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História da Filosofia

Segundo volume
Nicola Abbagnano
DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO:
ÂNGELO MIGUEL ABRANTES

HISTÓRIA DA FILOSOFIA

VOLUME II

TRADUÇÃO DE: ANTÓNIO BORGES COELHO

CAPA DE: J., C.

COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO TIPOGRAFIA NUNES ,@@0sé Falcão, 57 - Porto

EDITORIAL PRESENÇA . Lisboa 1969

TÍTULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA

Cop3right by NICOLA ABBAGNANO

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA,


LDA. - R. Augusto Gil, 2 c@E. - Lisboa

XIII

A ESCOLA PERIPATÉTICA

§ 86. TEOFRASTO

Assim como a velha Academia continua a última fase do ensinamento platónico,


também A escola peripatética apresenta as características do último período da
actividade de Aristóteles, dedicado principalmente à organização do trabalho
científico e a investigações particulares.

à morte de Aristóteles, sucedeu ao mestre na direcção da escola Teofrasto de


Eresso, em Lesbos que a dirigiu até à sua morte, ocorrida entre 288 e 286 a.C. A
sua actividade científica orientou-se sobretudo para o campo da Botânica.
Conservaram-se duas obras: História das Plantas e As Causas das Plantas, que
fizeram dele o mestre daquela disciplina durante toda a Antiguidade e até ao final
da Idade Média. Foi também autor das Opiniões Físicas, uma espécie de história
das doutrinas físicas de Tales a Platão e a Xenócrates, da qual nos restam alguns
fragmentos. Também se conservou um escrito moral, Os caracteres.
Teofrasto formulou numerosas críticas a pontos concretos da doutrina aristotélica,
mas manteve-se fiel aos ensinamentos fundamentais do mestre. Contra a doutrina
do intelecto activo objectou que são incompatíveis com a função daquele intelecto
o esquecimento e o erro. Contra o universal finalismo das coisas, professado por
Aristóteles, notou que, na natureza, muitas coisas não obedecem à tendência para
o fim e, se esta tendência é própria dos animais, não se revela nos seres
inanimados que são os mais numerosos na natureza. Em compensação defende a
doutrina aristotélica da, eternidade do mundo contra as objecções que lhe vinham
sendo feitas.

Na obra Os caracteres, que provavelmente não nos chegou na sua forma original
mas numa redacção retocada, descreve com uma certa- argúcia trinta tipos de
caracteres morais (o importuno, o vaidoso, o descontente, o fanfarrão, etc.) Pode
dizer-se que Teofrasto aplicou à vida moral, nesta obra, o mesmo método
descritivo empregado por ele no estudo da Botânica.

§ 87. OUTROS DISCíPULOS DE ARISTóTELES

Ao lado de Teofrasto, o mais importante dos discípulo imediatos de Aristóteles é


Eudemo de Rodes, autor de numerosos escritos de história da ciência. Eudemo é
designado como "o mais fiel"> dos discípulos de Aristóteles. Foi o editor da obra
moral de Aristóteles que é designada precisamente pelo seu nome (Ética
Eudemia) e que alguns consideram como obra sua.

Aristóxeno, de Tarento retomou a doutrina pitagórica da alma como harmonia,


sustentada por Símias no Fédon platónico. As suas simpatias pelo pitagorismo
manifestam-se também no interesse que

sentiu pela música, à qual dedicou uma obra intitulada Harmatúa, de que nos
restam fragmentos. Foi também autor de biografias de filósofos, em particular de
Pitágoras e de Platão.

Dicearco de Messina afirmou, em oposição a Aristóteles e a Teofrasto, ia


superioridade da vida prática sobre a vida teórica. Na sua obra, Vida da Grécia, de
que nos restam poucos fragmentos, delineou uma história da civilização grega. ,
No Tripolítico sustentou que a melhor constituição é uma mescla de monarquia,
aristocracia e democracia como a que se havia desenvolvido em Esparta.

§ 88. ESTRATÃO

A Teofrasto sucedeu na direcção da escola Estratão de Lâmpsaco, que a


exerceu durante dezoito anos. O sentido da sua investigação é indicado pelo
apodo de "o físico".

De facto procurou conciliar Aristóteles e Demócrito. De Demócrito tomou a


doutrina dos átomos e do espaço vazio; mas, diferentemente de Demócrito e
conformemente a Aristóteles, considerou que o espaço vazio não se estende até
ao infinito, pira lá dos confins do mundo, mas apenas no interior deste entire os
átomos. Alé m disso, segundo Estratão, os corpúsculos são dotados de certas
qualidades, especialmente de calor e de frio.

Na sua doutrina sobre a ordem e a constituição do mundo, Estratão aproximava-


se muito mais de Demócrito do que de Aristóteles. Não se servia da divindade
para explicar o nascimento do mundo e recorria à necessidade da natureza ou
pelo menos identificava com ela a acção de Deus. Estratão afirmou energicamente
a unidade da alma. Por causa desta unidade não é possível uma separação nítida
entre sensação e pensamento. " Sem o pensa-

mento -dizia ele - não há sensação." Mas, por outro lado, tanto o pensamento
como a sensação não são mais que movimento e deste modo voltam a entrar no
mecanismo geral da natureza.

Depois de Estratão, a escola peripatética continuou o seu trabalho através de


numerosos representantes dos quais nos restam escassas notícias e fragmentos.
Mas estes dedicaram-se todos a investigações naturalistas particulares e assim
não trouxeram contributos relevantes à ulterior elaboração da filosofia aristotélica.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 86. Para os escritos da ~Ia aristotélica em geral cfr. a colectânea Die Schule des
Aristoteles, Texte und Kommentar, editada por Wehrli em BasEcia-

Fontes para a vida, os escritos e a doutrina de Teofrasto: DióGENEs LAÉRCIO, V,


36 ss.; REGENBOGEN, Theophrastos von Eresos, Stuttgart, 1940.

Os escritos que nos ficaram, isto é, as duas obras de botânica, os Caracteres e os


fragmentos foram editados por Schneid-er, Leipzig, 1918-21; outra edição,
Wimmer, Leipzig, 1854. Sobre Teofrasto: ZELLER 11,
2, p. 806 ss.; GomPERz, III, cap. 39-42.

§ 87. Os fragmentos de Eudemo, in MULLACH, Fragmenta phil. graec., III, p. 222


ss.. Os fragm-entos da Harmonia de Aristóxeno foram editados por Marquard,
Berlim, 1868 e por Macran, Oxford, 1903. Os fragmentos de Dicearco, por Fuhr,
Darmstadt, 1841. Sobre estes três discípulos de Aristételes: ZELLER, U, p. 869
ss..

§ 88. Sobre a vida, os escritos e a doutrina de Estratão: DIóGENEs LAÉRCIO, V,


58 ss. Sobre Estratã<): ZELLER, 11, 2, p. 897; GomPERz, UT, cap. 43.

]o

XIIII

O ESTOICISMO
§ 89. CARACTERíSTICAS DA FILOSOFIA PóS-ARISTOTÉLICA

A conquista macEdónia e a consequente mudança da vida política e social do


povo grego encontra expressão no carácter fundamental da filosofia pós-
aristotélica. É costume exprimir tal característica dizendo que este período da
filosofia é assinalado pela prevalência do problema moral.

A investigação filosófica no período que vai de Sócrates a Aristóteles dirigira-se


para realização da vida teorética, entendida como unidade da ciência e da virtude,
isto é, do pensamento e da vida. Mas destes dois termos, que já Sócrates
unificava completamente, o primeiro prevalecia nitidamente sobre o segundo.
'Para Sócrates a virtude é e deve ser ciência e não há virtude fora da ciência.
Platão conclui no Filebo os aprofundamentos sucessivos da sua investigação
dizendo que a vida humana perfeita é uma vida mista de ciência e de prazer, na
qual a ciência prevalece. Aristóteles considera

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a vida teorética como a mais alta manifestação da vida do homem e ele mesmo
encara e defende com a sua obra os interesses desta actividade, levando a sua
investigação a todos os ramos do cognoscível. Só a partir dos Cínicos o equilíbrio
harmónico entre ciência e virtude se rompe pela primeira vez: eles puseram o
acento no peso da virtude em detrimento da ciência e tornaram-se partidários de
um ideal moral propagandístico e popularucho, chegando a ser gravemente infiéis
aos ensinamentos do seu mestre.

Mas a rotura definitiva da harmonia da vida teorética a favor do segundo dos seus
termos, a virtude, encontra-se na filosofia pós-aristotélica. A fórmula socrática-a
virtude é ciência-é substituída pela fórmula a ciência é virtude. O objectivo
imediato e urgente é a busca de urna orientação moral, à qual deve estar
subordinada, como ao seu fim, a orientação teorética. O pensamento deve servir a
vida, não a vida o pensamento. Na nova fórmula, os termos que na antiga
encontravam a

sua unidade são opostos um ao outro, de modo que se sente a necessidade de


escolher entre eles o termo que mais importa e subordinar-lhe o outro. A filosofia é
ainda e sempre procura; mas procura de uma orientação moral, de uma conduta
de vida que não tem já o seu centro e a sua unidade na ciência, mas subordina a
si a ciência como o meio ao fim.

§ 90. A ESCOLA ESTOICA

Das três grandes escolas pós-aristotélicas, a estoica foi de longe, do ponto de


vista histórico, a mais importante. A influência do estoicismo tornou-se decisiva no
último período da filosofia grega, quando as correntes neoplatónicas fizeram suas
muitas das suas doutrinas fundamentais, e na Patns-
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tica, na Escolástica Árabe e Latina, no Renascimento. Esta influência só é


comparável à de Aristóteles e exerceu-se muitas vezes sobre a doutrina
aristotélica, sugerindo-lhe desenvolvimentos e modificações que foram nela
incorporadas e se tornaram assim suas partes integrantes. No próprio seio da
filosofia moderna e contemporânea, a acção do estoicismo continua, quer de
maneira indirecta quer sob a forma de doutrinas que o senso comum, a sabedoria
popular e a tradição filosófica aceitaram e aceitam sem se preocuparem com pô-
las em discussão. Aqui podemos apenas indicar algumas destas doutrinas, às
quais se terá ocasião de fazer referência mais vezes no decurso desta História. A
primeira delas é a da necessidade da ordem cósmica, com as noções que lhe
estão inclusas de destino e de providência. Esta doutrina serviu de fundamento a
todas as elaborações teológicas que se efectuaram ia partir do neoplatonismo e é
válida como critério interpretativo do próprio aristotelismo. A definição da lógica
como dialéctica, a teoria do significado, da proposição e do raciocínio imediato
dominaram o desenvolvimento da lógica nos últimos séculos da Idade Média,
constituindo uma segunda parte acrescentada à lógica de derivação aristotélica.
Os estoicos contribuíram mesmo, a partir dos aristotélicos antigos, para integrar
ou interpretar as teorias lógicas aristotélicas. As doutrinas do ciclo cósmico ou do
eterno retorno e de Deus como alma do mundo constituíram e constituem ainda
um constante ponto de referência das concepções cosmológicas e teológicas. A
análise das emoções e a sua condenação, o conceito da autosuficiência e da
liberdade do sábio ficaram e permanecem entre as mais típicas formulações da
ética tradicional. Pela noção de dever por eles elaborada se renova rigorosamente
a ética kantiana. A noção de valor, também por eles encontrada, revelou-se

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fecundíssima nas discussões éticas. A identificação de liberdade o necessidade, o


cosmopolitismo, a teoria do direito natural são doutrinas de que é quase inútil
sublinhar a importância e a vitalidade.

O fundador da escola foi Zenão de Gtium, em Chipre, de quem se conhece com


verosimilhança o ano do nascimento, 336-35 a.C., e o ano da morte, 264-63.
Chegado a Atenas com os seus vinte e dois anos, entusiasmou-se, através da
leitura dos escritos socráticos (os Memoráveis de Xenofonte e a Apologia de
Platão), pela figura de Sócrates e julgou ter encontrado um Sócrates redivivo no
cínico Cratete, de quem se fez discípulo. Seguidamente foi também discípulo de
Estilpon e de Teodoro Crono. Por volta do ano 300 a.C., fundou a sua escola no
Pórtico Pintado (Stoà poikíle), pelo que os seus discípulos se chamaram Estoicos.
Morreu de morte voluntária como bastantes outros mestres que lhe sucederam.
Dos seus numerosos escritos (República, Sobre a Vida segundo a Natureza,
Sobre a Natureza do Homem, Sobre as Paixões, etc.) restam-nos apenas
fragmentos. Os seus primeiros discípulos foram Ariston de Quios, Erilo de
Cartago, Perseu de Citium e Cleanto de Assos, na Tróade, que lhe sucedeu na
direcção da escola. Cleanto, nascido em 304-03, e morto em 223-22 de morte
voluntária, foi um homem de poucas necessidades e de vontade férrea, mas
pouco dotado para a especulação; parece que o seu contributo para a elaboração
do pensamento estoico foi mínimo.

A Cleanto sucedeu Crisipo de Soli ou do Tarso na Cilícia, nascido em 281-78,


falecido em 208-05, que é o segundo fundador do Estoicismo, tanto que se dizia:
"Se não tivesse existido Crisipo não existiria a "Stoa". Foi de uma prodigiosa
fecundidade literária. Escrevia todos os dias quinhentas linhas e compôs ao todo
705 livros. Foi também um dialéctico e um estilista de primeira ordem.

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Seguiram-se a Crisipo dois discípulos seus, primeiro Zenão de Tarso, depois


Diógenes de SeMucia, dito o Babilónico. Diógenes foi a Roma, em 156-55, numa
embaixada de que faziam parte o académico Carnéades e o peripatético Critolau.
A embaixada suscitou muito interesse na juventude de Roma, mas teve a
desaprovação de Catão, o qual temia que o interesse filosófico desviasse a
juventude romana da vida militar. A Diógenes seguiu-se Antipatro de Tarso.

A produção literária de todos estes filósofos, que deve ter sido imensa, perdeu-se
e dela só nos restam fragmentos. Estes nem sempre são referidos a um autor
singular, mas amiúde aos Estoicos em geral, de modo que se torna muito difícil
distinguir, na massa das notícias que nos chegaram, a parte que corresponde a
cada um dos representantes do Estoicismo. Por isso se deve expor a doutrina
estoica no seu conjunto, mencionando, quando possível, as diferenças ou as
divergências entre os vários autores.

§ 91. CARACTERÍSTICAs DA FILOSOFIA ESTOICA

O fundador do Estoicismo, Zenão, teve como mestre e como modelo de vida o


cínico Cratete. Isto explica a orientação geral do Estoicismo, o qual se apresenta
como a continuação e o complemento da doutrina cínica. Como os Cínicos, os
Estoicos procuram não já a ciência, mas a felicidade por meio da virtude. Mas,
diferentemente dos Cínicos, consideram que, para alcançar a felicidade e a
virtude, é necessária a ciência. Não faltou entre os Estoicos quem, corno Ariston,
estivesse ligado estreitamente ao Cinismo e declarasse inútil a Lógica e superior
às possibilidades humanas a FÍsica, aban-

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donando-se a um desprezo total pela ciência. Mas contra ele, Erilo colocava o
sumo bem e o fim último da vida no conhecer, volvendo assim a Aristóteles. O
próprio fundador da escola, Zenão, considerava indispensável a ciência para a
conduta da vida, e embora não lho reconhecesse um valor autónomo, incluía-a
entre as condições fundamentais da virtude. A própria ciência parecia-lhe virtude e
as divisões da virtude eram para ele divisões da ciência. Tal foi indubitavelmente a
doutrina que prevaleceu no Estoicismo. "A filosofia -diz Séneca- é exercício de
virtude (studium virtutis), mas por meio da própria virtude, já que não pode haver
virtude sem exercício, nem exercício de virtude sem virtude" (Ep., 89).

O conceito da filosofia vinha assim a coincidir com o da virtude. O seu fim é


alcançar sageza que é a "ciência das coisas humanas e divinas"; mas a única arte
para alcançar a sabedoria é precisamente o exercício da virtude. Ora as virtudes
mais gerais são três: a natural, a moral e a racional; também a Filosofia se divide,
pois, em três partes: a Física, a Ética e a Lógica. Diferente foi a importância
atribuída sucessivamente a cada uma destas três partes; e distinta foi a ordem em
que as ensinaram os vários mestres da Stoà. Zenão e Crisipo começavam pela
lógica, passavam à Física e terminavam com a Ética.

§ 92. A LÓGICA estoica

Com o termo Lógica, adoptado pela primeira vez por Zenão, os Estoicos
expressavam a doutrina que tem por objecto os logoi ou discursos. Como ciência
dos discursos contínuos, a lógica é Retórica; como ciência dos discursos divididos
por perguntas e respostas, a lógica é dialéctica. Mais precisamente, a

16

Página da obra "Vida e doutrina dos filósofos,,5, de

Diógenes Laércio (Códice do século V)

4,,

dialéctica é definida como "a ciência daquilo que é verdadeiro e daquilo que é
falso e daquilo que não. é nem verdadeiro nem falso." (Diog. L., VII,
42; Séneca, EP., 89). Com a expressão "aquilo que não é nem verdadeiro nem
falso", os Estoicos entendiam provavelmente os sofismas ou os paradoxos, sobre
cuja verdade ou falsidade não se pode decidir e cujo tratamento ocupa muito os
Estoicos que, neste ponto, seguem as pisadas dos Megáricos. Por sua vez, a
dialéctica divide-se em duas partes segundo trata das palavras ou das
coisas que as palavras significam: a que trata das palavras é a Gramática, a que
trata das coisas significadas é a Lógica em sentido próprio, a qual, portanto, tem
por objecto as representações, as preposições, os raciocínios e os sofismas (Diog.
L., VII, 43-44).

O primeiro problema da lógica estoica é o do critério da verdade. É este o


problema mais urgente para toda a filosofia pós-aristotélica que considera o
pensamento apenas como guia para a conduta: e ora, se o pensamento não
possui por si mesmo um critério de verdade e procede com incerteza e às cegas,
não pode servir de guia para a acção. Ora, para todos os Estoicos, o critério da
verdade é a representação catalética ou conceptual (phantasia kataleptiké). São
possíveis duas interpretações do significado desta expressão e ambas se
encontram nas exposições antigas do Estoicismo. Em primeiro lugar, a phantasia
kataleptiké pode consistir na acção do intelecto que prende e penetra o objecto.
Em segundo lugar, pode ser a representação que é impressa no intelecto pelo
objecto, isto é, a acção do objecto sobre o intelecto. Ambos os significados se
encontram nas exposições antigas do Estoicismo. Sexto Empírico (Adv. math., VII,
248) diz-nos que, segundo os Estoicos, a representação catalética é aquela que
vem de um objecto real e está impressa

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e marcada por isso em conformidade com ele próprio, de modo que não poderia
nascer de um objecto diferente. Por outro lado, Zenão (segundo um testemunho
de Cioero, Acad., 11, 144) colocava o significado da representação catalética na
sua capacidade de prender ou compreender o objecto. Ele comparava a mão
aberta e os dedos estendidos à representação pura e simples; a mão contraída no
acto de agarrar, ao assentimento; o punho fechado à compreensão catalética.
Finalmente, as duas mãos apertadas uma sobre a outra, com grande força, eram
o símbolo da ciência, a qual dá a verdadeira e completa posse do objecto.

A representação catalética está, pois, relacionada com o assentimento da parte do


sujeito cognoscente, assentimento que os Estoicos consideravam voluntário e
livre. Se o receber uma representação determinada, por exemplo, ver uma cor
branca, sentir o doce, não está em poder daquele que a recebe porque depende
do objecto de que deriva a sensação, o assentir a tal representação é, pelo
contrário, sempre um acto livre. O assentimento constitui o juízo, o qual se define
precisamente ou como assentimento ou como dissentimento ou como suspensão
(epoché), isto é, renúncia provisória para assentir à representação recebida ou a
dissentir da mesma. Segundo testemunho de Sexto Empírico (Adv. math., VII,
253), os Estoicos posteriores puseram o critério da verdade, não na simples
representação catalética, mas na -representação catalética "que não tenha nada
contra si", porque pode dar-se o caso de haver representações cataléticas que
não sejam dignas de fé pelas circunstâncias em que são recebidas. Só quando
não tem nada contra si, a representação se impõe com força às representações
divergentes e constrange o sujeito cognoscente ao assentimento. Disto resulta
claramente que a representação catalética é aquela que é dotada de uma

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evidência não contraditada, tal que solicito com toda a força o assentimento, o
qual, no entanto, permanece livre. Consequentemente, definiam a ciência como
"uma representação catalética ou um hábito imutável para acolher tais
representações, acompanhadas pelo raciocínio" (Diog. L., VII, 47); e consideravam
que não há ciência sem dialéctica, cabendo à dialéctica dirigir o raciocínio.

Pelo que respeita ao problema da origem do conhecimento, o Estoicismo é


empirismo. Todo o conhecimento humano deriva da experiência e a experiência é
passividade porque depende da acção que as coisas externas exercem sobre a
alma considerada como uma tabuinha (tabula rasa) e na qual se vêm registar as
representações. As representações são marcas ou sinais impressos na alma,
segundo Ocanto; segundo Crisipo, são modificações da alma. Em qualquer caso,
são recebidas passivamente e produzidas ou pelos objectos externos ou pelos
estados internos da alma (como a virtude e a perversidade). Por isso nenhuma
diferença existe entre a experiência externa e a experiência interna. Toda a
representação, depois do seu desaparecimento, determina a recordação, um
conjunto de muitas recordações da mesma espécie constitui a experiência (Aezio,
Plac., IV, II). Da experiência nasce, por um procedimento natural, a noção

comum ou antecipação; a antecipação é a noção natural do universal (D@og. L.,


VII, 54).

Todavia, segundo eles, os conceitos não têm nenhuma realidade objectiva: o real
é sempre individual e o universal subsiste apenas nas antecipações ou nos
conceitos. O Estoicismo é, pois, um nominalismo, segundo a expressão que foi
usada na Escolástica para designar a doutrina que nega a realidade do universal.
Os conceitos mais gerais, aqueles que Aristóteles designara com categorias, são
reduzidos pelos Estoicos a quatro: 1.* o sujeito

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ou substância; 2.* a qualidade; 3.* o modo de ser,


4.O o modo relativo (Plotino, Enn., VI, 1. 202). Estas quatro categorias estão entre
si numa relação tal que a seguinte encerra a precedente e a determina.
Efectivamente, nada pode ter um carácter relativo se não tem um modo seu de
ser; não .pode ter um modo de ser se não possui uma qualidade fundamental que
o diferencie dos outros; e só pode possuir esta qualidade se subsiste por si, se é
substância.

O conceito mais elevado e mais extenso ou, como diziam, o género supremo, é o
conceito de ser, porquanto tudo, em certo modo, é, e não existe, portanto, um
conceito mais extenso do que este.
O conceito mais determinado é, pelo contrário, o de espécie que não tem outra
espécie abaixo de si, isto é, o do indivíduo, por exemplo de Sócrates (Diog. L., VII,
61). Outros Estoicos, pretendendo encontrar um conceito ainda mais extenso que
o de ser, recorreram ao de alguma coisa (aliquid) que pode compreender também
as coisas incorpóreas (Séneca, Ep., 58).

A parte da lógica estoica que teve a maior influência no desenvolvimento da lógica


medieval e moderna é a que concerne à proposição e ao raciocínio. Como
fundamento desta parte da sua doutrina, os Estoicos elaboraram a doutrina do
,significado (lektón) que se manteve de fundamental importância na lógica e na
teoria da linguagem. "São três -diziam eles- os elementos que se ligam: o
significado, aquilo que significa e aquilo que é. Aquilo que significa é a voz, por
exemplo, "Dione". O significado é a coisa indicada pela voz e que nó s tomamos
pensando na coisa correspondente. Aquilo que é é o sujeito externo, por exemplo,
o próprio "Dione" (Sexto Emp:, Adv. math., VIII, 12). Destes três elementos
conhecidos, dois ,são,,c,or,p<>reos, a voz e aquilo que é; um é incor-

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pórco, o significado. O significado é, noutros termos, qualquer informação ou


representação ou conceito que nos vem à mente quando percebemos uma
palavra e que nos permite referir a palavra a uma coisa determinada. Assim, por
exemplo, se com a voz <@homem" entendemos um "animal racional", podemos
indicar com esta voz todos os animais racionais, isto é, todos os homens. O
conceito "animal racional" é o significado que consente a referência da palavra ao
objecto existente. Ele é o caminho entre a palavra (ou, em geral, a expressão
verbal) e a coisa real ou corpórea: e assim orienta, na -referência ao objecto, as
expressões linguísticas que, de outro modo, permaneceriam puros sons,
incapazes de qualquer conexão com as coisas. A referência à coisa constitui,
portanto, parte integrante do significado ou, pelo menos, é um aspecto que lhe
está intimamente ligado, porque a informação em que consiste o significado não
tem outra função senão a de tornar possível
* a de orientar tal referência. Na lógica medieval
* moderna, aquilo que os Estoicos chamavam significado foi frequentemente
designado com outros nomes como conotação, intenção, compreensão,
interpretante, sentido, enquanto a referência à coisa foi chamada suposição,
denotação, extensão, significado. Mas esta diversidade de terminologia. não
mudou o conceito de significado nos três elementos fundamentais em que os
Estoicos o tinham analisado.

Segundo os Estoicos, um significado está completo se pode ser expresso numa


frase, por exemplo, "Sócrates escreve". A palavra "escreve" não tem, em
contrapartida, significado completo porque deixa sem resposta a pergunta
"quem?". Um significado
completo é, portanto, só a proposição, a qual é definida também, com Aristóteles,
como aquilo que pode ser verdadeiro ou falso.

21

O raciocínio consiste numa conexão entro as proposições simples do tipo


seguinte: "se é noite. há trevas; mas é noite, portanto existem trovas." Este tipo de
raciocínio não tem, como se vê, nada a ver com o silogismo aristotélico porque lhe
faltam as suas características fundamentais: é imediato <não tem termo médio) e
não é necessário. A falta destas características permite aos Estoicos distinguir
pela sua verdade, a concludência de um raciocínio. o raciocínio acima exposto só
é verdadeiro se é noite mas é falso se é dia. Inversamente, é concludente em
qualquer caso porque a relação das premissas com a conclusão é correcta. Os
tipos fundamentais de raciocínios concludentes são chamados pelos Estoicos
anapodíticos ou raciocínios não demonstrativos. Sã o evidentes por si próprios e
são os seguintes: 1.* Se é dia há luz, mas é dia; portanto, há luz. 2.* Se é dia, há
luz; mas não há luz; portanto não é dia. 3.* Se não é dia, é noite; mas é dia;
portanto não é noite. 4.* Ou é dia ou é noite; mas é dia; portanto não é noite.
5.* Ou é dia ou é noite; mas não é noite; portanto. é dia (1p. Pirr, 11, 157-58; Diog.
L., VII, 80). Estes esquemas de raciocínio são sempre válidos mas sempre
verdadeiros. dado que só são verdadeiros quando a premissa é verdadeira, isto é,
quando corresponde à situação de facto. Sobre eles se modelam os raciocínios
demonstrativos que são não só concludentes mas manifestam também alguma
coisa que antes era "obscura", isto é, qualquer coisa que não é imediatamente
manifesta à representação catalética, a qual é sempre limitada ao aqui e agora.
Eis um exemplo: "Se esta mulher tem leite no seio, pariu; mas esta mulher tem
leite no seio; portanto pariu> Neste sentido o raciocínio demonstrativo é designado
pelos Estoicos como um sinal indicativo porquanto consente trazer à luz qualquer
coisa que antes estava, obscuro. Sinais remwwa-

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tivcw sã% pelo contrário, aqueles que, mal se apresentam, tornam evidente a
recordação da coisa que foi primeiramente observada em ligação com ela o agora
não é manifesta como é, por exemplo, o fumo a respeito do fogo (Sexto E., Adv.
math., VIII,
148 ss.). Evidentemente, os Estoicos confiaram ao raciocínio demonstrativo a
construção da sua doutrina; por exemplo, a demonstração da existência da alma
ou da alma do mundo (que é Deus), feita a partir dos movimentos ou dos factos
que são imediatamente dados pela representação catalética, constitui um sinal
indicativo no sentido agora referido.

Como se vê, a dialéctica estoica tem em comum com a dialéctica platónica o


carácter hipotético das suas Iiwemissas, mas distingue-se desta dialéctica porque
a conjunção das premissas entre si e a sua conexão com a conclusão exprime
situações de facto ou estados de coisas imediatamente presentes. Aliás, o
carácter hipotético do processo dialéctico não é, para os Estoicos como não era
para Aristóteles, um defeito da própria dialéctica pelo qual esta seria inferior à
ciência. Para eles, a ciência não é, precisamente, outra coisa senão dialéctica
(Diog. L., VII, 47). O conceito estoico da lógica como dialéctico difundiu-se, através
das obras de Boécio, na Escolástica Latina e foi o fundamento da chamada lógica
terninística, característica do último período da Escolástica.

§ 93. A FíSICA ESTOICA

O conceito fundamental da Física estoica é o de uma ordem imutável, racional,


perfeita e necessária que governa e sustenta infalivelmente todas as coisas e as
faz ser e conservar-se tais como são. Esta ordem é identificada pelos Estoicos
com o

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próprio Deus: assim a sua doutrina é um rigoroso panteísmo.

Os Estoicos substituem as quatro causas aristotélicas (matéria, forma, causa


eficiente e causa final) por dois princípios: o princípio activo (poioún) e o princípio
passivo (páschon) que são ambos materiais e inseparáveis um do outro. O
princípio passivo é a substância privada de qualidade, isto é, a matéria; o princípio
activo é a razão, isto é, Deus que agindo sobre a matéria produz os seres
singulares. A matéria é inerte, e se bem que pronta para tudo, ficaria ociosa se
ninguém a movesse. A razão divina forma a matéria, dirige-a para onde quer e
produz as suas determinações. A substância de que nascem todas as coisas é a
matéria, o princípio passivo; a força pela qual todas as coisas são feitas é a causa
ou Deus, o princípio activo (Diog. L., VII, 134). Contudo, a distinção entre princípio
activo e princípio passivo não coincide, segundo os Estoicos, com a distinção
entre o incorpóreo e o corpóreo. Ambos os princípios, seja a causa, seja a matéria
são corpo o nada mais que corpo, dado que só o corpo existe. Um rígido
materialismo é defendido pelos Estoicos na base da definição de ser dada por
Platão no Sofista (§ 56): existe aquilo que age ou suporta uma acção. Dado que
só o corpo pode agir ou sofrer uma acção, só o corpo existe (Diog. L., VII, 56;
Plut., Comm. Not., 30, 2, 1073; Stob., Ecl., 1, 636). A alma é, pois, corpo como
princípio de acção (Diog. L., VII, 156). É corpo a voz que também opera e age
sobre a alma (Aezio, Plac., IV, 20,2). É corpo, enfim, o bem como são corpos as
emoções e os vícios. Diz Séneca a este respeito: "0 bem opera porque é útil e
aquilo que opera é um corpo.
O bem estimula a alma numa certa maneira: modela-a e tem-na sob o freio,
acções estas que são próprias de um corpo. Os bens do corpo são corpos;

24

portanto, também os da alma, pois também ela é corpo" (Ep., 106). Os Estoicos só
admitiam quatro coisas incorpóreas: o significado, o vazio, o lugar e o tempo
(Sexto E., Adv. math., X, 218).

Como se vê, nem Deus existe entre as coisas incorpóreas. O próprio Deus, como
razão cósmica e causa de tudo, é corpo: mais precisamente é fogo. Mas não o
fogo de que o homem se serve, que destrói todas as coisas: é antes um sopro
cálido (pneuma) e vital que tudo conserva, alimenta, faz crescer e também
sustém. Mas este sopro ou espírito vital, este fogo animador é também ele corpo.
Chama-se razão seminal (logos spermatikós) do mundo porque contém em si as
razões seminais segundo as quais todas as coisas se geram. Como todas as
partes de um ser vivo nascem da semente, assim toda a parte do universo nasce
de uma mesma semente racional, ou razão seminal. Estas razões seminais são
frequentemente misturadas umas com as outras, mas, ao desenvolverem-se,
separam-se e dão origem a seres diferentes, e assim todas as coisas nascem da
unidade e se incluem na unidade. Contudo, a distinção entre as diferentes coisas
é perfeita; não existem no mundo duas coisas semelhantes, nem mesmo duas
folhas de erva.
O mundo foi gerado quando a matéria originária se diferenciou e se transformou
nos vários elementos. Ao condensar-se e tornar-se pesada, converteu-se em
terra; ao enrarecer, converteu-se em ar e logo em humidade e água; ao fazer-se
mais subtil, deu origem ao fogo. Destes quatro elementos compõem-se todas as
coisas: duas delas, o ar e o fogo são activas; as outras duas, terra e água, são
passivas. A esfera do fogo está acima da das estrelas fixas. O mundo é finito e
tem a forma de esfera. Em torno dele há o vazio, mas dentro não há vazio porque
é tudo unido e compacto (Diog. L., VII, 137 ss.).

25

A vida do mundo tem um ciclo próprio. Quando, depois de um longo período de


tempo (grande anno), os astros tornam ao mesmo signo e â mesma posição em
que se encontravam no princípio, acontece uma conflagração (ekpúrasis) o a
destruição de todos os seres; e de novo se forma a mesma ordem cósmica e de
novo tomam a verificar-se os acontecimentos ocorridos no ciclo precedente sem
nenhuma modificação. Existe de novo Sócrates, de novo Platão e de novo cada
um dos homens com os mesmos amigos e concidadãos, as mesmas cirenças, as
mesmas esperanças, as mesmas ilusões (Nemésio, De nat. hom., 38, 277).

Tal é de facto o destino (eimarmène), a lei necessária que rege as coisas. O


destino é a ordem do mundo e a concatenação necessária que tal ordem põe
entre todos os seres e, portanto, entre o passado e o porvir do mundo. Todo o
facto se segue a um outro e está necessariamente determinado por ele como pela
sua causa; e a todo o facto se segue um outro que ele determina como causa.
Esta cadeia não se pode quebrar porque com ela seria quebrada a ordem racional
do mundo. Se esta ordem, do ponto de vista das coisas que encadeia, é destino,
do ponto de vista de Deus, que é o seu autor e garante infalível. é providência que
rege e conduz todas as coisas ao seu fim perfeito. Portanto, destino, providência e
razão identificam-se entre si, segundo os Estoicos, e identificam-se com Deus,
considerado como a natureza intrínseca, presente e operante em todas as coisas
(Alexandre Afr., De fato, 22, p. 191). Segundo este ponto de vista, os Estoicos
justificavam a adivinhação, definida como a arte de prover o futuro mediante a
interpretação da ordem necessária das coisas. Mas só o filósofo pode sei adivinho
do futuro porque só elo conhece a ordem n~ia do mundo (Cícero, De divin., 11,
63, 130).

26

Identificando Deus com o cosmos, isto é, com a ordem necessária do mundo, a


doutrina estoica é um rigoroso panteísmo. É. ao mesmo tempo, uma justificação
do politeísmo tradicional: os deuses da tradição seriam outros tantos aspectos da
acção ordenadora divina. A divindade toma o nome de Júpiter fDià) enquanto tudo
existe poT obra (diá) sua, de Zeus enquanto causa de viver (zên), de Atena
enquanto governa sobre o éter, de Hera enquanto governa sobre o ar, de Efaístos
enquanto fogo-artífice e assim por diante (Diog. L., VII, 147).
E se o mundo, na sua ordem necessária, se identifica com a própria razão divina,
só pode ser perfeito. Os Estoicos não negavam a existência do mal no mundo,
consideravam apenas que ele era necessário para a existência do bem. Os bens
são contrários aos males, dizia Crisipo, no seu livro Sobre a Providência. É pois
necessário que uns sejam sustentados pelos outros porque sem um contrário não
existiria tão-pouco o outro contrário. Não haveria justiça se não houvesse a
injustiça, pois que ela não é mais que a libertação da injustiça. Não haveria
moderação -se não houvesse a intemperança, nem a prudência se não houvesse
a imprudência e assim por diante. Não haveria verdade sem a mentira (Gellio,
Noct. att., VII, 1). "Deus harmonizou no mundo todos os bens com todos os males
de maneira que nasça dai a razão eterna de tudo", cantava Cleanto no Hino a
Júpiter.

§ 94. A PSICOLOGIA ESTOICA

Disse-se já que, segundo os Estoicos, a alma entra no rol das coisas corpóreas
com base no princípio de que é corpo aquilo que age e que a alma age, Crisipo
servia-se da própria definição platónica da morte como "separação da alma do

27

corpo" para tirar dela a confirmação da corporeidade da alma. "0 incorpóreo não
poderia separar-se do corpo nem unir-se com ele; mas a alma une-se ao corpo e
não se separa dele, portanto a alma é corpo" (Nemésio, De nat. nom., 2, 81). A
Alma humana é uma parte da Alma do mundo, isto é, de Deus; como Deus é fogo
ou sopro vivificante; e sobrevive à morte no seio da Alma do Mundo (Diog. L., VII,
156).

As partes da alma são quatro: 1.* o princípio directivo ou hegemónico que é a


razão; 2.* os cinco sentidos; 3.O o sémen ou o princípio espermático;
4.<' a linguagem (Diog. L., VII, 157; Sexto E., Adv. math., IX, 102). O princípio
hegemónico gera e controla as outras partes da alma que se prolonga nelas
"como os tentáculos de um polvo". Assim, além de produzir as representações e o
assentimento, ele determina também os sentidos e o instinto. Segundo alguns
testemunhos, os Estoicos teriam posto o princípio hegemónico na cabeça,
comparada àquilo que o sol é no cosmos (Aezio, Plac., IV, 21); mas, segundo
outros, tê-la-iam colocado no coração ou no sopro em torno do coração (1b., IV, 5,
6).

Os Estoicos partilham o conceito, já defendido por Platão e Aristóteles, de que a


liberdade consiste no ser "causa de si" ou dos próprios actos ou movimentos. Eles
conheciam também o termo autopraghia, que se pode traduzir por
autodeterminação, para indicar a liberdade e diziam que só o sage é livre porque
só ele se determina por si (Diog. L., VII, 121). Todavia, a liberdade do sage não
consiste noutra coisa senão no seu conformar-se com a ordem do mundo, isto é,
com o destino (Diog. L., VII, 88; Stobeo, Flor., VI, 19; Cicer., De fato, 17). Assim,
com os Estoicos, apresenta-se pela primeira vez a doutrina que identifica a
liberdade com a necessidade, transferindo a própria liberdade da parte para o
todo, isto é, do homem

28

para o princípio que opera e age no homem. Não faltou, porém, entre os mestres
do Stoa quem quisesse reconhecer a iniciativa do sage uma certa margem de
liberdade no confronto com a própria ordem cósmica. Crisipo distinguia entre as
causas perfeitas e fundamentais e as concomitantes ou próximas. As primeiras
agem com necessidade absoluta; as segundas podem sofrer a nossa influência; e
mesmo quando não a sofrem está no nosso poder secundá-las ou não. Assim
como quem dá um impulso a um cilindro lhe imprime o começo do movimento mas
não a capacidade de rodar, assim os objectos externos imprimem dentro de nós a
representação mas não determinam o assentimento que permanece em nosso
poder. Nestes limites, a vontade e a índole de cada um podem influir, em
conformidade com a ordem do todo, na escolha e na execução das acções
(Cícer., De fato,
41-43; Aulo G., Noet. att., VII, 2).

§ 95. A ÉTICA ESTOICA

Deus confiou a realização e a conservação da ordem perfeita do cosmos no


mundo animal a duas forças igualmente infalíveis: o instinto e a razão.
O instinto (hormé) guia infalivelmente o animal na conservação, na alimentação,
na reprodução e em geral a tomar cuidado consigo para os fins da sua
sobrevivência (Diog. L., VII, 85). A razão é, por outro lado, a força infalível que
garante o acordo do homem consigo próprio e com a natureza em geral.

A Ética dos Estoicos é, substancialmente, uma teoria do uso prático da razão, isto
é, do uso da razão com o Em de estabelecer o acordo entre a natureza o o
homem. Zenão afirmava que o fim do homem é o acordo consigo próprio, isto é, o

29

viver "segundo uma razão única e harmónica". "Ao acordo consigo próprio,
Cleanto acrescentou o acordo com a natureza e por isso define o fim do homem
como "a vida conforme a natureza". E Crisipo exprimo a mesma coisa
dizendo: "viver conforme com a experiência dos acontecimentos naturais" (Stobeo,
Ecl., 11, 76, 3). Mas parece que já Zenão tinha adoptado a fórmula do "viver
segundo a natureza" (Diog. L., VII, 87). E indubitavelmente esta é a máxima
fundamental da doutrina estoica.

Por natureza, Cleanto entendia a natureza universal, Crisipo não só a natureza


universal mas também a humana que é parte da natureza universal. Para todos os
Estoicos, a natureza é a ordem racional, perfeita e necessária que é o destino ou o
próprio Deus. Por isso Cleanto orava assim: "Conduz-me, 6 Zeus, e tu, Destino,
aonde por vós sou destinado e vos servirei sem hesitação: porque ainda que eu
não quisesse, vos deveria seguir igualmente como estulto" (Stobeo, Flor., VI, 19).
Ora a acção que se apresenta conforme com a ordem racional é o dever
(kathêkon): a ética estoica é, pois, fundamentalmente uma ética do dever e a
noção do dever, como conformidade ou conveniência da acção humana com a
ordem racional, torna-se, pela primeira vez, nos Estoicos, a noção fundamental da
Ética. Efectivamente, nem a Ética platónica nem a Ética aristotélica fazem
referência à ordem racional do todo, assumindo como seu fundamento, para a
primeira, a noção de justiça, para a segunda, a de felicidade. A noção de dever
não surgia no seu âmbito e nelas dominava a noção de virtude como caminho
para realizar a justiça ou felicidade. "Os Estoicos chamam dever -diz Diógenes
Laércio- (VII, 107-09) àquilo cuja escolha pode ser racionalmente justificada... Das
acções realizadas pelo instinto algumas são próprias do

30

dever. outras nem próprias do dever nem contrárias ao dever. Próprias do dever
são aquelas que a razão aconselha efectuar, como honrar os pais, os irmãos, a
pátria e viver em harmonia com os amigos. Contra o dever são aquelas que a
razão aconselha a não fazer... Nem próprias do dever nem contrárias ao dever
são aquelas que a razão nem aconselha nem condena, como levantar uma palha,
pegar numa pena, etc.". Como nos refere Cícero, (De offi, 111, 14), os Estoicos
distinguiam o dever recto, que é perfeito e absoluto e não pode encontrar-se em
mais ninguém a não ser no sage, e os deveres "intermédios" que são comuns a
todos e muitas vezes só são realizados com a ajuda da boa índole e de uma certa
instrução. Esta prevalência da noção do dever levou os Estoicos a uma doutrina
típica da sua Ética: a justificação do suced-io. Efectivamente, quando as
condições contrárias ao cumprimento do dever prevalecem sobre as favoráveis, o
sage tem o dever de abandonar a vida mesmo se está no cume da felicidade
(Cicer., De fin., 111, 60). Sabemos que muitos mestres do Stoa seguiram este
preceito que é, na realidade, a consequência da sua noção do dever.

Todavia, o dever não é o bem. O bem começa a existir quando a escolha


aconselhada pelo dever vem repetida e consolidada, mantendo sempre a sua
conformidade com a natureza, até tornar-se no homem urna disposição uniforme e
constante, isto é, uma virtude (Cicer., De fin., 111, 20, Tusc., IV, 34). A virtude é,
efectivamente, o único bem. Mas só é própria do sage, isto é, daquele que é
capaz do dever recto e se identifica com a própria sageza porque esta não é
possível sem o conhecimento da ordem cósmica à qual o sage se adequa. A
virtude pode ter nomes diferentes segundo os domínios a que é referida (a sageza
incide sobre os objectivos do homem, a temperança sobre os impulsos, a for-

31

taleza sobre os obstáculos, a justiça sobre a distribuição dos bens (Stobeo, Ecl.,
11, 7, 60). Mas, na realidade, existe uma só virtude e só a possui integralmente
aquele que sabe entender e compreender e cumprir o dever, isto é, só o sage
(Diog. L., VII, 126).
Entre a virtude e o vício não há, portanto, meio termo. Como um pedaço de
madeira ou é direito

ou curvo sem possibilidade intermédia, assim o homem é justo ou é injusto e não


pode ser justo ou injusto só parcialmente. De facto, aquele que tem a recta razão,
isto é, o sage, faz tudo bem e virtuosamente, enquanto quem é privado da recta
razão, o estulto, faz tudo mal e de maneira viciosa. E pois que o contrário da razão
é a loucura, o homem que não é sage é louco. Pode-se certamente progredir para
a sabedoria. Mas como quem está submerso pela água, ainda que esteja pouco
abaixo da superfície, não pode respirar como se estivesse nas águas profundas,
assim aquele que avançou para a virtude, mas não é virtuoso, não está menos na
miséria do que aquele que está mais longe dela (Cicer., De fin., 111, 48).

A virtude é o único bem em sentido absoluto porque ela constitui a realização no


homem da ordem racional do mundo. Este princípio levou os Estoicos a formular
uma outra doutrina típica da sua Ética: a das coisas indiferentes (adiaphorá). Se a
virtude é o único bem, só devem considerar-se bens propriamente a sabedoria, a
justiça, etc., e males os seus contrários; enquanto não são bens nem males as
coisas que não constituem virtude, como a vida, a saúde, o prazer, a beleza, a
riqueza, a glória, etc., e todos os seus contrários. Estas coisas são, portanto,
indiferentes. Mas, no domínio destas mesmas coisas indiferentes, algumas são
dignas de ser preferidas ou escolhidas como, precisamente, a vida, a saúde, a
beleza, a riqueza. etc.;

32

outras não, como os seus contrários. Existem, pois, além dos bens (a virtude),
outras coisas que não são bens mas que, todavia, são também dignos de ser
escolhidos. E para indicar o conjunto dos bens e de tais coisas os Estoicos
utilizaram a palavra valor (axia). Valor é, portanto, "todo o contributo para uma vida
conforme com a razão" (Diog. L., VII, 105) ou em geral "aquilo que é digno de
escolha" (Cicer., De fin., 111, 6, 20). Com esta noção de valor fazia o seu ingresso
na Ética um conceito que devia revelar-se de grande importância na história desta
disciplina.

Faz parte integrante da Ética estoica a negação total do, valor da emoção
(pathos). Efectivamente, ela não tem qualquer função na economia geral do
cosmos que providenciou de modo perfeito na conservação e no bem dos seres
vivos, dando aos animais o instinto e ao homem a razão. Pelo contrário, as
emoções não são provocadas por forças ou situações naturais: são opiniões ou
juízos ditados pela ligeireza, por isso fenómenos de estultícia e de ignorância que
constituem em "julgar saber o que se não sabe" (Cicer., Tuse., IV, 26). Os
Estoicos distinguiam quatro emoções fundamentais às quais reduziam todas as
outras: duas originadas pelos bens presuntivos: o desejo dos bens futuros e a
alegria dos bens presentes; duas originadas pelos males presuntivos: o temor
dos males futuros e a aflição dos males presentes. A três destas emoções, e
precisamente ao desejo, à alegria e ao temor faziam corresponder três estados
normais próprios do sage, isto é, respectivamente a vontade, a alegria e a
prudência que são estados de calma e de equilíbrio racional. Nenhum estado
normal corresponde, pelo contrário, no sapiente àquilo que é aflição para o estulto:
efectivamente, para ele não existem males de que deva doer-se, dado que
conhece a perfeição do universo. As emoções são, portanto,

33

verdadeiras e típicas doenças que afectam o estulto mas de que o sage está
imune. A condição do sage, é, pois, a indiferença a toda a emoção, a apatia.

A ordem racional do mundo, do mesmo modo que dirige a vida de todo o homem
singular, dirige o da comunidade humana. Aquilo que se chama justiça é a acção,
nesta comunidade, da própria razão divina. A lei que se inspira na razão divina é a
lei natural da comunidade humana: uma lei superior à reconhecida pelos
diferentes povos da terra, perfeita, portanto não susceptível de correcções ou
melhoramentos. Cícero, numa página famosa, exprimia assim o conceito desta lei:
"Por certo, existe uma verdadeira lei, a da recta razão conforme com a natureza,
difundida entre todos, constante, eterna, que com o seu mandado convida ao
dever e com a sua proibição dissuade do engano... Não será diferente em Roma
ou em Atenas ou hoje ou amanhã, mas como única, eterna, imutável lei governará
todos os povos e em todos os tempos" "Lactâncio, Div. inst., VI, 8, 6-9; Cicer., De
rep., 111, 33). Estes conceitos constituem e constituirão a base da teoria do direito
natural que, por muitos séculos, foi um fundamento de toda a doutrina do direito.

Se a lei que governa a humanidade é única, una é ia comunidade humana. "0


homem que se conforma com a lei é cidadão do mundo (cosmopolita) e dirige as
suas acções segundo o querer da natureza conforme o qual todo o mundo se
governa" (Filon, De mundi opif., 3). Por isso, o sage não pertence a esta ou àquela
naçã o mas à cidade universal na qual todos os homens são concidadãos. Nesta
cidade não existem livres e escravos mas todos são livres. Para os Estoicos a
única escravidão natural é a do estulto enquanto não se determina em
conformidade com aquela Icí que é

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a sua própria natureza e do mundo. A escravatura imposta pelo homem sobre o


homem, para os Estoicos, nã o passa de malvadez (Diog. L., VII, 121),

NOTA BIBLIOGRáFICA

§ 89. Sobre a filosofia pôs-aristotélica: MELLI, La filosofia greca da Epicuro ai


Neoplatonici, Flo~ rença, 1922; SCHMFKEL, For8chungen zur Philosophie des
Heltení8mus, Berlim, 1938.

§ 90. Sobre a vida, os escritos e a doutrina dos antigos Estoicos as fontes


principais são: 1.1 DIóGENES LAÉRciO, VII; 2., SEXTO EMPIRICO, Ipotiposi
Pirronianas e Contra os -matemáticos (estas obras são em boa parte tecidas com
a -exposição e a crítica das doutrinas estoicas); 3.' CICERO, cujas obras
filosóficas são Inspiradas inteiramente pelo Estoicismo, que atingiu através dos
escritos dos Eclécticos, principalmente de Possidónio, e Panézio; 4., diversos
artigos de SUIDAS no Léxico; 5., FILODEMO, os restos do escrito Sobre os
Estoicos.

Os fragmentos deduzidos destas fontes e de outras menores ou mais ocasionais


foram recolhidos por VON ARNIM, Stoicorum Veterum Fragmenta: vol. 1, "Zenão e
os discípulos de Zenão", Leipzig, 1905; vol. II, " Os fragmentos lógicos e físicos de
Crisipo", Leipzig,
1903; vol. 111, "Os fragmentos morais de Crisipo e os fragmentos dos sucessores
de Crisipo", Leipzig,
1903; vol. lV, "Indíce", compilado por AMER, Leipzig, 1924.

§ 91. Sobre a doutrina estoica em geral: BARTI1, Díe Stoa, Stutgard, 1908; 4.1 ed.
1922; BRÉMER, Chrí- &ippe, Paris, 1910; 2.1 ed. 1951; POFILENZ, Die Stoa,
Gottingen, 1948; 2., ed. 1954; J. BRUN, Le stoicisme, Paris, 1958.

§ 92. Sobre a lógica estóioa: B. MATrS, StoiC Logic, BerkeIey (Cal.), 1953; W
KNEALE. e M. KNEALE, The Development of Logic, Oxford, 1962, cap. 3.

§ 93. Sobre a física: J. MOREAu, LIâme du monde de Platon aux Stoiciens, Paris,
1939; S. SAMBURSKI, The Physies of lhe Stoics, Londres, 1959,

§ Sobre -a ética: RIETH, Grundbegriffe der stoischen Ethik, B@rlim, 1934; KIRK,
The Moral Philosophy of lhe Stoics, New Brunswick, 1951.

35

XIV

O EPICURISMO

§ 96. EPICURO

Epicuro, filho de Neocles, nasceu em Janeiro ou Fevereiro de 341 a.C. em Samos,


onde passou a sua juventude. Começou a ocupar-se de filosofia aos 14 anos. Em
Samos escutou as lições do platónico Panfilo e depois do democritiano Nausífone.
Provàvelmente foi este último que o iniciou na doutrina de Demócrito, do qual, por
algum tempo, se considerou discípulo. Só mais tarde afirmou a completa
independência da sua doutrina da do seu inspirador, a quem julgou então poder
designar com o arremedo de Lerocrito (tagarela) (Diog. L., X, 8).

Aos 18 anos, Epicuro dirigiu-se a Atenas. Não está demonstrado que tenha
frequentado as lições de Aristóteles e de Xenócrates que era naquele tempo o
chefe da Academia. Começou a sua actividade de mestre aos 32 anos, primeiro
em Mitilene e em Lâmpsaco, e alguns anos depois em Atenas (307-06 a.C.), onde
permaneceu até à sua morte (271-70).

37

A escola tinha a sua sede no jardim (kepos) de Epicuro pelo que os seus
sequazes foram chamados "filósofos do jardim". A autoridade de Epicuro sobre os
seus discípulos era muito grande. Como as outras escolas, o Epicurismo
constituía uma associação de carácter religioso, mas a divindade a que era
dedicada esta associação era o próprio fundador da escola. "As grandes almas
epicuristas -diz Séneca (Ep., 6) - não as formou a doutrina mas a assídua
companhia de Epicuro". Tanto durante a sua vida como depois da sua morte, lhe
tributaram os discípulos e os amigos honras quase divinas e procuraram modelar
a sua conduta pelo seu exemplo. "Comporta-te sempre como se Epicuro te visse"-
era o preceito fundamental da escola (Séneca, Ep., 25).

Epicuro foi autor de numerosos escritos, cerca de 300. Restam-nos apenas três
cartas conservadas por Diógenes Laércio (livro X): a primeira, a Heródoto, é uma
breve exposição de física; a segunda, a Meneceu, é de conteúdo ético; e a
terceira, a Pitocles, de atribuição duvidosa, trata de questões metereológicas.
Diógenes Laércio conservou-nos também as Máximas capitais e o Testamento.
Num manuscrito vaticano foi encontrada uma colecção de Sentenças e nos
papiros de Herculano fragmentos da obra Sobre a Natureza.

§ 97. A ESCOLA EPICURISTA

O mais notável dos discípulos imediatos de Epicuro foi Metrodoro de Lâmpsaco


cujos escritos foram na sua maior parte de conteúdo polémico. Mas contaram-se
numerosíssimos discípulos e amigos de Epicuro e entre eles não faltaram as
mulheres como Temistia e a hetaira Leontina que escreveu contra Teofrasto. Com
efeito, as mulheres

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podiam também participar na escola, já que ela se fundava na solidariedade e na


amizade dos seus membros o as amizades epicuristas foram famosas em todo o
mundo antigo pela sua nobreza.

Todavia, nenhum discípulo trouxe uma contribuição original para a doutrina do


mestre. Epicuro exigia dos seus sequazes a rigorosa observância dos seus
ensinamentos; e a esta observância se manteve fiel a escola durante todo o tempo
da sua duração (que foi longuíssima, até ao século IV d.C.). Por isso, entre os
seus numerosos discípulos, só recordaremos aqueles por cuja mediação nos
chegaram ulteriores notícias acerca da doutrina epicurista. De Filodemo, que viveu
no tempo de Cícero, revelaram-nos os papiros de Herculano alguns fragmentos
que tratam de numerosos problemas sob o ponto de vista epicurista e nos
apresentam as polémicas que se desenvolviam, naquele -tempo, no próprio
interior da escola epicurista e entre ela e as outras escolas.

Tito Lucrécio Caro deixou-nos no seu De rerum natura não só uma obra de grande
valor poético mas também uma exposição fiel do Epicurismo. Pouco se sabe da
vida de Lucrécio. Nasceu provavelmente em 96 a.C. e morreu em 55 -a.C.. A
notícia de que estava louco, transmitida pelos escritores cristãos, e que havia
escrito o seu poema nos intervalos da loucura, ode ser uma invenção devida à

p exigência polémica de desacreditar o máximo representante latino do ateísmo


epicurista; em todo o caso, é pouco verosímil pela causa aduzida da loucura do
poeta: um filtro amoroso. Os seis livros da obra de Lucrécio (que está incompleta)
dividem-se em três partes, dedicadas, respectivamente, à metafísica, à
antropologia e à cosmologia, cada uma das quais compreende dois livros. No
primeiro e segundo livro trata-se dos princípios de toda a realidade, da matéria, do
espaço e da constituição dos

39

corpos sensíveis. No terceiro e quarto livro, trata-se do homem. No quinto e sexto,


do universo e dos fenómenos físicos mais -importantes. A obra foi editada por
Cícero, que teve que reordená-la um pouco, depois da morte de Lucrécio. O poeta
latino vê em Epicuro aquele que libertou os homens do temor do sobrenatural e da
morte. Lucrécio considerava tão grande esta tarefa que não hesitou em exaltar
Epicuro como uma divindade e em reconhecê-lo como o fundador da verdadeira
ciência.

Ao século 11 d.C. pertence Diógenes de Enoanda (Ásia Menor) de quem se


encontrou em 1884 um escrito esculpido em blocos de pedra. Estas inscrições
revelam uma doutrina perfeitamente conforme com a original de Epicuro; a única
novidade é a defesa do Epicurismo contra outras correntes filosóficas e,
especialmente, contra os diálogos platónicos de Aristóteles.

§ 98. CARACTERÍSTICAS DO EPICURISMO

Epicuro vê na filosofia o caminho para alcançar a felicidade, entendida como


libertação das paixões. O valor da filosofia é, pois, puramente instrumental: o seu
fim é a felicidade. Mediante a filosofia o homem liberta-se de todo o desejo
inquieto e molesto; liberta-se também das opiniões irracionais e vãs e das
perturbações que delas procedem. A investigação científica destinada a investigar
as causas do mundo natural não tem um fim diferente. "Se não estivéssemos
perturbados pelo pensamento das coisas celestes e da morte e por não
conhecermos os limites das dores e dos desejos, não teríamos necessidade da
ciência da natureza" (Máximas capitais, 11). O valor da filosofia está, pois,
inteiramente em dar ao homem um "quádruplo remédio": 1.o Libertar os homens
do temor
40

EPICURO

dos deuses, demonstrando que pela sua natureza feliz, não se ocupam das obras
humanas. 2.' Libertar os homens do temor da morte, demonstrando que ela não é
nada para o homem: "quando nós existimos, não existe a morte; quando a morte
existe, não existimos nós" (Ep. a Men., 125).
3.' Demonstrar a acessibilidade do limite do prazer, isto é, o alcançar fácil do
próprio prazer; 4.' Demonstrar a distância do limite do mal, isto é, a brevidade e a
provisoriedade da dor.

Deste modo a doutrina epicurista manifestava claramente a tendência de toda a


filosofia pós-aristotélica para subordinar a investigação especulativa a um fim
prático, reconhecido como válido independentemente da pró pria investigação, de
modo que vinha a ser negado a tal investigação o valor supremo que lhe atribuem
os filósofos do período clássico: o de ela própria determinar o fim do homem e de
ser, já como investigação, parte integrante deste fim.

Epicuro distingue três partes da filosofia: a canónica, a física e a ética. Mas a


canónica era concebida em relação tão estreita com a física que se pode dizer
que, para o Epicurismo, as partes da filosofia são apenas duas: a física e a ética.
Em todo o domínio do conhecimento o fim que é necessário ter presente é a
evidência (enàrgheia): "a base fundamental de tudo é a evidência", dizia Epicuro.

§ 99. A CANóNICA DE EPICURO

Epicuro chamou canónica à lógica ou teoria do conhecimento enquanto a


considerou essencialmente a oferecer o critério de verdade e, portanto, um canon,
isto é, uma regra que oriente o homem para a felicidade. O critério da verdade é
constituído pelas sensações, pelas antecipações e pelas emoções.

41

A sensação é produzida no homem pelo fluxo dos átomos que se separam da


superfície das coisas (segundo a teoria de Demócrito, § 22). Este fluxo produz
imagens (éidola) que são em tudo semelhantes às coisas que as produzem.
Destas imagens derivam as sensações; das sensações derivam as
representações fantásticas que resultara da combinação de duas imagens
diferentes (por exemplo, a representação do centauro deriva da união da
imagem do homem e do cavalo). Das sensações repetidas e conservadas
na memória derivam também as representações genéricas (ou conceitos) que
Epicuro, (como os Estoicos) chamou antecipações. Com efeito, os conceitos
servem para antecipar as sensações futuras. Por exemplo, se se diz "este é um
homem" é necessário ter já o conceito de homem, adquirido por virtude das
sensações precedentes.
Ora a sensação é sempre verdadeira. Efectivamente, não pode ser refutada por
uma sensação homogénea, que a confirma, nem por uma sensação diferente que,
proveniente de um outro objecto, não pode contradizê-la. A sensação é, pois, o
critério fundamental da verdade. Finalmente, o terceiro critério de verdade é a
emoção, isto é, o prazer ou a dor, que constitui a norma para a conduta prática da
vida e está, portanto, fora do campo da lógica.

O erro, que não pode subsistir nas sensações e nos conceitos, pode subsistir, em
contravertida, na opinião, a qual é verdadeira se é confirmada pelos testemunhos
dos sentidos ou pelo menos não contraditada por tal testemunho; é falsa no caso
contrário. Atendo-se aos fenómenos, tal como se nos manifestam mercê das
sensações, pode-se, com o raciocínio, estender o conhecimento até às coisas que
para a própria sensação são desconhecidas; mas a regra fundamental do
raciocínio é, neste caso, o mais rigoroso acordo com os fenómenos percebidos.

42

No escrito de Filodemo, Sobre os sinais, que expõe a doutrina do epicurista


Zenão, mestre de Filodemo, é desenvolvida e defendida contra os ataques dos
Estoicos a teoria do raciocínio indutivo. Os Estoicos afirmavam: não basta verificar
que os homens que existem à nossa volta são mortais para afirmar que em todos
os casos os homens são mortais; seria necessário estabelecer que os homens
são mortais, precisamente enquanto homens, para dar àquela inferência a sua
necessidade. Mas os Epicuristas respondiam que, dado que nada se opõe à sua
conclusão, uma inferência do género na analogia, deve ser considerada válida.
Dado que todos os homens que caem na alçada da nossa experiência são
semelhantes também no que respeita à mortalidade, é necessário considerar que
são semelhantes, também neste aspecto, aqueles que estão fora da nossa
experiência (De signis, XVI, 16-29). Por outras palavras, os Epicuristas admitiam
que a indução era um processo por analogia (entendendo-se por analogia a
identidade de duas ou mais relações), no sentido de que uma vez verificado que,
na nossa experiência, uma certa qualidade (no exemplo, "mortal") é acompanhada
constantemente por outra qualidade (aquela que os homens constituem), pode
inferir-se que, também onde não alcança a experiência, esta relação se mantém
constante, isto é, que as outras qualidades dos homens são sempre
acompanhadas pela de mortal (lb., XX, 32 e ss.). Deste modo, eles pressupunham
não já a necessária semelhança dos homens, segundo a crítica dos Estoicos, mas
a semelhança, isto é, a uniformidade, das relações entre qualidade ou factos,
uniformidade que mais tarde será chamada (por Stuart Mill) "uniformidade das leis
da natureza", enquanto distinta da "uniformidade por natureza". Os Epicuristas
partiam também de um sentido amplo de experiência e afirmavam

43

recolher "não só os sinais que nos aparecem ou que nós próprios experimentamos
mas também as coisas que aparecem na experiência de outrem e que por ela
podem ser tomadas" (1b., 32, 14). E também nisto se afastavam dos Estoicos que
reduziam a experiência ao aqui e agora percebido e instituíam, como se viu, a
força inteira do raciocínio sobre este aqui e agora.

Acerca da linguagem Epicuro formulava, pela primeira vez, uma doutrina que foi
retomada nos tempos modernos: a linguagem é um produto natural porque é a
expressão sonora das emoções que unem os homens em determinadas
condições (Diog. L., X, 75-76). É a tese que foi defendida no século XVIII por
Rousseau.

§ 100. A FíSICA DE EPICURO

A física de Epicuro tem COMO objectivo excluir da explicação do mundo toda a


causa sobrenatural e libertar assim os homens do temor de estar à mercê de
forças desconhecidas e de misteriosas intervenções. Para alcançar este objectivo
a física deve ser: 1.o materialística, isto é, excluir a presença no mundo de
qualquer " alma" ou princípio espiritual; 2.O mecanística, isto é, servir-se na sua
explicação unicamente do movimento dos corpos excluindo qualquer finalismo.
Dado que a física de Demócrito correspondia a estas duas condições, Epicuro
adoptou-a e fê-la sua com escassas e insignificantes modificações.

Como os Estoicos, Epicuro afirma que tudo aquilo que existe é corpo porque só o
corpo pode agir ou sofrer uma acção. De incorpóreo, admite apenas o vazio, mas
o vazio não age nem sofre alguma coisa, apenas permite aos corpos moverem-se
através de si próprio (Ep. ad Her., 67). Tudo aquilo

44

que age ou sofre é corpo e todo o nascimento ou morte é mais que a agregação
ou a desagregação dos corpos. Por isso Epicuro admite com Demócrito que nada
vem do nada e que cada corpo é composto de corpúsculos indivisíveis (átomos)
que se movem no vazio.

No vazio infinito, os átomos movem-se eternamente chocando-se, combinando-se


entro s@i. As suas formas são diversas; mas o seu número, embora
indeterminável, não é infinito. O seu movimento não obedece a nenhum desígnio
providencial, a qualquer ordem finalística, Os Epicuristas excluem explicitamente a
providência estoica e a crítica a tal providência constitui um dos temas preferidos
da sua polémica. Contra a acção da divindade no mundo, argumentam tomando
como ponto de partida a existência do mal. "A divindade ou quer suprimir os males
e não pode ou pode e não quer ou não quer nem pode ou quer e pode. Se quer e
não pode é -impotente; e a divindade não o pode ser. Se pode e não quer, é
invejosa, e a divindade não o pode ser. Se não quer e não pode, é invejosa e
impotente, portanto não é divindade. Se quer e pode (que é a única coisa que lhe
é conforme) donde vem a existência dos males e porque não os elimina? (fr. 374,
Usener). Eliminada do mundo a acção da divindade, não ficam para explicar a
ordem senão as leis que regulam o movimento dos átomos. A estas leis nada
escapa, segundo os Epicuristas; elas constituem a necessidade que preside a
todos os acontecimentos do mundo natural.

Um mundo é, segundo Epicuro, "um pedaço de céu que compreende astros, terras
e todos os fenómenos, recortado no infinito". Os mundos são infinitos; eles estão
sujeitos ao nascimento e à morte. Todos se formam devido ao movimento dos
átomos no vazio infinito. Mas Epicuro, ao considerar que os átomos caem no vazio
em linha recta e com

45

a mesma velocidade, para explicar o choque, devido ao qual se agregam e se


dispõem nos vários mundos, admite um desvio casual dos átomos da sua
trajectória rectilínea. Este desvio dos átomos é o único acontecimento natural não
sujeito à necessidade. Ele, como diz Lucrécio, "despedaça as leis do fado".
Epicuro admite, contudo, a existência das divindades neste mundo, donde foi
eliminado todo o sinal de potência divina. E admite-as devido ao seu próprio
empirismo, porque os homens têm a -imagem da divindade e esta imagem, como
outra qualquer, não pode ter sido produzida em si senão pelos fluxos dos átomos
emanados da própria divindade. Os deuses têm a forma humana, que é a

mais perfeita e, portanto, a única digna de ser racional. Eles mantêm uns com os
outros uma amizade análoga à humana; e habitam os espaços entre mundo e
mundo (ilitermundi). Mas não se preocupam nem com o mundo nem com os
homens. Todo o cuidado deste género seria contrário à sua perfeita beatitude,
dado que lhes imporia uma obrigação e eles não têm obrigações, antes vivem
livres e felizes. Por isso, o motivo pelo qual o sage os honra não é o temor, mas a
admiração da sua excelência.

A alma é, segundo Epicuro, composta por partículas corpóreas que estão


difundidas em todo o corpo como um sopro cálido. Tais partículas são mais subtis
e Tedondas que as demais o por isso mais móvois. As faculdades da alma, como
se viu, são fundamentalmente três: a sensação em sentido próprio; a imaginação
(mens, segundo Lucrécio) que produz as representações fantásticas; a

razão (logos) que é a faculdade do juízo e da opinião. A estas faculdades


teoréticas junta-se a

emoção, prazer ou dor, que é a norma da conduta prática. A parte irracional da


alma, que é o princípio da vida, está difundida por todo o corpo.

46

Com a morte, os átomos da alma separam-se e cessa qualquer possibilidade de


sensação: a morte é "privação de sensações". Por isso é estulto temê-la: "0 mais
terrível dos males, a morte, não é nada para nós porque quando existimos nós
não existe a morte, quando existe a morte não existimos nós" (Ep. ad Men., 125).
§ 101. A ÉTICA DE EPICURO

A ética epicurista é, em geral, uma derivação da cirenaica (§ 39). A felicidade


consiste no prazer: "o prazer é o princípio o o fim da vida feliz", diz Epicuro (Diog.
L., X 149). Com efeito, o prazer é o critério da eleição e da aversão: tende-se para
o prazer, foge-se da dor. Ele é também o critério com que avaliamos todos os
bens. Mas há duas espécies de prazeres: o prazer estável que consiste na
privação da dor e o prazer em movimento que consiste no gozo e na alegria. A
felicidade consiste apenas no prazer estável ou negativo, "no não sofrer e no não
agitar-se" e é, portanto, definida como ataraxia (ausência de perturbação) e aporia
(ausência de dor). O significado destes dois termos oscila entre a libertação
temporal da dor da necessidade e a ausência absoluta de dor. Em polémica com
os Cirenaicos que afirmavam a positividade do prazer, Epicuro afirma
explicitamente que "o cume do prazer é a simples e pura destruição da dor."

Este carácter negativo do prazer impõe a escolha e a limitação das necessidades.


Epicuro distingue as necessidades naturais e as inúteis; das necessidades
naturais, umas são necessárias, outras não. Daquelas que são naturais e
necessárias, umas são necessárias à felicidade, outras à saúde do corpo, outras à
própria vida. Só os desejos naturais e

47

necessários devem satisfazer-se; os demais devem abandonar-se e rechaçar-se.


O epicurismo que, portanto, não o abandono ao prazer, mas o cálculo e a medida
dos prazeres. Tem de se renunciar aos prazeres de que deriva uma dor maior e
suportar até largamente as dores de que deriva um prazer maior. "A cada desejo é
conveniente perguntar: que sucederá se for satisfeito? Que acontecerá se não for
satisfeito? Só o cálculo cuidadoso dos prazeres pode conseguir que o homem se
baste a si próprio e não se converta em escravo das necessidades e da
preocupação pelo amanhã. Mas este cálculo só se pode ficar a dever à sageza
(frónesis). A sageza é mais preciosa do que a filosofia, porque por ela nascem
todas as outras virtudes e sem ela a vida não tem doçura, nem beleza, nem
justiça" (Ep. ad Men., 132). A virtude, e especialmente a sageza que é a primeira e
a fundamental, aparecem assim a Epicuro como condição necessária da
felicidade. À sageza se deve o cálculo, a escolha e a limitação das necessidades
e, portanto, o alcançar da ataraxia e da aponia.

Num passo famoso do escrito Sobre o fim, Epicuro afirma explicitamente o


carácter sensível de todos os prazeres. "Em minha opinião -diz elenão sei
conceber que coisa é o bem se prescindo dos prazeres do gosto, dos prazeres do
amor, dos prazeres do ouvido, dos que derivam das belas imagens percebidas
pelos olhos e, em geral, todos os prazeres que os homens têm pelos sentidos.
Não é verdade que só o gozo da mente é um bem; dado que também a mente se
alegra com a esperança dos prazeres sensíveis em cujo disfrute a natureza
humana pode livrar-se da dor". (Cícer., Tusc., fil,
18, fr. 69, Usener. Confrontar com 67, 68 e 70, Usener). É claro aqui que o bem se
restringe ao âmbito do prazer sensível ao qual pertence também o prazer que a
música dá ("os prazeres dos sons")

48

e a contemplação da beleza ("prazeres das belas imagens"); e que o prazer


espiritual se reduz à esperança do próprio prazer sensível. Pode ser que o
carácter polémico do fragmento (dirigido provavelmente contra o protréptico de
Aristóteles, o qual platonicamente exaltava a superioridade do prazer espiritual, §
69), tenha levado Epicuro a acentuar a sua tese da sensibilidade do prazer. Mas é
claro que esta tese deriva necessariamente da sua doutrina fundamental que faz
da sensação o cânon fundamental da vida do homem. Que o verdadeiro bem não
seja o prazer violento, mas o estável da aponia e da ataraxia não é coisa que
contradiga a tese da sensibilidade do prazer porque a aponia é "o não sofrer no
corpo" e a ataraxia é "o não ser perturbado na alma" pela preocupação da
necessidade corpórea.

Mas, por isto, a doutrina de Epicuro não se pode confundir com um vulgar
hedonismo. Opor-se-ia a tal hedonismo o culto da amizade que foi característico
da doutrina e da conduta prática dos Epicuristas. "De todas as coisas que a
sageza nos oferece para a felicidade da vida, a maior é de longe a aquisição da
amizade" (Max. cap., 27). A amizade nasceu do útil, mas ela é um bem por si
mesma. O amigo não é aquele que procura sempre o útil, nem quem nunca o une
à amizade, dado que o primeiro considera a amizade como um tráfico de
vantagens, o segundo destrói a confiada esperança de ajuda que constitui grande
parto da amizade (Sentenças Vaticanas, 39, 34, Bignone).

Opor-se-ia também ao referido hedonismo a exaltação da sageza. Seria


certamente melhor, segundo Epicuro, que a fortuna tornasse próspera em todos
os casos a sageza; mas é sempre preferível a sageza desafortunada à insensatez
afortunada (Ep. ad Men., 135). Ainda que a justiça seja somente uma convenção
que os homens estabeleceram entre si

49

para a utilidade comum, isto é, para que se evite


* fazer-se recIprocamente dano, é muito difícil que
* sage se deixe arrastar a cometer uma injustiça ainda que esteja seguro de que o
seu acto permanecerá desconhecido e que, por isso, não lhe trará dano. "Quem
alcançou o fim do homem, ainda que ninguém esteja presente, será igualmente
honesto" (fr. 533, Usener).

A atitude do epicurista para com os homens em geral é definida pela máxima: "É
não só mais belo, mas também mais agradável fazer o bem do que recebê-lo" (fr.
544). Nesta máxima o prazer surge de facto como fundamento e a justificação da
solidariedade entre todos os homens. E, na verdade, Diógenes Laércio
testemunha-nos o amor de Epicuro pelos seus pais, a sua fidelidade aos amigos,
o seu sentido de solidariedade humana (X, 9).

Quanto à vida política, Epicuro reconhecia as vantagens que ela traz aos homens,
obrigando-os a acatar as leis que os impedem de se prejudicarem mutuamente.
Mas aconselhava ao sage que permanecesse alheio à vida política. O seu preceito
é: "vive escondido" (fr. 551). A ambição política só pode ser fonte de perturbaçã o
e, portanto, obstáculo para o alcançar da ataraxia.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 96. As notícias antigas sobre a vida, os escritos e a doutrina de Epicuro e dos


epicuristas foram recolhidas pela primeira vez por H. USENER, Epicurea, Leipzig,
1887. - BIGNONE, Epicuro, obras, fragmentos, testemunhos sobre a vida,
traduzidos com introdução e comentários, Bari, 1920; DIANO, Epicuri Ethica,
Florença, 1946; ARRIGITEM, Epicuro. Opere, Introdu- ção, texto critico, tradução
e notas, Turim, 1960. Oo últimos volumes recolhem também oe fragmentos
encontrados nos papiros de HercuLano. -Sobre a formaçAo da doutrina epicurista:
BIGNONF,, LIAr~tele

50

perduto e Ia form_azione filosofica di Epicuro, 2 vols., Florença, 1936; DIANO,


Note epicuree, in ".4=ali Scuola normale superiore di Pisa", 1943; Questione
epicuree, in. "Giornale critico filosofia italiana", 1949.

§ 97. Sobre os discípulos de Epicuro: ZELLER, M, 1, p. 378 ss.; LuCRÉCio, De


rerum natura, ed. Giussani, Turim, 1896-98. Os Fragmentos de Filodemo
encontram-se nas citadas compilaçóes: o De signis, ed. GOMPERZ, Le-,ipzig,
1865; ed. e tradução inglesa DE LAcy, Filadélfia, 1941; Diógenes de Enoanda,
fragmentos editados por WILLIAM, Leipzig, 1907.

§ 99. Sobre Epicuro em geral: BAILEY, The Greek Atomists and Epicurus, Oxford,
1928; N. W. DE WITT, Epicurus and his Philosophy, Minneapolis, 1954.

§ 100. C. DIANO, La psicologia di Epicuro, in "Giornale critico filosofia Italiana",


1939; V. E. ALFIERI, Studi di filosofia greca, Bari, 1950.

§ 101. GuyAu, La morale d'Epicure, Paris, 1886; MONDOLFO, Problemi del


pensiero antico, Bolonha, 1936.

x_V

O CEPTICISMO

§ 102. CARACTERISTICAS DO CEPTICISMO

A palavra cepticismo deriva de sképsi*s, que significa indagação. Em


conformidade com a orientação geral da filosofia pós-aristotélica, o Cepticismo
tem como objecto o alcançar da felicidade como ataraxia. Mas enquanto o
Epicurismo e o Estoicismo punham a condição da mesma numa doutrina
determinada, o Cepticismo coloca tal condição na crítica e na negação de toda a
doutrina determinada, numa indagação que ponha em evidência a inconsistência
de qualquer posição teorético-prática, as considere a todas igualmente falazes e
se abstenha de aceitar alguma. A tranquilidade do espírito em que consiste a
felicidade, consegue-se, segundo os cépticos, não já aceitando uma doutrina, mas
refutando qualquer doutrina. A indaga- ção (sképsis) é o meio de alcançar esta
refutação e, por conseguinte, a ataraxia.

Daqui resulta a mudança radical e também a decadência profunda que o conceito


de investiga-

53

ção sofre por obra do cepticismo. Se se confronta o conceito céptico de


indagação, como instrumento da ataraxia, com o conceito socrático e platónico da
procura, a mudança é evidente. Para Sócrates e Platão, a primeira exigência da
procura é a de encontrar o próprio fundamento e a própria justificação, a de
organizar-se a articular-se internamente, a de aprofundar-se a si própria para
reconhecer as condições e os princípios que a tornam possível. A indagação
céptica não procura justificação em si própria. A ela basta-lhe levar o homem à
refutação de toda a doutrina determinada e, portanto, à ataraxia. Por isso se nutre
quase exclusivamente da polémica contra as outras escolas e se aplica a refutar
os diferentes pontos de vista, sem nunca dirigir o olhar para si própria, para o
fundamento e o valor do seu procedimento.

Indubitavelmente, ainda assim, a indagação céptica desempenhou uma tarefa


histórica notável, afastando as escolas filosóficas contemporâneas da sua
estagnação dogmática e estimulando-as incessantemente à indagação dos
fundamentos dos seus postulados.

O cepticismo não é uma escola mas a orientação seguida na Grécia por três
escolas diferentes: La a escola de Pirro de Elis, no tempo de Alexandre Magno;
2.a a média e nova Academia; Ia os Cépticos posteriores, a começar por
Enesidemo, os quais defendem um retorno ao pirronismo.

§ 103. PIRRO

Pirro, natural de Elis, pôde ainda conhecer talvez na sua cidade, a dialéctica da
escola eleo-megárica (§ 33) que, em muitos aspectos, é um antecedente do
Cepticismo. Participou na campanha de Alexandre Magno no Oriente juntamente
com o

54
democritiano Anaxarco. Fundou na pátria uma escola que depois da sua morte
teve pouca duração. Viveu na pobreza e morreu muito velho cerca de
270 a.C.. Não deixou escritos. Conhecemos as suas doutrinas através da
exposição de Diógenes Laércio (IX, 61, 108) e pelos fragmentos de Sílloi (ou
versos burlescos) com os quais o seu discípulo Tímon de Fliunte (329-230 a.C.
aproximadamente) expôs e defendeu a sua doutrina.

Os Sofistas tinham oposto a natureza à convencionalidade das leis e tinham


distinguido o que é bem por natureza daquilo que é bem por convenção. Pirro
renova esta distinção, mas apenas para negar que existam coisas verdadeiras ou
falsas, belas ou feias, boas ou más, per natura. Tudo aquilo que é julgado tal é
julgado tal " por convenção ou por costume", não por verdade e por natureza. Já
que para o conhecimento humano as coisas não são verdadeiramente
apreensíveis e a única atitude legítima por parte do homem é a suspensão de
qualquer juízo (epoché) sobre a sua natureza: o não afirmar de qualquer coisa que
é verdadeira ou falsa, justa ou injusta e assim sucessivamente.

Esta suspensão leva a admitir que todas as coisas são indiferentes para o homem
e evita que se conceda qualquer preferência a uma mais do que a outra. Assim a
suspensão do juízo é já por si mesma ataraxia, ausência de qualquer perturbação
ou paixão. Para ser coerente, Pirro, que não tinha fé nos sentidos, andava em
redor sem olhar e sem se esquivar de nada, afrontando os carros se os
encontrava, precipícios, cães, etc. (Diog. L., IX, 62).

Timón de Fliunte rebatia a doutrina do mestre, considerando que, para ser feliz, o
homem devia conhecer três coisas: La qual é a natureza das coisas; 2 a que
posição é necessário tomar frente a elas; Ia que consequências resultarão dessa
atitude. Mas as coisas mostram-se todas igualmente indife-

55

rentes, incertas e indiscerníveis. Por isso a única atitude possível é a de não se


pronunciar a respeito de nenhuma delas (afasia) e a de permanecer
completamente indiferente frente a elas (ataraxia).

§ 104. A MÉDIA ACADEMIA

A escola de Pirro esgotou-se muito depressa; mas a orientação céptica foi


retomada pelos filósofos da Academia que encontravam o fundamento dela no
próprio interior da doutrina platónica. Com efeito, Platão sustentara
constantemente que não pode haver ciência do mundo sensível (§ 59). Esta
concerne ao mundo do ser, não ao mundo dos sentidos, a respeito do qual só se
podem alcançar opiniões prováveis. Mas a especulação em torno do mundo do
ser já não interessava os filósofos deste período, os quais pediam à filosofia que
se convertesse em instrumento dos fins práticos da vida. E assim, da doutrina
platónica, conservava actualidade apenas a sua parte negativa, precisamente
aquela que negava validade de ciência ao conhecimento do mundo sensível e
reduzia tal conhecimento a mera opinião provável.

Aquele que iniciou este novo rumo da Academia foi Arquesilau de Pitane (315/14-
241/40) que sucedeu a Cratete na direcção da escola. Arquesilau não escreveu
nada, de modo que conhecemos as suas doutrinas só indirectamente.

Segundo um testemunho de Cícero (De orat., 111,


18, 67), ele não manifestou nenhuma opinião própria, mas limitou-se a discutir as
opiniões que os outros exprimiam. Quis imitar a Sócrates, mas para ir mais longe
do que o próprio Sócrates. Se Sócrates afirmava que o homem nada pode saber a
não ser precisamente que não sabe nada, Arquesilau negava que também isto se
pudesse afirmar

56

com segurança. Por Sexto Empírico sabemos que as suas críticas principais foram
dirigidas ao seu contemporâneo Zenão de Citium, o fundador da Stoa. Arquesilau
negava que existisse uma representação catalética porque negava que existisse
uma representação que não possa tornar-se falsa. Por isso a função do sage não
é a de dar o assentimento a uma representação qualquer, mas abster-se de
qualquer assentimento. Quanto à acção, ela não tem necessidade da
representação catalética. Arquesilau sustentava que a regra daquilo que se deve
escolher ou evitar é o bom senso ou a equidade (eulogia) que é a base da sageza
(Sexto E., Adv. math., VII, 153 ss.).

Seguiram-se a Arquesilau como chefes da escola outros mestres (Lacides,


Telecles, Evandro, Hegesino) dos quais não se sabe nada, excepto que seguiram
a orientação de Arquesilau. Ao último sucedeu Carnéades.

§ 105. A NOVA ACADEMIA

Carnéades de Cirena (214/12-129/28) é considerado o fundador da terceira ou


nova Academia e foi homem notável por sua eloquência e doutrina. Em 156155 foi
em embaixada a Roma juntamente com o estoico Diógenes e com o peripatético
Critolau. Também ele não deixou escritos e as suas doutrinas foram recolhidas
pelos discípulos.

A doutrina de Carnéades define-se sobretudo em oposição à do estoico Crisipo.


"Se Crisipo não tivesse existido, também eu não existiria", dizia Carnéades (Diog.
L., IV, 62). Carnéades considera que o saber é impossível e que nenhuma
afirmação é verdadeiramente indubitável. Durante a sua permanência em Roma,
pronunciou um dia um discurso belíssimo em louvor da justiça, demonstrando que
ela é a base de toda a vida civil. Mas, ao outro

57

dia, pronunciou um novo discurso, ainda mais convincente do que o primeiro,


demonstrando que a justiça é diferente segundo os tempos e os povos e que está
muitas vezes em contradição com a sageza. E demonstrava este contraste com o
próprio exemplo do povo romano que se havia apoderado de todo o mundo,
arrancando aos outros a sua posse. "Se os romanos quisessem ser justos -disse
ele- deveriam restituir aos outros as suas possessões e voltar para casa na
miséria, mas em tal caso seriam estultos; e assim sageza e justiça não caminham
de acordo" (Lactâncio, Ist. div., 5,
14). Carnéades criticou no mesmo espírito todas as doutrinas fundamentais dos
Estoicos e principalmente a do destino e da providência, sustentando que as
desmentia no seu pressuposto, que é a necessidade, pela existência do acaso e
da liberdade humana (Cicer., De fato, 31-34). Ele utilizou, além disso, as
antinomias megáricas, por exemplo a do mentiroso, para demonstrar a
impossibifidade de decidir com a dialéctica aquilo que é verdadeiro ou falso.
Finalmente considerou falacioso o critério estoico da representação catalética,
negando que os sentidos ou a razão pudessem valer como critérios de verdade.

Quanto à conduta da vida e à conquista da felicidade, admitia, contudo, um


critério. Tal critério, porém, não é objectivo, isto é, não consiste na relação da
representação com o seu objecto, com base na qual a própria representação
poderia ser verdadeira ou falsa, mas subjectivo, isto é, inerente à relação da
representação com quem a possui. É portanto um critério, não de verdade, mas de
credibilidade. Se não se pode dizer qual seja a representação verdadeira, isto é,
correspondente ao objecto, pode-se dizer qual é a representação que aparece
como verdadeira ao sujeito. A esta representação, chama Carnéades plausível ou
persuasiva

58

(pitanon). Se uma representação persuasiva não é contraditada por outras


representações do mesmo género, ela tem um grau maior de probabilidade: assim
os médicos, por exemplo, diagnosticam uma doença por vários sintomas
concordantes. Finalmente, a representação provável, não contraditada, examinada
em todas as suas partes, é o terceiro e mais alto grau de probabilidade (Sexto E.,
adv. math., VII, 162 ss.).

A Carnéades sucedeu na direcção da escola um seu parente com o mesmo nome,


e a este outras figuras menores, depois dos quais foi seu chefe Fjlón de Larissa, o
fundador da quarta Academia.

§ 106. OS úLTIMOS CÉPTICOS

Abandonada pela Academia, a orientação céptica foi retomada por outros


pensadores que quiseram ater-se directamente ao fundador do cepticismo, Pirro.
Estes pensadores que floresceram do último século a.C. ao 11 século d.C. não
quiseram formar uma escola mas apenas uma orientação (agoghé). Os principais
foram Enesidemo, Agripa e Sexto Empírico.
Enesidemo de Cnossos ensinou em Alexandria. Escreveu oito livros de Discursos
pirrónicos que se perderam. Pelas repetidas afirmações de Cícero, que considera
extinto o pirronismo no seu tempo, deduz-se que Enesidemo devia ter iniciado a
sua actividade depois da morte de Cícero (43 a.C.) Segundo Sexto Empírico, o
cepticismo era considerado por Enesidemo como um caminho para a filosofia de
Heraclito: "0 facto de que os contrários parecem pertencer a uma mesma coisa,
leva a admitir que eles são verdadeiramente a mesma coisa" (Pirr. hyp., 1, 210).
Esta afirmação não significa

59

que Enesidemo tenha passado do cepticismo para o heraclitismo, mas apenas


que, como já Platão no Teeteto, via no heraclitismo, que identifica os opostos, o
fundamento de toda a concepção céptica que considera os opostos igualmente
verdadeiros ou igualmente falsos.

Segundo Sexto Empírico, Enesidemo admitia dez modos (tropi) para chegar à
suspensão do juízo.
O primeiro é a diferença entre os animais, pela qual não podemos julgar entre as
nossas representações e as dos animais, porque derivam de diferentes
constituições corpóreas. O segundo é a diferença entre os homens; o terceiro o da
diferença entre as sensações; o quarto, o das circunstâncias, isto é, das diferentes
disposições humanas. O quinto é o das posições, dos intervalos e dos lugares. O
sexto, o das misturas. O sétimo, o da quantidade e composições dos objectos. O
oitavo, o da relação das coisas entre si e com o sujeito que as julga. O nono, o da
continuidade ou raridade dos encontros entre o sujeito que julga e os objectos. O
décimo, o da educação, dos costumes, das leis, das crenças, e das opiniões
dogmáticas. Cada um destes modos estabelece uma diversidade nos
conhecimentos humanos

ou uma equivalência dos conhecimentos diversos, que se obtém segundo a


diversidade dos mesmos modos. Se as sensações são diferentes (3.' modo) para
os diferentes homens (2.' modo) ou em diversas circunstâncias (4.O modo), como
-se pode distinguir entre a verdadeira e a falsa? Se os objectos surgem como
diferentes segundo se apresentam misturados ou simples (6.O modo) ou em
número maior ou menor (7.O modo) ou segundo se apresentam isolados ou em
relação (8.' modo) ou raramente ou frequentemente ao homem (9.' modo), como
se faz para decidir qual é a verdadeira realidade do objecto? Não resta, pois, outra
possibilidade senão

60

suspender qualquer juízo. Leva a esta mesma conclusão a consideração da


diversidade entre as crenças e as opiniões humanas, diversidade que torna
impossível decidir-se por uma ou outra delas.

A Agripa (de quem não se sabe nada), atribui Sexto Empírico outros cinco modos
para alcançar a suspensão do juízo, modos de carácter dialéctico, úteis sobretudo
para refutar as opiniões dos dogmáticos: 1.' o modo da discordância, que consiste
em mostrar um dissídio insanável entre as opiniões dos filósofos e, por
conseguinte, a impossibilidade de escolher entre elas, 2.' o modo que consiste em
reconhecer que toda a prova parte de princípios que, por ;sua vez, exigem prova e
assim até ao infinito; 3.O o modo da relação, pelo qual nós conhecemos o objecto
relativamente a nós, e não qual é em si próprio; 4.' o modo da hipótese, pelo qual
se vê que toda a demonstração se funda em princípios que não se demonstram,
mas se admitem por convenção; 5.O o círculo vicioso (dialelo), pelo qual se
assume como demonstrado precisamente aquilo que se deve demonstrar: o que
demonstra a impossibilidade da demonstração.

Outros Cépticos, sempre segundo Sexto Empírico (Pirr. hyp., 1, 178), reduziam
todos estes modos a dois modos fundamentais de suspensão, isto é,
demonstrando que não se pode compreender nada nem por si nem na base de
outro. Que nada se

possa compreender por si, resulta do desacordo existente entre as opiniões


dos homens, desacordo insanável, não havendo nenhum critério que, por sua
vez, não seja objecto de desacordo. Que nada se possa compreender na base de
outro, resulta do facto de que, neste caso, seria necessário ir até ao infinito ou
fechar-se num círculo, dado que toda a

coisa, para ser compreendida, requererá uma outra e assim sucessivamente.

61

§ 107. SEXTO EMPIRICO

A fonte de todas as notícias sobre o Cepticismo antigo é a obra de Sexto que,


como médico, teve o sobrenome de Empírico e desenvolveu a sua actividade
entre 180 e 214 d.C. Possuímos dele três escritos. Os Elementos (Ipotipposi)
pirronianos, em três livros, são uni compêndio de filosofia céptica. Os outros dois
surgem, tradicionalmente, sob o título impróprio de Contra os matemáticos. Ora o
màtema é o ensino em significado objectivo, a ciência enquanto objecto do ensino;
matemáticos são pois os cultores da ciência, isto é, da gramática, da retórica e
das ciências do quadrívio (como foram chamadas na Idade Média) que Platão na
República considerava como propedêuticas da dialéctica: geometria, aritmética,
astronomia e música. Contra esta ciências são dirigidos os livros I-IV da obra. Os
livros V11-XI são dirigidos contra os filósofos dogmáticos. Estes escritos de Sexto
são importantes não só porque representam a súmula de todo o Cepticismo
antigo, como também porque são fontes preciosas para o conhecimento das
próprias doutrinas que combatiam. Os pontos mais famosos das refutações de
Sexto, além da doutrina dos tropos, são os seguintes:

Crítica da dedução e da indução.-A dedução é sempre um círculo vicioso (dialelo).


Quando se diz: "Todo o homem é animal, Sócrates é homem, portanto Sócrates é
animal", não se poderia admitir a premissa "todo o homem é animal" se não se
considerasse já como demonstrada a conclusão, que Sócrates, como homem, é
animal. Por isso, quando se tem a pretensão de demonstrar a conclusão,
derivando-a de um princípio universal, na realidade já se a pressupõe
demonstrada. Por outro lado, a indução não tem maior validade. Com efeito, se
ela se funda apenas no exame de alguns casos, não é

62

segura, podendo desmenti-la em qualquer altura. os casos não examinados, e se


se pretende que se funda em todos os casos particulares, o seu objectivo é
impossível porque tais casos são infinitos (Pirr. hyp.,
11, 193, 204).

Crítica do conceito de causa.-Diz-se que a causa produz o efeito, portanto ela


deveria preceder o efeito e existir antes dele. Mas se existe antes de produzir o
efeito, é causa antes de ser causa. Por outro lado, é evidente, a causa não pode
seguir o efeito nem ser contemporânea dele porque o efeito só pode nascer da
coisa que existe antes (Pirr. hYp., 111).

Crítica da teologia estoica. -Sexto insistiu longamente nas contradições implícitas


no conceito estoico da divindade. Segundo os Estoicos, tudo aquilo que existe é
corpóreo; portanto, também Deus. Mas um corpo ou é composto e está sujeito a
decomposição, portanto mortal; ou é simples e então é água ou ar ou terra ou
fogo. Por conseguinte, Deus deveria ser ou mortal ou um elemento inanimado, o
que é absurdo (Adv. math., IX, 180). Por outro lado, se Deus vivesse sentiria, e se
sentisse, receberia prazer e dor; mas dor significa perturbação e se Deus é capaz
de perturbação é mortal. Outras dificuldades derivam de atribuir a Deus todas as
perfeições. Se Deus tem todas as virtudes, também tem a coragem; mas a
coragem é a ciência das coisas temíveis e não temíveis, portanto é qualquer coisa
de temível para Deus, o que é absurdo (lb., lX, 152 ss.). Sexto Empírico servia-se
de todos estes argumentos para reforçar a posição céptica da suspensão do juízo.

Na vida prática o céptico deve, segundo Sexto, seguir os fenómenos. Por isso são
quatro os seus guias fundamentais: as indicações que a natureza lhe dá através
dos sentidos, as necessidades do corpo, a tradição das leis e dos costumes e as
regras das

63

artes. Com estas regras, os últimos, Cépticos procuraram diferenciar-se do


critério, sugerido pela média Academia, da acção motivada ou racional. Segundo
Sexto, a diferença fundamental entre o Cepticismo pirrónico o o dos Académicos é
este: que enquanto os Académicos só admitiam saber que não é possível saber
nada, os pirrónicos evitavam também esta asserção e limitavam-se à procura (Pirr.
hyp., 1, 3). Sexto Empírico quis, noutros termos, realizar o ideal de uma
investigação que seja apenas investigação, sem ponto de partida nem ponto de
chegada.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 102. Sobre o desenvolvimento do cepticismo antigo: BROCHARD, Les


sceptiques grees, Paris, 1887; GOEDECKEMEYER, Die Geschichte der
griechischen 8keptizismus, Leipzig, 1905; DAL PRA, Lo scetticismo greco, Milão,
1950.

§ 103. Sobre Pirro: noticias antigas sobre a vida e a doutrina, in DIóGENES


LAÉRCIO, ]EX, 61-108; sobre Timon: ID., IX, 1099-116; DIELS, POêt, philOS.
fragm.,
182 ss.; ZELLER, 111, 1, p. 494 ss.-ROBIN, Pyrrhon et le Scepticisme grec, Paris,
1944. § 104. Sobre a vida, os escritos -e a doutrina de Arquesil-au e da Média
Academia: DIóGENEs LAÉRCIO, IV, 28-45 (Arquesilau), 59-61 (Lacides).

Para a doutrina, as fontes mais importantes são CICERO, Opp. filos., e STOBEO,
Eclogae, lI, 39, 20 ss..

Sobre a Média Academia: ZELLER, IlT, 1, 507 ss.; CREDARO, Lo scetticismo


degli Accademici, 2 vols., Milão, 1889-93. Sobre a lõgica: PRANTL, 1, 496 ss.

§ 105. Sobre Carnéades: DióGENES LAÉRCIO, IV,


62-66; ZELLER, M, 1, 516 ss..

§ 106. Sobre Enesidemo: DiOGENEs LAÉRCIO, IX,


109-116; ZELLER, 111, 2, 1 ss.. Sobre Agripa: DiõGENES LAÉRCIO, ]IX, 88 ss.;
ZELLER, 111, 2, p. 47 ss..

§ 107. As obras de Sexto Empírico foram editadas por Bekker, Berlim, 1892. Os
Elementos Pirrõ-

64

nicos e Contra os dogmáticos foram editados criticamente por Mutschmann,


Leipzig, 1912-14. Os Elementos foram traduzidos para italiano por BISSOLATI,
Ipotiposi pirroniani, Flor(-nça, 1917, e por TESCARI, Schizzi pirroniani, Bari, 1926.
Sobre Sexto, ver ZELLER, III,
2. p. 49 ss.. Sobre a lógica do Cepticismo: PRANT4 ob. cit., p. 497 ss..

65

XVI

O ECLECTISMO

§ 108. CARACTERíSTICAS DO ECLECTISMO


As três grandes escolas filosóficas pós-aristotélicas. - Estoicismo, Epicurismo e
Cepticismo , ainda que em desacordo nos seus pressupostos teóricos, mostram
um acordo fundamental nas suas conclusões práticas. Sustentam as três que o
fim do homem é a felicidade e que a felicidade consiste na ausência de
perturbação e na eliminação das paixões; colocam as três o ideal do sage na
indiferença relativamente aos motivos propriamente humanos da vida. Esta
concordância no terreno prático devia limar necessariamente o antagonismo das
respectivas posições teóricas e aconselhar, óbviamente, a encontrar um terreno
de encontro sobre o qual as três orientações pudessem conciliar-se e fundir-se. O
eclectismo (de ek-légo, escolher) representa precisamente esta tendência.

As condições históricas favorecem o eclectismo. Depois da conquista da


Macedónia pelos romanos (186 a.C.), a Grécia tornara-se de facto uma pro-

67

víncia do Império Romano. Roma começou a acolher e a cultivar a filosofia


grega que se torna um elemento indispensável da cultura romana. E, por sua
parte, a filosofia grega vai-se adaptando gradualmente à mentalidade romana.
Mas esta era pouco apta para dar relevo a divergências teoréticas das quais não
surgisse uma diferença na conduta prática; de modo que o intento de escolher,
nas doutrinas das várias escolas, os elementos que se prestassem para serem
conciliados e fundidos num corpo único encontrou o mais válido apoio na
mentalidade romana. Mas, dado que a escolha destes elementos supunha um
critério, chegou-se a admitir como critério o acordo comum dos homens
(consensus gentium) sobre cortas verdades fundamentais, admitidas como
subsistentes no homem independentemente e antes de qualquer investigação.

A orientação ecléctica apareceu pela primeira vez na escola estoica, dominou por
largo tempo na Academia e foi acolhida também pela escola peripatética. Só os
Epicuristas se mantiveram estranhos ao Eclectismo, permanecendo fiéis à
doutrina do mestre.

§ 109. O ESTOICISMO ECLÉCTICO

O encaminhar da escola estoica para o Eclectismo que começou com Bocto de


Sídon (falecido em 119 a.C.), torna-se decisivo com Panézio de Rodes que viveu
entre 185 e 109 a.C.. Viveu em Roma por algum tempo juntamente com o
historiador Políbio; foi amigo de muitos nobres romanos, entre os quais Cipião o
Africano e Lélio-, mestre de muitos outros; e teve certamente grande influência no
desenvolvimento do interesse filosófico em Roma. Dos seus escritos restam-nos
os títulos. Um deles, Sobre o Dever, foi o modelo do De officiis de Cícero. Panézio
foi um grande admira-

68
dor de Aristóteles o inspirou-se em muitos pontos na sua doutrina. Com efeito,
afirmou, com Aristóteles e contra a doutrina clássica do Estoicismo, a eternidade
do mundo. Distinguiu na alma três partes: vegetativa, sensitiva e racional,
seguindo também nisto Aristóteles e separando nitidamente a parte racional das
outras.

O mais famoso discípulo de Panézio foi Posidónio de Apameia, na Síria, que


nasceu cerca de
135 a.C. e morreu com 84 anos como chefe da escola que fundara em Rodes,
escola na qual tinha tido como auditores Cícero, e Pompeu. Das 23 obras que lhe
são atribuídas apenas temos fragmentos. Posidónio recolheu na sua doutrina
muitos elementos platónicos: a imortalidade da alma racional e

a sua pré-existência; a atribuição das emoções, que para o Estoicismo apenas


tinham importância negativa como enfermidades da alma, à alma concupiscível,
compreendida como uma potência inerente ao organismo corpóreo.

§ 110. O PLATONISMO ECLéCTICO

A orientação céptica, que prevalecera na Academia com Carnéades e os seus


sucessores imediatos, modificou-se no sentido do Eclectismo com Ffion de Larissa
que foi a Roma durante a guerra de Mitrídates (88 a.C.) e aqui teve, entre os seus
ouvintes, Cícero. Ffion abandona já o princípio da suspensão do assentimento que
é fundamental para os Cépticos. O homem não pode alcançar a certeza
incondicionada da ciência, mas pode conseguir formular a clareza (enàrgheia), a
evidência de uma convicção satisfatória: pode, portanto, formular uma

teoria ética completa, combatendo as falsas doutrinas morais e ensinando as


justas.

69

Mas a própria certeza incondicionada que Filon excluía foi admitida pelo seu
sucessor, Antíoco de Ascalona, com o qual a Academia abandona definitivamente
o cepticismo para inclinar-se para o eclectismo. Antíoco (morto em 68 a.C.) foi
também mestre de Cícero que ouviu as suas lições no Inverno de 79-78 e entrou
em polémica literária com Ffion. Sem uma certeza absoluta não é possível,
segundo Antíoco, nem sequer estabelecer graus de probabilidade, dado que a
probabilidade se pode julgar somente pelo fundamento da verdade e não se pode
admitir aquela se não se está na posse desta. Como critério da verdade ele
colocava o acordo entre todos os verdadeiros filósofos e procurou demonstrar
esse acordo entre as doutrinas académicas, peripatéticas e estoicas, só o
conseguindo à custa de graves deformações.

Ao eclectismo de Antíoco liga-se o de Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) que deve
a sua importância, não à originalidade do pensamento, mas à sua capacidade de
expor de forma clara e brilhante as doutrinas dos filósofos gregos contemporâneos
ou precedentes. O próprio Cícero reconhece a sua dependência das fontes gregas
dizendo das suas obras filosóficas numa carta Ad Attico (XII, 52, 3): "custam-me
pouca fadiga, porque de meu incluo só as palavras que, não me faltam". Dos
principais escritos de Cícero, o De republica e o De legibus têm como fontes
Panézio e Antíoco; o Hortênsio que se perdeu inspirava-se no Protréptico de
Aristóteles; os Academia, em Antíoco; o De finibus no mesmo Antíoco e, quanto
ao epicurismo, em Zenão e Filodemo. As Tusculanae dependem dos escritos do
académico Crantore, de Panézio, de Antíoco, do estoico Crisipo, de Posidónio. O
De natura deorum, de várias fontes estoicas e epicuristas. O De oficies, de
Panézio; os outros esciftos menores, de fontes análogas.

70

Como Antíoco, Cícero admite como critério da verdade o consenso comum dos
filósofos e explica tal consenso com a presença em todos os homens de noções
inatas, semelhantes às antecipações do Estoicismo. Na física, rejeita a concepção
mecânica dos Epicuristas. Que o mundo possa formar-se, devido a forças cegas,
parece-lhe tão impossível como, por exemplo, obter os Annales de Énnio atirando
ao chão desordenadamente um grande número de letras alfabéticas. Mas quanto
a resolver de modo positivo os problemas da física, Ocero considera isso
impossível e assim adopta, neste ponto, uma posição céptica. Na ética, -afirma o
valor da virtude por si própria, mas oscila entre a doutrina estoica e a académico-
peripatética. Afirma a existência de Deus e a liberdade e a imortalidade da alma,
mas evita afrontar os problemas metafísicos inerentes a tais afirmações.

Semelhante à posição de Cícero é a do grande erudito seu amigo, Marco Terêncio


Varrão (116-27 a.C.). Varrão manteve-se fiel à ética de Antíoco. Em contrapartida,
aceitava de Panézio a distinção da teologia em mítica, física e política. A teologia
mítica é constituída pelas representações que os poetas dão da divindade. A
teologia física é a que é própria das teorias dos filósofos em torno do inundo e de
Deus. A teologia política é a que encontra a sua expressão nas disposições
legislativas que se referem ao culto. Por sua parte, Varrão aceitava o conceito
estoico da divindade como alma do mundo.

§ 111. O ARISTOTELISMO ECLÉCTICO

A orientação ecléctica nunca se radicou profundamente na escola peripatética.


Andrónico de Rodes, que de 70 a.C. em diante e durante 10 ou 11 anos foi o
chefe da escola peripatética de Atenas, é

71

sobretudo famoso por ter cuidado da edição dos escritos acroamáticos de


Aristóteles e por ter iniciado os comentários às obras do mestre a que se
dedicaram em seguida todos os peripatéticos. O seu principal interesse aparece
ligado à lógica.
Entre os eclécticos peripatéticos são de enumerar o grande astrónomo Claudio
Ptolemeu, no qual exerceram influência alguns elementos da investigação
platónica e estoica e a doutrina pitagórica dos números, e o médico Galeno (129-
199 a.C.) que foi a maior autoridade em medicina até à Idade Moderna. Ao lado
das quatro causas aristotélicas: matéria, forma, causa eficiente e causa final,
Galeno admitiu uma quinta, a causa instrumental, isto é, o instrumento ou o meio
mediante o qual as outras quatro operam e que Aristóteles considerara idêntica à
causa eficiente. Galeno foi talvez o primeiro também a -introduzir na lógica
aristotélica o tratamento dos silogismos hipotéticos, modelados sobre os
anapodíticos dos Estoicos: as afirmações de Alexandre de Atrodísia que atribuíam
aos primeiros aristotélicos (Teofrasto o Eudemo) esta inovação não encontram
confirmação. Por silogismo hipotético entende ele o silogismo que tem como
premissa uma proposição condicional ou disjuntiva, como nos esquemas
seguintes: "Se S é, é P; mas S é, portanto é P.); "S é ou P ou Q; mas não é Q;
portanto é P". Na sua Introdução à Dialéctica, Galeno afirmava que enquanto o
silogismo categórico (,isto é , aristotélico) se requer nos raciocínios dos
matemáticos, o hipotético requer-se para discutir problemas como estes: "Existe o
fado?", "Existem os deuses?", "Existe a providência?" que são problemas da física
estoica. De agora em diante o tratamento do silogismo hipotético começou a fazer
parte do corpo da lógica aristotélica e transmitiu-se como tal, através de Boécio, à
lógica medieval.

72

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CICERO

O último peripatético de alguma importância foi Alexandre de Afrodísia (ensinou


em Atenas entre
198 e 211), o famoso comentador de Aristóteles, o exegeta por excelência. O seu
comentário só nos chegou em parte. Alexandre propunha-se por ele aclarar e
defender a doutrina de Aristóteles contra as afirmações opostas das outras
escolas e especialmente dos Estoicos. O ponto do seu comentário que iria ter na
Idade Média e no Renascimento maior importância é o que se refere ao problema
do intelecto activo. Alexandre distingue três intelectos: 1.o intelecto físico ou
material, que é o intelecto potencial; ele é semelhante ao homem que é capaz de
aprender uma arte mas não está ainda na sua posse; 2.' o intelecto adquirido, que
é a capacidade de pensar, semelhante ao artista que consegue a posse da sua
arte; 3.O o intelecto activo que opera a passagem do primeiro para o segundo
intelecto. Este não pertence à alma humana, mas age sobre ela de fora. Ele é a
própria causa primeira, isto é, Deus. Esta doutrina iria oferecer o ponto de partida
para as numerosas interpretações do intelecto activo que se sucederam na
Escolástica Árabe e Latina e no Renascimento.

§ 112. A ESCOLA CíNICA

Na primeira metade do século 111 a.C., Bión de Boristene iniciou aquele género
literário que foi depois a característica da escola cínica, a diatribe. As diatribes
eram prédicas morais contra as opiniões e os costumes dominantes; prédicas
enriquecidas com múltiplos artifícios retóricos destinados a aumentar a sua
eficácia.

Menipo de Gadara, pelos meados do século 111 a.C., nas suas sátiras escritas
em prosa mas intercaladas de versos, representou cenas burlescas

73

nas quais tomou como alvo os Epicuristas e os Cépticos. Baseado no seu


exemplo, Vairrão escreveu as Sátiras menipeias. Cerca dos meados do século
111, a escola cínica perdeu a sua autonomia e acabou por fundir-se com a
estoica. No começo da nossa era ela renasce do próprio Estoicismo; e renasce
com o mesmo carácter de discurso petulante e sarcástico que o mais das vezes
não tem nenhuma base filosófica e nenhuma justificação moral. Difundem-se
neste período 51 Cartas atribuídas a Diógenes e a Crates. Séneca louva muito
* seu contemporâneo Demétrio, que parece ter sido
* renovador do Cinismo.

Dión, chamado Crisóstomo, que viveu nos tempos do imperador Trajano, surge
corno um propagandista popular das doutrinas tradicionais dos Cínicos.

A escola cínica, que se reduziu a uma simples pregação moral sem fundamento
filosófico, não sofreu a influência dos sucessivos desenvolvimentos da
especulação e sobreviveu até ao século V d.C.

§ 113. SÉNECA

O Estoicismo do período romano, ainda que obedecendo à orientação ecléctica,


geral da época, orientação para a qual as divergências teóricas passam para
segundo plano frente ao acordo fundamental das conclusões práticas, a que se
subordina completamente a investigação filosófica, mostra já de modo evidente
um carácter que a fase ulterior da especulação deveria acentuar: a prevalência do
interesse religioso. Esta prevalência funda-se no

acento que nos estoicos romanos recebe o tema da interioridade espiritual. A


concepção estoica do sage, que é auto-suficiente e alcança por si a verdade, é o
pressuposto do valor que o Estoicismo começa a reconhecer àquilo que hoje
chamamos

74

introspecção ou consciência. Para chegar a Deus e conformar-se com a sua lei, o


sage estoico não tem necessidade de olhar para fora de si; deve apenas olhar
para si próprio. Os estoicos romanos fazem deste retomo do homem a si próprio
um dos seus temas preferidos, tema que devia depois tornar-se central e
dominante no Neoplatonismo. Não se trata, contudo, de um tema que ofereça
ponto de partida para novas formulações conceptuais. Dos numerosos estoicos da
época imperial de que sabemos o nome e algumas notícias, nenhum apresenta
qualquer originalidade de pensamento. Só quatro deles, Séneca, Musónio,
Epicteto e Marco Aurélio nos aparecem dotados de personalidade filosófica
própria.

Lúcio Anneo Séneca, de Córdova, em Espanha, nascido nos primeiros anos da


era cristã, foi mestre e, por longo tempo, conselheiro de Nero, por ordem do qual
morreu em 65 d.C.. Dos seus escritos ficaram-nos sete livros de Qestioni naturali e
numerosos tratados de carácter religioso e moral (Diálogos, Sobre a Providência,
Sobre a Constância do Sage, Sobre a ira, Sobre a Consolação a Márcia, Da Vida
Feliz, Da Brevidade da Vida, Sobre a Consolação a Políbio, Sobre a Consolação à
Mãe Elvia, Dos Benefícios, Sobre a Clemência). Foi além disso autor de vinte
livros de Cartas a Lucilio que cão uma fonte de notícias sobre o Estoicismo e o
Epicurismo.

Séneca insiste no carácter prático da filosofia: "a filosofia -escreve- ensina a fazer,
não a dizem (F-p., 20, 2). O sage é para ele o "educador do género humano" (Ep.,
89, 13). Por isso descura a lógica e só se ocupa da física de um ponto de vista
moral e religioso. Com efeito, a ignorância dos fenómenos físicos é a causa
fundamental dos temores do homem e a física elimina tais temores. Além da
grandeza do mundo e da divindade ensina-nos

75

a reconhecer a nossa pequenez. Também, em certo sentido, a física é superior à


própria ética porque enquanto esta trata do homem, aquela trata da divindade
que se revela nos céus e em geral no mundo. (Quest. nat., 1, Pról.). Contudo, nem
a física nem a metafísica de Séneca contêm algo de original relativamente às
doutrinas comuns do Estoicismo. Pe-lo que respeita ao conceito da alma, pelo
contrário, ele inspira-se na doutrina platónica. Depois de distinguir uma parte
racional e uma parte irracional da alma, distingue nesta última duas partes: uma
irascível, ambiciosa, que consiste nas paixões; a outra humilde, lânguida,
dedicada ao prazer, divisão que corresponde à platónica das partes racional,
irascível e apetitiva da mesma alma. Inspira-se também em Platão ao considerar a
relação da alma com o corpo: o corpo é prisão e tumba da alma. O dia da morte é
para a alma verdadeiramente o dia do nascimento eterno (Ep.,
102, 26). Séneca está muito longe do rigorismo estoico que colocava um abismo
entre o sage que segue a razão e o estulto que a não segue. Está convencido que
existe sempre uma oposição entre aquilo que o homem deve ser e aquilo que é na
realidade; e que a oscilação entre o bem e o mal é própria de todos os homens;
por isso é levado a considerar com maior indulgência as imperfeições e as quedas
do homem. A sua máxima moral fundamental é o parentesco universal entre os
homens: "Tudo aquilo que vês, que contém o divino e o humano, tudo é uno:
somos todos membros de um grande corpo. A natureza gerou-nos como parentes
dando-nos uma mesma origem e um mesmo fim. Ela inspirou-nos o amor
recíproco e fez-nos sociáveis" (Ep., 95, 51). Séneca afirma e a interioridade de
Deus no homem: "Não devemos erguer as mãos ao céu nem pedir ao guarda do
templo que nos permita aproximar-nos das orelhas

76

da estátua de Deus, como se assim pudéssemos mais facilmente ser ouvidos: a


divindade está próximo de ti, está contigo, está dentro de ti" (Ep., 41).

A doutrina de Séneca é assim um estoicismo ecléctico de fundo religioso. Alguns


aspectos desta doutrina, como o conceito da divindade, da fraternidade e do amor
entre os homens e da vida depois da morte estão tão próximas do cristianismo
que fizeram nascer a lenda das relações de Séneca com S. Paulo, lenda que
levou até a falsificar uma correspondência (que não conservamos) entre ele e o
apóstolo. Tais relações entre Séneca e S. Paulo certamente nunca existiram. Mas
não há dúvida que a sua doutrina, especulativamente pouco notável, está
impregnada por uma inspiração religiosa que lhe dá um carácter original.

§ 114. MUSóNIO. EPICTETO

Musónio Rufo de Volsínio na Etrúria, foi expulso por Nero em 65 d.C. Regressou
seguidamente a Roma e esteve em relações pessoais com o imperador Tito. Dos
seus discursos conservou-nos numerosos fragmentos o Florilégio de Stobeo.
Musónio acentua ainda mais que Séneca o carácter prático e moralizante da
filosofia. O filósofo é o educador e o médico dos homens; deve curá-los das
paixões que são as suas doenças. Para este fim, não há necessidade de muita
ciência, mas apenas de muita virtude. Musónio inclina-se, por esta desvalorização
da actividade teorética, para o cinismo e isto retira-lhe toda a importância
especulativa.

Foi seu discípulo Epicteto de Hierápolis, na

Frígia. Nasceu cerca do ano 50 d.C., era escravo de Epafrodito, liberto de Nero.
Libertado, viveu em Roma até 92-93 d.C. quando o édito de Domi-
77

ciano baniu de Roma todos os filósofos. Fundou então em Nicópolis no Epiro uma
escola à qual pertenceu entre outros Flávio Arriano que recolheu as suas lições.
Dos oito livros de Diatribes ou Dissertações em que Arriano recolheu tais lições,
restam quatro. Além disto, ficou-nos um Manual que é uma espécie de breve
catecismo moral.

A intenção de Epicteto é a de voltar à doutrina original do Estoicismo e


especialmente a Crisipo. Mas a sua doutrina conserva o mesmo carácter da de
Séneca, o predomínio da irreligiosidade. Deus é o pai dos homens (Diss., 1, 3, 1).
Ele está dentro de nós e da nossa alma; por isso o homem nunca está só (/h., 1,
14, 13). A vida é um dom de Deus e é um dever obedecer ao preceito divino.
Estas e semelhantes expressões que, ainda que na letra não se afastem muito
das expressões análogas dos outros estoicos, acentuam a dependência do
homem em relação a Deus, e fizeram nascer, também para Epicteto, a opinião de
que ora cristão. Durante a época bizantina, parafraseou-se e comentou-se o
Manual para uso cristão. Na realidade, a diferença entre o moralismo religioso de
Epicteto e Séneca e o Cristianismo, está no facto de que, para o primeiro, o
homem só pode alcançar a virtude através do exercício da razão e da procura
inteiramente autónoma, enquanto para o Cristianismo o caminho do bem é
outorgado ao homem pelo próprio Deus.

Segundo Epicteto, a virtude é liberdade; mas o homem só pode ser livre


desvinculando a sua própria posição interior de toda a dependência das coisas
externas. Tudo aquilo que não está em seu poder, o corpo, os bens, a reputação
e, em geral, todas as coisas que não são actos do seu espírito não devem ter o
poder de comovê-lo e dominá-lo. As coisas sobro que deve fundar a sua liberdade
são aquelas que estão em seu poder, isto é, os

78

actos espirituais: a opinião, o sentimento, o desejo, * aversão. Sobre estes ele


pode agir, modificando-os * dominando-os de modo a tornar-se livre. Epicteto
resume a ética estoica na frase Suporta e abstém-te (Gellio, Noct. att., XVII, 199,
6). É necessário abstermo-nos de hostilizar aquilo que não está no nosso poder
evitar, enquanto que é necessário opormo-nos às coisas que estão no nosso
poder, isto é, às opiniões, sentimentos e desejos contra a natureza ou irracionais.

Arriano de Nicomédia, na Bitínia, foi cognominado o "segundo Xenofonte" na


medida em que nos conservou as doutrinas de Epicteto. Também ele, como
Xenofonte, foi militar e homem de acção. Recolheu de Epicteto as Dissertações e
os Colóquios que se perderam; e é também o autor daquele resumo das
Dissertações que é o Manual.

§ 115. MARCO AURÉLIO

Com Marco Aurélio o estoicismo sobe ao trono imperial de Roma. Nascido em 121
d.C., de nobre família, Marco Aurélio foi adoptado pelo imperador Antonino e
sucedeu-lhe em 161. Morreu em
180 durante uma campanha militar. Deixou um escrito composto de aforismos
diversos, intitulado Colóquios consigo próprio ou Recordações, em 12 livros.
Como Séneca, afasta-se aqui e ali da doutrina tradicional dos Estoicos; destaca-se
principalmente no que respeita ao conceito da alma, no qual renega o
materialismo estoico. Considera que o homem é composto de três princípios: o
corpo, a alma material que é o princípio motor do corpo, e a inteligência. Como
todos os elementos do organismo humano são partes dos correspondentes
elementos do universo, assim o intelecto humano é parte do mundo. O génio que
Zeus deu a cada

79

um como guia não é mais que a -inteligência e esta é um "pedaço" do próprio


Zeus (V, 27). Das funções psíquicas, as percepções pertencem ao corpo, os
impulsos à alma, os pensamentos ao intelecto.

Como Séneca e Epicteto, Marco Aurélio considera que a condição da filosofia é o


retiro da alma em si própria, a introspecção ou a meditação interior (IV, 3). Diz:
"Olha para dentro de ti: dentro de ti está a fonte do bem, sempre capaz de brotar,
se souberes sempre escavar em ti próprio" (VII, 59). Por isso, faz suas as teses
estoicas da ordem divina do mundo e da providência que o governa, mas afirma
também, por sua conta, o parentesco dos homens com Deus. O génio individual
como parte do intelecto universal e portanto de Zeus é o fundamento desta
convicção religiosa. Pelo seu parentesco comum, os homens devem amar-se uns
aos outros. "É próprio do homem amar também aquele que o fere. Deves ter
presente que todos os homens são teus parentes, que eles pecam somente por
ignorância e involuntariamente, que a morte nos ameaça a todos e,
especialmente, que ninguém. te pode causar dano porque ninguém pode atacar a
tua razão" (VII, 22). O homem é parte do fluxo incessante das coisas. "A realidade
é como um rio que corre perenemente, as forças mudam, as causas transformam-
se mutuamente e nada permanece imóvel" (IX, 28). Qual é o destino da alma
neste fluxo? Marco Aurélio pinta com cores resplandescentes a condição da alma
que, com a morte, se liberta do corpo, admitindo também a antiga crença do corpo
como prisão e tumba da alma. Mas, para ele, o problema de saber se esta
libertação será o inicio de uma nova vida ou o fim de toda a sensibilidade passa
para segundo plano. Pode acontecer que a alma, ao reabsorver-se no todo, se
transmute noutros seres
80

(como esta página é manuscrita, não se encontra aqui transcrita)


Página do livro "De Finibus", de Cícero (Códi(,,é,,
Palatino Latino 1513 da Bliblioteca Vaticana)

(IV, 21). Nisto Marco Aurélio é mais fiel que o platonizante Séneca à doutrina
original do Estoicismo.

NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 109. Os dados antigos sobre o Estoicísmo Ecléctico estão recolhidos in
ZELLER, 111, 1, p. 57 ss. Os fragmentos de Panézio foram recolhidas por
FoWLER (juntamente com os de Ecatón), Bonn, 1885. Funda- mental sobre a
média Stoa a obra de SCHMEKEL, Die Philosophie der mittleren Stoa in ihrem
geschichtliche Zusammenhange, Berlim, 1892.

§ 110. Os dados antigos sobre Filon e Antíoco, ín ZELLER, EI, 1, p. 609 ss. As
obras de Cícero tiveram numerosas edições críticas: ver a da Biblioteca
Teubneriana de Leipzig.

Sobre Terêncio Varrão: ZELLER, 111, 1, p. 692 ss. As obras filosóficas de Varrão
perderam-se e -apenas restam alguns fragmentos. A distinção das três teologias
foi-nos conservada por S. AGOSTINHo, De civitate Dei, VI, 5.

§ 111. Os fragmentos de Andrónico foram recolhidos por LITTIG na sua obra


Andrónico de Rodes, II e 111 partes, 1894-95. Os fragmentos de Cláudio
Ptolomeu, in MULLER, Pragm. hist. graec., III, p. 348 ss. As obras completas de
Galeno foram editadas ao cuidado de Xuhn no Corpus medicorum graecorum,
Leipzig, 1821-33. A Introdução à Lógica, só descoberta pelos meados do século
passado, foi considerada apõcrifa por PrantI, mas agora a sua autenticidade é
geralmente admitida, Foi editada com o título Institutio Logica por Kalbfleisch,
Leipzig, 1896. De Alexandre de Afrodísia foram publicadas as obras na
"Collezione dei Commentari greci" de ARISTõTELEs, a cargo da Academia de
Berlim.

Sobre estes peripatéticos: ZELLER, M, 1, 641 ss. Sobre a lógica: PRANTL, 1, 528
ss.

§ 112. Sobre a vida, os escritos e a doutrina de Blon e de Menipo: DIõGENEs


LAÉRcio, IV, 46 ss (Bion), VI, 99 ss. (Menipo). Os fragmentos de Bion, in
MULLACH, Fragmenta phil. graec. 11, 423 ss.

Os dados antigos sobre os cínicos posteríores, in ZELLER, 111, 1, 791 ss.

81

§ 113. Os dados antigos sobra Séneza foram recolhidos ín ZELLER, HI, 1, p. 719
ss. Das obras de Séneca ver as edições Teubnerianas de Leipzig. Sobre Séneca:
MARCHESI, Seneca, Messina, 1920; MARTIjA, Les moralistes sous Z'Empire
romain, Paris, 1896.

§ 114. Os dadosantigos sobre Mus6nio, in ZELLER, nI, 1, p. 755 ss. Os


fragmento.<,, recolhidos por HENsE, Leipzig, 1905 (BibL Teubneriana). Sobre
Epicteto e Arriano os dados antigo-s in ZELIER, 111, 1, p. 765 ss. As Dissertações
(a cargo de SCHENKL), O Manual e os fragmentos, editados em Leipzig, 1916.
O Manual, trad. italiana de GIACOmo LEoPARDI. Sobre Epicteto: BONHOrFER,
Die Ethik der Epikt49@G Sttutgard, 1874.

§ 115. Os <lados antigos sobre Márcio Aurélio estão recolhidos in ZELLER, 111,
1, p. 781 ss. As Recordações (In semetipsum, livros XII) foram editados
criticamente por SchenkI, Leipzig, 1913 (Bibl. Teubneriana). Trad. italiana:
ORNATO, MORICCA, MAZZANTINI.

Sobre Marco Aurélio: RENAN, M. A. et Ia fin du monde antique, Paris, 1882.

82

XVIII

PRECURSORES DO NEOPLATONISMO

§ 116. CARACTERISTICAS DA FILOSOFIA NA ÉPOCA ALEXANDRINA

A subordinação da investigação filosófica a um fim prático, posto o reconhecido


como válido independentemente da própria investigação, devia levar a
desvalorizar o significado e a função da filosofia como indagação racional. A
primeira época e a época clássica da filosofia grega tinham reconhecido à
investigação o mais alto valor: na investigação que tende a justificar-se, a
aprofundar-se em si própria, a reconhecer o seu ponto de partida e o seu fim
último, tinha colocado o valor da personalidade humana e o único caminho para o
homem se formar como homem. Mas subordinada a investigação a um fim dado
de antemão, o valor deste fim não pode considerar-se assegurado pela própria
investigação. Este valor deve vir no fim de contas por uma revelação
transcendente ou por uma sabedoria originária, numa palavra por uma tradição
religiosa,

83

à qual a indagação filosófica tem de subordinar-se.


O valor reconhecido à tradição neste período coincide com a orientação religiosa
da investigação filosófica. A investigação filosófica na Grécia antiga nasceu como
vontade de libertação das tradições, dos costumes e das opiniões estabelecidas; e
Sócrates é o próprio símbolo de uma tal investigação, da qual Platão tentou dar o
fundamento teorético: o homem não necessitou de receber a verdade da tradição
porque esta verdade está confiada à sua razão. Com o prevalecimento do
interesse religioso, a tradição retoma os seus direitos: a verdade é fruto de uma
revelação originária e a sua única garantia é a tradição. Daqui deriva a tendência
da época alexandrina para fabricar escritos que deveriam testemunhar a
antiguidade de cortas crenças e conferir-lhes a garantia da tradição. O
florescimento de escritos de falsa atribuição, próprio deste período, é, pois, uma
consequência natural da atitude religiosa que a filosofia vem assumindo.

O acentuar do carácter religioso da filosofia nos


Estoicos do período romano é o início de uma orientação que se torna cada vez
mais dominante no período seguinte e que encontra a sua primeira expressão
num eclectismo que procura recolher e cerzir os elementos religiosos implícitos na
história do pensamento grego, da religião dos mistérios ao pitagorismo e ao
platonismo; depois, nas filosofias que se enlaçam expressamente com as religiões
orientais e procuram conduzir de novo a elas o próprio pensamento grego (filosofia
greco-judaica). Em suma, a expressão mais alta desta orientação será o
Neoplatonismo.

§ 117. OS NEOPITAGóRICOS

A revivescência da filosofia pitagórica manifesta-se no século 1 a.C. com o


aparecimento dos

84

escritos pitagóricos de falsa atribuição (Ditos Áureos, Símbolos, Cartas, atribuídas


a Pitágoras; Sobre a Natureza do Todo, atribuído ao lucano Ocello), dos quais nos
restam alguns fragmentos. Todos são caracterizados pelo reconhecimento de uma
separação total entre Deus e o mundo, reconhecimento que traz consigo a
necessidade de suportar divindades inferiores que fazem de intermediários entre
Deus e o mundo. A este mesmo tipo de escritos pertencem os que nos chegaram
sob o nome de Hermes Trismegisto, que apareceram durante o século 1 d.C.
Estes escritos tendem a relacionar a filosofia grega com a religião egípcia: Hermes
é reconhecido como o próprio deus egípcio Theut ou Thot. É comum nos escritos
de Hermes a hostilidade contra o cristianismo e a defesa do paganismo e das
religiões orientais.

Como renovador da filosofia pitagórica, Cícero assinala P. Nigídio Fígulo, falecido


em 45 a.C. Pelo final do século I d.C., Apolónio de Tiana escreveu uma vida de
Pitágoras na qual desenhou de modo novelesco a figura do fundador do
pitagorismo. Apolónio viajou por todo o Império Romano como mago, profeta e
operador de milagres. Filostrato escreveu uma Vida de Apolórdo no princípio do
século 111 d.C. Num escrito, Sobre os Sacrifícios, de Apolónio, surge a distinção
entre o primeiro deus e as outras divindades que havia de dominar a especulação
teológica deste período.

Parece que foram compostas, por volta de


140 d.C., as duas obras que nos chegaram de Nicómaco de Gerasa, na Arábia:
Introdução à Aritmética e Manual de Música. Na primeira obra sustenta-se a pré-
existência dos números no espírito do criador anteriormente à criação do mundo.
Os números são os modelos em conformidade com os quais todas as coisas
foram ordenadas. Os princípios da criação são o uno, que é identificado com a
razão

85
ou divindade, e a dualidade que se identifica com a matéria, segundo a doutrina
dos antigos académicos.

Numénio de Apameia, na Síria, viveu na segunda metade do século 1 d.C. e a sua


doutrina é uma mistura de elementos pitagóricos e platónicos. Segundo Numétrio,
a filosofia dos gregos deriva da sabedoria oriental; Platão é um "Moisés
ateicizante". Escreveu: Dos Mistérios segundo Platão, Sobre o Bem e Da
Separação dos Académicos de Platão, obras das quais temos fragmentos. Notável
é a divisão das três divindades. Ele distingue o demiurgo, da primeira divindade,
como um segundo deus. O primeiro deus é puro intelecto, princípio da realidade e
rei do universo. O segundo deus é o demiurgo, que opera sobre a matéria, forma o
mundo e é o princípio do devir. O mundo, produzido pelo demiurgo, é o terceiro
deus. Fundem-se nesta concepção os conceitos platónicos do bem como princípio
supremo e do demiurgo com o conceito aristotélico de Deus como puro intelecto.
No homem, Numénio distingue duas almas, uma racional o outra irracional, e
declara que o ingresso da alma num corpo é sempre um mal, dado que a
irrealidade incorpórea, e o devir corpóreo estão entre si como a boa e a má alma
do mundo.

A doutrina de Numénio apresenta características que se deviam tornar comuns na


especulação deste período: o sincretismo greco-oriental, a conciliação entre
Pitágoras e Platão, a crença em divindades katermédias entre Deus e o mundo, a
oposição entre espírito e matéria como oposição entro bem e mal,

§ 118. O PLATONISMO MÉDIO

A mesma mistura de doutrinas dispares encontra-se nos sequazes da escola de


Platão a partir

86

do século 1 d.C. como continuação daquela orientação ecléctica que começara


com Antíoco de Asca. lona. Neste período, dos numerosos representantes da
escola o mais notável é Plutarco, de Queroncia, nascido em 46 e morto em 120
d.C. que desenvolveu a sua actividade científica em Atenas aonde foi no ano 66
d.C. Ficaram-nos dele numerosíssimas obras de comentário a Platão, de polémica
contra os Estoicos e os Epicuristas, de física, de psicologia, de ética, de religião e
de pedagogia. Ele é também autor das famosas Vidas Paralelas de gregos e
romanos.

Plutarco considera impossível fazer derivar todo o mundo de uma única causa. Se
Deus fosse a única causa do mundo, não deveria existir o mal; tem pois de se
admitir, ao lado de Deus, um outro princípio que seja a causa do mal no mundo
como Deus é a causa do bem. Este princípio não é a matéria, mas uma força
indeterminada e indeterminável que é subjugada por Deus no acto de criação,
mas se mantém de modo permanente no mundo como causa de toda a
imperfeição e de todo o mal. Deus como puro bem é assim situado absolutamente
acima do mundo; e a sua relação com o mundo é estabelecida pelas divindades
intermédias ou demónios com cuja acção Plutarco explica e justifica as crenças da
religião popular dos gregos e das outras nações.

Plutarco aceita a divisão platónica da alma em intelectiva ou racional, irascível e


apetitiva (Sobre as virtudes morais, 3). Noutros lados, combina a divisão platónica
com a aristotélica, admitindo assim cinco partes da alma. De todas as maneiras,
mantém a superioridade do intelecto sobre as outras partes. Na ética, segue
preferentemente Aristóteles. Há coisas que não têm relação necessária connosco
como o céu, a terra, o mar, os astros; há outras que têm como o bem, o mal, o

87

prazer, a dor. As primeiras são objecto da razão (logos) científica ou teorética, as


segundas, da razão volitiva ou prática. A virtude própria da razão especulativa é a
sabedoria (sofia); a própria da razão prática é a sageza (frónesis). A razão prática
tem como fim moderar os impulsos da parte irracional da alma e encontrar o justo
meio entre o excesso e o defeito. Determinam-se assim as virtudes morais ou
éticas, que Plutarco opõe à apatia cínico-estoica, como a harmonia e o justo meio
das paixões frente à abolição completa delas, que não é possível nem desejável.

A obra de Plutarco teve uma importância muito superior ao seu significado


especulativo. Através dela se difundiram e foram conhecidas em todos os países
as doutrinas fundamentais da filosofia grega, mais que através das obras originais.
Contudo, nada na sua filosofia existe que tenha a potência e o rigor da
especulação clássica.

§ 119. A FILOSOFIA GRECO-JUDAICA

Se, por uma parte, a filosofia grega estende a mão neste período à sabedoria
oriental, por outra a sabedoria oriental estende a mão à filosofia grega,
solidarizando-se com ela na mesma tentativa de fundir juntamente os resultados
da especulação grega e da tradição religiosa do Oriente.

Na Palestina, no século 1 da era cristã, a seita dos Essénios, de que nos falam
Ffion, Josefo e Plínio, mostra uma profunda afinidade com o Neopitagorismo de tal
modo que faz supor que ela se tenha desenvolvido sob a influência dos mistérios
órfico-pitagóricos. Esta seita era constituída por várias comunidades submetidas a
uma disciplina severa e a um certo número de regras ascéticas. Do ponto de vista
doutrinal, interpretavam alegó-

88

MARCO AURÉLIO

ricamente o Velho Testamento, segundo uma tradição que faziam remontar a


Moisés. Acreditavam na pré-existência da alma e na vida depois da morte,
admitiam as divindades intermédias ou demónios e a possibilidade de profetizar o
futuro. Quase todas essas crenças se encontram no Neopitagorismo e o
Platonismo médio.

Aos Essénios se costuma frequentemente atribuir as doutrinas expostas nos


documentos recentemente encontrados nas proximidades do Mar Morto e que se
designam precisamente como os "manuscritos do Mar Morto". Com efeito, estas
doutrinas não se diferenciam das dos Essénios que se conhecem pelas fontes
tradicionais; e de qualquer modo os documentos que os contêm são uma outra
prova de difusão da filosofia greco-judaica com carácter religioso na época que
precede imediatamente o advento do cristianismo.

Afim aos Essénios foi a seita judaico-egípcia dos Terapêuticos que se


desenvolveu no Egipto.

Terreno muito favorável para a fusão dos elementos doutrinais gregos o orientais
foi Alexandria. Alguns fragmentos de Aristóbulo (cerca de 150 a.C.) procuram
demonstrar que já Pitágoras e Platão tinham conhecido os escritos do antigo
Testamento.

No livro da Sabedoria do Antigo Testamento, provavelmente composto no século 1


a.C., há claras reminiscências do Platonismo e do Pitagorismo, -ia afirmação da
pré-existência e da imortalidade da alma, do impedimento que o corpo constitui
paTa ela e na concepção de uma matéria pré-existente e do Logos como
mediador da criação divina.

§ 120. FILON DE ALEXANDRIA

Nascido em Alexandria entro o ano 30 e o ano


20 a.C., Fílon o judeu foi a Roma no ano 40 d.C. como embaixador dos judeus
alexandrinos ao

89

imperador Calígula. Temos dele grande número de escritos de argumentos


diversos, de que os principais sã o os que constituem um comentário alegórico ao
Velho Testamento.

Por um lado, Ffion está cheio de veneração pelas Sagradas Escrituras e, em


primeiro lugar, por Moisés que ele considera inspirado directamente por Deus; por
outro lado, é admirador dos filósofos eh ade expressa por eles
gregos e considera que a verd é a mesma que está contida nos livros sagrados. A
esta convicção chega -interpretando alegoricamente as doutrinas do Velho
Testamento e adaptando a elas os conceitos da filosofia grega. O resultado é uma
forma de Platonismo muito próxima da que se desenvolvera em Alexandria e que
costumava reportar-se a Platão e a Pitágoras. Os pontos fundamentais da filosofia
de Fílon são três : a transcendência absoluta de Deus relativamente a tudo o que
o homem conhece; a doutrina do Logos como intermediário entre Deus e o
homem, o fim do homem determinado como a união com Deus. Na sua perfeição
absoluta, Deus é tal que é impossível compreender a sua natureza. Também o
homem inspirado pode ver quem ele é, não que coisa é. Deus é superior ao bem e
à unidade e não pode ter outro nome senão Ser (como indica a própria palavra
hebraica Jeová-Aquele que é). A Deus pertencem as duas potências originais, a
bondade e o poder; pela primeira, ele é propriamente Deus, pela segunda é o
Senhor. Entre estas duas potências existe uma terceira, conciliadora de ambas, a
Sabedoria, Logos ou Verbo de Deus, que é a imagem mais perfeita do próprio
Deus.

O Logos foi o mediador da criação do mundo. Antes de criar o mundo, Deus criou
um modelo perfeito, não sensível, incorpóreo, e semelhante a ele, que é
precisamente o Logos (De mundi opif., 4). E sei-vindo-se dele criou o mundo.
Criou-o ser-

90

vindo-se de uma matéria que ele próprio tinha aprontado antecipadamente e a


qual era originariamente indeterminada, privada de forma e de qualidade: Deus
determinou-a, deu-lhe forma e qualidade e deste modo da desordem a levou à
ordem, Da matéria derivam as imperfeições do mundo.
O Logos divino é a sede das ideias por intermédio das quais Deus ordena e forma
as coisas materiais. As ideias são, portanto, concebidas por Filon como forças,
porque a matéria é formada por seu intermédio.

O fim do homem é a sua união com Deus. Para chegar a Deus o homem deve, em
primeiro lugar, libertar-se da sensibilidade e dos vínculos com o corpo, deve
libertar-se também da razão e esperar a graça divina que o eleve até à visão de
Deus. Só se tem esta visão quando o homem saiu fora de si mesmo (estasi) e
está debaixo de urna espécie de furor dionisíaco, como ébrio e enlouquecido.
Trata-se de uma condição que não se pode exprimir porque é sobrehumana e
misteriosa (De ebrietate, 261-62).

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 177. O material antigo sobre os Neopitagóricos, indicado em ZELLER, 111, 2, p.


124 ss, 234 ss. Os Ditos Areos em DIEHL, Anthol. 1yrica, Leipzig,
1923. O escrito de Ocello in MULLACH, Fragm. phil. graec., I, que contém também
as Cartas atribuídas a Pitágoras, assim como a Vida de Pitágoras de PORFIRio e
de JÂMBLICO foram traduzidas para italiano por PESENTI, Lanciano, 1922
(Cultura dell' anima).

§ 118. Dados antigos sobre Plutarco, recolhidos em ZELLER, 111, 2, 176 ss. As
obras de Plutarco encontram-se em numerosas edições: ver a de 7 volumes a
cargo de vários autores na Biblioteca Teubneriana de Leipzig. D. BAssi, Il pensiero
moraZe, peda, gogico, religioso di Plutarco, Florença, 1927; P. THÉ-

91

VENAZ, LIâme du monde, le devenir et Ia matière chez Plutarque, Paris, 1939.

§ 119. Noticias antigas sobre os Essénios In ZELLER, 111, 2, p. 308 ss. Sobre os
manuscritos do Mar Morto: DuPONT-SOMMER, Observations sur le Commentaire
d'Habacuc découvert près de Ia Mer morte, Paris,
1950; ID., Observations sur le Manuel de Discipline découvert près de Ia Mer
Morte' Paris, 1951; MILLAR BURROWS, The Dead Sea, Scrolls, Nova Iorque,
1956 (que contém também a tradução inglesa dos textos encontrados).

§ 120. Das obras de Ffion as edições são: Mangey, Londres, 1742 (com tradução
latina); Richter, Leipzig, 1828-30; Cohn e WendIand, Berlim, 1896 ss.
Commentaire allégorique des saintes lois, texto, tradução francesa e comentário
de BRÉHIER, Paris, 1909.

Sobre F'ílDn: BRÉHIER, Les idées philos. et relig. de Ph. d'Alex., Paris, 1908;
GOODENOUCri, The Politics of Philo. Juda6us, New Haven, 1938 (com bibl.);
WOLFSON, Philo. Foundations of Religious Philosophy in Judai.sm, Christianity
and Islam, Cambridge (Mass.),
2 vols., 1947.

92

XVIII

O NEOPLATONISMO

§ 121. A "ESCOLÁSTICA" NEOPLATóNICA

O Neoplatonismo é a última manifestação do Platonismo no mundo antigo. Ele


resume e leva à formulação sistemática, e (com Proelo) de um modo escolástico,
as tendências e orientações que se tinham manifestado na filosofia grega e
alexandrina do último período. Elementos pitagóricos, aristotélicos, estoicos
fundem-se no Platonismo numa vasta síntese que devia influenciar
poderosamente todo o curso do pensamento cristão e medieval e através dele
também o do pensamento moderno, O Neoplatonismo é assim a manifestação
mais notável da orientação religiosa que prevalece na filosofia da época
alexandrina. É também a primeira forma histórica da escolástica, se com tal nome
se entende a filosofia que procura realizar uma compreensão racional das
verdades religiosas tradicionais (§ 173). Com efeito, a atitude religiosa implica que
a verdade como tal não se busca: ela foi revelada e é garantida pela tradição. Por
outro lado, é oportuno

93
compreender, explicar e defender tal verdade; para este fim se utiliza a filosofia
que melhor se presta, neste caso o Platonismo.

Por isso o Neoplatonismo não tem nada que ver com o Platonismo original e
autêntico. É, pelo contrário, uma espécie de escolástica que utiliza o Platonismo,
em mistura confusa com elementos doutrinais heterogéneos com o fim de justificar
uma atitude religiosa. O facto de Proclo, o representante mais sabedor da
escolástica neoplatónica, ter considerado apócrifas a República e as Leis de
Platão, que se prestam mal, pelo seu dominante interesse político, a serem
utilizadas para os fins de uma apologética religiosa, constitui uma prova evidente
da descontinuidade que existe entre o Platonismo e Neoplatonismo e da
impossibilidade de utilizar este último como elemento de compreensão histórica do
Platonismo originário.

Fundador do Neoplatonismo é António Sacca, que viveu entro o ano 175 e o 242
d.C. sem deixar nenhum escrito. Era braceiro (donde o sobrenome de "Sacca");
seguidamente ensinou em Alexandria a filosofia platónica.

Entro os seus alunos contaram-se Orígenes, que não se deve confundir com o
Orígenes cristão (§ 144), e Cássio Longino (cerca de 213-273), retórico o filólogo,
sob o nome do qual nos chegou o escrito Do sublime, que não obstante não é seu.

A maior figura do Neoplatonismo é Plotino. Nascido em Licopoli, no Egipto, em


203 ou 204 d.C., participou na expedição do imperador Gordiano contra os persas
para conhecer as doutrinas dos persas e dos indianos. No regresso, estabeleceu-
se em Roma, onde a sua escola contou entre os seus ouvintes numerosos
senadores romanos. O imperador Galieno e a sua mulher Salonina estiveram
entre os seus admiradores. Morreu na Campânia com
66 anos, em 269 ou 270 depois de Cristo.

94

O s--u aluno Porfírio de Tiro (nascido em 232-33 e falecido no princípio do IV


século) publicou os escritos do mestre ordenando-se em seis Enneadi, ou seja,
livros de nove partes cada um. Porfírio é também autor de numerosas obras
originais. Entre estas são particularmente importantes uma Vida de Plotino, uma
Vida de Pitágoras e a Introdução às Categorias de Aristóteles que é um
comentário em forma de diálogo ao escrito aristotélico. O interesse fundamental
de Porfírio, é prático-religioso. Ele tira da doutrina de Plotino motivos para
defender a religião pagã.

§ 122. PLOTINO: DEUS

Plotino acentua até ao extremo limite a transcendência de Deus, na qual tinham já


insistido os Neopitagóricos e Ffion. Mas ao passo que Ffion, ainda identifica Deus
com o ser, Plotino afirma que Deus está "para lá do sem (V, 5, 6); "para, lá da
substância" (VI, 8, 19); "para lá da morte" (111, 8, 9) de modo que é transcendente
a respeito de todas as coisas, ainda que produzindo-as e mantendo-as ele próprio
em ser (V, 5, 12). Assim a causa do ser vem de qualquer modo destacada do ser,
como aquilo que é inalcançável e inexprimível da parte do homem. O nome que é
menos inadequado para dar a Deus é, segundo Plotino, o de Uno e isto quer
porque Deus é unidade, isto é, a causa simples e única de todas as coisas, quer
porque o nome "Uno" se presta a designar aquilo que é simples e diferente de
todas as coisas que vêm depois (V, 4, 1). O próprio Plotino adverte, porém, que
este nome não contém mais que a exclusão do múltiplo e, salvo esta exclusão,
não é mais adequado que os outros para exprimir Deus (V, 5, 6". Com estas
considerações, Plotino inicia aquilo que se chamou seguidamente a teologia
negativa, isto é, a

95

determinação de Deus através do reconhecimento da impossibilidade de predicar


dele todas e cada uma das determinações finitas.

Além disso, a definição de Deus como unidade não tem nada a ver com o
monoteísmo. Conformemente a toda a tradição grega, Plotino defende
explicitamente o politeísmo como consequência necessária do poder infinito da
divindade. "Não restringir a divindade a um único ser, fazê-la ver múltiplice: como
ela própria se manifesta, eis o que significa conhecer o poder da divindade, capaz,
ainda que permanecendo aquele que é , de criar uma multiplicidade de deuses
que se ligam com ele, existem para ele, existem para ele e vêm dele" (11, 9, 9).

Para uma divindade concebida deste modo a criação não pode ser um acto de
vontade, o que implicaria uma mudança na essência divina. A criação acontece de
tal maneira que Deus permanece imóvel no centro dela, sem querê-la nem
consenti-Ia. Ela é um processo de emanação, semelhante àquele pelo qual a luz
se difunde em torno do corpo luminoso ou o calor em torno do corpo cálido ou,
melhor, semelhante ao perfume que emana do corpo odorífero (V, 1, 6). Utilizando
a noção aristotélica de Deus como "pensamento do pensamento" (§ 78), Plotino
interpreta a própria emanação como o pensamento que o Uno pensa de si.
O Uno, pensando-se, dá origem ao Intelecto, que é a sua imagem (V, 4, 2); o
Intelecto, pensando-se, dá origem à Alma, que é a imagem do Intelecto (IV, 8, 3).
Passando rapidamente de imagem a imagem, a emanação @ também um
processo de degradação. Aquilo que emana do Uno é inferior ao Uno, assim como
a luz é menos luminosa do que a fonte donde emana e a onda de perfume é
menos intensa à medida que se afasta do corpo odorífero. Os seres que emanam
de Deus não podem--- por-

96

séneca

tanto, ter nem a sua perfeição nem a sua unidade, mas tendem cada vez mais
para a imperfeição e a multiplicidade.

§ 123. PLOTINO: AS EMANAÇõES

A primeira emanação do Uno é o Intelecto (Nous) que é a imagem mais próxima


dele. O Intelecto contém já a multiplicidade na medida em que implica a distinção
entre o sujeito que pensa e o objecto pensado. Este Intelecto, como o Logos, ou o
Verbo de Fílon, é a sede das ideias platónicas. Ele é identificado por Plotino com o
Demiurgo de que fala Platão no Timeu.

Do Intelecto procede a segunda emanação, a Alma do Mundo, que é Verbo e Acto


Intelecto, como o Intelecto o é do Uno. Por um lado, a alma olha o Intelecto de que
provém e com o qual pensa, pelo outro olha-se a si própria e conserva-se; pelo
outro ainda, olha aquilo que está depois dela e ordena-o, governa-o e rege-o.
Assim a Alma universal tem uma parte superior que se dirige ao Intelecto e uma
parte inferior que se dirige ao corpo: com esta governa o universo corpóreo e é
Providência.

Deus, o Intelecto e a Alma do mundo constituem o mundo inteligível. O mundo


corpóreo supõe para a sua formação, além da acção da Alma do mundo, de um
outro princípio de que derivam a ,imperfeição, a multiplicidade e o mal. Este
princípio é a matéria, concebida por Plotino negativamente, como privação da
realidade e do bem. A matéria está no extremo inferior da escala no cimo da qual
está T)eus. Ela é a obscuridade que começa onde termina luz, portanto não-ser e
mal.

As almas singulares são partes da alma do mundo. A Alma universal penetrou a


matéria vivi-

97

ficando-a e penetrando-a toda, mas permanecendo em si mesma única e


indivisível. Ela produz a unidade e a simpatia de todas as coisas do mundo, já que
estas, tendo uma única alma, se ligam umas às outras corno os membros de um
mesmo animal.

Dominado como está pela Alma universal, o mundo tem uma ordem e uma beleza
perfeitas. Para descobrir esta ordem é necessário olhar o todo no qual encontra o
seu posto e a sua função cada parte singular, ainda aquela aparentemente
imperfeita ou má. O próprio vício tem uma função útil ao todo porque se torna um
exemplo da força das leis e acaba por produzir consequências úteis (111, 2, 5).

§ 124. PLOTINO: A CONSCIÊNCIA E O RETORNO A DEUS

Na filosofia de Plotino toma-se central e dominante um conceito que já assomara


na especulação dos Estoicos: o de consciência. Consciência não é *
conhecimento dos próprios estados internos, mas * atitude do sage que não tem
necessidade de sair fora de si para encontrar a verdade e que, por isso, tem o
olhar constantemente voltado para si próprio. A consciência é, neste sentido, o
campo privilegiado em que se manifestam na sua evidência as verdades mais
altas que o homem pode alcançar e a fonte ou o próprio princípio de tais verdades,
isto é, Deus. O pressuposto deste conceito é a auto-suficiência do sage sobre que
tinham insistido os Estoicos e que tinha dominado as especulações morais dos
estoicos romanos. A distinção estabelecida por Epicteto entre "s coisas que estão
em nosso podem, isto é, os nossos actos espirituais e "as coisas que não estão
em nosso podem, isto é, as coisas externas, como fundamento das atitudes

98

morais do homem, não é senão um corolário do princípio da consciência. Para


indicar a consciência como introspecção ou auscultação interior, Plotino adopta
expressões como "retorno, a si próprio", "retorno à interioridade", "reflexão sobre si
próprio" e contrapõe constantemente esta atitude própria do sage a quem, em
contrapartida, se orienta, pela conduta da sua vida, para o conhecimento das
coisas externas. "0 sage -diz Plotino- tira de si próprio aquilo que revela aos outros
e olha para si próprio dado que não somente tende a unificar-se e a isolar-se das
coisas externas, mas se dirige a

si próprio e encontra em si todas as coisas" (111,


8, 6).

O retomo a Deus é um itinerário que o homem só pode iniciar e percorrer


mediante o retorno a si próprio. As etapas do retorno a Deus são as etapas da
progressiva interiorização do homem; e, em primeiro lugar, da sua libertação de
toda a dependência ou relação com a exterioridade corpórea. Plotino afirma,
portanto, que o primeiro dever do homem é o de subtrair-se aos seus laços com o
corpo e purificar-se mediante a virtude. As virtudes são caminhos de purificação
porque são caminhos de libertação da exterioridade. Com a inteligência e a
sabedoria, a alma do homem habitua-se a operar por si só, sem a ajuda dos
sentidos cor-

póreos; com a temperança liberta-se das paixões; com a coragem não teme
separar-se do corpo; com a justiça faz que comande em si apenas a razão e o
Intelecto (1, 2, 3). A virtude como purificação constitui, contudo, apenas uma
condição libertadora do itinerário interior em direcção a Deus. Na música, no amor
e na filosofia, a alma encontra os caminhos positivos do retorno a Deus.

Através da música, o homem deve progredir para lá dos sons sensíveis,


procurando alcançar as suas relações o as suas medidas para se erguer até

99

àquela harmonia inteligível que é a própria beleza. Através do amor, o homem


eleva-se gradualmente (segundo o processo já descrito por Platão no Fedro) da
contemplação da beleza corpórea à da beleza incorpórea, a qual é um reflexo ou
imagem do Bem, isto é, de Deus. Com efeito, a beleza resplandece nas coisas
que estão mais próximas da perfeição; uma estátua é mais bela do que um bloco
de mármore, um corpo vivo mais belo do que uma estátua. Mas para lá da beleza
o homem deve avançar com a filosofia para a própria fonte da beleza que é Deus.
Todavia, a Deus não se poderá chegar através da inteligência porque esta está
confficionada pelo dualismo do sujeito que pensa e do objecto pensado, enquanto
que Deus é absoluta unidade. Na visão de Deus não há já intervalo, não há já
dualidade, mas a alma une-se a Deus totalmente com um êxtase de amor. Não se
trata de uma visão mas de "êxtase e de simplificação, de descanso e de união, de
completa entrega". Esta condição só raramente pode ser alcançada pelo filósofo.
Porfírio testemunha-nos que, nos seis anos que esteve com o mestre, Plotino só
quatro vezes atingiu o êxtase.

§ 125. A ESCOLA SIRíACA

O discípulo de Porfírio, Jâmblico de Cálcide, falecido por volta de 330, inicia o


chamado Neoplatonismo siríaco, muito mais próximo das fontes orientais do que o
plotiniano. Foi autor de numerosos escritos dos quais nos restam cinco livros da
obra Sobre os mistérios dos egípcios. Jâmblico, é mais um teólogo do que um
filósofo. Elo multiplica as emanações plotinianas subdividindo-as em outras tantas
divindades, às quais faz corresponder os deuses da religião popular. Insiste, pois,
sobre o valor da teurgia, que é a virtude mágica dos ritos

100

e das fórmulas propiciatórias. A divindade, diz ele, não pode ser persuadida a agir
pelo nosso pensamento porque a perfeição não é levada a agir por aquilo que é
imperfeito. Ela age, em contrapartida, em virtude dos símbolos o das fórmulas
que ela própria sugeriu aos homens. O Neoplatonismo inclinava-se assim com
Jâmblico para uma teologia mítica que se prestava a justificar todas as
superstições das crenças pagãs.

Jâmblico -teve numerosos discípulos que, pelas notícias que nos chegaram,
aparecem desprovidos de qualquer originalidade. Quando o imperador Juliano,
(dito o Apóstada) quis dar nova vida ao paganismo para pô-lo como fundamento
da vida política do Império, recorreu precisamente à filosofia neoplatónica na
forma que Jâmblico lhe tinha dado.

Entretanto, a escola platónica de Alexandria continuava e teve novo esplendor


com uma mulher, Hipázia, que caiu em 415 vítima do fanatismo da plebe cristã,
suscitada contra ela pelo bispo Cirilo.

Dos escritos do seu discípulo Sinésio de Cirena (nasceu por volta do ano 370) que
em 411 se torna bispo de Ptolomaida (§ 169) parece que ela expusera a doutrina
neoplatónica segundo os ensinamentos de Jâmblico.
§ 126. A ESCOLA DE ATENAS

A última fase do Neoplatonismo foi dedicada provalentemente ao comentário das


obras de Platão o de Aristóteles. No princípio do século V, o chefe da escola
ateniense é Plutarco de Atenas, filho de Nestório, que morreu muito velho no ano
401-02 e comentou Platão e Aristóteles.

A especulação metafísica foi, em contrapartida, cultivada por Siriano (o mestre de


Proclo), o qual se refere especialmente a Platão que considerava

101

superior a Aristóteles e que quis conciliar com os Pitagóricos e com os


Neoplatónicos.

Proclo é o maior representante da orientação ateniense. Nascido em


Constantinopla no ano 410 e educado em Lícia, aos 20 anos dirigiu-se para
Atenas onde permaneceu até a sua morte, ocorrida em 485. As suas obras mais
importantes são o Comentário ao Timeu, à República, ao Parménides, ao
Alcibíades 1 e ao Crátilo e dois escritos sistemáticos, a Instituição teológica e a
Teologia platónica.

Proclo deu à filosofia neoplatónica a sua forma definitiva. Sucederam-lhe


numerosos pensadores que seguiram as suas pisadas mas que não oferecem
nenhuma contribuição original para a sua doutrina. À última geração de
neoplatónicos pertence Simplício, cujos comentários a muitas obras de Aristóteles
têm para nós a máxima importância como fontes de todo o pensamento antigo, e
representam também uma notável obra de pensamento.

No ano 529 Justiniano proibiu o ensino da filosofia em Atenas e confiscou o


ingente património da escola platónica. Damáscio, que era o seu chefe, com seis
companheiros, entre os quais Simplício, refugiou-se na Pérsia. Mas dali voltaram
depressa desiludidos. Doravante o pensamento platónico não existia mais como
tradição independente porque havia sido absorvido e assimilado pelo pensamento
cristão.

O seu último representante pode dizer-se que foi Severino Boécio (§ 172).
Boécio traduziu e comentou os principais escritos do Organon aristotélico e a
Introdução às categorias de Porfírio. Escreveu também um Comentário desta obra
e outros trabalhos de lógica, matemática e música. No cárcere escreveu depois a
obra que o tornou famoso durante toda a Idade Média, A consolação da filosofia.
Esta obra não é original, mas resulta da utilização de várias fontes, entre as quais
o Protréptico de Aris-

102

tóteles, talvez conhecido através de algum escritor mais recente que o


reproduzira. O ponto de vista de Boécio, é um platonismo, ecléctico. De Platão tira
Boécio o conceito da divindade como sumo Bem; com Aristóteles considera Deus
como o primeiro motor imóvel; com os Estoicos admite a providência e o fado.
Embora seja cristão, na sua filosofia segue de perto o Neoplatonismo, da época.
Apresenta na sua pessoa a passagem da antiguidade à Idade Média; é o último
romano e o primeiro escolástico.

§ 127. A DOUTRINA DE PROCLO

O ponto fundamental da filosofia de Proclo, é a ilustração daquele princípio


triádico, que é próprio do Neoplatonismo. Todo o processo se cumpro por via da
semelhança das coisas que surgem com aquilo de que procedem. Um ser que não
produz um outro permanece em si próprio imutável; mas a coisa produzida
necessariamente se lhe assemelha. Ora o produto, enquanto tem qualquer coisa
de idêntico com o que produz, resta nele; enquanto tem qualquer coisa de diverso,
procede dele. Mas sendo semelhante é de algum modo idêntico e diverso;
portanto permanece e procede ao mesmo tempo, e não faz nenhuma das coisas
sem a outra. Ora todo o ser, que procede por sua natureza do uma coisa, retorna
a ela. Retoma porquanto não pode fazer outra coisa senão aspirar à própria causa
que é seu bem; e todo o ser deseja o bem. Este retorno ou conversão realiza-se
pela semelhança de quem retoma com aquilo a que retoma (Ist. Teol., 30, 32).
Com isto, Próclo, distingue, no processo das emanações de todo o ser pela sua
causa, três momentos: 1.' o permanecer (moné) lutável da causa em si mesma; 2.*
o proceder (próodos) dela pelo ser derivado que, pela sua

103

semelhança com ela, permanece aderido a ela e por sua vez se afasta dela; 3.' o
retorno ou conversão (epistrophé) do ser derivado à sua causa originária. Aquele
processo de emanação, que Plotino ilustrava em termos metafópicos com o
exemplo da luz e do odor, é justificado por Proclo com esta dialéctica da relação
entre a causa e a coisa produzida, pela qual ao mesmo tempo se enlaçam, se
separam e voltam a unir-se num processo circular no qual o princípio e o fim
coincidem.

O ponto de partida de todo o processo é o Uno, Causa primeira e Bem absoluto


que Proclo, como Plotino, considera incognoscível e inexprimível. Do Uno procede
uma multiplicidade de Unidades ou Enadi que são também Bens supremos e
Divindades e fazem de intermediários entre o Uno originário e o mundo do
Intelecto. O Intelecto, que é a terceira fase da emanação, é dividido por Proclo em
três momentos; o inteligível (o objecto do Intelecto), que é o ser; o inteligível-
intelectual, que é a vida; o intelectual (o Intelecto como sujeito), que é o Intelecto.
O ser e a vida, por sua vez, dividem-se em vários momentos a cada um dos
quais Proclo faz corresponder uma divindade da religião popular.
O quarto momento da emanação é a Alma, dividida em três espécies: a divina, a
demoníaca e a humana, as primeiras duas são ainda divididas e identificadas com
divindades ou seres da religião popular.
O mundo é organizado e governado pela Alma divina. O mal não deriva da
divindade, mas da imperfeição dos graus médios e baixos da escala do mundo e
da sua deficiente aceitação do bem divino. A matéria não pode ser causa do mal
porque ela foi criada por Deus como necessária para o mundo.

Além das faculdades assinaladas na alma por Platão e Aristóteles, Proclo admite
nela uma faculdade superior a todas, o Uno na alma, que corresponde ao Uno no
mundo e é a faculdade apta a

104

conhecê-lo. O processo da elevação moral e intelectual da alma culmina na união


extática com o Uno. Os graus últimos deste processo de elevação são o amor, a
verdade e a fé. O amor leva o homem até à visão da beleza divina; a verdade até
à sabedoria divina e ao conhecimento perfeito da realidade. Mas só a fé o leva
para lá do conhecimento e de todo o devir, ao repouso e à união mística com
aquilo que é incognoscível e inexprimível.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

121. Os dados antigos sobre Amónio Sacca, Orígenes e Longino foram recolhidos
por ZELLER, HI,
2, p. 500 ss. Para Plotino a fonte principal das notícias biográficas é a Vida de
Plotino de PORFIRIO.

As obras de Plotino foram editadas por Creuzer e Moser, O.@ffürd, 1835, ed.
reproduzida na de Firmin-Didot, París, 1855; Volkmann, Leipzig, 1883-84; na
colecção "A Universidade de França" apareceu a edição e a tradução de
BRÉHIER em 6 vdls., 1924-38. Traduções italianas: CILENTo, 4 vols., Bari, 1947-
49; FAGGIN, Milão, 1947-48. As fontes para a biografla de Porfirio, são a sua Vida
de Plotino e o artigo do Léxico de Suidas. A Vida de Plotino está publicada na
edição plotiniana de Creuzer e M<)ser, o Co~tário às categorias de Aristóteles nos
"Comentários gregos de Aristóteles" da Academia de Berlim, IV, 1. Para as
edições das obras de Porfirio, ver UEBERWEG-PRAECHTER, p. 598.

Sobre Porfírio, ver BIDEZ, Vie de P. Ze philosophe néoplatonique, Gand-Leipzig,


1913.

§§ 122, 123, 124. Sobre Plotino: INGE, The Phi-


1,osophy of P., 2 vols., Londres, 1918; BRPHIER, La philosophie de P., Paris,
1928; CARBONARA, La filosofia di P.' 2 vols., Roma, 1938-39; JENSEN, Plotin,
Kjijbenhavn, 1948; Les sources de Plotin. Entretiens sur l'antiquité classique,
Vandoeuvres-Genève, 1957; bibli. de MARIEN in apéndice, -ao vol. IV da citada -
tradução italiana de Cilento.

§ 125. Os dados antigos sobre Jàmblico, Giuliano, Hípãzia, Sinésio, in ZELLER,


111, 2, p. 773 ss.

105

Sobre os mistérios dos egípcios, ed. Parthey, Berlim,


1857.

As obras de Juliano foram publicadas por Bidez e Cumont, P@tris, 1922; a de


Sinésio, por Petavio, Paris, 1612, 2.1 ed., 1633, e na Patr. Greca de MiGNE, vol.
66. Sobre Juliano o Apóstata: BARBAGALLO, Ciu;. lIAp., Gênova, 1912;
ROSTAGNI, Giu1. l'Ap., Turim,
1920.

§ 126. Os dados antigos sobre Proclo, foram recolhidos na Vida escrita pelo seu
disc@pulo M_ARiNo, ed. Boisonade, Leipzig, 1814. Sobre os outros Neoplatónios
da escola de Atenas os dados antigos foram recolhidos em ZELLER, 111, 2, p.
805 ss. (Plutareo),
890 ss. (Simplício, Damáscio, Boécio).

§ 127. As obras de Proclo foram publicadas por Cousín, 6 vols. Paris, 1820-25;
existem também numerosas edições de Leipzig de obras separadas. As obras de
Boécio está(> na Patr. Latina de MIGNE, vol. 63 e 64. Os Elementos de Teologia
de Proclo foram traduzidos para italiano por LoSAceo, Lanciano, 1927. G.
MARTANO, L'uomo e Dio in Proclo, Nápoles, 1952, com bibliografia.

106

SEGUNDA PARTE

FILOSOFIA PATRISTICA

O CRISTIANISMO E A FILOSOFIA

§ 128. A FILOSOFIA GREGA E A TRADIÇÃO CRISTã

A Grécia foi o berço verdadeiro da filosofia. Pela primeira vez no mundo ocidental,
compreendeu e realizou a filosofia como investigação racional, isto é, como
investigação autónoma que em si mesma encontra o fundamento e a lei do seu
desenvolvimento. A filosofia grega demonstrou que a filosofia só pode ser procura
e a procura liberdade. A liberdade implica que a disciplina, o ponto de partida, o
fim e o método da investigação sejam justificados e postos por essa mesma
investigação, e não aceites independentemente dela.

A influência do cristianismo no mundo ocidental determinou uma nova orientação


da filosofia. Toda a religião implica um conjunto de crenças que não são fruto de
qualquer investigação porque consistem na aceitação de uma revelação. A religião
é a adesão a uma verdade que o homem aceitou devido a um testemunho
superior. Tal é, com efeito, o

109

cristianismo. Aos fariseus que lhe diziam: "Tu alegas de ti mesmo e, portanto, o
teu testemunho não tem valor", Jesus respondeu: "Eu não estou só, somos eu e
aquele que me enviou (S. João, VIII, 13, 16), apoiando assim o valor da sua
doutrina no testemunho do Pai. A religião parece, portanto, nos seus próprios
princípios, excluir a investigação e consistir antes numa atitude oposta, a da
aceitação de uma verdade testemunhada do alto, independentemente de qualquer
investigação. Todavia, logo que o homem se interroga quanto ao significado da
verdade revelada e tenta saber porque caminho pode realmente compreendê-la e
fazer dela carne da sua carne e sangue do seu sangue, renasce a exigência da
investigação. Reconhecida a verdade no seu valor absoluto, tal como é revelada e
testemunhada por um poder transcendente, imediatamente se impõe a cada
homem a exigência de se aproximar dela e de a compreender no seu significado
autêntico para com ela e dela viver verdadeiramente. Esta exigência só pode -ser
satisfeita pela investigação filosófica. A investigação renasce, pois, da própria
religiosidade, pela necessidade que o homem religioso tem de se aproximar, tanto
quanto lhe for possível, da verdade revelada. Renasce com uma tarefa específica,
que lhe é imposta pela natureza de tal verdade e pelas possibilidades que pode
oferecer à sua efectiva compreensão pelo homem; mas renasce com todas as
características, próprias da sua natureza, e com força tanto maior quanto maior for
o valor que se atribui à verdade em que se acredita e se pretende fazer sua.

Da religião cristã nasceu assim a filosofia cristã. Esta tomou também como
objectivo conduzir o homem à compreensão da verdade revelada por Cristo, de
modo a que ele possa realizar o seu autêntico significado. Os instrumentos
indispensáveis para este fim encontrou-os a filosofia cristã, prontos a

lio

servirem, na filosofia grega. As doutrinas da especulação helénica do último


período, essencialmente religioso, prestavam-se a exprimir, de modo acessível ao
homem, o significado da revelação cristã; e com

O esta finalidade foram, efectivamente, utilizadas da maneira mais ampla.

§ 129. OS EVANGELHOS SINóPTICOS

A pregação de Cristo, por um lado, está ligada à tradição hebraica e, por outro,
renova-a profundamente. A tradição hebraica ensinava a crença num Deus único,
puro espírito e garantia da ordem moral no mundo dos homens; um Deus que
escolheu como seu povo eleito o povo hebraico, a quem ampara nas dificuldades
como pune inexoravelmente nas aberrações religiosas e nas suas imperfeições
morais. A última tradição hebraica, a dos profetas, anunciava, depois de um
período de desventuras e tremendas punições, o renovo do povo hebreu. e o seu
ressurgimento como potência material e moral, que faria dele o instrumento directo
de Deus para o seu domínio no mundo.

Ao anúncio desta renovação, que deveria verificar-se pela obra de um Messias


directamente investido por Deus, está ligada a pregação de Cristo. Nas tal
pregação alarga imediatamente o horizonte do anúncio profético, estendendo-o do
único povo eleito a todos os povos da terra, a todos os homens "de boa vontade",
seja qual for a sua raça, a sua civilização ou a sua posição social.
Simultaneamente, retira ao anunciado renascimento todo e qualquer carácter
temporal e político e faz dele um ressurgimento puramente espiritual que deve
realizar-se na interioridade das consciências.

O reino de Deus anunciado por Jesus não exige uma transformação política: "Dai
a César o que é

111

de César e a Deus o que é de Deus" (5. Mateus,


22, 21; S. Lucas, 20, 25). É antes uma realidade invisível e -interior ao homem:
"Não se poderá dizer "está aqui" ou "está ali", porque, na verdade, o reino de Deus
está dentro de vós". (S. Lucas, 17,
21). Ele é como o grão de mostarda que é o mais pequeno de todos os grãos e se
torna uma grande árvore; ele é como o fermento que se espalha na farinha e a faz
levedar (S. Mateus, 13, 31 e ss.; S. Marcos, 4, 30 e ss.; S. Lucas, 13, 18 e ss.):
quer dizer, é uma vida espiritual que se desenvolve e se difunde gradualmente
entre os homens. O reino de Deus exige do homem o abandono radical de todos
os interesses mundanos. Jesus afirma explIcitamente que não veio para trazer a
paz, mas a espada (S. Mateus 10, 34); a aceitação da sua mensagem significa a
ruptura definitiva com todos os laços terrenos e a entrega total a Deus. Por isso
exclama: " Quem encontrar a sua alma perdê-la-á, e quem a perder por mim
encontrá-la-á" (S. Mateus,
39). O que esta ruptura total com o mundo e com

o seu próprio eu, o que esta total entrega a Deus implica para o homem disse-o
Jesus no Sermão da Montanha. O reino de Deus é para os pobres de espírito,
para os que sofrem, para os pacíficos, para aqueles que desejam a justiça, para
os que são perseguidos. Isto impõe ao homem o amor. À lei do Velho Testamento:
"Olho por olho, dente por dente", Jesus opõe a nova lei cristã: "Amai os vossos
inimigos, e orai pelos que vos perseguem e caluniam, para que sejais filhos do
vosso Pai que está nos céus, o qual faz nascer o sol para os bons e os maus e dá
a chuva aos justos e aos injustos. Pois se amais apenas os que vos amam que
mérito tereis? Não fazem os publicanos 1 o mesmo? E se estimais ape-

1 Publicanos (telonai) eram os funcionários dos impostos públicos, gente odiosa e


agarrada ao dinheiro.
112

nas os vossos irmãos, que fareis de extraordinário? Não fazem os pagãos a


mesma coisa? Sede perfeitos, como perfeito é o vosso Pai celeste" (S. Mateus, 5,
44-48).

Na pregação de Jesus, Deus mais do que Senhor é o Pai dos homens; mais do
que executor daquela justiça inflexível e vingativa que lhe atribuíam os hebreus, é
fonte inesgotável de amor, que aponta a todos os homens como primeiro e
fundamental dever. A comunidade humana que deverá surgir da pregação de
Cristo será , portanto, uma comunidade fundada no amor. Mesmo a relação entre
o homem e Deus deve ser uma relação de amor. O homem deve abandonar-se à
providência do seu Pai celeste: "Procurai antes de mais nada o reino de Deus e

a sua justiça e tudo o restante vos será concedido" (S* Mateus, 6, 33). Mas este
abandono não deve ser uma expectativa inerte. "Velai-disse Jesus porque não
sabeis o dia em que chegará o vosso Senhor. (S. Mateus, 24, 42). Esperar pelo
reino de Deus significa preparar-se incessantemente para ele. Não é concedido
sem esforço: "Pedi e recebereis; procurai e encontrareis; batei e as portas se
abrirão" (S. Lucas, 11, 9). Todo o ensinamento de Jesus pretende transmitir a
necessidade desta expectativa activa e preparatória, desta procura sem a qual
não é possível tornarmo-nos dignos do reino de Deus. Por isso Jesus se volta de
preferência para os humildes e para os que sofrem ("Eu fui enviado apenas às
ovelhas tresmalhadas da casa de Israel", S. Mateus, 15, 24), enquanto considera
que o seu apelo ressoa em vão naqueles que estão contentes consigo e nada têm
que pedir à vida": "É mais fácil passar um camelo pelo cu de uma agulha do que
entrar um rico no reino de Deus" (S. Mateus, 19,
24). Só pela dor, pela inquietação e pela necessidade nasce no homem a
aspiração da justiça, da paz e do amor, que conduz ao reino de Deus.

113

§ 130. AS "CARTAS" PAULINAS

As Cartas de S. Paulo, escritas ocasionalmente a várias comunidades cristãs,


contêm, além da apologia da doutrina fundamental de Cristo, admoestações,
conselhos, prescrições rituais. Mas contêm também a clara expressão dos
fundamentos conceptuais da nova religião, que deviam servir nos séculos
seguintes, como constantes pontos de referência das disputas teológicas e das
interpretações filosóficas. Tais fundamentos podem recapitular-se do seguinte
modo:

1.* A cognoscibilidade natural de Deus, de onde ser tomada como culpa a


ignorância ou o seu não conhecimento. Deus é, de facto, cognoscível através das
suas obras, nas quais ele mesmo se revelou e nas quais se apoiam de modo
evidente o seu poder e a sua glória (Romanos, 1, 18-25).
2.' A doutrina do pecado original o da redenÇão pela fé em Cristo. "Assim como
por um só homem entrou o pecado no mundo e pelo pecado a morte, assim a
morte trespassou todos os homens porque todos pecaram" (Rom., V, 12). A
redenção do pecado realiza-se pela fé em Cristo. "Deus é justo e justifica quem
tem fé em Jesus. Onde está, pois, a razão da vanglória? Foi excluída. Por que lei?
Pela das obras? Não, pela lei da fé. Convençamo-nos de que o homem será
justificado pela fé, sem as obras da lei" (Rom., 26-28).

3.* O conceito da graça como acção salvadora de Deus através da fé. "Não
acontece com o pecado o que sucede com a graça; pois se pelo pecado de um
pereceram muitos, muito mais abundou a graça de Deus e o dom da graça de um
homem: Jesus Cristo" (Rom., V, 15-16).

4. O contraste entre a vida segundo a carne e a vida segundo o espírito. "Se


viverdes pela carne,

114

precipitar-vos-eis na morte; se pelo espírito fizerdes morrer os actos do corpo,


vivereis. Porque todos os que seguem o espírito de Deus, são seus filhos. (Rom.
VIII, 13-114).

5.o A identificação do reino de Deus com a vida e o espírito da comunidade dos


fiéis, isto é, com a Igreja. Segundo S. Paulo, a Igreja é o corpo de Cristo de que
os cristãos são os diferentes membros harmonizados e concordes. (Rom., XII, 5
sg).

Na comunidade cristã há lugar para as tarefas mais variadas, pois todas


contribuem para a unidade do conjunto, mas cada uni deve escolher aquela para
que foi chamado. Domina nas epístolas paulinas o conceito da vocação (cléisis)
pela qual a graça (charis') divina opera em cada indivíduo chamando-o ao dom ou
à função carismática que está mais de acordo com a sua natureza. "Que cada um
fique na vocação a que foi chamado". (Coríntios, 1, 7, 20). "Há diversidade de
carismas, mas um só é o Espírito; há diversidade de serviços, mas um só é o
Senhor; há diversidade de operações, mas um só é Deus que opera tudo em
todos. Em cada um o Espírito se manifesta da maneira mais útil". (Cor.,
1, 12, 4-7). E assim é dada a um a sabedoria, a outro a ciência, a outro a fé, a
outro o dom da profecia e assim por diante, mas todos são como os membros de
um único corpo que é o próprio corpo de Cristo, a comunidade dos cristãos (Cor.,
12, sg). Mas a diversidade mesma de funções na comunidade torna necessária a
harmonia espiritual entre os seus membros e esta harmonia é garantida apenas
pelo amor (agápe-charitas). O amor é a condição de toda a vida cristã. Todos os
outros dons do espírito, a profecia, a ciência, a fé, nada são sem ele". "A caridade
suporta todas as coisas, tem fé em tudo, em tudo tem esperança, tudo mantém...
Estão aqui agora estas três coisas: a fé, a esperança e a caridade; mas a caridade
é a maior
115

de todas" (Cor., 1, 13, 7, 13). Este acentuar o valor da caridade e a posição central
que o conceito de vocação ocupa nas epístolas paulinas demonstram com toda a
evidência que o cristianismo se tornou uma comunidade histórica, cuja vida
consiste em procurar compreender os ensinamentos e a pessoa de Cristo e
realizar o seu significado.

§ 131. O QUARTO EVANGELHO

Nos evangelhos sinópticos a doutrina de Cristo surge já estreitamente ligada à


pessoa de Cristo. Cristo deu testemunho da verdade da sua doutrina, apelando
para o Pai celeste que o enviara aos homens, com os milagres que operou e
sobretudo

com a sua ressurreição. O Evangelho de S. João é dominado, mais do que os


sinópticos, pela figura de Jesus, e apresenta, pela primeira vez, a tentativa de
compreender filosoficamente a figura do Mestre e o princípio da sua doutrina. O
prólogo do Quarto Evangelho vê em Jesus o Logos ou o Verbo divino. "No
princípio era o Logos e o Logos estava em Deus e o Logos era Deus. No princípio
Ele estava em Deus. Tudo foi criado através dele e nada do que foi feito foi feito
sem Ele. N'EIe estava a vida e a vida era a luz dos homens. E a luz apareceu nas
trevas e as trevas não a receberam" (S. João,
1, 1-5). Nestas palavras de S. João determina-se pela primeira vez a natureza de
Cristo pelo conceito do Logos, que já tinha entrado na tradição hebraica com o
livro da Sabedoria (§ 119). Ao Logos é atribuída a função de mediador entre Deus
e o mundo, enquanto se diz que tudo foi criado por seu intermédio. É reconhecida
a sua directa filiação e derivação do Pai (9, 35: 16, 28) e é-lhe atribuído
claramente o papel de salvador de todos os homens. "Eu não rogo apenas por
estes (os discípulos), mas por todos aqueles que por sua palavra acreditaram

116

em mim, para que todos sejam uma única coisa, como tu, 6 Pai, estás em mim e
eu em ti, para que eles estejam em nós e todo o mundo acredite que tu me
enviaste". (17, 20-21).

No Quarto Evangelho a oposição entre os laços terrenos e o reino de Deus vem


expressa como oposição entre a vida segundo a carne e a vida segundo o espírito
e apresentada como a alternativa crucial do homem. A vida segundo o espírito é
uma nova vida que traz consigo um novo nascimento. "Em verdade, em verdade
vos digo que se cada qual não nasce de novo, não pode ver o reino de Deus".
Nicodemos disse-lhe: Como pode nascer um homem já velho? Pode ele entrar
pela segunda vez no seio de sua mãe e voltar a nascer? Jesus respondeu-
lhe: Em verdade, em verdade te digo, que se cada um não nascer da água e
do espírito não pode entrar no reino de Deus. O que nasceu da carne é carne,
e o que nasceu do espírito é espírito. Não te surpreendas se te digo: é necessário
nascer de novo. O vento sopra de onde quer, tu ouves o seu ruído, mas não sabes
de onde vem e para onde vai; assim é tudo o que é gerado pelo espírito" (3, 3-8).
Este renascer no espírito (pneuma) é o nascimento para a verdadeira vida. "0
espírito é o que vivifica, a carne de nada vale; as palavras que vos dirigi são
espírito e vida" (6, 663). A vida espiritual implica um novo critério de juízo, e por
isso Jesus diz aos Fariseus: "Vós julgais segundo a carne, mas eu a ninguém
julgo. E se julgo, o meu juízo é verdadeiro, porque não estou só, somos eu e
Aquele que me enviou" (8, 15-16).

§ 132. A FILOSOFIA CRISTÃ Entender e realizar a mensagem de Cristo foi a


finalidade da comunidade cristã durante os séculos que se seguiram. A vida
histórica da Igreja é a

117

tentativa contínua de aproximar os homens do significado essencial da mensagem


cristã, reunindo-os numa comunidade universal (catolicismo), na qual o valor de
cada homem se baseia unicamente na sua capacidade de viver em conformidade
com o exemplo de Cristo. Mas a condição fundamental desta aproximação é a
possibilidade de compreender o significado daquela mensagem; e tal tarefa é
própria da filosofia. A filosofia cristã não pode ter a finalidade de descobrir novas
verdades, nem mesmo a de aprofundar e desenvolver a verdade original do
cristianismo, mas apenas a de encontrar o melhor caminho, pelo qual os homens
possam chegar a compreender e a fazer sua a revelação cristã. Tudo o que era
necessário para erguer o homem do pecado e salvá-lo foi ensinado por Cristo e -
selado com o seu martírio. Ao homem não é dado descobrir a não ser com fadiga
o significado essencial da revelação cristã, nem pode descobri-lo apenas por si,
fiando-se unicamente na razão. Na Igreja cristã, a filosofia encaminha-se não só
para o esclarecimento de uma verdade, que já é conhecida desde o início, como
ainda para a esclarecer no âmbito de uma responsabilidade colectiva, na qual
cada indivíduo encontra um guia e um limite. A própria Igreja, nas suas
assembleias solenes (Concílios), define as doutrinas que exprimem o significado
fundamental da revelação (dogmas).

Daqui deriva o carácter específico da filosofia cristã, na qual a procura individual


encontra antecipadamente assinalados os seus limites. Não é, como a filosofia
grega, uma procura autónoma que, em primeiro lugar, pretende fixar os termos e o
significado do seu problema; os termos e a natureza do problema já lhe foram
dados. Isto não diminui o seu significado vital: só pela reflexão filosófica a
mensagem cristã, na imutabilidade do seu signi-

118

ficado fundamental, se renovou e manteve, através dos séculos, a. força e a


eficácia do seu magistério espiritual.
NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 128. Acerca da relação entre o cristianismo e a filosofia grega à qual, se refere o


final deste parágrafo: RENAN, Les Evangiles et Ia seconde génération chrét.,
Paris, 1877; HAVET, Le christianisme et ses origines, 4 vols, París, 1871-84;
HARNACK, Lehrbuch der Dog~ngeschi,chte, I, 4.a ed., 1909, esp. 121-148 e
496 segs.

§ 129. A fonte para o conhecimento do cristianismo é o Novo Testamento que é


composto pelos seguintes livros: Evangelhos de S. Mateus, S. Marcos, S. Lucas,
chamados sinópticos porque a exposição que fazem da doutrina e da vida de
Cristo é concordante e forma um único quadro; IV Evangelho ou Evange.lho de S.
Joã o, que apresenta uma elaboração filosófica da doutrina e do significado de
Cristo; os Actos dos Apóstolos; as Epístolas de, S. Pedro aos Romanos, aos
Corintios (I e II), aos Efésios, aos Filipenses, aos Colossenses, aos
Tessalonicenses (1 e II), a Timóteo, a Tito, a Filemon, aos Hebreus; as Epístolas
Católicas de Tiago, de Pedro (I e 11), de João (1, 11 e III), de Judas; O Apocalipse
de S. João. Os mais importantes destes escritos, sob o ponto de vista doutrinaJ,
são os quatro Evangelhos e as Epístolas de S. Paulo, particularmente as dirigidas
aos Romanos e aos Coríntios. O Novo Testamento está escrito em grego. Entre
as edições críticas mais recentes, veja-se a de NESTLE, Stuttgart, 1928, da qual
foram traduzidas as passagens citadas no texto.

Sobre o Novo Testamento vejam-se as seguintes Introduções gerais: R. KNOLF-


H. LIETZMANN-H. WEINEL, Binfuhrung in das Neue Testament, Berlim, 1949; W.
MICHAELIS, Einleitung in das Neue Testament, Bern, 2.1 ed., 1954; A.
WICKENHAUSER, Einleitung in das Neue Testament, Friburgo, 1956; A.
ROBERT-A. PEUILLET, Introduction à Ia Bible: II, Nouveau Testament, Tournal,
1959; ao cuidado de vários autores, Introduzione alla Bíblia: IV, I Vangeli, Turim, s.
d. (1959). Actualização bibliográfica anual na "Internationale Zeitschriftenshau fur
Ribelwissenschaft und Grenzegebiete" (Dusseldorf) e in "BibUca> (Roma)

119

§ 130. Sobre os pontos tratados no texto velam-se os seguintes comentários à


Epístola aos Romanos: T. ZAHN, Der Brief des Paulus an die Rõmer, Leipzig,
1910; M. J. LAGRANGE, St. Paul. Êpitre aux Ramains, Paris, 1915 (numerosas
reimpressões; a última de
1950); K. BART, Der Romerbrief, Munique, 1929; O. Kuss, no Regensburger
Neues Testament, Regensburger, 1940; C. K. BARRET, The Epistle to the
Romans, Londres, 1957.

§ 131. Acerca do IV EvangeMo: J. WELLHAUSEN, Das Evangelium Johannis,


Berlim, 1908; A. LOSIY, Le Quatrième Evangile, Paris, 1921; M. J. LAGRANGE,
Evangite selon Saint Jean, Paris, 1925; W. BAUER, in Handbuch zum Neuen
Testament, Tubingen, 1933; R. BULTMANN, in Kritisch exegetischer Kommentar
uber das Neues Testament, Gottingen, 1953; Supl.
1957; A. W1KENHAUSER in Regensburger Neues Testament, Regensburger,
1957; sobre o Prólogo em particular: M. E. BOISMARD, Le prologue de Saint
Jean, Paris, 1955.

120

A PATRISTICA DOS DOIS PRIMEIROS SÉCULOS

§ 133. CARACTERISTICAS DA PATRISTICA

Quando o cristianismo, para se defender dos ataques polémicos e das


perseguições, e também para garantir a própria unidade contra cisões e erros,
teve de pôr a claro os próprios pressupostos teóricos e organizar-se num sistema
doutrinal, apresentou-se como expressão completa e definitiva da verdade que a
filosofia grega tinha procurado, embora imperfeita e parcialmente encontrada.
Uma vez no terreno da filosofia, o cristianismo defendeu a sua continuidade com a
filosofia grega e apresentou-se como a sua última e mais completa manifestação.
Justificou esta continuidade com a unidade da razão (Logos), que Deus criou
idêntica para todos os homens e em todos os tempos e à qual a revelação cristã
deu o último e mais seguro fundamento; e com isto afirmou implicitamente a
unidade da filosofia e da religião. Esta unidade não é um problenw para os
escritores cristãos dos pri-

121

meiros séculos: é mais um dado ou um pressuposto do que guia e dirige toda a


sua reflexão. E mesmo quando estabelecem uma antítese polémica entre a
doutrina pagã e a cristã (como no caso de Taciano), esta antítese estabelece-se
no terreno comum da filosofia e pressupõe, portanto, a continuidade entre
cristianismo e filosofia.

Era natural, segundo este ponto de vista, que se tentasse, por uni lado interpretar
o cristianismo mediante conceitos tirados da filosofia grega, para assim o ligar a
esta filosofia e, por outro, -reconduzir o significado da filosofia grega ao próprio
cristianismo. Esta dupla tentativa que, na realidade, é uma só, constitui a essência
da elaboração doutrinal que o cristianismo sustentou nos primeiros séculos da
nossa era.

Nesta elaboração, os Padres da Igreja foram frequentemente ajudados e


inspirados, como era inevitável, pelas doutrinas das grandes escolas filosóficas
pagãs; e, especialmente aos Estoicos, foram eles beber muitas das suas
inspirações, impelidos até muitas vezes (como acontece com Tertuliano) a aceitar
teses aparentemente incompatíveis com o cristianismo como a da corporalidade
de Deus.
O período desta elaboração doutrinal é a Patrística. Padres da Igreja são os
escritores cristãos da antiguidade que contribuíram para a elaboração doutrinal do
cristianismo e cuja obra foi aceite e tomada como sua pela Igreja. O período dos
Padres da Igreja pode considerar-se como terminado com a morte de João
Damasceno para a Igreja grega (cerca de 754); e com a de Beda o Venerável para
a Igreja latina (735). Este período pode dividir-se em três partes. A primeira, que
vai até cerca do ano 200, é dedicada à defesa do cristianismo contra os seus
adversários pagãos e gnósticos. A segunda, que vai de 200 até cerca de 450, é
dedicada à formulação doutrinal das crenças cristãs. A última,

122

que vai de 450 até ao final da Patrística, é mar. cada pela reelaboração e
sistematização das doutrinas já formuladas.

§ 134. OS PADRES APOLOGETAS

Os Padres Apostólicos do século 1 são os autores das Cartas que ilustram alguns
pontos da doutrina cristã e regulam questões de ordem prática e religiosa. Tais
são: o autor da chamada Carta de Bernabé, Gemente Romano, Hermes, Inácio de
Antioquia e Policarpo. Mas estes escritores não encaram ainda problemas
filosóficos.

A verdadeira actividade filosófica cristã começa com os Padres Apologetas no


século 11. Esses Padres escreviam em defesa (apologia) do cristianismo contra
os ataques a perseguições que lhe eram dirigidos. Neste período "os cristãos são
hostilizados pelos Hebreus como estrangeiros e são perseguidos pelos pagãos"
(Epist. ad Diogn., 5, 17). Escritores pagãos adoptaram contra o cristianismo a
sátira e a zombaria (Luciano, Celso). Os cristãos são alvo de ódio da plebe pagã e
das perseguições sistemáticas do Estado.

É nestas condições que nascem as apologias. A n-ia@s antiga de que há


conhecimento é a defesa apresentada ao imperador Adriano, por volta do ano
124, quando de uma perseguição aos cristãos, movida por Cuadrato, discípulo dos
Apóstolos. Temos apenas um fragmento, conservado por Eusébio (Hist. Eccles.,
IV, 3, 2). A apologia do filósofo Marciano Aristides foi encontrada em 1878 e é
dirigida ao imperador Antonino Pio (138-161). Nela se afirma já claramente que só
o cristianismo é a verdadeira filosofia. De facto, só os cristãos têm aquele conceito
de Deus que deriva, necessariamente, da consideração da natureza. Nesta
demons-

123

tração são usados conceitos platónicos. A ordem do mundo, tal como aparece nos
céus e na terra, faz pensar que tudo se move por necessidade e que Deus é
aquele que move e governa tudo. Aristides insiste na inacessibilidade e
inefabilidade da essência divina, para contrapor o monoteísmo rigoroso do
cristianismo às crenças dos bárbaros que adoraram os elementos materiais, às
dos gregos que atribuíram aos seus deuses fraquezas e paixões humanas, o às
dos judeus que, admitindo embora um só Deus, servem melhor os anjos do que a
Ele. Mas a primeira grande figura de Padre apologeta e o verdadeiro fundador da
Patrística é Justino.

§ 135. JUSTINO

Justino nasceu provavelmente no primeiro decénio do século 11 em Flávia


Neápolis, a antiga Siquem, agora Nablus na Palestina. Ele próprio nos descreve a
sua formação espiritual. Filho de pais pagãos, frequentou os representantes das
várias escolas filosóficas.- Estoicos, Peripatéticos e Pitagóricos, e professou
durante largo tempo as doutrinas dos Platónicos. Por fim, encontrou no
cristianismo aquilo que procurava e desde então com a sua palavra e os seus
escritos defende-o como a única e verdadeira filosofia. Viveu muito tempo em
Roma e ali fundou uma escola, foi ainda em Roma que suportou o martírio
entre 163 e 167. Das obras que nos ficaram, apenas três são seguramente
autênticas: o Diálogo com o judeu Trifon e duas Apologias. A primeira e a mais
importante é dirigida ao imperador Antonino Pio e deve ter sido composta nos
anos 150-155. A segunda, que é um suplemento ou um apêndice da primeira, foi
motivada pela condenação de três cristãos, réus apenas por se terem confessado
como tais: O Diálogo com o judeu Tri-

124

fon refere uma discussão que ocorreu em Éfeso entre Justino e Trifon e visa, em
substância, demonstrar que a pregação de Cristo realiza e completa os
ensinamentos do Velho Testamento.

A doutrina fundamental de Justino é que o cristianismo é "a única filosofia segura


e útil" (Dial., 8) e que esse é o resultado último e definitivo que a razão pode
alcançar na sua pesquisa, uma vez que a razão não é mais do que o Verbo de
Deus, ou seja, Cristo, do qual participa todo o género humano. "Nós aprendemos -
disse ele (Apo. primeira, 46) que Cristo é o primogénito de Deus, e que é a razão
de que participa todo o género humano. E aqueles que viveram segundo a razão
são cristãos, ainda que tenham sido considerados ateus como, entre os Gregos,
Sócrates, Heraclito e outros; e entre os bárbaros, Abraão e Ananias e Azarias e
Misael e Elias. De modo que também aqueles que antes nasceram e viveram
irracionalmente eram maus e inimigos de Cristo e assassinos daqueles que vivem
segundo a razão, mas aqueles que viveram e vivem conformes com a razão são
cristãos impávidos e tranquilos". Todavia estes cristãos "avant Ia lettre" não
conheceram toda a verdade. Neles existiam sementes de verdade, que não
puderam entender plenamente. (1b., 44). Podiam, por certo, ver obscuramente a
verdade, mediante aquela semente de razão que com eles nascera. Mas uma
coisa é a semente e a imitação e outra o desenvolvimento completo e a realidade,
da qual a semente e a imitação se geraram. (Apol. seg., 13). Aqui é adoptada a
doutrina estoica das razões seminais para fundamentar a continuidade do
cristianismo e da filosofia grega, para reconhecer nos maiores filósofos gregos os
precursores do cristianismo e para justificar a obra da razão mediante a sua
identificação com Cristo. Esta mesma doutrina permite a Justino a identificação
completa entre o

125

cristianismo e a verdade filosófica. "Tudo aquilo que se disse de verdadeiro


pertence a nós cristãos, já que, além de Deus, nós amamos e adoramos o Logos
do Deus ingénito e inefável, que se fez homem por nós, para nos curar das nossas
enfermidades participando delas" (1b., 13).

Deus é o eterno, o que não teve princípio, o inefável: o conhecimento de Deus é


um facto inexplicável, radicado na própria natureza dos homens (Apol. sec., 6). Ao
lado e abaixo dele existe outro Deus, o Logos coexistente e gerado antes da
criação, por meio do qual Deus criou e ordenou todas as coisas (1b., 5). Assim
como uma chama não diminui quando se acende urna outra, o mesmo aconteceu
com Deus na criação do Logos (Dial., 48). Depois do Pai e do Logos está o
Espírito Santo, a quem Justino chama o espírito profético, ao qual os homens
devem as virtudes e os dons proféticos (Apol. prima, 6).

O homem foi criado por Deus, livre de fazer o bem e o mal. Se o homem não
tivesse liberdade, não teria mérito no bem nem culpa no mal realizado (Apol.
prima, 43). A alma do homem é imortal, apenas por obra de Deus: sem esta, com
a morte volveria ao nada (Dial., 6). Mas o próprio corpo está destinado a participar
na imortalidade da alma. Efectivam-ente, deverá vir, segundo o anúncio dos
profetas, uma segunda parusia de Cristo, e desta vez ele virá em glória,
acompanhado pela legião dos anjos, ressuscitará os corpos e revestirá com
imortalidade os dos justos, ao mesmo tempo que condenará ao fogo eterno os dos
iníquos (Apol. prima, 52).

§ 136. OS OUTROS PADRES APOLOGETAS

Taciano o Assírio, discípulo de Justino em Roma, nasceu na Síria e converteu-se


em Roma

126

depois de ter conquistado nome como filósofo. Mais tarde, provavelmente, em


172, separou-se da Igreja passando para os Gnósticos. Taciano é autor de uma
apologia intitulada Discurso aos Gregos que é, na realidade, uma crítica do
Helenismo. A obra de Taciano é essencialmente polémica. Acusa de imoralidade
os pensadores e os poetas gregos e alarga-se em invectivas contra eles. Aos
erros dos Gregos contrapõe a doutrina cristã acerca de Deus e do mundo, do
pecado e da redenção. O Logos é a potência racional de Deus e nasceu dele
através dum acto de participação, não de separação. Como um facho acende
muitos outros sem que a sua luz diminua, assim o Logos não esgota a potência da
razão do seu geriltor (Or. ad graec., 5). No homem distingue a alnw e o espírito.
Só o espírito é a imagem e a semelhança de Deus. (lb., 12). A alma não é uma
essência simples, mas é composta de várias partes. A sua existência está ligada
ao corpo e não é separável dele, pelo que não é imortal Ub., 15). Só pela sua
união com o espírito, a alma e o corpo participam da imortalidade. Através do
espírito, o homem pode reunir-se a

Deus. Ele deve desprezar a matéria, da qual se servem os demónios para perdê-
lo, e voltar-se exclusivamente para a vida espiritual (Ib., 16).

Atenágoras de Atenas é autor de uma apologia intitulada Súplica para os cristãos,


dirigida a Marco Aurélio ou Cómodo, e por isso composta entre 176 e 180,
provavelmente em 177. Esse escrito propõe-se refutar as três acusações que
eram lançadas comummente contra os cristãos: o ateísmo, os banquetes tiesteos
e o incesto à maneira de Édipo. A primeira acusação é refutada mediante a
exposição da doutrina cristã de Deus; contra as outras duas -são aduzidos os
fundamentos da moral cristã. Na Súplica recorre, pela primeira. vez, a uma prova
racional da unicidade de Deus. Se existissem mais

127

divindades, não poderiam existir no mesmo lugar porque, sendo todas incriadas,
não poderiam cair sob um tipo ou modelo comum. Deveriam, pois, existir em
lugares diferentes. Mas não podem estar em lugares diferentes porque o espaço
para lá do mundo é a sede de um único Deus que é essência supramundana e
assim não há espaço para as outras divindades. Uma outra divindade poderia
existir num outro mundo ou em torno de um outro mundo; mas, em tal caso, essa
não chegaria até nós e, pela limitação da sua esfera de acção, não seria a
verdadeira divindade (Supp1. pro crist., 8). Por isso, os próprios poetas e filósofos
gregos conheceram a unidade de Deus, ainda que o claro, seguro e completo
conhecimento dele só nos tenha sido dado através dos profetas (1b., 7). O Logos
gerado pelo Pai e coeterno com ele, é o modelo, a força criadora de todas as
coisas criadas, enquanto o Espírito Santo é um eflúvio de Deus, semelhante a um
raio de sol (1b., 24).

Teófilo de Antioquia foi bispo desta cidade e deixou três livros Ad Autolico, que
são três escritos independentes, o terceiro dos quais foi composto à volta de 181-
182 e os primeiros dois pouco antes. Ao desafio de Autólico: "Mostra-nos o teu
Deus", Teófilo responde: "Mostra-me o teu homem e eu te mostrarei o meu Deus."
Deus só é visto por aqueles que têm bem abertos os olhos da alma. Como não se
pode ver a face do homem no espelho coberto de ferrugem, também o homem
quando está no pecado não pode ver a Deus (Ad. Autol., 1, 2). À pergunta: "Tu
que o vês, descreve-me o aspecto de Deus", Teófilo responde: "Escuta-me; a
beleza de Deus é indizível e inefável e não se pode ver com os olhos corpóreos"
(1b.,
1, 3). Deus que é eterno e, portanto, não gerado e imutável, é o criador de tudo:
tudo ele fez do nada, para que através da sua obra se compreen-
128

desse a sua grandeza. Por isso, ele torna-se visível através da, sua criação.
"Como a alma humana que é invisível aos homens é conhecida através dos
movimentos do corpo, também Deus, que não pode ser visto pelos olhos
humanos, pode ser visto e conhecido através da sua providência e das suas
obras." (Ib., 1, 5). A via da criação divina é o Logos Deus, mediante o Logos e a
sabedoria, criou todas as coisas (1b., 1, 7). O Logos é o conselheiro de Deus, a
sua mente e a sua prudência (1b., 11, 22). Pela primeira vez, Teófilo usou a
palavra trindade (trias) para indicar a distinção das pessoas divinas. Os três dias
da criação da luz de que fala o Génesis "são imagens da trindade, de Deus, do
seu Verbo, da sua sabedoria" (1b.,
11, 15).

Sob o nome de Justino chegou até nós uma Carta a Diogneto que certamente não
pertence a Justino pela diversidade do estilo e da doutrina.
O autor responde às dúvidas levantadas por um pagão que se interessa pelo
cristianismo. A composição da Carta não deve ter sido antes de 160, e
provavelmente nos finais do século 11. O autor responde a três dúvidas de
Diogneto. Ao culto pagão e judaico, a Carta contrapõe o culto cristão do Deus
invisível e criador. A religião cristã não é uma descoberta humana mas uma
revelação divina: Deus mandou o seu Filho, a eterna Verdade e a eterna Palavra,
a ensinar aos homens a verdadeira religião; e o Filho de Deus veio ao mundo não
como senhor mas como salvador @ libertador e encaminhou-nos para a salvação
pelo amor (Ep. ad Diog., 7).

Com o título Irrisão dos filósofos pagãos, de Hermias filósofo, chegou-nos um


pequeno escrito polémico no qual se põem sarcasticamente à luz as contradições
dos filósofos gregos @na, sua dou-

129

trina sobre a alma humana (cap. 1-2) o sobre os princípios fundamentais das
coisas (cap. 3-10). A obra pertence provavelmente ao final do século II.

§ 137. A GNOSE

A obra dos Padres Apologetas não tem de se dirigir apenas contra os inimigos
externos do cristianismo, pagãos e hebreus, mas ainda contra os inimigos
internos, contra as tendências e as seitas que, na tentativa de interpretarem a
mensagem original do cristianismo, falseavam o seu espírito e a letra,
contaminando-o com elementos e motivos heterogéneos. O maior perigo contra a
unidade espiritual do cristianismo foi representado nos primeiros séculos pelas
seitas gnósticas que se difundiram amplamente no Oriente e no Ocidente,
especialmente nas esferas dos doutos e produziram uma rica o variada literatura.
No entanto, esta literatura, com excepção de poucos escritos, conservados em
traduções coptas, perdeu-se o só a conhecemos através dos passos citados pelos
Padres Apologetas que os refutaram.

A importância da tentativa dos gnósticos reside no facto de que é a primeira


investigação de uma filosofia do cristianismo. Mas esta investigação foi conduzida
sem rigor sistemático, misturando juntamente elementos cristãos, míticos,
neoplatónicos e orientais num conjunto que nada tem de filosófico. A palavra
Gnosis, como conhecimento religioso distinto da pura fé, foi tirada da tradição
grega, especialmente do pitagorismo, no qual significava o conhecimento do divino
próprio dos iniciados. Foi assim empregada para indicar um grupo de pensadores
cristãos do século II que fizeram do conhecimento a condição da salvação.
Atribuíram a si próprios, pela primeira vez, o

130

nome de gnósticos, os Ofitas ou sócios da serpente, que depois se dividiram em


numerosas seitas. Estes utilizavam grande quantidade de textos religiosos
atribuídos a personalidades bíblicas: tal era o Evangelho de Judas, a que se refere
Irineu (Adv. haer.,
1, 31, 1). Outros escritos do género foram encontrados recentemente em
traduções coptas, o mais importante dos quais é a Pistis Sophia, que foi editada
em 1851 e expõe, em forma de diálogo entre o Salvador ressuscitado e os seus
discípulos, particularmente Maria Madalena, a queda e a redenção de Pistis
Sophia, um ser pertencente ao mundo dos Eones (seres intermédios entre o
homem e Deus), e o caminho para a purificação do homem mediante a penitência.
Os principais gnósticos de que temos conhecimento são Basílides, Carpócrates,
Valentino e Bardesanes.

Basilides, que ensinou em Alexandria entre 120 e 140, escreveu uni Evangelho,
um Comentário e Salmos. A sua doutrina é conhecida através das obras de
Clemente de Alexandria (Stromata) e das refutações de Irineu (Contra os
heréticos) e de Hipólito (Filosofemi). Para Basilides, a fé é uma entidade real, uma
coisa, deposta por Deus no espírito dos eleitos, isto é, dos predestinados para a
salvação. Levado pela necessidade de explicar o mal no mundo, Basilides foi
levado a admitir dois princípios da realidade, um como causa do bem, o outro do
mal: a luz e as trevas. Postas em contacto entre si, as trevas procuraram unir-se à
luz e participar dela, enquanto a luz, por sua vez, permanecia retraindo-se sem
absorver as trevas. As trevas originaram assim uma aparência e uma imagem da
luz, que é o mundo, no qual o bem se encontra por isso em quantidade
desprezível e o mal predomina. Esta concepção de Basilides é muito semelhante
à maniqueia, mas não admite, como esta, a luta entre os dois princípios.

131

De Carpócrates de Alexandria apenas sabemos que uma sua sequaz, Marcellina,


foi a Roma nos tempos de Aniceto (cerca de 160), e "provocou a ruiria de muitos"
(Irineu, Contra os hereges, 1, 25,
4). Carpócrates, para explicar a superioridade de Cristo sobre os homens, serve-
se da teoria platónica da reminiscência. Cristo torna-se superior aos outros
homens, porque a sua alma recordou mais abundantemente quanto tinha visto
durante o seu curso com o Pai não gerado, onde este lhe deu uma virtude
particular que o tornou capaz de escapar ao predomínio do mundo e de regressar
livremente até ele. O mesmo acontecerá a toda a alma que se atenha à mesma
linha de conduta. Os sequazes de Carpócrates ou carpocracianos admitiam a
transmigração da alma de corpo em corpo, enquanto não tivesse completado o
ciclo das experiências pecaminosas; só no termo desta odisseia, a alma seria
digna de voltar para o Pai, libertando-se de todas as ligações com o corpo.

O maior número de sequazes pertence à escola de Valentino que, segundo Irineu,


foi a Roma nos tempos do bispo Higino (135-140). No cume da realidade,
Valentino e os seus seguidores colocavam um ser intemporal e incorpóreo, não
gerado e incorruptível a quem chamavam Pai ou Primeiro Pai ou ainda Eone (do
grego: aión=eterno) perfeito. Este primeiro princípio é formado por pares de
termos, Abismo e Silêncio; e também os eones que emanam dele são constituídos
por pares. Efectivamente, do primeiro Eone derivam a Mente e a Verdade, da qual
procedem por emanação a Razão e a Vida; e dos quais procedem ainda o Homem
(como determinação divina) e a Comunidade (ecclesia, comunidade de vida
divina). O conjunto destas oito determinações divinas (ogdoade) é o reino da
perfeita vida divina ou Pleroma. Ora o último Eone, a Sabedoria, quis descobrir o
primeiro, o

132

Abismo, e procurou subir até às regiões superiores do Pleroma. Mas isso não foi
avante e neste esforço inútil deu origem ao mundo, o qual por isto apresenta as
características de um esforço incompleto o os erros e o pranto que o esforço
fracassado produz. "Da ansiedade e da inquietação nasceram as trevas; do temor
e da ignorância nasceram a malícia e a perversão; da tristeza e do pranto as
Contes de água e os mares. Cristo foi mandado pelo Pai Primeiro, inviolável no
seu mistério, a restaurar o equilíbrio desfeito pelo louco sonho da Sabedoria"
'Tertuliano, Contra os Valentinianos, 2). Deste modo, o universo nasce na rebelião
infecunda do cone Sophia que dá origem à obra plasmadora de um Demiurgo.
Valentino repartia o género humano em três categorias: a massa dos homens
carnais, o conjunto dos psíquicos e a casta dos espirituais (pneumáticos). Os
primeiros estão destinados à perdição; os segundos podem salvar-se à custa de
um esforço; aos privilegiados basta, para alcançar a beatitude, a gnose, isto é, o
conhecimento dos mistérios divinos.

Bardesanes, nascido em Edessa em 154 e falecido em 222, foi discípulo de


Valentino. É essencialmente um astrólogo e um naturalista que, da astrologia
babilónica e egípcia, retira a teoria da influência dos astros sobre os
acontecimentos do mundo e sobre as acções humanas.

O persa Mani, nascido provavelmente cerca de


216, proclamou-se Paráclito, isto é, aquele que devia trazer a doutrina cristã à sua
perfeição. A sua religião é uma mescla fantástica dos elementos gnósticos,
cristãos e orientais, fundamentada no dualismo da religião de Zaratustra. Ele
admite efectivamente, dois princípios originais, um, o do mal ou princípio das
trevas, o outro do bem ou princípio da luz, que se combatem perpetuamente no
mundo. Também no homem existem duas almas,

133

uma corpórea que é o princípio do mal, a outra luminosa que é o bem. O homem
atinge a sua perfeição com um tríplice selo, isto é, abstendo-se da comida animal
e dos discursos impuros (signaculum oris), da propriedade e do trabalho
(signaculum manus) e do matrimónio e do concubinato (signaculum sinus). O
maniqueísmo encontrou o seu grande e implacável adversário em S. Agostinho.

§ 138. A POLÉMICA CONTRA A GNOSE

Na polémica contra o gnose o cristianismo atinge uma mais rigorosa elaboração


doutrinal. Neste ponto era necessário, em primeiro lugar, individualizar e defender
as fontes genuínas da tradição cristã e, em segundo lugar, fixar o significado
autêntico desta tradição contra as perversões e erros que pretendiam disputá-la e
exprimir o seu verdadeiro significado. Um certo número de obras antignósticas
perdeu-se, de outras obras (de Agrippa Castor, Egesipo, Rodón, Filipe de Cortina,
Heraclito) restam escassos e insignificantes fragmentos (Migne, Patr. grec., 5.0).
Em contrapartida, temos as obras de Irineu e de Hipólito.

Irineu nasceu cerca de 140 na Ásia Menor, provavelmente em Esmima. No tempo


da perseguição de Marco Aurélio, era padre da igreja de Lyon e, segundo uma
tradição que remonta a S. Jerónimo, morreu mártir mas ignora-se em que data.
Irineu escreveu numerosas obras. Eusébio, na sua História Eclesiástica (V, 20),
cita um tratado: Sobre a monarquia ou sobre não ser Deus autor do mal; um outro,
Sobre ogdoade; várias cartas e escritos menores um dos quais contra os pagãos,
intitulado Sobre a ciência. De todos estes escritos só restam escassos fragmentos
(em Migne, Patr. grec., 7.0),
1225-74). Em contrapartida, conserva-se uma grande

134

obra contra o gnosticismo, intitulada Refutação e desmascaramento da falsa


gnose, comummente chamada Adversus haereses. Mas chegou-nos não no seu
original grego, mas uma versão latina do século IV; existem, contudo, fragmentos
do texto grego, especialmente do primeiro livro, sob a forma de citações dos
escritores posteriores.

A verdadeira gnose é, segundo Irineu, aquela que foi transmitida pelos apóstolos
da Igreja. Mas esta gnose não tem a pretensão de superar os limites do homem,
como a falsa gnose dos heréticos. Deus é incompreensível e impensável. Todos
os nossos conceitos -são para ele inadequados. Ele é intelecto, mas não é
semelhante ao nosso intelecto. É luz, mas não é semelhante à nossa luz. "É
melhor não saber nada, mas crer em Deus e permanecer no amor de Deus, do
que arriscar-se a perdê-lo com investigações subtis" (Adv. haer., 11, 28, 3).
O que podemos saber de Deus, podemos conhecê-lo somente por revelação: sem
Deus não se pode conhecer Deus. E a revelação de Deus acontece também
através do mundo que é obra dele, como reconheceram até os melhores entre os
pagãos. A mais grave blasfémia dos gnósticos é, segundo Irineu, (11, 1, 1) a tese
de que o criador do mundo não é o próprio Deus, mas uma emanação sua. Que
Deus tenha tido necessidade de seres intermédios para a criação do mundo,
significaria que ele não teria tido a capacidade de levar a efeito aquilo que tinha
projectado. Contra a doutrina gnóstica de que o Logos e o Espírito Santo são
eones subordinados, Irineu afirma a igualdade de essência e de dignidade entre o
Filho, o Espírito Santo e o Pai. O Filho de Deus não teve princípio. pois que ele é
desde a eternidade coexistente com o Pai, nem teve princípio o Espírito Santo, o
qual como o Filho está desde a eternidade junto ao Pai. Nem se pode admitir a
emanação do Filho e do

135

Espírito Santo do Pai. A simplicidade da essência divina não consente a


separação do Logos ou do Espírito Santo do Pai (11, 13, 8). O Filho é o órgão da
revelação divina e está subordinado ao Pai não pelo seu ser ou pela sua essência,
mas apenas pela sua actividade (V, 18, 2).

Pelo que se refere ao homem, Irineu, contra a distinção gnóstica de corpo, alma e
espírito, afirma que o homem resulta da alma e do corpo e que o espírito é apenas
a capacidade da alma pela qual o homem se torna perfeito e se constitui à
imagem de Deus. Mas para que o espírito transfigure e santifique a figura humana
é necessária a acção do Espírito Santo. A alma humana está entre a carne o o
espírito e pode voltar-se para uma ou para outro. Apenas pela fé e pelo temor de
Deus, o homem participa do espírito e se eleva à vida divina (V, 9, 1). Mas os
gnósticos erram ao afirmar que a carne em si é um mal ou a origem do mal.
O corpo como a alma é uma criação divina e não pode, portanto, implicar o mal na
sua natureza (IV,
37, 1). A origem do mal está antes no abuso da liberdade e, por isso, deriva não
da natureza, mas do homem e da sua escolha (IV, 37, 6). O bem consiste em
obedecer a Deus, em acreditar nele, em guardar os seus perceitos, o mal consiste
na desobediência e na negação de Deus (IV, 39, 1).
O bem conduz o homem à imortalidade que é concedida à alma por Deus, mas
não é intrínseca à sua própria natureza; o mal é punido com a morte eterna.
Também os corpos ressuscitarão; mas ressuscitarão com a nova vinda de Cristo,
que se verificará depois do reino do Anticristo. Então as almas, tendo readquirido
os seus corpos, poderão chegar à visão de Deus (V, 31, 2; 27, 2).

Da vida de Hipólito, discípulo de Irineu, dá-nos algumas indicações a própria obra


que nos ficou dele, os Philosophoumena. Contra o papa Calisto
136

(217-22) colocou-se à cabeça de um partido cismático e foi assim um dos


primeiros antipapas que a história conhece. O motivo do cisma foi o abrandamento
da disciplina eclesiástica, introduzido por Calisto, que permitira a readmissão na
Igreja daqueles que retornavam das seitas heréticas, a concessão das dignidades
eclesiásticas aos bígamos, etc. (Philos., lX, 12). Em 235, Hipólito foi exilado para a
Sardenha com o segundo sucessor de Calisto, Ponziano, e ali se reconciliaram
provavelmente o papa e o antipapa. Falecidos ambos na Sardenha, os seus
corpos foram transportados para Roma e sepultados no mesmo dia, a 13 de
Agosto de 236 ou 237. A estátua de Hipólito, encontrada mutilada no ano de 1551
e conservada no Museu de Latrão, tem, nos lados do pedestral, uma lista
incompleta dos seus numerosos escritos. Entre as obras de Orígenes andava
incluí do, em muitos manuscritos, o primeiro livro de uma Refutação de todas as
heresias, que certamente não pertence a Orígenes porque o autor se intitula
bispo. Em 1842, num manuscrito do monte Athos, foram encontrados os livros IV-
X da mesma Refutação, a qual hoje é universalmente atribuída a Hipólito com o
título impróprio de Philosophoumena. Das outras obras chegaram-nos fragmentos;
entre estes o capitulo final do escrito Contra Noetum. Restam-nos completos um
escrito apologético Sobre o Anticristo e um Comentário ao profeta Daniel, que é a
primeira tentativa do género entre os teólogos cristãos. Outros fragmentos de
obras de Hipólito conservaram-se em eslavo, arménio, siríaco, etc.

Hipólito propõe-se refutar os heréticos mostrando que eles vão beber a sua
doutrina não na tradição cristã, mas na sabedoria pagã. Por isso, o I e o IV livro
(no último dos quais talvez se possa ver também o 11 e o 111), traçam um quadro
da sabedoria pagã, enquanto os últimos seis expõem e

137

Tefutam as heresias. Ao papa Calisto reprova Hipólito o facto de não estabelecer


uma distinção suficiente entre o Pai e o Logos e o de atribuir, portanto, toda a obra
redentora ao Pai mais que ao Filho. A sua doutrina do Logos tende
essencialmente a estabelecer esta distinção. O Pai e o Filho são duas pessoas
(prosopa) diferentes, ainda que constituam uma só potência (dynamis).
Primeiramente o Logos existia no Pai impessoalmente, em inseparável unidade
com ele, como Logos não expresso. Quando o Pai quis e da maneira que quis, ele
procedeu do Pai e tornou-se uma pessoa à parte como outro em relação a ele.
Finalmente com a incarnação, o Logos tornou-se o verdadeiro e perfeito Filho do
Pai. Hipólito insiste sobre a arbitrariedade da geração divina do Logos. "Se Deus
tivesse querido, diz ele, (Philos., X, 33), teria podido fazer um homem Deus (ou o
homem) em vez do Logos". Afirma assim a subordinação da natureza do Logos à
do Pai. Contudo, ao afirmar que o Logos é distinto de Deus, ele não pretende dizer
que sejam duas divindades: a relação entre o Pai e o Logos é semelhante à que
existe entre a fonte luminosa e a luz, entre a água e a fonte, entre o raio e o sol.
Com efeito, o Logos é uma potência que deriva do todo e o todo é o Pai de cuja
potência procede (Contra Noet., 11). A procedência do Logos do Pai era
necessária para a criação do mundo, pois que o Logos é o intermediário da obra
criadora. Além do Pai e do Filho, Hipólito admite a terceira instituição (economia),
o Espírito Santo. "0 Pai manda, o Filho obedece, o Espírito Santo ilumina; o Pai
está acima de tudo, o Filho é por tudo, o Espírito Santo está em tudo. Não
podemos pensar num único Deus, se não acreditarmos no Pai, no Filho e no
Espírito Santo" (Contra Noet., 14).

138

O homem foi criado por Deus dotado de liberdade e Deus deu-lhe. através dos
profetas e especialmente de Moisés, a lei que deve guiar a sua vontade livre. O
homem não é Deus; mas se quiser pode tornar-se Deus: " Sô seguidor de Deus e
co-herdeiro de Cristo, em vez de servir os instintos e as paixões e tornar-te-ás
Deus" (Philos., X, 33).

§ 139. TERTULIANO

Frente aos apologetas orientais que tentaram estabelecer a continuidade entre o


cristianismo e a filosofia grega e apresentaram a doutrina cristã como a verdadeira
filosofia que a revelação de Cristo conduziu à sua última perfeição, os apologetas
ocidentais tendem a reivindicar a originalidade da revelação cristã em confronto
com a sabedoria pagã e a fundá-la sobre a natureza prática e imediata da fé, mais
que sobre a especulação. Este carácter da apologética latina demonstra-se,
sobretudo, no seu maior representante, Tertuliano.

Quinto Septímio Fiorente Tertuliano nasceu cerca de 160 em Cartago de pais


pagãos. Teve uma educação excelente e exerceu, provavelmente em Roma, a
profissão de advogado. Entre 193 e 197 converteu-se ao cristianismo e recebeu a
ordenação sacerdotal. Desenvolveu então uma intensa actividade polémica a
favor da nova fé; irias, a meio da sua vida, passou para a seita dos montanistas e
começou a polernizar contra a Igreja Católica com violência pouco menor do que
aquela que tinha usado contra os hereges. Finalmente, fundou uma seita própria,
os "tertulianistas" (Agostinho, De haeres., 86). Parece que viveu até idade
avançada (Jerónimo, De vir. iII., 53). A actividade literária de Tertuliano é
vastíssima, mas exclusivamente polémica. As suas obras costumam dividir-se

139

em três grupos: apologéticas, em defesa do cristianismo; dogmáticas, em


refutação das heresias; prático-ascéticas, sobre questões de moral prática e de
disciplina eclesiástica. Ao primeiro grupo pertencem: o Apologeticus, dirigido no
ano de 197 aos governadores das províncias do Império Romano; o Ad nationes,
pouco anterior ao primeiro; o De testimonio animae, que pretende fundar a fé no
testemunho da alma, "naturaliter christiana"; a carta Ad Scapulam, dirigida a um
procônsul de África que perseguia os cristãos; o Adversus judaeos, que,
provavelmente, só nos primeiros oito capítulos pertence a Tertuliano. As obras
dogmáticas são: o De praescriptione haereticorum que é um dos seus escritos
filosóficamente mais significativos; Adversus Marcionem, Adversus Hermogenem
e Adversus Valentinianos, dirigidos contra os Gnósticos; o Scorpiace, também
dirigido contra os Gnósticos, comparados aos escorpiões; o De baptismo, que
declara inválido o baptismo dos heréticos; o De carne Christi que confirma a
realidade do corpo de Cristo contra o docetismo; o De ressurrectione Christi, em
defesa da ressurreição da carne; o Adversus Praxean; o De anima, que é o
primeiro escrito de psicologia cristã. Os dois últimos escritos pertencem ao período
montanístico. As obras prático-ascéticas são: o De patientia, o De oratione, o De
poenitentia, o De pudicitia, a carta Ad martyras, o De exortatione castitatis, o De
monogamia, todos dirigidos contra o segundo matrimónio; o De spectaculis, contra
a intervenção dos cristãos nos jogos pagãos; o De idololatria, contra a participação
dos cristãos na Vida pública e na actividade artística; o De corona, contra o
serviço militar; o De cultu foeminarum, contra os adornos das mulheres; o De
virginibus velandis; o De fuga in persecutione, que declara ilícita a fuga durante as
perseguições; o De ieiunio adversus psychícos, contra os jejuns dos
140

católicos; o De palfio, em defesa da veste que havia adoptado ao abandonar a


toga.

O traço característico de Tertuliano é a irrequietude. No tratado De patientia, que


dirige sobretudo a si próprio, existe indubitàvelmente uma confissão sincera:
"Pobre de mim, que ardo continuamente com a febre da impaciência." E, na
realidade, ele era incapaz de deter-se sobre os problemas e examiná-los com
profundidade. O trabalho paciente e rigoroso da pesquisa não era para ele; por
alguma coisa, como veremos, desvaloriza a investigação ante a fé. Servido por
uma habilidade polémica excepcional e por uma faculdade oratória pouco comum,
examina os problemas tomando as posições mais simples e extremistas com
suprema indiferença por toda a cautela crítica e toda a exigência de método. Este
homem que nega o valor da pesquisa e passa a vida à procura de qualquer coisa;
este adversário implacável de todas as seitas que depois passa a uma delas e
acaba por fundar uma; este defensor do cristianismo que afirma a corporeidade de
Deus e da alma, perdendo assim a primeira conquista não só do cristianismo mas
de qualquer religião; este defensor intransigente do pudor que se detém com
complacência a descrever o acto carnal do amor (De an., 27), este causídico que
defende com igual violência polémica a trindade de Deus e a forma do seu vestir,
revela em todas as suas atitudes uma carência fundamental de clareza e de
sinceridade consigo próprio. Com demasiada frequência deixa transparecer na
sua arrogância polémica, sob o manto oratório das frases incisivas, a
inconsistência da sua espiritualidade e o carácter formalístico da sua fé. Aquela
seita dos montanistas, que tinha as características do seu fundador Montano, ex-
sacerdote de Cibele, formada por exaltados que viviam em contínua agitação à
espera do iminente regresso de Cristo,
141

pôde seduzi-lo por algum tempo, mas não pôde detê-lo. E assim, se imprimiu à
especulação cristã do Ocidente a sua terminologia, não conseguiu dar-lhe um
contributo substancial de pensamento.

§ 140. TERTULIANO: AS DOUTRINAS

O ponto de partida de Tertuliano é a condenação da filosofia. A verdade da


religião funda-se na tradição eclesiástica-, da filosofia só nascem as heresias. Não
existe nada de comum entre o filósofo e o Cristo, entre o discípulo da Grécia e o
dos céus (Apol., 46); os filósofos são "os, patriarcas dos heréticos" (De an., 3). A
raiz de todas as heresias está nos filósofos gregos. Valentino, o gnóstico, era
discípulo de Platão; Marción, dos Estoicos. Para negar a imortalidade da alma
recorre-se aos Epicuristas; para negar a ressurreição da carne, ao acordo
unânime dos filósofos. Quando se fala de um Deus-fogo recorre-se a Heraclito. E
a coisa mais inútil de todas é a dialéctica do desgraçado Aristóteles que serve
tanto para edificar como para destruir e que se adapta a todas as opiniões (De
praescr., 7). Que valor têm então as palavras de Cristo: "Procurai e achareis"? É
necessário procurar a doutrina de Cristo enquanto não a encontrarmos, isto é,
enquanto não acreditamos nela. "Se procuramos para encontrar e encontramos
para crer, põe-se fim, com a fé, a toda a ulterior investígação e achamento. Eis o
limite que o próprio resultado da investigação estabelece. Eis aqui o fosso que
traçou diante de ti aquele que quer que tu creias só naquilo que te ensinou e
que não busques outra coisa" (De praescr., 10). A investigação excluí pois a posse
e a posse exclui a investigação. Procurar, depois que se alcançou a fé, significa
precipitar-se na heresia (1b., 14). Nada há
142

mais estranho à mentalidade de Tertuliano do que a exigência de uma


investigação que nasça e se alimente da fé: esta exigência encarnará na grande
figura de S. Agostinho. Medido pelo critério de Tertuliano, S. Agostinho seria
incrédulo ou herético.

A verdade do cristianismo funda-se, portanto, apenas no testemunho da tradição.


Às seitas heréticas que procuram interpretar a seu modo as Sagradas Escrituras,
ele opõe que a interpretação delas diz respeito apenas às autoridades
eclesiásficas, às quais foi transmitido, por hereditariedade ininterrupta, o
ensinamento de Cristo. Com mentalidade de advogado defende este direito da
Igreja, que foi instituída, através dos Apóstolos, como herdeira da mensagem de
Cristo. Mas admite também, além da tradição eclesiástica, um outro testemunho a
favor da fé: o da alma. Mas a alma não é para ele, como será para S. Agostinho, o
princípio da interioridade, o rincão interior onde ressoa do alto a voz da verdade
divina; é a voz do senso comum, a crença que o homem da rua manifesta nas
expressões correntes da sua linguagem. "Eu não invoco a alma que se formou nas
escolas, exercitada nas bibliotecas e inchada pela sabedoria das academias e dos
pórticos da Grécia. Eu invoco a alma simples, rude, inculta e primitiva, tal como a
possuem aqueles que só a têm a ela, a alma que se encontra nas encruzilhadas e
bifurcações dos caminhos" (De testimon. an., 1). E Tertuliano recolhe o
testemunho desta alma nas expressões mais simples e mais frequentes que o
vulgo emprega, com a convicção de que tais expressões são "vulgares porque
comuns, comuns porque naturais, naturais porque divinas" (lb., 6).

O testemunho da alma é, pois, para Tertuliano, o testemunho da linguagem ou do


senso comum mais que o testemunho da consciência. O princípio da consciência
é, efectivamente, estranho a Ter-

143

tuliano, que aceita dos Estoicos a corporeidade do ser.

"Tudo aquilo que é, é o corpo de um género determinado. Nada é incorpóreo a


não ser aquilo que não é" (De carne Christi, 11). O próprio Deus é corpo ainda que
seja espírito, pois que o espírito não é mais do que um corpo sui generis. A
diferença entre a natureza espiritual da alma e a natureza carnal do corpo é a
diferença entre dois corpos: o espírito é um sopro que dá vida à carne, mas que é
ele próprio corpóreo. O mundo sensível e o mundo intelectual diferenciam-se entre
si só enquanto um é visível e aparente e o outro evanescente e imperceptível.
O primeiro cai sob a sensibilidade, o segundo sob o intelecto. Mas o próprio
entender é um sentir e o sentir é um entender. A sensação é efectivamente a
inteligência da -realidade que se sente e a intelecção é a sensação da realidade
que se percebe (De an., 18). A alma tem, pois, a mesma figura do homem e,
precisamente, do corpo que a contém (lb., 9). Ela é definida por Tertuliano como
"uma substância simples, nascida do sopro de Deus, imortal, corpórea e dotada de
uma figura, capaz por si mesma de sabedoria, rica em atitudes, partícipe de
arbítrio, sujeita às circunstâncias, mutável de humor, racional, dona da sua
capacidade, rica de virtudes, adivinhadora, multiplicando-se a partir de um único
ramo (Ib., 22).

Esta última determinação exprime a convicção de Tertuliano de que a alma se


transmite, em conjunto com o corpo, de pai para filho através da geração
(traducianisnio). No resoluto materialismo de Tertuliano exprime-se, por um lado, a
necessidade de dar ao espírito a realidade mais sólida e concreta pelo outro a sua
incapacidade para conceber um'@ realidade estável e firme fora do corpo.
Contudo, isso permite-lhe afirmar com extrema energia a unidade indissolúvel do
homem. "Se a morte não é mais que a separação entre o corpo e a alma, aquilo
que é

144

contrário à morte, a vida, não será outra coisa senão a união da alma e do corpo.
Estão fundidos pela vida os elementos que são desintegrados na morte" (1b., 27).
Por isso, Tertuliano defende a realidade do corpo de Cristo contra aqueles que o
reduziam a uma pura aparência (docetismo). No De carne Christi detém-se, com
aquela complacência no repugnante e no abjecto que lhe é tão característica, nos
mais grosseiros detalhes da geração e do nascimento, para defender a total e
plena humanidade do homem. "Cristo, diz ele (De carne Christi, 4), amou o
homem tal como é. Se Cristo é o criador, amou justamente o que era seu; se vem
de outro Deus, o seu amor é mais meritório porque se redimiu a um estranho. Era,
pois, lógico que amasse também o seu nascimento, a sua carne; é impossível
amar um objecto qualquer sem amar o que é uno com ele. Acaba com o
nascimento e faz-me ver um só homem que seja; suprime a carne e diz-me que
coisa pôde Deus remir, se de um e da outra resultou a humanidade que Deus
redimiu". A realidade e o valor da carne justificam a ressurreição de Cristo. E a
este respeito encontramos palavras paradoxais que exprimem aquela exasperada
tensão entre a certeza da fé e a verdade do intelecto que se expressou na fórmula
(que não se encontra em Tertuliano): credo quia absurdum. "0 Filho de Deus foi
crucificado; não é vergonhoso porque poderia sê -lo. O Filho de Deus morreu: é
crível porque é inconcebível. Sepultado, ressuscitou: é certo porque é impossível"
(De carne

Chr., 5). Aqui a fé tem tanta maior certeza quanto mais repugna às avaliações
naturais do homem.

A ressurreição de Cristo é a garantia da ressurreição do homem. Tertuliano deduz


as provas da imortalidade da alma dos testemunhos do senso comum, da
necessidade implícita em todos de viver de qualquer modo para lá do túmulo,
necessidade que se funda numa instintiva certeza do futuro (De

145

testim. an., 6). Mas à imortalidade da alma andará unida a ressurreição da carne.
O homem deverá ressurgir na sua natureza inteira e esta não seria tal sem a
carne (De ressur. carnis, 56-57).

Na sua doutrina do Logos, Tertuliano liga-se expressamente aos Estoicos: "Deus


criou todo o mundo com a palavra, com a sabedoria e com a potência. Também os
vossos sábios chamam Logos, isto é, palavra e sabedoria, ao artífice do universo.
Zenão chama-lhe o autor da ordem que dispôs todas as coisas; Cleanto redu-lo a
um espírito e afirma que penetra o universo. E nós à Palavra, à Sabedoria e à
Potência pela qual Deus criou todas as coisas, atribuímos-lhe, como substância
própria, o Espírito, no qual existe a Palavra para mandar, a Razão para dispor e a
Potência para efectuar" (Apol., 21). Tertuliano admite, contudo, a subordinação do
Filho e do Espírito Santo ao Pai. O ser pertence principalmente ao Pai, do qual se
comunica ao Filho e, através do Filho, ao Espírito Santo. Tudo aquilo que o Filho é
vem-lhe da substância do Pai; toda a sua vontade, todo o seu poder lhe vem do
Pai (Adv. Praexan., 3-4).
O Logos tem um duplo nascimento, o imanente e o emanewe; pelo primeiro, é
gerado na sensibilidade de Deus; pelo segundo afasta-se do Pai e procede à
criação do mundo (1b., 7).

§ 141. APOLOGETAS LATINOS

Contemporâneo de Tertuliano foi Minúcio Félix, autor de um diálogo intitulado


Octavius, que é uma das primeiras apologias do cristianismo. Pouco sabemos do
autor, que se intitula advogado (causidicus) em Roma. No diálogo, faz de árbitro
na disputa entre o cristão Octávio Gennaro e o pagão Cecilio Natale que, no final,
se declara vencido. A apologia

146

de Minúcio Félix é, no seu espírito, uma obra mais próxima dos escritores gregos
do que de Tertuliano.
O cristianismo é apresentado como monoteísmo e caracterizado acima de tudo
através da sua moral prática. Não se fala dos mistérios da fé nem da Sagrada
Escritura. A concordância de todos os filósofos sobre a unicidade de Deus faz
concluir que "ou os cristãos são os filósofos de agora ou os filósofos de então
eram cristãos" (Oct., 20). Todavia, a obra apresenta no seu conteúdo uma grande
afinidade com o Apologeticum de Tertuliano. Não é fácil elucidar a prioridade de
uma ou de outra obra. Como quer que seja, as teses que, em Tertuliano, têm uma
forma violenta e extrema, tomam em Minúcio Félix uma forma atenuada e cortês,
que as torna mais aptas para influir persuasivamente sobre os pagãos cultos a
quem a obra se dirige. À posição céptica de Cecílio, o interlocutor pagão que,
reconhecendo a impossibilidade da mente humana para olhar os mistérios divinos,
julga que nos devemos contentar com as crenças dos nossos pais, Octávio
contrapõe a evidência pela qual o Deus único se manifesta na sua obra: o céu e a
terra. Como quem entra numa casa e, ao vê-Ia bem ordenada e disposta, atribui
esta ordem ao dono, do mesmo modo quem considera a ordem, a providência e a
lei que regem o céu e a terra, deve crer num senhor do mundo que o move, o
alimenta e o governo (1h., 18). Como Tertuliano, Minúcio recorre ao testemunho
da alma simples e reconhece nela "a palavra espontânea da multidão". A crença
cristã num Deus único confirmada juntamente pela demonstração dos filósofos e
pelo sentido comum da maioria, e contraposta por Minúcio ao politeísmo pagão,
tal como a moral cristã se opõe à moral pagã, degenerada e corrupta.

Nos escritos prático-ascéticos de Tertuliano se inspirou frequentemente Tascio


Cecilio Cipriano (morto em 258), em tratados e cartas que tratam

147

apenas questões referentes à disciplina eclesiástica e não têm, por conseguinte,


interesse filosófico. Em contrapartida, tem conteúdo filosófico a apologia de
Arnóbio intitulada Adversus nationes, composta no tempo da perseguição de
Diocleciano (303-305) ou pouco depois. Arnóbio era professor de retórica em
Sicca, na África romana. Uma visão convenceu-o a converter-se e para vencer a
desconfiança do bispo, que devia acolhê -lo na comunidade cristã, publicou esse
escrito contra o paganismo. Tal é, ao menos, o relato de S. Jerónimo (De vir. ÚI.,
79). Pelo seu conceito pessimista da condição do homem, Arnóbio foi comparado
a Pascal. Tudo no homem lhe parece baixo, repugnante e ignóbil. A sua própria
existência é inútil para a economia do mundo, que permaneceria imutável se o
homem não existisse (11, 37). A convivência humana não chega nunca a ser justa
e duradoira; a história é um suceder de violências e de crimes (11, 38) que se
repetem eternamente da mesma maneira (1, 5). Posto isto, parece a Arnóbio "um
crime de impiedade sacrílega" admitir que haja sido criada por Deus, autor da
ordem e da perfeição do mundo, "esta coisa infeliz e mísera, que se dói de ser,
que detesta e chora a sua condição e não entende ter sido criada por outrem
senão para difundir o mal e perpetuar a sua miséria" (11, 46). Portanto, o homem
deve -ter sido criado por uma divindade inferior em dignidade e potência, e em
muitos graus, ao sumo Deus, ainda que pertencente à sua família (11, 36).
Arnóbio admite assim divindades inferiores, subordinadas ao Deus supremo. Nem
sequer exclui a existência das divindades pagãs: se existem, serão também
divindades de ordem inferior subordinadas ao Deus dos cristãos (1, 28; 111, 2-3;
VII, 35).

A alma humana não tem, pois, o carácter divino que os Platónicos lhe tinham
atribuído. Arnóbio combate expressamente a doutrina platónica da

148

reminiscência. Um homem que tivesse estado desde o seu nascimento em


completa solidão teria o espírito vazio e não chegaria de modo algum a ter
conhecimento das coisas ultraterrenas. A sensação é a origem única de todo o
conhecimento humano (11, 20). Uma só ideia é inata no homem, a ideia de Deus,
o único criador e senhor de tudo (1, 33); com ela se revela também a certeza da
existência de Deus, da sua bondade e da sua perfeição. Ainda devido à sua
natureza inferior, a alma não é naturalmente imortal. Ela não é puro espírito nem
puro corpo, mas de uma qualidade intermédia e de natureza incerta e ambígua
(11, 14). Só Deus pode subtraí-Ia à morte e conferir-lhe a imortalidade; ele confere
a imortalidade àqueles homens que o reconhecem e servem, enquanto os demais
serão por ele condenados à verdadeira morte e consumidos até ao aniquilamento
pelo fogo do inferno (11, 14). Erram pois os Epicuristas ao afirmar
incondicionalmente a morte da alma (11, 30) e também Platão ao afirmar a sua
imortalidade incondicionada (11, 4)0. O destino da alma é um resultado da sua
conduta.

Discípulo de Arnóbio, segundo parece, foi Lúcio Célio - Firmiano Lactâncio que
também havia ensinado retórica em África e desenvolvera já uma certa actividade
literária quando se converteu ao cristianismo. Chamado por Diocleciano para
ensinar retórica latina em Nicomédia, a nova capital do Império, conheceu a vida
errante e pobre quando, no ano de 305, foi obrigado pela perseguição a deixar o
seu ofício. Mas alguns anos depois assistia à mudança radical da política do
Império, relativamente ao cristianismo, por obra de Constantino e compunha o De
mortibus persecutorum, no qual, com amargo espírito de vingança, se compraz
com a ruína em que caíram os perseguidores dos cristãos. Na sua velhice foi, na
Galiá, perceptor de Crispo, filho de Constantino. A sua obra mais importante, os 7
livros

149
das Divinae institutiones são, ao mesmo tempo, a apologia do cristianismo contra
os seus inimigos e um manual de toda a doutrina cristã. Um compêndio desta obra
é o Epitome divinarum institutionum.
O tratado De opificio Dei tem como fim demonstrar contra os Epicuristas que o
organismo humano é uma criação de Deus; e o tratado De ira Dei, contra a
indiferença atribuída pelos Epicuristas à divindade, pretende demonstrar a
necessidade da ira divina. A obra principal de Lactâncio é a primeira tentativa,
realizada no ocidente, para reduzir a sistema a doutrina cristã expondo-a de modo
orgânico e completo. Pela forma literariamente apreciável desta exposição,
Lactâncio foi chamado pelos humanistas o Cicero cristão; mas a sua obra
apresenta escassa originalidade de pensamento. Que existe uma providência que
rege o mundo é evidente, segundo Lactâncio, a quem quer que erga os olhos ao
céu. Só pode haver dúvidas sobre a quem pertence tal providência, se a um único
Deus ou a várias divindades; a alternativa é, pois, entre monoteísmo e politeísmo.
Mas admitir mais divindades significa aceitar que Deus não tinha poder suficiente
para reger por si só o mundo, com o que se nega a Deus uma potência infinita e
se elimina o próprio conceito de Deus. Divindades diversas poderiam estabelecer
no mundo leis antagónicas que lutassem entre si, o que está excluído pela
unidade e a ordem do mundo. Além disso, como no corpo humano os diferentes
membros e os diversos aspectos da vida espiritual são dirigidos por uma única
alma, assim o mundo deve ser regido por uma única mente divina (Instit. div., 1,
2). A doutrina cristã do Logos não divide nem multiplica o único Deus. O Pai e o
Filho não estão separados um do outro, pois nem o Pai pode ser dito tal sem o
Filho, nem o Filho pode ser gerado sem o Pai. Constituem entre ambos uma única
razão, um único espírito, uma única substância. Mas o Pai é como a fonte

150

transbordante, o Filho é a torrente que emana da fonte; o Pai é como o sol, o Filho
é o raio irradiado pelo sol; como a torrente não pode separar-se da fonte e o raio
não pode separar-se do sol, também o Filho não pode separar-se- do Pai. Como
uma casa que pertença a um dono que ame o seu único filho

e o reconheça igual a si, não cessa com isto de ser juridicamente uma só casa
com um só dono, assim o mundo é a casa de Deus e o Pai e o Filho que a
habitam são um único Deus (1b., IV, 29). O Filho foi gerado antes da criação do
mundo para ser o conselheiro de Deus na concepção e na realização do plano da
criação (Ibid., 11, 10). E o mundo não foi criado por Deus para si próprio, pois não
tem necessidade dele, mas para o homem; Deus criou, em contrapartida, o
homem para si, para que o reconhecesse e lhe prestasse o devido culto,
compreendendo e medindo a perfeição da obra que tem diante de si (Ib., VII, 5).
Deus também não teve necessidade, na criação, de uma matéria pré-existente: o
homem tem necessidade da matéria para todas as suas obras, mas Deus cria a
própria matéria (1b., 11, 9). O homen-i é composto de alma e corpo. A alma não
tem nenhum peso terreno: é tão ténue e subtil que escapa até aos olhos da mente
(1b., VII,
12-13). Alma e mente não são idênticos; a alma é o princípio da vida e não
entorpece no sonho nem se extingue na loucura; a mente é o princípio do
pensamento, aumenta ou diminui com a idade, perde-se no sonho e na loucura
(1b., VII, 12). A alma e o corpo estão ligados entre si e contudo são opostos:
aquilo que é bem para a alma como a renúncia à riqueza, aos prazeres, o
desprezo pela dor e pela morte é um mal para o corpo; aquilo que é um bem para
o corpo é um mal para a alma que se relaxa e extingue com os prazeres e com o
desejo da riqueza (1b., VII, 15). O homem é formado por princípios diferentes e
contrários, como o mundo é formado

151

por luz e trevas, vida e morte. Estes princípios combatem dentro dele e se nesta
luta a alma vence será imortal e admitida à luz eterna; se vence o corpo, a alma
estará sujeita às trevas e à morte (1b., 11, 13). Mas a imortalidade não é só o
termo e o prémio da virtude: é condição da própria virtude. Seria estulto renunciar
àqueles prazeres aos quais o homem é naturalmente inclinado e entrar num
caminho que é hostil e mortificante para a natureza humana, se a imortalidade não
existisse para dar um sentido à obra contra a natureza da virtude (lb., VII, 9).

Reaparece aqui como pressuposto da vida moral o pessimismo de Amóbio sobre


a condição do homem. A natureza humana é radical e totalmente contrária à vida
moral e religiosa. Nada existe nela que a resgate e a atraia para o espírito; pelo
contrário, o espírito a dana, pois o seu único bem é o prazer, o único mal a dor.
Mas este pessimismo é usado por Lactâncio como fundamento da vida moral e
religiosa. Se a natureza humana não fosse fundamentalmente perversa, a própria
virtude seria impossível. Os Estoicos que negam o vício no homem retiram do
mesmo modo a própria virtude, pois que coisa seria a mansidão se não existisse a
ira, e a continência se não existisse desejo sexual? A virtude, com termo médio,
supõe os extremos viciosos (lb., VI, 15). Pela virtude, a alma, desligando-se da
sua natureza e da sua ligação corpórea, tende para aquela imortalidade que lhe
será dada como prémio, Mas isto significa que o sumo bem do homem só e
alcançável na religião (1b., 111, 10), não em toda a religião mas só naquela com a
qual está essencialmente ligada a esperança na imortalidade: a cristã (lb., 111 12).
Tudo está para o homem no reconhecimento e no culto de Deus: esta é a sua
esperança e

a sua salvação, este é também o sumo grau da sabedoria (Ib., VI, 9). Mas este
grau mais alto da sabedoria não é a filosofia. A filosofia procura a

152

sabedoria, mas não é a própria sabedoria (1b., 111, 2). Ela não atinge o
conhecimento das causas, como ensinam com razão Sócrates e os Académicos.
A disparidade das escolas filosóficas torna impossível orientar-se alguém nas suas
opiniões se se não possui antecipadamente a verdade. Só a revelação pode, pois,
dar a verdade. E a dialéctica é inútil (1b., 111, 13).
NOTA BIBLIOGRáFICA

§ 133. São fundamentais para o estudo da Patristica as seguintes obras: MIGNE,


Patrologiae cursus completus, série L, "Ecelesia graeea>, 162 volumes (com
tradução latina) que chega até ao século xv, Paris, 1857-66; série 2.1 "Eeclesia
latina", 221 vols. até ao princípio do século MU, Paris, 1844-64. Corpus scriptorum
ecelesiasticorum latinorum, a cargo da Academia de Viena, Viena, 1866, ss.;
Monumenta Germaniae historica. Auctores antiquissimi, 13 vols. Berlim, 1877-98;
Escritores gregos cristãos dos priineiros trêo sécu7,os, Academia de Berlim, 31
vols. a partir de 1897; S.S. Patruum opuscula selecta, editados por HuRTER, 43
vols. 1868-85; outra série: 6 vo,18-,
1884-92. Sobre a Patrística em geral: STÜCKL, GCSchichte der christliche
Philosophie zur Zeit der Kirchen-Vãter, Mogúncia, 1891. Bibliografia in
UEBERWEGGEYER, Die Patristiche und scholastische philosophie, Berlim,
1928, p. 640 e ss.

§ 134. Sobre os apologistas em geraJ: HARNACK, Der Vorwurf des Atheismus in


den ersten drei Jahrunderten, 1905; ZÜCKLER, Geschichte der Apologie des
Christentums, 1907; CORBIÈRE, Le christianisme et Ia fin de Ia philosophie
antique, Paris, 1921; CARRINGSTON, Christian Apologetes of the 2nd Century in
their Relation to Modern Thought, Londres, 1921*, M. PELLEGRINO, Gli Apologeti
greci del II secolo, Roma, 1947.

§ 135. As obras de Justino em Patr. Graec., vol. 6.1; Apologia, edição Pautigny,
Paris, 1904; edição Rauschen, Bonn, 1911; edição Pfattisch, Münster,
1912. Sobre Justino: LAGRANCE, Saint Justin, Paris
1914; MARTINDALE, St. Justin, Londres, 1921; RIVIÈRE, st. Justin et les
apologistes du Ile. siècle, Paris, 1907;

153

GOODENOUGH, The Theology of Justin Martyr, Iena,


1923.

§ 136. As obras dos padres apologetas estão impressas no Corpus apologetarum


christianorum saeculi II, edição d3 OTTO, 9 vols., Iena, 1847-72; nova edição dos
primeiros 5 vols., 1876-81.

O escrito de Hermias, Jn DIELs, Doxographi.graeci, Berlim, 1879, pp. 649-656.

§ 137. Os fragmentos dos gnósticos estão recolhidos (de mo-do incompleto) na


colectânea de W. VOLKER, Quellen zur Geschichte der christlischen Gnosis
(SammIung ausgewãhlter kirchen-und dogmengesch. Quellenschriften) hrgg. v. g.
G. KRUGER NF 5), Tübingen, 1932; uma selecção de textos traduzidos em
italiano é a de E. BUONAIUTI, Frammenti gnostici, Roma, 1923. Tratados
gnõsticos conservados em língua copta publicados (em tradução alemã) por C.
SCHMIDT, Koptisch-gnostiche Schriften, Berlim,
1905 (com actualização de W. TILL), 1954; W. TILL, Die gnostische Schriften des
koptischen Papyrus Berolinensis 8502 ("Texte und Untersuchungen", LX), Berlim,
1955. Em 1946 foram descobertos no Alto Egipto 11 vols. contendo 48 escritos de
inspiração gnóstica. Sobre eles: 11. CH. PuECH, Les nouveaux écrits gnostiques
découverts en Ilaute-Egypte, in "Coptie Studies in Honour of Walter Ewing Crum",
(Mass.), 1950, p. 91-154. Desta bibliografia gnóstica foram publicados até agora: o
valentiniano Evangelium veritatis, edição de M. MALILINE-H. Cil. PUECII-G.
QUISPEL, Zürich, 1956; O Evangelho segundo Tomás, trad. francesa, Paris, 1959;
trad. alemã e Inglesa, Leide, 1959.

Sobre a gnose: W. BOUSSET, Hauptprobleme der Gnosis, Gottingen, 1907; A. V.


HARNACK, Marcion. Das Evangelium vom fremden Gott, Leipzig, 1924; E. DE
FAYE, Gnostiques et gnosticisme, Paris, 1925; F. C. BURKITT, Church and
Gnosis, Cambridge, 1932. S. PÉTREMENT, Essai sur le dualisme chez Platon, les
gnostiques et les manichéens, Paris, 1947; G. QUISPEL, Gnosis aIs
Weltreligion, Zurich, 1951; H. JONAS, Gnosis und spãtantiker Geist, Gottingen,
1954; H. CH. PUECII, Gnostische Evangelien und verwandte Dokumente, in E.
H.ENNECKE~W. SCHNEEMÉLCHER, NeutestamentUsche Apokryphen, I,
Tubingen,
1959 (fundamental). Sobre o maniqueísmo: H. CH.

154

PUEcH, Le manichéisme. Son fondateur, sa doetrine, Paris, s. d. (ma-9 1949).

§ 138. As obras de IRINEU, in Patr. Graec., vol. 7.o; Adversus haereses, edição
Harvey, Cambridge, 1857; edição Stieren, Londres, 1848-53. Sobre Irineu:
HITCHCOCK, Irenaeus of Lugdunum, Cambridge, 1914; BON=SCH, Die
Theologie des Irenaeus, Güterslok, 1925.

As obras de Hipólito, in Patr. Graec., vol., 10.1. Há também edição berlinense em


3 vols., 1897-1916. Sobre Hipólito: A. DIALÉs, La théologie de St. Hyppolite, Paris,
1906.

§ 139. As obras de TERTULIANO, em P. L.@ 1.---2.o e no Corpus de Viena@


20.o 47.o; edição de OEHLER@
3 voIs. Leipzig, 1851-54; edição menor, Leipzig, 1854. Sobre Tertuliano:
MONCEAUX, Hist. litt. de l'Afrique chrétienne, vol. 1, Paris, 1901; BUONAIUTI, 11
cristianesimo' nell'Africa romana, Bari, 1928, p. 37-208; LORTZ, Tertullian aIs
apologets, 2 vols., Münster,
1927-28.

§ 141. A obra de MINucio FÉLIX, in P. L.,


3.1 edição, Teubner, Leipzig, 1912. Sobre W11núcio. BARDENHEwER, Gesch.
der altkirch. Litter., 1, Friburgo, 1913, p. 337 ss; BU0NAlUTI, ob. cit., p. 217 ss.
A obra de ARNõBIO, in P. L., 3.1 e no Corpus de Viena, 4.1. Sobre Arnóbio:
MONcEAux, Hist. Litt. de PAfrique chrétienne, võl. III, p. 275 ss; BUONAIUTI, ob.
cit., p. 278 ss.

As obras de LACTÂNCIO, in P. L., 6.---7.g e no Corpus de Viena, 19.o, 27.o.


Sobre Lactâncio: PICHON, Lactance, Paris, 1901; BU0NAlUTI, ob. cit., pp. 285 ss.

155

HI

A FILOSOFIA PATRISTICA NOS SÉCULOS III E IV

§ 142. CARACTERISTICAS DO PERIODO


´
A elaboração doutrinal do cristianismo, iniciada pelos apologetas para defender a
comunidade eclesiástica contra os perseguidores e heréticos, foi continuada e
aprofundada nos séculos seguintes por uma necessidade interna, que se afirma
cada vez mais dominante no próprio campo da Igreja. Nesta elaboração seguinte
dominam menos os motivos polémicos e mais a exigência de constituir a doutrina
eclesiástica num organismo único e coerente, fundado numa sólida base lógica. A
parte da filosofia torna-se, por isso, cada vez maior. A continuidade que os
apologetas orientais, a começar em Justino, tinham estabelecido entre o
cristianismo e a filosofia pagã consolida-se e aprofunda-se. O cristianismo
apresenta-se como a autêntica filosofia que absorve e leva à verdade o saber
antigo, do qual pode e deve @servir-se para trazer elementos e motivos para a
sua própria justificação. As doutrinas

157

fundamentais do cristianismo encontram, mediante este trabalho, a sua


sistematização definitiva. O período que vai de 200 a cerca de 450 é decisivo para
a construção de todo o edifício doutrinal do cristianismo. As esperanças
escatológicas das numerosas seitas cristãs, que tinham dominado no período
precedente, vingam menos. Se, frente ao iminente regresso de Cristo, o trabalho
longo e paciente da investigação doutrinal parecia quase inútil e os ritos
preparatórios e propiciatórios ocupavam o primeiro lugar, uma vez esmorecida a
esperança deste retorno, a investigação doutrinal torna-se a primeira e
fundamental exigência da Igreja, que é a que deve garantir a sua unidade o a sua
solidez na história.

O primeiro impulso para tal investigação foi dado pela escola catequística de
Alexandria, que existia já há muito tempo quando, em 180, se tornou seu chefe
Panteno, que lhe deu as características de uma academia cristã , na qual toda a
sabedoria grega era utilizada para os fins apologéticos do cristianismo. A escola
alcançou o seu máximo esplendor com Clemente e Orígenes; mas quando, em
233, Orígenes procurou na Palestina uma nova pátria e abriu em Cesareia a sua
escola, esta suplantou a outra e tornou-se a sede de uma grande biblioteca que foi
a mais rica de toda a antiguidade cristã.

§ 143. CLEMENTE DE ALEXANDRIA

Tito Flávio Clemente nasceu cerca de 150, provavelmente em Atenas. Convertido


ao cristianismo viajou pela Itália, a Síria, a Palestina e, finalmente, o Egipto. Em
Alexandria, pouco antes de 180, torna-se discípulo de Panteno e, seguidamente,
padre daquela Igreja. Cerca de 190 foi colaborador e

158

ajudante no ensino de Panteno e, depois da morte deste (cerca de 200), tornou-se


chefe da escola catequística. Em 202 ou 203, foi obrigado a deixar Alexandria
devido à perseguição de Sétimo Severo; cerca de 211 estava na Ásia Menor junto
do seu discípulo Alexandre, que foi depois bispo de Jerusalém. Numa carta de
Alexandre a Orígenes, de
215 ou 216, fala-se de Clemente como de um padre já falecido (Eusébio, Hist.
ecc1., VII, 14, 8-9).

Os três escritos de Clemente que nos restam, Protréptico aos gregos, Pedagogo e
Stromata foram concebidos por ele como três partes de um plano único, de
uma progressiva introdução ao cristianismo. O Protréptico, ou exortação aos
gregos, aproxima-se muito, pelo conteúdo e a forma, da literatura apologética do
século H. O Pedagogo, em três livros, procura educar na vida cristã o leitor que já
se afastou do paganismo. Os Stromata ou Tapetes, isto é, "tecidos de comentários
científicos sobre a filosofia" deviam ter como finalidade expor cientificamente a
verdade da revelação cristã. Perdeu-se a sua obra intitulada Hipotiposis
(esquemas ou esboços) e chegou até nós uma liomilia com o título Qual o rico que
se salvará?

O primeiro fim de Clemente é o de elaborar o próprio conceito de uma gnose


cr,,'stã. Não há dúvida de que o conhecimento é o limite mais alto que o homem
pode alcançar. Ele é a realização (teleiosis) do homem; é a só lida e segura
demonstração daquilo que foi aceite pela fé e, frente a

ele, a fé é apenas o conhecimento abreviado e sumário das verdades


indispensáveis (Stromata, VII,
10). Mas, por outro lado, a fé é condição do conhecimento. Entre a fé e o
conhecimento existe a

mesma relação que os Estoicos estabeleciam entre os prolepsi, isto é, o


conhecimento preliminar dos primeiros princípios, e a ciência; como a ciência
pressupõe a "prolepsi" assim a gnose pressupõe a

159
fé. A fé é tão necessária ao conhecimento como os quatro elementos são
necessários à vida do corpo (1b., 11, 6). Fé e conhecimento não podem subsistir
um sem o outro (1b., 11, 4). Mas para chegar da fé ao conhecimento é necessária
a filosofia. A filosofia teve para os gregos o mesmo valor que a lei do Velho
Testamento para os hebreus: conduziu-os a Cristo. Clemente admite, corno
Justino, que, em todos os homens, mas especialmente naqueles que se
dedicaram à especulação racional, está presente um "eflúvio divino", uma
"centelha do Logos divino" que lhes faz descobrir uma parte da verdade, ainda
que não os torne capazes de alcançar toda a verdade que só é revelada por Cristo
(Prop.,
6, 10; 7, 6). Por certo, os filósofos misturaram o verdadeiro e o falso; trata-se
agora de escolher entre as suas doutrinas aquilo que é verdadeiro, abandonando
o falso, e a fé fornece o critério desta escolha (Stromata, 11, 4). A filosofia deve
ser neste sentido a serva da fé como Agar de Sara (1b.,
1. 5). Nesta subordinação da filosofia à fé reside o carácter da gnose cristã. A
gnose dos Gnósticos é a falsa gnose porque estabelece entre a filosofia e a fé a
relação inversa: se ao gnóstico fosse dado escolher entre a gnose e a salvação
eterna, ele escolheria a gnose porque a julga superior a todas as coisas (1b., IV,
22).

Este conceito da gnose influi poderosamente sobre as doutrinas teológicas de


Clemente. O cristianismo é a educação progressiva do género humano e Cristo é
essencialmente o Mestre, o Pedagogo. Tal interpretação torna-se predominante
na Igreja à medida que diminuem as esperanças no imediato regresso de Cristo e,
portanto, na iminente destruição e regeneração do mundo. Ao conceito de uma
regeneração instantânea substitui-se o da regeneração gradual que deve verificar-
se através da história com a assimilação e a compreensão pro-

160

gressiva dos ensinamentos de Cristo. Esta interpretação, já clara em Clemente,


dominará toda a obra de Orígenes.

Frente a Deus, que é inatingível porque supera toda a palavra e todo o


pensamento e de quem podemos saber aquilo que não é mais do que aquilo que
é, o Logos é a sabedoria, a ciência, a verdade, e, como tal, o guia de toda a
humanidade (Ped., 1, 7). O Logos é o alfa e o omega porque tudo se move por ele
e tudo regressa a ele (Strom., IV, 25). A própria acção do Espírito Santo está
subordinada ao Logos porque o Espírito é a luz da verdade, luz da qual
participam, sem multiplicá-la, todos aqueles que têm fé (1b., IV, 16). Como
supremo mestre, o Logos é também o guia e a norma da conduta humana. A
máxima estoica de viver segundo a razão assume em Clemente o significado de
viver segundo o ensinamento do Filho de Deus (lb., VII, 16). Mas obedecer ao
Logos significa amá-lo; a obediência e o amor estão condicionados pelo
conhecimento. À fé é dado o

conhecimento, ao conhecimento o amor, ao amor o prémio celeste (1b., VII, ]0).


§ 144. ORÍGENES: VIDA E ESCRITOS

Orígenes nasceu de pais cristãos em 185 ou 186, provavelmente em Alexandria.


O pai, Leónidas, morreu mártir na perseguição de Sétimo Severo, em 202 ou 203,
e o filho, que queria partilhar a sorte do pai, foi salvo pela mãe (Eusébio, Hist.
ecc1., VI, 2-5). Com 18 anos, em 203, foi colocado por Demétrio, bispo de
Alexandria, à frente da escola catequística como sucessor de Clemente que se
tinha afastado. Desta data até 215 ou 216 desenvolveu uma actividade
ininterrupta; e, através do estudo dos filósofos gregos e dos textos sagra-

161

dos, conseguiu formular as bases do seu sistema. Neste período, o seu zelo
religioso levou-o a castrar-se. Tomara por certo à letra a palavra evangélica
(Mateus, 19, 12) que louva aqueles que se fazem eunucos por amor do reino dos
céus. Mas, provavelmente, como observa ainda Eusébio (IV,
23, 1), queria tirar todo o pretexto à malignidade pública, dado que a sua escola
era também frequentada por mulheres. Em 215 ou 216 os massacres praticados
por Caracala em Alexandria obrigaram Orígenes a fugir para a Palestina onde os
bispos Alexandre de Jerusalém e Teoctisto de Cesareia o acolheram com honra e
o fizeram pregar nas suas i,-rejas. Demétrio não aprovou esta pregação de um
laico e impôs a Orígenes o regresso a Alexandria. Aqui retomou a sua actividade
de mestre e de escritor que era intensíssima: um discípulo, Ambrósio, pusera à
sua disposição sete estenógrafos e vários copistas (Eus., IV, 23, 2). Ordenado
padre durante uma viagem, caiu em desgraça do bispo Demétrio e foi expulso de
Alexandria. Demorou-se então em Cesareia onde fundou uma escola teológica
que, em breve, se tornou florescentíssima e onde permaneceu até à morte.
Morreu mártir durante a perseguição de Décio. Orígenes suportou a tortura na
prisão e pouco depois morreu em Tiro, com 69 anos, e portanto em 254 ou 255.
Um seu discípulo, Gregório o Taumaturgo, fornece interessantes pormenores
acerca do seu ensino em Cesareia (Panegiricum in Orig.,
7-15). O princípio e base do ensino de Orígenes era o estudo da dialéctica.
Seguia-se o estudo das ciências naturais, das matemáticas, da geometria, da
astronomia; a geometria era considerada como o modelo de todas as outras
ciências. Seguidamente, estudava-se a ética que tinha por objecto as quatro
virtudes cardiais de Platão e a Caridade cristã. A filosofia grega tinha um posto
eminente neste

162

curso de estudos e o seu ponto culminante era representado pela teologia.

A produção literária de Orígenes foi vastíssima: atribui-se-lhe um número de obras


que vai de
6000 (segundo Epifânio, Haer., 64, 63) a 800 (segundo S. Jerónimo, Epist., 33).
Mas o édito de Justiniano contra Orígenes (543) e a sentença do V Concílio
Ecuménico (553) que o incluía entre os heréticos provocaram a perda de boa
parte da produção de Orígenes. Chegaram-nos: uma obra apologética em oito
livros Contra CeIsum, dirigida contra o neoplatónico> Celso que, em 178,
escrevera um Discurso verdadeiro de refutação do cristianismo; um tratado
dogmático De principiis que nos chegou apenas numa tradução latina refundida
por Rufino, o qual se preocupou em atenuar ou eliminar as afirmações que
contrastavam com as decisões do Concílio de Niceia; partes ou fragmentos dos
seus vastíssimos comentários bíblicos; dois escritos Sobre a oração e Exortação
ao martírio,- duas cartas e fragmentos de outras obras. As obras exegéticas que,
indubitavelmente, constituíam a sua mais vasta produção, eram de três espécies:
scolli, isto é, notas sobre passos difíceis da Bíblia; homilias, isto é, discursos
sagrados sobre capítulos da Bíblia; comentários ou tomos que eram análises
minuciosas de livros inteiros da Bíblia. De todos estes escrites, as partes mais
notáveis que nos restam sã o o Comentário ao Evangelho de S. Mateus, do qual
ternos os livros X-XVII, o Comentário ao Evangelho de S. João, do qual temos 9
livros não consecutivos, e o da Epístola aos romanos, de que temos um arranjo de
Rufino em 10 livros.

§ 145. ORIGENES: FÉ E GNOSE

A doutrina de Orígenes, é o primeiro grande sistema de filosofia cristã. No prólogo


de De piin-

163

cipiis, ele próprio traça a finalidade que se propôs. "Os apóstolos, diz,
transmitiram-nos com a maior claridade tudo aquilo que julgaram necessário a
todos os fiéis, mesmo aos ma-is lentos no cultivo da ciência divina. Mas deixaram
àqueles que são dotados dos dons superiores do espírito e especialmente da
palavra, da sabedoria e da ciência o cuidado de procurar as razões das suas
afirmações. Sobre muitos outros pontos, limitaram-se à afirmação e não deram
nenhuma explicação, para que aqueles seus sucessores que têm a paixão da
sabedoria possam exercitar o seu génio" (De prine. pref. 3). Orígenes distingue
aqui as doutrinas essenciais e as doutrinas acessórias do cristianismo. O cristão
que recebeu a graça da palavra e da ciência tem a obrigação de interpretar a
primeira e de explicar a segunda. A primeira função é indispensável a todos; a
segunda é uma investigação supletória, movida por um amor particular da
sabedoria e que consiste no simples exercício da razão. Orígenes empreendeu
uma e outra investigação. O seu trabalho exegético dos textos bíblicos tende a
fazer luz sobre o significado oculto e, portanto, procura a justificação profunda das
verdades reveladas. Ele distingue um tríplice significado das Escrituras o
somático, o psíquico e o espiritual, que estão entre si como as três partes da alma:
o corpo, a alma e o espírito (De princi., IV, 11). Mas, na prática, contrapõe ao
significado corpóreo ou literal o significado espiritual ou alegórico e sacrifica
resolutamente o primeiro ao segundo sempre que o considera necessário (1b., IV,
12).
A passagem do significado literal ao significado alegórico das Sagradas Escrituras
é a passagem da fé ao conhecimento. Orígenes acentua a diferença entre uma e
outra e afirma a superioridade do conhecimento que compreende em si a fé (In
Joan., XIX, 3). Aprofundando-se em si própria, a fé

164

torna-se conhecimento: este processo verificou-se nos próprios Apóstolos que,


primeiramente, atingiram pela fé os elementos do conhecimento, depois
progrediram no conhecimento e tornaram-se capazes de conhecer o Pai (In Mat.,
XII, 18). A própria fé, por uma exigência intrínseca, procura, pois, as suas razões e
torna-se conhecimento. Veremos de seguida que a redenção do homem, o seu
,retorno gradual à vida espiritual, de que gozava no mundo inteligível no acto de
criação, é entendido por Orígenes como a sua educação para o conhecimento.
Ora frente ao mais alto grau do conhecimento, o ensinamento das Escrituras é
insuficiente. As Escrituras são apenas elementos mífflmos do conhecimento
completo e constituem a sua introdução (In Joan., XIII, 5-6). Acima do Evangelho
histórico e como complemento das verdades nele reveladas, existe um evangelho
eterno que vale em todas as épocas do mundo e só a poucos é dado conhecer
(De princ., IV, 1 ss; In Joan., 1, 7).

§ 146. ORIGENES: DEUS E O MUNDO

A primeira preocupação de Orígenes é a de afirmar contra os heréticos a


espiritualidade de Deus. Deus não é um corpo e não existe num corpo: a sua
natureza é espiritual e simplicíssima. O seu ser homogéneo, indivisível e absoluto
não pode ser considerado nem como o todo nem como uma parte do todo, porque
o todo é feito de partes (Contra Cels., 1, 23). Para indicar a unidade de Deus,
Orígenes serve-se do termo pitagórico mónada, ao lado do qual emprega o termo
neoplatónico de énada, que expressa ainda mais nitidamente a singularidade
absoluta de Deus (De princ., 1, 1, 6).

Deus é superior à própria substância, pois que não participa dela: a substância
participa de Deus,

165

mas Deus não participa de nada. Do Logos pode dizer-se que é o ser dos seres, a
substância das substâncias, a ideia das ideias; Deus está para lá de todas estas
coisas (1b., VI, 64). Orígenes rejeita decididamente os antropomorfismos do Velho
Testamento, interpretando-os alegóricamente. Dizer que Deus tem forma humana
e é agitado por paixões como as nossas é a maior das impiedades (1b., IV,
71). A omnipotência de Deus encontra um limite na sua perfeição. Deus pode
fazer tudo aquilo que não é contrário à sua natureza, mas não pode cometer a
injustiça, porque o poder ser injusto é contrário à sua divindade e à sua potência
divina (1b., 111, 70). Deus é vida, mas num significado diferente da vida no nosso
mundo, ele é a vida absoluta, isto é, na sua absoluta imutabilidade (In Joha., 1,
31). Deus é o bem no sentido platónico já que só a ele pertence a bondade
absoluta: o Logos é a imagem da bondade de Deus, mas não o bem em si (In
Math., XV, 10). A providência divina dirige-se, em primeiro lugar, à educação dos
homens. Retomando e ampliando o conceito de Clemente, Orígenes compara a
acção de Deus à de um pedagogo ou de um médico que pune ou inflige males e
dores para corrigir ou para curar (Contra Cels., VI, 56). Assim se explica a própria
severidade divina, da qual os livros do Velho Testamento dão tantos exemplos.
"Se Deus fosse apenas bom e não fosse severo, desprezaríamos a sua bondade;
se fosse apenas severo sem ser bom, os nossos pecados conduzir-nos-iam ao
desespero" (In Jerem., IV, 4).

Frente à transcendência divina, afirmada em termos tão rigorosos, o Logos


encontra-se numa posição subordinada. Ele é certamente coeterno com o Pai, o
qual não seria tal se não gerasse o Filho, mas não é eterno no mesmo sentido. A
eternidade do Filho depende da vontade do Pai: Deus é a vida e o Filho recebe a
vida do Pai. O Pai

166

é o Deus, o Filho é Deus (In Joan., 11, 1, 2).


O Espírito Santo é criado não directamente por Deus, mas através do Logos (lb.,
11, 10). Aquele é compreendido por Orígenes como uma força puramente
religiosa que não tem no mundo nenhuma tarefa própria.

Retomando a doutrina platónica do Fedro, não sem sofrer a influência dos


gnósticos e especialmente de Valentino, Orígenes explica a formação do mundo
sensível com a queda das substâncias intelectuais que habitavam o mundo
inteligível. As inteligências incorpóreas que constituem o mundo inteligível são
criadas e como tal sujeitas a mudança; são, além disso, providas de livre arbítrio.
A sua queda explica-se pela preguiça e repugnância para e esforço que a prática
do bem exige. Deus estabelecera que o bem dependesse exclusivamente da sua
vontade e tinha-o por isso criado livre. Descuidando e opondo-se ao bem, elas
provocaram a sua

queda dado que a ausência do bem é o mal o na medida em que alguém se afasta
do bem cai no mal. Assim as inteligências foram conduzidas ao mal, segundo
descuraram mais ou menos o bem, conformemente ao movimento secreto de
cada uma delas (De princ., 11, 9, 2; fr. 23 a). Orígenes insiste na liberdade do acto
que provocou a sua queda. A doutrina gnóstica negara essa liberdade: Orígenes
combate vivamente o gnosticismo (1b., 1, 8, 2-3). o próprio demónio, - diz ele -
não é mau por natureza, mas tornou-se pela sua vontade (In Joan. XX, 28). A
queda é devida a um acto livre de webelião contra Deus, no qual participaram
todos

os seres supra-sensíveis com excepção do Filho de Deus. A primeira


consequência da rebelião é que as inteligências se tornam almas, destinadas a
revestir-se de um corpo, mais ou menos luminoso ou mais ou menos tenebroso,
segundo a gravidade da culpa originária, o segundo grau da queda é

167

precisamente o revestimento do corpo. Surge então o mundo visível na variedade


e na multiplicidade dos seres que o constituem. E assim algumas inteligências
tornam-se as almas dos corpos celestes etéreos, luminosos e subtis. Outras
tornam-se anjos, aos quais Orígenes dá os nomes bíblicos de tronos, potestades,
dominações etc., destinados a ser os ministros de Deus junto dos homens. Outros
ainda "descem até à carne e ao sangue" e tornam-se homens. Finalmente os
últimos tomam-se diabos.

O mundo visível não é mais, portanto, do que a queda e a degeneração do mundo


inteligível e das puras essências racionais que o habitam. Orígenes admite uma
pluralidade sucessiva de mundos; mas, corrigindo o Estoicismo, nega que estes
mundos sejam a repetição um do outro. A liberdade de que os homens estão
dotados impede tal repetição (Contra Cels., IV, 67-68). Todavia, depois de se
sucederem um número indeterminado de mundos, chega ao fim. O mundo visível
voltará ao mundo invisível. Os seres racionais terão expiado através da série das
vidas sucessivas nos vários mundos o seu pecado inicial e alcançarão a perfeição
e a salvação finais. Poderão então ser restituídos à sua condição primitiva e
conhecer Deus (In Joan., 1,
16, 20).

Neste processo de queda do mundo inteligível no mundo sensível e de retorno do


mundo sensível ao mundo inteligível, o Logos tem uma parte essencial. Em
primeiro lugar, Orígenes atribui ao Logos a mesma função que lhe atribuíam os
Estoicos: o Logos é a ordem racional do mundo, a força que determina a sua
unidade e o dirige. Precisamente como tal, ele é distinto de Deus. Apenas o Pai é
Deus em si (Autothéos); o Logos é a imagem e o reflexo de Deus. Ele é diferente
do Pai "pela essência e pelo substracto" e deixaria de ser Deus se não
contemplasse continuamente o Pai Ub., 1,

168

11, 2). Por esta sua natureza subordinada, o Logos recebeu do Pai a tarefa de
penetrar a obra da criação e de infundir-lhe ordem e beleza (Ib., VI, 38,
39). Mas, em segundo lugar, o Logos vive nos homens e todos participam dele
(1b., 1, 3): ainda que permanecendo idêntico a si mesmo, o Logos adapta-se aos
homens e à sua capacidade de atingi-lo (Co.,dra Cels., IV, 15); e reveste formas
diversas, segundo aqueles que conseguem conhecê-lo, isto é, segundo a sua
disposição e a sua capacidade de progresso Ub., IV, 16). O Logos é, portanto, a
força imanente que diviniza o mundo e o homem. Na mesma medida em que se
aproxima do mundo e do homem para penetrá-los e reconduzi-los à perfeição
originária, assim se afasta do Pai.

Precisamente a função do Logos no homem exige e justifica a encarnação. Por ela


o Logos apropria-se de um corpo mortal e de uma alma humana. Nem uma nem a
outra são algo divino: divino é somente o Logos que permanece imutável na sua
essência e não sofre nada do que acontece no corpo e na alma de Cristo (Contra
Cels., IV, 15). O elemento divino e o elemento humano não permanecem, contudo,
justapostos em Cristo depois da encarnação (a que Orígenes chama economia
para indicar o seu carácter providencial); a alma e o corpo de Jesus constituem
com o Logos uma unidade absoluta (lb., 11, 9).

§ 147. ORíGENES: O DESTINO DO HOMEM

O destino do homem faz parte integrante do movimento conjunto do mundo a que


o homem pertence. O homem era primeiramente uma substância racional, uma
inteligência; com a queda tornou-se uma alma. A alma é algo de intermédio entre
a inteligência e os corpos: a inteligência, corno

169

pura vida espiritual, é refractária ao mal; a alma, pelo contrário, é susceptível do


bem e do mal (Itz Joan., XXX11, 18). Como a queda do homem foi um acto de
liberdade, assim será um acto de liberdade a redenção e o retorno a Deus. Com
efeito, a liberdade é o dote fundamental da natureza humana que é capaz de agir
em virtude de razão, portanto de escolher. Como Clemente, Orígenes interpreta a
acção da mensagem cristã como uma acção educadora que conduz gradualmente
o homem à vida espiritual. Esta é a função do Logos encarnando-se em Cristo.
"Jesus afasta a nossa inteligência de tudo aquilo que é sensível e leva-a ao culto
de Deus que reina sobre todas as coisas" (Contra Cels., 111, 34). Nisto consiste a
obra da redenção. Comentando o prólogo do IV Evangelho, Orígenes interpreta a
acção iluminadora do Logos, não como uma revelação súbita, mas como a
penetração progressiva da luz nos homens, como a chamada incessante do
homem para que queira livremente voltar a Deus (In Joan., 1, 25-26). O caminho
para este retorno pode ser longuíssimo. Se a existência num mundo não basta, o
homem renascerá no mundo seguinte e depois noutros ainda até que tenha
expiado a sua culpa e tenha retornado à perfeição primitiva. Precisamente a
necessidade da educação progressiva do homem justifica a pluralidade sucessiva
dos mundos que Orígenes tomou do Estoicismo. Os mundos são outras tantas
escolas nas quais se reeducam os seres que caíram (De princ., 111, 6, 3).

A educação do homem como retorno gradual à condição de substância inteligente


opera-se através de graus sucessivos de conhecimento. Do mundo sensível o
homem eleva-se à natureza inteligível que é a do Logos e do Logos a Deus. O
Logos é, com efeito, a sabedoria e a verdade e, só através dele, se pode discernir
o ser e para lá do ser o poder

170

e a natureza do Deus (In Jomi., VIII, 19). Mas quando for possível este
conhecimento directo de Deus, quando Deus não for visto já através do Filho, na
imagem de uma imagem, mas directamente corno o próprio Filho o vê, o ciclo do
retorno do mundo a Deus, da apocatastasi, estará completo e Deus será tudo em
todos (lb., XX, 7).

Tais são os traços fundamentais do sistema de Orígenes no qual pela primeira vez
o cristianismo encontrou uma formulação doutrinal orgânica e completa. O
Platonismo e o Estoicismo constituíram as duas raízes fundamentais pelas quais
se une à filosofia grega. Mas Orígenes adaptou com grande equilíbrio, da
mensagem cristã, a doutrina platónica da queda e da redenção dos seres
espirituais e a doutrina cosmológica dos Estoicos. Por certo, alguns elementos que
a consciência religiosa contemporânea considerava essenciais nesta mensagem
foram perdidos na síntese de Orígenes. o conceito da criação é, no fundamental,
estranho a Orígenes para quem a criação das substâncias racionais é eterna. Na
sua natureza o Logos está subordinado a Deus Pai e o Espírito Santo ao Logos,
na sua natureza e na sua função. O sacrifício de Cristo não encontra urna própria
e verdadeira justificação e a ressurreição da carne, sobre a qual tanto insistiram
outros padres (por exemplo Tertuliano) é explicitamente excluída (De princ., 11,
10, 3; Contra Cels., V, 18). Mas, em compensação, Orígenes elevou, pela primeira
vez. à clareza da reflexão filosófica o significado mais profundo e universal do
cristianismo. Foi o primeiro que viu no facto histórico da redenção o destino da
humanidade inteira que, decaída da vida espiritual, deve retornar a ela. Foi o
primeiro que reuniu numa única visão de conjunto a sorte da humanidade e a sorte
do mundo, fazendo da antropologia cristã o elemento de uma concepção
cosmológica. Foi o pri-

171

meiro que afirmou a exigência de liberdade humana que se havia perdido não só
nas doutrinas duaUsticas dos gnósticos, mas também todas as interpretações que
faziam do homem o sujeito da obra redentora de Cristo.

Finalmente temos de recordar que Orígenes foi o primeiro que exprimiu


claramente o princípio em que deviam inspirar-se as doutrinas políticas do
cristianismo nos séculos seguintes. Utilizando também aqui um conceito estoico,
afirma que "existem duas leis fundamentais, a natural, cujo autor é Deus, e a
escrita que é formulada nos diversos estados." Nesta base, afirma a
independência dos cristãos perante a lei civil: "Quando a lei escrita não está em
contradição com a de Deus convém que os cidadãos a observem e a anteponham
às leis estrangeiras; mas quando a lei da natureza, isto é, a lei de Deus ordena
coisas contrárias à lei escrita, a razão aconselha-te a deixar de bom grado as leis
escritas e a vontade dos legisladores e a obedecer unicamente à lei de Deus, a
regular a tua vida segundo os seus ensinamentos mesmo se isto custa fadiga,
morte e desonra" (Contra Cels., V, 37).
O princípio estoico do direito natural era assim utilizado para defender a liberdade
dos cristãos frente à lei civil.

§ 148. SEQUAZES E ADVERSÁRIOS DE ORÍGENES


Discípulo de Orígenes foi Dionísio de Alexandria, ao qual Eusébio dá o
qualificativo de grande. A partir de 231-32 foi chefe da escola catequética de
Alexandria sucedendo a Heraclito; em 247-48 tornou-se bispo da cidade e morreu
em 264 ou
265. Os Discursos sobre a natureza, de que Eusébio nos conservou fragmentos,
eram dirigidos contra

172

o atomismo de Demócrito e dos Epicuristas. Entre as numerosas Cartas, muitas


das quais tratam de questões dogmáticas ou disciplinares, as escritas contra o
sabelianismo acentuavam a diferença entre o Logos e Deus Pai, fazendo dele
uma criação do Pai. Mas uma obra seguinte, intitulada Refutação e defesa,
abandonava a sua interpretação e dava uma outra completamente ortodoxa.

Discípulo de Orígenes foi também Gregório o Taumaturgo, que nasceu por volta
do ano 213 em Neo-Cesareia, no Ponto, e que foi depois bispo da sua cidade
natal e morreu no tempo de Aureliano (270-275). Duas biografias, uma de
Gregório Niceno, outra siríaca, que é um arranjo da primeira, narram uma série de
histórias miraculosas que explicam o seu cognome. Gregório é autor de um
Discurso de acção de graças, no qual se exalta a obra do mestre Orígenes, de um
escrito "A Teopompo sobre a capacidade e incapacidade de padecer em Deus",
conservado em siríaco e no qual se discute a questão de saber se a
impassibilidade de Deus implica a sua despreocupação pelos homens; e de outros
escritos menores, exegéticos e dogmáticos. Atribui-se-lhe também o breve tratado
Sobre a alma, a Taciano, que examina a natureza da alma, fora de qualquer prova
tomada das Escrituras.

Eusébio, bispo de Cesareia, nascido em 265, morto em 340 é conhecido


principalmente como historiador dos primeiros séculos da Igreja. Discípulo de
Pânfilo, do qual por reconhecimento assumiu o nome (Eusébio de Pânfilo) e a
quem acompanhou quando o mestre foi encerrado no cárcere. Em conjunto,
compuseram uma Apologia de Orígenes, em 5 livros, dos quais resta apenas o
primeiro num arranjo de Rufino. Eusébio é autor de uma crónica que tem o título
de Histórias Várias e de uma História Eclesiástica que vai até 423 e constitui um
riquíssimo arquivo de factos, documentos

173

e estratos de obras de toda a espécie, da primeira época da Igreja. Escreveu,


além disso, um panegírico e um elogio do imperador Constantino, do qual foi
amigo entusiasta. As obras dogmáticas Contra Marcelo e Sobre a Teologia
Eclesiástica mostram uma acentuada tendência para o arianismo de que defende
a tese fundamental, a da não identidade de natureza entre o Pai e o Logos. As
obras apologéticas, Preparação Evangélica, em 15 livros, e Demonstração
Evangélica, em 20 livros (dos quais só nos chegaram os primeiros 10) pretendem
demonstrar a ,superioridade do cristianismo sobre o paganismo o o judaísmo. Um
estrato destas duas obras é o escrito Sobre a Te~da, em 5 livros, de que existem
fragmentos em grego e uma versão siríaca completa. Permanecem de Eusébio
outras obras apologéticas (Introdução Geral Elementar, Contra Gerocles) e partes
ou fragmentos da sua vasta obra exegética das Sagradas Escrituras. O escrito
filosoficamente mais significativo é a Preparação Evangélica, na qual Eusébio,
utilizando a rica biblioteca de Cesareia, acumulou um vastíssimo material de
estratos de escritos gregos, que muitas vezes são preciosos também para nós,
por se terem perdido as obras de que foram tirados. Esta obra é dominada pela
convicção de que filosofia e revelação sã o idênticas e que no cristianismo
encontrou plena expressão a verdade que alvorecera já nos filósofos gregos. É a
mesma convicção que animara Justino, Clemente e Orígenes e que dominará a
obra de S. Agostinho. Aquela identidade parece a Eusébio evidente sobretudo no
que diz respeito ao platonismo. Platão é por ele considerado como um profeta
(XIII, 13) ou como um "Moisés aticizante" (XI, 10). Platão e Moisés estão de
acordo e têm as mesmas ideias; Platão conheceu a trindade divina porque pôs, ao
lado de Deus e do Logos, a alma do mundo (XI,
16). Nas doutrinas éticas e pedagógicas, coincidem

174

Platão e Moisés, Platão e S. Paulo, e a própria república platónica encontrou a sua


realização na teocracia judaica (XIII, 12). Contudo, Platão permanece amarrado ao
politeísmo e admite o dualismo de Deus e da matéria eterna, o que é inconciliável
com o cristianismo; ele chegou, pois, ao vestíbulo da verdade, não à própria
verdade (XIII,
14). Esta é revelada pelo cristianismo porque ele é a verdadeira e definitiva
filosofia. No cristianismo, não só os homens são filósofos mas também as
mulheres, os ricos e os pobres, os escravos e os senhores (1, 4). Que a filosofia
grega tenha podido alcançar tantos elementos da verdade cristã, explica-se com a
sua derivação das fontes hebraicas (X, 1); ou talvez também porque Platão foi
orientado para a verdade pela própria natureza das coisas ou por Deus (XI, 8).

Adversário de Orígenes foi, em contrapartida, Metód@o, bispo de Filipo, que


morreu mártir por volta do ano 311. Contra Orígenes era dirigido o seu escrito
Sobre a@ Coisas Criadas de que nos restam fragmentos. É depois autor de três
diálogos ao modo de Platão: Banquete ou sobre a Virgindade, Sobre o Livre
Arbítrio, que nos foi transmitido grande parte em grego e numa tradução eslava, e
Sobre a Ressurreição, do qual existem fragmentos do texto grego e uma versão
eslava abreviada. Para demonstrar a eternidade do mundo, Orígenes afirmara
que, se não houvesse mundo, Deus não seria o criador e o senhor. Metódio
responde que Deus é então por si incompleto e só atinge a sua perfeição através
do mundo, o que é contrário ao princípio, posto pelo próprio Orígenes, de que
Deus é por si próprio perfeito (De creatis, 2). Contra a doutrina de Orígenes,
segundo a qual os homens e os anjos existiam no mundo inteligível como
substâncias espirituais do mesmo género e que só com a queda se diferenciaram,
Metódio defende a dife-
175

rença entre as almas humanas e os anjos e nega a pré-existência das almas


humanas relativamente ao corpo (De ressurectione, 10, 11). No escrito sobre o
livre arbítrio, nega que o mal dependa de uma matéria eterna (era a doutrina
gnóstica) e afirma que é produto da vontade livre da criatura racional.

Boa parte da actividade especulativa no século IV foi posta ao serviço da disputa


sobre o arianismo. Ario (morto em 336) afirmara que o Logos ou Filho de Deus foi
criado do nada exactamente como todas as outras criaturas e que, portanto, não é
eterno. Se nas Sagradas Escrituras é chamado Filho de Deus, é no sentido em
que o são todos os homens. Portanto, a sua natureza é diferente da do Pai; a sua
substância é diversa.

De Ario conservou-nos alguns fragmentos o seu grande opositor Atanásio.


Nascido por volta do ano 295, Atanásio teve uma parte predominante na
condenação que o primeiro Concílio Ecuménico da Igreja, que teve lugar em
Niceia no ano de 325, pronunciou sobre o arianismo. Mas a setença do Concílio
não foi acatada de repente e a polémica entre os cristãos continuou por muito
tempo. Atanásio, que fora nomeado bispo de Alexandria, sofreu perseguições e
condenações por obra dos arianos e morreu a 2 de Maio de 373, em Alexandria. A
parte mais notável da actividade literária é a dedicada à polémica contra o
irianismo: Discursos contra os Arianos, Carta a Serapião, Livro sobre a Trindade e
sobre o Espírito Santo. Escreveu também obras histórico-polémicas e ascéticas e
duas apologias, Discurso contra os Gregos e Discurso sobre a Encarnação do
Verbo, que são duas partes de um único escrito. Atanásio afirma energicamente a
identidade de natureza do Filho com o Pai; se o Filho fosse uma criatura, não
poderia reunir a Deus as criaturas porque teria por sua vez necessidade desta
união. O Filho tem em comum com o

176

Pai toda a plenitude da divindade e participa do seu próprio poder. O Espírito


Santo procede conjuntamente do Pai e do Filho. Há, portanto, uma única
divindade e um só Deus em três pessoas. As formulações de Atanásio
constituíram a doutrina oficialmente aceite pela Igreja no Concílio de Niceia.

Esta doutrina teve como defensores "os três luminares de Capadócia": Basílio o
Grande, Gregório Nazianceno e Gregório de Nisa. Basílio foi sobretudo homem de
acção; Gregório Nazianceno, orador e poeta; Gregório de Nisa, pensador.

§ 149. BASíLIO O GRANDE

Nascido por volta de 331, Basílio estudou em Cesareia, em Constantinopla e em


Atenas. Aqui estreitou com Gregório Nazianceno uma amizade que se fundava
principalmente na comunidade dos estudos e das doutrinas. Fruto da colaboração
dos dois amigos, foi uma antologia das obras de Orígenes, intitulada Filocalia.
Nomeado bispo de Cesareia participou nas lutas teológicas do tempo e morreu no
dia 1.* de Janeiro de 379. Basílio deixou obras dogmáticas, exegéticas, ascéticas
e também homilias e cartas. As obras dogmáticas (Contra Eunómio, Sobre o
Espírito Santo) são dedicadas à polémica sobre o arianismo. Entre as obras
exegéticas vêm em primeiro lugar as 9 homilias sobre Hexamerón, nas quais
Basílio utiliza, a propósito das diferentes fases da criação do mundo, as doutrinas
científicas da Antiguidade, especialmente de Aristóteles. As homilias de Basílio
foram também famosas na Antiguidade e colocaram o seu autor entre os maiores
oradores da Igreja. Só 24 delas são, de certeza, autênticas.

177

Basílio apela explicitamente. na sua luta contra a heresia, para a tradição


eclesiástica. A fé precede o intelecto: "Nas discussões em torno de Deus deve ser
tomada como guia a fé, a fé que leva mais fortemente ao assentimento do que a
demonstração, a fé que não é causada pela necessidade geométrica mas pela
acção do Espírito Santo" (Hom. in Ps.,
115, 1). O conteúdo da fé é determinado pela tradição: "Nós não aceitamos
nenhuma nova fé que nos seja prescrita por outros, nem pretendemos expor os
resultados da nossa reflexão para não dar como regra de religião aquilo que é só
sabedoria humana. Nós comunicamos a quem nos pergunta só aquilo que os
Santos Padres nos ensinaram" (Ep.,
140, 2). Basílio admite, contudo, que se possam acolher, além dos ensinamentos
da Escritura, também as tradições eclesiásticas que não se oponham a elas (De
Spir. S., 29, 7 1).

Nas suas discussões trinitárias, Basílio mantém firme o fundamento: uma só


substância ou essência (ousía), três pessoas (ypostaseis). Em Deus, afirma, há
uma certa e incompreensível comunidade o juntamente uma diversidade: a
distinção das pessoas não elimina a unidade de natureza e a comunidade de
natureza não exclui a particularidade dos caracteres distintivos" (Ep., 38, 4).
Euriómio de Cizico, no Apologético (composto por volta de 360), contra o qual é
dirigido um escrito de Basílio, sustentara que a essência de Deus consiste em ser
ingénito e que, por isso, tal essência não pode ser participada pelo Filho, que é
gerado pelo Pai. Basílio opõe que a essência divina é ingénita enquanto não
depende de outra coisa senão de si própria e, em tal sentido, quer o Pai quer o
Filho são ingénitos porque participam da mesma essência. Mas, na essência
divina, o Pai é o único que recebe o seu ser de pessoa por si próprio, enquanto o
Filho o recebe do Pai. O Filho é, portanto, gerado como

178

pessoa, não como essência e portanto só como pessoa se distingue do Pai. Por
sua vez, o Espirito Santo recebe o ser do Filho e tem, portanto, o seu lugar depois
dele (Adv. Eun., 111, 1). Contra a afirmação de Eunómio de que conhecemos
directamente a essência de Deus (que seria precisamente a não gerabilidade),
Basílio opõe que podemos conhecer Deus através das suas obras, mas a sua
essência permanece inacessível para nós. "As criaturas, diz (lb., 11, 32), fazem-no
conhecer certamente o poder, a sabedoria e a arte do criador, mas não a sua
natureza. Mais ainda, nem sequer manifestam necessariamente o poder do
criador, pois pode acontecer que o artista não ponha toda a sua capacidade na
obra, mas só a exercite nela de maneira restrita. Que se tivesse aplicado todo o
seu poder na obra, seria possível por ela medir a potência dele, mas nunca
compreender a essência, na sua natureza." Mesmo depois da revelação, o
conhecimento de Deus só nos é dado de modo que o infinito pode ser conhecido
pelo finito e até na vida futura a essência de Deus nos será incompreensível. A
conclusão é uma bela e profunda frase que Basílio coloca como corolário da sua
doutrina: "0 conhecimento da essência divina consiste apenas na percepção da
sua incompreensibilidade" (Ep., 234, 2).
O limite que o homem encontra no conhecimento do transcendente é a mais
directa e evidente revelação do mesmo transcendente.

§ 150. GREGóRIO NAZIANCENO

Gregório Nazianceno nasceu por volta do ano


330 em Arianzo, próximo de Nasâncio, e foi educado em Cesareia, em Alexandria
e Atenas, onde travou amizade com Basílio. Foi nomeado bispo de Sásima e
depois de Constantinopla (em 379), mas

179

renunciou a ambos os ofícios recolhendo-se a uma vida solitária, dedicada apenas


ao labor literário. Morreu em Arianzo, onde nascera, em 389 ou 390. Gregório
escreveu sermões, cartas e poesias. Dos
45 Sermões, os que vão do número 27 ao 31 são os mais importantes e famosos.
Foram designados pelo autor como Sermões Teológicos e grangearam-lhe o
apelido de teólogo. Foram proferidos em Constantinopla e tinham como objectivo
justificar a doutrina da Trindade contra o ariano Eunómio (de quem se falou já a
propósito de Basílio) e o semi-ariano Macedónio (morto depois de 360), o qual ao
mesmo tempo que afirmava a estreita semelhança de essência do Filho e do Pai,
fazia do Espírito Santo uma natureza subordinada ao Pai e ao Filho e em tudo
semelhante ao@ anjos. As cartas de Gregório, escritas em forma literária
apuradísima, por conseguinte destinadas ao público, referem-se a certos sucessos
da vida do autor ou .dos seus parentes e por isso só algumas, entre elas a última,
tratam de questões teológicas. Em contrapartida, as poesias são de natureza
polémica, dirigidas especialmente contra os apolinaristas (Apolinário, bispo de
Laodiceia, na Síria, falecido por volta de 390, negava a humanidade de Cristo
considerando-o somente Deus; o Logos divino teria tomado em Cristo o lugar da
alma intelectiva). Têm escasso valor poético e não são mais que prosa versificada.
A especulação de Gregório não tem originalidade nem força, se bem que expressa
numa forma oratória eloquente. Devido a esta forma, ela contribuiu, contudo, para
a difusão e a vitória das doutrinas que os seus grandes contemporâneos haviam
formulado.
Segundo Gregório, podemos chegar a conhecer, mediante apenas a razão, a
existência de Deus, considerando a ordem e a perfeição do mundo visível, mas
não podemos conhecer a substância

180

ou essência de Deus. Sabemos que ela é superior * todas as outras essências, é


"um oceano infinito * indeterminado de essências" (Or., 38), mas foge à nossa
possibilidade determinar-lhe a natureza. Ao mistério da essência divina
acrescenta-se o mistério da trindade. "Esta profissão de fé, diz Gregório (1b., 40,
n.' 41), eu te dou como companheiro o guia de toda a vida: uma única divindade e
poder que se encontra unida em Três e Três diversas compreende; que não é
diferente por essência nem por natureza; que não se aumenta por acrescento nem
diminui por subtracções; que é totalmente igual, mais ainda totalmente a mesma,
como a beleza e grandeza única, do céu, que é a infinita conjunção de três
infinitos; e cada um destes, considerado separadamente, é Deus, o Pai como o
Filho, o Filho como o Espírito Santo, e cada um conserva

a sua propriedade, ao mesmo tempo que, considerados os três conjuntamente,


são ainda Deus, o uno pela unidade da essência, o outro pela unidade do
comando".

Contra o apolinarismo, Gregório defende a integridade da natureza humana em


Cristo e assim tem ocas-ião de expor a sua antropologia. Ao homem pertencem o
corpo, a alma e o intelecto. Mas o intelecto não é distinto da alma ; é uma força da
própria alma e, portanto, parte integrante da natureza humana (Ib., 14). Cristo que
tomou a natureza humana teve de tomar também o intelecto humano; de outro
modo, o homem seria um animal privado de razão (1b., 5 1).

§ 151. GREGóRIO DE NISA: A TEOLOGIA

Gregório de Nisa era irmão de Basílio o Grande e bastante mais jovem do que ele.
Encaminhado para a carreira de professor de retórica, foi retirado

181

dela por Basílio que o nomeou bispo de Nisa. Como tal Gregório participou na luta
contra os arianos. Em 394 estava em Constantinopla para participar num sínodo
que devia resolver uma controvérsia entre bispos árabes; depois o seu nome
deixa de aparecer; muito provavelmente, a sua morte ocorreu pouco depois
daquela data. A sua obra mais notável é o Discurso Catequético Grande,
demonstração e defesa dos dogmas principais da Igreja contra os pagãos, judeus
e heréticos. A obra mais extensa é o escrito Contra Eunómio, réplica ao escrito
Em Defesa da Apologia, com o qual Eunómio respondem a Basílio. Gregório
escreveu mais: duas obras Contra Apolinário: vários tratados ou diálogos (Contra
os Gregos, Sobre a Fé, Sobre a Trindade, Sobre a Alma e a Ressurreição, Contra
o Fado, Sobre os Meninos que Morrem Prematuramente). Compôs, além disso,
numerosos escritos exegéticos, dos quais os mais notáveis são o Apologético
sobre Hexameron e o De opificio hominis e outros discursos ascéticos, discursos e
cartas.

Como Basílio, Gregório, afirma a distinção entre a fé e o conhecimento e a


subordinação deste àquela. A fé apoia-se na revelação divina e não tem
necessidade da lógica e das suas demonstrações. Ela é o critério de toda a
verdade e deve ser tomada como a medida de todo o saber. Por sua parte, a
ciência deve fornecer à fé os conhecimentos naturais preliminares que, na Idade
Média, se chamarão preambula fidei e, em primeiro lugar, a demonstração da
existência de Deus (Or. catech., pref.). Em particular, a dialéctica fornece o
método para sistematizar o conteúdo da fé e constitui o instrumento mediante o
qual os princípios da fé podem ser fundados e se pode progredir para a gnose
ainda que isto se faça com grande cautela e em forma hipotética. (De hom. opif.,
16). O próprio Gregório

182

pôs em prática este procedimento na medida mais lata, como só Orígenes fizera
antes, e apela continuamente, para lá do testemunho da tradição, para princípios e
demonstrações racionais. O seu Discurso Catequético bem como o diálogo Sobre
a Alma e a Ressurreição são inteiramente guiados por investigação puramente
racional. No diálogo citado, vê na dúvida uma ajuda metódica da pesquisa.

Na sistematização da teologia cristã, Gregório preocupa-se, em primeiro lugar, por


estabelecer a unicidade de Deus. Divindades diferentes só poderiam distinguir-se
entre si por qualquer propriedade ou perfeição que pertencesse a uma e não a
outra: mas assim nenhuma delas seria perfeita. O próprio conceito de Deus como
substância perfeitíssima implica a unicidade de Deus e exclui o politeísmo. Da
perfeição divina deriva também a trindade das pessoas. No homem, a razão é
limitada e mutável e não é, portanto, subsistente por si. Mas em Deus ela é
imutável e eterna e não tem, pois, o carácter de uma força impessoal, mas
subsiste corno pessoa (Or. catech., 1). O mesmo vale para o espírito. Em nós o
espírito serve de mediador entre a palavra interna que é o pensamento e a palavra
externa na qual se exprime. Em Deus a palavra externa não é corno para o
homem um som, uma coisa como as outras, mas faz parte da sua essência e
procede, pois, do Pai e do Filho como uma outra pessoa que tem a sua própria
subsistência e a sua própria eternidade (1b., 1). O cristianismo, admitindo a
unidade e trindade de Deus, conciliou o politeísmo pagão com o monoteísmo
judaico: admitiu com o judaísmo a unidade da natureza divina,

com o paganismo a plural-idade das pessoas (1b., 3).

Na interpretação da trindade, Gregório serve-se do princípio platónico da unidade


da essência (ousía), princípio de que se servirá na Idade Média, com o mesmo
fim, Anselmo de Aosta. Se o nome de
183

Deus, diz ele no tratado Adversus Graecos, significa a pessoa, necessariamente


falando de três pessoas, falamos de três divindades. Mas se o nome de Deus
indica a essência, podemos reconhecer que há um único Deus porque uma só é a
essência das três pessoas. Ora na realidade o nome de Deus indica a essência
divina. É um costume abusivo da linguagem o de indicar com o plural do nome
que significa a natureza comum os indivíduos múltiplices que participam dela. Por
exemplo, dizemos Podro, Paulo e Barnabé são três homens e não um só homem,
como se deveria dizer desde o momento em que a palavra homem significa a
essência universal e não a existência parcial ou própria dos indivíduos singulares.
Gregório toma neste caso (como foi muitas vezes observado) o significado
abstracto da palavra, que não admite o plural, em vez do significado concreto que,
ao contrário, o admite. Contudo, o sentido da sua doutrina é claro. A essência,
toda a essência, a divina como a humana, e uma única realidade una e simples,
que não é multiplicada pelo número de pessoas (ou ipostasi) que participam dela.
A essência humana pode ser

participada por um número indeterminado de pessoas, a essência divina só por


três; mas como todos os homens são tais em virtude de uma única essência
humana, assim as três pessoas divinas subsistem na única essência divina e
constituem um único Deus. O traço que distingue a essência divina de todas as
outras é que ela, pela sua perfeição, implica também a urky'dade de acção das
pessoas que participam dela. Enquanto os homens têm actividades diferentes e às
vezes contrárias, ainda que participando da mesma essência, as pessoas divinas
têm uma única actividade. "Toda a actividade procedente de Deus, que se refere à
criatura e é denominada de modo diverso segundo a diversidade do objecto, parte
do Pai, procede através do Filho

184

e cumpre-se no Espírito Santo. Não se trata, por isso, de actividades que se


diversificam segundo as pessoas que são activas, porque a actividade de cada
pessoa singular não está separada da outra e tudo quanto acontece, quer diga
respeito à providência sobre os homens quer concerne o governo e a ordenação
do mundo, acontece por intermédio das três pessoas sem que, todavia, seja trino".
De tal modo, a essência divina encontra, na unidade da acção divina, a sua
característica fundamental e própria frente às essências criadas. Tal é a
interpretação de Gregório no que se refere à unidade divina. No que se refere à
trindade, Gregório expõe uma interpretação que funda a diversidade das pessoas
na diversidade das relações de origem, formulando um princípio que devia tornar-
se a base da interpretação trinitária nos séculos seguintes. Com efeito, a distinção
das pessoas divinas é explicada admitindo que delas uma é a causa, a outra
causada e distinguindo dois tipos de causalidade que correspondem à segunda e
à terceira pessoa da trindade. Deus Pai é a causa; o Filho é imediatamente
causado pelo Pai de maneira que lhe corresponde o carácter de unigénito; o
Espírito Santo é causado pelo Pai através da mediação do Filho e não é ingénito
como o PaI nem unigénito como o Filho.

§ 152. GREGÓRIO DE NISA: O MUNDO E O HOMEM

O mundo é uma criação de Deus. A questão de saber por que modo uma essência
absolutamente simples, incorpórea e imutável, como Deus, tenha podido produzir
uma realidade composta, mutável e, sobretudo, corpórea, só pode encontrar
resposta se se considera a natureza do corpo. Todo o

185

corpo resulta de partes que, tomadas de per si, são momentos ou potências
puramente inteligíveis, como a quantidade, a qualidade, a figura, a cor, a grandeza
e assim sucessivamente. Se se prescinde delas, nada resta do corpo. Portanto, o
corpo como tal é apenas a ligação de qualidades em si próprias incorpóreas e ele
mesmo é incorpóreo no seu fundamento. Pode-se, pois, conceber como possa ter
sido criado por uma essência incorpórea (De hom. opif., 23-24). Partindo da
exigência teológica de eliminar o abismo entre a natureza de Deus e a da criação,
Gregório foi assim levado a formular uma doutrina da pura inteligibilidade do
mundo corpóreo, voltando ao contrário o materialismo de Tertuliano que exprimia,
contudo, uma tendência muito difundida entre as primeiras seitas cristãs. Enganar-
se-ia, porém, quem interpretasse esta inteligibilidade como subjectividade das
qualidades corpóreas em sentido idealístico. A inteligibilidade confirma e reforça a
pura objectividade das qualidades porque, aproximando-as da natureza de Deus,
as eleva ao princípio supremo da objectividade, que é o próprio Deus.

No mundo, o homem foi criado por um acto de "amor superabundante" (Or.


catech., 5). O mundo não podia permanecer privado de finalidade e, por isso,
Deus quis que ele servisse para um ser que pudesse participar do bem que nele
havia espalhado. Por um lado, o homem é um microcosmo que compreende em si
o ser das coisas inanimadas, a vida das plantas, a sensibilidade dos animais e a
racionalidade dos anjos. Pelo outro, é a imagem de Deus; como, em Deus, do Pai
ingénito procede o Logos e do Pai e do Logos o Espírito, assim, no homem, da
alma ingénita procede a palavra inteligível e de ambas a inteligência. Atributo
fundamental do homem é a liberdade. A razão, que o faz distinguir entre o bem e
o mal, seria inútil se
186

não pudesse escolher entre o bem e o mal. Sem liberdade não haveria virtude
nem mérito nem pecado (1b., 5). Só na liberdade está a origem do mal. O corpo
não é um mal nem causa do mal porque é uma criação de Deus. O mal está na
nossa interioridade e consiste no desvio do bem devido ao livre arbítrio (1b., 5). O
mal não tem nenhuma essência na realidade em que é apenas privação do bem,
que é a única realidade positiva. Como a obscuridade é a privação da luz ou a
cegueira a privação da vista, assim o mal não é outra coisa senão a falta do bem.
"A maldade tem o seu ser no não-ser: e não tem outra origem senão a privação do
sem (De an. et resur., p. 223).

§ 153. GREGóRIO DE NISA: A ApoCATÁSTASIS

O relato bíblico sobre o primeiro homem é interpretado por Gregório no sentido


platónico, na base da distinçã o entre o homem ideal e o homem empírico. O
primeiro homem foi criado, diz Gregório, provido de um estado semelhante ao dos
anjos. A sua natureza era a racionalidade e nenhum elemento irracional fazia
parte dele; por isso não tinha corpo material nem sexo, era privado de todas as
tendências e dos impulsos que derivam do corpo e superior à doença e à morte.
Era o homem perfeito, o homem ideal, o homem feito verdadeiramente à imagem
e semelhança de Deus. Com o pecado, o homem perdeu esta condição feliz.
Como consequência do pecado nasceu o homem empírico, que se encontra
Emitado pela sua natureza animal e tem todas as qualidades e impulsos de tal
natureza (De hom. opif., 17). Nesta condição, o homem encontra-se em contraste
com a sua natureza originária, com a ideia perfeita do homem.
187

O homem deve retornar então à sua condição originária. Para orientá-lo na via do
retorno, foi necessária a encarnação do Logos. Contra a encarnação não vale a
objecção de que o finito não pode abarcar o infinito e de que, por isso, a natureza
humana não pode receber em si a divina, dado que a encarnação do Logos não
significa mais do que a infinidade de Deus se ter encerrado nos Emites da carne
como num vaso. A natureza divina uniu-se com a humana mais como a chama se
une ao corpo inflamável ou também como a alma supera os limites do nosso corpo
e se move livremente com o pensamento através da criação inteira (Or. catech.,
10). Com a morte e a ressurreição de Cristo, o Deus-homem, a natureza humana
como tal, recuperou a sua condição originária, da qual o pecado a tinha feito cair.
Mas com ela não retornaram à condição primitiva todos os indivíduos nos quais,
depois da queda, se multiplicou e dispersou. A obra redentora de Cristo deve,
portanto, frutificar através dos indivíduos singulares e reconduzi-los todos à
condição originária.

Segue-se daqui que a punição que cai sobre o mal na outra vida só pode ser
purificador. Aqueles que deixaram por si a sujidade do vício com a água do
baptismo não terão necessidade de outra purificação, mas aqueles que não
participaram desta purificação sacramental serão necessàriamente purgados pelo
fogo (1b., 35). Finalmente, a natureza chega por necessidade inevitável à
apocatástasis, à reconstrução da condição feliz, divina e livre de toda a dor, como
era a originária (1b., 35). Gregório afirma decididamente o carácter universal da
apocatástasis: "Até o inventor do mal, isto é, o demónio, unirá a sua própria voz no
hino de gratidão ao Salvador (1b., 26). Já um escritor antigo (Germano de
Constantinopla em Fozio, Bibli. cod., 233) adiantara a hipótese de uma posterior
falsificação dos
188

escritos de Gregório nos pontos em que trata da apocatástasis universal. Mas esta
hipótese não tem nenhum fundamento dado que aquela doutrma corresponde ao
espírito e ao tom geral da obra de Gregório. O ciclo do mundo ficaria incompleto
ou coxo se uma parte dos seres se subtraísse à apocatástasis e não fosse
restituída à sua condição ideal originária. Esta condição originária é concebida
platónicamente por Gregório como o ser, a substância ou a norma de toda a
existência: portanto, a existência permanece tal, mesmo depois que, afastando-se
do bem, se incline para o nada, só pela possibilidade, que lhe é própria, de uma
restituição à sua substância originária.

Precisamente em virtude da exigência desta total reintegração da realidade no seu


ser próprio, Gregório defende a ressurreição do corpo num sentido que não tem
nada já de material. A alma é dominada por uma tendência natural para o corpo
que lhe pertence e por isso imprime ao próprio corpo a sua própria forma (eidos)
que permanece na matéria constitutiva do corpo e permitirá à alma reconhecê-la,
e voltar a apropriar-se dela no momento da apocatástasis (De hom. opif., 27). Aqui
a força organizadora e modeladora da alma (a forma) é utilizada para explicar a
crença cristã na ressurreição.

O fim último do destino humano é, segundo Gregório, o conhecimento místico de


Deus, o êxtase. Alcançou-se quando se passa para lá das aparências sensíveis e
da própria razão; e nele o ver consiste em não-ver, dado que a essência divina é
inconcebível e inexprimível. Para ele, como para Basílio, o único modo de uma
relação directa com a transcendência divina é a impossibilidade de relação. O
motivo fundamental e permanente da especulação mística encontra nestas
fórmulas a sua expressão.

189

Gregório representa, com Orígenes, a expressão máxima da especulação cristã


dos primeiros séculos.
O cristianismo alcançou com ele a sua primeira sistematização doutrinal na base
de um encontro substancial com a filosofia grega. Contudo, o princípio da
interioridade espiritual afirmado pelo cristianismo e o princípio do objectivismo,
fundamento de toda a filosofia grega, não encontram ainda, na obra dos Padres
orientais, o seu ponto de encontro e de fusão. Só o encontrarão em S. Agostinho
mercê de um conceito renovado da natureza e da finalidade da investigação.

§ 154. OUTROS PADRES ORIENTAIS DO SÉCULO IV

Foi escassa a contribuição que deram à elaboração filosófica do cristianismo os


outros e numerosos escritores que, nesta época, participaram nas disputas
teológicas da Igreja. Epifânio, bispo de Constância (a antiga Salamina), nascido
por volta de 315, falecido em 403, é autor de um escrito intitulado Panario (ou
caixinha de medicinas) no qual pretende apresentar uma defesa para aqueles que
são mordidos pelas serpentes, isto é, contaminados pelas heresias. Enumera 80
heresias, mas 20 delas são seitas ou doutrinas pré-cristãs. Entre as heresias está
incluída a doutrina de Orígenes.
Macário, bispo de Magnésia, é autor de uma grande apologia, O Unigénito ou
Resposta aos Pagãos, que foi encontrada incompleta em 1867, e combate as
objecções que opusera ao cristianismo o neoplatónico Porfírio nos livros que se
perderam contra os cristãos. A um outro Macário, dito o Egípcio, foram atribuídos
erradamente 50 homilias (às quais se juntaram outras sete encontradas em
1918) que apresentam uma curiosa mescla de Estoi-

190

cismo e de Misticismo. Segundo Macário, tudo aquilo que existe, incluindo a alma
e as suas faculdades, é corpóreo, excepto Deus. Mas a alma corpórea tem em si
uma "imagem celeste" de Deus e é esta imagem celeste de Deus que é pouco a
pouco libertada e purificada pela acção de Deus sobre a alma com a cooperação
da vontade humana. Este processo de purificação é o processo de elevação a
Deus, que parte da apatia e, através da iluminação, da visão e da revelação da
comunhão com Deus, chega ao grau mais alto, ao êxtase, que é a união com
Deus.

Carácter escassamente especulativo têm as homilias de João, dito Crisóstomo ou


Boca de oiro pela sua eloquência, que foi patriarca de Constantinopla e morreu em
407. Em 428, Nestório, patriarca de Constantinopla, começou nas suas prédicas a
defender a doutrina que nega a unidade da pessoa de Cristo. Esta doutrina fora
precedentemente sustentada por Diodoro de Tarso (falecido por volta do ano 394)
e pelo seu discípulo Teodoro de Mopsuestia (falecido por 428). Consistia em
admitir que em Cristo coexistiam não só duas naturezas, mas também duas
pessoas, uma das quais habitava na outra como num templo. Nestório negava que
Maria fosse mãe de Deus e considerava fábula pagã a ideia de um deus envolto
num sudário e crucificado. Contra esta doutrina, combateu Cirilo, bispo de
Alexandria, morto em 444. Reafirmou a unidade da pessoa de Cristo, aduzindo
que o Logos assumiu a natureza humana na unidade da sua pessoa,
conjuntamente divina e humana. A obra de Cirilo, importantíssima para a definição
do dogma da encarnação, como a de Anastásio para o dogma da trindade, não
tem particular significado filosófico.

O mais douto adversário de Grilo foi Teodoreto, que nasceu por volta do ano 386
em Antioquia, discípulo de Crisóstomo e de Teodoro de Mopsuestia e condiscípulo
de Nestório. Primeiramente favorável

191

à doutrina de Nestório, que só abandonou nos últimos anos de vida (morreu pelo
ano 458), Teodoreto combateu a doutrina contrária de Eutiques, bispo de
Constantinopla, que defendia uma só natureza em Cristo, não no sentido de um só
indivíduo, como ensinara Cirilo, mas no sentido de uma natureza mista na qual
existissem fundidas a divina e a humana. Contra esta doutrina, Teodoreto
escreveu o Mendigo ou Polimorfo porque ela lhe parecia uma aberração retirada
de muitas heresias precedentes. A favor da tese de Nestório, escreveu o
Pentalogium de que apenas temos fragmentos. Teodoreto escreveu a última e
mais completa das apologias cristãs que nos transmitiu a antiguidade grega.
Intitula-se Cura das Enfermidades Pagãs ou Conhecimento da Verdade
Evangélica por meio da Filosofia Pagã. Ele utiliza as apologias precedentes,
especialmente os Stromata de Clemente Alexandrino e a Preparação Evangélica
de Eusébio.

§ 155. OS PADRES LATINOS DO IV SÉCULO

É escasso o contributo da patrística latina, para a especulação cristã, anterior a S.


Agostinho. Júlio Fírmico Materno é autor de uma obra, De errore profanarum
religionum, escrita com o objectivo de converter os imperadores Constâncio e
Constante a uma enérgica política contra o paganismo. O escrito foi composto à
volta do ano 347 o é urna análise polémica do culto pagão.

As conquistas da especulação do Oriente foram tornadas acessíveis à igreja latina


por Hilário de Poitiers, morto em 366, cuja obra mais importante é a que leva o
título De trinitate, mas originariamente devia chamar-se De fide ou De fide
adversus arianos. Nos 12 livros desta obra são recolhidos e expostos

192

minuciosamente todos os argumentos da polémica da Igreja contra o arianismo.


Mas, por maior que seja a importância de Hilário como divulgador e defensor das
doutrinas ortodoxas, é menosprezível o conteúdo especulativo da sua obra.

Uma grande figura de homem de acção é Ambrósio, que nasceu cerca de 340,
bispo de Milão de 374 a 397, ano da morte. Ambrósio escreveu numerosas
exegeses dos livros bíblicos, obras dogmáticas dirigidas contra os arianos, cartas,
sermões e um tratado, De officiis núnistrorum, que tem semelhança com os três
livros do De officiis de Ocero. Nele Ambrósio segue de perto a obra de Cícero,
mas completa-a em sentido cristão, apontando como último limite da moralidade a
felicidade em Deus. Nas suas obras dogmáticas, de que as principais são o De
fide ad Gratianum Augustum e o De Spiritu Sancto ad Gratianum Augustum,
inspira-se preferentemente nas obras de Anastásio e de Basilio o Grande.

Como tradutor da Bíblia para latim, destaca-se o nome de Sofrónio Aurélio


Jerónimo, nascido em Estridón (entre a Dalmácia e a Panónia) e morto em Belém,
onde havia muitos anos se retirara para a vida erma, em 420. Reviu a versão
latina, então em uso, do Novo Testamento e traduziu do hebraico o Velho
Testamento, com excepção dos livros de Baruch, Macabeos 1 e II, Eclesiastes e
Sabedoria porque duvidava da sua canonicidade. Muito importante é a sua
obra De vitis illustribus, composta em 392 em Belém, que é uma história dos
escritores eclesiásticos, cuja matéria, para os escritores gregos dos três primeiros
séculos, é tomada da obra de Eusébio de Cesareia (§ 148), enquanto que, para os
escritores latinos e gregos posteriores, Jerónimo se baseia no conhecimento
directo. Temperamento do polemista, Jerónimo redigiu também polemicamente as
suas obras dogmáticas; as suas

193

obras mais conseguidas são as Cartas que constituem algumas vezes verdadeiros
tratados. Contudo, a sua importância está toda na sua obra de crudito o de
historiador.

Agostinho nomeia com louvor nas Confissões (VIII, 2) o retórico africano Mário
Vitormo. Convertido ao cristianismo em idade avançada, traduziu para latim o
Isagogo de Porfírio, as Categorias e a Interpretação de Aristóteles e escreveu
diversos escritos contra os arianos e maniqueus. O escrito De definitionibus, que
está entre as obras lógicas de Boécio, deve ser atribuído a ele. Aparece nas suas
obras teológicas a doutrina da predestinação.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 143. As obras de Clemente in P. G., 8.1 e 9.1; ed. Dindorf, 4 vols., Oxford, 1869;
ed. Stãhlin, 3 vols., Berlim, 1906-1909. Sobre Clemente: DE FAYE, Clément
d?Alexandrie. Êtude sur les rapports du christianisme et de Ia philosophie grecque
au II Wele, Paris, 1898, 2.1 edição 1906; MEYBOOM, Clemens Alexandrinus,
Leiden,
1912; TOLLINGTON, Clemens of AIex. A Study in Christian Liberalism, 1-2,
Londres, 1914.

§ 144. As obras de Origenes in P. G., 11.1, 17.1, ed. berlinense na colecção


patrística, 12 vols., 1899-1955.

§ 145. Sobre Orígenes: E. DE FAYE, Origène. Sa vie, son oeuvre, sa pensée, 3


vols., Paris, 1923-28; A. MIURA-STANGE, CeIsus und Origene, Giessen, 1926; G.
Rossi, ;Saggi su" metafisica di Origene, Milão, 1929; H. KocH, Pronoia und
Paideusis. Studien über Origene und sein Verhãltniz zum Platonismus, Berlim,
1932; R. CADIOU, La jeunesse d10rigène, Paris, 1936; H. DE LuBACH, Histoire et
esprit. Lintelligence de I'Écriture d'après Origène, Paris, 1950; M. HARL, Origène
et Ia fonction révélatrice du Verbe Incarné ' in "Patristica, Sorboniensia", Paris,
1958 (com bibl.).

§ 148. Os escritos de Dionísio de Alexandria in P. G., 10.,, 1233-1344, 1575-1602;


os,de Gregório Taumaturgo In P. G., 10.-, 963-1232. As obras de Eusébio in

194

P. G., 19.1-24.1 e na edição berlinense dos Padres da Igreja, 6 vols. 1902-13.

Os escritos de Metódio in P. G., 18.,, 9-408; e na edição berlinense dos Padres da


Igreja, 1917.
As obras de Anastásio in P. G., 25.---28.,. § 149. As obras de Basílio o Grande in
P. G.,
29.---32.1. Sobre Basílio: CLARRE, St. Basil the Great, Cambridge, 1913.

§ 150. As obras de Gregório Nazianeeno in P. G.,


35.---38.1. Sobre Greg6rio: PINAULT, Le platonísme de St. Gr. de Naz., Paris,
1926.

§ 151. As obras de Gregório de Nisa, in P. G.,


44.1~46.1. Contra Eunonium, ed. Jaeger, 2 vols, Berlim,
1921-24; Cartas, ed. Pasquali, Beillim, 1925; Oratio Catech. Magna, ed. Mèrídier,
Paris, 1908; Qp. ascetiche, ed. Jaeger e outros, Leyde, 1954; Opuscoli dogmatici,
ed. Muller, Leyde, 1958.

§ 152. Sobre Gregório: H. CHERNISS, The P,aton~ of Gregory of N-yssa,


Berkeley, 1930; M. PELLEGRINO, Il platonismo di S. Grego-rio Nisseno, in "Riv. di
filos. neoscol.", XXX, 1938; A. A. WEiswuRm, The Nature of Human Kno-w"ge
according to St. Greg. de Nysse, Paris, 1953; W. VOLKER, Gregor von N. aIs
Mystiker, Wiesbaden, 1955.

§ 154. As obras de Epifânio in P. G.@ 41.---43.o: de Macário de Magnesia, ed. a


cargo de C. Blondel, Paris, 1876; de Macário o Egípcio, in P. G., 34., e as outras 7
hornilias in MARRIOTT, Macarii aneedota, Cambridge, 1918; de João Crisóstomo,
in P. G., 47.---64.,; de Diodoro, de Tarso in P. G., 33.1; de Teodoro de Mopsuestia.
in P. G., 66.o; de CiriIo in P. G. 77.o; Sobre todos, ver bibliografia especial in
BARDENHEWER, GeSchichte der altkirchlichen Literatur, III, Friburgo in Brisg.,
1923; e CHRIST-SCHMID-STAMIN, Geschichte der griech. Literatur, 11, 2,
Mónaco, 1924.

§ 155. O escrito de Firmico Materno in P. L.,


12.,, 9891-1050; e no Corpus de Viena, 2.o, 1867. Os escritos de Hilário in P. L.,
9-10.1 e no Corpus de Viena, 22.1. As obras de Ambrósio ín P. L., 14.---17-e no
Corpus de Viena, 32.1 e 64.,. As obras de Jerónimo in P. L., 22.0-30.1. os escritos
de Mário Vitorino in P. L., 8.", 999-1310; o De definitionibus in P. L., 64.%
891-910, Sobre todos, ver bibliografia nas obras citadas de BARDENHEWER E
CHRIST.

195

IV

SANTO AGOSTINHO

§ 156. A FIGURA HISTóRICA DE SANTO AGOSTINHO

Pela primeira vez na personalidade de Agostinho a especulação teológica deixa


de ser puramente objectiva, como se conservara mesmo nas mais poderosas
personalidades da patrística grega, para se unir ao próprio homem que a institui. O
problema teológico é em Santo Agostinho o problema do homem Agostinho: o
problema da sua dispersão e da sua inquietude, o problema da sua crise e da sua
redenção, da sua razão especulativa e da sua obra de bispo. Aquilo que Agostinho
deu aos outros foi aquilo que conquistou para si próprio. A sugestão e a força dos
seus ensinamentos que não diminuíram através dos séculos, muito embora
tenham mudado os termos do problema, deriva precisamente do facto de que em
toda a sua especulação, mesmo nos aspectos que parecem mais afastados de
qualquer referência imediata à vida, apenas procurou e alcançou a clareza sobre
si mesmo e sobre o seu próprio destino, o significado autêntico da sua vida
interior.

197

O centro da especulação de Agostinho coincide verdadeiramente com o centro da


sua personalidade. A atitude de confissão não se limita só ao escrito famoso, mas
é a atitude constante do pensador e do homem de acção que, em qualquer coisa
que diga ou empreenda, não tem outra finalidade senão a de ver claro em si
mesmo e de ser aquilo que deve ser. Por isso declara que não quer conhecer
mais nada senão a alma e Deus e mantém-se constantemente fiel a este
programa: a alma, isto é, o homem -interior, o eu na simplicidade e verdade da
sua natureza; Deus, isto é, o ser na sua transcendência e na sua normatividade
sem o qual não é possível reconhecer a verdade do eu.

Por certo, nesta radical interiorização da investigação filosófica, Agostinho tem


predecessores; e tais predecessores são "os Platónicos" que evoca muitas vezes
nas suas obras e especialmente Plotino. Mas para os Neoplatónicos. o retomo a si
próprio, a atitude da introspecção só pode ser privilégio do sábio; para Santo
Agostinho está ao alcance de todo o homem. Agostinho recolheu também o
melhor da especulação patrística precedente; e os conceitos teológicos
fundamentais, já então adquiridos pela especulação e aceites pela Igreja, não
sofrem na sua obra desenvolvimentos substanciais. Mas enriquecem-se com um
calor e com um significado humano que antes não tinham, tornam-se elementos
de vida interior para o homem, dado que são tais para ele, para Santo Agostinho.
E assim consegue uni-]os à inquietação e às dúvidas, à necessidade de amor e de
felicidade que são próprias do homem, fundá-los, numa palavra, na procura.
Procura que encontra na razão a sua disciplina e

o seu rigor, mas não é exigência de pura razão. Todo o homem procura: toda a
parte ou elemento da sua natureza, intranquilidade da sua finitude, dirige-se para
o Ser que é o único que pode dar-lhe

198

consistência e estabilidade. Santo Agostinho representa na especulação cristã a


exigência da pesquisa com a mesma força com que Platão a havia apresentado
na filosofia grega.

Mas, diferentemente da platónica; a procura agustiniana Tadica-se na religião.


Desde o começo Santo Agostinho abandona a iniciativa a Deus: Da quod jubes
et jube quod vis. Só Deus determina e guia a procura humana seja como
especulação seja como acção; e assim a especulação é na sua verdade fé na
revelação e a acção é na sua liberdade graiça concedida por Deus. A
polémica antipelagiana ofereceu a Agostinho ensejo para exprimir na forma mais
extrema e enérgica o fundo da sua convicção; mas não constitui uma ruptura na
sua personalidade, uma vitória do homem da Igreja sobre o pensador. Nele o
pensador vive todo na esfera da religiosidade, a qual só a Deus reconhece
necessariamente a iniciativa da procura e encontra, portanto, a sua melhor
expressão na frase: só Deus é a nossa possibilidade.

§ 157. SANTO AGOSTINHO: A VIDA

Aurélio Agostinho nasceu em 354 em Tagaste, na África romana. Seu paÂ,


Patrício, era pagão; sua mãe, Mónica, cristã, e exerceu sobre o filho uma '
profunda influência. Passou a sua meninice e a adolescência entre Tagaste e
Cartago. De temperamento ardente, rebelde a todos os freios, levou neste período
uma vida desordenada e dispersa de que se acusou asperamente nas Confissões.
Mas cultivava os estudos clássicos, especial-mente latinos, o dedicava-se com
paixão à gramática a ponto de considerar (como confessa com horror, Conf., 1,
18) tira solecismo mais grave do que um pecado mortal. Pelos 19 anos, a leitura
do Hortênsio de Cícero trouxe-o à filosofia. A obra de Cícero (que se per-
199

deu) em, como se disse (§ 110), exortação à filosofia que seguia de perto os
passos do Protréptico de Aristóteles. Assim, Santo Agostinho, do entusiasmo
pelas questões formais e gramaticais, encaminhou o seu entusiasmo para os
problemas do pensamento e, pela primeira vez, orientou-se para a investigação
filosófica. Aderiu então à (374) seita dos maniqueus (§ 137). Com 19 anos
começou a ensinar retórica em Cartago e manteve o seu erwino nesta cidade até
aos 29 anos, entre amores de mulheres e o afecto dos amigos, do que se acusou
e arrependeu igualmente depois. Com 26 ou 27 anos compÔs o seu primeiro livro
Sobre o Belo e o Conveniente (De pulchro et apto) que se perdeu. O seu
pensamento ia amadurecendo; leu e compreendeu por si mesmo o livro de
Aristóteles Sobre as Categorias e outros escritos, e entretanto formulava as
primeiras dúvidas sobre a verdade do maniqueísmo, dúvidas que se confirmaram
quando viu que nem o próprio Fausto, o mais famoso maniqueu do seu tempo,
sabia resolvê-las. Com
29 anos, em 383, dirigiu-se a Roma com a intenção de continuar ali o ensino de
retórica; era movido pela esperança de encontrar uma estudantada menos
turbulenta e mais preparada do que a cartaginesa
e talvez também pela ambição de conseguir sucesso
e dinheiro. Mas as suas esperanças não se realizaram e ao fim de um ano dirigiu-
se a Milão para ensinar oficialmente retórica, cargo que obtivera do perfeito
Simaco. O exemplo e a palavra do bispo Ambrósio persuadiram-no da verdade do
cristianismo e tornou-se catecúmeno. Em Milão reuniu-se-lhe sua mãe, cuja
influência teve importância decisiva na críse espiritual de Agostinho. A leitura dos
escritos de Plotino na tradução de Mário Vitorino, um famoso retórico que se
convertera ao cristianismo, fornece a Agostinho a orientação definitiva. Não
encontrou nos livros dos Neoplatónicos

200

S
1 . AGOSTINHO (Ambrósio Berognone)

ensinada a encarnação do Verbo e, por conseguinte, o caminho da humildade


cristã, mas encontrou afirmada e demonstrada claramente a incorporeidade e
incorruptibilidade de Deus e isto libertou-o definitivamente do materialismo, ao
qual permanecera ligado até então ao ponto de acreditar que o universo estava
cheio de Deus à maneira de uma esponja gigantesca que ocupasse o mar (Conf.,
VII, 5). No Outono de 386, Agostinho deixa o ensino e retira-se, com uma pequena
companhia de parentes e amigos, para a vila de Verecondo, em Cassiciaco,
próximo de Milão. Da meditação nesta vila e das conversações com os amigos
nascem as suas primeiras obras: Contra Académicos, Sobre a Ordem, Sobre a
Felicidade, Solilóquios. A 25 de Abril de 387 recebia o baptismo das mãos de
Ambrósio. Convence-se então de que a sua missão era a de difundir na sua Pátria
a sabedoria cristã; pensou, pois, no regresso. Em Ostia, enquanto esperava o
embarque, passou com a sua mãe dias de intensa alegria espiritual discorrendo
com ela sobre questões religiosas, mas Mónica morreu ali. A partir daquele
momento a vida de Santo Agostinho é uma contínua procura da verdade e uma
luta contínua contra o erro. Depois de uma nova permanência em Roma, voltou a
Tagaste onde em 391 foi ordenado sacerdote; em 395 foi consagrado bispo de
Hipona. A sua actividade dirigiu-se então não só a defender e a esclarecer os
princípios da fé, mediante uma procura de que a fé é mais o resultado que o
pressuposto, mas também a combater os inimigos. da fé e da Igreja: o
maniqueísmo, o donatismo e o pelagianismo. O saque de Roma, perpretado em
410 pelos "os de Alarico. voltara a dar actualismo à velha tese de que a segurança
e a força do Império Romano estavam ligadas ao paganismo e que o cristianismo
representava por isso um elemento de debilidade e de dissolução.

201

Contra esta tese escreveu Santo Agostinho, entre 412 e 426, a sua obra-prima: A
Cidade de Deus. Mas, entretanto, um flagelo análogo, a invasão dos Vândalos,
abateu-se em 428 sobre a África romana. Havia três meses que as tropas de
Genserico assediavam Hipona quando, a 28 de Agosto de 430, Agostinho morreu.

158. SANTO AGOSTINHO: AS OBRAS


Os primeiros escritos de Agostinho que chegaram até nós foram os que compôs
em Cassiciaco@ Contra Acadêmicos, Sobre a Felicidade, Sobre a Ordem,
Solilóquios. De uma exposição completa de quase todas as artes liberais só
acabou, em Tagaste, a parte que respeita à Música. Em Roma, enquanto
esperava a partida para a África, compôs o escrito Sobre a Quantidade da Alma,
relativamente às relações entre a alma e o corpo. De volta a Tagaste, terminou o
escrito Sobre o livre Arbítrio, começado em Roma, compôs o livro Sobre o "
Génesis" contra os Maniqueus, o diálogo Sobre o Mestre e o livro Sobre a
Verdadeira Religião que é um dos seus escritos filosóficos mais notáveis. A
polémica contra os maniqueus ocupou-o largamente. Os seus escritos polémicos
contra a seita são numerosos (Sobre a Utilidade de Crer, composto em 391 em
Hipona; Sobre as duas Almas; Contra Fortunato; Contra Adimanto; Contra Fausto;
Sobre a Natureza do Bem, e outros). Tornado bispo, S. Agostinho desenvolve a
sua polémica, por um lado contra os donatistas que propugnavam por uma igreja
africana independente e resolutamente hostil ao Estado romano (§ 165), pelo
outro contra os pelagianos que negavam ou pelo menos limitavam a acção da
graça divina. Contra os donatistas compôs, entre 393 e 420, muitos e 'tos (Contra
a carta de Parmeniano; Sobre o scri Baptismo; Contra os Donatistas; Contra a
Carta de
202

Petiliano Donalista; Cartas aos Católicos contra os Donatistas; Contra o Gramático


Crescónio; Sobre o único Baptismo; Contra Petiliano, etc.). Contra os pelagianos,
Agostinho abriu a sua luta em 412 com o escrito Sobre a Culpa e sobre a
Remissão dos Pecados e sobre o Baptismo dos Meninos, ao qual se seguiram:
Sobre o Espírito e sobre a Letra, a Marcelino; Sobre a Natureza e sobre a Graça;
Carta aos bispos Eutropio e Paulo; Sobre a Gesta de Pelágio: A Graça de Cristo e
o Pecado Original; e vários outros. Por altura de uma carta de Santo Agostinho em
418 (Ep., 194), os monges de Adrumeto (Susa) começaram a rebelar-se contra os
seus abades, sustentando que, sabido que a boa conduta depende
exclusivamente do socorro divino, os seus superiores não deviam dar ordens, mas
apenas elevar preces a Deus pelo seu melhoramento. Para tranquilizar e iluminar
aqueles monges sobre o verdadeiro significado da sua doutrina, Agostinho
compôs em 426 ou
427 o escrito sobre a Graça e sobre o Livre Arbítrio e outro Sobre a Correcção e
sobre a Graça. Como o movimento pelagiano se difundia na Gália meridional, sob
a forma atenuada que se chamou depois semipelagianismo, o qual declarava inútil
a graça no início da obra de salvação e na perseverança da justificação
conseguida, Agostinho escreveu contra tal doutrina outros dois escritos: Sobre a
Predestinação dos Santos e Sobre o Dom da Perseverança.

Juntamente com estas e outras obras polémicas menores, compunha o importante


escrito Sobre a Trindade, e Sobre a Doutrina Cristã, o exegético Sobre o Génesis
à Letra e a sua obra mais vasta: A Cidade de Deus (413-426). Por volta de 400,
escreveu os 13 livros das Confissões que são a obra chave da sua personalidade
de pensador. Para o final da sua vida, em 427, nas Retratações, lançava um olhar
retrospectivo sobre toda a sua obra literária a partir
203

da conversão em 386. Agostinho recorda, por ordem cronológica e, um por um,


todos os seus escritos, excluindo as cartas e sermões, e muitas vezes indica a
ocasião e o fim da sua composição e ao mesmo tempo faz a revisão crítica das
doutrinas neles contidas, corrigindo os seus erros ou as imperfeições dogmáticas.
A obra é um guia precioso para compreender o desenvolvimento da actividade
literária de Agostinho.

§ 159. CARACTERISTICAS DA INVESTIGAÇÃO AGOSTINIANA

Santo Agostinho foi chamado o Platão cristão. Esta definição é verdadeira não
tanto porque se encontrem na sua doutrina pontos e motivos doutrinais do Platão
autêntico ou do Neoplatonismo, mas porque renova no espírito do cristianismo a
investigação que fora a realidade fundamental da especulação platónica. A fé está
para Agostinho no termo da investigação, não no seu início. Por certo a fé é a
condição da procura que não teria direcção nem guia sem ela; mas a procura
dirige-se para a sua condição e trata de, esclarecê-la com o aprofundamento
incessante dos problemas que suscita. Por isso a procura encontra o fundamento
e o guia na fé e a fé encontra a sua consolidação e enriquecimento na procura.
Por um lado, na medida em que leva a esclarecer e a aprofundar a própria
condição, a procura estende-se e robustece-se porque se aproxima da verdade e
se funda nela; por outro lado, a própria fé é alcançada e possuída através da
procura na sua realidade mais rica e consolida-se no homem triunfando da dúvida.
Nada é tão contrário ao espírito de Agostinho como uma pura gnose, um
conhecimento puramente racional do divino, a não ser talvez a afirmação
desesperada da irracionalidade da fé,

204

que se encontra em Tertuliano. Para Agostinho, a procura empenha o homem


todo não apenas o intelecto. A verdade para que tende é também, segundo a
palavra angélica, a via e a vida: procurá-la significa procurar a verdadeira via e a
verdadeira vida. Por isso, não é só a mente que tem necessidade dela, mas o
homem inteiro e deve dar satisfação e repouso a todas as exigências do homem.
Por outro lado, a procura agustiniana impõe a si própria uma disciplina rigorosa:
não se entrega facilmente a crer, não fecha os olhos diante dos problemas e das
dificuldades da fé, não tenta evitá-los e iludi-los, mas afronta-os e considera-os
incessantemente, retornando sobre as próprias soluções para as aprofundar e
esclarecer. A racionalidade da procura não é para Santo Agostinho o seu
organizar-se como sistema, mas antes a sua disciplina interior, o rigor do
procedimento que não pára frente ao limite do mistério, mas faz deste limite e do
próprio mistério um ponto de referência e uma base. O entusiasmo religioso, o
ímpeto místico para a verdade não agem nele como forças contrárias à procura
mas robustecem a própria procura, dão-lhe um valor e um calor vital. Daqui deriva
o enorme poder de sugestão que a personalidade de Agostinho exerceu não só
sobre o pensamento cristão e medieval, mas também sobre o pensamento
moderno e contemporâneo.

§ 160. SANTO AGOSTINHO: O FIM DA PROCURA: DEUS E A ALMA

No início dos Solilóquios (1, 2), que são uma das suas primeiras obras, Agostinho
declarava o fim da sua investigação deste modo: "Desejo conhecer Deus e a alma.
E nada mais? Nada mais, absolutamente". E tais foram na realidade os termos
para os quais se dirigiu constantemente a sua especulação

205

do princípio ao fim. Mas Deus e a alma não requerem para Agostinho duas
investigações paralelas ou diversas. Com efeito, Deus está na alma e revela-se na
mais recôndita interioridade da própria alma. Procurar a Deus significa procurar a
alma e procurar a alma -significa reclinar-se sobre si mesmo, reconhecer-se, na
própria natureza espiritual, confessar-se. A atitude de confissão que deu origem à
mais famosa das obras agustinianas é, na realidade, desde o princípio, a atitude
fundamental de S. Agostinho, aquela que ele mantém e observa constantemente
em toda a sua actividade de filósofo e de homem de acção. Esta atitude não
consiste em descrever para si e os outros as alternativas da própria vida interna
ou externa, mas em pôr a claro todos os problemas que constituem o núcleo da
própria personalidade. Mesmo as Confissões não são uma obra autobiográfica: a
autobiografia é um dos seus elementos que fornece os pontos de referência dos
problemas na vida de Santo Agostinho, mas não é o seu carácter dominante, tanto
que, num certo ponto, no livro X todo o acento autobiográfico cessa e Santo
Agostinho passa nos outros três livros a tratar de problemas de pura especulação
teológica. O esforço de Santo Agostinho nesta obra é dirigido no sentido de fazer
luz sobre os problemas que constituem a sua própria existência. quando,
consegue aclarar a natureza da inquietação que dominou a primeira parte da sua
vida e que o levou a dissipar-se e a divagar desordenadamente, dá-se conta que,
na realidade, nunca desejou outra coisa a não ser a verdade, que a verdade é o
próprio Deus, que Deus se encontra no interior da sua alma. "Não, saias de ti
mesmo, volta * ti próprio, no interior do homem habita a verdade; * se verificas que
a tua natureza é mutável, transcende-te para lá de ti mesmo" (De vera rel., 39).
Apenas o retorno a si próprio, o encerrar-se na própria interioridade é
verdadeiramente o abrir-se à

206

verdade e a Deus. É necessário chegar até ao mais íntimo e escondido núcleo do


eu para encontrar mais além dele ("transcende-te para lá de ti mesmo") a verdade
de Deus.

Na busca desta interioridade que se transcende e se abre a Deus encontra-se


uma certeza fundamental que elimina a dúvida. Não foi por acaso que a carreira
de escritor de Santo Agostinho se iniciou com uma refutação do cepticismo
académico. Não podemos permanecer firmemente na dúvida, como pretendiam os
Académicos, e na suspensão do assentimento. Quem duvida da verdade está
certo de duvidar, isto é, de viver e de pensar; tem, por conseguinte, na própria
dúvida uma certeza que o subtrai à dúvida e o leva à verdade (Contra acad., 111,
11); De vera rel., 39; De trin., X, 10). Este movi. mento de pensamento para o qual
a própria dúvida é tomada como fundamento de uma certeza, que não é imóvel
porque apenas significa que se pode e se deve procurar, encontrar-se-á nos
começos da filosofia moderna em Descartes. Em Agostinho, esta atitude significa
que a vida interior da alma não pode encerrar-se na dúvida e que até a dúvida
permite à alma transcender-se e mover-se para a verdade.

A verdade é, pois, ao mesmo tempo interior ao homem e transcendente. O homem


só pode procurá-la encerrando-se em si próprio, reconhecendo-se naquilo que é,
confessando-se com absoluta sinceridade. Mas não pode reconhecer-se nem
confessar-se se não pela verdade e frente à verdade, a qual se afirma, precisa-
mente, naquele acto em toda a sua transcendência como guia e luz da pesquisa.
A verdade revela-se como transcendente àquele que a procura como deve
procurar-se: na interioridade da consciência. Com efeito, a verdade não é a alma,
mas a luz que do alto guia e chama a alma à sinceridade do reconhecimento de si
e à humildade da confissão. A verdade não é a razão mas é a lei da razão, isto

207

é, o critério de que a razão se serve para julgar as coisas. Se a razão é superior


às coisas que julga, a lei, na base da qual ela julga, é superior à razão.
O juiz humano julga na base da lei, mas não pode julgar a própria lei. O legislador
humano, se é honesto e sábio, julga das leis humanas, mas consulta, ao fazer
isto, a lei eterna da razão. Mas esta lei escapa a todo o juízo humano porque é a
própria verdade na sua transcendência (De vera rel., 30-31).

§ 161. SANTO AGOSTINHO: A PROCURA DE DEUS

A verdade é Deus: este é o princípio fundamental da teologia agostiniana. O


carácter fundamental da verdade está no facto de que ela nos revela aquilo que é,
em contraste com o falso que faz aparecer ou crer aquilo que não é. A verdade é a
revelação do ser como tal. Ela é o ser que se revela, o ser que ilumina a razão
humana com a sua luz e lhe fornece a norma de todo o juízo, a medida de toda a
avaliação. Neste revelar-se do ser na interioridade do homem, neste seu valer
frente ao homem como o princípio iluminante da sua procura, tal é a verdade. Mas
o Ser que se revela e fala ao homem, o Ser que é a Palavra e Razão iluminante, é
Deus no seu Logos ou Verbo (De vera rel., 36). A verdade não é, pois, mais que o
Logos ou Verbo de Deus. A primeira e fundamental determinação teológica do
Deus cristão nasce do próprio implantar da pesquisa agostiniana. Precisamente,
enquanto o homem procura Deus na interioridade da sua consciência, Deus é
para ele Ser e Verdade, Transcendência e Revelação, Pai e Logos. Deus revela-
se como transcendência ao homem que incessantemente e amorosamente o
procura na profundidade do seu eu: isto quer dizer que Ele não é ser senão
enquanto é conjuntamente manifestação de si como tal, isto é, Verdade, que não é
transcen-

208

dência senão enquanto é conjuntamente revelação; que não é Pai senão


enquanto é conjuntamente Filho, Logos ou Verbo que se acerca do homem para o
trazer a si. As duas primeiras pessoas da Trindade manifestam-se ao homem na
procura; e também a outra, o Espírito Santo, que é amor. Deus é Amor além de
Verdade; amor e verdade vão conjuntamente porque não se pode ser amor senão
pela verdade e na verdade. Amar a Deus significa amar o Amor, mas não se pode
amar o Amor se não se ama quem ama. Não é amor aquele que não ama
ninguém. Por isso o homem não pode amar a Deus, que é o Amor, se não ama o
outro homem. O amor fraterno entre os homens "não só deriva de Deus mas é o
próprio Deus" (De trin., VIII, 12). Deus revela-se como verdade só a quem procura
a verdade; Deus oferece-se como Amor só a quem ama. A procura de Deus não
pode ser, portanto, apenas intelectual, é também necessidade de amor. Parte da
pergunta fundamental: "Que coisa amo, ó Deus, quando te amo"? (Conf., X, 6).

Aqui está o nó da procura que se dirige à alma e da procura que se dirige a Deus,
nó que é o centro da personalidade de Agostinho. Não é possível procurar Deus
senão submergindo-se na própria interioridade, senão confessando-se e
reconhecendo o verdadeiro ser próprio; mas este reconhecimento é o próprio
reconhecimento de Deus como verdade e transcendência. Se o homem não se
procura a si próprio não pode reconhecer a Deus. Toda a experiência da vida de
Agostinho se exprime nesta fórmula, dado que só para lá de si, naquilo que
transcende a parte mais elevada do eu, se entrevê, pela própria impossibilidade
de alcançá-la, a realidade do ser transcendente. Por um lado, as determinações
de Deus radicam-se na procura dado que Deus se revela como transcendência e
verdade apenas na procura; por outro lado, a procura funda-se nas

209

determinações da transcendência divina. Por certo o homem não pode conhecer a


transcendência se não a procura, mas não pode procurar se a transcendência não
o chama a si e não o sustém revelando-se na sua imprescrutabilidade. Deus
precisamente na sua transcendência, é o transcendente da alma, a condição da
sua procura, de toda a sua actividade. E é ao mesmo tempo a condição das
relações interhumanas. Deus é o Amor e condiciona e torna possível todo o amor.
Mas não é possível reconhecê-lo como amor e, portanto, amá-lo se não se ama; e
não se pode amar senão o outro homem. Amar o Amor significa, em primeiro
lugar, amar, e não se pode amar a não ser o homem. O amor fraterno, a caridade
cristã, condiciona. a relação entre Deus e o homem; e ao mesmo tempo é
condicionado por ela. Também aqui o Amor divino, o Espírito Santo é, na sua
transcendência, o transcendental da procura que leva o homem para o outro
homem.
O tema de toda a especulação de Santo Agostinho é um só e é o tema da sua
vida: a relação entre a alma e Deus, entro a procura humana e o seu termo
transcendente e divino. Mas esta relação manifesta-se em Santo Agostinho
religiosamente, não filosoficamente<) seu acento não cai sobre a possibilidade
humana na procura do transcendente mas sobre a presença do transcendente no
homem como possibilidade da procura. A iniciativa é abandonada a Deus. Mais
precisamente, enquanto o homem se entrega à iniciativa da procura e queima no
ardor dela as escórias da sua humanidade inferior, deve reconhecer que a
iniciativa não é sua, mas é de Deus; que ele consegue relacionar-se com a
transcendência divina apenas porque ela se lhe revela, consegue amar a Deus só
porque Deus o ama. O esforço filosófico transforma-se em humildade religiosa: a
procura torna-se fé. A liberdade da iniciativa filosófica surge como graça. A
exigência de referir todo o esforço,

210

todo o valor humano à graça divina não é um puro resultado da polémica contra os
pelagianos, um resultado que negaria os motivos agostinianos mais profundos,
mas é exigência intrínseca da especulação agostiniana. Tal exigência funda-se na
relação com que, na personalidade de Agostinho, se enlaçam a filosofia e a
religião, a procura e a fé: relação de tensão, pela qual se a-traem o ao mesmo
tempo se opõem uma à outra.

§ 162. SANTO AGOSTINHO: O HOMEM

A possibilidade de procurar a Deus e de amá-lo está radicada na própria natureza


do homem. Se fôssemos animais, poderíamos amar apenas a vida carnal e os
objectos sensíveis. Se fôssemos árvores não poderíamos amar nada daquilo que
tem movimento e sensibilidade. Mas somos homens, criados à imagem do nosso
criador que é a verdadeira Eternidade, a eterna Verdade, o eterno e verdadeiro
Amor; temos, portanto, a possibilidade de voltar a ele, no qual o nosso ser não
terá mais morte, o nosso saber não terá mais erros, o nosso amor não terá mais
ofensas (De civ. Dei, XI, 28). Esta possibilidade de retornar a Deus na tríplice
forma da sua natureza, está inscrita na tríplice forma da natureza humana,
enquanto imagem de Deus. "Eu sou, eu conheço, eu quero. Sou enquanto sei e
quero; sei por ser e querer; quero ser e saber. Veja quem pudor como nestas três
coisas existe uma vida inseparável, uma única vida, uma única mente, uma única
essência e como a distinção é inseparável e, todavia, existe". (Conf. XIII, 11). São
os três aspectos do homem que se revelam nas três faculdades da alma humana,
a memória, a inteligência e a vontade, as quais conjuntamente, e cada uma por si,
constituem a vida, a mente e a substância da alma. "Eu, diz Agostinho (De trin., X,
18), recordo por ter memória, inteligên-

211
cia e vontade; entendo por compreender, querer e recordar; e quero querer,
recordar e compreendem. E recordo toda a minha memória, toda a inteligência e
toda a vontade e do mesmo modo compreendo e quero todas estas três coisas; as
quais coincidem plenamente e, não obstante a sua distinção, constituem uma
unidade, uma só vida, uma só mente e uma só essência. Nesta unidade da alma
que se diferencia nas suas faculdades, cada uma das quais compreende as
outras, está a imagem da trindade divina, imagem desigual mas imagem.

A própria estrutura do homem interior torna, pois, possível a procura de Deus. Que
o homem seja feito à imagem de Deus significa, portanto, que o homem pode
procurar a Deus e amá-lo e relacionar-se com o seu ser. Deus criou o homem a
fim de que ele seja, dado que o ser, mesmo em grau menor, é sempre um bem e o
Ser supremo é o supremo Bem; mas o homem pode afastar-se e decair do ser e,
em tal caso, peca. A constituição do homem como imagem de Deus, se lhe dá a
possibilidade de se relacionar com Deus, não lhe garante a realização necessária
desta possibilidade. Com efeito, o homem é, em primeiro lugar, o homem velho, o
homem exterior ou carnal que nasce e cresce, envelhece e morre. Mas, em
segundo lugar, pode ser também homem novo ou espiritual, pode renascer
espiritualmente e conseguir submeter a sua alma à lei divina. Também este
homem novo tem as suas idade que, contudo, não são dadas pelo transcorrer do
tempo, mas pelo seu progressivo aproximar do divino (De vera rel., 26). Todo o
indivíduo é pela sua natureza um homem velho, mas deve tornar-se um homem
novo, deve renascer para a vida espiritual- Este renascimento apresenta-se-lhe
como a alternativa em que deve escolher- ou viver segundo a carne e debilitar e
romper a própria relação com o ser, isto é, com Deus e cair na mentira e no
pecado; ou viver

212

segundo o espírito estreitando a sua relação com Deus e preparar-se para


participar na sua própria eternidade (De civ. Dei, XIV, 1, 4). Mas a primeira
escolha não é verdadeiramente uma escolha nem uma decisão. A verdadeira
escolha é aquela com o que o homem decide aderir ao ser, isto é, relacionar-se
com Deus. A causa do pecado, quer dos anjos rebeldes a Deus quer dos homens,
é uma só: a renúncia àquela adesão. "A causa da beatitude dos anjos bons é que
eles aderem àquilo que verdadeiramente é; enquanto a causa da miséria dos
anjos maus é que eles se afastaram do ser e se voltaram para si próprios que não
são o ser. O seu pecado foi, pois, o da soberba." (Ib., XII, 6). Precisamente esta
soberba da vontade, que nos aparta do ser e nos ata ao que tem menos ser, é o
pecado, o qual, por isso, não tem causa eficiente mas apenas causa deficiente:
não é uma realização (effectio) mas uma defecção (defectio). É renúncia àquilo
que é supremo para adaptar-se àquilo que é -inferior. Querer encontrar as causas
de tais defecções é como querer ver as trevas ou ouvir o silêncio: tais coisas só
se podem conhecer ignorando-as, enquanto que, conhecendo-as, se ignoram
(1b., XII, 7).
§ 163. SANTO AGOSTINHO: O PROBLEMA DA CRIAÇÃO E DO TEMPO

Enquanto é ser, Deus é o fundamento de tudo o que é; é, portanto, o criador de


tudo. E de facto a mutabilidade do mundo que nos rodeia demonstra que este não
é o ser: teve, pois, de ser criado e leve de ser criado por um ser eterno (Conf., XI,
4). Deus criou tudo através da Palavra, mas a palavra de que fala a narração do
Génesis não é a palavra sensível, mas o Logos ou Filho de

213

Deus, que é coeterno como ele (1b., XI, 7). O Logos ou Filho tem em si as ideias,
isto é, as formas ou as razões imutáveis das coisas que são eternas como eterno
é ele próprio: e em conformidade com tais formas ou razões são formadas todas
as coisas que nascem e morrem (De div. quaest., 83, q; 46). Estas formas ou
ideias não constituem, portanto, como queria Platão, um mundo inteligível, mas a
eterna e imutável Razão, através d a qual Deus criou o mundo. Separar o
mundo inteligível de Deus significaria admitir que Deus está privado de razão na
criação do mundo ou antes dela (Retract., 1, 3). As ideias divinas são comparadas
por Agostinho às raízes seminais de que falavam os Estoicos (§ 93). A ordem do
mundo, que depende da divisão das coisas em géneros e espécies, é garantida
precisamente pelas razões seminais que, implícitas na mente divina, determinam,
no acto da criação, a divisão e o ordenamento das coisas singulares.

Alguns Padres da Igreja, por exemplo Orígenes, consideravam que a criação do


mundo era eterna não podendo implicar uma mudança na vontade divina. O
problema apresenta-se também * Agostinho. "Que coisa fazia Deus antes de criar
* céu e a terra"? Poder-se-ia responder ironizando: "Preparava o inferno para
quem quer saber demais"; mas seria iludir com uma graça um problema sério. Na
realidade, Deus é o autor não só daquilo que existe no tempo, mas do próprio
tempo. Antes da criação não havia tempo: não havia portanto um "antes" e não
tem sentido perguntar-se que coisa fazia Deus "então". A eternidade está acima
de todo o tempo: em Deus nada é passado e nada é futuro porque o seu ser é
imutável e a imutabilidade é um presente eterno em que nada passa. Mas o que é
o tempo?

214

Certamente, a realidade do tempo não é nada permanente. O passado é tal


porque não é mais, o futuro é tal porque não é ainda; e se o presente fosse
presente e não se transformasse continuamente em passado, não seria tempo,
mas eternidade. Não obstante esta fuga do tempo, nós conseguimos medi-lo e
falamos de um tempo breve ou longo, quer, passado quer futuro. Como e onde,
efectuamos à sua medição? Agostinho responde: na alma. Certamente não se
pode medir o passado que não é mais, ou o futuro que não é ainda; mas nós
conservamos a memória do passado e estamos à espera do futuro.
O futuro não é ainda, mas existe na alma a espera das coisas futuras; o passado
não existe já, mas existe na alma a memória das coisas passadas. O presente
está privado de duração e num instante transforma-se, mas dura na alma a
atenção às coisas presentes. O tempo encontra na alma a sua realidade: no
distender-se (distensio) da vida interior do homem através da atenção, da
memória e da espera, na continuidade interior da consciência que conserva dentro
de si o passado e tende para o futuro. Partindo à procura da realidade objectiva do
tempo, Agostinho consegue, no entanto, aclarar a sua subjectividade. Uma vez
mais o voltar da consciência sobre si mesma surge como o método resolutivo de
um problema fundamental.

§ 164. SANTO AGOSTINHO: A POLÉMICA CONTRA O MANIQUEISMO

Alcançada a determinação da natureza do pecado, S. Agostinho estava à vontade


para afrontar o problema do mal no mundo e combater vitoriosamente as
afirmações dos Maniqueu. Aquilo que, segundo S. Agostinho, desmente
irrefutavelmente o próprio princípio do maniqueismo é o carácter fundamental

215

de Deus: a incorruptibilidade que é própria de Deus na medida em que é o próprio


Ser. A argumentação do seu amigo Nebridio fazia ver o contraste entre este
carácter da divindade e as teses dos Maniqueu. Estes admitiam que Deus devia
combater eternamente com o principio do mal. Mas se, o principio do mal pode
prejudicar Deus, Deus não é incorruptível porque pode receber uma ofensa. E se
não pode ser ofendido, falta algum motivo porque Deus tenha de combater (Conf.,
VII, -2). Assim o reconhecimento da incorruptibilidade de Deus retira todo o
fundamento à afirmação maniqueia de um princípio do mal; mas ao mesmo tempo
volta a propor em toda a sua urgência e grandiosidade o problema do mal no
mundo. Se Deus é o autor de tudo e também do homem, donde deriva o mal? Se
do mal é autor o diabo, donde deriva o próprio diabo? Se o mal depende da
matéria de que o mundo é formado, porque é que Deus ao ordená-la deixou nela
um resíduo de mal? Qualquer que seja a solução a que se recorra, a realidade do
mal contradiz a bondade perfeita de Deus: não resta, pois, mais que negar a
realidade do mal, E tal é a solução por que se decide Agostinho.

Tudo aquilo que é, enquanto é, é bem. Também as coisas corruptíveis são boas,
dado que se tais não fossem não poderiam, corrompendo-se, perder a sua
bondade.. Mas à medida que se corrompem, elas não perdem apenas a bondade,
mas também a realidade; dado que se perdessem a bondade continuando a ser,
chegaríam a um ponto em que seriam privadas de toda a bondade e, contudo,
seriam reais, portanto incorruptíveis. Mas incorruptível é Deus e é absurdo supor
que as coisas, corrompendo-se, se aproximam de Deus. É necessário, pois,
admitir que, à medida que se corrompem, as coisas perdem a sua realidade, que

216

o mal absoluto é o nada absoluto e que o ser e o bem coincidem (Conf., VII, 12
ss).

Não pode, pois, haver outro mal no mundo senão o pecado e a pena do pecado.
Ora o pecado consiste, como se viu, na deficiência da vontade que renuncia ao
ser e se entrega ao que é inferior. Como não é um mal a água, enquanto, pelo
contrário, é um mal o precipitar-se voluntariamente na água, assim nenhuma coisa
criada, por humilde que seja, é um mal, mas é mal entregar-se a ela como se
fosse o ser e renunciar por isso ao ser verdadeiro. (De Vera rel., 20). Da tese
maniqueia que fazia do mal não apenas unia realidade, mas um princípio
substancial do mundo, Santo Agostinho chegou à tese oposta: a negação total da
realidade ou substancialidade do mal e a sua redução à defecção da vontade
humana frente ao ser. O mal não é, portanto, realidade nem sempre no homem,
dado que é defecção, deficiência, renúncia, não-decisão, não-escolha; também no
homem é, pois, não-ser e

morte. No pecado, Deus que é o ser abandona a alma, precisamente como na


morte do corpo a

alma abandona o corpo (De civ. Dei, XIII, 2).

§ 165. SANTO AGOSTINHO: A POLÉMICA CONTRA O DONATISMO

A segunda grande polémica de Agostinho é a

que dirige contra o donatismo. Trata-se de uma polémica que levou Agostinho a
esclarecer vigorosamente pontos fundamentais da sua construção religiosa. O
donatismo (assim chamado de Donato de Casas Negras, um dos seus corifeus),
quando Agostinho foi consagrado bispo, estendia-se pela África romana havia
quase um século. Era um Movimento cismático fundado no princípio da abso-

217

luta intransigência da igreja frente ao Estado. A Igreja é uma comunidade de


perfeitos que não devem ter contactos com as autoridades civis. As autoridades
religiosas que toleram tais contactos perdem a capacidade de administrar os
sacramentos * os fiéis devem considerá-los traidores e renovar * baptismo e os
outros sacramentos recebidos deles. Estas afirmações dos Donatistas tornavam
impossível toda a hierarquia eclesiástica porque davam a

qualquer fiel o direito de indagar dos títulos do seu

superior hierárquico e negar-lhe, quando o julgasse oportuno, obediência e


disciplina. Além disso. ligando o valor dos sacramentos à pureza de vida do
ministro, expunham os próprios sacramentos a uma dúvida contínua.
Estabeleciam finalmente entre a Igreja e o Estado uma antítese que estirilizava a

acção da Igreja numa pura negação.


Contra o donatismo, Agostinho afirma a validade dos sacramentos
independentemente da pessoa que os administra. É Cristo que opera
directamente através do sacerdote e confere eficácia ao sacramento que lhe
administra; não podem, portanto, existir dúvidas sobre tal eficácia. Além disso a
comunidade dos fiéis não pode restringir-se a uma minoria de pessoas que se
isolam do resto da humanidade. "0 sangue de Cristo foi o preço do universo, não
de uma minoria. Só a Igreja que levantou as suas

tendas por toda a parte onde há vida civil, testemunha, com a sua existência, a
validade do Evangelho no mundo. E esta Igreja é a Igreja de torna." Assim Santo
Agostinho via na universalidade da Igreja a demonstração de facto do valor da
mensagem cristã e ao mesmo tempo defendia essa universalidade contra a
tentativa de a negar e de reduzir
* comunidade cristã, como queriam os Donatistas,
* um conventículo de isolados.

218

§ 166. SANTO AGOSTINHO, A POLÉMICA CONTRA O PELAGIANISMO

A terceira grande polémica agostiniana é a que dirige contra o pelagianismo. Foi a


polémica que teve maior importância na formulação da doutrina agostiniana,
levando Agostinho a fixar com extraordinária energia e clareza o seu pensamento
sobre o problema do livre arbítrio e da graça.

O monge inglês Pelágio vivia em Roma nos primeiros anos do século V. Ali teve,
pela primeira vez, informação sobre a doutrina agostiniana da graça expressa na
famosa invocação a Deus: "Dá aquilo que mandas e manda aquilo que queres"
(Da quod jubes et Jube quod vis). Tendo Pelágio ido depois a Cartago com o seu
amigo Celestio, na altura em que à aproximação dos Godos muitas famílias
romanas se refugiavam em África, as suas críticas ao agostinismo difundiram-se
principalmente por obra de Celestio, na própria grei do bispo Agostinho. O ponto
de vista de Pelágio consistia essencialmente em negar que a culpa de Adão
tivesse debilitado radicalmente a liberdade originária do homem e, portanto, a sua
capacidade de fazer o bem. O pecado de Adão é apenas um mau exemplo que
pesa, sim, sobre as nossas capacidades e torna mais difícil operar o bem, mas
não o toma impossível e principalmente não priva os homens da possibilidade de
reagir e de decidir-se pelo melhor. Para Pelágio, o homem, quer antes do pecado
de Adão, quer depois, é naturalmente capaz de operar virtuosamente sem
necessidade do socorro extraordinário da graça. Mas esta doutrina levava a
considerar inútil a obra redentora de Cristo. Se o pecado de Adão não colocou o
homem na impossibilidade de salvar-se só com as suas forças, o homem não tem
evidentemente necessidade da ajuda sobrenatural que lhe trouxe a encarnação do
Verbo, nem tem necessi-

219
dade, por conseguinte, de fazer-se participe desta ajuda pela obra mediadora da
Igreja e dos sacramentos que ela administra.

Frente a uma doutrina que se apresentava tão destruidora para a dogmática cristã
e a obra da Igreja, Agostinho reagiu energicamente, afirmando que com Adão e
em Adão pecou toda a humanidade e que, portanto, o género humano é uma só
"massa condenada" e nenhum membro dela se pode subtrair à devida punição a
não ser pela misericórdia e pela não devida graça de Deus (De civ. Dei, XIII, 14).
E para justificar a transmissão do pecado, Agostinho foi levado a defender, acerca
da origem da alma, não o criacionismo (dado que não se pode admitir que Deus
crie uma alma condenada), mas o traducianismo pelo qual a alma é transmitida de
pai a filho através da geração do corpo. O vigor com que Agostinho defendeu
estas teses levou-o a não hesitar diante de nenhuma das consequências. Inclinou-
se para um pessimismo radical sobre a natureza e a possibilidade do homem,
considerado incapaz de dar o mais pequeno passo no caminho da elevação
espiritual e da salvação; e foi levado a insistir no carácter imperscrutável da
escolha divina que predestina alguns homens e condena os outros. Mas por mais
que estas conclusões pareçam paradoxais (e a própria Igreja católica teve de
mitigar-lhes o rigor), não há dúvida de que o princípio sobre o qual S. Agostinho as
funda tem na sua doutrina um alto valor, de todo independente da polémica
antipelagiana. Este princípio é a identidade da liberdade humana com a graça
divina. A vontade, segundo Agostinho, só é livre quando não está escravizada
pelo vício e o pecado; e é esta liberdade que só pode ser restituída ao homem
pela graça divina (lb., XIV, LQ. O primeiro livre arbítrio, aquele que foi dado a
Adão, consistia no poder não pecar. Perdida esta liberdade pelo pecado original, a
liber-

220

dade final, aquela que Deus dará como prémio, consistirá no não poder pecar.
Esta última liberdade -será dada ao homem como um dom divino, dado que não
pertence à natureza humana, e tornará esta última partícipe da impecabilidade
própria de Deus. Mas pois que a primeira liberdade foi dada ao homem a fim de
que ele procure a última e completa liberdade, é evidente que só esta última
exprime aquilo que o homem verdadeiramente deve ser e pode ser. O não poder
pecar, a libertação total do mal é uma possibilidade do homem fundada numa
dádiva divina: "0 próprio Deus é a nossa possibilidade" diz Agostinho (Sol., 11, 1;
De gratia Chr., 25).

Estas palavras de Santo Agostinho exprimem a entidade essencial da liberdade e


da graça. Aquilo que no homem é esforço de libertação, vontade de procurar e
amar a Deus é, na sua última possibilidade, a acção gratificante de Deus.
Agostinho não pode admitir, como faziam os pelagianos ou os semipelagianos,
uma cooperação do homem com Deus, dado que o homem não está no mesmo
plano de Deus. Deus é o Ser que lhe dá existência, a Verdade que dá lei à sua
razão, o Amor que o chama a amar. Sem Deus o homem só pode afastar-se do
ser, da verdade e do amor, isto é, só pode pecar e condenar-se. Por isso ele não
possui méritos próprios que faça valer perante Deus. Os méritos do homem não
são mais que dons divinos; e o homem deve atribuí-los a Deus, não a si (De gratia
et libero arbítrio, 6). A iniciativa só pode pertencer a Deus porque Deus como Ser,
Verdade e Amor é a única força do homem. A graça divina revela-se no homem
como liberdade, como procura da verdade e do bem, afastamento do erro e do
vício, aspiração à impecabilidade final. Verdadeiramente a vontade humana de
libertação é acção de graça. S. Agostinho concebeu a relação entre Deus
221

e o homem no modo mais intrínseco; e assim reconhece à iniciativa divina todos


os caracteres positivos do homem.

§ 167. SANTO AGOSTINHO: A CIDADE DE DEUS

A vida do homem singular é dominada pela alternativa fundamental: viver segundo


a carne ou viver segundo o espírito. A mesma alternativa domina a história da
humanidade. Esta é constituída pela luta de duas cidades ou reinos: o reino da
carne e o reino do espírito, a cidade terrena ou a cidade do diabo, que é a
sociedade dos impios, e a cidade celeste ou cidade de Deus que é a comunidade
dos justos.

Estas duas cidades nunca dividem nitidamente o seu campo de acção na história.
Nenhum período da história, nenhuma instituição é dominada exclusivamente por
uma ou por outra das duas cidades. Elas nunca se identificam com os elementos
particulares de que a história dos homens é construída, dado que dependem
apenas daquilo que cada homem singular decide ser. "O amor de si levado até ao
desprezo de Deus gera a cidade terrena; o amor de Deus levado até ao desprezo
de si gera a cidade celeste. Aquela aspira à glória dos homens, esta coloca acima
de tudo a glória de Deus, testemunhado pela consciência... Os cidadãos da cidade
terrena são dominados por uma estulta cupidez de predomínio que os induz a
subjugar os outros; os cidadãos da cidade celeste oferecem os seus serviços uns
aos outros com espírito de caridade e respeitam docilmente os deveres da
disciplina social" (De civ. Dei, XIV, 28). Nenhuma marca exterior distingue as duas
cidades que estão misturadas desde o começo da história humana e o estarão até
ao fim dos tempos. Só interrogando-se a si
222

próprio, cada um poderá averiguar a qual das duas pertence.

Toda a história dos homens no tempo é o desenvolvimento destas duas cidades:


ela divide-se em três períodos fundamentais. No primeiro os homens vivem sem
leis e não há ainda luta contra os bens do mundo; no segundo os homens vivem
sob a lei e por isso combatem contra o mundo, mas são vencidos. O terceiro
período é o tempo da graça em que os homens combatem e vencem. Agostinho
distingue estes períodos na história do povo de Israel. Atenas e Roma são
julgadas por Santo Agostinho principalmente através do politeísmo da sua religião.
Roma é a Babilónia do Ocidente. Na sua origem está um fratricídio, o de Rómulo,
que reproduz o fratricídio de Caim do qual nasceu a cidade terrena. A própria
virtude dos cidadãos de Roma são virtudes aparentes, na realidade são vícios
porque a virtude sem Cristo não é possível (1b., XIX, 25).

O livro VIII do De Civitate Dei é dedicado ao exame da filosofia pagã. Agostinho


detém-se principalmente em Platão a quem chama "o mais merecidamente
famoso dos discípulos de Sócrates". Platão reconheceu a espiritualidade e a
unidade de Deus, mas nem sequer o glorificou e adorou como tal, antes como os
outros filósofos pagãos admitiu o culto politeísta (lb., VIII, 11). As coincidências da
doutrina platónica com a cristã são explicadas por Agostinho com as viagens de
Platão ao Oriente durante as quais pôde conhecer o conteúdo dos livros sagrados
(1h., VIII, 12). Quanto aos Neoplatónicos viu-se como o próprio Agostinho foi
orientado para o cristianismo pelos escritos de Plotino: eles ensinaram a doutrina
do Verbo mas não que o Verbo encarnara e se sacrificara pelos homens (Conf.,
VII, 9). Est" filósofos entreviram, sem dúvida, ainda que de maneira obscura, o fim
do
223

homem, a sua pátria celeste, mas não puderam ensinar-lhe o caminho que é o
assinalado pelo apóstolo João: a encarnação do Verbo (De civ. Dei, X, 29).

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 157. A principal fonte para a vida de Santo Agostinho são as Confissões em 13


livros dos quais só têm carácter autobiográfico os primeiros 10. Sobre a conversão
de S. Agostinho ver especialmente: TruMME, Augustins geistige Entwickelung in
den ersten Jahren nach seiner "Bekehrung", Berlim, 1908; ALFARIE, L'évolution
intellectuelle de Saint-Augustin, Paris, 1918. Bibliografia completa sobre o tema no
artigo Augustin de PoRTALiÉ no "Dictionnalre de Théologie catholique". Ver
também: BUONAIUTI, II Cristianesimo nell'Africa romana, Bari, 1928, p. 341 ss;
PINCHERLE, SantIAgostino vescovo e teologo, Bari, 1930.

§ 158. As obras de Santo Agostinho em MIGNE, P. L., 32.1-47.1; no Corpus seript.


ecel. lat. da Academia de Viena; e no Corpus Christianorum, Série latina,
Turnhout-Paris. Além disso: Confissões, ed. Skutella, Leipzig, 1934; De civitate
Dei, ed. Dombart-Kalb, Leipzig, 1928-29; Retractiones, ed. Ynoll, no Corpus de
Viena.

O melhor estudo de conjunto sobre Santo Agostinho é GILSON, Introduction à


I'étude de Saint-Augustin, Paris, 1943. Além disso: DE PLINVAL, Pour connaitre Ia
pensée religieuse de Saint-Augustin, Paris,
1954; MARRou, Saint-Augustin et Ilaugustinisme, Paris,
1955.

§ 159. Sobre as relações entre a razão e a fé em Santo Agostinho: GRABMANN,


Die Geschichte der scholastichen Methode, 1, 1909, p. 125-143.
§ 161. Sobre o conceito de verdade: BoyEn, Llidée de vérité dans Ia philosophie
de Saint-Augustin, Paris,
1921; GUZZ0, Dai "Contra academicos" ai "De vera religione", Florença, 1925.

§ 162. Sobre as doutrinas morais: ROLAND-GosSELIN, Lcs morale de St.-


Augustin, Paris, 1925.

224

§ 163. Sobre a doutrina das razões seminais: WIE=, Geschichte der Lehre von
den Koimekrãften,
1914, p. 108-224.

§ 164. Sobre o maniqueismo: CUMONT, Recherches sur le manichéisme,


Bruxelas, 1908.

§ 165. Sobre o donatismo: BATTIFOL, Le catholicisme de Saint-Augustin, Paris,


1920; BONAIUTI, Op. cit., p. 292 ss.

§ 166. Sobre a luta antipelagiana: DuCHESNE, Histoire ancienne de IÊglise, Paris,


1910; BONAlUTI, La genesi della dottrina agostiniana intorno al pecato originale,
Roma, 1916; Guzzo, Agostinho contra Pelagio, 2.1 ed., Turim, 1934; BU0NAlUTI,
Il Cristianismo ne111 Africa romana, p. 361 ss.

§ Sobre a cidade de Deus: SCHOLZ, Glaube und Unglaube in der Weltgeschichte,


1911; TROELTSCH, Augustin, die chrL,@tliche Antícke und das Mittelalter,
Mónaco, 1915.

225

A úLTIMA PATRÍSTICA

§ 168. DECADÊNCIA DA PATRÍSTICA

A partir dos meados do século V a patrística perde toda a vitalidade especulativa.


No Oriente, a sua actividade sobrevive nas disputas teológicas que, contudo,
passam cada vez mais para o serviço da política eclesiástica e perdem portanto
todo o valor filosófico. No Ocidente, a civilização romana rompeu-se sob os golpes
dos bárbaros e não se formou ainda a nova civilização europeia. O letargo do
pensamento filosófico é, na realidade, o letargo da civilização europeia. A cultura
vive a expensas do passado. O poder do criação diminuiu; permanece a
actividade erudita que se reduz à compilação dos estratos ou dos comentários e
parte de uma renúncia prévia a qualquer investigação original.
No Ocidente permanece, todavia, um núcleo de interesse laico pelas sete artes
liberais, o trivio (gramática, retórica, dialéctica) e o quadrivio (aritmética,
geometria, astronomia, música). O conteúdo deste interesse manifesta-se em
poucas obras que

227

compendiam na forma mais genérica a sabedoria da Antiguidade: a História


Natural de Plínio o Velho, o De officiis de Cícero, a Farsália de Lucano

e a Consolação da filosofia de Boécio. Devido a estas obras salva-se a tradição


humanística que é característica e que conduzirá ao florescimento do século XIII.

§ 169. ESCRITORES GREGOS

Mais próximo do Neoplatonismo do que do cristianismo está, mesmo depois da


conversão, Sinésio de Cirena, nascido entre 370 e 375 e falecido por volta de 413.
Fora discípulo da neoplatónica Hipázia (§ 125) com a qual manteve relações
amigáveis mesmo depois. Em 409 foi nomeado bispo de Ptolomaida com a
condição de renunciar à mulher e às suas convicções filosóficas. Algumas obras
suas não mostram sinais do cristianismo. Tais são: os discursos sobre o poder
real; o escrito sobre o dom do astrolábio, as narrações egípcias ou sobre a
providência; o elogio da calvície, sátira aos Sofistas que falam sem tom nem som;
a apologia de Dion Crisóstomo; um escrito sobre os santos. Têm carácter mais
estritamente cristão numerosas cartas, duas homilias, duas orações e alguns
hinos. Sinésio considera Deus neoplatonicamente como a unidade da unidade e
nega a ressurreição da carne e o fim do mundo.

Bastante próximo do neoplatonismo está também Nemésio que foi bispo de


Emessa na Fenícia e compôs, no final do século IV ou princípio do século V, um
escrito Sobre a Natureza do Homem, que se difundiu na Idade Média através da
versão latina feita no século XI provavelmente por Alfano (1058-1085), arcebispo
de Salerno. O homem é, segundo Nemésio, o traço de união entre o mundo
sensível e o mundo supra-sensível: pelo espírito par-

228

tence ao mundo supra-sensível, isto é, ao mundo dos seres espirituais ou anjos;


pelo corpo pertence ao mundo sensível. Por isso o primeiro homem não foi criado
imortal nem mortal; podia tornar-se uma ou outra coisa e cabia a ele escolher uma
ou outra alternativa. Transgredindo o mandado divino, torna-se mortal; mas pode
de novo, retornando a Deus, participar da imortalidade (De nat. hum., 1). Nemésio
aceita a definição aristotélica da alma como "enteléquia de um corpo físico que
tem a vida em potência". Como tal a alma é uma substância imaterial e incorpórea
que subsiste por si e não é, portanto, gerada no corpo ou com o corpo. A sua
união com o corpo não é uma mistura de substâncias mas uma relação pela qual
a alma está toda presente em todas as partes do corpo e o vivifica do mesmo
modo que o sol ilumina com a sua presença o ar (1b., 3). A alma está dotada de
livre arbítrio porque a sua natureza é racional. Quem pensa pode também reflectir
e quem reflecte deve também poder escolher livremente (1b., 41). Foge à
liberdade humana aquilo que foge à reflexão: a saúde, as doenças, a -morte e
assim sucessivamente (1b., 40).

Quando as escolas retóricas do mundo grego se aproximavam já da ruína, tiveram


um breve florescimento as escolas da cidade síria de Gaza. Entre os mestres
desta escola dois têm um certo relevo e figuram como apologetas do cristianismo.
Um é Procópio, cuja vida decorre entre 465 e 528, que foi autor dos comentários
do Velho Testamento; o outro é Encias que viveu no mesmo tempo e que deve a
sua celebridade na Idade Média ao diálogo Teofrasto ou sobre a imortalidade da
alma e sobre a ressurreição do corpo, composto antes de 534. O escrito é dirigido
contra a doutrina da pré-existência da alma e da sua transmigração. As almas não
existem antes da sua união com o corpo, mas

229

são criadas por Deus no momento desta união. Deus criou todas as inteligências
incorpóreas de uma vez, mas cria diariamente as almas dos homens.

Na mesma linha de pensamento navega o irmão de Eneias, Zacarias, que foi


bispo de Mitilene, dito o escolástico (isto é, o retórico) e morto antes de 533.
Zacarias é autor de um diálogo intitulado Ammonio, destinado a combater a
doutrina da eternidade do mundo. É notável o facto de que, para negar a
eternidade, Zacarias negue a necessidade do mundo, procedimento que seguem
todas as críticas do género que virão depois. O mundo foi criado pela vontade de
Deus, por isso não é o efeito necessário da natureza divina e não é coeterno com
Deus. À objecção de que se Deus não tivesse criado o mundo ab aeterno, não
seria o eterno criador e feitor do bem, Zacarias responde que Deus tem em si,
desde a eternidade, a ideia do mundo e de todas as coisas que o compõem e
também a potência e a vontade de criá-lo. Um construtor é sempre construtor,
mesmo no momento em que não construa nada e um retórico é sempre tal mesmo
se nem sempre pronuncia discursos.

Contra a eternidade do mundo escreveu também uma obra o gramático


alexandrino João, dito Filipono pela sua incansável actividade. É também autor de
uma obra teológica intitulada Árbitro ou sobre a Unidade, de uma outra, Sobre a
Ressurreição do Corpo e de um comentário à narração bíblica da criação,
intitulado Sobre a Construção do Mundo. Este último e o escrito Sobre a
Eternidade conservaram-se; das outras duas obras temos fragmentos
conservados pelo seu adversário Leôncio de Bizâncio e João Damasceno. João
Filipono entendia por natureza a essência comum dos indivíduos e por hipostasis
ou pessoa a mesma natureza circunscrita à existência singular de determinadas
qualidades. Flor isso entendia a unidade de substância

230
em Deus como a natureza comum das três hipóstasis e fazia assim, das três
pessoas divinas, três existências particulares, isto é, três divindades. Ao lado
desde trideísmo (que, por outro lado, teve neste período, como no precedente,
numerosos defensores) João admitia o monofisismo no que respeita à
encarnação. Não podem subsistir duas naturezas numa única hipóstasis: na
pessoa de Cristo não pode, portanto, subsistir senão a natureza divina. O
pressuposto destas interpretações dogmáticas é a lógica aristotélica, à qual João
dedicara um comentário: de facto o significado de natureza e de hipóstasis é tirado
de Aristóteles. É curioso notar que quando a lógica aristotélica for de novo
empregada, por acção de Roscelino de Compiègne, na interpretação do dogma da
trindade, chegar-se-á à mesma conclusão trideIstica.

Ao tempo de Justiniano pertence Leôncio de Bizâncio que viveu entre 475 e 543
aproximadamente, autor de três livros contra os Nestorianos

o os Eutriquianos e de dois escritos contra Severo, o patriarca monofisita de


Antioquia. O fundamento das interpretações dogmáticas de Leôncio é a lógica
aristotélica filtrada através dos escritos dos Neoplatónicos. Para salvar a
interpretação ortodoxa do dogma da encarnação, segundo o qual na única pessoa
de Cristo subsistem as duas naturezas, humana e divina, e para manter firme
conjuntamente o princípio aristotélico de que cada natureza não pode subsistir
senão numa única hipóstasis, Leôncio introduz o conceito de etúpostasi, isto é, de
uma natureza que subsista, não numa hipóstasis própria, mas na hipóstasis de
uma outra natureza. Tal é o caso da natureza humana de Cristo, a qual não tem
uma hipóstasis sua mas subsiste na hipóstasis própria da sua natureza divina.
Mas nem nesta doutrina, que se encontra já em Cirilo, o máximo antagonista dos
monofisitas, nem nas

231

outras, Leôncio atinge uma verdadeira originalidade de pensamento.

§ 170. PSEUDO-DIONíSIO O AEROPAGITA

Pelos princípios do século VI começam a ser conhecidos e citados alguns escritos


cujo autor se qualifica como Dionísio, aquele que, segundo os Actos dos
Apóstolos (XVII, 34), foi convertido ao cristianismo pela prédica do apóstolo Paulo
diante do Aerópago. Motivos internos e externos demonstram que tais escritos não
podem remontar para lá do fim do século V e que, portanto, a sua atribuição a
Dionísio é impossível. Na verdade, a fonte principal destes escritos é o
neoplatónico Proclo (418-485), de quem o autor nalguns pontos inclui estratos
textuais.

Como Proelo, Dionísio distingue uma teologia afirmativa, a qual, partindo de Deus,
se dirige para o finito com a determinação dos atributos ou nomes de Deus e uma
teologia negativa, a qual procede do finito para Deus e o considera acima de todos
os predicados ou nomes com que podemos designá-lo. A este segundo tipo de
teologia pertence o breve tratado Teologia Mística, segundo o qual o mais alto
conhecimento é o não saber místico: só prescindindo de toda a determinação de
Deus, se compreende Deus no seu ser em si. No tratado Sobre os Nomes Divinos,
Dionísio insiste na impossibilidade de designar adequadamente a natureza de
Deus. Ainda que seja a unidade absoluta e o bem supremo de que todas as coisas
participam e sem o qual não poderiam ser, Deus é superior à própria unidade tal
como é concebida por nós: é o Uno super-essencial, que é causa e princípio de
todo o número e de toda a ordem. Elo não pode ser designado verdadeiramente
nem como unidade, nem como trindade, nem como número,

232

nem como qualquer outro termo de que nos servimos para as coisas finitas. O
próprio -nome de Bem, que é o mais alto de todos, é inadequado para a altura da
perfeição divina. A emanação das coisas por Deus, que tem em si as ideias ou
modelos de toda a realidade, é compreendida por Dionísio como criação. O
mundo não é um estádio do desenvolvimento de Deus, mas um produto da
vontade divina. Contudo os seres do mundo sã o todos manifestações ou
símbolos de Deus e por isso a sua consideração permite ao homem ascender a
Deus e refazer assim no inverso o caminho da criação.

Nos dois tratados Sobre a Jerarquia Celeste e Sobre a Jerarquia Eclesiástica,


Dionísio coloca Deus no centro das esferas em que se ordenam todas as coisas
criadas. Mais próximas dele estão as criaturas mais perfeitas, enquanto nas
esferas periféricas estão situadas as criaturas menos perfeitas. A hierarquia
celeste é constituída pelos anjos que se distribuem em 9 ordens reunidas em
disposições ternárias. A primeira é a dos Tronos, dos Querubins e dos Serafins; a
segunda é a das Potestades, das Dominações e das Virtudes; a terceira é a dos
Anjos, dos Arcanjos e dos Principados (De celesti hier., 6 ss). Ã hierarquia celeste
corresponde a eclesiástica, disposta também em três ordens. A primeira é
constituída pelos Mistérios: Baptismo, Eucaristia, Ordens sacras. A segunda é
constituída pelos órgãos que administram os mistérios: o Bispo, o Padre, o
Diácono. A terceira é constituída por aqueles que através destes órgãos são
conduzidos à graça divina: Catecúmenos, Energúmenos e Penitentes. O termo da
vida hierárquica é a deificação, a transfiguração do homem em Deus. Só se
consegue através da ascensão mística e o seu cume é o não saber místico, a
muda contemplação do Uno.

Os livros de Dionísio seguem a direcção neoplatónica, adaptando-a o melhor


possível às exigên-

233

cias cristãs, mas servindo-se contudo da terminologia dos mistérios, em que se


comprazia o neoplatonismo. Traduzidos por João Erígena, tiveram na Idade Média
uma difusão larguíssima e constituíram o fundamento da mística e da angeologia
medieval.

§ 171. MÁXIMO CONFESSOR. JOÃO DAMASCENO

Nos escritos do falso Dionísio se inspira Máximo, dito o Confessor, nascido em


Constantinopla em 580, falecido em 622. Foi o maior adversário do chamado
monoteletismo segundo o qual todos os actos de Cristo dependeriam da sua
vontade divina, da qual a natureza humana seria o instrumento passivo. Esta
doutrina foi depois condenada no VI Concílio Ecuménico de 680; mas a luta contra
ela custou a Máximo perseguições e suplícios. Contudo, escreveu numerosas
obras quase todas na forma de comentários ou de recolhas de sentenças. Entre
essas obras estão os comentários ao Pseudo-Dionísio e a Gregório Nazianceno
(Ambígua in S. Gregorium theologum), opúsculos teológicos e várias recolhas ou
florilégios de sentenças. Segundo S. Máximo, o homem pode conhecer Deus não
em si próprio mas apenas através das coisas criadas de que Deus é a causa. Por
isso só pode chegar a determinar os atributos de Deus que as próprias coisas
revelam: a eternidade, a infinidade, a bondade, a sabedoria e assim
sucessivamente. No seu ser em si, Deus é inconcebível e inexprimível. As
próprias perfeições que nós lhes atribuímos, fundadas na consideração das coisas
criadas, estão abaixo da sua natureza e podem, por isso, ser quer negadas quer
afirmadas dele. A influência da teologia negativa do Pseudo-Dionísio é aqui
evidente. E é também evidente na doutrina mística de S. Máximo. Se voltarmos as
costas às paixões

234

que contrastam com a razão e nos elevarmos ao perfeito amor de Deus, podemos
conseguir um conhecimento de Deus que transcende a razão e o procedimento
discursivo e no qual Deus se revela imediatamente. Mas a este conhecimento de
Deus não se pode chegar com a capacidade da natureza humana, mas mercê da
graça divina, a qual, todavia, não age por si só, mas eleva e aperfeiçoa as
capacidades que são próprias do homem (Quaest. ad Thalassium, q. 59). O centro
das especulações teológicas de S. Máximo é o Deus-Homem. Para ele o Logos é
a razão e o fim último de todo o criado. A história do mundo efectua um duplo
processo: o da encarnação de Deus e o da divinização do homem. Este último só
se Pôde iniciar com a encarnação e com o f@n de restabelecer no homem a
imagem de Deus. Como princípio deste segundo processo, Cristo devia
necessariamente ser verdadeiro Deus e verdadeiro homem. As duas naturezas
nele não se misturam nem rompem a unidade da pessoa e dado que a cada uma
das duas naturezas está unida a capacidade de querer, em Cristo subsistiam duas
vontades, a divina e a humana, mas a vontade humana era levada à decisão e à
acção pela vontade divina (Patr. Grec.,
91.*, col. 48).

João Damasceno resume as características do último período da patrística e


conclui a própria patrística no seu ramo oriental, retomando e sistematizando os
resultados. Não se conhece o ano do seu nascimento. Sabe-se que pertencia a
uma família cristã do Damasco na qual era hereditário de pai para filho um ofício
público por conta do governo árabe; e João tinha de facto o nome árabe de
Mansur. Por volta de 730 começa a sua actividade de escritor teológico a favor do
culto das imagens que fora proibido alguns anos antes por Leão o Isáurico.
Quando João foi condenado em 754 por um concílio iconoclasta de
Constantinopla, havia já falecido.

235

é a Fonte do ConheA mais famosa das suas Obras primeira Ciniento,


que se divide em três partes. A ,uma introdução filosófica que segue de perto
parte é a lógica de Aristóteles. A segunda é a metafísica e mosta em
boa parte urna história das heresias, COIr sobre o Panário 'de Epifânio (@ 154). A
terceira é dedicada à exposição da fé Ortodoxa e com este @e (De fide ortodoxa)
foi traduzida título precisamente ndione de Pisa (falecido em 1194) para latim por
Burgu ndamentais da escolásticae tornou-se um dos textos fu de
urna

A obra de João Damasceno não passa compilação sendo a parte original


escassissima. Mas

tom o mérito de recolher e reordenar sistematicamente toda a especulação da


patrística grega que a Igreja reconheceu e fez sua. A sua obra é, portanto, uma
espécie de florilégio da própria patrística, unificada pelo critério da ortodoxia. João
fixa o principio da subordinação das ciências profanas à teologia e

afirma designadamente que a filosofia deve ser a

serva da teologia segundo uma expressão que devia, ser retomada n@


escolástica por Pedro Damião. Como serva da teologia, a filosofia fornece certos
pressupostos fundamentais da fé e em primeiro lugar a demonstração da
existência de Deus. A demonstração é retirada por João de outros esmitores, mas
a formulação que ele lhe dá é aquela de que partiram muitos escolásticos, entre
eles S. Tomás. Em primeiro lugar, tudo aquilo que é criado é mutável, dado que a
própria criação é mudança (do nada ao ser). Mas tudo aquilo que existe no mundo
sensível ou espiritual é mutável, portanto criado: supõe, portanto, um

criador, que não seja criado por sua vez mas incriado; e este é Deus. Em segundo
lugar, a conservação e

a duração das coisas supõem a existência de Deus, dado que elementos diversos
e contrastantes como o fogo, a água, a terra, o ar não poderiam permanecer
unidos sem destruir-se se não interviesse uma força omnipotente para mantê-los e
conservá-los juntos;

236
esta força omnipotente é Deus- Finalmente, a ordem

e a harmonia do mundo não podem ser produzidos pelo puro acaso e pressupõeM
um principio ordenador que é Deus (De fide orthod., 1, 3), Mas se a

existência de Deus pode ser alcançada pela razão humana, a sua essência é
incompreensível. "A divindade, diz joão (Ib., 1, 4), é indeterminável e incOm-

pode ser compreendido dela, a preensivel; e só isto preensibilidade".


sua indeterminabilidade e incOM trasta com a sua Podemos negar dela tudo o
que con r-lhe tudo aquilo

ao infinita e podemos atribui perfeiç~ inho que está


implícito em tal perfeição; mas o cairi -guro é o negativo porque todo O atributo
mais se positivo é desigual a Deus. Trata-se, como sc vê,

de noções familiares a toda a patrística oriental, que

masceno reproduz com as mesmas fórmulas. COM Da


ureza da alma igual procedimento aborda a nat humana que considera
naturalmente imortal, porque

o das substâncias incorpóreas e pertence ao númer não é


espirituais e é dotada. de livre, arbítrio. Isto

negado pela presciência divina, que tudo Prevê 'a'

não predetermina tudo: o mal depende unicamente do livre querer do homem (Ib.,
11, 30).

§ 172. ESCRITORES LATINOS

Os escritores latinos da última patrística caminham sobre os passos de S.


Agostinho e manifestam a mesma falta de originalidade especulativa dos seus

contemporâneos gregos e a mesma tendência para expor, coordenar e


sistematizar doutrinas já conhecidas.

o iniciador do semipelagianismo foi JO" Cassiano, nascido por volta do ano 360 na
Gália

em 435, autor de um escrito sobre ,meridional, falecido regras dos mosteiros e de


unia a organização e as tiones, que é a rela0o dos colóobra intitulada Colla

237

quios travados por ele e seu amigo Germano com eremitas egípcios.
Precisamente nesta obra, Cassiano considera a tese de que Deus ilumina e
reforça a boa vontade que nasce no homem, mas que esta vontade tem origem
apenas no esforço humano. Se o querer bem não basta ao homem, quando não é
socorrido pela graça divina, todavia esta graça só é dada àquele que tem boa
vontade. A tese de Cassiano difundiu-se largamente nos mosteiros do Sul da
Gália.

Claudino Mamerto, que foi padre em Viena no Delfinado e morreu por volta de
474, é autor de um escrito em três livros, De statu anin2ac, composto em 468 ou
469, no qual se defende a incorporeidade da alma humana. É impossível que a
ffima caia sob a categoria da quantidade, que é própria do corpo, dado que o seu
poder, memória, razão, vontade estão privados de quantidade, portanto são
incorpóreos. Ora estas faculdades da alma são a sua própria substância, dado
que toda a alma é razão, vontade, memória; segue-se daqui que toda a alma está
privada de quantidade e é incorpórea (De statu an.,
111, 4). A alma é a vida do corpo e está, portanto, presente em todas as partes do
corpo; mas está presente num modo que exclui a sua distribuição espacial porque
está toda em todo o corpo e toda em cada parte singular do corpo. A sua presença
no corpo é idêntica à de Deus no mundo. Portanto, a alma tem a mesma
incorporeidade de Deus. Trata-se de um resumo da demonstração agostiniana da
imaterialidade da alma.

Por volta de 430, Marciano Capela compunha o seu escrito De nií,Ptiis Mercurii et
Philologiae, um prospecto de todas as artes liberais, que subsistiu como um dos
textos fundamentais da erudição medieval. Mas a quem se deve a sobrevivência
de uma parte notável da filosofia grega na Idade Média é a Ãneio Mânho Torquato
Severino Boécio, nascido

238

em Roma por volta de 480, cônsul de Roma sob o

rei Teodorico, depois caído em desgraça deste, encarcerado e morto em 524.


Boécio empreendeu a tarefa de traduzir e interpretar todas as obras de Platão o
de Aristóteles e de demonstrar o seu acordo fundamental, mas só em pequena
parte conseguiu realizar este vasto projecto. Possuímos as versões dos Analíticos
1 e 11, dos Tópicos (de que se perdeu um

comentário), dos Elencos Sofísticos e do De interpretatione com dois comentários,


das Categorias com um comentário. Temos, além disso, o comentário à versão de
Mário Vitorino do Isagogo de Porfírio, a sua versão do Isagogo com um
comentário e outros trabalhos de lógica, Entre estes últimos são importantes os do
silogismo hipotético dado que neles Boécio, seguindo o próprio exemplo dos
Aristotélicos, insere a lógica estoica no tronco da lógica aristotélica; e foi por estes
escritos e pelos de Cícero que os escritores medievais tiveram conhecimento da
lógica estoica.
Mas a obra mais famosa de Boécio é o De consolatione philosophiae, que é
também pouco original porque resulta da utilização de várias fontes entro as quais
o Protréptico de Aristóteles, conhecido talvez através de algum escrito mais
recente que o

reproduzia. A obra está redigida em forma retórica o alegórica e a filosofia é


apresentada na figura de uma nobre dama que conforta Boécio e responde às
suas dúvidas. Nada de especificamente cristão se

encontra na obra e assim não faltou quem, em tempos recentes, acreditasse que
Boécio era pagão, ou então cristão só de nome, e que portanto fossem apócrifos
os opúsculos teológicos que nos chegaram dele (De Sancta Trinitate; Utrum Pater
et Filius et Spirictus Santus de divinitate substantialiter praedicentur; Quomodo
substantiae in eo quod sint bonae sint; De fide; Liber contra Nestorium et
Eutychen). Mas a autenticidade destes escritos, com excepção do

239

De fide, está comprovada, não só pelo testemunho dos códices, como pelo do
contemporâneo de Boécio, Cassiodoro, e portanto não pode ser posta em dúvida.
Além disso, se o De consolatione não tem qualquer referência aos mistérios do
cristianismo, está impregnado por aquele espírito platónico ou neoplatónico que os
escritores da patrística consideram substancialmente cristão. As traduções e os
escritos lógicos de Boécio asseguraram a sobrevivência da lógica aristotélica
mesmo no período da maior obscuridade medieval e fizeram dela um elemento
fundamental da cultura e do ensino medieval. Quanto à De consolatione, está
entre as obras mais famosas da Idade Média. Divide-se em 5 livros e é mista em
verso e prosa. O primeiro livro é uma espé cie de introdução na qual a filosofia se
apresenta a Boécio na forma de augusta matrona que vem trazer-lhe conforto na
triste condição em que se encontra, não por sua culpa, mas por ter querido seguir
a verdade
e a justiça. No segundo livro, a filosofia faz ver a Boécio que a felicidade não
consiste nos bens da fortuna, que são mutáveis e caducos e que, mesmo quando
se possuem, trazem consigo o perigo e o temor da sua perda. A felicidade deve
consistir numa condição que exclua qualquer temor deste género e compreenda
em si todos os bens que tornam o homem suficiente por si próprio. O terceiro livro
contém, precisamente, a teoria da felicidade assim compreendida. É evidente que
não pode consistir nem na riqueza, nem no poder, nem nas honras, nem na glória,
nem nos prazeres. Nenhum destes é o bem supremo, o bem melhor de todos e
que torna o homem auto-suficiente. Defende pois que a felicidade consiste no
próprio Deus, enquanto é o ser de que não se pode conceber melhor, portanto o
bem supremo. Deus é conjuntamente a origem de todas as coisas e o fundamento
da verdadeira felicidade humana (111, 10). O quarto livro examina em que

240

S. GREGÓRIO MAGNO
o mundo e modo Deus, como supremo bem, rege expõe uma teoria da
providência e do fado. A proVidência é o plano da ordem e da disposição do
mundo na inteligência divina; o fado é a própria ordem que por aquele plano
vem a ser determinada no mundo. "A providência é a própria razão (ratio)
divina que, constituída como supremo Princípio de tudo, dispõe todas as
coisas; o fado é a disposição inerente às coisas mutáveis, disposição pela qual a
Providência assinala a cada coisa a sua ordem própria" (IV, 6). A ordem do fado,
na multiplicidade dos seus desenvolvimentos temporais, depende pois da própria
razão de Deus. Os problemas que nascem deste conceito da Providência e do
fado são examinados no quinto livro. A Providência e o fado parecem excluir à
primeira vista a liberdade, mas em tal caso seria inútil para o homem a razão que
serve para julgar e escolher livremente. A resposta da filosofia ao problema é que,
se Deus prevê tudo, não prevê que tudo aconteça com necessidade. A previsão
de um acontecimento não implica que o acontecimento se deva realizar
necessariamente. Além disso, em Deus a previsão é inerente à natureza da sua
vida, que é uma eternidade privada de qualquer sucessão. Nele não existe nem o
passado nem o futuro e a sua ciência é o conhecimento total e simultâneo de
todos os acontecimentos que se verificam sucessivamente no tempo (V, 6). Nele
estão presentes também os

acontecimentos futuros, mas estão presentes no mesmo modo do seu


acontecimento; e aqueles que dependem do livre arbítrio estão presentes
precisamente na sua contingência (V, 6). A importância de Boécio para a cultura
medieval foi enorme. A De consolatione teve numerosíssimos comentários, as
obras lógicas introduziram a lógica aristotélica (como se disse) no ensino e na
cultura escolástica. Os seus opúsculos teológicos forneceram às discussões
teológicas medievais os conceitos, a terminologia e o método. Com

241

tudo isto, Boécio não assume o lugar de pensador original. É um hábil compilador
e uni retóricO CIO-

adaptar à língua e à mentalidade quente que soube seguindo a sombra de


latina a especulação grega, S. Agostinho de quem tomou a divisa: unir, nos

limites do possível, fé e razão,

Contemporâneo e amigo de Boécio mas de têmpera diferente foi Magno Aurélio


Cassiodoro, nascido cerca de 477 em Squillace na Calábria, ministro de Teodorico
e dos seus sucessores. Em 540 abandonou a corte e retirou-se para o mosteiro de
Vivario que fundara, para se dedicar à vida espiritual e à ciência. Morreu em 570.
De Cassiodoro têm grande interesse histórico as cartas que escreveu por conta de
Teo(10-

rico, cuja recolha leva o nome@de Variae, e a História dos godos de que só nos
chegou um estrato A obra mais importante, que escreveu no claustro, são as

Istitutiones divinarum et saecularium lectiOnum em

dois livros: o primeiro indica os autores que são estudados Corno guias das
disciplinas teológicas; o

segundo é uni manual das sete artes liberais. A obra

devia servir aos monges e foi na Idade Média um dos manuais mais usados. Num
breve escrito, De a?úma, Cassiodoro propõe-se demonstrar, nas pegadas de
Claudiano Mamerto, a incorporeidade da alma humana. O escrito reproduz os
argumentos de Mamerto que, por sua vez, como se viu, foram retirados de S.
Agostinho.

A última figura da patrística é verdadeiramente


O papa Gregório Magno, nascido em Roma provavelmente em 540, consagrado
pontifico em 590, falecido em 604. Documento da actividade papal de Gregório é o
Registrum epistolarum, colecção das suas cartas Oficiais. O Uber regulae
pastoralis estabelece a missão do pastor de almas. Os Diálogos tratam da vida e
dos mil@gres dos diferentes homens pios de Itália, o mais conhecido dos quais é
S. Bento de Nórcia. Gregório escreveu também uma exposição do livro de Job e

242

duas colectânias de homilias sobre os Evangelhos e sobro Ezequiel. A parte


especulativa de todos estes escritos é muito restrita. A importância de Gregório
está toda no ter procurado conservar, num período de decadência total da cultura,
as conquistas dos séculos passados. O tempo em que vivia parecia ter levado à
destruição total da cultura e de to-da a civilização e prenunciar o fim do mundo.
"As cidades estão despovoadas, escrevia Gregório (Dial., 111, 38), as aldeias
arrasadas, as igrejas queimadas, os mosteiros dos homens e das mulheres
destruidos, os campos abandonados pelos homens estão privados de quem os
cultive, a terra está deserta na solidão e nenhum proprietário a habita, as bestas
ocuparam os lugares onde antes se aglomeravam os homens. Não sei o que
acontece nas outras partes do mundo. Mas na terra em que vivemos, o fim do
mundo não só se anuncia, mas já se mostra em acto". A desolação de uma
civilização quebrada e despodaçada não se
podia descrever melhor. Nesta desolação, a cultura mantém-se viva apenas
nalguma figura solitária de erudito que a atinge nas obras do passado e a
transmite em rudes e desordenados compêndios.

Assim Isidoro de Sevilha, nascido cerca de 570 e falecido em 636, compôs uma
série de obras que deviam servir às escolas abaciais e episcopais onde se

formavam os clérigos. Estas obras têm um carácter de pura compilação: são


justapostas noções heterogéneas sem sequer uma tentativa de unificação. No De
natu@a rerum Isidoro expõe a astronomia e a medicina tiradas das Questioni
naturali de Séneca. No De ordine

creaturarum descreve a hierarquia dos seres espírituai,s, segundo o modelo


neoplatónico. Nas Sententiae faz a história da humanidade desde a criação e trata
da graça, das condições da vida terrestre do homem e de direito natural. A obra
mais célebre são os 20 livros de Origini ou Etimologias, uma espécie de
enciclopédia, onde está condensado todo o saber do

243

passado, das artes liberais à agricultura e às outras artes manuais. Grande parte
desta enciclopédia é destinada a investigações gramaticais, mas não se descura
aquilo que pode ser útil a uma educação filosófico-teológica. Há entremeados
estratos retirados das obras de escritores clássicos e dos padres da Igreja, em
particular de Gregório Magno. A filosofia é definida com os Estoicos como "a
ciência das coisas humanas e divinas" e é dividida em física, ética e lógica.
Através da obra de Isidoro, de Sevilha os resultados da ciência antiga eram salvos
do naufrágio e destinados a alimentar o trabalho intelectual dos séculos seguintes.

A mesma natureza têm os escritos de Boda o Venerável, nascido em 674 em


Inglaterra, morto em
735 no claustro de Jarrow. Boda forneceu ao catolicismo inglês o mesmo arsenal
intelectual que Isidoro forneceu ao espanhol. O seu De natura rerum, baseado
principalmente na obra de Plínio o Velho, dá-nos a mesma imagem do mundo que
o tratado homónimo de Isidoro. Boda é também autor de escritos gramaticais e
cronológicos e de uma História eclesiástica da gente dos Anglos que vai até 731.
Do ponto de vista filosófico, Boda inspira-se nas obras de S. Agostinho. Em
particular considera que a matéria do mundo contém as sementes de todas as
coisas e que delas, como de causas primordiais, se desenvolvem no curso do
tempo todos os seres do mundo.
O homem é um microcosmo; a história divide-se em partes correspondentes aos
sete dias da criação. Boda é um outro anel da cadeia através da qual a

cultura antiga se transmite à Idade Média.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 168. Sobre a história deste período: DAWSON, Les origines de I'Europe, Paris,
1934. Sobre os escritores gregos deste período: KRUMBACHER, Geschichte der
byzantinische Literatur, 2.1 edição, 1897.

244

§ 169. Os escritos de Sinésio in P. G.@ 66.o; de Nemésio in P. G.@ 40.o9 504-


817 (tradução latina do De natura hominis -a cargo de Holzinger, Leipzig, 1887);
de Procópio de Gaza in P. G., 87.1 p. I-III; de Eneias de Gaza e de Zacarias
Escolástico in P. G.@ 85.% 871-1004; de João FilipGno, edição teubneriana do
De mundi aeternitate, a cargo de Rabe, 1899, e do De opificio mundi, a cargo de
Reichardt, Leipzig, 1897; de Leõncio de Bizâncio in P. G., 86.o, p. I-U. - JAEGFR,
Nemesios von Nemesa, Berlim, 1914.

§ 170. As obras do falso Dionísio in P. G.@ 3.o-4.o. Sobre o carácter pseudo-


epigráfico dos escritos: STIGLMAYR in "Hist. Jahrb.", 1895, 253-273, 721-748;
KOCH, in "Theal. QuartaIschr.", 1895, 353-420, 1896, 290-298; Forschungen zur
christ. Litteratur-und Dogmengeschichte, 1, 2-3, Mogúncia, 1900. Sobre a doutrina
de Dionísio: M-ULLER, nos "Beitrãge" do Baeumker, XX, 3-4; RoQuEs, LIunivers
dionysien. Structure hiérarchique du monde selon le Pseudo-Denys, Paris, 1954
(com bibl.).

§ 171. Os escritos de Máximo Confessor in P. G.,


90.---91.1; de João Damasceno in P. G., 94.o-96.,. Sobre João Damasceno:
PRANTL, Gesch. der Logik, 1, 657-658; GRABMANN, Gesch. der scholast.
Methode, 1, 108-113; 11,
93 ss., 389 ss.

§ 172. Os escritos de Cassiano in P. L., 49.o-50.* e no Corpus de Viena, 13., e


17.1; os de Mamerto in P. L., 53.,, 697-780 e no Corpus de Viena, 11.1. o escrito
de Marciano Capella, ed. Eyssenhardt, 1866. As obras de Boécio in P. L.@ 63.---
64.o e no Corpus de Viena,
48.o e 67.o; os Opúsculos Teológicos, ao cuidado de STEWART e RAND,
Londres, 1926.

Sobre a autenticidade dos escritos teológicos e o testemunho de Cassiodoro:


USENER, Anecdoton Holderi, Bonn, 1877. Sobre a não autenticidade do De fide:
RAND, in "Jahrbucher für klass. Philol.", supl., 1901,
405-461. Sobre as obras lógicas de, Boécio: GRABMANN, Die Gesch. der
scholast. Methode, 1, 149-160; 11, 70-72; DCRR, The Propositional Logie of
Boethius, Amsterdão,
1951; VANN, The Wisdom of Boethius, Londres, 1952.

As obras de Cassiodoro in P. L., 69.---70.1; de Gregório Magno in P. L., 75.---79.1;


de IsidorG in P. L.,
81.---84.o; de Beda in P. L., 90-95.o.

Sobre todos: bibliografia especial in UEBERWEG-GEYFR, Die patr. und schol.


Philos., Berlim, 1928, p. 669-672; e in VASOLI, La filosofia medievale, Milão,
1961, p. 516 ss.

245

íNDICE

XII - A ESCOLA PERIPATÉPTICA ... ... 7


§ 86. Teofrasto, ... ... ... ... ... 7 §87. Outros discípulos de Aristóteles
8 §88. Estratão ... ... ... ... ... ... 9

Nota bibliográfica ... ... ... 10

XM-O ESTOICISMO ... ... ... ... ... 11

§89. Características da Filosofia pós-

-Aristotética ... ... ... ... ... 11 §90. A escola estoica ... ... ... ... 12
§91. Característica da Filosofia estoica 15 §92. A Lógica ... ... ... ...
... 16 §93. A Física ... ... ... ... ... 23 §94. A Psicologia ... ... ... ...
... 27 §95. A ntica ... ... ... ... ... ... 29

Nota bibliogrãfica ... ... ... 35

XIV -0 EPICURISMO ... ... ... ... ... 37

§ 96. Epicuro ... ... ... ... ... ... 37 § 97. A escola epicurista ... ... ...
38

247

§ 98. Características do epicurismo § 99. A Canónica ... ... ... ... § 100. A Física §
101. A Ética ... ... ... ... ...

Nata bibliográfica ... ...

XV-0 CEPTICISMO ... ... ... ...

§ 102. Características do cepticismo § 103. Pirro ... ... ... ... ... § 104. A
média Academia ... ... § 105. A nova Academia ... ... § 106. Os últimos
cépticos ... ... § 107. Sexto empírico ... ... ...

Nota bibliográfica ... ...

XVI --0 ECLECTISMO . . ... ... ...

§ 108. Características do Eclectismo § 109. o estoicismo Ecléctico ... § 110. o


Platanismo Eclético ... § iii. o Aristotelismo Ecléctico

248

§ 112. A Escola Cinica ... ... ... ... 73 § 113. Séneca ... ... ... ... ... ...
74 § 114. Musónio. Epicteto ... ... ... 77 § 115. Marco Aurélio ... ...
... ... 79
Nota bibliográfica ... ... ... 81

XVII --PRECURSORES DO NEOPLATO-

NISMO ... ... ... ... ... ... ... 83

§ 116. Características da Filosofia na

época Alexandrina ... ... ... 83 § 117. Os Neopitagóricos ... ... 84


§ 118. O Platonismo médio ... ... 86 § 119. A Filosofia greco-judaica
... 88 § 120. Filon de Alexandria ... ... ... 89

Nota bibliográfica ... ... ... 91

XVIII -0 NEOPLATONISMO ... ... ... .. 93

§ 121. A "Escolãstica" Neoplatónica ... 93 § 122. Plotino: Deus ... ... ... ... 95 §
123. Plotino: as emanações ... ... 97

249

§ 124. Plotino: a consciência e o retorno a Deus ... ... ... ... 98 §


125. A escola siriaca ... ... .. 1 100 § 126. Aescola de Atenas ... ...
... 101 § 127. A doutrina de Proclo ... ... 103

Nota bibliográfica ... ... ... 105

SEGUI-4DA PARTE

FILOSOFIA PATRISTICA

1-0 CRISTIANISMO E A FILOSOFIA 109

§ 128. A Filosofia grega e a tradição

cristã ... ... ... ... ... ... 109 § 129. Os evangelhos sinópticos ... ... 111 §
130. As "cartas" Paulinas ... ... 114 § 131. O quarto evangelho ... ...
... 116 § 132. A Filosofia cristã ... ... ... 117

Nota bibliográfica ... ... ... 119

250

A PATRISTICA DOS DOIS PR=IROS SÊCULOS ... ... ... ... ... ... 121

§133. Caracteristicas da Patristica ... 121


§134. Os padres Apologetas ... ... 123 §135. Justino ... ... ... ... ... ...
124 §136. Os outros padres Apologetas ... 126 §137. A Gnose .. . ... ...
... ... 130 §138. A polémica contra a gnose ... 134 §139. Tertuliano ...
... ... ... ... 139 §140. Tertuliano: as doutrinas ... ... 142 §141.
Apologetas latinas ... ... ... 146

Nota bibliográfioa ... ... ... 153

III -A FILOSOFIA PATRISTICA NOS SÊ-

cULOS M E IV ... ... ... ... ... 157

§142. Caractexisticas do período ... 157 §143. Clemente de Alexandria


... ... 158 §144. Origenes: vida e -escritos ... 161 §145. Orígenes: Fé @e
gnose ... ... 163 §146. Origenes: Deus e o mundo ... 165 §147.
Origenes: o destino do hom@em 169

251

§118. Sequazes e adversários de Orígenes ... ... ... ... ... ... 172 §149.
Basílio o grande ... ... ... 177 §150. Gregório Nazianceno ... ...
179 §151. Gregõrio de Nisa: a Teologia ... 181 §152. Gregório de Nisa: o
mundo e o

homem ... ... ... ... ... ... 185 §153. Gregório de Nisa: a Apoca-

tástasis ... ... ... ... ... 187 §154. Outros padres orientais do sé-

culo IV ... ... ... ... ... 190 §155. Os padres latinos do IV século 192

Nota bibliográfica ... ... ... 194

IV -SANTO AGOSTINHO ... ... ... ... 197

§ 156. A figura histórica ... ... ... 197 § 157. A vida ... ... ... ... ... ...
199 § 158. As obras ... ... ... ... ... 202 § 159. Características da
investigação

Agostiniana ... ... ... ... ... 204 § 160. O fim da procura Deus e a

alma ... ... ... ... ... ... 205

252

§ 161. A procura de Deus ... ... ... 208 § 162. O homem ... ... ... ...
... 211 § 163. O problema da criação e do
tempo ... ... ... ... ... ... 213 § 164. A polémica contra o mani-

queísmo ... ... ... ... ... 215 § 165. A polémica contra o donatismo
217 § 166. A polémica contra o pelagia-

nismo ... ... ... ... ... ... 219 § 167. A cidade de Deus ... ... ... 222

Nota bibliográfica ... ... ... 224

V-A CLTIMA PATRISTICA ... ... ... 227

§ 168. Decadência da patrística ... 227 § 169. Escritores gregos ...


... ... 228 § 170. Pseudo-Dionísio o ae@roípagita ... 232 § 171. Máximo
confessor. João Da-

masceno ... ... ... ... ... 234 § 172. Escritores latinos ... ... ... 237

Nota bibliográfica ... ... ... 244

253

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