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Reflexdes sobre curriculo e identidade: implicagdes para a prética pedagdgica* Antonio Flavio Barbosa Moreira UCP/UeR"* Michelle Janudrio Camara, i Uch/Rede Muncpal de Duque de Caxias” | A necessidade de reflexes sobre a identidade nos dias de | hoje ; A temitica da identidade constitui, contemporaneamen- F te, relevante objeto de estudo para a teoria social e para as teo- | rizagSes sobre educagio. Apresenta, ainda, acentuada impor- i ‘ancia politica. t Na teoria social, parece ser consensual a pertinéncia de | refletir sobre quem somos nés, de examinar como nos ternos transformado, bem come de nos situarmos em relago a0s gru- b pos dos quais desejamos nos aproximar, para nos sentirmos pertencendo, nos percebermos apoiades ¢ realizados. afetiva- § mente. A discussio teérica da identidade justifica-se, entio, por iluminar a interacdo entre a experiéncia subjetiva do + O presente capa conta vero tala camplaa de texto alo publica, corde por Amos Feo Babes Moray em du f {om profes da jue da Secreta Manica de Edcacio doe Sohn om 2008°0 cpl dev, ans de peo Francine | pelo NPS * Dota em Educaso pea Universidade de Londres *** Mestre em Educasio pela Universidade Calica de PetsSpolis 38 undo e 05 cendrios hist6ricos e culturais em que aidentida- ee formada (GILROY, 1997). ‘0 foco na identidade, no ambito da educagdo, revela-se in- caispensivel. Qualquer teoria pedagégica precisa examinar de jr modo espera alterar a identidade do/a estudante. O fim Bensino € que o/a aluno/a aprenda a atribuir significados ¢ a Ser, socialmente, de modo auténomo. Essa perspectiva exige daprendizagem de saberes e habilidades, a adodo de valores, jpem como 0 desenvolvimento da identidade pessoal eda cons- ‘iéncia de si como um individuo que, inevitavel e continua- mente, devera julgar e agir. Essa consciéncia é indispensivel para a atividade racional que todes efetuamos ¢ paraa live op- G39 em situagbes diffceis, nas quais muitas vezes precisamos fBber “dizer nio” (MIEDEMA & WARDEKKER, 1999), Em termos politicos, a énfase na identidade deriva do re- conhecimento de que certos grupos sociais tém, hi muito, sido alvo de inaceitiveis discriminagées. Entre eles, inclu- em-se os negros, as mulheres ¢ os homossexuais. Tas grupos setém rebelado contra a situacdo de opressio que os tém vi- timado e, por meio de érduas lutas, tem conquistado espagos cafirmado seus direitos 3 cidadania. Com muita tenacidade, xém contribuido para que se compreenda que as diferengas ue os apartam dos “superiores”, “normais”,“inteligentes”, “capazes”, “fortes” ou “poderosos” so, na verdade, constru- Bes socais e culturais que buscam legitimar e preservar p vilégios. Além da afirmacdo de suas identidades, tais grupos Sociais tem procurado desafiar a posicio privlegiada das iden- tidades hegem@nicas. Nesse cenério, desenvolve-se uma po- litica da identidade, com as antigas formas de ancoragem da identidade em evidente crise. Ainda em termos politicos, cabe ressaltar a preocupacso Com as identidades nacionais. Em um mundo mais globaliza- 1, novas tecnologias e novos meios de comunicagao se de- Senvolvem, fronteiras se redesenham, nacionalismos e xeno= fobias se reacendem, individuos transitam pelas diferentes par- 39 ‘Dgtalizado com Camscarner ee ee eer tes do globo, identidades se reafirmam, identidades se con- testam, novos padrées identitarios emergem. Juntamente ‘com o impacto do global, produ2-se uma Fascinagio pelo lo. cal. A globalizacéo gera, simmultaneamente, novas identifica. ‘es “globsis"e novas identificagbes“locais™ Trata-se, vale rei- terar, de uma verdadeira crise de identidades. Tendo em vista que hi repercussies de toda essa crise nas escolas e alas de aula em que trabalhamos, faz-se necessério precisar nossa concepsio de identidade, bem como analisar de que forma as velozes modificagSes, que ocorrem na eco- romia, na cultura, na politica, nas relagdes e nas priticas do cotidiano, abalamn nossa vida em comunidade, nossa vida int ‘ma enssa vida profissional. Importa estarmos atentos para ‘modo como essas transformagées desestabilizam nossas iden- tidades e colocam em xeque muitas de nossas convicgbes,le- vando-nos a retificar pontos de vista e crengas que antes nor- teavam nossas condutas costumeiras. Faz-se, assim, conveniente compreender como toda essa dinmica nos atinge, bem como afeta quem si0 nossos/as alu- rnos/as, Dai ser til analisar, nesse conturbado panorama, que identidades ajudamos a formar com nossasaulas e atividades. | Em quem se estao convertendo os/as alunos/as? De que modo 08 significados partilhados nas interagSes das salas de aula re- = forcam, desafiam ou desorganizam os identidades que estio | construindo? Deveria/poderia ser diferente? Como? ; presente capitulo aborda tais questées, embora sem / pretender esgoté-las. Focaliza concepgbes de identidade e di- ferenga que possam orientar o tratamento da temiitica na es- | cola, Sugere metas e estratégias passiveis de serem adotadas ! pelo/a professor/a em sua pritica pedagégica. Apresenta pesquisa em que, durante aulas de leitura em uma escola bilica, a professora discutiu, com base em textos seleciona- ¢ dos, aspectos referentes a raga, género e sexualidade, com ponentes centrais na construc da identidade do/a estudan : te, Ao finalizar, chama a atengio para dificuldades envolvidas | L 0 so esfrs0 por lidar com diferentes aspectos identitérios dos/as 7hunos/2.na sala de aula, realcando, 20 mesmo tempo, a pos- Shulidade de se desenvoiver algum grau de solidariedade en- {re.0s mesmos. Ao longo do texto, insste-se na importincia {hp inclusdo de questses referentes 3 identidade ea diferenca so curriculo da escola fundamental ‘Procurando entender identidade e diferenca Em que consiste, entio, nossa identidade? Podemos di- zes, por exemplo: “somos mulheres, somos homens, somos imies, somos pais”. A identidade expressa, nesse caso, “aqui- Toque somos”. Contudo, aprendemos o que somos em meio is relagGes que estabelecemos, tanto com os nossos “seme- Iantes” (somes, todos nds, brasileras) quanto com os que di- ferem de nds (somos menines, por nao sermos meninas). Aprendemos também o que somos em meio aos signficados atribuides, pelos outros, “aquilo que somos” (por serimos me- nines, no devemas chorar na frente dos outros; por sermos me- nninas, podemos brincar com bonecas). A identidade 6, por- tanto, uin processo de criagdo de sentido pelos grupos e pelos individuos (STOER & MAGALHAES, 2005). Desse modo, ao longo da vida, em meio as interacées € ‘dentificacdes com diferentes pessoas e grupos com que con- vivemos ou travamos contato, construimas nossas identida- des, que se formam mediante os elos (reais ou imaginitios) es- tabelecidos com essas pessoas, grupos, personalidades famo- $35, personagens de obras literdrias, personagens da midia, Iden- tificamo-nos, em maior ou menor grau, com familiares, ami 805, colegas de trabalho, torcedores do time de futebol de nos- 5 coragio, pessoas que compartilham conosco elementos ét- ico-racials, seguidores de nossa religiio, pessoas de nossa ge- 8Sdo, pessoas do mesmo sexo que nos, moradores de nossa c- de, assim como procuramos nos distinguir de pessoas dife- Fentes de nés. Nossa identidade, portanto, vai sendo tecida, 41 fascinates meee eee en eee eet de modo complexe, em meio as relagSes estabelecidas, que variam conforme as situacées em que nos colocames. ‘Algumas das “partes” que conformam a identidade que vamos construindo nem sempre se aticulam de modo har. ménico. Pelo contrario, chegam mesmo a entrar em conflito, evidenciando © carater contraditério de nossa identidade: io gravitamos em torno de um nécleo orgnico, constante coerente. Por exemplo, pode haver oposigées e dificuldades: em nossos comportamentos em casa em nossa prtica do- cente: em alguns momentos nos percebemos mas tolerantes ¢ carinhosos com nossos filhos/as do que com nossos/as alu- nos/as, com os quals nos mostramos, por vezes, mais intran- Sigentes e mais Asperos/s. Nossa identidade, assim, nao é uma esséncia, ndo é um: dado, nio é fixa, nao é estavel, nem centrada, nem unificada, nem homogénes, nem defintva, £ intével, contraditsra, Frogmentade, inconsistente, nacebada. E uma construgio, um feito, um processo de producio, uma relacio, ura ato per- formativo (SILVA, 2000) Para esclarecer o tiltimo aspecto citado ~ a identidade como ato performative ~ devemos assinalar que a identidade se cria também por certos atos de linguagem, particularmen- te por enunciados que “fazem com que alguraa coisa aconte- $ a”. Expliquemos melhor, recorrendo, para isso, 2 J-L. Aus | tin (apud SILVA, 2000), para quem hd uma clara distingao entre enunciados verificarivase performativos. Os primeires | descrevem acontecimentos. Por exemplo: “fui ontem 20 ci- 4 nema”; “choveu muito na semana passads"; “Ronaldo ce-¢ sou-se com Carolina”, Os segundos ~ os performarivos ~des- | Crevem uma ag50 do emissor e, 0 mesmo tempo, quando f emunciados, fazem com que ago se cumpra. Observemos of femunciado: “eu te prometo que no fumarel mais» parte def fmanba". Mesmmo que a promessa no venka a ser cumprida,f com a fala, com enunciado emitido, a promessa foi feita pela pessoa que flow, Ao falar, ela fez 0 ato acontecer. © tea | | | 2 iJo do enunciado, assim, nao se divsa independentemente Jp agi que faz realizar (DUCROT & TODOROV, 1973) Outros exemplos de enunciados performativos podem ser dados. “Sua dissertagSo foi aprovada pela banca examinadora oce faz jus ao titulo de mestre em Educaca0”. Ou seja, 0 presidente da banca, com sua fala, 0 aprovar o candidato, {ransforma-o em mestre. Outro exemplo clissico € 0 enunci- ilo do padre, aps a confissio: “eu te absolvo de teus peca- dos’. Com sua fala, o padre perdoa as nossas ofensas,livan- ddo-nos de nossos erros, em nome de Deus. ‘De que modo os enunciados performativos interferem na identidade? Resumnidamente: o que dizemos contribui para reforcar uma identidade que, em muitos casos, pensariamos tstar apenas descrevendo. A forca de um ato linglisti processo de producio de identidade vem de sua repeticio, especialmente da possibilidade de sua repeticéo (SILVA, 2000). Tanto se tem dito que os assaltantes costurnam ser negros (como se transgredlir ale fosse algo decorrente da cor ida pele), que os motoristas negros tendem a ser parados pela policia em uma Blitz. Vejamos outro exemplo, familiar 20s/as professores/as. Quando dizemos que “Renata é uma menina Iuito esperta", podemos estar favorecendo - em um sentido amplo ~a produgo de um “fato” que pensivamos estar sim= plesmente descrevendo. Podemes, por conseguinte, concor- ter para a definicio e paraa preservacio de aspectos identita- ios do/a estudante. Os elos entre identidade e o processo pedagégico configuram-se, por conseguinte, evidentes importante ressaltar que aidentidade se associa intima- mente com a diferensa: 0 que somos se define em relago 20 {Que nio somos. Dizer somos eariacas implica dizer ndo somos Berambueanos; dizer somos adultos implica dizer: ndo somos riangas. As afirmacées sobre identidade, assim, envolvem afirmacses, ndo explicitadas, sobre outras identidades dife- tentes da nossa. Ou seja, a identidade depende da diferenca, 8 diferenca depende da identidade. Identidade e diferenca Sao insepariveis (SILVA, 2000). 6 } sanannanmananaly Convém, ainda, admitir que ha diferencas e diferencas, ‘Algumas sio “mais diferentes que outras". Se dissermos: sou diferente de Camila por usar dculas, estaremos no plano de ‘uma diferenca de pouca relevincia social. Nio hé maiores problemas em usarmos ou no Sculos. Nao se cria uma hie. rarquia entre nés. Porém, se dissermos: sou diferente de Pau, lo porque sou branco e Paulo é negro, jénos situamos no terre- no de uma diferenca bastante significativa, que tem sido, in- clusive, objeto de preconceitos, discriminagies e opressio. Torna-se clato que as diferencas sio construidas social- mente e que, subjacentes a elas, se encontram relagées de poder. © processo de producio da diferenga é um processo social, nfo algo natural ou inevitavel. Mas, se assim €, pode- mos desafié-l, contesté-lo, desestabilizé-lo. Podemos buscar tornar verdadeira a proposicao de Sousa Santos (1997): as pessoas tém direito & igualdade sempre que a diferenga as tornar infetiores, mas tém direito a diferenca sempre que a ‘igualdade ameacar suas identidades. Seré que em noseas es- pLEURI, RM. (org.) (1998). Intercultura e movimentos so- ‘aais. Florianépolis: Mover/NUP. GILROY, P. (1997). Diaspora and the detours of identity. in, WOODWARD, K. (ed.). Identity and difference. Lon- don: Sage. GOMES, N.L. (2002). Trajetérias escolares, corpo negro ¢ ‘abelo crespo: reproducio de esterestipos ou ressignificacio cultural? Revista Brasileira de Educacdo, n. 21, p. 40-51 LOURO, G.L. (2003). Genero, sexualidade e educagdo, Pe- trépolis: Vores. 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