solista; a parte coral
era de responsabilidade
go teatro grego teria forte procedência nos cultos dedicados a Dioniso, deus
de personagens vestidos
grego (Baco para os romanos) da festa e do prazer, da desmesura e da em- de faunos e sátiros (figura
briaguês. Filho de Zeus com a princesa Sêmele, foi o único gestado com híbrida, meio homem, meio
uma mortal. Durante as celebrações em sua honra, em meio a procissões e bode), acólitos do deus
Dioniso, importantes figuras
com o auxílio de fantasias e máscaras, eram entoados cânticos, ditirambos14,
nos cultos a ele dedicados.
que, mais tarde, deram formas às representações plenamente cênicas como
hoje a conhecemos mediante encenações consagradas.
48
MIRANDA, D. S. de

A tragédia ática – certamente a maior invenção das artes cênicas da


Grécia, provavelmente surgida no século VI a. C. – teria tido suas protofigura-
ções nos ditirambos. Lembremos que o nome tragédia vem de trágos e óde
(respectivamente bode e canto, em grego).
Os corais ditirâmbicos, em honra a Dioniso, se apresentavam num local
circular com um altar no centro (orkhestra, lugar de dançar). As primeiras re-
presentações possuíam um caráter religioso, dedicadas a Dioniso.
A partir do século V a. C., na gestão de Péricles, dá-se o grande flores-
cimento da cultura e das artes gregas, inclusive do teatro. Péricles teria usado
esse florescimento para obter a opinião favorável da população visando à im-
plementação de seus planos políticos. Nesse contexto, chamado século de
Péricles, surgem os autores trágicos: Ésquilo, Sófocles e mais tarde Eurípides.
O teatro grego se enriquecera ao incorporar novos elementos como o uso da
mekhané, um artifício especial lembrando um tipo de guindaste que trazia um
dos deuses por cima do palco. Daí a expressão latina deus ex machina, literal-
mente "um deus surgido da máquina", que se refere a um inesperado artefato
artificial ou evento introduzido repentinamente para resolver uma situação ou
desemaranhar uma trama. Muitas peças terminavam com um deus sendo
literalmente baixado pela mekhané, para amarrar as pontas soltas da trama.

Figura 12 – Teatro de Dioniso em reconstituição do século XIX

Um típico exemplar da estrutura dramática do período áureo da tragédia


pode ser assim descrito: a trama gira em torno das vicissitudes do herói, apre-
sentado como um vencedor no esplendor da vida e que se vê, de repente, víti-
ma de um golpe de infortúnio inesperado que o arrasta para a desgraça, o que
provoca um sofrimento insuportável, ao levar o herói ao esquecimento e à perda
de sua glória. Em Édipo Rei de Sófocles, obra-prima da arte trágica que ilustra
49
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

a impotência humana diante do destino, o herói torna-se rei de Tebas, casando-


-se com a própria mãe Jocasta, recém viúva do rei Laio, o pai que matara. Seu
destino sofre uma volta de 180º graus quando descobre a verdadeira história.
Ao conteúdo trágico da trama subjaz uma noção de justiça do direito na
Grécia Arcaica. Pelo instituto da vendeta (vingança de sangue), de uso nas
antigas culturas do Mediterrâneo, graças ao legado das sociedades organi-
zadas por relações de parentesco, cabia a reparação da ofensa pela família
ofendida. É patente a alteração dessa noção na Grécia Clássica, quando ir-
rompe na trama trágica um novo direito, sobretudo em Eurípides. Este era vis-
to por Nietzsche como autor decadente por substituir os elementos estéticos
de intensidade patética (do grego páthos: paixão, sentimento intenso) típicos
da tragédia ática, por tramas racionais.
Se Eurípides retoma temas utilizados por seus antecessores, por outro
lado, inspira-se no pensamento filosófico socrático-platônico de seu tempo,
noções advindas da consolidação da pólis: um novo direito, guiado por mode-
los racionais de investigação da verdade.
Eis um quadro sintético dos três maiores autores trágicos, com o acrés-
cimo de um comediógrafo, uma vez que a comédia é outro gênero importante
do grande teatro grego, porém visto como gênero menor por filósofos do perí-
odo clássico como Platão e Aristóteles.
Ésquilo (c. 525 a 456 a. C.)
Principal obra: Prometeu acorrentado.
Trama principal: o castigo de Zeus infligido a Prometeu por ter roubado
o fogo do Olimpo e doado aos mortais.
Sófocles (c. 496 a 406 a. C.)
Principal obra: Édipo Rei
Tema principal: v. acima.
Eurípides (c. 484 a 406 a. C)
Principal obra: As troianas.
Tema principal: fim da guerra de Tróia a partir do universo feminino: mu-
lheres prisioneiras esperam o embarque para novos lares.
Aristófanes (c. 445 a.C. a 386 a. C.) dramaturgo considerado o maior
representante da comédia grega clássica.
Principal obra: As rãs, obra-prima da arte da comédia.
Tema principal: Dioniso desce ao Hades com o seu criado Xântias

A Arquitetura
Para as representações cênicas, os gregos contavam com uma imensa in-
fraestrutura de espaço. Eram grandiosas edificações feitas no declive das
encostas rochosas, com excelente aproveitamento do cenário natural e com
centenas de degraus feitos de pedra para a assistência: tratava-se de uma
50
MIRANDA, D. S. de

imensa construção circular, em forma de anfiteatro, que continha vários espa-


ços, cada um com funções específicas:

1) A orkhéstra: espaço cênico em cujo centro ficava a thymele, um altar


dedicado a Dioniso. Era uma área circular em terra batida ou com lajes de
pedra, situada no centro das bancadas, onde o coro cantava e dançava e
os atores realizavam sua interpretação.
2) O theatron: o auditório propriamente dito dedicado à assistência (theatro e
theoria possuem o mesmo étimo theo com o sentido de contemplar).
3) O eisodos: os dois acessos a cada lado da orkhéstra para o coro entrar e
sair de cena.
4) A skene: local atrás da orkhéstra, cuja função inicial era servir de uma
espécie de camarim destinado para guardar o vestuário e também para
os atores se vestirem. Depois passou a representar a fachada de um
palácio ou templo, sendo também palco para atuação.
5) A mechané: grua ou guindaste para elevar atores, mecanismo para o uso do o
uso do artifício do deus ex machina.
Um dos aspectos mais impressionantes do anfiteatro grego refere-se à
sua acústica. Levando em conta a distância entre o ator que representava no
espaço cênico da orkhéstra e os espectadores sentados na última fileira da
bancada de pedra que abrigava a plateia em círculos concêntricos, era real-
mente espantoso o fato de que ele se fazia ouvir de forma clara.
A bem da verdade, o ator representava com máscaras (persona em latim,
por onde soava e passava a voz do intérprete), cujo volume era ampliado devi-
do à forma como eram confeccionadas. Dessa forma, além de ter a função de
levar a voz para toda a plateia, as máscaras tinham outra função: possibilitar as
51
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

pessoas de acompanhar a ação cênica pelas expressões


que mostravam, ora de dor, ora de alegria bem como de
compaixão, espanto ou outros sentimentos e afetos ne-
cessários à trama encenada.
Vários desses anfiteatros, construídos sobretudo
no período helenista, com a difusão da cultura grega pela
unificação promovida por Alexandre Magno em vários
países que integravam seu império, chegaram até hoje
relativamente bem conservados.
Porém, o anfiteatro que mais nos impressiona é o
de Epidauro, por sua beleza majestosa e magnitude, sua
excepcional acústica, e por tudo estar em excelente es-
tado de conservação. Construído segundo o costume do
aproveitamento da vertente de uma montanha, com um
Figura 13 – Máscara teatral
diâmetro de 112 metros e 32 filas de assentos na parte
baixa, 20 na parte central e 24 na superior, seu theatron
possui a capacidade para receber 14.000 espectadores.
Reza a lenda que mesmo o som de um pequeno objeto jogado ao chão
do palco era ouvido por qualquer pessoa da plateia, independente do local da
bancada do theatron.
Localizava-se também em Epidauro, no Peloponeso, às margens do
Mar Egeu, o templo de Esculápio, deus da medicina, famoso centro que atraía
doentes de várias partes da Grécia e de outros países vizinhos procurando
a cura. Muitas das encenações no Epidauro estariam ligadas às atividades
medicinais do culto a esse deus.

Figura 14 – Teatro de Epidauro Figura 15 – Teatro de Epidauro com enclina-


ções contemporâneas
d) Arquitetura e escultura
Junto com as edificações dos teatros, a arquitetura grega notabilizou-se,
igualmente, pelos seus templos. O surgimento de uma edificação voltada para
o culto independente em relação ao restante de outros compartimentos é um
dos traços mais destacáveis da arquitetura grega.
52
MIRANDA, D. S. de

Seus primeiros templos foram edificados no século VII a. C., sob forte infuxo
das plantas das casas micênicas que apresentavam um compartimento central
envolto por colunas, em forma de cabana de madeira, pedras ou tijolos de argila.
Os templos com colunas de pedras só foram construídos depois do
século VI, com a missão de proporcionar uma residência ao deus homenage-
ado, representado por sua estátua, com a comunidade reunida em torno dos
altares erigidos para a execução dos sacrifícios.
Ao contrario da monumentalidade típica da arquitetura oriental, o templo
grego caracterizava-se pela multiplicidade de suas formas e simplicidade de
seu sistema construtivo, constituindo-se numa das mais grandiosas edifica-
ções da arquitetura religiosa (v. texto complementar sobre a arte simbólica e a
arte clássica na concepção da estética do filósofo Hegel)
A planta nuclear do templo era formada pelo pronau. Todo esse núcleo
era envolto por uma série de colunas chamada peristilo. Com variações míni-
mas de uma região a outra, a planta arquitetônica dos templos contava com
três compartimentos: uma sala central retangular – nãos - de maior dimen-
são (onde ficava a imagem do deus), precedida de um pórtico – pronau -,
e seguida de um aposento posterior - opistodomo.
A colunata exterior podia possuir algumas fileiras de colunas na frente
ou atrás do templo ou rodeá-lo completamente, formando o peristilo mencio-
nado. Em cidades muito prósperas, o peristilo podia contar com duas séries
de colunas em torno do núcleo do templo. Sua função era suportar o peso da
cobertura de duas águas, construída normalmente em madeira. O templo er-
guia-se solidamente sobre uma base de pedra, o estereobato, o degrau mais
elevado de um lance de três.
Do telhado inclinado em duas águas, configurava-se, no pórtico de en-
trada e nos fundos, um espaço triangular sobre a cornija (parte superior do
entablamento onde se encaixa o telhado), nas partes que se opunham em seu
comprimento. Esse espaço, denominado de frontão, era ornado com escultu-
ras de figuras divinas, animais, cenas da vida cotidiana.
Arcos e abóbodas estão ausentes, pois o que ressaltava eram as li-
nhas retangulares. O núcleo do templo era fechado, formado por um ou mais
compartimentos onde era colocada a estátua da divindade homenageada.
As paredes dos templos poderiam receber desenhos, mas nada dessa arte,
como veremos adiante, foi conservado e chegou até nós. As colunas susten-
tavam um entablamento horizontal que continha um frontão. Esse conjunto
era construído segundo os modelos das ordens dórica, jônica e, posterior-
mente, a coríntia. Ao contrário desse conjunto, cujas colunas apresentavam o
fuste arredondado e liso ou com caneluras, havia edificações onde estátuas
externas ao núcleo do templo desempenhavam o papel de sustentar o enta-
blamento denominadas de cariátides.
53
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Figura 16 – As cariátides no Erectéion.

e) As ordens arquitetônicas gregas


A expressão ordem serve para identificar estilos arquitetônicos gregos. As
suas formas estéticas são configuradas mediante desenhos lógicos e propor-
ções matematicamente calculadas com a finalidade de transmitir equilíbrio,
harmonia e proporção. Espécie de cânones da arquitetura, cada estilo esta-
belece a regularidade de suas disposições plásticas bem como as normas de
proporcionalidade de suas edificações, que ganharam consistência no curso
dos distintos períodos da história da arte grega, do período arcaico ao hele-
nismo e nos períodos posteriores que receberam influência e características
clássicas, a exemplo do período renascentista e neoclássico, conforme vere-
mos mais adiante.
As principais ordens são a dórica, a jônica e a coríntia. As ordens roma-
nas, também chamadas ordens latinas (a toscana e a compósita), são adap-
tações posteriores.
O estilo dórico, mais simples e despojado, tem procedência egípcia.
Na Grécia adquiriu traços próprios. O ornamento mais evidente desse estilo
severo é identificado nas caneluras do fuste (corpo da coluna).
O jônico, estilo acrescido ao dórico original, surgiu na Jônia, uma das
colônias gregas da Ásia Menor. Sua principal diferença em relação ao estilo
dórico encontra-se no capitel (parte superior da coluna), com volutas ou espi-
rais, e, no fuste, com caneluras mais profundas. Com maior preocupação com
efeitos decorativos, podia ter seu capital ornado por duas volutas.
O estilo coríntio prima por ser mais esbelto e adornado, Na Renascen-
ça, foi apelidado de ordem feminina. Tornou-se famoso pelo seu capitel mais
alto em forma de sino invertido e ornado com motivos vegetais: folhas de acan-
to, louro ou oliveira.
54
MIRANDA, D. S. de

Os estilos dórico e jônico são mais utilizados no período arcaico bem


como no período clássico (v. Partenón) e o coríntio surge mais tarde.
Já no mundo greco-romano, as ordens derivadas das gregas sempre
apresentam aproveitamento das originárias. Assim, a ordem toscana se apro-
xima mais da dórica, porém em proporções menores, com um pedestal sa-
liente, não existente no original, sendo constante nos primeiros edifícios de
Roma. A ordem compósita coesiona os estilos mais adornados, a exemplo
das volutas jônicas e das folhas coríntias.

Figura 17 – As três ordens gregas: dórica, jônica e coríntia

f) Transformações de estilos da escultura grega

A arte escultórica grega oscila entre a autonomia das


peças e a função de complemento estético em edifícios
públicos laicos ou religiosos, se é que se pode fazer tal
distinção numa sociedade onde as relações entre estado,
sociedade e culto encontravam-se estreitamente imbrica-
das. Segundo historiadores da arte, os gregos começaram
a esculpir grandes figuras de homens em torno do final do
século VII a. C., usando o mármore. Era nítido o resultado
não somente estético, transpirando influências do Egito,
como também a técnica de esculpir em grandes blocos.
Mas, se os egípcios buscavam figurações mais realistas,
a concepção grega era a própria representação idealizada
da figura humana, buscando nela o belo em si mesmo.
Figura 18 – Kouros
55
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Ambos, o grego e o egípcio de suas épocas, apreciavam a simetria na-


tural do corpo humano. Encontramos tal simetria nos kouroi (plural de kouros,
homem jovem em grego), famosas estátuas do período das figuras masculi-
nas nuas, eretas, em rígida posição frontal e com o peso do tronco do corpo
distribuído igualmente sobre as duas pernas. Se o influxo egípcio, na estética
e na técnica, era patente, o mesmo não ocorria quanto à função da escultura,
uma vez que, na Grécia, onde o artista não estava submetido a convenções rí-
gidas, ela não tinha funções estritamente religiosas, podendo, assim, destinar
as estátuas para outras funções. Graças a isso, o estilo pôde se transformar
mais livremente. Uma das primeiras e mais nítidas dessas transformações foi
o abandono da postura rígida e forçada dos kouroi.
As estátuas de figuras humanas passa-
ram a expressar uma nova postura: a cabeça
poderá ter uma leve inclinação para um lado,
abandonando assim a fixidez do olhar; a posi-
ção pesada do corpo, apoiado rígida e igualmen-
te sobre os dois pés, cede lugar a um corpo que
descansa apenas sobre uma das pernas, desfa-
zendo o cânone do eixo simétrico anterior, pro-
vocando, inclusive, uma leve diferença na linha
dos quadris, com um lado um pouco mais alto.
Na busca de maior plasticidade na forma
das estátuas, o mármore revelou-se inadequa-
do: pesado demais, ele se quebrava sob seu
próprio peso, devido ao desequilíbrio das par-
tes do corpo não apoiadas. O mesmo ocorria
com o peso dos braços suspensos da estátua.
A solução foi encontrada no uso do resistente
bronze, permitindo assim a busca por maior
movimento plástico. a alternância entre a imo-
bilidade tensa e a flexibilidade relaxada dos mo-
vimentos. Duas obras famosas – o Discóbolo Figura 19 – Doríforo de Policleto
(lançador de disco) de Míron e o Doríforo (lanceiro) de Policleto –, cujos originais
em bronze se perderam, restando-nos cópias romanas, são exemplos de onde
é possível verificar a imobilidade do tronco e o movimento dos membros.

2.3. Características das artes gregas


O sentido de arte para os gregos sempre apresentou um indelével traço de
arte pública, pois cabia à pólis o patrocínio das obras, como templos, teatros,
praças, fontes, etc., bem como das artes cênicas, a exemplo das comédias
e tragédias. Mesmo quando encomendadas por particulares, a exemplo de
peças de escultura, as obras de arte adquiriam um caráter público pela sua
exposição para além da esfera do privado.
56
MIRANDA, D. S. de

Nas artes plásticas, era evidente a combinação do naturalismo com


a idealização do belo na figura humana, expressa nos detalhes dos corpos,
como, por exemplo, o vigor dos músculos, o movimento das pernas, tendo
como contraponto a sobriedade do estilo, no limite do severo e do despoja-
do. Ao contrário do que se supôs durante muito tempo, foi possível, com as
pesquisas mais recentes, concluir que as superfícies das obras de escultura
e arquitetura gregas recebiam acabamentos em policromia, como forma de
realce decorativo da estatuária e das edificações.
Alguns artistas famosos como Praxíteles deixaram registrado que suas
obras só se encontravam acabadas depois de recobertas com pinturas, dan-
do-lhes portanto uma aparência final bem diversa do que hoje é apresentado
nos museus espalhados pelo mundo afora.
Como forma de aproximação da estética policrômica original, a Glipto-
teca de Munique organizou, em 2004, uma exposição intitulada Bunte Götter
(Os Deuses Coloridos), com réplicas, em cores supostamente originais, de
obras importantes, com resultados surpreendentes.
Pouco restou de vestígios da pintura grega, pois muita coisa se perdeu
devido à fragilidade de seus suportes. Os mais usuais eram os muros dos
templos e os vasos e outras cerâmicas. O pouco que sabemos deve-se a
fontes literárias da época sobretudo dos filósofos do período clássico, como
Platão e Aristóteles, pensadores que se dedicaram à reflexão das artes de sua
época, conforme veremos no capítulo a seguir. Atribui-se à cidade de Corinto,
no período Arcaico, o local das primeiras produções de vasos decorados com
silhuetas em cor preta, associadas a motivos geométricos ou vegetais.
Na Grècia clássica, Atenas tomou
a si o primeiro posto da produção e expor-
tação da arte da cerâmica, nela imprimin-
do a seguinte característica: a pintura ne-
gra da superfície dos vasos constratava
fortemente com as figuras pintadas em
dourado e mais raramente, em vermelho.
Os temas mais usuais dessas pinturas
em cerâmica eram divindades como Dio-
niso ou Apolo, figuras míticas da narrativa
homérica como Aquiles, representações Figura 20 – Cena representando uma
da tragédia, a coroação de atletas dos parte do coro
jogos olímpicos, músicos tocando instru-
mentos como o aulos, etc.
57
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Texto complementar
Texto 1
“Para Nietzsche, os gregos criaram a filosofia porque não teriam temido o dilaceramen-
to, a dualidade, o lado cruel e sombrio dos humanos e da natureza. Longe de serem os
homens da moderação ou da medida, seriam as criaturas da desmedida - a hybris- e da
luta sem tréguas entre os contrários - do agón, palavra grega que significa: batalha, luta,
jogo, disputa interminável entre os opostos. Os gregos, antes de inventarem a filosofia,
inventaram o que daria origem a ela: a tragédia.
Que é a tragédia? Culto religioso (só depois transformado em obra teatral), a tragédia
narra a morte e o renascimento do deus Dioniso e, ao narrá-los, expõe o princípio bárba-
ro, cruel, desmedido, de embriaguez e pessimismo, de lutas subterrâneas entre poderes
titânicos na batalha do sofrimento para fazer sair da indiferenciação caótica da matéria a
individuação organizada das formas. O princípio que guia a tragédia é a desumanidade e a
barbárie que fecundam o espírito grego, dando-lhe seu momento ou princípio dionisíaco.
Ao lado do princípio dionisíaco, oferecido pela tragédia, os gregos, afirma Nietzsche,
inventam um outro princípio, contrário e oposto ao primeiro, responsável pelo surgimen-
to da filosofia: o princípio da luminosidade, da forma perfeita, da individuação, da medi-
da ou moderação e da serenidade, figurado por Apolo, deus da luz e da palavra, patrono
da filosofia. Esse princípio é denominado por Nietzsche de apolíneo.
A antítese insuperável entre o dionisíaco e o apolíneo governaria o espírito dos gregos.
Somente por terem sido conquistadores cruéis, escreve Nietzsche, senhores de escravos,
dominadores de outros povos, animados pelo espírito agonístico da luta, da disputa e do
jogo, movidos pelo impulso das desarmonias da desmedida, divididos em suas cidades em
dezenas de facções contrárias sempre em guerra, puderam colocar como ideal inalcançável
o apolíneo: a estatuária, a poesia lírica e épica e a filosofia exprimiriam a busca desse ideal de
luz e serenidade, contrária à realidade brutal e sangrenta da vida grega”. (CHAUÍ, 2002, p.27)

Texto 2
Arte simbólica ou oriental: para o filósofo Hegel o simbolismo da monumentalidade orien-
tal é uma espécie de protohistória da arte, em que religião e arte encontram-se “promiscu-
amente” enredadas. Na arte simbólica “a ideia [conteúdo da obra de arte] é abstrata, não
encontrou ainda a forma absoluta; e a forma em que aparece é lhe exterior, inadequada,
não passa de matéria natural, de sensível em geral” (HEGEL, 1993, p. 49). Corresponde
ao momento do universal abstrato. O Espírito criador aspira a infinitude de modo ainda
inadequado, numa abstração que impede de constituir um sensível apropriado na finitude.
Para materializar o Universal no particular sensível, o protoartista constrói figuras
colossais. A arquitetura, a mais pesada das artes, é a primeira e mais adaptada a essas
concepções e atributos fantásticos do sagrado. O sensível desmesurado subjuga o espi-
ritual. “Na arte simbólica temos, de um lado, a ideia abstrata, e de outro lado, as forças
materiais que lhe não são adequadas. A ideia indefinida, a ideia infinita apropria-se da
forma e esta apropriação de uma forma que lhe não convém tem todos os aspectos de
uma violência” (p. 49). A arte dessa fase “pertence à categoria do sublime, e o sublime
define-se pelo esforço de exprimir o infinito [...] A expressão não passa de tentativa, de
ensaio, que produzirá gigantes e colossos, estátuas com mil braços, e mil corpos” (p. 50).
As fantásticas forças da natureza, ainda impenetráveis para a compreensão do ho-
mem, e a elas subjugado, constituem, para Hegel, a mais arcaica concepção do absoluto.
58
MIRANDA, D. S. de

Essa etapa, que Hegel denomina de panteísmo oriental ou religião da natureza, é uma
espécie de protohistória da arte. A forma sensível se justapõe, ou melhor, se impõe arbi-
trária e inadequadamente à ideia. “O simbolismo caracteriza-se por uma diferença entre
o fora e o dentro, por uma falta de apropriação entre a ideia e a forma incumbida de a
significar, pelo que esta forma não constitui a expressão pura do espiritual. Uma distân-
cia afasta ainda a ideia de sua representação” (p. 50).
Arte clássica: esta sucede à arte simbólica. Momento de eticidade da Cidade grega,
onde se busca a perfeita harmonia entre os fins da individualidade e da comunidade atra-
vés da pólis. Essa nova concepção, que vê uma unidade harmoniosa entre o indivíduo e a
pólis, deve, de preferência, ser expressa somente na própria forma humana, e não mais
por símbolos naturais, como na etapa anterior. Aqui, existe livre adequação de forma e
da ideia, do conceito e de sua representação sensível. Nesse estádio superior da história,
as relações entre os homens e a natureza são mediadas pelo social. “Na arte clássica, o
sensível, o figurado, deixa de ser natural” (p. 51).
As forças supremas são as da pólis e não as da natureza, quando os deuses não são mais
forças naturais, como no simbolismo, mas têm um caráter social, fundadores que são da co-
munidade política. Aqui o homem se acha em harmonia com o mundo, o sujeito se sente em
sua casa, no objeto de arte. Esse momento, que Hegel denomina as religiões da individualida-
de espiritual, reveste-se de uma tensão entre o temporal e o espiritual. O sensível enquanto
forma, deve ser purificado, livre dos liames que o aprisionam à miserável finitude, e, a um só
tempo, a espiritualidade deve se expressar de forma exaustiva nas figuras humanas, porém
sem se identificar completamente, sem se confundir inteiramente com o sensível.
Se a arquitetura pesada representa, por excelência, a protoarte do simbolismo, a arte
clássica encontra na escultura o perfeito equilíbrio entre a significação interna do espiritual e
a forma externa sensível. Hegel enaltece a estatuária grega que criou um ideal do belo e do
bom (ideal grego das formas harmoniosas do kalós kai agathos (belo e bom). “Hegel, em belas
páginas, mostra que o ‘perfil grego’ é o tipo de rosto mais distante da animalidade: enquanto
o corpo animal existe somente em vista de fins naturais [...], o corpo e o rosto humanos, na
escultura grega, exprimem a perfeita harmonia do homem” (GARAUDY, 1993, p. 176)

3. O século de Péricles: apogeu das artes e doutrinas


estéticas da Grécia clássica
O momento fulgurante da arte clássica grega, compreendido entre os séculos
V e IV a. C., corresponde o período marcado por grandes intervenções polí-
ticas. Primeiro com as reformas de Clístenes e, mais tarde, com o governo
de Péricles, Atenas se coloca à frente de toda a Grécia, desenvolvendo a
democracia e surgindo como império marítimo. Dá-se o grande florescimento
da cultura e das artes gregas, inclusive das artes cênicas conforme foi visto.
Péricles foi um governante ateniense que soube se cercar de importantes per-
sonalidades, sobretudo de artistas e filósofos. Assim, sob a hegemonia de Ate-
nas, a Grécia como um todo iria conhecer uma época de intenso esplendor
no campo da filosofia, da ciência e das artes, momento único da sua história.
Daí, a designação “o século de Péricles”, ou então "o século de ouro ate-
niense", cujo governo na verdade cobriu pouco mais de trinta anos (de 461 a
429 a. C.). Sob seu comando, Atenas, destruída e saqueada pelas tropas per-
59
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

sas durante as Guerras Médicas, a partir de 443 a. C., é objeto de uma extraor-
dinária recuperação, tendo sido reconstruída, sobretudo, sua bela arquitetura.
O Partenón, templo situado na acrópole de Atenas e dedicado à deusa
Atena, tendo em todo seu redor a majestosa colunata com elementos dóricos
e jônicos e esculturas do artista Fídias, é certamente o monumento que me-
lhor simboliza o esplendor da arte desse período.

Figura 21 – O Partenón na Acrópole de Atenas

Ainda no século V a. C., ocorreu uma grande inflexão no teor e na natu-


reza da filosofia. Esta se eticiza e o homem é trazido para o centro da reflexão
e do pensamento. Com os sofistas, grupo de filósofos educadores da época,
a filosofia dá uma reviravolta humanista: “o homem é a medida de todas as
coisas”, ensinava. na época, o sofista Protágoras de Abdera.
As explicações do período arcaico anterior, baseadas nos elementos da
natureza como princípio primeiro (arkhé) ordenador e constituidor de sentidos do
mundo e das coisas, são substituídas por temas como o conhecimento, a verdade,
a cidade, o poder, as leis, a justiça, a virtude, o amor, a beleza, a arte, dentre outros.
Três grandes pensadores marcarão o período – Sócrates (suas ideias
são divulgadas pelo discípulo Platão), Platão e Aristóteles –, reponsáveis, in-
clusive, pelas primeiras reflexões sobre a produção artística de seu tempo.
Em síntese, podemos dizer que, para Sócrates, o ser era a “beleza paradig-
mática”, para Platão, o ser era o eídos (que os latinos traduziram por ideia), e
para Aristóteles, o ser era um só ente constituído de conteúdo e forma. São
importantes concepções de natureza metafísica com implicações e ressonân-
cias nas respectivas formulações estéticas desses três pensadores.
60
MIRANDA, D. S. de

A partir deles, ficarão estabelecidos certos cânones das linguagens artísti-


cas, que, no limite, durarão até a contemporaneidade, seja pelas suas proposições
afirmativas ainda aceitas, seja pela contestação e confronto de seus princípios
com pretensões de validade universal e eterna, conforme veremos a seu tempo.
Questões como a perdurabilidade da obra de arte, o belo em si, a mímesis (a pro-
priedade imitativa da obra de arte), o papel do conhecimento intelectivo (epistêmi-
co) e do conhecimento sensível (estético), a harmonia são conceitos e princípios
fundantes da reflexão sobre a obra de arte inauguradas por esses filósofos.
A questão da perdurabilidade da arte pode ser vista a partir de um duplo
aspecto. Primeiramente, sua explicação pode provir de um aspecto crucial da
doutrina platônica sobre o caráter imitativo dos objetos de arte, enquanto mí-
mesis de ideias arquetípicas (essências) perfeitas e eternas das coisas, cuja
análise desenvolveremos abaixo.
Mas a perdurabilidade pode ainda ser igualmente explicada pelo tipo de
matéria prima usada na arquitetura e escultura gregas. Na Grécia e em vários
países vizinhos, a natureza era pródiga em solos e montanhas rochosas e em
matrizes calcárias donde se extraíam blocos de mármore. Mas o que contava
mais certamente eram os metais, sobretudo o bronze fundido que procurava
imprimir nas peças um caráter eterno, oferecendo assim as condições mate-
riais objetivas para robustecer a perdurabilidade de suas obras.

3.1. A doutrina estética de Platão


O pensamento platônico concebe a realidade cindida em dois mundos, com seus
respectivos tipos de conhecimento. Ao mundo das formas e das ideias, conhecido
como o mundo suprassensível, correspondia o conhecimento intelectivo (esfera
da episteme). Ao mundo das aparências e das atividades concretas, mundo das
coisas, correspondia o conhecimento dos fatos e objetos sensíveis (estética).
Para essa doutrina, o verdadeiro mundo reside no suprassensível, o
mundo ideal onde residem as formas essenciais eternas de tudo que existe
no mundo sensível. Cada objeto deste era cópia imperfeita das formas essen-
ciais do mundo das ideias. Se o mundo sensível era cópia daquele mundo
ideal, o mundo dos objetos artísticos, espécie de uma realidade em terceiro
grau, estaria ainda mais afastado do mundo ideal.
No livro X, 595ª de A República, Sócrates-Platão tece dura crítica à pin-
tura, depois de condenar a “poesia de caráter mimético”. São múltiplos os
objetos como são múltiplas as cópias, porém, o eídos (ideia para os latinos)
desses múltiplos objetos, como a cama, é um só e é dessa ideia única de
cama que o artesão-carpinteiro copia. Já o pintor que a pinta não toma, como
modelo, a ideia de cama, mas a imagem que dela faz.
61
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Como cópia da cópia, para Platão, a cama pintada é apenas um objeto


aparente, sem nenhuma realidade essencial. Em relação a esta, a cama do
carpinteiro teria a vantagem de estar menos afastada da ideia originária da
essência da cama porque sua cópia, pelo menos, busca representá-la na sua
tridimensionalidade concreta.
A arte mimética (estética da pura imitação), voltada para o mundo sen-
sível das aparências enganosas, estaria afastada do verdadeiro mundo das
essências, das formas estáveis e eternas. A arte imitava os objetos de um
mundo, por si, já imperfeito e mutante. Assim profere Sócrates:
Se chegasse à nossa cidade um homem aparentemente capaz, devido à sua
arte, de tomar todas as formas e imitar todas as coisas, ansioso por se exibir
juntamente com os seus poemas, prosternávamo-nos diante dele, como de um
ser sagrado, maravilhoso, encantador, mas dir-lhe-íamos que na nossa cidade
não há homens dessa espécie, nem sequer é lícito que existam, e mandá-lo-
-íamos embora para outra cidade. (Platão, 398a, Livro III de A República)

Devido precisamente ao seu caráter mimético, a arte é manifestada-


mente desprezada por Platão. Por provocar reações emotivas imediatas, a
arte torna-se um estorvo para a progressão do homem para atingir o ser (a
essência) e sua verdade. A universalidade da essência do belo em si, uno e
eterno, contrasta fortemente com a particularidade da obra de arte concreta,
sujeita às vicissitudes do tempo e do devir. Daí, Platão defender que a par-
ticularidade sensível não era portadora em si mesma de um autêntico valor
estético. Esse valor era conferido à obra de arte pela participação na ideia do
belo e não pela virtude da criação artística.
Para a doutrina platônica, o objeto belo é o que participa do belo ideal,
do belo em si, que é absoluto, único, verdadeiro, existente desde sempre no
mundo das ideias essenciais. A beleza de um ser do mundo sensível depende
de sua maior ou menor participação (representatio ou imitatio, termos latinos
equivalentes ao conceito grego de mímesis) na beleza absoluta.
O ideal grego do belo e bom (kalós kai agathós) apontava para diferen-
tes níveis referentes à ideia de belo, o que tinha tudo a ver com as três ordens
da existência humana objeto da especulação filosófica. Em primeiro lugar,
vinha o belo da vida contemplativa (biós theoretikós da ordem epistêmica) e,
depois, sua concepção se fundia à ideia de bom (da ordem ética). No último
plano, situava-se o belo utilitário e, portanto, inferior, por estar subordinado ao
mundo sensível e imperfeito das coisas (da ordem estética).
Para o pensamento platônico, a eternidade da alma humana a faz ina-
pelavelmente atraída pela beleza, sua pátria natural de origem. Exilada no
mundo sensível, ela sente sempre saudade do outro. Por ser eterna, a alma
aprisionada ao corpo já experimentara a beleza do mundo das essências pu-
ras, de natureza divina, já contemplara a verdade, o bem, o belo.
62
MIRANDA, D. S. de

Platão acha-se dilacerado entre a admiração entusiasta do belo em si


eterno e uno, meta ideal do amor ao belo e o desprezo da arte mimética, cuja
beleza, por mais que seja incompleta, é uma busca de imitação do belo em
si. Pode-se afirmar que, para Platão, o belo causava enlevo, prazer, arrebata-
mento, deleite. Para ele, a beleza é o brilho da verdade, aforismo que perdu-
rou, durante muito tempo, no pensamento estético do Ocidente.
Diferentemente da episteme (scientia), via para o conhecimento autên-
tico, a arte visa ao fictício e ao ilusório. Se, em sua bela cidade (Calípolis),
Platão dispensa algumas artes e artistas, em O Banquete, traça a via da con-
quista do belo incorpóreo em si, pela ascese contínua que passa pelo belo
atribuído a certos entes particulares em direção ao sublime:
Quando então alguém, subindo a partir do que aqui é belo, através do cor-
reto amor aos jovens, começa a contemplar aquele belo, quase que estaria
a atingir o ponto final. Eis, com efeito, em que consiste o proceder correta-
mente nos caminhos do amor ou por ele se deixar conduzir: em começar do
que aqui é belo e, em vista daquele belo, subir sempre, como que servindo-
-se de degraus, de um para dois e de dois para todos os belos corpos, e
dos belos corpos para os belos ofícios e para as belas ciências até que das
ciências acabe naquela ciência, que de nada mais é senão daquele próprio
belo, e conheça enfim o que em si é belo (O Banquete, 211b-c).

À medida que o sensível se liberta, a alma vai adquirindo o saber inte-


lectível (epistéme) – passa dos belos corpos para as belas ações, das belas
almas aos belos conceitos. Assim, a beleza universal se desvela. O belo em
si é o belo absoluto. Dá-se, portanto, uma ascese gradativa e contínua: “do
amor aos belos corpos passa-se ao amor a realidades menos corpóreas – os
ofícios – para chegar à inteligibilidade das ciências; [...] atinge-se o cume: a
contemplação do Absoluto enquanto beleza” (PESSANHA, 1989, p. 97s).
Com relação à música, Platão adere à concepção pitagórica que a vê
como expressão da ordem cósmica. A doutrina da música como agente regu-
lador da harmonia cósmica, que, por sua vez, ressoaria na ordem social, será
aceita em A República, ao contrário, como vimos, das artes miméticas. A músi-
ca, por ser fundante da ordem do cosmos, portanto, ligada ao mundo essencial
das formas, sendo mais ciência do que arte, era dotada de uma essência racio-
nal capaz de revelar a harmonia racional do mundo e da vida humana. A grande
descoberta da filosofia grega arcaica, com continuidade no período clássico
consistiu na revelação de propriedades musicais ambivalentes, em que os mo-
dos musicais expressavam a cultura e o comportamento (ethos) de cada povo.
O modo dórico, por exemplo, é visto por Platão como o mais elevado e capaz de
levar à temperança, ao heroísmo altivo, à soberana aceitação da adversidade,
em contraposição aos modos mixolídio, lídio, jônico e frígio, considerados mo-
dos moles e propiciadores da indolência (Livro III de A República).
63
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Platão pensa o ethos musical, junto com a ginástica e a aritmética, como


importante elemento moldador do caráter. A música é a mais capaz de propor-
cionar a noção e vivência de ritmo. Este, junto à harmonia, ao penetrar fundo
na mente do cidadão, cria as condições para a gestação do belo, do bom
e do verdadeiro. Platão também defende a superioridade dos instrumentos
mono-harmônicos como a lira e a cítara (instrumentos apolíneos), e condena
a flauta, os instrumentos de muitas harmonias e cordas como a harpa e o au-
los (instrumento dionisíaco). O arrebatamento contido no aulos é condenado
como música rítmica a serviço de uma celebração dionisíaca.
A preferência pela cítara e a condenação da flauta, instrumentos do deus
Apolo e do deus Dioniso, respectivamente, podem também ser examinadas pe-
las possibilidades que cada um desses instrumentos oferece às duas ordens
éticas das respectivas estéticas musicais: a lira permite o verso cantado; por-
tanto, permite a palavra, a poesia e o conceito, postulados estéticos da arte
apolínea, superior à música pura (somente instrumental) e ao ritmo. A flauta
prescinde do canto; portanto, prescinde do conceito. Ela executa a música pura
e a música rítmica, postulados estéticos da arte dionisíaca. A noção platônica
da melodia subordinada ao reino da palavra será mantida, durante longo tempo,
pela estética cristã e pelo racionalismo ocidental, conforme será visto.
A herança pitagórica legou, para a Grécia clássica e as eras posteriores,
a demarcação dos campos em apolíneo e dionisíaco, com tendência favorável
ao primeiro, criando um cânone básico e uma hierarquia: a música como serva
da palavra, o ritmo como servo da harmonia. Nessa perspectiva, o ritmo equili-
brado jamais deve comprometer as proporções harmônicas. Qualquer excesso,
seja rítmico, melódico ou instrumental, será condenado, por ser próprio da festa
dionisíaca, prenunciando a cisão, que irá traspassar épocas e lugares, entre a
música das alturas, cívica, normativa, harmoniosa e a música rítmica, popular,
pulsante, ruidosa, extática. São dois parâmetros que a estética apolínea lutará
tenazmente para torná-los irredutíveis um ao outro pelo expurgo do dionisíaco.

3.2. A doutrina estética de Aristóteles


Aristóteles supera a dicotomia entre forma e conteúdo, entre o belo em si e a
bela obra. A matéria, da qual o artista extrairá uma forma, já contém, em potên-
cia, aquilo que no momento do ato a transformará: o objeto de arte (v. comentá-
rios sobre os filmes Agonia e êxtase e Morte em Veneza no final desta unidade).
Não existem dois mundos distintos, um subordinado ao outro, como
queria Platão. Ao contrário, Aristóteles vê, na obra de arte concreta, a unida-
de indissociável entre forma e matéria (hilemorfismo), cuja estética mimética
aceitava sem desqualificativos. Para ele, a obra de arte, por sua liberdade
criadora e ficcional, não sendo, portanto, serva do evento particular, é repre-
sentação do universal, diferenciando-se da história que é representação do
64
MIRANDA, D. S. de

particular, de algo efetivamente ocorri-


do. Para ele, a arte estaria mais pró-
xima da filosofia. Igualmente contrário
a Platão, cuja reflexão sobre a arte
encontra-se subordinada à episteme,
a uma espécie de teoria do conheci-
mento e, portanto, a um pensamento
realizado de forma oblíqua, Aristóteles
se dedica, de forma mais direta, à re-
flexão sobre a arte, quando analisa a
tragédia, confrontando-a com a epo-
peia e a comédia, no livro Poética.
Nesse livro, Aristóteles assume
a defesa da emoção estética presente
na tragédia, contida na doutrina da ká-
Figura 22 – Platão e Aristóteles
tharsis: processo de purgação e purifi-
cação de intensos e violentos sentimentos, como terror e piedade, que encon-
tra no gênero trágico, a via efetiva capaz de reconstruir o equilíbrio (harmonia)
interno do espectador. Existem fortes indícios de que Aristóteles teria escrito o
Livro II da Poética, onde teria dissertado sobre a comédia, tema, inclusive, do
romance O nome da Rosa, do escritor italiano Umberto Eco.
O conceito de belo é algo recorrente na obra aristotélica, encontrável
em várias de suas obras e não apenas na Poética, onde afirma que “o belo
está na extensão e na ordem” (1450 b 37). Eis algumas dessas passagens: “o
belo está na extensão do corpo, pois as pessoas pequenas podem ser gra-
ciosas e bem proporcionadas, mas não são belas” (Ética a Nicômaco, 1123
b 7). Ou, ainda, referindo-se ao corpo: “o belo parece ser uma certa simetria
Todas as citações deste
15 dos membros” (Tópicos, 116 b 21 - 22), noções que aplicam inclusive à beleza
parágrafo foram retiradas feminina O filósofo afirma em A Retórica que uma mulher bonita e bem pro-
da dissertação de mestrado
porcionada, porém pequena, pertence ao campo do gracioso, mas não ao do
de Gazoni, A Poética de
Aristóteles: tradução e belo, que exige, entre outras coisas, grandeza.
comentários. USP, 2006. Ou ainda
aqueles que sustentam que as ciências matemáticas nada dizem a respeito
do belo ou do bom, enganam-se, pois elas discorrem a respeito deles e os
demonstram no mais alto grau. Pois, ainda que não nomeiem seus efeitos e
princípios ao demonstrá-los, disso não se segue que não discorram a respeito
deles. As principais espécies do belo são a ordem a simetria (summetria), e a
definição (to horismenon) o que, nas ciências matemáticas, é demonstrado
no mais alto grau (Aristóteles, Metafísica, apud GAZONI15, 2006, p. 11).
65
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

São citações que nos fazem concluir que o conceito de belo ligado à
simetria, à ordem e à harmonia é um postulado geral da estética aristotélica. 16
Ekklésia: principal
Portanto, o atributo de beleza é inerente aos objetos, decorre tão somente de assembleia popular da
certa harmonia ou ordem existente entre as partes desses objetos entre si, democracia direta de Atenas,
com a participação dos
constituindo um todo uno. Além disso, para um objeto ser belo exigia-se ainda cidadãos (atenienses do
que tivesse certa grandeza ou imponência, mas que não comprometesse os sexo masculino acima de 18
atributos de proporção e medida, o que foi evidenciado nas citações acima. A anos), para deliberar sobre
diferentes assuntos como a
recorrência de Aristóteles à harmonia e à articulação proporcional das partes legislação sobre a guerra ou a
num todo ordenado deu origem a uma célebre assertiva dos seus seguidores, paz, julgamento de pessoas,
que costumam dizer que “a beleza consiste em unidade na variedade”. O ob- nomeação de magistrados,
dentre outros. A ekklésia foi
jeto belo dependente de suas propriedades expressas na ordem e harmonia
instituída por Sólon, em 594 a.
entre suas partes, constituindo um todo belo, nada tinha a ver com sua partici- C., e suas reuniões ocorriam
pação na ideia de uma beleza absoluta, como em Platão. inicialmente uma vez por
mês sendo, posteriormente,
Segundo Aristóteles, o cosmos se originou do caos, ao ser regido pela realizadas com maior
harmonia, conceito nascido da estética musical da escola pitagórica. Entre- frequência.
tanto, vestígios do caos original debatem com o desejo incessante de ordem. Ágora: praça aberta, principal
O belo imbricado com o conceito de harmonia será um importante legado, espaço público da pólis para
como veremos, para a arte renascentista, que a enxerga como uma espécie múltiplas atividades como as
reuniões da ekklésia, mercados
de “conveniência sensata”, constitutiva por conhecimentos científicos e racio- e feiras livres, tribunais. A ágora
nais. Em síntese, para a estética aristotélica, constitui o belo a concordância tornou-se a representação, por
das partes, sua harmonia, um cálculo matemático para a composição do todo excelência, do espaço público
para o exercício da democracia
que não admitia a contradição. direta grega. Sua instituição
Concluindo, podermos dizer que os dois grandes filósofos gregos, a estendeu-se posteriormente
despeito de suas diferenças, têm em comum uma concepção objetiva do para o mundo greco-romano.

belo, a saber, a beleza é um atibuto constitutivo do próprio objeto e jamais uma Arkhé: palavra com dois
sentidos básicos: 1) o que está
doação de sentido estético que parte do olhar contemplante, conforme será na frente de tudo e que, por
posteriormente tematizado pela estética racionalista da modernidade. isso, é o começo, o princípio
de tudo; 2) o que está à
As doutrinas estéticas subsequentes são, em verdade, continuadoras,
frente e que, por isso, tem o
via de regra, de modo eclético, das estéticas platônicas16 e aristotélicas. Da poder sobre todo o restante.
tradição clássica grega ao final do século XVIII, a beleza era vista como uma No primeiro sentido, o termo
propriedade constitutiva dos objetos belos, a exemplo de um quadro, uma significa fundamento, princípio
e origem, causa primeira, o
sonata, um poema, uma escultura. que está no começo de modo
absoluto, ponto de partida.
No segundo sentido o termo
significa comando, poder,
autoridade, dando, assim,
origem a palavras como
monarquia (poder de um) e
oligarquia (poder de poucos).
(v. CHAUÍ, 2001, p. 496/497)
66
MIRANDA, D. S. de

Síntese do Capítulo
Esta unidade examinou as manifestações artísticas de um largo período his-
tórico iniciado com as primeiras organizações civilizatórias sedentárias, às
margens dos vales férteis da Mesopotâmia e do Egito, que propiciam a emer-
gência de obras de arte, como a arquitetura de templos, pirâmides e câmaras
funerárias, a escultura, a pintura e o mobiliário decorativo, cujos estilos, no
curso do tempo, provocarão influências e sofrer expressivas modificações,
mormente as realizadas pela arte da antiga Grécia, cujo apogeu dar-se-á no
chamado “século de Péricles”.
A análise sóciohistórica da arte grega apresentou-se articulada às dou-
trinas estéticas dos principais pensadores da filosofia grega, a exemplo da
cosmologia pitagórica sobre a música, a teoria socrático-platônica e aristoté-
lica sobre a arte, de um modo geral, e sobre o belo, de um modo particular,
enfatizando algumas de suas principais diferenças.

Atividades de avaliação
1. Levando em conta as manifestações artísticas dos povos nômades (v. Uni-
dade 1), analise a importância que se pode atribuir ao papel exercido pelos
vales úmidos das primeiras civilizações sedentárias na realização artística
dos povos antigos.
2. Apresente os principais argumentos que buscam explicar o surgimento do
pensamento filosófico na antiga Grécia.
3. Elabore um quadro comparativo entre o pensamento mítico do chamado
período homérico e a filosofia do período arcaico (pré-socrático), e suas
repercussões para o quadro das artes das respectivas épocas.
4. Apresente os principais aspectos da tragédia grega, levando em conta a
análise crítica do filósofo Nietzsche.
5. Analise o chamado “século de Péricles”, levando em conta as diferentes formas
de manifestação da cultura, das artes e da filosofia do período em questão.
6. Levando em conta todo o conteúdo apresentado pela unidade, bem como o
teor dos filmes abaixo indicados, elabore um pequeno texto a partir de uma
questão problematizada formulada por você mesmo, e procure respondê-
-la desenvolvendo uma reflexão de forma bem pessoal.
67
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

@
Leituras, filmes e sites
Livros
Ilíada e Odisseia de Homero
A República (Livros III e X) de Platão
A Poética de Aristóteles

Sites
Graça Proença, Editora Ática, 2001. Site:
www.aticaeducacional.com.br/imagens/complementos/hda/img/imagem26.swf
Filmes
A Odisséia (1997): do diretor Andrei Konchalovsky, megaprodução de Fran-
cis Ford Coppola adaptada da narrativa mítica atribuída a Homero, em que o
herói Odisseu (Ulisses) enfrenta várias vicissitudes, muitas provocadas pela
fúria dos deuses e monstros mitológicos, saindo-se sempre vitorioso, graças
às suas ardilosas estratégias e coragem, em sua viagem errática de volta ao
seu reino na ilha grega de Ítaca, onde sua fiel esposa, Penélope, o aguarda,
desde sua partida para a guerra de Tróia.
Os dois filmes abaixo indicados são duas obras que podem ser vistas
como abordagens distintas que representam as respectivas concepções dos
filósofos Platão e Aristóteles sobre arte:
Morte em Veneza: (do cineasta italiano Luchino Visconti, a partir do romance
homônimo do escritor alemão Thomas Mann) o filme apresenta uma nítida fi-
liação à estética platônica, conforme atesta a paixão do músico alemão (escri-
tor no original) Gustav von Aschenbach pelo belo adolescente polonês Tadzio,
ocorrida durante suas férias em Veneza no início do século xx, tomada pela
peste; o filme trata de uma ideia de belo que parece nos remeter à noção da
beleza em si do mundo das ideias e das formas perfeitas.
Agonia e êxtase: (do cineasta inglês Carol Reed, baseado no livro de Irving
Stone) o filme aborda a relação tensa e conflituosa entre Michelangelo e o
Papa Júlio II, que lhe encomenda a pintura do teto da capela Sistina. O filme,
em determinado, momento apresenta uma cena de nítida filiação aristotélica:
o artista, ao ser interpelado pelo arquiteto Bramante, que o recriminara sobre
seu gesto de alisar o grande bloco de mármore, pronunciando o nome do
profeta Moisés quando existia apenas um bloco de pedra, teria dito: “Moisés já
está no mármore. Eu apenas o libero”. Ou seja, a matéria mármore já contém,
em potência, a escultura de Moisés, que a ação do artista efetiva em ato. Este
filme é também indicado para a Unidade IV, por apresentar interessantes ce-
68
MIRANDA, D. S. de

nas e imagens da pintura e escultura renascentistas, contendo em seu início,


antes da parte ficcional propriamente dita, uma apresentação documental de
várias esculturas do artista, com pequenas análises e situações históricas.

Referências
CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia. S. Paulo: Companhia
Das Letras. 2001.
CUNHA, Newton. Dicionário do SESC A Linguagem da Cultura. São Paulo:
Editora Perspectiva. 2003.
GARAUDY, Roger. Para Conhecer o Pensamento de Hegel. Porto Alegre:
LP&M. 1993.
GAZONI, Fernando Maciel. A Poética de Aristóteles: tradução e comentá-
rios. Dissertação de Mestrado no Depto do Filosofia da USP. São Paulo: 2006
GOMBRICH, E.H. A história da arte. Tradução de Álvaro Cabral, 15ª edição.
Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989
HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins
Fontes. 1995.
HEGEL Estética. Lisboa: Guimarães Editores. 1993.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia SP: Perspectiva. 1994.
PESSANHA, José Américo M. “Platão: as várias faces do amor” in Os Senti-
dos da Paixão. São Paulo: Companhia Das Letras. 1989.
PROENÇA, Graça. História da Arte. Sâo Paulo: Ática. 1989.
VERNANT, Jean-Pierre e VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e Tragédia na Gré-
cia Antiga. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977.
WISNIK, José Miguel O Som e o sentido. S.P.: Cia Das Letras, 2001.
História da Arte: da Pré-história até a Arte Contemporânea. (DVD e folheto).
Edição: Grupo Cultural.
69
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Capítulo 3
Do Helenismo ao
Medievo Cristão
71
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Objetivos
• Examinar as artes de um largo período que se inicia com o grande império
de Alexandre Magno, responsável pela unidade cultural obtida em todo seu
território, denominada helenismo.
• Analisar da integração da cultura helênica no mundo latino, constituindo o
classicismo greco-romano. Será também analisada a difusão da arte cristã,
com suas diferentes linguagens e estilos por todo o medievo europeu.

1. O surgimento do Helenismo
A civilização grega, ao estender sua hegemonia política e econômica, bem
como sua cultura e artes a vários povos, feito sob o domínio do reino da Ma-
cedônia, com Filipe II, e pelas conquistas de Alexandre Magno e, depois, sob o
domínio romano, constrói uma civilização universal, ampliando e influenciando
todo o Mediterrâneo, compreendendo a parte ocidental da Ásia Menor, o mar
Negro, o Oriente Próximo e Médio e o norte da Europa continental e insular.
As trocas comerciais com o Oriente se expandiram e a posição social
derivada dos ativos financeiros adquiriu grande importância, maior do que a
pertinência tradicional a famílias. Como resultado, imprimiu-se uma mobilida-
de socioeconômica sem precedentes, trazendo consigo modificações cultu-
rais inevitáveis.
Com todas essas modificações, estabeleceu-se, pela primeira vez, um
verdadeiro commercium litterarum et artium, um intercâmbio cientifico, artístico
e intelectual até então inimaginável. A partir daí, verificou-se a primeira grande
experiência civilizatória do multiculturalismo, a oikoumene (termo greco-romano,
cujo sentido é mundo habitado) ou "civilização comum", baseada num só direito
e numa só língua (a koiné, variante simplificada do grego ático, usada, sobretudo,
durante o império romano), com a participação da latinidade romana.
Instituiu-se uma organização societária regionalmente agrupada por
corporações profissionais que acabou por desenvolver um pensamento cos-
mopolita que se abriu a Leste e a Oeste e que, a um só tempo, passou a
influenciar tais áreas intelectual e artisticamente.
72
MIRANDA, D. S. de

Alexandre pretendeu criar um grande estado multiétnico, em que o le-


17
"Um elemento é a
configuração da história gado macedônico coabitaria com a herança persa e asiática. A síntese de tal
política da própria civilização estado seria obtida sob a hegemonia do legado cultural grego, período que
helênica. Na primeira fase passou a ser conhecido como helenismo17.
da história helênica de que
temos registro, vemos um Essa época é identificada como o 4º período da civilização grega. O
contraste marcante entre a ideal de sua difusão por parte de Alexandre se efetiva na fundação de vá-
unidade cultural do mundo rias cidades durante suas conquistas (além de Alexandria, capital marítima do
helênico e sua desunião
Egito, cerca de outras 70 cidades com esse nome são igualmente fundadas).
política. Comprovamos que
ele estava politicamente Da planta urbanística de cada nova cidade devia constar, via de regra, um
divido entre certo número conjunto arquitetônico mínimo compreendendo uma ágora, uma biblioteca,
de estados soberanos um anfiteatro, um museu e um templo.
e independentes, cujos
cidadãos reconheciam Segundo essa periodização da civilização grega, a filosofia, que nas-
participar da mesma cultura, cera na Grécia arcaica e alcançara seu apogeu na Grécia clássica, agora
o que não os impedia de se expande para além das suas fronteiras. Ao todo, seriam seis séculos de
guerrearem uns contra
filosofia grega. Se considerarmos, no entanto, o helenismo como período de
os outros. No decurso
do tempo, essas guerras expansão de uma filosofia greco-romana e das doutrinas cristãs (a patrística),
fratricidas tornaram-se tão como querem alguns, a filosofia antiga se estenderia até o século VI d. C.
devastadoras que levaram Assim, ao todo, seriam dez séculos de filosofia grega.
a civilização ao desalento.
Quando se chegara a Já o historiador inglês Arnold Toynbee, levando em conta a força da
um ponto de dissolução, cultura grega desde as invasões dóricas, amplia o conceito de helenismo para
conseguiu-se a saída de uma um largo período de cerca de 1.300 anos, ou seja, a civilização que se inicia
tardia unificação política do no período homérico e que vai até a derrocada do Império Romano no século
mundo helênico dentro do
Império Romano. Isso trouxe V d.C., quando tem início a Idade Média. Corresponderia, assim, à civilização
paz e ordem temporárias, grega continental e peninsular nascida no mar Egeu (cf. TOYNBEE, 1986, p.
mas com o proibitivo preço 34 ss. e CUNHA, 2003, p. 157). Toynbee defende que a força da cultura helê-
de uma série de “golpes nica começa, então, a partir do período mítico grego e se mantem numa linha
fatais” que terminaram com
a derrubada de todas as de tempo que transcende as lutas fratricidas do mundo grego, perdurando,
potências, com exceção mesmo quando a Grécia se vê dominada por forças externas como foi o caso
de um único sobrevivente do Império Romano, oferecendo inclusive a unidade cultural coesionada pela
vitorioso. Pela época em que Paidéia grega, necessária para preservar durante muito tempo aquela hege-
o ‘estado universal’ helênico
se estabeleceu em Roma, monia imperial até o final da era antiga.
o mundo helênico já estava Para efeito de nossa história da arte, consideraremos o período hele-
tão gravemente exausto nístico a partir dos reinados de Filipe e Alexandre, conforme a primeira perio-
e desmoralizado que se
tornou incapaz de manter dização acima descrita, indo à queda do Império Romano, no século V d. C.,
seu estado universal para a época de grande comoção marcada pela derrocada de uma civilização res-
perpetuidade, e o colapso do ponsável por imprimir traços indeléveis na cultura ocidental, durante séculos.
Império Romano significou
a dissolução da civilização
helênica” (TOYNBEE, 1986,
p. 54)
73
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Figura 23 – Alexandre Magno (Sarcófago – Museu Arqueológico de Istambul)

As características mais fortes da cultura helênica foram a antropomor-


fização dos deuses do Olimpo, um pensamento fortemente marcado pelo hu-
manismo e o empenho de uma vida pública regrada por conceitos morais e
racionais em perfeito equilíbrio com a liberdade pessoal. Com a nova orga-
nização da vida helênica, imposta por Filipe e seu filho Alexandre, são pro-
porcionadas oportunidades individuais desconhecidas da antiga organização
das cidades-Estado. As características do período clássico, como a unidade
do pensamento baseado na racionalidade objetiva do cosmos, presidida pela
noção de harmonia, princípio ordenador fincado na concepção cosmogônica
pitagórica bem como na valorização da vida pública da pólis, ficarão profun-
damente abaladas durante o helenismo.
À unidade do pensamento filosófico da época clássica expresso pelo pla-
tonismo e aristotelismo, sucedeu uma série de doutrinas como o estoicismo, o
epicurismo, o hedonismo e o ceticismo, filosofias que possuíam em comum,
preocupações individualistas, uma vez que o poder político se havia distanciado
da prática da pólis. Daí a convivência de um ecletismo de valores, de expe-
rimentos, de teorias, de vivências religiosas e de preceitos artísticos inovado-
res. Além das profundas inflexões ocorridas no pensamento filosófico, o ethos
individualista irá provocar fortes ressonâncias em outras esferas da vida dos
povos helenistas. Dispersos agora em vastos reinos e não mais em comunida-
des constituídas pelas cidades-Estado, os gregos substituem os sentimentos
de cidadania plasmados na vida pública da pólis por sentimentos individualistas.
Um dos aspectos mais afetados dar-se-á, de imediato, nas plantas da
moradia, cuja arquitetura, no século V a. C., revelava simplicidade e certo des-
pojamento. Apenas os prédios públicos eram edificados com suntuosidade. A
partir do período helenístico, as plantas das casas obedecerão, de preferên-
cia, o desejo de oferecer maior espaço e conforto aos seus moradores.
74
MIRANDA, D. S. de

Essa mesma tendência irá deslizar para as atividades ligadas às artes


cênicas. O coro do teatro grego – muito valorizado na Grécia clássica por re-
presentar a ação do povo ou ações da coletividade –, passa para o segundo
plano. Agora, a ênfase maior será dada ao desempenho individual dos atores.
Tal alteração irá ter consequências inegáveis na infraestrutura arquitetônica
dos teatros. Estes, na era clássica, como vimos, eram divididos em três gran-
des partes bastante distintas: o espaço circular da orkhéstra; o theatrum, a
arquibancada semicircular destinada ao público; e a skene, espécie de cama-
rim que depois serviu de palco para atuação. O conhecido Teatro de Epidauro
(século IV a. C.) é um exemplo típico do teatro clássico.
A valorização do ator, no correr dos anos, faz dele o personagem mais
importante para as encenações dramáticas e a arquitetura teatral teve de
acompanhar a nova realidade. A alteração mais importante se deu no palco.
No período áureo do teatro grego, havia na frente do palco uma fachada cha-
mada proscênio, onde eram apoiados os cenários. Toda a ação dramática
era apresentada no espaço circular. Somente quando havia o uso do deus ex
machina, ela se dava na cobertura do proscênio.
A partir do século II a. C., com o maior destaque para a performance do
ator se apresentando mais isolado do público, sua ação ganha maior destaque.
Como consequência, a cobertura do proscênio se transforma em piso para a
atuação dos atores. Atrás do proscênio ergue-se mais um andar em cuja fa-
chada há grandes aberturas nas quais são fixados os painéis que compõem os
cenários. Criavam-se, assim, as condições para o surgimento do que passou
a ser conhecido como palco italiano. Com tais modificações, a orquestra dei-
xou de ser um espaço circular completo e o local destinado aos espectadores
aproximou-se mais do espaço cênico. A concepção do teatro como um espaço
arquitetônico unitário, e não mais dividido em três partes, começou a ganhar
força, atingindo seu apogeu um pouco mais tarde, entre os romanos.
A partir do século IV a. C., a escultura helenística apresenta traços bas-
tante característicos, distinguindo-a do classicismo anterior. O primeiro deles
se refere ao crescente naturalismo, mediante a expressão de afetos e senti-
mentos do estado de espírito do momento, e não apenas a idade e a persona-
lidade, conforme os cânones anteriores. Outro traço refere-se à alegorização,
sob forma humana, de conceitos como a paz, o amor, a liberdade, a vitória etc.
Um terceiro traço bastante demarcante com relação aos períodos anteriores,
tanto o arcaico como o clássico, é o nu feminino. Vejamos três belos exempla-
res de Vênus deste período:
75
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

1) A Afrodite nua do escultor Praxíteles tornou sua obra mais famosa. Com-
prada pela cidade de Cnido, ficou conhecida como Afrodite de Cnido, cuja
cópia romana encontra-se em Roma (Museu do Vaticano). Nela, é possível
observar o estilo clássico de Policleto, presente em O Doríforo, em que o
artista opõe membros tensos e relaxados, combinando-os com o tronco
onde tais movimentos se refletem. Porém, tal princípio, aplicado às formas
arredondadas femininas, transparece um forte toque de sensualidade.
2) Nesse mesmo século IV, o
escultor Lisipo cria a Afrodite
de Cápua, cuja cópia romana
encontra-se no Museu de Ná-
poles. A estátua representa a
deusa com o tronco despido e
a parte inferior do corpo coberto
com uma túnica toda drapeada,
segurando um escudo onde ad-
mira a imagem refletida de sua
própria beleza, trabalho que irá
servir de modelo para outras es-
culturas, conforme veremos no
exemplo a seguir.
3) No século II a. C., surge cer-
tamente a mais célebre escul-
tura do período: a Afrodite de
Melos ou a Vênus de Milo para
Figura 24 – Vênus de Milo
os latinos, cuja designação tor-
nou-se mundialmente conhecida. Essa obra parece culminar a síntese
das características das duas obras anteriores, ao combinar a nudez par-
cial da Afrodite de Cápua, de Lisipo, com o princípio de Policleto aplicado
à Afrodite de Cnido, de Praxíteles.
A busca de uma maior mobilidade nas esculturas parece demarcar o
estilo dos artistas do início do século III a. C, que aparenta querer conduzir o
olhar do observador a percorrer o entorno das obras e, assim, atingir um tipo
de contemplação de 360 graus. Um belo exemplo dessa nova tendência é a
Vitória de Samotrácia. Existe a hipótese de que a escultura estaria atada à
proa de um navio líder de uma frota. As formas da figura alada de uma mu-
lher, personificando o desejo de vitória, induziriam tal hipótese: a túnica agitada
pelo vento, as asas abertas ligeiramente voltadas para trás e o impressionante
drapeado das vestes coladas ao corpo, são indícios configuradores de uma
forma feminina aérea e flutuante, dando forte sugestão de movimento.
76
MIRANDA, D. S. de

Outra característica da escultura do período foi a representação de grupos


de figuras, sempre mantendo a ideia de mobilidade e, a um só tempo, de tensão
dos corpos representados. E a escultura que melhor representa esse traço é cer-
tamente a bela estátua de Laocoonte e seus filhos, esculpida, provavelmente,
na metade do século I a. C. O grupo de Laocoonte é uma estátua esculpida em
mármore, que retrata o sacerdote-representante de Apolo com seus dois filhos
sendo estrangulados por duas serpentes marinhas, episódio dramático da Guerra
de Tróia, relatado por Homero na Ilíada e pelo poeta Virgílio na Eneida. Laocoonte
teria sido o único a pressentir o ardil de Ulisses (autor da ideia da construção do
cavalo de Tróia), resistindo à sua introdução para o interior das muralhas da cida-
de. Reza a lenda que Poseidon, deus dos mares que favorecia os gregos, teria
enviado duas serpentes para calar a voz do sacerdote.
Existe muita beleza no conjunto escultórico dos corpos retorcidos expres-
sa nos músculos retesados que buscam desesperadamente se livrar dos anéis
das serpentes, Os rostos do sacerdote e dos filhos demonstram toda a carga de
dramaticidade representando o pavor e a angústia da inutilidade do gesto, pre-
nunciando, assim, o desfecho fatal da morte que se avizinha. Esta escultura teria
provocado grande admiração em Michelângelo e grande influência no seu estilo.

Figura 25 – Estátua de Laocoonte e seus filhos (Vaticano)


O helenismo se caracteriza também pela importância adquirida pelas ci-
ências, cuja natureza sofre uma importante inflexão na medida que se descola
do corpus das doutrinas filosóficas da antiguidade clássica. As ciências afloram
como matéria autônoma. Embora pensadores gregos continuassem concentra-
77
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

dos na filosofia, seus pares alexandrinos enfatizavam as pesquisas de caráter


científico em áreas como a matemática, a astronomia, a geometria, etc.
Nessa empreitada, destaca-se o rei Ptolomeu II Filadelfo (308 a 246 a.
C.), que não poupa despesas para construir um museu, um zoológico e um
impressionante conjunto de edificações acadêmicas, onde eram concedidas
privacidade e liberdade aos intelectuais dedicados à pesquisa. Nesse contex-
to é criada, no interior do museu, a maior biblioteca da antiguidade, a ”Bibliote-
ca de Alexandria”, que reunia obras de todo o mundo antigo: todos os textos e
documentos da época deveriam ter uma cópia na biblioteca.
Como a biblioteca sofreu muitos reveses, inclusive vários incêndios, per-
deu-se muito de seu acervo, não sendo possível determiná-lo com precisão,
mas calcula-se que teria chegado a cerca de um milhão de volumes. A institui-
ção tinha como principal objetivo preservar e divulgar a cultura da antiguidade.
Continha, inclusive, muitos livros advindos de Atenas. A biblioteca se tornou um
grande centro de comércio e fabricação de papiros. Tais condições favorece-
ram a reunião e confluência de cientistas e pesquisadores dos vários ramos
das ciências que passam a estar ligados à biblioteca, a exemplo do matemático
Euclides de Alexandria (século IV a. C), pioneiro no estudo da ótica e conside-
rado gênio da geometria, cujos princípios vigoravam até o início do século XX.
Além dele, a lista dos grandes frequentadores da biblioteca e do museu
inclui grandes nomes das ciências e da filosofia. Eis alguns grandes cientistas
de Alexandria, cobrindo uma vasta linha de tempo, da antiguidade clássica à
era cristã:
Aristarco de Samos (século III a. C): astrônomo, o primeiro a presumir o sis-
tema heliocêntrico. Usou a trigonometgria na tentativa de calcular o tamanho
do Sol e da Lua e suas respectivas distâncias.
Arquimedes (século III a. C): matemático, físico e inventor, tendo realizado di-
versas descobertas e os primeiros esforços científicos para calcular o número
 (razão entre o perímetro de uma circunferência e seu diâmetro). É conside-
rado um dos mais importantes cientistas da antiguidade. Na Física, contribuiu
para a fundação da hidrostática, tendo feito, entre outras descobertas, o famo-
so princípio que leva o seu nome.
Cláudio Galeno (século II d. C.): filósofo e médico cujos livros sobre a ciên-
cia da medicina tornaram-se padrão por mais de 12 séculos. Tendo adquirido
fama, tornou-se médico particular do imperador romano Marco Aurélio. Fez
várias experiências médicas, incluindo vivissecção e necropsia.
Ptolomeu (século II d. C): astrônomo cujos escritos geográficos e astronô-
micos foram aceitos como padrão, a exemplo do sistema geocêntrico, cujos
princípios foram acatados e defendidos pela Igreja, sendo apenas contesta-
dos 1.400 anos depois
78
MIRANDA, D. S. de

Hipátia (século IV e V d. C) astrônoma, matemática e filósofa, raro caso de


figura feminina dedicada às ciências para a época, tendo sido diretora da Bi-
blioteca de Alexandria. Morreu tragicamente, tendo sido assassinada devido
à intolerância religiosa.

2. O surgimento de Roma
O surgimento de Roma já aconteceu envolto em lendas e narrativas míticas.
Segundo a mitologia romana, Rômulo, junto com seu irmão gêmeo Remo, seria
seu fundador e seu primeiro rei. Tradicionalmente a data da fundação de Roma
é atribuída ao ano de 753 a. C. Os dois gêmeos eram filhos do deus da guerra
Marte com a vestal Reia Sílvia, descendentes de Eneias, um troiano sobrevi-
vente da guerra de Tróia que, depois de uma viagem errática pelo Mediterrâneo,
teria aportado à região atual da Itália. Segundo esse mito, Eneias seria o ances-
tral de todos os romanos. A Eneida, poema épico de Vírgilio, narra a epopeia do
herói, depois de Tróia destruída. Encomendado pelo imperador Augusto, o po-
ema pretende ser uma versão latina da obra de Homero, a Ilíada e a Odisseia.
De origem obscura, os etruscos eram habitantes da antiga Etrúria, região
setentrional da península itálica, ocupando boa parte dela entre os séculos XII e VI
a.C. Mas eles não se limitaram à Etrúria e chegaram Lácio, região onde iria se loca-
lizar a futura Roma. Portanto, o domínio da civilização etrusca sobre grande parte da
península itálica, inclusive a parte romana, perdurou mais de seis séculos.
De forma bem sintética, podemos dizer que a arte romana, portanto,
sofreu duas fortes influências: a da arte etrusca, voltada de preferência para
a expressão mais realística da vida, e a da greco-helenística, orientada para
a expressão de um ideal de beleza, perseguido por muitos de seus artistas.
Porém, o legado artístico etrusco mais relevante deixado aos romanos
foi o uso do arco e da abóbada em suas construções, dois elementos arqui-
tetônicos desconhecidos na Grécia. Com esses dois elementos, os romanos
ampliaram os espaços internos, sem utilizar colunas, o que era próprio, por
exemplo, dos templos gregos.
Sem o uso do arco, o vão entre as colunas era delimitado pelo tamanho
do mesmo, cujas distâncias entre elas não podiam ser muito grandes: quanto
maior era a viga, maior a tensão sobre ela. E o uso frequente de materiais
rochosos mais resistentes como a pedra não suportava grandes tensões. Daí
o uso característico das colunatas dos templos gregos, ocasionando a redu-
ção do espaço de circulação. Com o uso do arco, permitiu-se ampliar o vão
entre as colunas, pois seu centro não ficava sobrecarregado, visto que o peso
encontrava-se distribuído de modo homogêneo sobre ele. Como o arco era
construído com blocos de pedra, a própria tensão desses os fazia serem com-
primidos uns contra os outros, dando ao arco maior estabilidade.
79
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Figura 26 – Os Esposos de Cerveteri Sarcófago em terracota (arte etrusca)

Examinemos a civilização romana, que nos legou uma cultura decisiva


para a formação do que passou a ser conhecido como mundo ocidental. Até o
século VII a. C., Roma era apenas uma modesta cidade do Lácio. No século
IV a. C. começa sua expansão territorial, contando para isso fortes interesses
comerciais, um sólido sistema republicano e um exército bem disciplinado.
Ao conquistar povos do Oriente, inclusive as cidades helenizadas, os
romanos tomam contato com a arte e cultura gregas, causando neles uma
admiração sem limites. Nascia, assim, o que passou a ser largamente co-
nhecido como a civilização greco-romana. Na verdade, a despeito de certo
senso comum de ver a civilização romana como mera imitadora da cultura
grega, Roma não se limitou a imitar, mas soube coesionar as influências do
Mediterrâneo (a grega, a etrusca, a egípcia e a do Oriente Próximo) para re-
criar um estilo original e cosmopolita. Historiadores da arte consideram o final
do primeiro século d. C. a libertação de Roma das duas influências principais,
a grega e a etrusca, pronta para as suas criações independentes e originais.
Pragmático, o Império Romano soube implantar onde chegou, sua or-
ganizarão política e econômica apoiada no conceito de urbs, a cidade latina.
A civilização imposta pelos romanos era composta de muitos povos, culturas,
deuses e estruturas políticas diferentes, cujo centro de comando sediava-se
em Roma, habitada por uma elite consumidora de produtos de luxo, muitos
dos quais vindo do Oriente. Mediante alianças, acordos ou imposições pela
força militar de suas legiões, Roma soube construir um império de dimensões
extraordinárias. No século II a. C., era a potência máxima do Mediterrâneo,
que os romanos, manifestando intenso sentimento de pertença, chamavam
de Mare Internum Nostrum. Seus limites iam do norte da África à Europa Cen-
tral e às Ilhas Britânicas, da Hispania à Pérsia.
O processo de romanização inicia-se com a urbanização dos territórios
anexados no ano 27 a. C., quando Otávio recebe o titulo de Augusto. Para
80
MIRANDA, D. S. de

administrar com êxito a magnitude de seu território foi preciso encontrar solu-
ções eficazes, como o uso de novos materiais e procedimentos construtivos.
Premidos pelas circunstâncias históricas, os romanos aprenderam a ser exce-
lentes construtores, aliando em suas edificações, o pragmatismo de seus fins
com novos valores estéticos, conforme veremos.

Texto complementar
O Século de Augusto
Análogo ao século de Péricles, a civilização romana teve também seu correlato com Caio Julio
César Otaviano Augusto, cujo império cobriu um período de 40 anos, marcando uma das épo-
cas mais brilhantes da civilização romana. Após conhecer o poeta Virgílio, o imperador passa a
financiar sua arte. Além desse, favorece também o historiador Tito Lívio, o arquiteto Vitrúvio
e vários outros literatos, contando para a ampliação de seu patrocínio às artes e letras com a
parceria do seu ministro, Caio Mecenas.
Assim, no campo cultural, o Século de Augusto foi rico, cheio de promessas criadoras, inau-
gurando uma época clássica para a arte europeia, um classicismo latino que, mil anos depois, no
período renascentista, ainda dava frutos. Nessa época, foram fundadas várias bibliotecas públi-
cas, a literatura latina, anteriormente colada ao modelo grego, ganhou autonomia, tornando-se
uma das mais brilhantes da cultura ocidental. Como vimos, foi de fundamental importância,
para as artes, a sua aliança com o rico cidadão e estadista romano Caio Mecenas. Ao administrar
a grande fortuna familiar tornou-se hábil conselheiro de Augusto César. Retirado da vida políti-
ca, empenhou-se intensamente na proteção generosa das artes, incluindo, no seu círculo lite-
rário, famosos homens das letras como Horácio e Virgilio. Augusto construiu o fórum, que leva
seu nome, as primeiras termas, no campo de Marte, e vários templos, como o dedicado a Roma
e a ele próprio por todo o império. A Roma de Augusto tornou-se conhecida como “cidade de
mármore”. Ergueram-se templos à deusa Roma e a Augusto por todo o império.
O século de Augusto se notabilizou também por ter iniciado a Pax Romana ou Pax Octa-
viana, expressões latinas para designar a situação de relativa paz do Império, iniciada quando
Augusto César, em 27 a.C., declarou o fim das guerras civis, o que nem sempre foi obtido, e que
teria perdurado até 180 da era cristã, sob o império de Marco Aurélio. Mas a pax que caracteriza
o período deveu-se à neutralização das constantes investidas dos povos do Norte, os chamados
povos bárbaros, graças à ocupação das províncias por exércitos permanentes que impunham a
ordem, reprimindo pela força, qualquer tentativa de revolta. Apesar de seu caráter violento, a
pax romana proporcionou uma época de relativa estabilidade e prosperidade, durante a qual a
civilização romana se estendeu a todo o Império, consolidando assim o processo de romaniza-
ção do mundo sob seu domínio.
Vários historiadores atribuem a este período de relativa tranquilidade e paz – fincado em
certa unidade cultural propiciada pela mesma língua (o koiné, espécie de grego popular) e pelo
mesmo sistema jurídico e administrativo, bem como pelo intenso comércio e convívio entre os
vários povos –, as condições objetivas para a difusão do protocristianismo.
81
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

3. O sistema das artes romanas


3.1. Os templos
A construção dos templos romanos costumava se dá num plano mais elevado,
cujo acesso era alcançado depois de se vencer uma escadaria diante do seu
lado frontal principal, fazendo com que essa parte se distinguisse das laterais e “As cavidades quadradas
18

do fundo da construção. Com isso, estabelecia-se claramente sua diferença em que compõem a cúpula [do
relação aos templos gregos que se preocupavam em fazer da frente, fundo e la- Panteão] vão diminuindo
terais, partes equivalentes, duas a duas, em sua arquitetura. Existe outra distinção à medida que se aproxima
do centro. Esse recurso
marcante na concepção arquitetônica das duas civilizações: enquanto a grega aumenta a sensação de
edificava templos para sua contemplação externa, a romana preocupava-se mais perspectiva e termina numa
com seus espaços interiores. O Panteão, construído no reinado do Imperador abertura de 9 metros de
Adriano (117 - 138 d.C.), é um flagrante exemplo dessa característica. Marcos diâmetro, permitindo a
Agripa, genro de Otávio Augusto, teria iniciado sua construção em 27 a. C. entrada da luz natural que
torna o ambiente interno
O pragmatismo romano levou não apenas à tolerância da diversidade claro e leve, apesar da
de culto, mas chegou a edificar um templo onde se pudesse encontrar está- monumentalidade da
tuas de suas divindades. O Panteão (do grego pántheon18, todos os deuses) construção”. (PROENÇA,
possui uma planta circular fechada por uma cúpula, criando um local isolado 1989, p. 40)
do exterior, propicia um clima de recolhimento para o culto. Considerado como
o maior monumento representativo da arquitetura greco-romana que chegou
intacto até nossos dias, passou a ser um templo cristão a partir do século VI.

3.2. O teatro
Devido ao uso de arcos e abóbadas herdado dos etruscos, foi permitido, aos
romanos, construir edifícios muito mais amplos do que os de influência grega,
sobretudo quanto a seus anfiteatros, destinados a abrigar um número bem
maior de pessoas graças à alteração feita na planta grega.
Os construtores romanos, ao justapor fileiras de arcos, conseguiram
um sólido e seguro apoio para construir o auditório, uma grande arquibanca-
da para receber publico. Com tal procedimento, liberaram-se das encostas
rochosas das colinas, conforme o projeto grego, tendo como consequência
imediata a possibilidade muito mais flexível de erigir teatros em qualquer local,
independentemente de sua topografia.
Partindo do uso do arco e da abóbada como um dos recursos caracte-
rísticos de sua arquitetura, os romanos usaram ainda como suporte grossos
pilares. Além da pedra, empregaram com frequência o tijolo, mais flexível e
barato. Mas foi o opus caementicium, o concreto antigo, sua grande descober-
ta, espécie de argamassa líquida de cal, areia, partes de pedra e água, mistu-
ra que se consolidava e endurecia rapidamente, permitindo grandes projetos.
Armado o esqueleto da construção, recobriam-na em muitos casos, com már-
more e pedra, criando grandes espaços internos.
Como o povo romano apreciava as lutas dos gladiadores, o espetáculo
possuía boa visibilidade independente do ângulo que era usado, cuja ação se
82
MIRANDA, D. S. de

dava numa arena, espaço circular elíptico circundado por muros radiais, e um
gigantesco auditório composto por um grande número de filas de assentos,
formando uma arquibancada.
O subterrâneo da arena contava com um complexo sistema de galerias,
passadiços, depósitos, celas para os animais e mecanismos para elevar, à
arena, os homens e animais. Todas as cidades possuíam um anfiteatro, mas,
com toda certeza, o mais grandioso e belo foi o Flavio (século I d. C.), mais
conhecido como o Coliseu de Roma, com uma capacidade de aproximada-
mente 75.000 lugares. Nos seus alicerces foi utilizado o opus caementicium e
nos pilares e na fachada, blocos de pedra.
Externamente o edifício apresentava uma combinação de arcos entre
colunas e entablamentos, apresentando, em sentido ascendente, uma sobre-
posição de ordens toscana, jônica e coríntia. As colunas eram, na verdade,
meias colunas, pois ficavam atadas à estrutura das arcadas, não exercendo,
portanto, a função de apoio à construção, mas apenas, de ornamentação.

3.3. A escultura
Inicialmente, a admiração dos romanos dirigida à arte grega não impediu que,
graças às suas características culturais pragmáticas, procurassem caminhos
estéticos diferentes. Tendo herdado o realismo da arte etrusca, eles produzi-
ram esculturas que são uma representação fiel das pessoas e não do ideal de
beleza humana, conforme perseguiam os gregos.
No entanto, mediante o contato mais
frequente com esses últimos, os escultores
romanos sofreram forte influência das con-
cepções helenísticas a respeito da arte,
sem abdicar um interesse muito próprio e
peculiar: representar os traços individuali-
zadores da pessoa retratada. Ocorreu as-
sim uma síntese entre a concepção artísti-
ca romana e grega, o que se pode verificar
na estátua de Augusto (c.19 a. C).
Seu autor teria se inspirado no Dorí-
foro de Policleto (sempre ele) como para-
digma de beleza escultórica, porém com
algumas alterações para adaptá-la ao gosto
romano. A obra procura captar as reais fei-
ções de Augusto, vestindo-o com uma cou-
raça e uma capa romanas. Seu olhar fixo Figura 27 – Gaius Iulius Caesar Oc-
com o braço direito estendido como se diri- tavianus Augustus
gisse aos seus súditos e sua perna esquerda levemente dobrada lhe dão mais
flexibilidade e movimento.
83
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

O estilo romano, representado pela aplicação de elementos bem determi-


nados, como nas esculturas dos imperadores, podia ser também visto nos mo-
numentos destinados a celebrar algum feito relevante do Império e o realismo
pragmático característico se fazia igualmente presente em sua arte escultórica.
O interesse pelo realismo e a veracidade levou a arquitetura romana a
substituir motivos mitológicos e intemporais, tão caros aos gregos, por assun-
tos de seu tempo, quase sempre vinculados à administração do Império. São
relevos detalhistas, plenos de pormenores históricos, com personagens reais,
protagonistas dos eventos narrados A Coluna de Trajano e a Coluna de Marco
Aurélio são dois nítidos testemunhos de tal marca.

Figura 28 – Detalhe da coluna de Trajano (114 d.C.)

Projetada por Apolodoro de Damasco, um dos maiores arquitetos do


Império Romano, a Coluna de Trajano narra a campanha do Imperador ro-
mano e de seu exército contra os povos da Dácia (região da Europa centro-
-oriental, às margens do mar Negro), com a clara intenção propagandística
do Imperador. Ao longo da coluna, sua figura aparece mais de 60 vezes,
sempre numa escala ligeiramente superior a dos demais personagens, glo-
rificando sua capacidade militar. O grande número de figuras esculpidas em
relevo faz dessa obra monumental do auge da arte imperial romana, um im-
84
MIRANDA, D. S. de

portante documento histórico em pedra, contendo um expressivo valor


artístico: batalhas, pilhagens e acampamentos militares apresentam cer-
ca de 2.500 figuras individualizadas, expressadas em grande realismo.
A Coluna de Marco Aurélio, produzida para celebrar o êxito da sua campa-
19
Afresco nha no norte europeu, mostra todo o realismo do relevo romano expresso
O afresco é uma técnica na agressividade dos soldados massacrando sem piedade os adversários já
de pintura mural, cuja
derrotados e caídos ao chão.
preparação da superfície
exige grandes cuidados na
aplicação da camada de
3.4. A pintura19
gesso que deve ser bem Devemos atualmente o conhecimento da maior parte das pinturas romanas
lisa e fina. É aí que o artista
graças às descobertas das cidades de Pompeia e Herculano, soterradas e
executa sua obra. Essa
superfície assim preparada conservadas debaixo dos escombros, sob a lava endurecida da erupção do
deve estar úmida para Vesúvio em 79 d.C. Assim foi possível o contato com a pintura decorativa dos
receber a tinta. Com a murais, sobretudo com a técnica do afresco19. A partir da pesquisa desse acer-
evaporação da água, a cor
vo remanescente foi possível reconstruir um quadro bastante sugestivo da
da tinta adere ao gesso e
o gás carbônico do ar, ao fecunda e diversificada vida artística da Roma Antiga, na virada da era cristã
se combinar com a cal, a (período de transição da República para o Império). Desde suas origens etrus-
transforma em carbonato cas, Roma tinha sido uma grande consumidora e produtora de arte tributária
de cálcio, fixando, assim,
dessas origens que, por sua vez, recebera influxos da arte grega arcaica.
o pigmento à parede. A
pintura seca se incorpora Ao entrar em contato com a arte hele-
ao reboco, tornando-a parte nista, a arte romana passou a assimilar seus
constitutiva da parede. Tal
princípios em todos os campos artísticos,
técnica oferece dificuldades
de aplicação pelo fato alterando-os, no entanto, para atender aos
do artista ter que prever seus traços de pragmatismo realista; não foi
o real tônus cromático diferente com a pintura. É por demais sabi-
que queira fixar, pois, a
do o costume romano de copiar obras cé-
camada, ao secar, pode
alterar substancialmente a lebres, bem como de fazer variaçôes sobre
tonalidade da cor pretendida. técnicas e temas gregos, conforme já ana-
lisamos. Segundo vários relatos, as obras
gregas eram altamente cobiçadas durante Figura 28 – Cena do cotidiano de
uma família de Pompeia (afresco)
as conquistas militares. Assim, devemos aos
romanos o muito do que hoje sabemos so-
bre os estilos da pintura grega. Podemos contemplar afrescos dispersos em
toda a área do antigo império romano, mas é graças sobretudo à preservação
dos numerosos exemplares das cidades de Pompeia e Herculano que pode-
mos aquilitar a qualidade e excelência da pintura romana, cuja influência tornou-
-se bastante significativa para a pintura ocidental.
85
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Basílica: grande edifício


20

de origem helenística, cuja


Texto complementar arquitetura foi largamente
difundida pelos romanos,
As termas20 sendo mais tarde adaptada
pelos templos cristãos
"As termas adquiriram uma grande importância e monumentalidade, pois o banho constituía para uso de seus cultos.
um dos prazeres favoritos dos romanos. Eram lugares de encontro onde estreitar as relações Na realidade, a basílica
sociais, nas quais, além de tomar os banhos, os romanos conversavam, passeavam, liam, ouviam é uma transformação da
conferências, descansavam, jogavam ou praticavam esporte. E nas quais se vendiam bebidas e ágora colunada grega,
doces, faziam-se massagens e se podia depilar. Isto explica que em cada cidade houvesse uma que os romanos cobriram,
quantidade de termas (que no caso de Roma superavam as duzentas) abertas a todos, indepen- construindo, assim, um tipo
dentemente da condição, idade ou sexo de cada um. de edifício para diversos usos
Inicialmente as salas eram aquecidas com braseiros, mas mais tarde apareceu o sistema de caráter público, como
de aquecimento chamado hipocausto. Este faz circular ar quente sob o pavimento e entre as assembleias cívicas, tribunais,
paredes, ar que se aquece com um grande forno ou chaminé colocada [sic] no porão e alimen- bem como atividades
tada [sic] com madeira. comerciais e sociais.
Nos edifícios termais havia uma série de aposentos de diferentes características e função,
adaptados à alternância de banhos de água quente e fria e a passagem por outros de ambiente Mosaico: o termo mosaico
morno ou temperado. Muitas eram decoradas [sic] com pinturas ou estuques, e pavimentadas (do grego mouseîn), o
com mosaicos*. mesmo que deu origem
à palavra música, próprio
Não existem dois edifícios termais idênticos. As plantas variam, segundo o circuito ou percur-
das musas, refere-se a
so previsto em cada caso. Nero, em 64 d. C., implantou um modelo muito imitado posteriormen-
uma arte conhecida, desde
te, de grandes dimensões (mais de 16.000 metros quadrados) e submetido a um rígido princípio
a antiguidade, no Oriente
simétrico com salas duplicadas em torno de um eixo central.
Próximo e Médio: sumérios,
O conjunto incluía vestiários (apodyteria), salas com piscinas de água quente (caldarium), babilônicos, egípcios e
morna (tepidarium) e fria (frigidarium), sauna (sudatio), além de latrinas, ginásios, salões, biblio- judeus recorreram ao
tecas e jardins. mosaico para decorar os
De tamanho colossal, com gigantescas dimensões, são uma amostra dos problemas cons- seus templos. A tradição
trutivos que foi capaz de resolver o arquiteto romano na hora de abobadar grandes espaços, na ostentada no Ocidente não
distribuição e ordenação da planta e as instalações ou na iluminação. O exemplo mais grandioso se origina, porém, daqueles
de termas imperiais nos oferece o edifício mandado construir por Caracalla entre 212 e 217 d.C." povos orientais, mas sim
(História da Arte: da Pré-história até a Arte Contemporânea, p. 30) do helenismo. Sua técnica
Como vimos, a arte romana revela um povo possuidor de um grande espírito pragmático: consiste na montagem
por onde estiveram, fundaram cidades cujos nomes ou formatos se inspiravam em acampamen- de pequenos fragmentos
tos militares fortificados, como Colônia, na Alemanha, e Léon, de legio (legião), na Espanha. Nas (tesselas) de pedras
cidades construídas ou conquistadas, erguiam templos, teatros, termas, aquedutos, mercados e semipreciosas, cerâmica ou
basílicas,* grandes edifícios para diversas atividades governamentais. vidros coloridos, mármore,
conchas, formando desenhos
com motivos de diversas
4. O fim do império naturezas, como figuras
mitológicas, figuras cristãs
Morto Marco Aurélio, termina o longo período da pax romana. Na verdade, como mártires e santos,
como se viu, foi apenas um período de relativa tranquilidade no que se refere bem como animais ou outros
à contenção das investidas dos bárbaros mantidos, manu militari, nos limes símbolos alegóricos, com o
objetivo de preencher algum
(extensas muralhas fortificadas nas regiões fronteiriças do império). Depois tipo de superfície, como pisos
das primeiras décadas do século III, as lutas intestinas pelo controle e man- e paredes, ou então algum
do do Império se acirraram e, além disso, houve a intensificação da pressão objeto tridimensional.
86
MIRANDA, D. S. de

dos povos bárbaros, principalmente das tribos germânicas do norte que, cada
vez mais, investiam a partir das suas fronteiras. A impossibilidade de manter
unificado o imenso Império, que mais e mais se expandia, levou o Imperador
Teodósio I (395) a dividi-lo entre os dois filhos, o que foi feito após sua morte:
Honório ficou com a porção ocidental, capital Roma, e Arcádio ficou com a
porção oriental, capital Bizâncio, depois Constantinopla, em homenagem a
Constantino, o primeiro imperador a aderir ao cristianismo21. São diversas as
causas atribuídas à queda do Império Romano, dentre elas, as constantes
guerras intestinas e as frequentes investidas dos bárbaros cada mais vez di-
fíceis de serem mantidos nas linhas dos limes. Era o início do declínio do
grande Império. Durante o século V, Roma foi invadida e saqueada diversas
vezes até que, em 476, perde o domínio do seu vasto território do Ocidente
21
Reza a tradição que a para Odroaco, chefe da tribo germânica dos hérulos, que invade a Itália e
adesão de Constantino à depõe Rômulo Augusto, o último soberano do Império Romano do Ocidente.
fé cristã deu-se logo após A intensa vida urbana do período áureo do Império, resultado, dentre
a vitória sobre o Imperador
Maxêncio, na batalha da
outras coisas, do intenso comércio entre os vários povos dominados, adminis-
Ponte Mílvio (312), perto trados pelo pragmatismo de um competente sistema jurídico-organizativo, se
de Roma; Na noite anterior esvazia, dando lugar a um lento, progressivo e constante processo de rurali-
sonhara com uma cruz com zação. Para muitos historiadores, esta data marca o fim do longo período da
a seguinte frase em latim: in
Idade Antiga e o começo da Idade Méia.
hoc signo vinces (“sob este
símbolo vencerás”). Antes da
batalha, mandou pintar uma 4. As artes na alta Idade Média: o bizantino, o gregoriano
cruz em todos os escudos
dos soldados e obteve uma e os períodos merovíngio e carolíngio
vitória esmagadora, que
Constantino atribuiu ao Deus 4.1. A protoarte Cristã
cristão.
O nascimento e a propagação da fé cristã pelo Império, como se viu, se dá duran-
te o período da pax romana. Cedo, Roma passara a ser a residência do primeiro
papa, tornando-a também o centro da protocristandade. Porém, ao contrário do
pragmatismo tolerante com outras religiões, até Constantino, o Império Romano
perseguira cruelmente, em vários períodos, o cristianismo, devido, dentre outras
causas, ao combate à escravidão, crucial base do Império, bem como ao ques-
tionamento da divindade da figura do imperador. Contudo, a nova fé cristã passa
a ser a religião oficial do Império Romano, em 390, com Teodósio.
Para fugir das perseguições, os primeiros cristãos refugiavam-se nas
catacumbas, cemitérios subterrâneos, onde também praticavam o culto e pin-
tavam símbolos da religião como o peixe (ichtys em grego), na verdade as ini-
ciais da expressão Iesous Christos, Theous Yous Soter, isto é, “Jesus Cristo,
Filho de Deus Salvador”. Esse sinal cifrado da pessoa de Cristo e, a um só
tempo, espécie de código de identificação no interior da comunidade de fiéis
foi, de fato, a primeira imagem pintada da protoarte cristã. Quando a ocasião
lhes era propícia, os fiéis pintavam cenas das Sagradas Escrituras.
87
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

No início, o culto cristão era realizado em sinagogas, junto com o culto


judaico. Conquistada a garantia de culto pelo Concílio de Niceia, em 313, ter-
mina a perseguição aos fiéis. Com o maior afluxo de convertidos, foram sendo
construídos cada vez mais templos cristãos, cujo estilo arquitetônico obedecia
às características do modelo das basílicas, por serem possuidoras de maior
espaço em seu interior.
A planta do espaço interno do templo tinha que ser organizado para
atender às exigências do culto. Geralmente, constava de uma nave central
bastante ampla, sem bancos, onde permaneciam os fiéis durante a cerimônia.
A extremidade do eixo da nave finalizava com uma ábside, geralmente em
forma semicircular, com o altar à sua frente.
Com o tempo a grande nave passou a ser atravessada por um transepto
(galeria transversal no corpo da nave) originando a planta cruciforme, um tem-
plo no formato de uma grande cruz latina, com o transepto em dimensão menor
que o eixo da nave. Outra planta cruciforme era baseada na cruz grega, cujas
hastes têm as mesmas dimensões, o que significa que as naves atravessadas
eram exatamente iguais. Suas paredes e teto passaram a ser ornamentadas
com pinturas e mosaicos tendo em vista a transmissão dos mistérios da fé.
Nesse período, o teor e a forma das manifestações artísticas, além de
sua clara subordinação à fé, possuíam papel crucial na propagação e edu-
cação da doutrina cristã. Se a estética cristã (se é que podemos nos referir a
esse conceito, tal era o desinteresse manifesto por parte do protocristianismo
pela matéria), expressava uma forte aversão às imagens e à estatuária, pelo
receio da idolatria (houve vários levantes violentos dos iconoclastas promo-
vendo a destruição de imagens), a Igreja logo percebe sua força como for-
ma de fixar a doutrina no seio de uma população analfabeta. O recurso das
imagens passa a ser visto coma a biblia pauperum, a bíblia dos pobres, para
aqueles cristãos que não sabiam ler, muito menos sabiam latim. Tal recurso
funcionava com uma narrativa por imagens, constituindo, assim, um dos mais
cruciais elementos fundantes da arte euro-ocidental.

4.2. A Arte Bizantina


Constantinopla, anteriormente Bizâncio, fundada por colonos gregos em 657 a.
C e refundada em 330 por Constantino, foi o grande centro irradiador do primeiro
grande estilo de arte cristã, a Arte Bizantina. Escolhida como capital oriental do Im-
pério Romano, desde a sua divisão em 395, graças à sua localização privilegiada,
era um excelente centro comercial e manufatureiro, por onde passavam várias
rotas mercantis da Europa, Ásia e Oriente Médio. Rebatizada como Constantino-
pla, deu continuidade à antiga política expansionista e centralizadora de Roma,
substituindo, assim, o papel da antiga capital do Império.
88
MIRANDA, D. S. de

Situada estrategicamente entre a Europa e a Ásia, no estreito de Bós-


foro, na confluência de várias culturas de inegável vigor, Constantinopla foi
o berço da arte bizantina que, sintetiza, em sua forma e conteúdo, influxos
estéticos de Roma, da Grécia e dos chamados Oriente Próximo e Médio, ou
seja, a arte bizantina expressa a síntese do cristianismo, do helenismo e do
orientalismo. Fortemente cristã, ostenta um ar majestoso.
A coesão de elementos dessas distintas culturas configurou um estilo
novo, rico tanto na técnica como na cor. O termo bizantino passou a designar
as manifestações artísticas de todo Império do Oriente e não apenas a arte
daquela cidade. Ao contrário do teor e da forma singela da primeira arte cris-
tã do período das catacumbas, feita na época de uma igreja padecente, por
pessoas simples, sem maiores intenções de buscar efeitos estéticos, a arte
bizantina expressa o momento do luxo e esplendor de Constantinopla. Assim,
desde a oficialização da religião cristã, a arte assume um estilo majestoso,
representando a riqueza e o poder de uma igreja triunfante.
A arte bizantina estava sob o comando dos hierarcas da Igreja, a quem
cabia, além das funções litúrgicas, organizar igualmente todo o sistema das artes,
cuja finalidade era bem clara: expressar a autoridade do Imperador, considerado
sagrado e representante divino, com poderes sagrados e temporais, procurando
conciliar a espiritualidade necessária para a prática do culto com a ostentação
e o luxo da realeza, típicos de longa tradição oriental. Mas a expressão da lin-
guagem artística cristã não se manifestou logo de forma pura. Ainda durante os
reinados de Constantino e Teodósio, no século IV, era possível encontrar estátuas
de deuses e figuras mitológicas greco-romanas, nas primeiras igrejas cristãs. Foi
somente no reinado de Justiniano (527 - 565) que Constantinopla adota definitiva-
mente as características de um Estado fortemente teocrático com o cristianismo
já oficializado como religião imperial, que acumula, nas mãos, todos os poderes.
Para isso, a arte bizantina tornou-se objeto de uma série de normas
canônicas, convertendo-se numa arte tipicamente dirigida, à imagem e se-
melhança da arte egípcia faraônica, só que voltada à exaltação dos ideais
cristãos e à glória de seus representantes, os imperadores. Assim o monarca
era representado com a cabeça aureolada, a exemplo do mosaico do Impera-
dor Justiniano (início do século VI), convenção aplicada a figuras sagradas e
aos santos canonizados, não sendo raro encontrar mosaicos onde eles estão
ladeando a Virgem Maria e o Menino Jesus.
Por outro lado, via de regra, as figuras de Cristo e de Maria eram repre-
sentadas como rei e rainha, dando, assim, a ideia de que tais figuras sagradas
eram dotadas das mesmas características das personagens do Império. A
mesma intenção encontra-se no cortejo de santos e apóstolos que se aproxi-
ma de Cristo e Maria com o mesmo respeito, pompa e cerimônia exigidos dos
súditos nas solenidades da corte.
89
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

22
Cristo Pantocrátor (do grego
Outra convenção foi a lei da frontalidade, pela qual o olhar contemplante
pan + cratós, todo poder): na
podia observar a figura rígida do imperador e manifestar respeito e admiração iconografia bizantina o Cristo
por ela. Além dessa, várias outras normas foram estabelecidas, a exemplo da Pantocrátor é mostrado com sua
posição de cada personagem na composição total da obra, a indicação de como mão direita levemente inclinada,
em posição de bênção: o dedo
deveriam ser os gestos das mãos, a posição dos pés, o drapejado das vestes, os
polegar encontrata-se voltado
símbolos a serem utilizados, etc. Enfim, tudo já estava rigorosamente pré-determi- para o próprio Cristo, o médio
nado, restando, aos artistas, apenas a execução da obra. Esse cânone redundou e o indicador acham-se em
na ruptura com os padrões estéticos naturalistas de períodos anteriores (clássico posição oblíqua, quase vertical,
e helenístico), substituídos agora por formas sempre sagradas, cujas ideias de e os demais dedos estão
dobrados e fechados contra
representação divina não poderiam ser evocadas pelos critérios antigos. a palma da mão. O gesto da
Daí, além da lei da frontalidade, havia a prática generalizada da forma mão direita indica a dupla
natureza de Cristo: a humana,
solene de apresentar as personagens, uniformes em seus gestos, trajes e ex-
manifesta nos dois dedos
pressões, bem como o uso de simbolismos diversos da percepção cotidiana. erguidos, e a divina, indicada
A cor do céu, por exemplo, passou a ser constantemente dourada, sinalizando pelos três outros dedos unidos
para o homem mortal a busca do reino divino eternamente iluminado. A esta- nas pontas, o que representa
a sua participação na Trindade
tuária restringe-se apenas a imagens sagradas: o Cristo Pantocrátor22 (Cristo como Segunda Pessoa. A mão
todo-poderoso), a Virgem Maria, os apóstolos, os profetas, os santos e os esquerda sustenta as Sagradas
imperadores. Deriva daí o desprezo das artes plásticas para o corpo, conceito Escrituras. Esse gesto costuma
ser repetido pelas autoridades
e estética que acabam sendo disseminados para toda a arte medieval cristã eclesiásticas, desenhando um
que busca coibir qualquer expressão de corporidade e sensualidade, inclusive largo movimento em forma de
na música sacra gregoriana, conforme iremos ver mais adiante. cruz para abençoar os fiéis, a
exemplo da benção papal urbi
et orbe, direcionada à cidade de
Não existe arte menos sensual que a bizantina. A figura humana não é mais
Roma e ao mundo.
representada por si mesma, mas apenas como morada de um pensamen-
23
Têmpera e encáustica:
to religioso, de uma fé. A criação mais habitual [...] é a do asceta magro
“têmpera é o nome que recebe
e severo, as faces cavadas, olhos imensos, atitude dramática - eloquente um dos modos que os artistas
expressão do tipo monástico. (Paul Lemerle, apud CUNHA, 2003, p. 49) bizantinos utilizavam para
preparar a tinta usada em seus
Das linguagens artísticas bizantinas, quatro se destacam: os mosaicos ícones. Consiste em misturar
os pigmentos com clara de
(expressão máxima de luxo e suntuosidade), os ícones, os afrescos e a arquite- ovo, para facilitar a fixação das
tura, cujas técnicas chegaram a um grau de extremo requinte. O mosaico já era cores à superfície do objeto
conhecido pelos artistas egípcios, persas e romanos, mas, de uso preferencial- pintado. O resultado é uma
pintura brilhante e luminosa. [...]
mente decorativo, era destinado ao revestimento dos pisos das casas, templos Já a técnica da encáustica foi
ou termas, conforme vimos. O que o faz diferente é o estatuto de arte extre- utilizada desde a Antiguidade.
mamente sofisticada da pintura mural que os bizantinos lhe atribuíram. Quanto Os gregos usavam-na, p. ex.,
para colorir suas esculturas de
menores os cubos de pedra ou de vidro embutidos nas paredes, mais variados
mármore. O processo consiste
e ricos os efeitos policromáticos obtidos. Nos murais assim construídos, os artis- em diluir os pigmentos em
tas retratavam cenas da vida de Cristo, dos profetas e dos imperadores. cera derretida e aquecida no
momento da aplicação. Ao
Outro resultado extremamente requintado foi obtido pela técnica da arte contrário da têmpera, cujo
iconográfica bizantina23. Os ícones (do grego eíkon, imagem) eram pequenos efeito é brilhante, a pintura
quadros com personagens sagradas, pintados mediante o uso da encáustica, em encáustica é semifosca”.
(PROENÇA, 1989, p. 52)
mas, sobretudo, da têmpera, aplicada em superfícies de madeira ou metal: a pri-
90
MIRANDA, D. S. de

meira camada era totalmente dourada (procedimento muitíssimo usado, pela as-
sociação com o considerado maior bem existente na terra - o ouro), seguindo-se
a pintura da imagem; na sequência dava-se a retirada de parte dessa camada de
tinta, visando à revelação do traje das personagens e da auréola. Via de regra,
nos trabalhos que buscavam luxo e ostentação, os artistas usavam da colagem
de pedras preciosas ou semipreciosas, para, por exemplo, o adorno de coroas.
Na região euro-ocidental, os afrescos so-
mente iriam adquirir relevância na baixa Idade
Média, a partir do século XII, quando é difundida a
arte românica. Surgiram, na época, duas grandes
escolas: a cretense, que difunde sua influência
desde a região da Sicília ao norte da Itália, e a ma-
cedônica, cujos traços de maior rigidez e simpli-
cidade difundem-se sobretudo no Leste europeu.
O apogeu da arte bizantina foi alcançado
graças à riqueza obtida pelo desenvolvimento
econômico e pela centralização política do impé-
rio romano oriental, principalmente a partir do rei-
nado de Justiniano, apresentando as condições
objetivas para que a construção de vários edifí-
cios suntuosos – palácios, teatros, hipódromos,
Figura 29 – Cristo Panto- termas e, sobretudo, igrejas, – de concepções
crátor (Monastério de Santa arquitetônicas bastante inovadoras para a época.
Catarina) A basílica Hagia Shopia (Sagrada Sabedoria, co-
24
Medievo: do latim medium
nhecida como Santa Sofia), erguida entre 532 e
aevum, termo atribuído a 537, é um dos maiores triunfos da nova técnica bizantina, com uma cúpula de
pensadores da modernidade 55 metros apoiada em quatro arcos plenos. Com tal método, a cúpula passa
europeia para designar, a poder ser situada em nível extremamente alto, como que querendo se fundir
segundo eles, o período
intermediário de pouca
com a abóboda celeste, sugerindo universalidade e poder absoluto.
criatividade entre dois pólos Bizâncio, mediante sua arte, inspirou grande parte das obras do medie
de extrema inventiva (era vo cristão ocidental, a exemplo dos mosaicos e das pinturas em afrescos,
24
clássica greco-romana e a
renascentista).
retábulos, iluminuras e em outros tipos de miniaturas.
91
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Figura 30 – Interior da Igreja de Santa Sofia

4.3. O canto gregoriano e a música medieval


Santo Agostinho e São Gregório Magno são as duas grandes personalida-
des responsáveis pela criação do canto gregoriano, a forma mais expressiva
do medievo cristão, também conhecido como cantochão. Fruto dos múltiplos
atravessamentos dos cantos litúrgicos da Igreja de Bizâncio, Síria e Palestina,
nos primórdios cristãos, é inicialmente sistematizado pela tradição patrística*,
cujos maiores representantes são Ambrósio e Agostinho nos séculos IV e V, e
consolidado no papado de Gregório Magno, no século VI.
O gregoriano surge no contexto da vida monacal, a qual se configurou
como importante modo de vida para as primeiras comunidades cristãs, para en-
frentar uma Europa recém saída do desmoronamento da Antiguidade clássica
greco-romana. Agostinho, vivendo esse momento, expressa em sua obra De
Civitate Dei (“Sobre a Cidade de Deus”), todo o pathos da percepção de uma
cultura e civilização tragicamente ameaçadas. O imenso Império depositário de
toda a tradição da Antiguidade – cuja capital, Roma, a cidade eterna cristã, é
invadida pelo visigodo Alarico I –, está prestes a desaparecer, o que realmente
irá ocorrer em 476, com a dissolução definitiva do Império Romano Ocidental.
Assim, recém saída da debacle do Império Romano e esfacelada por um
mundo dividido em vários reinos, a Europa da segunda metade do primeiro mi-
lênio cristão, errática e violenta, carece profundamente de uma organização de
conjunto que a normatizasse, o que começa a ocorrer no século VI. Temerosos
da intensa violência que caracteriza o período, monges andarilhos ou eremitas
se agrupam em fortalezas, espécie de pequenas unidades autárquicas econo-
micamente viáveis, cada vez mais poderosas e capazes de resistir aos servos
sublevados. Isolados do entorno violento, espécie de ilhas de paz num mar de
violência, os monges instituem a vida claustral que se investe de um poder norma-
92
MIRANDA, D. S. de

tizador da vida feudal. A primeira organização monacal criada é a de São Bento


que, mediante o modelo claustral das Regula Sancti Benedicti para um mosteiro
da Itália, em Monte Cassino, dita as primeiras regras de funcionamento da vida
contemplativa, generalizando-as para vários outras instituições similares.
Organizada a partir da ordem religiosa monástica, a vida mundana pas-
sa a ser orientada por um tempo unificador, do qual estava carecendo. Por-
tanto, o tempo da vida monacal – ao ser organizado pelas horae canonicae,
as horas canônicas, mediante o canto gregoriano onipresente na rotina diária
da vida monástica, distribuindo-a em pequenos períodos marcados –, passa a
organizar igualmente a vida ordinária do cotidiano do medievo.
Para muitos, o gregoriano, correlato cristão da música apolínea defen-
dida pela estética pitagórico-platônica25, edifica a grande ponte entre a mú-
sica antiga e a da Europa cristã. Expressando o “louvor sereno” a Deus, o
sentido do texto sagrado encontra sua integração a uma melodia que busca
expressar apenas religiosidade. Seu ritmo se constrói nos arcos frásicos da
palavra cantada. Negando a marcação forte de um ritmo regular, necessário,
por exemplo, para as danças populares, ele afirma uma ascese mística que
busca no ritmo frásico, a expressão de pura espiritualidade.
A ausência da pulsação rítmica corporal recalca um tempo ausente, na
medida em que a palavra cantada, na unidimensionalidade de sua monodia
(canto a uma só voz desacompanhada) e sem a materialidade de um tempo
Patrística
25
sensível regularmente marcado, procura expressar palidamente a noção de
O pensamento filosófico eternidade. Este era o mesmo principio da imaterialidade da arte bizantina que
cristão medieval, durante mil
anos de existência, costuma
negava expressar o corpo humano, conforme vimos.
ser tipificado em dois grandes Modelo de prece cantada, o texto dita o ritmo e o sentido da melodia;
momentos: a patrística (do início sua sintaxe e sua intenção linguística determinam o movimento das alturas do
até o século VIII) e a escolástica
(do século XI ao XIV). Para a
tom. “Deve-se, sem dúvida, procurar a base do ritmo gregoriano na estreita
patrística, elaborada junto com ligação que une as melodias ao texto latino. O canto gregoriano é, de fato,
o cristianismo nascente pelos música essencialmente vocal, ou, melhor dizendo, palavra cantada” [grifos no
Pais da Igreja (daí o termo), cuja original] (CARDINE, 1989, p. 57). Valorizando seu lado apolíneo, o gregoriano
marca maior são os influxos
irá gozar, desde os primórdios do cristianismo, de um prestígio exclusivo como
da filosofia platônica, tendo em
Santo Agostinho e Boécio uns via sublime da espiritualidade. A música se investe de uma transcendência
de seus maiores expoentes, desconhecida dos antigos. A ética cívica pagã da doutrina musical pitagóri-
a verdade devia ser buscada ca cede lugar a uma ética transcendente cristã. A despeito dos antigos reco-
essencialmente pela revelação
nhecerem o elemento sagrado na música, ela era mais apreciada pelos seus
e pela fé. A escolástica,
marcada profundamente pelo efeitos catárticos purificadores, ao restabelecer a harmonia do humano com a
pensamento aristotélico, tem ordem cósmica e com o divino.
seus maiores representantes em
Monódico, despojado de acompanhamento, sem pulsação, entoado
Santo Anselmo, Santo Alberto
Magno e Santo Tomás de em recto tono (cantilação), sem grandes saltos nos intervalos de uma nota a
Aquino, que buscam o acesso outra, o canto gregoriano indica precedências judaicas. A Igreja protocristã,
à verdade pela compatibilidade como sabemos, viveu um grande período de indiferenciação entre ritos judai-
entre fé e razão.
cos e cristãos. Ambas as comunidades reuniam-se nos mesmos lugares, po-
93
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

dendo ser uma sinagoga ou um templo, para participar de liturgias onde textos 26
O filósofo latino Boécio
(480-524), responsável pela
sagrados (sobretudo os salmos, base para elaborações poéticas e musicais) ponte erigida entre a cultura
e formas de canto – como a salmodia, certamente com as mesmas melodias clássica antiga e a medieval
–, eram compartilhados. Conforme o ofício, o gregoriano ganha sofisticação cristã, em De Institutione
Musica, dando continuidade
em formas mais ornadas, com a exuberância melismática do Oriente. Com à doutrina pitagórica sobre a
ele, a Igreja irá sustentar, em todo o medievo, a primazia conceitual da musica música, profere que a razão
mundana sobre a musica humana e a musica instrumentalis (v. adiante a se- divina estabeleceu a harmonia
universal segundo a ordem
ção saiba mais sobre o filósofo latino Boécio26) dos números, responsável por
Apesar de sua profunda espiritualidade, o gregoriano terá papel crucial na três grandes tipos de música:
mundana (música cosmológica,
música profana europeia. Os rigores da Igreja não serão suficientes para impe- suprassensível, portanto
dir a invasão de músicas, festas e danças profanas nos lugares sagrados, me- inaudível), harmonia fundamental
que preside o movimento e o
diante uma economia de trocas entre as artes populares e os cantos litúrgicos
equilíbrio do cosmos, articulando
já tomados por ricas polifonias em fins do primeiro milênio cristão. A primeira in- o humano com a verdade
dicação de uma “polifonia” bastante ingênua, convivendo com o gregoriano, foi superior; humana, musica
prática, sensível que estabelece
a duplicação da melodia em oitavas. Em meados do século IX, surge a Musica a harmonia entre corpo e alma,
Enchiriadis (de autoria incerta, era uma espécie de tratado de música), a prova entre sensibilidade e razão,
mais antiga de uma tentativa para estabelecer regras para a polifonia primitiva enfim, a música pela qual o ser
humano toma consciência de
ocidental. Além de descrever o método de canto em uníssono ou em oitavas, o sua harmonia com o mundo;
tratado expõe, pela primeira vez, novos princípios cuja base essencial é a dupli- instrumentalis, música que
cação do canto em intervalos de quartas e quintas paralelas. busca imitar a natureza.

Tal prática já era de certa forma usual em alguns países europeus. Por- 27
Os modos gregos, tendo
tanto o Musica Enchiriadis surgiu em certo momento do século IX, para des- como início uma nota alta em
crever uma prática, da mesma forma como Guido d’Arezzo, em seus escritos seu desenvolvimento escalar,
realizavam um movimento
sobre notação musical, na virada do século XI, falou de algo já em curso. descendente. Os monges
Com essa prática, além do uso simultâneo das oitavas, podia-se dobrar a me- medievais, ao conservar essas
lodia num duplo movimento, mediante a utilização dos intervalos das quintas matrizes modais, invertem
essa dinâmica. Suas trajetórias
(superiores) e das quartas (inferiores) paralelas como duas pálidas sombras passam a ter como ponto
acompanhando o corpo sonoro da vox principalis gregoriana. de partida, uma nota grave,
desenvolvendo percursos
Esses primeiros encontros de intervalos, a partir de uma leitura vertical ascendentes. O que nos sugere:
de melodias desenvolvidas horizontalmente, eram aceitas pela “harmonia” oficial não teria a ascese cristã medieval
intervertido o mundo mítico
eclesiástica como acordes destituídos de dimensão terrena, lugares de dissonân- grego? Não eram os deuses
cia e desvios harmônicos. Ainda atada ao conceito grego27 de harmonia, a noção gregos antropomorfizados, com
cristã refere-se a uma ordem cósmica em equilíbrio, sem dissonâncias, criada por desejos, paixões, iras, ciúmes
e prazeres, que desciam do
Deus, uma ordem parcimoniosa conforme requeria a estética apolínea. Durante Olimpo para se regozijarem nas
muito tempo, tais acordes representaram o acerto oficial de sons justos que res- festas dos humanos, ao contrário
soavam recorrentemente no espaço sagrado dos templos. Para a arquitetura da do mundo religioso judaico-
cristão que concebe o homem
baixa Idade Média, “a ogiva e o vazio interior das grandes catedrais góticas se como criatura feita à imagem e
refletem nesses intervalos paralelos” (MENDES, 1988/1989. p. 9). semelhança de seu criador e que
perde a inocência e, por isso, é
Com o entretecimento de notas de diferentes vozes, esboça-se, aos expulso do paraíso? Portanto
poucos, o princípio do contraponto. Para cada nota (punctum) correspondia um ser em permanente luta para
uma outra que lhe contra-acompanhava (contrapunctum), colada ao seu mo- superar sua condição terrena,
que busca sempre ascender à
mento de emissão, constituindo a vox organalis. Depois, as vozes secundá- perfeição celestial?
94
MIRANDA, D. S. de

rias começam a fazer um desenho autônomo, não mais como notas paralelas,
mas através da justaposição de linhas melódicas mais livres, procedimento
chamado discantus. Mediante seu uso, ousou-se acompanhar em movimento
contrário à vox principalis, surgindo, assim, o moteto (do francês petit mot).
Pouco a pouco, novas vozes são acrescidas à principal, tornando-se cada
vez mais independentes. O repertório gregoriano podia fornecer a vox prin-
cipalis, construindo-se daí as outras vozes. Já não se trata mais, portanto,
de uma única melodia ou de um leito melódico principal, definido por vozes
acompanhantes com proporções intervalares constantes. Muitas delas en-
tram livremente, criando novas sonoridades “consonantes”.
Via de regra, pelo encaixe de palavras em melodias conhecidas, as síla-
bas das várias linhas se cruzavam sem simultaneidade. O que importava era
a unidade musical produzida por sonoridade dessa massa vocal, a partir do
canto de duas, três, quatro, até dez linhas sonoras. Importava a valorização
das vozes e da altura do som. Surgem as primeiras figurações da polifonia
gótica, a ser vista adiante, alcançada pela justaposição das diferentes linhas
melódicas, tendo como parâmetro a forma monódica do cantochão. Gesta-
-se, assim, uma trama cada vez mais complexa de vozes cantadas simul-
taneamente, postulando novas formas de organização da música, conforme
veremos na música da baixa Idade Média e preparando, séculos depois, o
tonalismo, após o período polifônico.

4.4. A Arte da fase merovíngia e carolíngia


Para finalizar este capítulo, é importante mencionar algumas fases importantes
da arte da alta Idade Média na Europa ocidental. Se a arte bizantina, como se viu,
soube conservar o legado helenístico, sintetizando-o com a estética orientalista, o
mesmo não ocorreu no lado ocidental. Se antes o foco se concentrava no poder
irradiador de Roma, agora o descentramento da economia baseada no poder
fundiário feudal faz aflorar outros reinos e outros pólos descentralizados de man-
do que passam a marcar novos tipos de estética e de valores da arte medieval.
Desaparece a educação laica e concentram-se os métodos e técnicas do fazer
artístico nos centros religiosos, destinados apenas à formação do clero. O pouco
da arte clássica que se conservou se dá no interior dos mosteiros e das abadias
das ordens monásticas, importantes núcleos depositários dos saberes antigos.
A desagregação do mundo greco-romano provoca o despovoamento e
a decadência da vida urbana; as trocas comerciais são substituídas por um
modo de vida autárquico e de autosubsistência e por uma economia natural,
o que leva a um intenso processo de ruralização e dispersão da população
europeia, abrigada em grandes herdades rurais, muitas conquistadas durante
a fase de prosperidade do Império Romano, dando origem ao sistema feudal.
95
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Agora dividido, seus antigos valores culturais civilizatórios são substituídos pe-
los valores dos povos do norte europeu: ostrogodos, visigodos, francos, anglo-
-saxões, normandos, os chamados povos bárbaros.
Ganham espaço suas manifestações artísticas, caracterizadas por uma
preocupação decorativa e uma rara presença de figuras humanas. São peque-
nos objetos como brincos, colares, pulseiras e coroas, que revelavam um exce-
lente manejo da arte da ourivesaria: o uso de metais e pedras preciosas permitia a
criação de um sem-número de pequenas obras de formato geométrico e abstrato.
A arte merovíngia, termo que designa as manifestações artísticas da dinastia dos
reis francos (atuais França e Alemanha), durou do século V ao VIII. Descendentes
do rei Meroveu (c. 411 - c. 458), lendário fundador da dinastia, Clóvis I (466 - 511)
e Clotário II (497 - 561), convertidos à fé cristã, impuseram-na à antiga Gália, bem
como às vizinhas tribos germânicas. Seu advento na Gália levou a importantes
mudanças no campo das artes, como, por exemplo o desenvolvimento da ouri-
vesaria e das iluminuras, que fez ressurgir a tradição da decoração celta (antigo
povo da Europa centro-ocidental), base da arte merovíngia.
Conforme vimos na análise da função das imagens na biblia paupe-
rum, tudo convergia para a necessidade da evangelização. Nesse período,
existia uma nítida preferência pela estilização e pela abstração conferidas ao
tratamento temático nas expressões pictóricas e nas iluminuras de textos sa-
grados e uma preferência pelas formas antinaturalistas. Mais ricas e fantasio-
sas ainda são as ilustrações de influência celta, cujos arabescos coloridos
e complicados podiam, por exemplo, camuflar a face de um monge. Visu-
almente, desenvolveu-se uma arte caligráfica e incorpórea, que dissolvia o
mundo objetivo exterior em filigranas entrelaçadas, aproximando-se de signos
esotéricos ou mesmo mágicos. Essas estruturas formalistas e lineares foram
introduzidas pelos povos setentrionais, como os celtas, cujo contato com o
mundo greco-romano havia sido raro.

Figura 31 – Arte celta: detalhe do caldeirão de Gundestrup


96
MIRANDA, D. S. de

Tal situação perdurou até um primeiro e tímido renascimento artístico


ocorrido na segunda metade do século VIII, com o poder imperial da dinastia
carolíngia. Com a união do rei franco Pepino, o Breve, com o papado de Es-
tévão II, em 751, pavimentou-se o caminho para a ideia da restauração de um
novo Império Romano. Tudo parece ter começado com a vitória infringida aos
árabes pelo seu pai Carlos Martel, na batalha de Poitiers em 732. Pelo signifi-
cado que a ameaça dos “infiéis” representava para a cristandade, essa vitória
consolida a aliança entre o reino franco e a Igreja Católica.
Cerca de 20 anos depois, Pepino submete os lombardos, povo da Itália
setentrional de origem germânica, colocando o papado de Leão III sob sua
proteção militar. Selava-se assim a aliança irreversível do reino franco com
a Igreja, simbolizando a restauração do Império Romano do Ocidente, agora
sob a égide da cristandade. Seu filho Carlos Magno assume a coroa do reino
em 768. Desde então empenha-se na expansão dos domínios do reino: anexa
o norte da Itália, nas mãos dos lombardos, submete a Saxônia, a Baviera e a
Bretanha, estabelece o domínio franco sobre o nordeste da Península Ibérica,
obtém a submissão dos avaros, boêmios, morávios e croatas. Carlos Magno
faz do Império Franco a mais extensa unidade político-administrativa da Euro-
pa ocidental. Todas essas conquistas são feitas com o aval explícito do papa-
do, tanto assim que, na entrada do novo século IX, na missa de 800, Carlos
Magno é coroado pelo papa Leão III, recebendo o título romano de imperator
et augustus do Sacro Império do Ocidente. Se o título procura imprimir uma
conotação essencialmente religiosa no sentido de expressar o domínio sobre
os que eram adeptos da religião romana, acabou assumindo um sentido muito
mais amplo, ou seja, a ressurreição do Império Romano do Ocidente, a ponto
de colocá-lo no mesmo nível de Bizâncio e do Islã.
Dá-se, então, o chamado renascimento carolíngio: a cultura e a arte ga-
nham especial atenção do Imperador, que atrai e protege artistas da Itália me-
ridional e intelectuais de várias regiões. A administração das cidades seguiu o
modelo do reino franco, baseada na divisão em condados, em que as autori-
dades eclesiásticas, junto com o poder civil dos condes, exerciam igualmente
o poder condal. Procurando sempre manter o poder central, Carlos Magno
criou os missi dominici (enviados do senhor), inspetores que fiscalizavam, in
loco, a administração de condes e bispos. Mais do que isso, o verdadeiro res-
ponsável pela manutenção dessa centralização foi o permanente estado de
guerra, marca do governo carolíngio.
Essa centralização política favoreceu reatar algo perdido da civilização
antiga. Nessa renascença carolíngia, escolas foram fundadas, aristocratas fo-
ram estimulados a se alfabetizarem, a corte tornou-se centro de sábios e um
pouco do legado cultural antigo foi recuperado. Decidido a criar um sistema
97
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

unificado de ensino, Carlos Magno convocou teólogos da Itália, França, Irlan-


da e Inglaterra. Convocou Alcuíno de York, monge inglês beneditino, poeta e
professor, para reformas e instruir o clero e a corte de seu reino, implantando
um modelo nas escolas que seria aplicado nos estabelecimentos universitá-
rios. Do ponto de vista institucional, as novas escolas podiam ser monacais,
sob a responsabilidade dos mosteiros, catedralícias, junto à sede dos bispa-
dos e palatinas, junto às cortes.
Entre suas iniciativas, destaca-se a fundação do Palácio-escola (Aula
Palatina) de Aix-la-Chapelle. no qual procurou reviver o saber clássico nos
moldes da paidéia grega, estabelecendo um programa de estudo a partir das
sete artes liberais: o trivium ou ensino literário - gramática, retórica e lógica
(ou dialética); e o quadrivium ou ensino científico - aritmética, geometria, as-
tronomia e música. Essa organização educacional contribuiu bastante para
a renascença carolíngia. O ensino da lógica formal fez renascer o interesse
pela reflexão especulativa, donde surgiria, mais tarde, a filosofia escolástica;
e nos séculos XII e XIII, muitas das escolas fundadas nesse período, espe-
ciamente as escolas catedrais, ligadas aos bispados, ganharam o formato de
universidades medievais, cabendo a Carlos Magno e Alcuíno o lançamento
dos fundamentos da futura universidade de Paris. Dentre as iniciativas, mere-
ce registro a busca da unidade política e cultural de seu reino, impondo, por
toda a parte, a prática do canto gregoriano, inclusive por manu militari.
São criadas uma academia literá-
ria e oficinas artesanais e de artes apli-
cadas onde são feitas iluminuras, relicá-
rios, ourivesaria, joalheria ou tapeçaria,
importante passo para o aprendizado e
redescoberta da Antiguidade clássica.
Com a morte de Carlos Magno, muitas
dessas atividades de ensino e prática
das artes passaram para o âmbito dos
mosteiros. O mais importante, ao con-
trário da estética celta que desprezava
a forma das figuras humanas, foi a intro-
dução, aos poucos, dessas figuras de
forma estilizada, como personagens bí-
blicas, majestosa e simbolicamente ins- Figura 32 – Os quatro evangelistas, ilu-
critas na arte dos mosaicos, mostrando, minura de c. 820 (Catedral de Aachen)
a um só tempo, influxo e competição
com a suntuosidade bizantina. A arte carolíngia, além dos fortes influxos cél-
tico-germânicos, buscou também se inspirar na cultura greco-romana, tendo,
como resultado, uma síntese entre elementos clássicos e o típico espírito
98
MIRANDA, D. S. de

emocional e conturbado do medievo cristão. Os trabalhos realizados nas ofici-


nas levaram aos poucos os artistas a abandonarem o estilo ornamental típico
da estética celta e de outros povos e a resdescrobirem a tradição cultural e
artística da civilização greco-romana.
Na arquitetura, irão incidir, especialmente, edificações religiosas marca-
das por pinturas murais, por mosaicos e baixos-relevos, aflorando, igualmente
nesse período, o templo com cripta (sub-solo dos templos onde se enterravam
personalidades ) envolta por um deambulatório (galeria que circunda o altar ou
a cripta), o que se irá desenvolver ao longo da Idade Média, seja no período
românico, seja no gótico. Uma das mais significativas construções do período
é a Catedral de Aachen na Alemanha.
Mas somente após um longo período de maturação (cerca de dois sé-
culos e meio), começariam a surgir técnicas pictóricas mais "naturalistas", ou
seja, menos submetidas aos cânones da frontalidade oriental também encon-
trada na arte bizantina. No século XI, juntamente com as imagens ricas, seve-
ras ou hieráticas dos mosaicos, as grandes paredes da arquitetura românica
viriam permitir a experiência dos afrescos. Um fato de grande importância para
a época foi o hábito de dotações por parte das famílias nobres para as ordens
monásticas, favorecendo a construção e a expansão de mosteiros e abadias.
Mais uma vez, aparece, de forma inquestionável, o papel crucial exercido por
esses centros religiosos, pois foi do seu interior que as ideias e as atividades
artísticas ressurgiram no curso do século X. A partir de então, a arte medieval
tornou-se, por excelência, a linguagem da exaltação religiosa.

5. As artes na baixa Idade Média: o românico e o gótico


5.1. O Estilo Românico
a) A arquitetura

A arquitetura românica é, por excelência, uma linguagem que pôde se ex-


pressar em toda sua plenitude, tornando-se o primeiro dos estilos monumen-
tais de arquitetura medieval do Ocidente, passando a definir outras artes tais
como a escultura e a pintura. Alguns historadores da arte detectam traços
românicos já em fins da era carolíngia. Ele começa a se configurar no perí-
odo de grande transição entre a alta e baixa Idade Média (século XI e XII),
quando o poder feudal já apresentava sinais de fraqueza e a sociedade
ainda presa a valores feudais não se organizara no sistema dos burgos. As-
sim, a Igreja iria passar a exercer seu poder em diversas esferas da vida
feudal, inclusive no campo das artes, passando a encomendar praticamen-
te, sem concorrência, os trabalhos artísticos. Por quase três séculos o estilo
românico reinará absoluto até ceder lugar ao gótico.
99
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

O modelo hegemônico do templo românico baseou-


-se na antiga e imponente basílica romana (daí a origem
do nome), centro de múltiplas atividades, sobretudo as de
caráter civil jurídico-administrativo, conforme já descreve-
mos. Na sua adaptação para o culto cristão, o magistrado
é substituído pelo sacerdote e outros oficiantes litúrgicos.
O templo românico caracteriza-se por edificações aus-
teras e robustas, dotadas de paredes grossas e janelas
minúsculas, por razões de ordem técnica e estética, cuja
principal função era resistir a ataques de exércitos inimi-
gos. Visualmente, a arquitetura românica busca transmitir
sensação de solidez e repouso, bem como ausência de
esforço ou tensão.
Além de propiciar segurança, também era importante
manter o clima de severidade e contrição espirituais. A altera- Figura 33 – Catedral de Santia-
ção feita na planta dos templos, passando da alvenaria de cas- go de Compostela.
calho para a pedra de cantaria, contribuiu visivelmente para o
aspecto de solidez. Os templos, alvos de peregrinações, demandando maiores
espaços para abrigar os fiéis, passaram a adotar uma longa forma longitudinal,
com vistas a ampliar o cumprimento da nave central, das colaterais e do transep-
to. São várias as igrejas construídas nesse período com as dimensões e o forma-
to acima descritos. A basílica de Saint-Sernin em Toulouse (parada obrigatória na
França, para os peregrinos a caminho de Santiago), e a catedral da Compostela,
alvo da peregrinação, são exemplares paradigmáticos desta planta.
Uma das características mais marcantes da arquitetura românica foi a
retomada da tradição das abóbodas de berço, uma abóbada com curvatura
contínua de um arco de volta perfeita, chamado arco pleno, continuado late-
ralmente por espessas e maciças paredes.
Mas elas ofereciam sérios riscos: o excesso
de peso do teto de alvenaria podia provocar on-
dulações ou mesmo desabamentos. Outra des-
vantagem era a pequena luminosidade resultante
das aberturas estreitas, emprestando um aspecto
bastante sombrio ao interior das igrejas români-
cas, visto que a abertura de vãos mais amplos era
impraticável, por provocar o enfraquecimento das
paredes, concorrendo igualmente para o risco de
desabamentos.
Para evitar tais riscos, uma solução encon-
trada foi o uso de abóbodas de aresta, consistindo
na intersecção perpendicular de duas abóbodas Figura 34 – Abóbada de berço
100
MIRANDA, D. S. de

de berço apoiadas em pilares relativamente mais delgados, obtendo certa le-


veza e mais luminosidade interior. Tal tipo de abóboda demandava um plano
quadrado para se apoiar, dividindo a nave central em setores também quadra-
dos, correspondendo às suas respectivas abóbodas. Daí a forma compactada
de muitos templos românicos.
Outra solução preparou a construção do gótico, ao se chegar à ideia
da utilização simplificada de arcos ou nervuras, depois alongados em forma
de ogivas, obtendo ainda assim mais elevadas permitiam o assentamento de
arcadas sobre as naves colaterais. De sólidas e grandes dimensões, o templo
românico era chamado de “fortaleza de Deus”.

b) A escultura e a pintura

Conforme sabemos, a escultura românica, assim como a pintura, encontrava-


-se subordinada à arquitetura monacal, marcada por um estilo severo e pe-
sado, afastada de qualquer intenção mimética da realidade. A coesão com
as formas bizantinas com as greco-romanas clássicas obtém uma estatuária
de cunho ornamental. Assim, são esculpidos relevos e estátuas-coluna para
adornar pórticos, arcadas e paredes. As figuras geralmente aglomeradas e
entrelaçadas, com o tempo tornaram-se estátuas soltas, ganhando, assim,
autonomia e tridimensionalidade em 360o.
Mediante o ressurgimento da escultura fi-
gurativa, como elemento decorativo de fachadas
e portais, com representações de Cristo, cenas
da vida dos mártires e santos, visões escatoló-
gicas, a igreja passava a ideia de um Deus juiz
severo e punidor. Cabia ao artista o didatismo es-
cultórico de evocar ou recordar expressivamente
as verdades da fé. Um dos assuntos preferidos
Figura 35 – Estátuas românicas era o Juízo Final, com a imagem de Cristo juiz,
sempre representado de forma rígida e hieráti-
ca, bem como a apresentação de figuras de eleitos e condenados, monstros
e demônios. A estética da culpa e do castigo eterno era reforçada pelo aspecto
sombrio do estilo românico de pouca luminosidade em seu interior. Por outro
lado, a magnificência da arquitetura românica era a própria expressão da igreja
triunfante que continuava usando a arte com fins didáticos e evangelizadores.
Continua-se a recalcar a materialidade sensual do corpo que desaparece sob
inúmeras camadas de rígidas dobras angulosas dos mantos e túnicas. As figu-
ras humanas se alternam com as de animais fantasiosos, apresentando mais
afinidade estética com a iconografia oriental do que com o cristianismo, a des-
peito da temática ser sempre religiosa com fins didáticos.
101
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

As paredes das naves eram decoradas com pinturas murais de uma inten-
sa policromia, mais uma marca da estética bizantina, cujas formas aliavam traços
da antiga pintura romana com as dos ícones orientais. Os temas mais frequentes
abordavam cenas das sagradas escrituras e da vida de santos e mártires, plenas
de exemplos edificantes, igualmente para fins didáticos. Temas como vícios e
virtudes eram alegorizados por representações de animais próprios do bestiário
oriental. Assim como a escultura, as figuras humanas não apresentavam qual-
quer plasticidade, cujos corpos eram apenas insinuados. As linhas do rosto eram
acentuadas por traços grossos e escuros. Para o desenvolvimento desse tipo de
pintura mural, os artistas utilizavam a técnica dos afrescos.
Em escala oposta à pintura mural, mas não por isso sendo menos im-
portante, desenvolveu-se a arte da iluminura encontrada na decoração de bí-
blias e manuscritos. Adquirindo cada vez mais sofisticação, tais iluminuras
eram realizadas simultaneamente às outras formas de arte pictórica, tanto na
forma como na técnica.
Concomitante à arte pictórica, quando os recursos permitiam, usava-se
igualmente a arte do mosaico ou do vitral, buscando sempre pelos intensos efei-
tos policromáticos. O vitral já era conhecido na época, visto que a arte românica
o trouxera de Bizâncio conseguindo aperfeiçoá-lo antes mesmo do esplendor
gótico. O abade Suger, um dos responsáveis pela futura arquitetura gótica, re-
gistrou não ter encontrado dificuldades para contratar profissionais do vitral de
vários lugares, para a reforma da abadia em Saint Denis, no norte de Paris.
Conforme costuma ocorrer com grandes períodos e em vastas regiões de larga
vigência de certos estilos, é possível detectar diferenças de estéticas no curso
das épocas e lugares. Assim, por exemplo, existiu um estilo românico a partir da
reforma do mosteiro beneditino de Cluny, na França do século XI e que se es-
tende nos séculos seguintes por toda a cristandade europeia, abrangendo mais
de mil mosteiros. Assim também ocorreu com um estilo românico na Itália. Devi-
do à proximidade com a arquitetura greco-romana, os italianos souberam cons-
truir templos menos pesados, bem como usar de frontões e colunas à moda da
antiguidade clássica. Um dos exemplos típicos apontados como modelo do ro-
mânico italiano é o conjunto da catedral de Pisa, com seu campanário inclinado
isolado desse conjunto, a famosa Torre de Pisa.
Para finalizar a análise do românico, não podemos deixar de mencionar
o desenvolvimento da ourivesaria que, assim como as demais artes do perí-
odo, revestiu-se de intenso caráter religioso voltado para o fabrico de objetos
como pequenas estátuas, relicários, cruzes, objetos litúrgicos, bem como para
decoração de altares, bíblias, paramentos religiosos e outros objetos sagra-
dos. Naturalmente, a realeza feudal não podia deixar de se sentir igualmente
atraída para tal forma de arte para expressar ostentação e grandeza, enco-
mendando com frequência luxuosas coroas incrustadas, mantos decorados,
bem como globos e cetros de ouro.
102
MIRANDA, D. S. de

5.2. O Estilo Gótico


O abade Suger (1081 - 1151) foi superior da basílica de Saint-Denis (São Dioní-
sio), nos arredores de Paris norte, desde 1122 até sua morte. Hábil diplomata, foi
conselheiro de Luís VI e de Luís VII e Regente durante a Segunda Cruzada. É
considerado o primeiro mestre-de-obras da arquitetura gótica, pelas inovações
promovidas naquela basílica a partir de meados do século XII. Leitor atento das
obras do Pseudo-Dionísio, tido como grande mestre da filosofia patrística, teria
encontrado nelas “uma justificação filosófica para toda a sua atitude com res-
peito à vida e à arte” (Panofsky) e, por via de consequencia, para as interven-
ções que realizou, ao conceber o monumento gótico como obra teológica.
Surger perseguiu o "movimento anagógico", ou seja, o movimento que
pregava a contemplação do brilho terreno, como importante via para a con-
templação da iluminação divina, a experiência estética como via da experi-
ência mística, a busca do arrebatamento do espírito, mediante a ascese da
alma ao conhecimento da verdade pela arte da luz, o que será realizado pela
doutrina estética de Tomás de Aquino, conforme veremos adiante.
Em seu entendimento stricto sensu, o termo gótico nos remete à arte
própria dos godos, termos atribuído principalmente por teóricos renascentistas
da arte, como Giorgio Vasari, com nítida intenção desqualificante. Da mes-
ma forma como designavam a Idade Média como Idade das Trevas, assim
também enxergavam inferioridade na arte antecessora à sua época, por ter
sido uma arte “inventada pelos godos, que, após haver arruinado os edifícios
antigos e matado os arquitetos nas guerras, [passaram a construir] cobrindo
as abóbodas com arcos ogivais e inundaram toda a Itália com essa maldição
de edifícios” (Vasari, apud, BRACONS, 1992, p. 3)

Figura 36 – Basílica de Saint- Figura 37 – Interior da basíli-


-Denis ca de Saint-Denis
103
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

O pintor e arquiteto italiano Vasari se notabilizou por ter sido o primei-


ro historiador da arte, ao publicar em 1550, Le Vite de' più Eccellenti Pittori,
Scultori e Architettori, “A vida dos mais excelentes pintores, escultores e arqui-
tetos”, onde registrou a biografia dos principais artistas renascentistas, com
especial destaque para os florentinos, registrando pela primeira vez o termo
gótico. Para ele, e muitos de seus conteporâneos, havia uma clara oposição
entre a arquitetura “tedesca” (germânica) ou, como proferia, maniera del goti
(à moda do estilo dos godos) e o estilo romano reencarnado pela estética
renascentista, considerada mais perfeita, uma vez que tinha como referência
o ideal de beleza da Antiguidade clássica. Para ele existia uma clara contra-
posição entre o barbarismo cultural dos germânicos do norte e a antiga arte
clássica do Mediterrâneo: “Que, de agora em diante, Deus nos livre os países
daquela forma de pensar e de construir, que não concorda em absoluto com
a beleza de nossos edifícios” (apud BRACONS, op. cit. p. 3).

a) Contexto histórico do gótico


As inovações da estética gótica, substituindo a românica, foram fruto de condições
históricas, a partir do concurso de um conjunto de fatores da esfera econômica,
política e sócio-cultural, provocando certa expansão na Europa ocidental, período
que vários historiadores denominaram de “renascimento do século XII". Um gran-
de fator para tal expansão foi o crescimento populacional aliado ao aperfeiçoa-
mento das áreas de cultivo dos solos, graças à melhoria das técnicas introduzidas
pela ordem monástica de Cluny, aumentando a produção e a produtividade do
campo, além das melhorias das condições e técnicas de sua comercialização,
o que iria também beneficiar produtos advindos de outros locais. Tais melhorias
ensejaram além da maior produção de alimentos, a da indústria têxtil.
Outro grande fator que irá refletir na mentalidade universalista da épo-
ca foi dado pelas peregrinações e pelo movimento cristão das cruzadas em
busca da libertação da Terra Santa e do Santo Sepulcro nas mãos dos “infiéis”
sarracenos, índice maior do desejo de expansão e conquista. A par disso, no
campo espiritual dá-se a reforma da ordem de Cister (fundada por um grupo
de monges descontentes com os rumos da ordem de Cluny), que passa a
desempenhar um papel fundamental na história medieval.
Graças à sua organização e autoridade, impõe sua influência a toda
Europa cristã, incluindo nesse universo de hegemonia, a valorização das
terras. Os cisterciences promovem a restauração das regras de S. Bento, o
ascetismo, o rigor litúrgico e elege, em certa medida, o trabalho como valor
fundamental, dando como fruto um excelente patrimônio técnico, artístico e
arquitetônico. No contexto do desenvolvimento citadino, as escolas catedra-
lícias, criadas na era carolíngia, ganham primazia com relação às escolas
monacais, tornando-se então focos de criação e difusão culturais.
104
MIRANDA, D. S. de

São condições iniciadas no século XII que processam o adensamento de


uma nova mentalidade e realidade no campo das artes e da cultura, culminando,
no século XIII, um período de esplendor medieval. Na esfera política, a monarquia
solidifica seu prestígio. A par disso, dá-se o início, de forma ainda bem embrioná-
ria, a noção de estados, cuja consolidação dar-se-á séculos depois. O período
é igualmente caracterizado por grande prosperidade econômica, a partir da in-
dústria têxtil, grande propulsora de riqueza, contando para isso, com as rotas e
centros de troca comercial no auge de suas atividades. O campo conta com um
grande competidor, a cidade. A migração dos servos das glebas favorece o pro-
cesso de criação de burgos, portanto a criação de um novo modo de vida urbano.
Um desses resultados é a formação de oficinas internamente hierarquizadas de
artistas/artesãos, que passam a prestar serviços ao clero e à realeza.
Da organização desses profissionais proliferam as associações gre-
miais corporativas, unidades de empresários independentes que conquista-
ram o monopólio dos ofícios em áreas determinadas. Com a monetarização
da economia feudal, ocorrem os primeiros procedimentos de trocas financei-
ras, como letras de câmbio e outras trocas monetárias. Irrompe uma pujante
classe burguesa que passa a ter o controle dos governos locais. Desde aí, a
Europa continental deixa de estar recolhida sobre si mesma. Na esfera polí-
tica, a realeza irá se aliar à burguesia nascente, para consolidar seu próprio
poder, em detrimento dos senhores feudais. O deslocamento do poder e sua
crescente concentração citadina irão também favorecer a criação de sedes
episcopais urbanas, com suas catedrais e escolas catedralícias, como for-
madoras dos primeiros "catedráticos". Na França, berço da arte gótica, era
possível encontrar várias dessas condições, tanto do ponto de vista material
quanto espiritual. O berço e os começos da larga expansão da arte gótica são
identificados na Île-de-France, região da antiga Paris. Panofsky enfatiza um
fato bastante interessante com relação ao papel desempenhado por estas
novas instituições acadêmico-religiosas.
A educação espiritual deslocou-se das escolas monásticas para instituições
mais urbanas que rurais, de caráter mais cosmopolita e, por assim dizer,
apenas semi-escolásticas, a saber: as escolas das catedrais, as universida-
des e as studia das novas ordens mendicantes [...] E da mesma forma como
a escolástica fomentada pela erudição beneditina, e levada ao auge pelos
dominicanos e franciscanos, o estilo gótico foi fomentado nos mosteiros e
introduzido pela (catedral de) Saint Denis, e atingiu seu apogeu nas igrejas
das grandes cidades. É significativo o fato de que os nomes mais conheci-
dos da história da arquitetura no período românico provenham de abadias
beneditinas; os do apogeu gótico, de catedrais; e os do gótico tardio, de
igrejas paroquiais. (apud CUNHA, 2003, p. 57)
105
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

No curso do período gótico cristianizam-se alguns elementos fundantes


da estética clássica pagã: o princípio da proporcionalidade das partes, numa
ordenação harmônica e unitária com o todo. Será Tomás de Aquino que irá sis-
tematizar na Suma Teológica, o estatuto das qualidades constitutivas da beleza:
a integridade, a justa proporção e a claridade (claritas). A claritas estabelece
um vínculo entre a sensibilidade estética voltada para o belo e um fato visual,
ou uma afabilidade do olhar (quod visum placet), na verdade, uma espécie de
recalcado gozo estético visual. Aquino atribui, à produção artística, um elemento
agenciador da recta ratio. Assim, a experiência estética liga-se à atividade racio-
nal, ao hábito especulativo, parecendo querer promover o encontro da unidade
escolástica da razão com a fé (a ratio theologica) (cf. Suma Teológica, I).
Para Tomás de Aquino "os sentidos exultam ante coisas bem propor-
28
Tímpano
cionadas, já que estas se lhes assemelham; pois também os sentidos são
Espaço escultórico
uma espécie de razão, assim como qualquer força cognitiva" (apud CUNHA, compreendido entre o dintel
op. cit., idem). Quando o Abade Suger empreendeu a reforma do templo ro- (verga superior dos portais
mânico de Saint Denis, ofereceu o primeiro modelo da estética gótica: a lumi- paralela ao piso) que lhe
serve de base, e o arco do
nosidade da claritas tomista, em sua efetividade real e sígnica, como plena
portal.
revelação da fé, “presença inteligível de Deus e enlevo sensível para o crente”
(CUNHA, passim). Assim, a estética medieval cristã aprofundou a “estética da Rosâcea
Grande janela circular
proporção” e a “estética da luz” nas artes plásticas. Se a estética da proporção profusamente ornada com a
valorizava a composição unificada do múltiplo, a estética da luz é vista como arte dos vitrais. Sua melhor
o “esplendor da forma” (cf. MORAIS, 1990, p. 280). forma de contemplação se dá
a partir do interior do templo
b) A arquitetura28 gótico, sobretudo em dias
ensolarados graças ao efeito
O gótico irá conviver, durante certo tempo, com o românico, de cujo estílo impactante da luminosidade
toma de emprétimos algumas características e formas, reaproveitadas em profusa, realçando o
novas concepções técnicas e estéticas. Muitas igrejas góticas, a exemplo da contraste policrômico dos
seus vidros.
basílica de Saint-Denis e a catedral de Strasbourg, tiveram os dois estilos con-
vivendo no mesmo espaço arquitetônico, visto que esses dois monumentos Arcobotante
Sólida estrutura no formato
góticos foram reformados, a partir de suas origens românicas. Outra afinidade
de semi-arco, construída
entre os dois estilos: assim como ocorreu na hegemonia da arquitetura no no exterior da igreja para
românico com relação às demais artes, assim também irá ocorrer no gótico. neutralizar a pressão das
Mas o que é a arte da arquitetura gótica? A despeito das afinidades e paredes das abóbadas,
descarregando-a para os
influências, uma diferença básica entre os dois estilos ganha visibilidade desde contrafortes.
seus exteriores. A partir das respectivas fachadas de suas igrejas, nota-se que,
via de regra, a românica apresenta um único portal e a gótica, como Saint-
-Denis, apresenta três portais que dão acesso direto às três naves do interior.
Analisemos mais perto a basílica de Saint-Denis devido à sua relevância, espé-
cie de primícias da arte gótica do mundo, tornando-se modelo para o chamado
primeiro gótico, bem como pela sua importância na história cultural da França.
106
MIRANDA, D. S. de

Graças aos seus laços estreitos com a realeza (Suger, como se viu, foi
conselheiro de Luís VI e Luís VII e regente durante a 2ª Cruzada), Saint-Denis
sediou, desde cedo, corpos da realeza, tornando-se a necrópole dos sobera-
nos da França. A partir do século VI, a maioria dos reis e rainhas foi enterrada
em seu interior: 42 reis, 32 rainhas, 63 príncipes e princesas, e 10 grandes
personalidades do reino.
Em sua fachada, erguiam-se originalmente dos portais laterais, duas tor-
res altas (atualmente, como se pode verificar na foto acima, a torre da direita
não existe mais, danificada por um raio, no século XIX). O portal central é consti-
tuído de vários planos que caracterizam o estilo gótico de quase todas as igrejas
construídas entre o século XII e XIV: a porta principal envolta por um arco com
frisos que emolduram o tímpano*, uma grande janela longitudinal encimada por
uma forma abobadada, e outra grande janela circular, chamada rosácea*.
Mas, a maior marca arquitetônica do gótico certamente reside na abó-
boda de nervuras. Vimos que no período românico, uma das soluções para
minimizar a pressão do arco pleno foi a técnica da abóboda de arestas, cujas
curvaturas foram aos poucos sendo alteradas com a introdução de nervuras
e formas mais alongadas, prefigurando os arcos ogivais. O efeito estético ime-
diato foi a possibilidade de edificação de templos maiores, com ogivas alonga-
das apontando para o alto, enfatizando a sensação de verticalidade.
Outro recurso técnico usado em Saint-Denis foram os pilares de apoio
distribuídos de forma regular. Com tal recurso desaparecem as grossas es-
pessuras das paredes, como as do estilo românico, para apoiar sua estrutura,
provocando uma sensível alteração de grande efeito estético: a criação de
espaços vazios, possibilitando a substituição das estreitas janelas do estilo
românico, pela alternância da pequena largura das paredes com áreas de
grandes vitrais policromáticos, buscando sensações extáticas, mediante a
profusão de cores e luzes dos desenhos sagrados. Com pequenas altera-
ções, o modelo de Saint-Denis foi seguido na construção de outros templos
como a Catedral de Notre-Dame de Chartres, vista como um dos mais belos
conjuntos escultóricos do gótico, construídos entre 1145 e 1155.
Outro edifício que merece igualmente nossa atenção é a catedral de
Notre Dame de Paris, cuja construção iniciou-se c. de 1160, devido á novida-
de do arcobotante*. Com tal expediente, abriu-se uma grande possibilidade de
uso de grandes aberturas preenchidas por belíssimos exemplares da arte dos
vitrais aplicada em janelas, rosáceas de várias dimensões ou qualquer outro
espaço que permitia o uso dos vidros multicoloridos, articulados em grandes
armações estruturais de ferro.
A vigência do gótico, assim como o estilo românico, também se estendeu
por vários lugares, chegando à Alemanha, cujo exemplo mais candente de sua
típica estética encontramos na Catedral de Elizabethkirche, em Marburg, Sua
107
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

nave central e as naves laterais possuem a mesma altura, prescindindo do uso


dos arcobotantes, o que marca a grande diferença do gótico alemão com o
estilo francês do século XIII. Seu formato externo compacto não anulou seu
aspecto de leveza, devido à verticalidade das linhas do contrafortes e ao rendi-
lhado das grandes ogivas de suas esguias janelas preenchidas por belos vitrais.
Outro edifício que desperta admiração graças à exuberância das suas formas 29
“Quando os historiadores
externas é a Catedral de Milão, cuja construção teve início em fins do século traçam uma evolução
XIV, com base num projeto bastante ambicioso, o que provocou uma série de cronológica da arte gótica,
atrasos em sua construção, provocada por indefinições em sua realização. costumam distinguir três
grandes ciclos. Um inicial
As últimas manifestações da arquitetura gótica, dos séculos XIV e XV, durante o qual se registram
deram lugar para seu uso laico, a exemplo do palácio Ca’ d’Oro (“Casa de avanços rumo à configuração
Ouro”), residência construída em Veneza, entre 1422 e 1440. de formas góticas: um central,
que constitui a etapa clássica
Entre 1446 e 1515, foi construída a capela do King’s College da Universi- e de expansão daquelas
dade de Cambridge. Uma das últimas manifestações do estilo, esse exemplar formas, e um período final, de
do gótico inglês nos chama a atenção pela profusão de nervuras em sua abóbo- predomínio do gosto cortesão
e burguês.
da, remetendo-nos à ideia de uma série enfileirada de grandes leques abertos.
Dentro dessas linhas
gerais, criou-se uma grande
c) A escultura
quantidade de subdivisões,
A função dos trabalhos escultóricos esteve profundamente vinculada à arte terminológicas para designar
arquitetônica, como podemos presenciar durante o chamado gótico primitivo com maior ou menor acerto,
alguns dos momentos que
e o clássico, marco resplandecente da primeira escultura gótica29 encontrado balizam sua constante
nas decorações das fachadas das majestosas igrejas da Île-de-France, onde evolução.
culmina a renovação da escultura monumental presente no último românico. A Na arquitetura francesa,
por exemplo, distingue-se
profusão decorativa da escultura das fachadas góticas, com relação às igrejas
uma arte gótica primitiva,
românicas, já se manifesta pelo número maior de portais de suas catedrais, en- um gótico clássico, um
contrada nos seus tímpanos, dintéis e umbrais. Ademais, a relação entre os ele- gótico radiante (rayonnant),
mentos arquitetônicos e escultóricos torna-se mais orgânico e fecundo no estilo e um gótico flamejante
(flamboyant).
gótico. Mais uma vez parte de Saint-Denis essa nova estética. Lembremos do
Analogamente, na arquitetura
estreito vínculo entre o abade Suger e a realeza francesa e o papel da sua ba- inglesa assinala-se um gótico
sílica como necrópole da nobreza francesa. Daí o desenho iconográfico do seu primitivo (early English),
projeto para realçar a imagem real. Figuras de reis e rainhas bíblicas foram inse- um estilo ornamentado
(decorated style) e um estilo
ridas nas peças laterais do tríplice pórtico, junto a outras personagens sagradas,
perpendicular (perpendicular
constituindo o que passou a ser denominado de Portal Régio. Será igualmente style).
em Saint-Denis que aparecerá a estátua-coluna, i,é, uma figura agregada à co- Também na arte gótica
luna, também chamada de figura adossada, elemento decorativo ou estrutural espanhola tem-se distinguido,
pelo menos, um gótico
(uma estátua, p.ex.) unido ou parcialmente agregado ao muro ou à parede.
primitivo e um estilo
Passado o medo do fim dos tempos esperado na passagem do primei- isabelino. Coincidindo com
ro milênio cristão, correspondendo duas etapas, os mil anos do nascimento este último, em Portugal se
de Cristo e os mil anos de sua paixão e morte (1033), a estatuária gótica desenvolve o chamado estilo
manuelino”. (BRACONS,
aparenta expressar o alívio dos novos tempos. As imagens surgem mais hu- 1992, p. 7)
manas, parecendo buscar uma maior aproximação com o fiel. Maria, antes
108
MIRANDA, D. S. de

sempre presente no trono divino, é agora apresentada como mãe de Cristo,


medianeira entre Deus e os homens. E o Cristo crucificado deixa o hieratismo
românico para apresentar o lado humano que expressa dor e sofrimento. As
portadas das igrejas continuam sendo utilizadas para a narrativa iconográfica.
Nelas são concentradas esculturas dispostas didaticamente, transformando-
-as numa espécie de Bíblia em imagens, uma Bíblia de pedra para aqueles
que não sabem ler, cujos sentidos das figuras representadas acham-se rela-
cionadas com os vitrais do ambiente interior.
Chama-nos a atenção na estatuária do período, o estilo inovador quase
naturalista observável, por exemplo, na plasticidade da estátua O Cavaleiro,
(c. 1235), onde o artista parece ter buscado o equilíbrio na forma dos volumes
dos corpos do cavalo e do seu montador. Para alguns, poderia se tratar de um
dos três reis magos. Para outros, tal trabalho realçaria a cultura da cavalaria
feudal, uma nova instituição social difundida nas cortes europeias, onde mani-
festa sua liderança intelectual da época, preenchendo o papel antes exercido
quase exclusivamente por monges e mosteiros.

d) A pintura
Acompanhando a estética da baixa Idade Média, a pintura gótica, a partir dos
séculos XIII até o início do XV, redescobriu a possibilidade figurativa, ao incor-
porar a realidade e os efeitos das linguagens afins, prenunciando o Renasci-
mento. Sua principal característica será a procura do realismo na representa-
ção das figuras, fossem elas humanas ou divinas.
Primeiramente, surgiram cenários reconhecíveis, emoldurando as figu-
ras bíblicas que passaram a ganhar uma espécie de tridimensionalidade, ainda
que fosse mantida a sobreposição de planos (figuras em diferentes níveis), e a
ausência de perspectiva geométrica, cuja fixação será um marco da estética
renascentista. As personagens começam a ser modeladas à moda escultórica,
dando visibilidade aos movimentos corporais ou então, grande inovação para
esses tempos de negação da materialidade corporal, a definição menos recal-
cada de corpos humanos sob as roupas ou panejamentos, pela identificação de
volumes. Em suma, descobre que as figuras humanas possuíam sentimentos,
que linhas e pinceladas podiam se tornar sutis e sinuosas e que a exploração
das cores desempenhava um papel de força expressiva na composição geral.
No século XIII o pintor mais conhecido e grande criador de mosaicos é
Giovanni Gualteri (c. 1240 - 1302), mais conhecido como Cimabue. Influen-
ciado pela arte bizantina, nele já se nota uma nítida preocupação com a hu-
manização dos sentimentos bem como com o naturalismo nas figuras huma-
nas, com o movimento das figuras sagradas como anjos e santos, mediante
a postura dos corpos e do drapeado das vestes, sem, no entanto, realizar
plenamente o efeito ilusório da profundidade espacial. Seus trabalhos mais
importantes encontram-se na Basílica de São Francisco em Assis, Itália.
109
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Foi este artista que descobriu o jovem pastor Ambrogiotto Bondone, ou


simplesmente Giotto (1266–1337), de quem foi mestre durante dez anos, na
cidade de Florença. Giotto destacou-se na arte dos afrescos, que decoraram
muitas igrejas. Seu estilo característico foi a identificação da figura de santos
com a dos humanos de aparência bem comum.
Esses santos com ares humanos eram os mais importantes em sua
pintura, sempre em posição de destaque. Assim, seu estilo vai ao encontro
de uma visão humanista típica do período. Graças ao alto grau de inovação
de seu trabalho, ele é considerado como precursor da pintura renascentista,
inclusive pela prefiguração da perspectiva em suas obras. Giotto procurou
adotar a linguagem visual dos escultores, procurando obter volume e altura
realista nas figuras em suas obras. Comparando suas obras com as do seu
mestre, elas são muito mais naturalistas, sendo por isso considerado o pionei-
ro da tridimensionalidade na pintura europeia.
Outro suporte pictórico do gótico, além dos grandes murais, foram os
retábulos que, dentre outras, podiam ser peças de pintura de teor religioso,
normalmente colocados atrás dos altares. Os retábulos eram classificados
segundo o número de painéis: dípticos (dois), trípticos (três) e polípticos (vá-
rios painéis). Os grandes mestres desta arte foram os pintores flamengos, os
irmãos Jan (1390 - 1441) e Hubert van Eyck (1366 - 1426), produzida nos
Países Baixos. Deles é o famoso políptico, o retábulo do Cordeiro Místico,
obra realizada entre 1426 e 1432, portanto terminada por Jan van Eyck. Nele
é possível vislumbrar a arte da ilustração do manuscrito (a ser vista adiante),
graças à preocupação detalhista das vestes, dos adornos da cabeça e ele-
mentos da natureza. Seus estilos marcam a abertura da pintura para o mundo
exterior, prenúncios que suas obras inaugurariam a fase renascentista da pin-
tura flamenga. Jan Van Eyck iria ainda se notabilizar por outros quadros, onde
evidencia sua preocupação pelo realismo e riqueza de detalhes, a exemplo do
célebre Casal Arnolfini (1434) e Nossa Senhora do Chanceler Rolini (1436).
No primeiro, o artista chega a um nível de riqueza de detalhes, como o
interior dos aposentos e as vestes de um rico casal do século XV. Giovanni
Arnolfini era um rico negociante italiano que havia se estabelecido em Bru-
ges, com sua esposa. Além das minúcias sobre o casal, a riqueza de deta-
lhes do ambiente encontra-se ainda retratada no reflexo do espelho ao fundo,
apresentando uma visão completa de todo ambiente. Notam-se ainda dois
pequenos detalhes que compõem a cena prosaica do cotidiano do casal em-
prestando mais naturalidade à cena: o par de sandálias deixado com aparente
descuido e o pequeno cão entre eles.
O que chama mais a atenção no segundo quadro é o trabalho perspecti-
vado do artista, deixando documentada uma paisagem urbana, quando a cida-
de, com seus prédios, pontes e torres, já passara a ser o centro da vida social da
época. Outro dado prenunciador dos tempos e da arte renascentistas encontra-
-se na preocupação autoral do artista ao deixar assinalada em suas obras a
110
MIRANDA, D. S. de

seguinte inscrição: “Jan van Eyck esteve aqui”. Giotto e Jan van Eyck sinalizam
em suas obras as mudanças estéticas que virão com os novos tempos.
Além dos grandes murais, a pintura gótica foi igualmente constituída de
trabalhos de menores proporções. Assim, numa escala oposta aos grandes
afrescos e retábulos, desenvolveu-se também uma arte em miniaturas de ex-
tremo capricho e preciosismo – as iluminuras, os manuscritos iluminados ou
miniaturas em forma de saltério (livro de salmos), breviários e livros de horas,
para leitura das horae canonicae.

e) A música gótica
Se o gregoriano continua sendo a música da esfera religiosa das basílicas,
abadias e catedrais, a música profana continua sua busca de autonomia
com relação ao sagrado. Vimos que a música do período românico prepara
a polifonia gótica, graças ao discanto dos motetos e ao contraponto. Na poli-
fonia, o pensamento musical se exercita pelo entretecimento da textura mu-
sical feita por vozes atuantes em momentos defasados: uma voz pode estar
no início, enquanto outra, no mesmo instante, estar no meio do canto, e uma
terceira terminando a frase. Polifonia vocal, politextualidade e plurilinguismo
tornam-se traços identificadores de um gênero que ganha grande prestígio
em fins da Idade Média.
Sobrepostas ao canto litúrgico, as vozes acrescidas eram portadoras
de falas distintas (o antigo/o novo, o letrado/o popular, o sagrado/o profano,
o latim/o vernáculo, o puro/o pornográfico) entretecendo a simultaneidade de
textos em línguas diferentes. Podia ser uma canção popular erótica, uma me-
lodia trovadoresca e o gregoriano fundidos num mesmo canto. O que mais
contava era a textura dessa massa sonora entretecida por múltiplas vozes e
não a inteligibilidade das partes, ensejando claramente novas experiências de
simultaneidade musical.
Os motetos trazem um problema com relação à medida temporal. A
prosódia musical, que no gregoriano monódico era resolvida pelo ritmo da
frase, se torna bastante problemática quando aparece a necessidade de
sincronizar canto e acompanhamento. O período entre o final do século XII
e até inícios do XIV, chamado de Ars antiqua, introduz na vida musical da
época o cantus mensurabilis.
Aqui, é impossível evitar a menção do aflorar do compasso concomi-
tante ao relógio mecânico, no início do século XIV. Seu uso pela Ars novae
musicae, foi longamente preparado, desde as primeiras sistematizações da
notação musical (c. ano 1000) feitas pelo monge italiano Guido d’Arezzo (992-
1050) simplificando a confusa notação neumática, até a reforma da Ars anti-
qua feita por Franco de Colonia (c. 1215 - c. 1270), em Ars cantus mensurabilis
(c. 1260) sobre a notação medida da música. O cantus mensurabilis, polifonia
111
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

com duração de sons com valores de referência entre as notas, estabelecidos


a partir de um sistema de medidas regulado por relações numéricas, opunha-
-se ao conceito de cantus planus do gregoriano, cuja rítmica uniforme e livre
não era susceptível de medição.
As inovações do período da Ars nova (c. de 1320 a 1380) obtiveram su-
cesso em vários terrenos, interessando-nos o destaque do moteto com o uso
da isorritmia, – não só na isoperiodicidade, mas também na igualdade dos va-
lores das notas. Vemos assim que o mesmo princípio racionalizador do tempo
único, manifesto pelo relógio mecânico, encontra-se presente na equalização
do tempo musical, manifesto pelo compasso.
Uma nova mentalidade furtivamente se infiltra na vida moderna dos ne-
gócios, trazida pela ação mercantil, introduzindo uma nova forma de tempo-
ralidade, com a distinção entre o tempo cíclico e o linear que, de modo geral,
iria distinguir as sociedades pré-modernas não-capitalistas e sociedades mo-
dernas capitalistas, pondo fim à Idade Média, momento em que começa a se
generalizar no mundo euro-ocidental o tempo linear.
As inovações técnicas da Ars nova são decisivas para robustecer a
música profana, com especial destaque, como vimos ao tempus mensurabilis.
Através dele, “controla-se o avanço simultâneo das partes, ao mesmo tempo
que a compatibilidade rítmica entre elas (que já não obedecem mais nem à
rítmica frásica [...] do cantochão, nem à rítmica pulsante e coreográfica das
danças populares)”. (WISNIK, 1989, p. 14)
Essa noção, ainda que tosca, de medida temporal contrária à tradição
do cantochão, recebe forte resistência da Igreja que depois acata e elege o
compasso ternário como tempus perfectum, por se constituir forte signo do
mistério da Santíssima Trindade. O “pecaminoso” quaternário será adotado
pela Ars nova, mais sintonizada com o novo espírito de um mundo que se
desprende da tutela do sagrado e se seculariza.
Vive-se o momento da ruptura crucial do medievo, passagem do reg-
num Dei para o regnum hominis, prenhe de tensões, de um mundo urbano
que se anuncia e de mentalidades que se ajustam aos novos tempos. As
tensões de uma sociedade feudal agônica buscam na polifonia seu ajuste
sígnico ideal. Os temas cada vez mais afastados das motivações religiosas
se profanizam. A Ars nova acirra os ânimos da tradição. A Igreja, tomando
conhecimento da polifonia, trava uma guerra santa contra os riscos da “con-
cupiscência da escuta”, provocada por uma arte que se afasta mais e mais, do
fim sublime da música a serviço da palavra sagrada, conforme queria a liturgia
gregoriana. Assim, a Igreja, dois séculos antes do Concílio de Trento, já sentia
uma música que ia aos poucos se libertando de sua tutela, tornando-se uma
arte laicizada, não mais subalterna à palavra cantada a serviço de Deus. “Uma
112
MIRANDA, D. S. de

arte que iria proporcionar, no próprio seio da igreja, [em seus ofícios], prazeres
intelectuais aliados aos prazeres dos sentidos, dispersando com isso a aten-
ção dos fiéis e desviando-os dos mistérios divinos” (FERRAND, 1997, p. 197).
O papa João XXII percebe os alcances das novidades dessas técnicas
musicais: a mistura de textos sacros e profanos, a fragmentação do canto, a
dispersão das melodias em células rítmicas breves, e sobretudo as alterações
dos modos gregorianos, com deslizamentos de semitons, levando-o a conde-
nar a polifonia sacra. Em 1324, o Papa promulga um decreto, Docta Santorum
Patrum, síntese perfeita do pensamento estético de uma Igreja ainda apegada
à tradição, atônita face aos novos rumos da arte e da cultura. A citação abaixo
é um manifesto explícito da consciência papal dotada de uma extraordinária
compreensão dos fenômenos que estavam em curso. na vida musical euro-
peia. Queixa o papa de certos adeptos da Ars nova:

Enquanto dedicam toda a sua atenção a medir o tempo, estão empenhados


em fazer as notas de uma nova maneira, preferem compor seus próprios
cantos em lugar de cantar os antigos, dividem as peças eclesiásticas em
semibreves e mínimas [sic]; estraçalham o canto com notas de curta du-
ração, despedaçam as melodias com soluços, poluem-nas com discantes
e chegam ao ponto de entulhá-las com vozes superiores em língua vulgar.
[Desprezando os princípios do antifonário e do gradual], correm sem fazer
uma pausa para repousar, inebriam os ouvidos em lugar de acalmá-los, mi-
mam por gestos o que fazem ouvir. Assim, [...] a lascívia [...] é exibida às
escâncaras (apud FERRAND, idem.p. 197)

Manifesto papal de valor inestimável, onde se destaca um ponto


fundamental sobre a nova estética, totalmente estranho ao cantochão: a
condenação do cantus mensurabilis. Através de uma análise interna dos
cânones da Ars nova, o papa percebe que a introdução da medição do
tempo musical, com o uso de notas com unidades de tempo menores,
“em semibreves e mínimas”, através de motivos musicais mais curtos e
rítmicos, propiciava a dança lasciva. O uso “pecaminoso” do quaternário
ou sua subdivisão binária, com notas de tempo menor, permite pequenos
trechos rítmico-melódicos, repetidos com mais frequência para, além de
permitir sua memorização, propiciar ritmos mais rápidos e dançantes. A
Ars nova rítmica, ao agenciar uma estética corporal laica, é a antítese da
monodia de pura espiritualidade do cantochão.
O binarismo do canto popular, ao dividir o tempo em dois momentos for-
tes, recusa aquela temporalidade contida na unidimensionalidade da monodia
atemporal do gregoriano, até então expressão de um mundo mergulhado na
onidimensionalidade do eterno, demarcando agora um mundo urbano e mo-
derno cindido entre o sagrado e o profano, entre o espírito e a carne.
113
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

O longo e tortuoso percurso das mudanças que ainda se processa no


campo dos modos gregos, implica vários ajustes. No recolhimento claustral,
os monges deles retiram o sistema musical da cristandade, reduzindo e “cris-
tianizando” os modos pagãos, alterando os tons iniciais (o dórico antes em mi,
agora parte em ré), e invertendo seus pontos de partida, passando a chamar
de “modos eclesiásticos”. No processo de ajustes, o tonalismo insinua-se no
interior da polifonia medieval. Aos poucos substitui o sistema antigo.
A Ars nova foge do controle da Igreja, implicando, por via obliqua, a
dissolução dos modos eclesiásticos, pelas alterações designadas de música
ficta (música falsa), pavimentando o caminho do tonalismo. Em outros termos,
desloca-se o eixo do desenvolvimento musical ensejando cruciais alterações
no terreno da música secular. Ademais, gêneros profanos como baladas, ron-
dós, canções trovadorescas, sofrem tratamento polifônico, mantendo viva a
tradição secular da canção popular, invadindo cada vez mais os espaços sa-
grados, transformando-os em lugares de expressão musical de um povo que,
aos poucos, também se afasta da tutela clerical.
Nesse intrincado percurso de acordos e rearranjos, muitos passados ao
largo, ficou pendente uma questão milenar: a resolução de uma relação inter-
valar que sempre desafiou a estética da tradição - o trítono. Para ela, o esta-
tuto ontológico da música representa, através de suas relações matemáticas,
a própria ordem do cosmos, ideia mantida durante longo tempo pela estética
cristã, na noção da música mundana.
Desprendem-se daí várias relações de sons: os modos apolíneos e dioni-
síacos, as séries harmônicas, as consonâncias e dissonâncias. Desprendem-
-se igualmente, interditos e critérios eletivos e o trítono, ou diabulus in musica
(sua análise será feita na próxima unidade ao tratarmos do sistema tonal) des-
fruta o posto de honra das interdições. Como se sabe, para a Igreja medieval,
a música era, mais do que tudo, uma metafísica. Para Boécio, por exemplo, foi
devido a uma razão divina que se instaurou a harmonia no cosmos e no mundo
dos homens, segundo a ordem dos números. “No princípio de tudo está, portan-
to, o número. E a música, segundo Boécio, outra coisa não é senão a ciência
dos números que governam o mundo”. (FERRAND, 1997, p. 127)
Assim, a mentalidade medieval, conforme vimos, parte do princípio de
que tudo é governado pela harmonia das relações numéricas, expressão da
harmonia divina. As justas proporções consonantes, as ciências como a ma-
temática, a astronomia, a geometria (disciplinas que, com a música, formarão
o quadrivium), os princípios da moral, da política e da economia, tudo deve ex-
pressar a ordem transcendente do mundo invisível, harmonia do belo divino,
realizada na harmonia do visível. Para tal pensamento, as ressonâncias das
séries harmônicas são dotadas de grande estabilidade, correspondendo com
um universo harmonioso criado pela razão divina.
114
MIRANDA, D. S. de

Síntese do Capítulo
Esta unidade buscou examinar o período que segue a dissolução da pólis gre-
ga, cuja civilização, exposta ao contato de vários povos integrantes do império
de Alexandre Magno, logrou costurar uma expressiva unidade cultural conhe-
cida como helenismo, destacando-se, posteriormente, sua difusão no mun-
do latino constituindo um extraordinário resultado civilizatório: o classicismo
greco-romano que perde força com a quebra da unidade do Império Romano,
ensejando sua divisão em duas partes: o Império do Ocidente, capital Roma
e o Império do Oriente, capital Constantinopla. Foi também analisada a arte
cristã, responsável pela constituição de uma estética que marcou linguagens
e estilos das artes ocidentais, como o canto gregoriano, os estilos bizantino,
românico e gótico presentes na arquitetura, escultura e pintura do período
milenar do medievo europeu.

Atividades de avaliação
1. Destaque as razões e a importância do helenismo para a constituição do
classicismo greco-romano bem como para a difusão do cristianismo.
2. Analise os principais feitos de Alexandre Magno responsáveis pela unidade
cultural do período do helenismo.
3. Aponte e analise as principais diferenças entre os estilos arquitetônicos da
arte clássica grega, greco-romana, bizantina, românica e gótica.
4. “A estética cristã medieval procurou negar a materialidade e a sensualidade
do corpo, em suas diversas linguagens artísticas”. Explique onde e como
este princípio se efetivava.
5. Elabore um pequeno texto a partir de uma questão problematizadora formu-
lada por você mesmo, e procure respondê-la desenvolvendo uma reflexão
bem pessoal.
115
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

@
Leituras, filmes e sites
Filme
O nome da Rosa (1986), de Jean-Jacques Annaud, baseado no romance
homônimo (1980) de Umberto Eco, apresenta a vida monástica da baixa
Idade Média, envolvida em polêmicas religiosas, teológicas e filosóficas (o
protagonista é baseado no frade franciscano e filósofo inglês Guilherme de
Ockham), tendo como pano de fundo a figura de Aristóteles, inclusive sobre a
existência e o teor de um possível livro II de sua Poética dedicado à Comédia,
protagonizadas por beneditinos, defensores do rigor e austeridade do claustro,
e franciscanos, defensores de uma vida religiosa que sinaliza para os novos
tempos. Tudo se encontra ambientado numa antiga abadia medieval, cuja tra-
ma é marcada por mortes misteriosas de monges, tendo como pano de fundo
a marcação do tempo pelas horae canonicae e o canto gregoriano.

Site
www.aticaeducacional.com.br/imagens/complementos/hda/img/ima-
gem26.swf.


Referências
ATTALI, Jacques. Bruits essai sur l’économie politique de la musique.
Tradução de Dilmar Miranda Paris: PUF, 1977.
BRACONS, José. Saber ver a arte gótica, São Paulo: Martins Fontes, 1992.
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Gregoriana. S. Paulo: Attar Editorial/Palas Athena. 1989.
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117
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Capítulo 4
Do Humanismo Renascentista
ao Neoclassicismo Iluminista
119
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Objetivo
• Esta unidade visa estudar o período compreendido entre os séculos XV e
XVIII, a grande época em que as artes ocidentais logram conquistar certa
autonomia em relação às instâncias da tradição medieval cristã que deter-
minavam os conteúdos e as formas das obras de arte. A unidade visa ainda
estudar os grandes estilos, como o renascentista, o maneirista, o barroco, o
rococó e o neoclacissista, enfatizando a vida e a obra dos principais realiza-
dores das linguagens artísticas do período.

1. A Renascença e o maneirismo
O termo Renascença ou Renascimento surge pela primeira vez com Giorgio
Vasari em sua Vite, para se referir ao novo ciclo que começa após Cimabue
e Giotto, a “restaurazione delle arti e per dire meglio rinascità” (apud BAZIN,
1989, p. 33). O termo é comumente usado para identificar o período da cul-
tura europeia compreendido entre o século XIV (alguns historiadores recuam
ao final do século XIII) e meados do século XVII, largo período em que houve
grande interesse pela retomada dos valores éticos, estéticos e filosóficos da
cultura grega, vista como autêntica fonte da beleza e do saber. Como o termo
conota a desqualificação do medievo, feita por Vasari e outros contemporâne-
os, opondo-o à cultura que renasce sobre bases antigas, outros pensadores
procuram enfatizar mais a retomada dos studia humanitatis, compreendendo a
gramática, a retórica, a dialética e a língua neolatina clássica, preferindo, assim,
falar de Humanismo (v. FAGIALO, 1992, p. 63 e BYINGTON, 2009, p. 7). E o
artista humanista seria aquele capaz de traduzir plasticamente essa nova idade
da história da humanidade ocidental que passa a ser conhecida como moderna.

1.1. Contexto sociohistórico da Renascença


O ar da cidade liberta! Esse provérbio alemão do “Renascimento do século XII”
adensa, com propriedade, todo o sentido da modernidade renascentista que
está por vir. A cultura citadina compreendia um conjunto de posturas trazido pela
retomada do comércio (desbaratado desde o desmoronamento do Império Ro-
mano Ocidental), bem como pelo movimento das cruzadas, fazendo com que
120
MIRANDA, D. S. de

o mundo europeu entrasse em contato direto com outras culturas. Tudo isso
concorreu para preparar o que ficou conhecimento como revolução comercial,
iniciada em fins do medievo, fortalecida na alvorada dos tempos modernos e
consolidada com as grandes viagens e descobertas de países que se torna-
ram presas coloniais dos europeus, em plena era moderna. Após séculos de
vida rural dispersa, com o reaquecimento do mundo dos negócios, a Europa se
urbaniza e a cidade torna-se o centro das trocas comerciais, adquirindo uma
autonomia que era a própria antítese dos feudos rurais, o que estimula a desa-
gregação deles e a transição para o modo de produção capitalista.
No próprio seio da economia agrária de subsistência, voltada substan-
cialmente para o consumo imediato, irá irromper outra economia mais vigo-
rosa. O enfraquecimento do poder feudal (inclusive o da Igreja, a maior pro-
prietária fundiária de então), o fortalecimento da realeza, aliada à nova classe
urbana burguesa conforme a conveniência de seus interesses, tudo concorre
para urdir uma nova mentalidade. O europeu moderno parecia estar ciente de
viver um novo tempo de celebração do homem e da história.
Além das grandes alterações advindas da nova economia mercantil ur-
bana, com os efeitos conhecidos, dois fatos aparentemente isolados, mas de
relevância crucial quando articulados, concorreram também para o advento
dos tempos modernos: a invenção da imprensa e a Reforma Protestante. Jo-
hannes Gutenberg (1390-1468) inventou a imprensa móvel, aperfeiçoando os
blocos de impressão. Sua grande contribuição foi introduzir tipos de impres-
são individuais móveis de chumbo fundido, mais resistentes e reutilizáveis,
diferentes dos de madeira. Associada ao uso de tinta a óleo, sua invenção
deu enorme versatilidade à feitura de livros e outros impressos, permitindo sua
massificação. Na cidade de Mogúncia, associado a um comerciante, Guten-
berg imprimiu a primeira Bíblia (de 1450 a 1455).

Figura 38 – Exemplar da Bíblia de Gutenberg (Biblioteca do Congresso em Wa-


shington D.C.)
121
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Martinho Lutero (1483 - 1546), teólogo agostiniano, foi responsável, com


suas ideias, pela Reforma Protestante. Em 1517, ele fixa as 95 Teses na porta
da Igreja do Castelo de Wittenberg, estopim para romper com a Igreja Romana,
contra a qual tinha, como questão maior, o tráfico das indulgências, isto é, a
obtenção do perdão dos pecados autorizado por Leão X por troca pecuniária
para construir a nova basílica de S. Pedro em Roma. A tradução impressa das
Teses para o alemão foi logo distribuída: em duas semanas, por toda a Alema-
nha e, em dois meses, por toda a Europa. Foi o primeiro evento da História em
que a imprensa teve um papel decisivo. Lutero também traduziu a Bíblia para o
alemão sem a prévia autorização da Igreja católica, algo inconcebível na época.
Mesmo não tendo sido o primeiro a fazê-lo, sua tradução superou as de-
mais graças à sua qualidade e, sobretudo, à sua ampla divulgação pelo sistema
da imprensa móvel de Gutenberg. Isso concorreu definitivamente para retirar, de
Roma, o monopólio da exegese30 da Bíblia, bem como para dissolver a unidade
da Cristandade, obtida ao longo de mais de mil anos mediante muito empenho
doutrinário e catequético, o que foi decisivo também para a secularização da
cultura e dos costumes, tão cara ao espírito humanista da época.
Se a civilização feudal se manteve relativamente cingida aos estreitos
domínios senhoriais sob a tutela da Igreja, a Renascença faz um movimen-
to totalmente inverso. Na verdade, durante todo o medievo, a vida monacal
preservou algo da cultura antiga, tendo contado, ainda, com momentos de
revigoramento do contato com a arte clássica, como se deu, como vimos, na
era carolíngia e no “Renascimento” do século XII. Porém, algo bem distinto, 30
Exegese: do grego
e muito mais extenso e profundo irá ocorrer: o humanismo renascentista pro-
exegesis, é a interpretação
vocará uma grande inflexão na mentalidade europeia com a laicização dos profunda do texto bíblico,
costumes e da cultura, fazendo irromper uma grande mudança nos rumos da senso estendido a textos
arte, cuja forma e conteúdo se dessacralizam, o que deslocou o eixo teocên- jurídicos ou literários.
Portanto, o termo exegese foi
trico da tradição feudal para a secularização antropocêntrica.
a denominação conferida à
O uso do cavalete e da tinta a óleo faz a arte descobrir alternativas de interpretação das Sagradas
expressão pictórica para além do ambiente sagrado dos templos, deixando de Escrituras nos primórdios
da era cristã. A exegese
tê-lo como suporte básico para a técnica dos afrescos, laicizando formas esté-
bíblica aplica-se à pretensão
ticas e conteúdos. Como se viu, a pintura, até então, se inspirava praticamen- de interpretar corretamente
te em motivos religiosos, configurando teores espiritualizados, enfatizando co- os textos do Velho e Novo
res, tons e climas evocativos para a contemplação mística, mas, sobretudo, Testamentos.
era carente de perspectiva, visto que se pintava para o olhar contemplante
divino, fruto do teocentrismo vigente.
A fixação da perspectiva (ciência da ótica), instituída como princípio ca-
nônico da Renascença, e a geometrização do espaço plástico, procedimentos
tributados aos arquitetos Filippo Brunelleschi (1377 - 1446) e Leon Battista
Alberti (1404 - 1472) como referência do ponto de ruptura com as artes do me-
122
MIRANDA, D. S. de

dievo, confere uma irrecusável visibilidade para representar o deslocamento


do olhar divino, imã contemplativo da tradição, para a visão antropocêntrica
do homem moderno. As normas da perspectiva projetam a modernidade para
as dimensões da profundidade e da história. Antônio Manetti, em A vida de
Brunelleschi assim a descreve:

Aquilo que os pintores atualmente chamam perspectiva (prospectiva)... é


aquela parte da ciência da Perspectiva que se voltou a reduzir ou ampliar
sistematicamente, conforme aquilo que o olho percebe, os objetos que es-
tão respectivamente afastados ou próximos – que se trata de construções,
planícies, montanhas e paisagens de todo tipo – e de figuras e de outros
objetos em todos os lugares pelo tamanho que parecem ter de uma cer-
ta distância correspondendo ao seu maior ou menor distanciamento (apud
BAXANDALL, 1991, p. 200).

Artes plásticas, música, literatura, deixam a inspiração quase exclusiva


31
O moderno homem do mundo religioso para se dedicaram ao registro da pulsão inventiva sub-
burguês, desde a proto- jetiva do artista, mesmo que disso ainda não se tivesse plena consciência.
Renascença, passa por Em suma, o empenho humanista, ao ver o homem como centro e medida do
um constante ciclo de
mundo, se direcionou para a laicização do pensamento filosófico-científico,
racionalizações: racionaliza
a pintura pelo uso reiterado abrigando investigações inovadoras, além de reafirmar o papel do individuo,
dos planos perspectivados preparando o espírito do artista para se ver, ele próprio, como autor, algo pres-
em profundidade, com vistas sentido por Jan van Eyck em fins do medievo, conforme veremos.
à sua fruição por um olhar
contemplante humano; O ideal humanista e o novo espírito científico se inscreviam nas mais dife-
racionaliza a arquitetura, rentes formalizações estéticas. Operando ora no espaço arquitetônico, ora nas
mediante a elaboração linhas e cores do espaço pictórico, ora no volume escultórico, ora nos textos li-
de maquetes e plantas
terários, ora nas criações musicais, o novo artista procura expressar os maiores
antes das edificações;
racionaliza os espaços das valores renascentistas: o racionalismo e a dignidade do homem como centro
conquistas, pelo traçado e medida do mundo. A estética humanista31, mesmo se inspirando no ideal da
de mapas cartográficos em estética clássica grega, dela difere ao assumir certa feição sensual e hedonista.
“escala”, projetando no papel
grandes distâncias a serem Mesmo não sendo nossa intenção analisar a história da literatura, é irre-
percorridas, postulação cusável o registro dos novos valores do mundo das letras do período, pois a
crucial do capitalismo literatura foi, certamente, a arte que melhor expressou os ideais do humanis-
nascente. Racionaliza,
mo dos novos tempos, por se mostrar mais cosmopolita e acompanhar, des-
sobretudo, o tempo,
tornando-o objetivo e linear, de seu epicentro, a crise religiosa provocada pelas igrejas reformadas, bem
mediante o uso do relógio como assistir aos primeiros ensaios do poder absoluto que irá caracterizar,
mecânico, premido pela por alguns séculos, o sistema político de vários países europeus. Ademais, é
necessidade da medição do
impossível ficarmos indiferentes ao mundo das letras, arte diretamente afeta-
tempo do trabalho.
da pela difusão massiva do sistema de impressão inventada por Gutenberg.
Na retomada do pensamento e dos conceitos da antiguidade clássica,
Platão e Aristóteles são os filósofos mais revisitados pelo leitor renascentista.
123
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

No Quattrocento, de Aristóteles é retomada sua tradição poética (no sentido


de póiesis enquanto criação estética), presente no Livro I da Poética. O autor
mais importante dessa linhagem é o artista Leon Battista Alberti com suas
obras De Statua (1434), De Pictura (1435) e De Re Aedificatoria (1452). Surge
também o famoso Trattato della Pitura de Leonardo da Vinci, (iniciado por volta
de 1498 com a 1ª edição impressa em 1651), na realidade um conjunto de es-
critos e esboços onde expõe, dentre outras coisas, as normas da perspectiva
fincadas em princípios matemáticos e geométricos.
No Cinquecento, de Platão é retomado o ideal utópico de A República, O Homem do
32

ao se buscar construir uma sociedade ideal num lugar imaginário. Integram Renascimento,
essa linhagem de autores utópicos os ingleses Thomas Morus (1478 - 1535) Agnes Heller
com Utopia (um lugar outro não existente) e Francis Bacon (1561 - 1626) com "Durante o Renascimento,
Nova Atlântida, e o italiano Tommaso Campanella (1568 -1639) com Cidade os conceitos de medida e
de beleza pressupunham
do Sol. No entanto, o autor que melhor encarna o ideal humanista é o holan-
um ao outro. Efetivamente, a
dês Erasmo de Roterdam (1467 - 1536), sobretudo em sua obra-prima Elogio temeridade e a imoderação
à loucura, dedicada ao amigo Thomas Morus podiam parecer muitas vezes
fascinantes e ser alvo de
Mesmo não rompendo com Roma, a crítica à Igreja Católica feita por
simpatias e, todavia, nunca
Erasmo leva-o, no início, a se aproximar de Lutero, com quem mantém diá- eram vistas como 'belas',
logo até seu rompimento em 1525. O humanismo de Erasmo buscava dar mas sim como 'grandes' [...].
uma interpretação cristã à sabedoria antiga, insistindo numa espiritualidade A imoderação atraia, mas,
simultaneamente, repelia.
universal baseada na liberdade de expressão, ao contrário do que pregava a
Provocava o prazer, mas
Reforma que condenava as “contaminações pagãs”. também o medo, enquanto a
Em tom provocador, Erasmo faz da loucura uma personagem muito co- beleza só atraia e suscitava
nhecida, mas pouco discutida. Indignada com a falta de elogios, ela resolve o prazer: de fato, a beleza
era o objeto do amor [...]. O
elogiar a si própria e mostrar o quão se encontra presente na vida das pessoas. estético e o utilitário uniam-se
Assuntos como a cultura clássica, a religião, a paz e a sociedade preenchem neste conceito de medida.
o imaginário temático do autor, sendo cada um sempre usado como objeto Ter temperança, viver com
sobre a reflexão da loucura. Mas, dentre aqueles, sobressai o tema da razão, moderação, respeitar a
medida justa - tudo isto era
aparentemente o “outro” da loucura. O Elogio é uma sátira contra a estultícia não só bom e belo para o
humana (do latim stultitia, tolice), apresentada nas mais variadas formas. homem, como ainda útil. Esta
unidade era particularmente
2. O sistema das artes renascentistas32 natural em Florença [...].
Era um hábito social que,
2.1. A arquitetura no entanto, estava longe de
ser 'natural' ou apenas um
Diferente dos ideais arquitetônicos anteriores, ora preocupados com adapta- costume tornado habitual;
ções de templos pagãos (as basílicas protocristâs), ora com desenhos geo- era sempre uma norma.
métricos (estilo bizantino), ora com grandes espaços para acolher peregrinos Constituía uma das normas
concretas de comportamento
(estilo românico), ora com a verticalidade das ogivas (estilo gótico), o ideal
da época" (apud CUNHA,
construtivo da Renascença se expressou nas representações racionais or- op.cit.p. 546)
ganizadas em "proporções justas" entre as partes que compunham o todo
edificado, cuja marca principal foi perseguir uma ordem e disciplina que trans-
124
MIRANDA, D. S. de

pusessem o ideal de infinitude das catedrais góticas. A matematização do es-


paço arquitetônico é flagrada, por exemplo, nas relações estabelecidas entre
as partes do templo para que o olhar observante pudesse captar a lei que as
organiza, não importando de que ponto se observa.
Brunelleschi, o arquiteto que melhor encarna o modelo de tal concep-
ção, é o exemplo do artista renascentista: pintor, escultor, arquiteto, matemáti-
co, geômetra, conhecedor do poeta Dante Alighieri, autor da Divina Comédia.
Ele realizou extraordinários trabalhos que integram o acervo arquitetônico da
Renascença, como a cúpula da catedral de Florença (iniciada em 1420), co-
nhecida como a igreja de Santa Maria del Fiore.
A partir dele, contando com a colaboração de Battista Alberti, foram reto-
madas as ordens gregas (coluna dórica, jônica e coríntia), as cornijas, os fron-
tões, além dos arcos romanos, agora integrados ao espaço matematizado da
estética renascentista. Antigas formas clássicas foram revividas com o mes-
mo “tom” de sobriedade, emprestando às fachadas cristãs uma configuração
curiosamente pagã. Um exemplo é a igreja de Santo Andrea, em Mântua, que
recupera a estética do antigo império, presente na fachada do edifício, a qual
foi concebida como um gigantesco arco triunfal à maneira romana.
Um belo exemplo de edifício cumpridor dos cânones para atingir os ob-
jetivos da arquitetura renascentista é a capela Pazzi (1429 - 1443) em Floren-
ça, de dimensões pequenas comparadas às edificações góticas. Construída
dentro dos princípios científicos precisos das regras da geometria, a capela de
Brunelleschi obteve a concretização da harmonia e da regularidade arquitetô-
nicas perseguidas pelo ideal renascentista do Quattrocento.

2.2. A pintura
Consolidam-se na pintura renascentista, princípios que haviam surgido entre
os artistas do período gótico tardio: o traço perspectivado, o uso do claro-escu-
ro e o naturalismo. Naturalismo, proporção e simetria se constituíram nas vias
de acesso à beleza, levando os artistas a perscrutar, cientificamente, o traço
anatômico dos corpos e a forma dos objetos, incorporando em suas obras um
realismo insuperável. Modelos clássicos antigos renascem e se adaptam a
novas postulações e gostos estéticos.
O ideal de beleza revive a figuração grega, agora integrada a uma har-
monia de composição ditada matematicamente, evitando desproporções e
excesso de traços. Com a perspectiva linear, escalonam-se os objetos repre-
sentados em razão das distâncias ou dos segmentos geométricos tendentes
ao "ponto de fuga" central ou pouco acima do espaço pictórico. O efeito é
imediato, estabelecendo a ilusão de profundidade, noção que desliza para a
linearidade do tempo histórico moderno, mantendo-se por vários séculos.
125
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Quanto à temática, embora o teor sagrado se mantenha, cenas bíblicas


acabam por ganhar certo ar coetâneo. A par disso, renascem personagens
míticas pagãs. O prosaismo da vida moderna da classe burguesa ganha pro-
eminência, fazendo a arte de então se ocupar com minúcias tais como afetos
(dor, ironia, alegria, paixão) ou pormenores figurados (rosto, pés, mãos, obje-
tos paisagísticos, vestimentas).
Vejamos, de forma pontual, alguns pintores sugeridos como mais repre-
sentativos do período renascentista, com seus estilos e trabalhos.
Fra Angelico (1387 - 1455): a despeito da influência de Masaccio (v. abaixo)
em certo momento de sua vida, o artista, por sua condição de religioso domi-
nicano, perseguiu a conciliação entre o terreno sensível e o sagrado supras-
sensível, imbricando o religioso sagrado com impressionantes traços de rea-
lismo humano. Por isso, alguns historiadores incluem seu estilo na intersecção
entre o período do gótico tardio e a primeira Renascença. As paredes do
claustro, as salas e as celas do convento São Marcos, em Florença, consti-
tuem uma impressionante galeria de sua obra, para a Anunciação (1433-34),
onde notamos evidentes a perspectiva e traços de realismo.
Masaccio (1401-1428): a despeito de sua
curtíssima vida, teve, em apenas pouco
mais de dez anos de atividade artística fe-
bril, tempo suficiente para expressar sua
habilidade que consistia na pintura como
imitação da realidade, parecendo buscar
uma cópia fiel dos objetos retratados tais
como aparentam ser. Estabeleceu os prin-
cípios básicos da pintura renascentista, e
é tido, portanto, como um dos primeiros a
fazer uso científico da perspectiva e da luz, Figura 39 – Anunciação de Fra Angelico
de modo a dar ilusão de tridimensionalida-
de. Mesmo jovem irradiou influxos para artistas mais velhos, a exemplo de
Fra Angelico, como vimos. Uma de suas obras mais representativas é a
Madona com o Menino (1426).
Piero della Francesca (entre 1410/20 - 1492): era pintor e matemático do
Quattrocento, o que explica sua busca quase obsessiva pela composição da
beleza geométrica e pela perspectiva. Para ele, a pintura não devia narrar
eventos, mas criar figurações geometrizadas, a exemplo de sua Ressurrei-
ção de Jesus, grupo de figuras em formato piramidal, cuja base são os sol-
dados que dormem próximo ao túmulo e cujo o ápice é a cabeça de Cristo
ressuscitado.
126
MIRANDA, D. S. de

Piero della Francesca primou também pela


criatividade em relação ao passado medieval, apre-
sentando temas novos e técnicas inovadoras como
o uso da tela e da pintura a óleo, o retrato, o nu, e,
sobretudo, a criação do volume. Trabalhou na deco-
ração do Palácio Ducal de Urbino, ao norte da Itália,
cujos titulares, o casal Frederico de Montefeltro e a
esposa, Battista Sforza, foram retratados no famoso
díptico, objeto de estudos de Picasso, Braque e ou-
tros artistas cubistas, fruto da construção geométri-
ca dos rostos retratados.
Nesse díptico, é nitida a intenção do artis-
ta em reduzir as figuras às formas geometrizadas,
apresentando um dado bem interessante: apesar de
Figura 40 – A Ressurreição de Cristo de
Piero della Francesca cada uma se encontrar isolada no painel do díptico,
a mesma paisagem, ao fundo, empresta unidade à
cena. Pintadas de perfil, as figuras conseguem passar a ilusão de volume e
relevo pretendida pelo artista.

a) Os três gênios do Cinquecento

Certamente os artistas que melhor expressaram o esplendor da pintura da


época, vista como o ápice do classicismo, são os três gênios da plasticidade
renascentista: Leonardo da Vinci (1452 - 1519), Michelangelo Buonarrotti
(1475 - 1564) e Rafael Sanzio (1483 - 1520)
O polímata Da Vinci, considerado arquétipo do homo universalis, conceito
cultuado “pelos humanistas italianos, segundo os quais quem possui uma virtu-
de, possui todas” (BYINGTON, id. p. 37), encarna o gênio
do moderno humanismo, talvez o artista mais cônscio do
momento em que se vivia. Era um momento de nítida distin-
ção entre as artes mecânicas e liberais: sua noção de que
a arte é coisa mental é, certamente, a formulação mais pre-
cisa do papel da subjetividade autoral do artista renascen-
tista. Atuando em várias áreas do saber, foi matemático,
escultor, pintor, desenhista, músico, urbanista, inventor, ar-
quiteto, botânico, etc. Dedicou-se aos estudos de anato-
mia, perspectiva, proporções e ótica. Legou-nos diversas
obras primas como a Última Ceia – onde compõe o espaço
pictórico de forma harmoniosa, distribuindo geometrica-
mente os apóstolos (dois grupos de três de cada lado), ten-
Figura 42 – Detalhe do rosto da Mo-
nalisa (técnica do sfumato) do Cristo como o centro axial da composição irradiando li-
127
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

nhas perspectivadas –, e a pintura mais conhecida de todos os tempos, a


Monalisa, cujo sorriso enigmático dá realce ao sfumato33, técnica bastante usa-
da e por isso, bem difundida por Da Vinci.
Se Michelangelo não apresenta a versa-
tilidade exuberante de Da Vinci, foi genial prin-
cipalmente em duas linguagens, sem desconsi-
derar a arquitetura assumida na fase madura: a
escultura e a pintura. Por isso, foi chamado por
Giorgio Vasari de O divino. Foi discípulo do pin-
tor florentino Domenico Ghirlandaio, celebrado
mestre de uma excepcional geração de artistas.
O trabalho mais famoso de Michelangelo, como
pintor, são os afrescos do teto da capela Sistina Figura 43 – E Deus criou o homem (Capela Sistina, Vaticano)
(entre 1508 e 1512), feito no tumultuado papa-
do do pontífice guerreiro Júlio II. Desse majestoso painel de pura expressão
de sublimidade da arte renascentista, ressalta a cena da criação do homem,
quando Deus, representado por um vigoroso corpo antropomorfizado, envolto
numa corte de anjos, estende a mão para, num simples toque, doar a vida a
33
Sfumato: o termo é
Adão, representado por um jovem de corpo nu, forte e harmonioso, apanágio
oriundo do italiano sfumare
do ideal de beleza da Renascença. (vaporizar) e seu significado
Mais jovem e de existência mais curta (37 anos), isso não impediu que diz respeito à técnica de
gerar gradientes num
Rafael, nos seus traços de puro equilíbrio e simetria, se mostrasse como o
desenho ou numa pintura,
melhor tradutor do ideal de beleza clássica. Seu estilo procura compor cená- procurando suavizar ou
rios sem excesso de detalhes e decoração. Por sugestão do arquiteto Bra- esbater os contornos
mante, seu amigo e responsável pelo projeto de restauro do Vaticano, Júlio da pintura, obtendo-se
transições nuançadas da
II o chama quando tinha apenas 25 anos. Durante 12 anos, foi responsável
luz à sombra ou vice-versa.
por grandiosos projetos. Seu mais importante afresco no Vaticano é a Escola Observando a Monalisa, não
de Atenas (Causarum cognitio ou “Conhecimento das causas”, no original), se percebe as pinceladas e
síntese cartográfica e alegórica da filosofia antiga, que mostra um grupo de variações bruscas de tons
devido ao uso do sfumato.
filósofos de várias épocas ao redor das figuras de Aristóteles e Platão, ilustran-
do a continuidade do pensamento grego.
Demonstrando afinidades com a Última Ceia de Da Vinci, quanto à or-
ganização do espaço pictórico, o eixo central da Escola são as figuras dos
dois filósofos, cujo entorno é composto por grupos de outros filósofos, alguns
os ladeando, outros em planos inferiores, alguns sentados. Platão (com o
rosto de Da Vinci), apontando para o alto, segura o diálogo socrático Timeu,
sendo, assim, identificado com o ideal do mundo suprassensível. Aristóteles
segura a Ética a Nicômaco com a mão na horizontal, expressando o mundo
sensível. A composição é rematada com um conjunto sequenciado de arcos
que vai graduando a profundidade em planos perspectivados, percepção ain-
da reforçada pelas figuras geometrizadas no chão da Escola.
128
MIRANDA, D. S. de

Figura 44 – Escola de Atenas de Rafael

2.3. A escultura
Assim como na pintura, a escultura ganhará traços similares, quando não
idênticos. Busca fixar movimentos sutis e dinâmicos, exprimir o naturalismo
dos afetos e dos estados de espírito, explorar o ideal de beleza pela nudez e
pela sensualidade, algo também detectável na pintura. Tem-se aqui a grande
síntese (ou seria uma das grandes contradições íntimas da Renascença) do
espírito da época: a Renascença “não vê salvação da arte fora do paganismo
[leia-se fora do classicismo greco-romano] nem da alma fora do cristianismo
[leia-se Contra-reforma]” (BAZIN, 1989, p. 33).
Uma análise sumariada da época pode ser representada pela obra de
Michelangelo, tido como o maior escultor renascentista. Um dos motivos do
constante conflito com Júlio II foi este tê-lo contratado como pintor para deco-
rar o teto da capela Sistina, quando o grande desejo do artista era terminar de
esculpir o profeta Moisés, para ser colocado na tumba do papa. Conta a lenda
que, ao ver terminado seu Moisés, impressionado com o resultado estético
de seu realismo em mármore, teria golpeado o joelho do profeta e proferido:
“Perché non parli?”/ “ Por que não fala?”
No Davi (1501 - 1504), Michelangelo expressa a dignidade humana
mediante um realismo anatômico impressionante. Ao contrário da narrativa
mítica, não se trata de um menino que derrota o gigante Golias com uma pe-
dra atirada de uma funda, mas de um esbelto jovem adulto que, na dignidade
de sua nudez contida em 5,17m de mármore de Carrara, apresenta um corpo
129
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

contendo a expressão de alguém prestes a realizar uma ação heróica. Sua


expressão corporal nos conduz, inapelavelmente. a ver afinidades com outra
obra recorrente em vários momentos da história da escultura, o Doríforo de
Policleto, porém com uma diferença: a força interna que transparece, con-
forme assinala O.T. Araújo (apud PROENÇA, op.cit., p. 91) referindo-se aos
traços da cabeça da estátua.
O [heróico] Davi de Michelangelo tem uma expressão desconhecida até en-
tão. Contém uma espécie de força interior que não aparece no humanismo
idealizado dos gregos. [...] Possui um tipo de consciência que surge com o
Renascimento em sua plenitude: a capacidade de enfrentar os desafios da
existência. Não é apenas contra Golias que este Davi se rebela e batalha. É
contra todas as adversidades que podem ameaçar o ser humano

A Pietà de Michelangelo (1498 - 99) tem 174 centímetros por 195 centí-
metros. Ao contrário do pathos de outras esculturas do gênero, sempre mos-
trando Maria como Mater dolorosa, Michelangelo a representa muito jovem e
com uma nobre resignação, cuja expressão facial é idealizada, contrastando
com a angústia usual que os artistas, até então, lhe imprimiam. O esmero re-
quintado da modelação do conjunto da obra, representado pelo registro realis-
ta do drapeado das vestes e das saliências dos músculos e veias, bem como
o tratamento da superfície do mármore, polido como um marfim, conferem à
obra a reputação de ser uma das mais belas obra-primas de todos os tempos.
Nota-se a harmonia da composição obtida pela horizontalidade do corpo de
Cristo com a verticalidade da figura de Maria.Trata-se de um trabalho escul-
tórico organizado segundo um esquema em forma piramidal, de uso corrente
entre os artistas renascentistas.
Michelangelo tinha então 23 anos. Devido à sua pouca idade e por
muitos desacreditarem de sua autoria, o artista colocou sua assinatura na
faixa que atravessa o peito de Maria: Michael Angelus. Bonarotus. Florent.
Facieba(t), i.e, “Miguel Angelo Buonarotus de Florença fez.”


130
MIRANDA, D. S. de

Figura 45 – Pietà de Michelangelo

3. A Renascença europeia
Assim como o gótico, que se irradia pela Europa a partir da França, o mesmo
ocorre com a Renascença, que se espraia no continente a partir da Itália.
Vários países europeus aderem ao princípio da revitalização da cultura greco-
-romana depois de superar, de forma sintética, o choque entre estéticas nacio-
nais e concepções italianas. Dentre as várias linguagens, a pintura foi a que
melhor refletiu tal síntese. Na Alemanha e nos Países Baixos, artistas como
Hieronymus Bosch (1450 - 1516) e Albrecht Dürer (1471 - 1528) conseguem
conciliar o gótico com a nova pintura italiana.
Bosch tornou célebre, com seu estilo inconfundível, o tríptico Jardins das
delícias (c.1500), cujo painel central é ladeado por dois painéis representando
o Paraíso (à esquerda) e O inferno musical (à direita). A força de sua fantasia
livre com suas formas oníricas é vista como prenunciadora do surrealismo,
séculos antes de sua irrupção. Uma das qualidades mais famosas de seu
estilo era a forma de representar a maldade humana. No painel sobre o inferno,
por exemplo, “amontoam-se horrores sobre horrores, labaredas e tormentos
de toda espécie, e todos os tipos de demônios pavorosos, meio animais, meio
humanos ou meio máquinas, que flagelam e castigam por toda a eternidade
as pobres almas pecadoras” (GOMBRICH, 1989, p. 276).
131
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

O alemão Dürer, talvez o mais realista dos artistas de sua época,


concebe sua pintura como a arte da representação fiel do que pretende
expressar. Procurando refletir sua terra e seu tempo, dedicava-se a pintar
de preferência pessoas simples do povo com seus trajes típicos, bem como
soldados e camponeses. Além de excelente gravurista e desenhista, foi um
grande retratista, expressando sempre os traços psicológicos do retratado.
Utilizou, obstinadamente, os estudos sobre matemática e geometria em
suas criações, como a famosa gravura Melancolia. O que nos chama a
atenção nessa gravura é, justamente, esses dois aspectos de sua formação
contidos no poliedro e no quadrado mágico. O poliedro parece formado por
dois triângulos equiláteros, além de seis pentágonos. Porém, o mais curioso
na gravura é o quadrado mágico situado no canto superior direito da gravura.
O quadrado é formado por quatro linhas e quatro colunas, contendo um arranjo
de números inteiros de tal forma que a soma desses números, em cada linha
e coluna, ou mesmo nas duas diagonais do quadrado, será sempre idêntica,
i.e., 34 e os dois números do meio da linha inferior fornecem a data da gravura:
1514, sinalizada pela ponta da asa do anjo.
Porém, o artista que parece melhor encarnar a sínte-
se acima referida é Pieter Bruegel, o Velho (1525/30 - 1569).
Oriundo dos Países Baixos, ele viveu na Antuérpia, importante
entreposto dos começos da Europa moderna. Inicialmente in-
fluenciado por Bosch, encontrou cedo seu estilo, cuja inven-
tiva voltou preferencialmente para retratar costumes, festas e
folguedos da vida simples das pequenas cidades rurais ainda
marcadas pelo medievo. Soube como ninguém utilizar uma
grande quantidade de figuras humanas em seus quadros. A
força transgressora da festa popular pode ser visualizada em
Combate entre o Carnaval e a Quaresma (1559), retrato de
um pequeno vilarejo medieval em pleno mundo renascentista.
Sobre esse quadro, existe uma sugestiva análise de Ja-
cques Attali, ao apontar a presença de vários pares contrastan- Figura 46 – Melancolia de Albre-
cht Dürer
tes na obra: festa/penitência, violência/harmonia, ordem/desor-
dem, luz/trevas. Na dobra histórica dos dois tempos – o medievo e o moderno
–, confrontam-se dois campos, duas concepções de mundo profano, vendo-se
nessa cena de conflito entre a ordem sagrada e a festa popular transgressora, a
simulação de todas as ordens pensáveis. O quadro, espécie de cartografia plás-
tica desse confronto, expressa a estratégia de dois mundos antagônicos: para
o povo, a festa do carnaval representa a felicidade tolerada pelo riso concedido
enquanto se espera o sofrimento sagrado anunciado pelo tempo da Quaresma;
para os ricos, a penitência representa a austeridade a ser suportada pela pro-
messa da bem-aventurança eterna. Bruegel anuncia o embate entre duas so-
ciabilidades fundamentais, a Norma e/ou a Festa, decantadas do nicho de duas
132
MIRANDA, D. S. de

épocas que se tensionam: o mundo feudal rural e o urbano moderno. Os pobres,


escondidos atrás de máscaras, festejam em torno de um rito derrisório. Os ricos,
expressando o sentimento da Quaresma, se afligem e penitenciam, dando es-
molas aos mendigos instalados na porta da Igreja. Contrapõe-se ao drama da
penitência, a procissão do Carnaval, onde se vê a figura trágica e inquietante
de um músico desfigurado pela máscara que se junta a jogadores de dados.
Attali (1977) arremata a sua análise assim: “Harmonia e Dissonância, Ordem e
Desordem. Neste confronto simbólico entre a miséria alegre e o poder austero,
entre a infelicidade transformada em festa e a riqueza maquiada em penitência
[...], Bruegel nos faz não somente ver, mas compreender o mundo" (p. 39).

Figura 47 – Combate entre o Carnaval e a Quaresma

4. O maneirismo
Derivado do termo italiano maniera ("maneira") e usado com intenções po-
sitivas por Vasari, ele próprio visto como representante desse novo estilo,
o maneirismo seria sinônimo de graça, leveza, estabilidade e sofisticação,
fruto do estilo pessoal do artista que, no limite, transforma-se num capricho
idiossincrático como em Michelangelo, que se permitia buscar constante e in-
cansavelmente novas formas de expressão. Depois, o maneirismo sofre uma
grande inflexão passando a conotar artificialidade e virtuosismo excessivo.
A expressão “à maneira de” deixou de retratar a inventiva do artista, para se
referir ao modelo que se imitava, isto é, “à maneira” de outrem.
O historiador Gombrich (1989) vê no maneirismo um tempo de “crise da
arte”. Poderíamos buscar as causas da crise nos fatos ocorridos na Europa,
algumas já analisadas como a perda da primazia de Roma e a quebra da
unidade da cristandade, com o movimento reformista (Lutero, Calvino, John
Knox, Zwingle, Henrique VIII), abalando a instituição, sólido esteio para a ins-
133
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

piração e as encomendas dos artistas. O abalo foi tal que precisou de uma
ordem religiosa (a Companhia de Jesus), fundada em 1534, para combater os
reformados, e de um grande conclave (Concílio de Trento, de 1545 a 1564).
convocado pelo papa Clemente XIV, para reparar os estragos feitos.
O contexto sociohistórico do novo estilo, além da esfera religiosa, foi
também marcado por profundas mudanças na economia, política e cultura.
Os permanentes conflitos da Itália com a França, Alemanha e Espanha provo-
caram uma radical mudança no equilíbrio de forças do continente, culminando
no Saque de Roma de 1527: oito dias de terror e devastação, provocando a
diáspora de artistas e intelectuais para fora da Itália. No plano econômico, a
Itália já vinha perdendo primazia no quadro do capitalismo mercantil, com o
deslocamento das rotas de comércio para o Atlântico, quebrando de vez seu
monopólio das linhas do Mediterrâneo, o que irá trazer também consequên-
cias para o campo das artes e da cultura, considerando o papel, há anos,
desempenhado pelos burgueses italianos.
Gombrich assinala que, depois de 1520 (leia-se após Da Vinci, Miche-
langelo e Rafael, quando as artes da Renascença atingiram os limites de sua
perfeição e glória), era muito difícil à nova geração impor seu próprio estilo. Daí
se poder dizer que subjaz ao maneirismo um desejo inconsciente de superação
por parte da nova geração. A partir de então passou a ser considerado como a
fase final do ciclo renascentista. A longa vida de Michelangelo propiciou-lhe a
possibilidade de experienciar diferentes etapas da vida artística de sua época.
Por isso, alguns autores vêem a sua última fase como a mais vigorosa, mística
e monumental servindo de paradigma para o estilo maneirista. Pelo seu aspec-
to impreciso e ambivalente, por se tratar de um período de transição entre o
ápice da Renascença e o aflorar de um novo estilo, o barroco, várias noções
do maneirismo sofrem igualmente de ambiguidades e imprecisões quando não
contraditórias, algumas se confundindo com o próprio estilo barroco.

5. A música profana da modernidade renascentista


Vimos que o final do medievo imerge na polifonia gótica, cujo emaranhado
de vozes superpostas demandava menor atenção às palavras. A música po-
lifônica, transformada pelos mestres flamengos, ganha estruturas mais re- 34
A capela: do italiano a
quintadas e complexas: a missa e o moteto, gêneros hegemônicos na época, cappella, termo que se
executados a capela34, permitiam a multiplicação de vozes autônomas, cuja refere à música vocal
sofisticação foi bastante ajudada pelo cantus mensurabilis. Os motetos aban- sem acompanhamento
instrumental, conforme o
donam os excessos da “bricolagem” da Ars gotica, baseando-se, agora, num
costume do protocristianismo
único texto. As várias vozes, insubmissas à voz gregoriana, se entretecem e e que foi mantido na monodia
engendram seu movimento a partir do livre diálogo, antes subjacente ao can- gregoriana.
tochão. A voz grave tenor (do latim tenere, sustentar) desloca-se para regiões
mais agudas. As vozes fluem em campos distintos de tessituras, fixando, de-
pois da Reforma, o padrão do coral luterano a quatro vozes.
134
MIRANDA, D. S. de

O contraponto polifônico enseja um permanente encontro das diferentes


notas ressoadas em cada frase melódica, gerando novos encontros sonoros.
Assim, caminha-se para a verticalização da harmonia, encontros nem sempre
consonantes para a escuta da época, postulando novos acordos. A trama de
consonâncias e dissonâncias vai, aos poucos, indicando um acerto “vertical”
intervalar das notas, com vistas às resoluções de tensões e repousos. Por essa
simultaneidade de sons, chega-se à harmonia moderna do sistema tonal que irá
culminar no francês Jean-Philippe Rameau e no alemão Jean Sebastian Bach.
Com a horizontalidade do canto permitindo uma leitura vertical, o traba-
lho composicional passa a ser feito “compasso por compasso, abrangendo
ao mesmo tempo todas as vozes. A concepção linear, embora persista, entra
num equilíbrio com a concepção vertical” (Fubini, apud WISNIK, 1989, p. 116).
A autonomização do discurso musical, investido dessa nova estética compo-
sicional, torna-se uma tendência explícita da nova música. Essa cresce e se
diversifica extraordinariamente numa infinidade de gêneros e estilos, com o
uso de novos instrumentos (metais e cordas), ensejando um fato novo que irá
provocar polêmicas diversas: a música instrumental, um dos grandes fenôme-
nos culturais do Renascimento.
A imprensa também irá ajudar na divulgação de coletâneas musicais,
estimulando o aprendizado e o conhecimento de autores e de composições
sagradas e profanas da Renascença, sobressaindo dentre elas, o madrigal,
espécie de síntese da polifonia flamenga e da poesia culta ou cortesã com
a musicalidade dos italianos. Músicos e professores provenientes das mais
variadas regiões, sobretudo do norte da França e dos Países Baixos, conheci-
dos como "mestres franco-flamengos", ou simplesmente clérigos, frequentam
um ambiente entregue ao divertimento cortesão, requintado e cosmopolita,
tornando-se profissionais inteiramente dedicados à arte musical, cujo predo-
mínio se estendeu por toda a Europa.
Roma reage à tendência a uma escuta prazerosa da massa sonora
obtida pelo encontro contrapontístico de várias vozes sem maiores preocupa-
35
Palestrina é a grande ções com o texto. O Concílio de Trento tenta coibir os excessos da polifonia
referência da polifonia renascentista, com seus motetos e discantos profanamente carnavalizados,
vocal. Seu tempo pode ser
considerado como a era grave ameaça à espiritualidade, e reafirma o gregoriano como a música ofi-
de ouro do canto coral a cial da liturgia católica. A total proscrição da polifonia do seio da Igreja só foi
capela. Ele compõe tanto evitada graças à intervenção do italiano Palestrina35. “A música palestriniana
peças religiosas como as é clara, calma, transparente, sem cair em excessos de número de partes. Os
missas, quanto profanas
como motetos e madrigais, próprios Papas tiveram de se inclinar perante a força de uma tal arte. Graças
utilizando-se muitas vezes de a ela foi salva a música da Igreja romana” (HERZFELD, op. cit. 54).
paráfrases gregorianas.
135
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

6. O barroco e o rococó
6.1. O contexto sociohistórico do barroco
O abalo sofrido pela Reforma fez a Igreja Católica se reunir, durante anos, em
Trento, Itália, onde a cúpula eclesiástica reafirma sua doutrina como a expres-
são mais pura e legítima da herança cristã. Apesar da motivação religiosa ini-
cial, gerando uma cisão no interior da cristandade, as ressonâncias da Reforma
ultrapassaram o campo da fé. Com a noção de estados nacionais já em curso
desde o medievo tardio, a dissolução do poder de Roma, inclusive em assuntos
terrenos, deu ensejo para a realeza se libertar de seu jugo, com a criação de
Igrejas nacionais, fugindo, assim, do conceito de uma Igreja universal (católica).
Importa notar o episódio de Henrique VIII que, não obtendo a licença papal para
se divorciar de Catarina de Aragão, rompe com Roma para fundar a Igreja Angli-
cana, mostrando, sem nenhum pudor, o desejo de uma Igreja nacional.
Ao retomar os rumos da pureza doutrinal, a Igreja tridentina conta ainda com
o valioso apoio da recém fundada Companhia de Jesus, uma das últimas ordens
criadas no século XVI, em plena era moderna europeia. Estruturada segundo o mo-
delo castrense pelo ex-militar Inácio de Loiola, onde a virtude maior era a prática
da obediência ao papa, a nova ordem ganha grande prestígio na Igreja. Liberados
da vida claustral contemplativa, os jesuítas definem sua missão evangelizadora em
duas pontas de atuação: de um lado, a educação dos filhos da nobreza e burguesia
europeias para sustar o avanço das Igrejas reformadas; de outro, a evangelização
dos gentios nos vários países, alvos da ação colonizadora europeia
Assim, encerradas as atividades conciliares, contando com a atuação
dos jesuítas, Roma recupera em grande parte o prestígio abalado, inclusive
ditando estética e construindo templos. Estavam criadas as condições fa-vo-
ráveis para o barroco. Weisbach, em El Barroco, arte de la Contrareforma afir-
ma que a Igreja Tridentina, além de retomar a religião tradicional, eafirmando
seus dogmas, também estabelece diretrizes estéticas para a sua produção
artística, surgindo daí o barroco (v. SIQUEIRA,1993, p.9). Assim, o estilo é
visto como a estética da Contra-reforma.
Contudo, se, no início, o barroco tinha intenções de glorificar a Igreja
romana, assim como ocorreu em outras épocas com outros estilos, existiu
igualmente um barroco civil com intenções laicas e de glorificação do poder
profano, sobretudo dos monarcas absolutistas. O papa, reis e príncipes des-
cobrem o poder do barroco para “dominar pela emoção”. Eugenio D’Ors, em
O Barroco, enxergando uma metafísica trans-histórica no estilo, capaz de se
materializar em determinados períodos, sem negar a afinidade estético-ideo-
lógica com a Contra-reforma, não nega a possibilidade do uso do novo estilo
pela Igreja reformada, como veremos mais adiante.
136
MIRANDA, D. S. de

Mas o que seria efetivamente o barroco e em que época se inicia? A


origem do termo é incerta. Duas correntes atribuem procedências distintas à
sua etimologia: uma aponta para um tipo de silogismo intrincado da escolásti-
ca medieval contendo uma argumentação tortuosa ou falsa, subvertendo as
regras da lógica; outra defende que a origem seria iberoespanhola, vinda da
palavra barrueco, que, na arte da joalheria, significa pérola de figuração irregu-
lar e imperfeita, um tipo comum de pérola do Oceano Índico, comercializada
pelos portugueses e destinada à sua possessão em Goa.
Distintos nas procedências, os sentidos das respectivas versões con-
vergem na conotação pejorativa de estranheza, distorção e exagero, no limite,
na noção de decadência. Comparado ao período que lhe precede, foi-lhe im-
putada a causa da dissolução das formas clássicas reconquistadas pela Re-
nascença. A historiadora de arte Sônia Siqueira resenha algumas concepções
sobre o barroco de autores do período neoclássico, sempre conotando senti-
dos desqualificantes: “barroco se diz assim ao figurado como irregular, bizarro,
desigual” (Dictionnaire de Trevoux de 1743); “barroco, o que não está segundo
as regras de proporções mas de capricho” (Dictionnaire portatif de peinture,
sculpture et gravure, 1757); “barroco e il superlativo del bizarro, l’excesso del
ridicolo” (SIQUEIRA, op. cit.p. 2).
Quanto ao tempo de sua vigência os períodos são ainda mais incer-
tos. Existe a tendência de certa historiografia que costuma analisar e datar
os estilos da arte como se eles se sucedessem linearmente no tempo: o arco
românico, que é sucedido pela ogiva gótica, que, por sua vez, é superada
pelo construtivismo geométrico da Renascença, começando na
Itália e depois se espraiando pelo resto da Europa. E o estilo que
o sucede é usualmente chamado de barroco (v. GOMBRICH,
1989 p. 301). Temos, aqui, um problema, se considerarmos que
tal periodização justaporia no mesmo período dois estilos, visto
que o maneirismo estaria inserido no barroco.
Outro problema: a fase do último Michelangelo, onde ele
apresentaria traços maneiristas, é também apontada como pre-
cursora do barroco, haja vista a profusão exacerbada de formas
e cores em seu afresco O Juízo Final (1534 - 1541), pintado
atrás do altar-mor da Capela Sistina. O historiador Heinrich Wöl-
fflin (2005) chega a fazer referência ao fato de Michelangelo ser
conhecido como “pai do barroco”.
Desse emaranhado “barroco” de noções e períodos, algo
é decantado, sobretudo após historiadores da arte como Jacob
Burckhardt, que, mesmo sendo crítico do estilo, não o vê como
Figura 48 – Juízo Final de Michelangelo algo menor; Burckhardt, pelo contrário, o valorizou na medida
137
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

que o elegeu como foco de seu estudo, tendo sido seguido pelo seu discípulo
Heinrich Wölfflin, que, em sua famosa obra Renascença e Barroco, adota um
enfoque valorativo, cuja análise é tomada por uma exaustiva abordagem, bus-
cando suas ricas transformações estilísticas, sempre cotejadas com o classi-
cismo renascentista.
Segue um quadro sintético onde Wölfflin (2005) apresenta um in­
teressante e sugestivo cotejo entre os dois estilos, levando em conta a con-
quista científica do estudo da perspectiva dos renascentistas:
1) O classicismo é linear por privilegiar a linha que delimita, com nitidez, os
objetos, suas formas e volumes; o barroco é pictórico, pois nele os limites
lineares não são precisos e os objetos não estão mais delimitados entre si,
mas se imbricam.
2) O classicismo usa planos cuja construção se faz em sucessivos planos
precisos, contando com a ajuda de um desenho rigoroso; o barroco usa a
profundidade, sem fatiar os planos por etapa, pois nosso olhar circula sem
repouso e sem percepção de seus limites.
3) O classicismo tem formas fechadas cujas construções possuem eixos
estáveis, claros, verticais e horizontais; o barroco expressa formas aber-
tas, obedecendo o princípio da diagonalidade e, a um só tempo, ultrapas-
sando seus limites físicos.
4) O classicismo valoriza a multiplicidade, com a unidade do todo sendo
dada pela articulação harmoniosa das partes; o barroco valoriza a unida-
de com a abolição da autonomia das partes.
5) O classicismo expressa uma clareza absoluta pela claridade homogênea
presente em suas composições, cujas partes, via de regra, são iluminadas pela
mesma intensidade; o barroco expressa uma luminosidade relativa cujo
traço mais característico é o jogo de luz do chiaroescuro, emprestando às suas
formas uma intensa dramaticidade.
Enfim, surgem abordagens crítico-analíticas que ultrapassam as apre-
ciações desqualificadoras, buscando, inclusive, explicações nas alterações
provocadas pelo desenvolvimento da ciência moderna, o que faz o homem
europeu adotar uma nova Weltanshauung (visão de mundo).
No Renascimento o artista voltara-se para a análise e interpretação da Natu-
reza, para a valorização do Homem, seu corpo e sentidos. Mas a partir do mo-
mento em que os homens da ciência [Galileu], se propuseram a decodificar e
compreender a linguagem da natureza, estava superada para as linguagens
artísticas, a doutrina que dominara os séculos XV e XVI. Era natural que sur-
gisse na arte uma nova forma de representação. (SILVA, 2005, p. 14)
Expurgados os aspectos desqualificantes, desvela-se uma estética
que se expressa nos excessos, no jogo de pares antinômicos, na desmesura
dionisíaca ou na harmonia apolínea, fazendo coexistirem os dualismos, sem
138
MIRANDA, D. S. de

hierarquias ou exclusão do outro de si: vício/virtude; sagrado/profano; razão/


sensibilidade, masculino/feminino, lunar/solar, etc...

a) A pintura
Entre os pintores italianos, destacam-se Tintoretto (1518 - 1594) e Caravaggio
(1573 - 1610). Tintoretto produziu muito, logrando expressar uma temática
variada como motivos religiosos, mitológicos, além de retratos. Por sua ener-
gia na arte de pintar, era conhecido como I1 Furioso e sua utilização dramática
dos efeitos da luz fez dele um dos maiores representantes do barroco italiano.
O que justamente impressiona em seu vigoroso estilo é o uso intensivo da luz/
cor como realiza na pintura Cristo em casa de Marta e Maria, onde os corpos
das figuras são mais expressivos do que seus rostos, graças àquele jogo de
cor/luz. Para ele, o primeiro contato visual com um quadro deveria ser para a
contemplação do seu conjunto, para, depois, se deter nos detalhes.
Caravaggio não se sentia atraído pela
beleza clássica da Renascença. Ele, ao
contrário, se inspirava nas pessoas comuns
das ruas de Roma, como músicos das fei-
ras, vendedores ou ciganos, para retratar
o aspecto mundano de eventos bíblicos.
Um outro traço marcante de sua pintura foi
a dimensão e o impacto que deu aos seus
quadros, ao usar um fundo sempre raso e
obscuro. O artista não usava a luz de forma
tradicional, isto é, a luminosidade refletida
pelo sol, mas a compunha a partir de seu
próprio arbítrio para realçar alguma cena
e, assim, atrair o olhar contemplante. Com
esse efeito plástico, fazia os corpos ganha-
rem volume.
Entre os espanhóis, nos chamam a
atenção El Greco (1541 - 1614) e Velas-
quez (1599 - 1660). O nome El Greco sin-
Figura 49 – Cristo em casa de Marta e Ma-
ria (1578)
tetiza três origens étnico-culturais. O El é
espanhol, o Greco é italiano, que significa
o Grego, indicando sua origem greco-cretense. Talvez tal síntese explique a
dificuldade de reduzir a maniera desse artista a um só estilo. Ele é tido como
um artista tão singular que não é considerado como pertencente a nenhuma
das escolas convencionais. Mesmo vivendo em plena época do chamado
barroco espanhol, seus conhecidos traços verticalizados de figuras tortuosa-
mente alongadas, prenunciando segundo alguns o expressionismo, parecem
139
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

nos remeter, de preferência, a uma estética que busca recuperar a espirituali-


dade dos ícones bizantinos.
Velasquez pintava figuras da aristocracia espanhola, fruto das enco-
mendas do mecenato que o protegia, como o Conde-duque de Olivares, mas
deixava, igualmente, sua inventiva fruir entre tipos populares da Espanha,
como A Velha Lavadeira e O Aguadeiro de Sevilha. Como Caravaggio, sabia
usar, com maestria, o jogo de sombra e luz, mas, de modo distinto, procurava
estabelecer um clima mais intimista nas cenas pintadas.
Do barroco flamengo, destacam-se dois nomes: Rubens (1577 - 1640)
e Rembrant (1606 - 1669). Uma das características da pintura dos Países Bai-
xos é o uso intenso de cores quentes como um dos recursos mais importante
e os quadros de Rubens são a prova cabal dessa escola. O artista sabe, como
ninguém, contrastar as cores quentes – o vermelho, o verde e o amarelo – so-
bretudo das vestes das personagens, contrapondo-as com a luminosidade da
tez pálida de suas peles. Além disso, Rubens se notabilizou pela habilidade de
representar corpos contorcidos cujas vestes tinham drapeados e dobras que
davam a ideia de intenso movimento.
Ao contrário de outros barroquistas que enfatizam o contraste de luz e
sombra, pelo jogo chiaroescuro, Rembrant se destaca pelo uso nuançado dos
extremos da luminosidade. Seu quadro mais famoso é a Lição de anatomia do
doutor Tulp. Nele, o artista foca toda a luz na figura central do cadáver objeto
de dissecação. O fundo encontra-se na penumbra e as figuras no entorno
da figura central recebem níveis diferenciados de luminosidade cuja intenção
maior é mostra concentração e interesse pela aula de anatomia.

b) A escultura e a arquitetura
O escultórico barroco não prima pelas nuances, mas, ao contrário do equi-
líbrio entre o sensível e o intelectivo na Renascença, prima pela exaltação
dos sentidos. As formas são estetizadas em expressivos movimentos. O linear
renascentista cede lugar às formas côncavas e convexas, às linhas curvas
de suas figuras, aos drapejamentos de suas vestes. Predomina o gosto pelo
dourado. Rostos, corpos e gestos desvelam fortes emoções, sendo, no limite,
violentas e atingindo, portanto, uma dramaticidade até então desconhecida. 36
Baldaquino: elemento
O escultor (também arquiteto, urbanista e pintor) mais representativo do escultórico-arquitetônico
no formato de um dossel
barroco italiano é Bernini (1598 - 1680) e sua obra mais expressiva é o balda que serve de cobertura
quino36 (1624 - 1633) encomendado pelo papa Urbano VIII para a Basílica de para resguardar um andor,
S. Pedro no Vaticano. Nessa obra, toda em bronze dourado, o artista esculpiu leito, trono ou então para
as quatro colunas do baldaquino de 29 metros de altura, majestosamente re- resguardar um altar, como
o imenso baldaquino da
torcidas e decoradas com motivos florais. Basílica de S. Pedro.
140
MIRANDA, D. S. de

No entanto, a arte que melhor procurou traduzir a glória da fé e o esplen-


dor da Igreja Romana triunfante – em suma, a estética da ostentatio barroca
(ostentação barroca) –, foi a arquitetura, cujo clímax irrompe na Praça de São
Pedro (1657 - 1666) com sua majestosa dupla colunata coberta, projeto do
arquiteto Bernini, sobre a qual se assenta uma cornija que serve de base para
162 estátuas, medindo cada 2,70 m de altura.
Merece ainda destaque, pelo seu teor simbólico, a Igreja de Jesus ou Il
Gesù, considerada “modelo para toda arquitetura eclesiástica barroca” (WÖL-
FFLIN, 1989, p. 32) e destinada à Companhia de Jesus, esteio doutrinário
e evangelizador da igreja tridentina para combater a Reforma. A decisão de
sua construção se deu em 1550, para substituir a pequena igreja contígua ao
edifício da ordem. Em 1568, o arquiteto Jacopo Vignola recebeu o encargo de
iniciar o trabalho. Sua ideia inovadora consistiu em articular a nave da basílica
medieval com o desenho de um edifício típico da alta Renascença, criando
um domo sobre o cruzamento e dando à edificação uma configuração cruci-
forme, o que a tornou modelo de futuras igrejas barrocas. Na fachada de 1575
de Giacomo della Porta convivem dois estilos: a Renascença e o barroco.
Conforme se viu, a Igreja reformada igualmente utilizou-se do estilo, o
que pode ser observado nas obras de reconstrução de Londres, devastada
pelo incêndio de 1666 , a cargo do arquiteto Christopher Wren (1732 - 1823).
Um exemplo é a Catedral de São Paulo. Como as autoridades anglicanas
não aceitaram uma cúpula barroca em estilo italiano, semelhante à Basílica
de São Pedro, Wren propôs um campanário que foi aceito. Posteriormente, o
arquiteto conseguiu erguer a cúpula que desejava sobre o ponto de interseção
da catedral no formato de cruz grega. É uma cúpula cujo tamanho só é ultra-
passado pela inspiradora Basílica de São Pedro.
Sabemos, porém, que nem só da glória sagrada viveu o barroco, pois
os monarcas absolutistas, como Luís XIV, o rei sol, cujo poder julgava ser
de origem divina, usaram também palácios suntuosos barrocos para ostentar
luxo e riqueza. Na França, mais do que em outro país, devido à dinastia dos
Bourbons, a arte barroca esteve totalmente a serviço da realeza. Diversas edi-
ficações testemunham tal estética, em sua imensa maioria de autoria de Jules
Hardouin-Mansart (1646 - 1708), artista tido como o grande mestre do barroco
francês, cujo trabalho se destinou a expressar a grandeza de Luís XIV, a quem
serviu como arquiteto-chefe. Ele é autor de uma série de edificações: aumen-
tou o castelo real de Saint-Germain-en-Laye, projetou a Orangerie, o grande
Trianon, a Ponte Royal, a capela real dedicada a São Luís, chamada Igreja do
Domo, anexa aos Inválidos, a praça Vendôme dentre tantas.
Mas o apogeu de sua arte é o Palácio de Versalhes, sede da monarquia
absoluta a partir de 1682. Se a Praça São Pedro representa o paroxismo da
141
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

ostentatio barroca da Igreja Romana, Versalhes é o correlato profano para o


poder absoluto francês. Após a morte de Louis Le Vau (1612 - 1670), arquiteto
que, em 1669, havia iniciado a renovação do antigo palacete que servia de
pavilhão de caça para Luís XIII, o sucessor Luís XIV encomenda a Mansart
um grandioso projeto digno de seu “poder de origem divina”. Assim, o arquite-
to, a partir de 1678, transforma o palácio na edificação esplendorosa que o fez
famoso, desenhando todas as extensões e reconstruções indicadas pelo rei,
como a construção das alas sul e norte, a capela real e o célebre salão dos
espelhos, decorado por Charles Le Brun, seu colaborador.
O projeto arquitetônico-urbanístico é um perfeito exemplo de concep-
ção integrada (cada artista cria em função do todo) entre cidade, palácio e
jardins, com a participação de profissionais talentosos (Mansart, Le Vau e o
paisagista André Le Nôtre, responsável pelo jardim de Versalhes). Eles criam
um protótipo da arte aristocrática barroca de rigorosa simetria e suntuosidade
extraordinária. O palácio parece querer dominar a natureza com a simetria
dos seus jardins circundantes.
A partir de um exacerbado rigor formal e de abundância de elementos
d’água, os jardins apresentam um desenho geométrico ordenado que busca
uma simetria perfeita, ao configurar grandes eixos e avenidas que se entre-
cruzam em ângulos retos e formar amplas aleias radiais emolduradas por cen-
tenas de fontes e extensões que aparentam se perder no infinito. Expressão
sígnica do centralismo absoluto, Versalhes, com sua estética grandiosa e te-
atral própria do barroco, tornou-se o cenário ideal para a ostentação da vida
cortesã, modelo imitado à exaustão pelas cortes européias.
Versalhes nos lança à reflexão sobre uma arte pouco abordada na sua
história: a paisagem inventada, isto é, a arte da jardinagem. Como toda lingua-
gem artística, a jardinagem encerra igualmente uma dimensão de estrutura-
ção de sentidos e de visão do mundo, a partir de suas configurações estéticas.
Se levarmos em conta o imaginário mítico do Gênesis narrando o ideal de um
jardim edênico ou a narrativa lendária dos jardins suspensos da Babilônia, a
natureza sempre constituiu um tema e, igualmente, um objeto de intervenção
artística. A natureza se faz presente na linguagem artística enquanto pintura
de paisagens e de jardins ou, então, pela intervenção humana direta que pro-
cura transformar o belo natural no belo humano, na estrita concepção da arte,
segundo Hegel. Nesse domínio de expressão artística, o jardim não seria uma
simples representação da natureza, mas a própria natureza sofrendo direta-
mente uma intervenção estética humana.
Para Fagiolo, as formas estéticas de representação da natureza na his-
tória “sempre [tiveram], conforme os séculos, um valor de fundo (na Idade
Média) e uma afirmação absoluta (no século XVIII, por exemplo)” (1992, p.
142
MIRANDA, D. S. de

115). Testemunhos iconográficos medievais mostram, por exemplo, que plan-


tas frutíferas e ervas medicinais estiveram presentes na estrutura monástica.
Fagiolo pontua a importância que a natureza passou a ter para a arte a partir
do medievo, quando ela aparece esquematizada como signo do “paraíso ce-
lestial” (p. 115). Ao mesmo tempo, ela atrai a atenção dos artistas da Renas-
cença quando o seu enfoque sofre importante inflexão: passa a ser percebida
por meio do espaço pictórico, sendo um elemento, a um só tempo, organiza-
dor e organizado pela perspectiva. A paisagem parece natural pelo artifício
permanente desses expedientes de organização.
Na Renascença e períodos subsequentes, o jardim italiano passa a
exercer grandes influxos no paisagismo europeu, caracterizado no início por
formas racionais, com árvores de pequeno porte. Num segundo momento,
quando passaram a predominar as massas vegetais de maior porte e volumes
mais expressivos, o arquiteto Battista Alberti, em De Re Aaedificatoria, estabe-
lece bases teóricas para os jardins italianos. Porém, a jardinagem vinculada
principalmente aos espaços aristocráticos dos palácios, só se destacou a par-
tir do século XVII com os jardins barrocos de André Le Nôtre.
Os jardins franceses planejados por arquitetos urbanistas, conforme
o caso paradigmático de Versalhes, passaram a ser identificados pela sua
forma de expressar o domínio humano sobre a natureza, prevalecendo a
racionalização do espaço paisagístico pela geometria e uniformidade simétrica,
com a perspectiva acentuando a ideia de monumentalidade, referência para o
paisagismo de várias partes do mundo.
No século XVIII, com as concepções de pensadores e artistas em prol
da natureza, o destaque foi o jardim inglês - geralmente criado por pintores -,
que, ao se contrapor aos rígidos e simétricos padrões franceses, valorizou a
paisagem nativa fruto de uma vegetação sem podas geométricas, ao realçar
os elementos sinuosos, conservando acidentes naturais de caminhos e rele-
vos, combinados com extensões relvadas e compostos ainda por floridos can-
teiros de pequeno porte. Essa nova linguagem trouxe outro modo de pensar e
intervir na natureza para o paisagismo posterior.

c) A música, a ópera e o teatro barroco


A música renascentista da virada do séc. XVII, desenvolvida basicamente sob
a égide do contraponto coral polifônico, provoca uma mudança decisiva: a
inserção do solo vocal e da melodia acompanhada conhecida como homofo-
nia. Para isso, dois importantes eventos foram decisivos para definir os novos
rumos musicais: a invenção da harmonia e do melodrama, mais conhecido
como ópera, descendente direto da cantata barroca. A harmonia e o melodra-
ma nascem ao mesmo tempo, uma em função do outro, pois o melodrama
postula um acompanhamento musical que favorece a sucessão temporal dos
diálogos e da ação dramática da ópera, o que era impossível com a algaravia
143
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

dos contrapontos de influência gótica com a sobreposição paralela de deze-


nas de vozes simultâneas.
A complexidade intrincada do contraponto apresentava grandes dificul-
dades para a compreensão do texto da ópera (no início era recitativo e, de-
pois, transformou-se em ária). E o que se pretendia era justamente dar realce
ao canto individualizado, de maior evidência dramática ou representativa. Tal
revolução musical demandou um canto expressivo e lírico. A melodia torna-se
autônoma do coro polifônico. Vimos que a percepção vertical do encontro de
sons das vozes da polifonia foi, aos poucos, ensejando a descoberta da har-
monia quando entrou, em cena, um acompanhamento instrumental perma-
nente, em registros graves: o chamado baixo-contínuo. As primeiras incursões
na construção da homofonia foram realizadas com obras ainda polifônicas, a
exemplo dos madrigais renascentistas, transpondo-se as vozes acompanhan-
tes para instrumentos harmônicos.
Descendem diretamente do madrigal, o oratório, a cantata e a ópera
barroca, cujo uso refinado do texto aguça as possibilidades dramáticas da
música. Na Florença setecencista, um grande passo para a configuração das
cantatas foi a exploração da monodia da voz solista que se autonomiza em
relação aos madrigais, passando a ser acompanhada pelo baixo-contínuo,
instrumento musical de registro mais grave, conforme vimos no parágrafo an-
terior. A monodia acompanhada entrelaça-se com o madrigal, que aparece
pela primeira vez em Monteverdi (1606), importante compositor para o aflorar
das cantatas, cujo termo é registrado pela primeira vez em 1589.
Já na primeira metade do século XVII, a cantata estava plenamente
consolidada. O gênero prenuncia a ópera, por se constituir numa versão mais 37
Castrato, plural castrati:
simples ao realizar um autêntico drama musical condensado: pequenas cenas inusitada voz masculina
dramáticas articuladas em ambientes modestos, onde se pode apreciar o de- obtida pela extração dos
testículos do menino antes
senrolar de um espetáculo pleno de teatralidade.
da puberdade para manter
Alguns dos músicos barrocos são Cláudio Monteverdi, Alessandro sua voz em aparente registro
Scarlatti e Antonio Vivaldi (italianos), Heinrich Schutz, Johann S. Bach e Ge- feminino (soprano, contralto
ou, então, contra-tenor), em
org F. Handel (alemães), Marc A. Charpentier (francês) e Jean-Baptiste Lully
voga na Renascença para
(francoitaliano) que, ao cair nas boas graças de Luís XIV, introduz na ópera substituir a voz feminina nos
francesa, formas dançantes como o ballet e o minueto. Handel se notabiliza corais sacros, rapidamente
como autor de óperas destinadas à performance dos castrati 37. absorvida pela ópera
desde Monteverdi, a fim de
No absolutismo, as óperas eram encenadas nos palácios e sua mon- explorar uma característica
tagem obedecia, rigorosamente, a uma perspectiva nobre, ou seja, os cená- da estética barroca, a
rios eram montados a partir de um eixo que unia, em linha reta, o camarote ambivalência de sentidos
antagônicos –masculino/
central do príncipe com o fundo do palco. Depois foram construídos outros
feminino – convivendo num
teatros, democratizando-se sua disposição cênica para uma visão multifocal mesmo intérprete.
(v. MAMMÌ, 1999, p. 2).
144
MIRANDA, D. S. de

Se o melodrama gozou de prestígio junto ao público, recebe a censura


de certa esfera da cultura oficial. O alvo de fato não é o melodrama, mas a
música. Para os racionalistas, a música nada acrescenta à tragédia moderna;
pelo contrário, transforma-a “num espetáculo confuso e inverossímil, em cuja
cena, movem-se personagens de modo ridículo e artificial, e morrem cantan-
do” (citado por FUBINI, 1971, p. 14-15).
No debate setecentista sobre a ópera, assiste-se à grande querelle des
boufons ou a grande disputa de duas escolas: a francesa mais elaborada e
racional e a italiana mais melódica e expressiva. Na França, as facções em
luta se dividiam entre os progressistas amantes da ópera italiana, que, no te-
atro construído após a reforma cênica, sentavam-se à esquerda do camarote
da rainha (coin de la reine), e os conservadores partidários da ópera francesa,
que se sentavam à direita do rei (coin du roi).
Subjaz à grande querelle, a velha questão referente à disputa entre ra-
zão versus sensibilidade, retomada, agora, sob nova forma: o texto (libreto),
voltado para o intelecto e a razão, versus a música, destituída de força se-
mântica, voltada de preferência, aos sentidos. Os enciclopedistas tomarão
partido na disputa, iniciando-se uma inflexão importante, sendo Rousseau,
dissidente do racionalismo vigente, um importante marco de referência desse
processo, por ter sido, certamente, o maior teórico dos bufonistas, como eram
conhecidos os defensores da música italiana. Ele ama a ópera da Itália, por
sua naturalidade expressa numa grande simplicidade melódica; aborrece-lhe
a música francesa, por avaliá-la artificial; despreza a polifonia contrapontística
da música instrumental, por achá-la irracional e antinatural.
Esse tipo de juízo já havia sido feito, na Alemanha, pelos pares de Bach
a respeito de sua obra, antecipando o juízo do enciclopedista francês no que
se refere ao contraponto, porém com uma grande diferença. O racionalismo
alemão condenara o contraponto “pomposo”, pesado e artificial do barroco
tardio de Bach em nome da reta razão. Rousseau condena o artificialismo do
contraponto em nome da espontaneidade dos sentimentos.
A grande querelle até então restrita à França chega à Itália com mais
vigor graças aos teóricos da reforma do melodrama: primeiro, entre o valor da
poesia e da melodia; após, entre música vocal e instrumental. Preocupados
com o processo de autonomização da melodia em relação ao texto, visível na
ópera italiana, seus adversários atacam violentamente a música instrumental
e aqueles que colocam música e poesia em pé de igualdade, o que, no fundo,
favorecia a autonomia musical. Assim, buscavam preservar as prerrogativas
da poesia contra o que ajuízam ser uma prepotência invasiva da música.
Nesse debate, quatro teóricos da crítica musical ganham destaque: os
italianos Francesco Algarotti e Vincenzo Manfredini e os jesuítas espanhóis
145
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Esteban de Arteaga e Antonio Eximeno. Arteaga avalia a excelência da ópera


pelo libreto. Reforça a idéia de superfluidade da melodia, espécie de ornamento
gratuito do texto. Combate o impulso autonomizante da música instrumental,
por corromper seu objetivo original de suporte da poesia. O ensaísta italiano
de ópera Francesco Algarotti, porta voz da reforma inspirada no racionalismo,
retorna ao velho princípio da supremacia da poesia, definindo o papel auxiliar
da melodia ao texto, só ganhando expressão, se acompanhada pela palavra.
Eximeno e Manfredini são vozes dissidentes. Apesar da formação mate-
mática, ou justo por sua causa, o rousseauriano Eximeno defende a autonomia
da música, fundada no prazer auditivo. Em Da origem e das regras musicais
(1774), rejeita a associação feita, desde os gregos, entre música e matemática,
considerando aquela como uma verdadeira linguagem “autônoma”. Ao distin-
guir os dois mundos constitutivos da música (os sons e as regras das relações
físico-matemáticas), Exímeno nega autoridade a tais regras para ditar o belo
musical. Para se compor bem basta se entregar à natureza e se deixar levar
pelas sensações que se pretende criar através da música. De que servem nú-
meros e fórmulas que proíbem um salto intervalar, quando isto pode ser um som
agradável? Para ele, as regras musicais se fundam no prazer auditivo.
Partindo da idéia ilustrada de progresso, enquanto lei inexorável da his-
tória e um dos critérios mais recorrentes de julgamento das artes, além da
elegância, racionalidade e prazer sensorial, Manfredini, não transige na de-
fesa da música, sobretudo a instrumental. E a música não podia contrariá-la.
Assim, ela não cessaria de alcançar novos cumes em suas possibilidades
expressivas. Graças a essa lei da história, polemiza com Arteaga, ao proferir
que a emancipação da música e da poesia seria um efeito ineliminável do pro-
gresso de ambas, legando-nos, assim, obras extraordinárias (para aprofundar
a grande querelle v. FUBINI, 1977 e MIRANDA, 2005 e 2007).
A Alemanha passa ao largo da grande querelle. Lá, a discussão situava-
-se, como vimos acima, no valor do contraponto barroco. Nessa disputa, a obra
de Bach é o ponto de referência. O objeto de discussão é, sobretudo, o estilo
da música instrumental, isto é, da superioridade do contraponto barroco sobre a
melodia e vice-versa. Ao contrário do ocorreu em outras plagas, é notório que, na
Alemanha, a música instrumental encontrara um terreno fértil ao ser aceita pelos
teóricos como um fato indiscutível. Assim, a polêmica ficou quase que circunscrita
ao âmbito da música sem cotejos com a poesia, sendo os próprios músicos os
protagonistas desse embate. Por outro lado, o nascimento da crítica musical, fato
de incontestável importância para a vida musical europeia do século XVIII, será
responsável por uma célebre polêmica entre Bach e J. A. Scheibe.
A visão do segundo, expressa na revista O Músico Crítico (1737), as-
sestando uma apreciação negativa às composições do mestre alemão, tor-
nou-se exemplar, pois fixou os termos da disputa e aclarou bastante os moti-
146
MIRANDA, D. S. de

vos que fizeram incompreensível a arte de Bach para o precoce racionalismo


esclarecido alemão. Para esse, o contraponto de Bach tornou-se o mais claro
exemplo daquele excesso do barroco tardio, gerador de artifícios contrários à
razão e à natureza. Seu pensamento prefigura as ideias do enciclopedismo
francês ao antecipar temas como a música entendida como gracejo galante e
38
Transubstanciação: mundano, e a arte vista como sinônimo de artifício.
mistério de fé da doutrina
católica que afirma a d) O Barroco no Brasil
transformação, pelo ritual
Como vimos, o Concílio de Trento reafirma os dogmas essenciais da doutrina,
da eucaristia, da substância
da água e do vinho em como o mistério da transubstanciação38, e define o calendário romano, ao dis-
verdadeiro corpo e sangue de ciplinarizar as festas sacras e laicas (“particulares”), explicitando o investimento
Cristo. evangelizador em comemorações festivas das datas principais da vida de Cristo,
de Maria e dos santos e o papel destes como mediadores na hierofania39 cristã.
Existia uma inumerável lista de festas sacras e profanas, além das já definidas
pelo calendário romano. Destacam-se o Te Deum, a procissão de Corpus Christi
e as Entradas, costume profano festivo do medievo em ocasiões especiais de
visitas solenes de reis, autoridades eclesiásticas ou de altos dignitários. Tratava-se
de cerimônias públicas, de crescente relevância a partir do século XVI nos rituais
festivos das cortes europeias, com novidades a cada festa. “Com a centralização
precoce de jovens Estados absolutistas, como Portugal, [as entradas] serviram à
cristalização de ideias absolutistas, por meio da aclamação dos oficiantes mais
próximos do poder” (DEL PRIORE, 1994, p. 14).
Assim, no período pós-tridentino, cresce o prestígio das procissões, o
“templo em marcha”, como a de Corpus Christi, cuja espetacularização re-
Hierofania: manifestação
39
presenta o “teatro da religião” da estética barroca da Contra-reforma (v. MI-
do sagrado mediante o uso
do mundo profano e, no RANDA, 2001), resposta suntuosa e triunfante de uma fé que reafirma três
catolicismo, a manifestação princípios negados pela Reforma: o primado das obras como via da redenção
do sagrado mediante mediante ricos donativos, o mistério da transubstanciação e o uso de imagens
pessoas santificadas. A da hagiografia como sistema simbólico de eficácia evangelizadora.
hierofania se diferencia
da epifania ou teofania, Vão longe os tempos protocristãos quando Agostinho zelava pela pre-
onde o sagrado se revela servação do louvor sereno a Deus, evitando os desvios dos “prazeres do ou-
diretamente, a exemplo vido” do gregoriano. Agora, temos o tempo do cristianismo barroco, com toda
de Deus, ao se manifestar a sua exuberância sonoro-visual. É dentro desse quadro e espírito que deve-
a Moisés, e Cristo, ao se
mos analisar o barroco brasileiro. Na esfera oficial, a estética barroca colonial
manifestar para os Reis
Magos (festa da epifania).
é fruto da aliança canhestra entre o projeto colonizador, representado pela
aliança do Estado absolutista luso (portanto sintonizado com a política dos
tempos modernos) e a Igreja tridentina (portanto sintonizada com a doutrina
contra-reformista do período pré-moderno).
O barroquismo luso se dá como forma de compensação da perda do
trono para a coroa espanhola, (1580 - 1640), “maior pesadelo da história portu-
guesa” (SEVCENKO, 1998, p. 59), e como recompensa pela sua restauração
obtida por uma guerra vitoriosa seguida pela coroação de D. João IV. A perda
147
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

da independência foi vista como um castigo e a coroação como benção divi-


na. A partir daí, a descoberta, ainda no final do mesmo século XVII, de fontes
aparentemente inesgotáveis de riqueza, em forma de ouro, prata e pedraria
preciosa, representava o signo maior de um povo bafejado pela generosidade
divina. A “opulência das riquezas” seria claro índice dessa generosidade para
com os lusos, como povo eleito de Deus. “Mas chegara a salvação, [...]. Era
preciso agradecer confirmando a Fé e saudando o Rei. Portugal foi tomado de
uma euforia epidêmica. Festas, procissões e celebrações irrompiam por toda
parte. Esse foi o momento inaugural do Barroco” (SEVCENKO, op. cit. p. 59).
Os negócios terrenos encontravam-se subordinados a uma instância
sobrenatural, pensamento típico da mentalidade setecentista levada ao paro-
xismo nessa época metalista, com o perturbador achado das minas no Brasil.
Para os moradores da colônia, a festa barroca, usando de sua força alegórica
e persuasiva, devia estabelecer formas lúdicas de sociabilidade, articulando
seus participantes com o Estado Moderno ou com a Igreja, mediante os ele-
mentos sígnicos do poder temporal e espiritual.
Templos suntuosos ricamente ornados em ouro, magnificência festiva e
litúrgica –, tudo isso seria, para os colonizadores da sociedade mineira, a exte-
riorização do esplendor do ritual católico, tão comum à época; seria a contrapar-
tida dos fiéis mediante uma “ostensiva manifestação do íntimo e grato sentimen-
to de uma população privilegiada” (ÁVILA, 1994. p. 51). Duvignaud sugere que
a miragem barroca no Brasil seria devedora de uma equação estética curiosa
entre “a vida das formas e a descoberta do ouro do continente americano” (DU-
VIGNAUD, op.cit. p. 23). A sensação de riquezas inesgotáveis numa terra edê-
nica, extorquidas mediante o sofrimento secular da escravaria, teria ensejado a
aplicação do espírito tridentino da doutrina das obras efetivada pelas doações
em ouro, prata e pedras valiosas para a glória do invisível, consolidando, assim,
a imagem de uma Igreja plasticamente vistosa e fulgurante.
Assim, plasma-se a estética da “exuberância das formas” da estatuá-
ria e da iconografia sagrada como meio legítimo para a propagação da fé,
contrapondo-se às condenações da Igreja reformada. Daí, as igrejas de Ouro
Preto, S. José Del Rei, Mariana, etc. O fastígio do barroco mineiro ganha
extrema visibilidade em três grandes eventos da “efusão barroca”: o Triunfo
Eucarístico (1733), o Áureo Trono Episcopal (1748), e os fatos ocorridos por
ocasião da administração de d. Luís da Cunha Meneses, governador da capi-
tania das Gerais(1783-88), retratados no poema satírico Cartas Chilenas de
Tomás Antônio Gonzaga.
Contudo, não só nas Gerais vivia o imaginário da pompa sacra da os-
tentatio barroca. É bem conhecido o fausto dourado das igrejas barrocas de
Salvador. A mesma ostentatio barroca nos é relatada por Montes (1998, p.
377) numa festa ocorrida trinta anos após o Triunfo Eucarístico, no recôncavo
148
MIRANDA, D. S. de

baiano: as Faustíssimas Festas de Santo Amaro da Purificação, pelos Augus-


tíssimos Desponsórios da Sereníssima Senhora D. Maria Princeza do Brasil
Com o Sereníssimo Senhor D. Pedro Infante de Portugal [sic]. A mineira é
uma festa devota, a baiana, uma festa cívica, mas ambas partilham do terreno
comum da cultura barroca que integra as duas, a despeito de aparentemente
40
Burguês fidalgo: termo
consagrado pelo autor
separadas no tempo e no espaço.
Moliére (Jean-Baptiste
Poquelin, 1622-1673),
6.2. O rococó
graças à personagem-título O termo se origina de rocaille, concha em francês. Tido por uns como uma deri-
de sua comédia satírica Le
vação natural do barroco e por outros como expressão de sua forma decadente,
bourgeois gentillhomme (do
barroco francês) estreada em o rococó é um estilo inicialmente francês, espécie de variação "profana" do
Paris em 1670, contendo dois barroco, quando esse se libera da temática sagrada e se volta para arquitetura
eixos temáticos: os desejos palatina. Alguns o identificam como o estilo preferido de Luís XV, que simplifica
da burguesia em ingressar
externamente as linhas barrocas para se dedicar à suntuosidade dos interiores
no mundo cortesão e a total
falta de conhecimento e dos compartimentos palacianos. Tal imputação tinha sua razão de ser, visto que,
cultura desses postulantes à após a morte de Luís XIV em 1715, findando um longo reinado, grande parte
aristocracia. O protagonista, imerso na suntuosidade de Versalhes, a corte retorna à Paris, exposta agora a
um rico padeiro, para
constante contato com a nova burguesia rica e bem sucedida, como comer-
conseguir seu intento,
contrata vários professores ciantes e financistas à frente do mundo dos negócios. Não pertencendo à aris-
(de música, dança, artes tocracia de berço, o burguês fidalgo40, procurando prestígio e status junto ao
marciais e filosofia), que se mundo cortesão, não media esforços para nele ingressar, financiando e prote-
engalfinham entre si para tirar
gendo as artes. No fundo, os artistas procuram satisfazer o gosto dessa nova
melhor partido da situação.
classe. Assim, assevera Hauser: “o rococó não é uma arte régia, como era o
barroco, mas a arte de uma aristocracia e de uma alta burguesia” (1995, p. 526).
O rococó faz a mediação estética de duas épocas: o
barroco tardio do do iluminismo precoce (1ª metade do século
XVIII) e o neoclassicismo do ilumismo maduro (fins do século
XVIII). Seu estilo era usado em diversas formas decorativas de
interiores aristocráticos das edificaçôes parisienses, cujos ele-
mentos assim se caracterizam: linguagem alegorizada, linhas
curvas, delicadas e fluídas, texturas suaves, tons dourados e
pastéis como o rosa e o verde-claro, ludicidade mundana em
retratos e festas galantes, elegância cortesã, no limite, fútil.
Eis dois exemplos de artistas da pintura rococó france-
sa: Antoine Watteau (1684 - 1721) – mesmo tendo nascido em
Flandres, é tido como mestre do estilo francês, cuja marca é
a temática de cenas amorosas substituindo as religiosas e
Figura 50 – O balanço de Fragonard históricas. Jean-Honoré Fragonard (1732 - 1806) – seu qua-
dro O balanço (1768) é paradigmático pelo sentido adensado
em sua plasticidade que expressa cenas graciosas revelando valores de uma
sociedade mais voltada para o prazer do que para os problemas da vida real.
149
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

a) A arquitetura e a escultura rococó

Os edifícios rococós traem a mesma marca da pintura mais voltada para o


decorativo dos interiores, com as paredes repletas de quadros com aquele
tônus das pinturas já descritas, com cores claras e suaves. Já as fachadas
dos prédios podem conter, sincreticamente, comedidas formas barrocas ou,
então, o estilo clássico renascentista. Francês nas origens, o rococó irá tam-
bém se difundir para outros países europeus, realizando uma trajetória inversa
à do barroco, pois, se este teve, nas origens, motivações religiosas, nascendo
em ambientes sacros e depois se laicizou para revestir a estética aristocrática,
o rococó, de nítida origem cortesâ, acabará por revestir templos religiosos, a
exemplo da Igreja dos Catorze Santos na Baviera.
Por ser um estilo mais voltado para o
decorativo dos interiores, a escultura rococó
ganha relevância, cujo traço abandona as
linhas do barroco e adquire dimensões me-
nores. Eventualmente usa o mármore, prefe-
rindo o gesso, a madeira e o estuque (espécie
de argamassa obtida pela mistura de pó de
mármore, cal fina, gesso e areia) que aceita
cores suaves para os motivos decorativos. Na
França, o melhor escultor do rococó é Jean-
-Baptiste Pigalle (1714 – 1785), e a obra mais
representativa que exemplifica a sua simplici-
dade é A pequena menina com o pássaro e a Figura 51 – Fillete à l’oiseau et à
maçã (1784), estatueta em mármore branco la pomme
(43 cm x 33 cm) onde o artista, com maestria, tira partido da textura e cor da
pedra para expressar a candura quase translúcida da criança retratada.

7. O neoclassicismo iluminista
7.1. O contexto sociohistórico do neoclassicismo
O Setecentos mostrou um dinamismo inédito para um mesmo século, ao abri-
gar valores estéticos bastante díspares, às vezes, inteiramente antagônicos e
de difícil delimitação para o observador pouco afeito ao mundo das artes. Em
menos de cem anos, tivemos o barroco tardio, também chamado por alguns
historiadores de barroco-classicista, o rococó, o neoclassicismo, também tido
como academicismo, o classicismo musical, além das manifestações vigoro-
sas do movimento alemão Sturm und Drang/ “tempestade e ímpeto", espécie
de movimento romântico avant la lettre.
150
MIRANDA, D. S. de

Em que contexto tal dinamismo ocorre? No transcurso do século XVIII,


ocorrem diversas ações indutoras de desenvolvimento científico, de desco-
bertas e inventos, da filosofia iluminista, enfim, de mudanças radicais em vá-
rios campos, constituindo uma época de grandes realizações, com duas clas-
ses (aristocratas e burgueses) no seu domínio. Ademais, dois movimentos de
grande magnitude articulados entre si, um de domínio socioeconômico e outro
cultural, promovem uma forte inflexão na vida europeia, com nítidas resso-
nâncias nas artes. Os movimentos propulsores de mudanças radicais na vida
europeia poderiam ser sintetizados em duas grandes Revoluções: a Industrial,
expressando o uso de conquistas científicas no sistema de produção, alte-
rando o sistema da grande manufatura para o fabril industrial, e a Francesa,
espécie de ajuste de contas da burguesia com o poder, visto que já o detinha
em outras esferas da economia européia.
Esse período fechou o ciclo de precário equilíbrio entre a aristocracia
e a burguesia, o que se dava mediante uma espécie de compromisso firma-
do entre as partes para mesclar seus respectivos valores de vida. A sensibili-
dade desse compromisso soube inscrever tais valores numa arte complexa,
ambivalente e contraditória que vai, como se viu, das últimas manifestações
barroco-rococós ao estilo racional neoclássico e aos primeiros sinais do ro-
mantismo ainda por vir. O neoclassicismo encontrava-se, num certo momen-
to, apoiado tanto pela aristocracia como pela burguesia. Decorre daí a coe-
xistência de artistas, por vezes antagônicos, pertencentes a diversas escolas
e estéticas, cujas criações expressavam ideologias incompatíveis, desde os
que defendiam a manutenção da velha ordem do ancien régime aos que pro-
clamavam o ideal libertário e igualitário da Revolução Francesa.
Porém, o mecenato, ao mudar de mãos, passando para a gestão da
burguesia ascendente, cuja aparente sobriedade moral demandava uma arte
séria condizente com o novo modo de vida, opõe-se ao caráter caprichoso
e frívolo da aristocracia barroco-rococó em busca de um ideal ético-estético
respaldado no pensamento filosófico que se forja na época. Estamos em ple-
na época em que reinava um espírito otimista sustentado na racionalidade e
no cientificismo, cuja expressão filosófica hegemônica cabia aos pensadores
iluministas, sobretudo aos de linhagem kantiana.
O alemão Emanuel Kant (1724 - 1804), arguta personalidade “antena-
da” com os novos tempos advindos das transformações nos vários campos
do conhecimento e agir humanos, como a ciência, a cultura e os ideais da
Enciclopédia francesa, demonstra uma fé inabalável no progresso humano e
se mostra otimista sobre a capacidade da humanidade abandonar sua meno-
ridade tutelada pelo medo, tradição ou superstição, para adotar a razão como
critério único para guiar seu saber, agir e sentir, reflexão contida na sua obra,
151
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

sobretudo na famosa tríplice crítica (v. seção Saiba mais, na Introdução deste
livro). Sua máxima de vida era sapere aude (ouse saber). Para ele, a huma-
nidade, ao atingir sua maioridade – a era da razão –, saberia equilibrar sua
formação social coletiva com seu agir moral a partir de critérios racionais sem
prejuízos para sua liberdade individual. A razão, e somente ela, deveria ser a
instância capaz de guiar todas as condutas humanas, seu saber, agir e sentir,
enfim, todas as suas ações e criações.
É importante atentarmos para um fenômeno que surgira no pensamen-
to que antecede o iluminismo kantiano: a crítica. Tal procedimento, impensável
no momento hegemônico do cartesianismo, toma conta da cena intelectual
europeia desde o início do século XVIII. Impensável, se considerarmos as
diferenças entre a modernidade precoce (razão clássica cartesiana), incapaz
do uso da razão para refletir sobre seus próprios limites, e a modernidade
madura (razão iluminista kantiana), possivelmente capaz de estabelecer os
limites e as condições de possibilidades da própria razão em suas diferentes
esferas, conforme tematiza a tríplice crítica de Kant.
No século XVII, preparando a crítica setecentista, predominam obras de
caráter poético em seu senso aristotélico, isto é, como sistematizações canô-
nicas que acabavam por se transformar em normas prescritivas dos fazeres
artísticos. Naquele contexto, o belo, por exemplo, seria uma modalidade do
verdadeiro, conforme afirma Nicole Boileau em sua Art Poétique (1674), ao
estabelecer a razão como a suprema instância para julgar o mérito e a virtude
de uma obra de arte: rien n’est beau que le vrais, ou “nada pode ser belo, se-
não o verdadeiro” (apud BRAS, 1990, p. 16).
A partir do século XVIII, o termo crítica toma vulto como flagrante índice
do processo de autonomização que atinge tanto a arte como o pensamento
que dela se ocupa, a estética, se espraiando em várias obras, revelando, as-
sim, uma nova postura intelectual dos pensadores da época, sobretudo os
iluministas. Eis alguns exemplos: Réflexions sur la critique, de Antoine Houdar
de la Motte (1672 - 1731); Dissertation critique sur L'Iliade d'Homère, de Jean
Terrasson (1670 - 1750); Réflexions critiques sur la poésie et sur la peinture, de
Jean-Baptiste Dubos, o Abade Du Bos (1670 - 1742). Nesse século, o crítico
de arte começa a se profissionalizar.
É flagrante a aversão iluminista aos velhos estilos, ao ditar uma estética
apoiada na simplicidade e no despojamento, princípios norteadores da nova
estética elaborada principalmente pelo teórico Johann Joachim Winckel-
mann. Assim, difunde-se o ideal de comedimento, equilíbrio e serenidade, ex-
presso no sentimento de domínio tanto da natureza externa (objetiva) quanto
interna (pessoal). As paixões não deviam ser expurgadas, porém comedidas
e vividas com serenidade. Aos poucos, a estética plasmada no seio da nova
152
MIRANDA, D. S. de

classe burguesa assume o comando da produção intelectual e dos meios de


difusão das atividades artísticas.
Além disso, viviam-se momentos de euforia com as descobertas arque-
ológicas nas cidades de Herculano (1738) e Pompéia (1748) na Itália, soter-
radas sob as cinzas do Vesúvio, bem como em Paestum, com extraordinários
sítios arqueológicos no sul da península, e em Atenas, o que fez crescer o
deslumbramento pelas artes clássicas e a sua recuperação, o que é sentido
pelo interesse de pessoas que entram em contato, in loco, com esses teste-
munhos diretos da cultura antiga. As viagens à Grécia, motivadas por vários
fatores, eram constantes. As imagens das descobertas arqueológicas passam
a ser difundidas e conhecidas por intelectuais e artistas que, vendo nas artes
clássicas a estética adequada para o seu tempo, fornecem o apoio teórico
e prático para a volta ao classicismo, porém com uma importante alteração:
aquela concepção da arte clássica que consiste num ideal de beleza eterno e
imutável não mais se sustenta. Agora, tais princípios deveriam ser adaptados
à realidade moderna da nova sociedade urbano-industrial.
Se não havia uniformidade quanto ao caráter formal da estética des-
se classicismo renovado, daí o termo neoclassicismo, que logo conta com
o apoio das academias de arte, daí também o termo academicismo, numa
coisa havia unidade: a aversão às velhas formas representadas pelo barroco
e pelo rococó. Para isso, contribuiu fortemente o pensamento estético do ale-
mão Winckelmann que, juntamente com seu discípulo Anton Mengs, fornece
o grande esteio teórico para o retorno às concepções clássicas. Em suas
obras, Reflexões sobre a imitação das obras gregas na pintura e na escultura
(1755) e História da arte antiga (1764), Winckelmann estabelece os princípios
da "nobre simplicidade" e da "serena grandeza", sobre os quais estudara em
Roma. Seu discípulo Mengs, tido como garoto-prodígio da pintura, fixa-se, jo-
vem, também em Roma, onde trabalha e frequenta o círculo intelectual de seu
mestre. Mais tarde, viajando para a Espanha para decorar palácios de Madri
e de Aranjuez, Mengs escreve as Considerações sobre a beleza e o Gosto na
pintura, obras logo traduzidas e difundidas, cujas ideias ganham respaldo nos
círculos acadêmicos e artísticos da Europa.
Importa também fazer aqui o registro do livro AEsthetica (1750) do berli-
nense Alexander Baumgarten que usa o termo estética pela primeira vez com
o sentido de ciência das sensações, como teoria do belo. “A Estética (como
teoria das artes liberais, como gnoseologia inferior, como arte do análogon da
razão) é a ciência do conhecimento sensitivo” (BAUMGARTEN 1993, p. 95).
A irrupção dessa obra é um índice seguro da autonomia de um tipo de saber
dedicado à arte, em forma de disciplina independente de outras esferas, como
a filosofia, a gnoseologia ou mesmo a ética, o que faz manifestar uma forte
153
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

tendência quanto ao seu processo de autonomização, o que já vinha ocorren-


do desde a Renascença florentina do século XV.
Todas essas obras irão jogar um papel de grande importância prepa-
rando o caminho para uma discussão que ganha corpo na época: a reflexão
sobre se a arte ultrapassa os limites do problema da forma estética para atingir
a questão do “sentimento”, com a agenda da reflexão artística invadida por
vários tratados sobre a “estética do gosto”. Intelectuais e críticos se veem mer-
gulhados em intermináveis polêmicas sobre temas como a questão do gosto,
do sublime, do gênio e da sensibilidade.
A autora Mirabent (1991) apresenta duas obras que atestam tal clima
da época: Ensaio sobre o gosto (1756) e Ensaio sobre a pintura (1765) do en-
ciclopedista Diderot. O tema da sublimidade artística, uma das matérias mais
importantes devido à questão da subjetividade também em voga na época, é
foco da reflexão de Edmund Burke na sua proposta que contempla dois tipos
de categoria de beleza: a que é objetivamente bela por si mesma pela sua
delicadeza e fatores de atração e de prazer e a beleza do sublime, conceito
construído a partir de afetos e sentimentos vagos e indefiníveis vinculados
a fortes sensações de terror ou medo, provocadas por elementos ilimitados
como a visão de um mar revolto, uma tempestade, a perspectiva de infinitude
céu, etc. O tema da sublimidade não foi indiferente a Kant, que dele trata em
sua terceira crítica (1791) dedicada à faculdade de julgar.
Envoltos nessa atmosfera de vigor intelectual típico, de intensa refle-
xão crítico-estética, os artistas encontram um modelo a seguir, constituindo
um novo estilo que logo se difunde pelo Velho e Novo Mundos. Consequên-
cia, sobretudo, das Revoluções Americana e Francesa, as novas classes do-
minantes adotam o neoclassicismo como estilo oficial inspirado no ideal da
democracia grega, articulado ao da república romana.
O neoclassicismo exposto nas artes plásticas e adaptado às condições
sugeridas pelos novos tempos, revaloriza os modelos greco-latinos, expurgan-
do, como vimos, os traços formais barroco-rococós considerados desmesu-
rados e avessos ao ideal de beleza perseguido. Nos primeiros anos do século
XIX, quando parecia entrar em declínio graças aos pronunciamentos já mani-
festos no século anterior sobre a estética romântica, o neoclassicismo ganha
sobrevida oficial com Napoleão, por ver nele a expressão sígnica ideal para
glorificar seu império expansionista, uma espécie de Roma rediviva.
154
MIRANDA, D. S. de

7.2. O sistema das artes neoclássicas


a) A arquitetura
Na França, a partir da metade do século
XVIII, começam a surgir edificações com
tendências a uma maior clareza formal clás-
sica com influxos greco-romanos e renas-
centistas. No caso do influxo renascentista,
ele se apoia nitidamente no arquiteto Andrea
Palladio, construtor e teórico do sec. XVI,
que estudara e medira as ruínas clássicas
e que passa a ser referência para diversos
arquitetos de várias procedências. Um caso
Figura w52 – Panteon Nacional exemplar é a Igreja de Santa Geneviève
Francês (1764 - 1781) em Paris (transformada após
a Revolução de 1789 em Panteon Nacional
de celebridades francesas), projeto do arquiteto Jacques Germain-Soufflot
(1713 - 1780), que passara sete anos na Itália, onde adquiriu sólidos conhe-
cimentos sobre a arquitetura clássica. A colunata recupera o papel que teve
na antiguidade e uma enorme cúpula, à imagem e semelhança da Basílica
de São Pedro, irrompe do centro do edifício no formato de uma cruz grega.
A fachada é coroada com um frontão sustentado por colunas coríntias. Sou-
fflot julgou ser essencial a integração do edifício com seu entorno urbano, o
que é obtido com uma avenida que se projeta à sua frente, construindo uma
perspectiva para uma excelente fruição de suas formas.
A variante neoclássica bonapartista tem no Arco do Triunfo do Carrossel
(1806-1808) um exemplo da arquitetura propagandística e monumental a ser-
viço do poder napoleônico no seu projeto de renovação de Paris, tendo sido
construído para celebrar suas vitórias e calcado no arco do imperador romano
Séptimo Severo. Erguido a oeste do Louvre, o Carrossel limita, numa de suas
extremidades, o gigantesco eixo da expressão de poder – La voie triompha-
le – que prossegue na alameda central do Jardin des Tuileries, eleva-se no
imenso obelisco da Place de la Concorde, prolonga-se pela Avenue Champs
Elisées e atinge seu ponto culminante com a monumentalidade do Arco do
Triunfo da Etoile, erguido em homenagem a Napoleão, continuando no lado
oposto, pela Avenue Grande Armée e a atual Avenue Charles de Gaulle, até
findar, na outra extremidade, na Place de La Defense, onde se ergue um arco
contemporâneo, encomendado por François Mitterand em 1989, em homena-
gem ao bi-centenário da Revolução Francesa.
Outro exemplo do estilo napoleônico é a Igreja da Madeleine (1806), de
Pierre Vignon (1763-1828) que se eleva sobre um pódio, rodeada por colunas
155
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

coríntias encimadas por um frontão repleto de estátuas à maneira do Parte-


nón. A partir daí, a construção das novas igrejas passam a seguir os rígidos e
severos cânones do mundo clássico, com uma arquitetura imitativa dos seus
edifícios, fazendo-as possuir o aspecto de um templo grego.
O neoclassicismo alemão também consagra marcantes traços greco-
-romanos como se pode perceber na Porta de Brandemburgo (1789-1794), de
Karl Gothard Langhans (1732-1808), autêntica construção de caráter helenista.
É visível a intenção do arquiteto em transladar para Berlim, os propileus, aqueles
pórticos monumentais da entrada dos templos gregos da acrópole ateniense,
transformando sua versão alemã num majestoso arco de triunfo romano dotado
de imponentes colunas dóricas apoiando um pavimento retangular que serve
de base para um conjunto escultórico de Gottfried Shadow (1764-1850), forma-
do por uma quadriga em bronze conduzida pela deusa da paz Eirene.
Na Inglaterra, apresenta-se uma linhagem palladiana com a participa-
ção de John Soane (1752-1837) que constroi uma country house (um pa-
lacete com colunas dóricas) e o Banco da Inglaterra (1792), e John Nash
(1752-1835), com seus notáveis exemplos arquitetônicos, como as fachadas
da Regent Street (1811), para uma Londres que se urbanizava a olhos vistos,
e a reforma e ampliação do Palácio de Buckingham (1825-35) antes de ser a
residência oficial da coroa, o que ocorreu com a rainha Vitória em 1837.
A corrente palladiana também se faz presente na Rússia de Catarina II,
que convida o arquiteto italiano Giacomo Quarenghi (1744-1817) para cons-
truir vários edifícios em São Petersburgo, como o Ermitage e a Academia de
Ciências. Na Espanha, o destaque fica com Juan de Villanueva (1738-1811),
claro expoente do neoclassicismo espanhol de inspiração arqueológica, cujo
projeto para o monumental Museu do Prado revela grande pureza e racionali-
dade expressas na claridade e nas formas funcionais não ornadas.
Após a independência, os Estados Unidos importam o estilo via palladia-
nos ingleses e franceses e pela gestão de Thomas Jefferson, um aficionado
pela arte romana. São exemplos os projetos de sua casa, a Villa de Monticello,
e o State Capitol Building, ambos na Virgínia e idealizados por ele mesmo.
No Capitólio de Washington, projetado por Charles Bulfinch e W. Thornton
(1827), uniram-se colunas coríntias e arcos romanos no pórtico central em
vários níveis, uma imponente escadaria e uma enorme cúpula renascentista
para que se obtivesse, a um só tempo, elegância e majestade, tornando-o um
dos prédios públicos de maior grandiosidade do mundo.
Outros exemplos da arquitetura neoclássica nas Américas podem ser
encontrados na Argentina, como a Catedral de Buenos Ayres, expressa na
nave, domo e fachada composta por uma colunata e frontão do século XVIII
e XIX; e no Brasil, onde o estilo foi trazido, tardiamente, em 1816, pela Missão
156
MIRANDA, D. S. de

Artística Francesa, cujo expoente foi Auguste H. Victor Grandjean de Montig-


ny (1776 - 1850), e sua obra mais representativa foi sua residência na Gávea,
que depois se tornou a sede da reitoria da Pontíficia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, adaptando a estética neoclássica ao clima tropical.

b) A pintura
Winckelmann e Mengs foram fundamentais na definição dos rumos da pintu-
ra neoclássica, que teve como modelo os mesmos princípios ditados para a
escultura. O idealismo pictórico teve a nítida marca de uma visão intelectua-
lista, submetida a cânones agora subordinados ao princípio da simplicidade,
serenidade e grandeza, embora sem grandes aversões, por exemplo, aos
contrastes do claro-escuro. Mas a clareza luminosa da cena, bem como a
linearidade, a nitidez e o apuro dos contornos das formas ganharam força,
apoiados marcadamente em exemplos renascentistas como Rafael, pelo
equilíbrio de suas composições e pela harmonia do colorido. Os temas po-
diam ser variados – mitos clássicos, religiosos, profanos, históricos, cenas
prosaicas, retratos –, porém havia uma unidade estética na busca menos
pela verdade mais pelo verossímel.
Jacques-Louis David (1748 - 1825) e Jean-Auguste Dominique Ingres
(1780 - 1867) foram certamente duas personalidades centrais da pintura neo-
clássica francesa. O parisiense David foi considerado o pintor da Revolução,
porém, depois, adere ao bonapartismo, tendo se transformado no pintor oficial
do império napoleônico (“premier peintre de Napoleon” / “primeiro pintor de
Napoleão) e em cujo estilo transparece quase sempre o elogio de virtudes
cívicas. Fatos históricos ligados à vida de Napoleão foram por ele registrados
a exemplo de sua coroação e o quadro Bonaparte atravessando os Alpes
(1801). Mas David foi também detentor, a um só tempo, de um vibrante realis-
mo e de um intenso páthos, como o quadro A morte de Marat (1793), dedicado
ao amigo e militante da Revolução Francesa. Diz-se do quadro que se trata
de um tema religioso em que o Cristo morto é substituido pelo corpo inerte
do amigo, pendido sobre uma banheira em plena luminosidade em contraste
com o fundo escuro da composição.
Ingres conserva a tendência neoclássica do seu mestre David, cujo ateliê
frequentou com certa assiduidade. Sua temática é variada, compreendo assun-
tos mitológicos e paisagens, mas, sobretudo, retratos e nus, seus trabalhos mais
admirados. O retrato de Louis François Berlin (1832), exímio modelo pictórico de
uma persona para expressar a fisionomia de um membro da classe burguesa
da época, deixa transparecer o gosto pelo poder e a fé inabalável na individuali-
dade, em cores discretas e contornos precisos. O esmero técnico de Ingres nos
nus se sobressai na célebre tela Banhista de Valpinçon (1808), onde evidencia
o domínio dos tons claros, quase transparentes para a representação da pele.
157
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Foi discípulo de Ingres o pintor e desenhista Jean-Baptiste Debret (1768


- 1848), bastante conhecido entre nós por ter participado da Missão Artística
Francesa (1816), iniciativa de d. João VI, fundando em seu reinado, a Acade-
mia de Artes e Ofícios. Debret nos deixou vários quadros que registram a vida
e os costumes do Brasil Colônia. Em seu livro Viagem pitoresca e histórica ao
Brasil, documenta aspectos da natureza e a vida da sociedade brasileira da
primeira metade do século XIX.

c) A escultura
Ao contrário do volume e da sinuosidade das espirais barrocas, a escultura re-
torna às formas graciosas e leves, realçando contornos e gestos suaves, cuja
sobriedade idealiza expressões que exploram, de preferência, a polidez das
superfícies do mármore branco. A temática mitológica dá relevo ao gosto pelo
nu para melhor idealizar as proporções humanas, como se pode observar na
grande quantidade de trabalhos de um dos escultores mais celebrados do
neoclassicismo, o italiano Antonio Canova (1756 - 1822), a exemplo de Eros
e Psique (1793). Ele também se dedica a bustos e tumbas papais, conseguin-
do, ao mesmo tempo, a realização de uma intenção de monumentalidade e
tranquilidade, como em Clemente XIV (1783 - 87) e Clemente XIII (1792). Na
segunda, a morte costumeiramente representada por um esqueleto, como no
barroco, é substituída pela beleza plena de um anjo.
O neoclassicismo escultórico do francês Jean-Antoine Houdon (1741
- 1828) dá preferência temática a celebridades como os enciclopedistas Di-
derot, Rousseau e Voltaire, sendo o último o mais marcante, graças à sensi-
bilidade do escultor em captar a força interior do filósofo, estampada em sua
expressão corporal e facial. Houdon trabalhou também nas estátuas de Ben-
jamin Franklin, Molière, George Washington, Thomas Jefferson, Louis XVI,
destronado pela Revolução, Robert Fulton e Napoleão Bonaparte.

7.3. O classicismo musical: tonalismo, forma-sonata


e a historicidade da consciência burguesa
Apesar de afinidades conceituais da arte musical com o iluminismo vigente,
existe uma distinção entre o neoclassicismo plástico que se nutre nos manan-
ciais antigos e renascentistas, e o classicismo musical. Autores como Adorno
apontam a linguagem tonal que se consolida nesse período, como o coro-
amento do processo de desnaturação e racionalização do material sonoro,
iniciado na antiguidade mítica (período homérico), passando pelo pitagorismo
e seus seguidores, ganhando força no medievo com a criação da notação
musical feita por Guido d’Arezzo e com o cantus mensurabilis da Ars nova e,
mais tarde, com a polifonia contrapontística do gótico ao barroco, até chegar
ao temperamento igual promovido por Bach, conforme veremos a seguir.
158
MIRANDA, D. S. de

Dessa forma, a linguagem musical euro-ocidental expressaria um con-


tinuum de racionalização da natureza sonoro-musical, cujo apogeu dar-se-ia
nos séculos XVII e XVIII. Isso foi possível graças à articulação de dois gran-
des eventos: o estabelecimento do idioma tonal e a instituição do tempera-
mento igual. O responsável pelo primeiro foi Jean-Philippe Rameau (Tratado
da harmonia reduzida a seu princípio natural), hierarquizando o encontro e a
progressão de sons simultâneos (acordes); e o segundo foi Johann Sebastian
Bach (O Cravo bem temperado ou Prelúdios e Fugas em todas as tonalidades
maiores e menores), estabelecendo o temperamento igual que disciplina o
universo sonoro, unificando as várias propostas de temperamentos existen-
tes então, procedimento indispensável para a consolidação da racionalização
tonal. O temperamento igual permitiu a afinação uniforme dos instrumentos,
equalizando, rigorosamente, todos os 12 semitons da escala cromática, con-
siderados desiguais em outros tipos de temperamento. A equalização de sons
acusticamente diferenciados é obtida pela anulação arbitrária dessas peque-
nas diferenças, estabelecendo, por exemplo, a igualdade entre o dó sustenido
e o ré bemol (procedimento chamado de enarmonia, ou seja, nomes diferen-
tes para uma mesma altura obtida de forma convencional) e dividindo a escala
em 12 semitons exatamente iguais.
O temperamento igual pôs ordem a um certo caos reinante na música
barroca, onde a complexidade crescente dos encontros acórdicos (sons de
alturas diferentes) colidia, cada vez mais, com a falta de um critério geral de
afinação, o que produzia distorções no encontro dos instrumentos e fazia cho-
car cordas e vozes com teclados, impedindo, assim, o desenvolvimento das
modulações e, consequentemente, a sua aplicação na linguagem tonal. Bach
explorou no Cravo, as 24 possibilidades modulatórias, nos seus 24 prelúdios
e fugas, da escala cromática, nos modos maior e menor.
Sem o temperamento igual, cada vez que se quisesse modular, ou
interrompia-se a música para afinar novamente o instrumento, como o cra-
vo, ou então cada mudança de tonalidade fazia com que o desenvolvimento
melódico-harmônico soasse estranho ao centro tônico visado. A plasticidade
da escala tonal passa a oferecer inúmeras possibilidades de modulação, que
consiste na mudança de tons a partir de uma lógica sequencial, buscando-se
proximidades harmônicas e a resolução da progressão tensão/repouso.
A difusão da escala temperada provoca um grande deslumbramento
nos compositores com a harmonia. “Toda a moderna música acórdico-har-
mônica não é concebível sem o temperamento e suas consequências. Só
o temperamento proporcionou-lhe a liberdade plena” (WEBER, 1995; 133).
A fixação do sistema tonal permite a irrupção das grandes formas da música
ocidental, tendo na forma-sonata a mais completa tradução de uma forma
159
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

estético-musical que expressa a mentalidade da moderna época burguesa.


Ela passou a expressar, no sentido da sua progressão harmônica, a consciên-
cia do homem moderno acerca do seu tempo, um tempo cumpridor de um fim
necessário. O classicismo musical estabiliza o centro tonal em regiões harmô-
nicas bem estabelecidas. Com Haydn, Mozart e um Beethoven vivendo entre
a interseção do classicismo e o romantismo, a arte da modulação na forma-
-sonata constituir-se-á no recurso com maior densidade estética, permitindo a
consolidação do tonalismo como sistema.
Em sessenta anos (era da criação dos três gênios “vienenses”), a for-
ma-sonata conhece seu apogeu, cujo mérito maior é sua extraordinária fle-
xibilidade que permite o aproveitamento de um grande repertório de ideias
musicais em vários tipos de combinação. Ela tem sua dinâmica baseada
numa progressão harmônica precisa: a partir de um campo tonal definido pela
tônica, essa se investe de poderes diretivos sobre as demais notas, definindo
pólos harmônicos em conflito. Esta é a ideia base da forma-sonata: a possi-
bilidade de um continuum constante de conflitos de duas tonalidades para
novas regiões harmônicas, onde cada tensão posta e reposta vislumbra uma
resolução no seu devir. Na verdade, tal conflito obtido pelo confronto de tona-
lidades diferentes, a exemplo da tônica com a dominante, era também obtido
pelo embate de temas distintos.
Sumariamente, podemos apresentar o seguinte grande arco modula-
tório da forma-sonata: parte-se do tema na região da tônica e seu desenvol-
vimento se dá na região da dominante, com o retorno final na tônica, tendo
a região da subdominante como modulação de passagem. A forma-sonata
– presente geralmente no primeiro movimento dos gêneros como a sinfonia,
o concerto, o trio e o quarteto de cordas, ou a sonata propriamente dita –,
estrutura-se obedecendo ao esquema tripartite A, B, A’ (exposição, desenvol-
vimento e re-exposição).
A modulação irá igualmente permitir o insurgir de temas, verdadeiras
“personagens” com um discurso musical próprio autonomizado dos textos da
poesia e dos libretos das óperas, sendo capaz de trabalhar suas formas e
linguagem sem precisar de referência direta à realidade exterior. Essa con-
cepção encontra-se expressa, de maneira incisiva, por Friedrich Schlegel na
revista Athenaeum (1799):

Músicos falam a respeito das ideias (= temas) [...] e, com frequência, nos
damos conta de que há mais ideias em suas músicas do que aquilo que se
fala a seu respeito.[..] Mas a música instrumental pura não cria, ela mesma,
seu próprio texto? E não é seu tema desenvolvido, confirmado, variado, e
contrastado, da mesma maneira que o objeto de meditação numa filosofia
de ideias? (apud ROSEN, 2000, p.120).
160
MIRANDA, D. S. de

É este o grande projeto reclamado pelo homem moderno: a consciência


de um sujeito autônomo constituidor de sentido; no caso da arte musical, o
homem como articulador das partes de uma composição num todo de sentido
estético, procurando, a exemplo da forma-sonata, organizar uma sequência
“lógica”, portanto racional, dos eventos enquanto formalização estética, por
excelência, dos elementos da razão. O arco da sonata amplifica o que a ca-
dência tonal faz no nível do desenvolvimento repouso-tensão-repouso. O ra-
cionalismo das Luzes, que se opunha ao “obscurantismo barroco”, necessita
de síntese, requisito para uma continuidade essencial, onde a forma-sonata
representará sua expressão mais adequada.
Ampliando cada vez mais a lógica evolutivo-progressiva da forma-sona-
ta, a consciência de pensadores e artistas da época sobre suas possibilidades
ético-estéticas irá fazer dela a forma-sígnica ideal da consciência iluminista
traduzida na crença inabalável na ideia de progresso e felicidade, como um te-
los necessário da moderna civilização burguesa. A ideia basilar do ethos ilumi-
nista repousa no pressuposto do progresso permanente e necessário, de uma
racionalidade que, passo a passo, ilumina as sombras do erro e da ignorância.
A época da forma-sonata dá-se basicamente no tempo de um capitalismo
urbano-industrial portador de maiores conflitos, que se auto-atribui poderes e
capacidade para resolvê-los, confiante no sentido moderno da história como
progresso, conforme os ideais do projeto civilizatório de linhagem kantiana.
O dinamismo tonal direcionado para a forma-sonata expressa um lídi-
mo exemplar de como a música inscreve, claramente, a autoconsciência de
uma classe dominante acerca de seu tempo ou, dito de outro modo, como as
classes dominantes se escutam, através da música dominante do seu tempo,
fazendo da forma-sonata o signo mais acabado de uma formalização estético-
-musical pela qual tais classes se expressam. A lógica estética contém, portan-
to, os elementos da lógica do moderno mundo burguês. O dinamismo contínuo
de tensão/repouso foi a grande contribuição da tonalidade para a vida musical
moderna. Nessa trama, podem-se envolver todos os sons da escala numa rede
de encadeamentos tanto melódicos quanto harmônicos. A cadência tonal não
evita a tensão. Ao contrário, exacerba cada vez mais os estados de conflito,
através da “forma em desenvolvimento” de um continuum de tensões em sua
trama temática (v. CHASIN, 1999, p.143). A sequência cadencial incorpora a
tensão, traço constitutivo da própria estética musical moderna com vistas à sua
resolução. O sistema tonal, enquanto formalização estético-musical de formas
de sociabilidade do novo mundo burguês, se constitui assumindo o conflito, vis-
to que este pode ser solucionado dentro do horizonte do seu próprio código,
da mesma forma como o novo mundo burguês busca, dentro de seus próprios
limites, a resolução das tensões provocadas pelo seu próprio dinamismo.
161
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

O artista-gênio e também pensador mais consciente desse novo tempo


advindo no rastro revolucionário do mundo burguês e o mais bem sucedido
no uso da forma-sonata, como signo ideal para expressá-lo, foi o compositor
Beethoven. Ele se encontrava em sintonia com o pensamento ilustrado, isto é,
criticava sem limites a vida de seu tempo e desejava como todos os iluministas,
a imposição do mundo burguês.

Como humanista, Beethoven acreditava que a solução dos problemas e con-


flitos humano-sociais vividos então encontraria resposta na própria sociedade
burguesa [...] Filho de uma época que confiava nos ideais da revolução e não
poderia idear ou perspectivar para além deles. Significa que não admitiria ou
mesmo reconheceria uma superação das contradições da vida a não ser na e
pela própria organicidade burguesa (CHASIN, op. cit., p. 147).

Enfim, assim como o balanço de tensões/repouso característico da for-


ma-sonata expressava a perspectiva teleológica do tonalismo, assim também
as modernas formas de sociabilidade de um novo tempo burguês acreditavam
convictamente nas possibilidades de uma evolução inexorável da sociedade,
ainda que prenhe de tensões e conflitos. E a arte musical, através da forma-
-sonata, reivindicava ser portadora de uma história de sentidos e vetores es-
téticos na perspectiva necessitarista da temporalidade evolutiva e progressiva
da moderna sociabilidade burguesa.

Síntese do Capítulo
Assumindo uma postura crítica ao sentido subjacente à noção de Renascen-
ça, que via a Idade Média como a “idade das trevas”, esta unidade analisou o
processo de constituição das artes ocidentais, a partir da modernidade preco-
ce, dando ênfase ao seu processo de autonomização em relação à estética
cristã medieval que as constrangia em seu teor e forma.
Cobrindo quatro séculos dos grandes estilos – do renascentismo ao
neoclassicismo –, a unidade buscou analisar de forma articulada, as diversas
linguagens do período, visto que elas, em grande parte, expressaram solida-
riamente afinidades estéticas em suas manifestações artísticas.
162
MIRANDA, D. S. de

Atividades de avaliação
1. Opine sobre a visão renascentista em relação à Idade Média vista como idade
das trevas.
2. Disserte sobre as diferenças entre a antiguidade clássica e a estética humanista
renascentista, em que pese a afirmação que essa última retomou os ideais
artísticos da cultura greco-romana.
3. Elabore um quadro comparativo, confrontando as principais características
dos grandes estilos que marcaram as artes ocidentais da era moderna.
4. Analise o contexto sócio-histórico em que se deu o surgimento do barroco
no Brasil, levando ainda em conta seus principais traços característicos.
5. Elabore um pequeno texto que contenha uma questão problematizadora que
leve em conta fatores responsáveis pela constituição dos novos tempos e
suas conseqüências nas mais diversas esferas da vida européia moderna.

Texto complementar
Texto 1
“Quattrocento e Cinquecento: duas ênfases. A arte do Quattrocento ainda conviveu com o
período anterior do gótico ‘internacional’, mas soube produzir dessemelhanças ou particu-
laridades regionais relativamente destacadas. Cada cidade desenvolveu, sob os auspícios de
seus ricos mercadores e novos burgueses, um estilo inerente às suas próprias corporações de
ofícios. A influência e a riqueza dessas associações foi bastante forte para impor os interesses
de seus membros, tanto na aceitação e na instrução dos aprendizes e oficiais, na obediência
às concepções dos mestres locais, como na ‘reserva de mercado’ para seus trabalhos. Em
consequência, o Renascimento evoluiu de maneira a mostrar uma diversidade formal e temá-
tica muito mais abrangente do que a época medieval, em grande parte fruto desse incipiente
‘nacionalismo’ das cidades.
O século seguinte - o Cinquecento - constituiu o ápice da Renascença, em sua poética ou
concepção clássicas. Durante o seu transcorrer, o estatuto e o consumo das artes se modifi-
caram profundamente. A economia, então decisivamente mercantil e financeira, estimulou
o aparecimento de uma sociedade urbana, composta, em linhas gerais, de uma classe média
de comerciantes e de artesãos e dos estamentos das cortes principescas, incluindo-se os seus
banqueiros. Estes últimos diferiam de seus congêneres medievais tanto pela origem da rique-
za quanto por seus princípios éticos e políticos. Os antigos [...] haviam estabelecido ideais de
heroísmo, de amor cortês e abstrato e de moralidade mais rígida. Os novos passaram a aceitar
em seus círculos os endinheirados recentes, os aventureiros de várias origens, os humanistas
plebeus e os artistas, com reputação ou sem nome. Tornaram-se intelectualizados, eruditos,
mais refinados, sensualistas e moralmente dúbios, dado o indispensável utilitarismo da época”.
(CUNHA, 2003. pp. 447-448)
163
História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

Texto 2
“A heroína é a Loucura, alegoria que se dirige ao público fazendo seu próprio elogio [...]. Ela
conduz a ronda com competência, não esquecendo nenhum figurante. Aparecem diante do
público os caçadores, os arquitetos, os alquimistas, os jogadores, os devotos, os nobres, os
negociantes, os gramáticos, os poetas, o retores, os jurisconsultos, os filósofos, os monges, os
bispos, os papas, os reis, os militares, cada um mais louco do que o outro, mais convencido de
sua própria importância, confundindo seus desejos com a realidade, todos iludidos pelo amor
de si mesmo, pela Philautia [o amante de si próprio], dama de companhia da Loucura.
Mas a leitura se complica e se torna mais fascinante quando descobrimos que a loucura não
é apenas criticada, mas exaltada. Superficialmente, a oradora elogia todas as manifestações da
loucura, mas [...] é um elogio irônico, confundindo-se com a sátira, e em outros parece ser uma
verdadeira apologia. A distinção é tão fina que muitas vezes é difícil perceber a diferença. Mas
a própria loucura nos dá uma pista, quando nos diz que há dois tipos de insanidade (insanitas),
uma vomitada pelo inferno e responsável pela sede de ouro e pelo amor da guerra, e outra,
amável, inspirada pela heroína. Podemos supor, portanto, que há também dois tipos de stultitia,
uma loucura sábia e uma loucura louca”. (ROUANET, 1992, p. 295)

Texto 3
Em resumo, eis os principais traços da festa barroca: participação popular, pela participação
de irmandades; vestimentas luxuosas bordadas em ouro, prata e pedrarias preciosas; animais,
sobretudo cavalos, ricamente ajaezados; carros alegóricos com efeitos especiais ilusionistas, com
figuras representando mitos pagãos, nativos e santos ou virtudes cristãs, onde as figuras pagãs ou
indígenas encontram-se submetidas à fé católica; pessoas de prestígio (civis, militares e religiosas)
em “destaque”, vestidas com pompa e cerimônia para reafirmar sua superioridade no interior
da sociedade colonial; caminhos a serem percorridos pela procissão, ricamente enfeitados com
luminárias, flores, lagos artificiais; casas com testadas recém-pintadas, com sacadas ornadas com
panejamento luxuoso (“colchas de Pequim ou China”); representantes das etnias formadoras
da população nacional, como negros e índios, ricamente vestidos, representando o “outro” do
colonizador, submetidos à sua fé e lei; máscaras coloridas e coreografias policrômicas de danças
profanas; uso da música onde a sonoridade esfuziante de vozes e instrumentos, articulada aos
efeitos audiovisuais, busca reforçar a idéia de poder e riqueza a serviço da fé e da lei; requintados
espetáculos pirotécnicos das “máquinas de fogo”, fabricadas por jesuítas que as conheceram no
Oriente por ocasião da catequese (Japão, Macau, Goa) (MIRANDA, 2001, p. 104s).

@
Leituras, filmes e sites
O grego: filme de Luciano Salce (1966) sobre o artista Doménikos Theo-
tokópoulos, mais conhecido como El Greco (1541 - 1614), pintor, escultor e
arquiteto cretense, que desenvolveu a maior parte de sua carreira artística
na cidade de Toledo, Espanha, onde, inclusive, existe tem um museu dedi-
cado à sua obra.
164
MIRANDA, D. S. de

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História da Arte 1 - Da arte rupestre ao neoclassicismo

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Sobre o autor
Dilmar S. Miranda: Doutor pela Universidade de São Paulo, área de concen-
tração em Sociologia da Música, é professor associado do curso de Filosofia do
Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará, sendo responsável
pelas disciplinas Estética e Filosofia da arte. Possui vários ensaios publicados
sobre Filosofia da Música como Razão, sentidos e estética musical, Natureza
e linguagem musical e Tristão e Isolda: o anúncio dionisíaco da dissolução do
pacto tonal. Lançou em 2009 o livro Nós a música popular brasileira.
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iel a sua missão de interiorizar o ensino superior no estado Ceará, a UECE,
como uma ins�tuição que par�cipa do Sistema Universidade Aberta do
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tes da popularização da internet, funcionamento do cinturão digital e
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a qualificação dos servidores públicos para bem servir ao Estado, História da Arte I
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ral e se ar�culam com as demandas de desenvolvi-
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Dilmar Santos de Miranda

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