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História Da Filosofia 2
História Da Filosofia 2
Segundo volume
Nicola Abbagnano
DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO:
ÂNGELO MIGUEL ABRANTES
HISTÓRIA DA FILOSOFIA
VOLUME II
XIII
A ESCOLA PERIPATÉTICA
§ 86. TEOFRASTO
Na obra Os caracteres, que provavelmente não nos chegou na sua forma original
mas numa redacção retocada, descreve com uma certa- argúcia trinta tipos de
caracteres morais (o importuno, o vaidoso, o descontente, o fanfarrão, etc.) Pode
dizer-se que Teofrasto aplicou à vida moral, nesta obra, o mesmo método
descritivo empregado por ele no estudo da Botânica.
sentiu pela música, à qual dedicou uma obra intitulada Harmatúa, de que nos
restam fragmentos. Foi também autor de biografias de filósofos, em particular de
Pitágoras e de Platão.
§ 88. ESTRATÃO
mento -dizia ele - não há sensação." Mas, por outro lado, tanto o pensamento
como a sensação não são mais que movimento e deste modo voltam a entrar no
mecanismo geral da natureza.
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 86. Para os escritos da ~Ia aristotélica em geral cfr. a colectânea Die Schule des
Aristoteles, Texte und Kommentar, editada por Wehrli em BasEcia-
]o
XIIII
O ESTOICISMO
§ 89. CARACTERíSTICAS DA FILOSOFIA PóS-ARISTOTÉLICA
11
a vida teorética como a mais alta manifestação da vida do homem e ele mesmo
encara e defende com a sua obra os interesses desta actividade, levando a sua
investigação a todos os ramos do cognoscível. Só a partir dos Cínicos o equilíbrio
harmónico entre ciência e virtude se rompe pela primeira vez: eles puseram o
acento no peso da virtude em detrimento da ciência e tornaram-se partidários de
um ideal moral propagandístico e popularucho, chegando a ser gravemente infiéis
aos ensinamentos do seu mestre.
Mas a rotura definitiva da harmonia da vida teorética a favor do segundo dos seus
termos, a virtude, encontra-se na filosofia pós-aristotélica. A fórmula socrática-a
virtude é ciência-é substituída pela fórmula a ciência é virtude. O objectivo
imediato e urgente é a busca de urna orientação moral, à qual deve estar
subordinada, como ao seu fim, a orientação teorética. O pensamento deve servir a
vida, não a vida o pensamento. Na nova fórmula, os termos que na antiga
encontravam a
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A produção literária de todos estes filósofos, que deve ter sido imensa, perdeu-se
e dela só nos restam fragmentos. Estes nem sempre são referidos a um autor
singular, mas amiúde aos Estoicos em geral, de modo que se torna muito difícil
distinguir, na massa das notícias que nos chegaram, a parte que corresponde a
cada um dos representantes do Estoicismo. Por isso se deve expor a doutrina
estoica no seu conjunto, mencionando, quando possível, as diferenças ou as
divergências entre os vários autores.
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donando-se a um desprezo total pela ciência. Mas contra ele, Erilo colocava o
sumo bem e o fim último da vida no conhecer, volvendo assim a Aristóteles. O
próprio fundador da escola, Zenão, considerava indispensável a ciência para a
conduta da vida, e embora não lho reconhecesse um valor autónomo, incluía-a
entre as condições fundamentais da virtude. A própria ciência parecia-lhe virtude e
as divisões da virtude eram para ele divisões da ciência. Tal foi indubitavelmente a
doutrina que prevaleceu no Estoicismo. "A filosofia -diz Séneca- é exercício de
virtude (studium virtutis), mas por meio da própria virtude, já que não pode haver
virtude sem exercício, nem exercício de virtude sem virtude" (Ep., 89).
Com o termo Lógica, adoptado pela primeira vez por Zenão, os Estoicos
expressavam a doutrina que tem por objecto os logoi ou discursos. Como ciência
dos discursos contínuos, a lógica é Retórica; como ciência dos discursos divididos
por perguntas e respostas, a lógica é dialéctica. Mais precisamente, a
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4,,
dialéctica é definida como "a ciência daquilo que é verdadeiro e daquilo que é
falso e daquilo que não. é nem verdadeiro nem falso." (Diog. L., VII,
42; Séneca, EP., 89). Com a expressão "aquilo que não é nem verdadeiro nem
falso", os Estoicos entendiam provavelmente os sofismas ou os paradoxos, sobre
cuja verdade ou falsidade não se pode decidir e cujo tratamento ocupa muito os
Estoicos que, neste ponto, seguem as pisadas dos Megáricos. Por sua vez, a
dialéctica divide-se em duas partes segundo trata das palavras ou das
coisas que as palavras significam: a que trata das palavras é a Gramática, a que
trata das coisas significadas é a Lógica em sentido próprio, a qual, portanto, tem
por objecto as representações, as preposições, os raciocínios e os sofismas (Diog.
L., VII, 43-44).
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e marcada por isso em conformidade com ele próprio, de modo que não poderia
nascer de um objecto diferente. Por outro lado, Zenão (segundo um testemunho
de Cioero, Acad., 11, 144) colocava o significado da representação catalética na
sua capacidade de prender ou compreender o objecto. Ele comparava a mão
aberta e os dedos estendidos à representação pura e simples; a mão contraída no
acto de agarrar, ao assentimento; o punho fechado à compreensão catalética.
Finalmente, as duas mãos apertadas uma sobre a outra, com grande força, eram
o símbolo da ciência, a qual dá a verdadeira e completa posse do objecto.
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evidência não contraditada, tal que solicito com toda a força o assentimento, o
qual, no entanto, permanece livre. Consequentemente, definiam a ciência como
"uma representação catalética ou um hábito imutável para acolher tais
representações, acompanhadas pelo raciocínio" (Diog. L., VII, 47); e consideravam
que não há ciência sem dialéctica, cabendo à dialéctica dirigir o raciocínio.
Todavia, segundo eles, os conceitos não têm nenhuma realidade objectiva: o real
é sempre individual e o universal subsiste apenas nas antecipações ou nos
conceitos. O Estoicismo é, pois, um nominalismo, segundo a expressão que foi
usada na Escolástica para designar a doutrina que nega a realidade do universal.
Os conceitos mais gerais, aqueles que Aristóteles designara com categorias, são
reduzidos pelos Estoicos a quatro: 1.* o sujeito
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O conceito mais elevado e mais extenso ou, como diziam, o género supremo, é o
conceito de ser, porquanto tudo, em certo modo, é, e não existe, portanto, um
conceito mais extenso do que este.
O conceito mais determinado é, pelo contrário, o de espécie que não tem outra
espécie abaixo de si, isto é, o do indivíduo, por exemplo de Sócrates (Diog. L., VII,
61). Outros Estoicos, pretendendo encontrar um conceito ainda mais extenso que
o de ser, recorreram ao de alguma coisa (aliquid) que pode compreender também
as coisas incorpóreas (Séneca, Ep., 58).
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tivcw sã% pelo contrário, aqueles que, mal se apresentam, tornam evidente a
recordação da coisa que foi primeiramente observada em ligação com ela o agora
não é manifesta como é, por exemplo, o fumo a respeito do fogo (Sexto E., Adv.
math., VIII,
148 ss.). Evidentemente, os Estoicos confiaram ao raciocínio demonstrativo a
construção da sua doutrina; por exemplo, a demonstração da existência da alma
ou da alma do mundo (que é Deus), feita a partir dos movimentos ou dos factos
que são imediatamente dados pela representação catalética, constitui um sinal
indicativo no sentido agora referido.
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próprio Deus: assim a sua doutrina é um rigoroso panteísmo.
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portanto, também os da alma, pois também ela é corpo" (Ep., 106). Os Estoicos só
admitiam quatro coisas incorpóreas: o significado, o vazio, o lugar e o tempo
(Sexto E., Adv. math., X, 218).
Como se vê, nem Deus existe entre as coisas incorpóreas. O próprio Deus, como
razão cósmica e causa de tudo, é corpo: mais precisamente é fogo. Mas não o
fogo de que o homem se serve, que destrói todas as coisas: é antes um sopro
cálido (pneuma) e vital que tudo conserva, alimenta, faz crescer e também
sustém. Mas este sopro ou espírito vital, este fogo animador é também ele corpo.
Chama-se razão seminal (logos spermatikós) do mundo porque contém em si as
razões seminais segundo as quais todas as coisas se geram. Como todas as
partes de um ser vivo nascem da semente, assim toda a parte do universo nasce
de uma mesma semente racional, ou razão seminal. Estas razões seminais são
frequentemente misturadas umas com as outras, mas, ao desenvolverem-se,
separam-se e dão origem a seres diferentes, e assim todas as coisas nascem da
unidade e se incluem na unidade. Contudo, a distinção entre as diferentes coisas
é perfeita; não existem no mundo duas coisas semelhantes, nem mesmo duas
folhas de erva.
O mundo foi gerado quando a matéria originária se diferenciou e se transformou
nos vários elementos. Ao condensar-se e tornar-se pesada, converteu-se em
terra; ao enrarecer, converteu-se em ar e logo em humidade e água; ao fazer-se
mais subtil, deu origem ao fogo. Destes quatro elementos compõem-se todas as
coisas: duas delas, o ar e o fogo são activas; as outras duas, terra e água, são
passivas. A esfera do fogo está acima da das estrelas fixas. O mundo é finito e
tem a forma de esfera. Em torno dele há o vazio, mas dentro não há vazio porque
é tudo unido e compacto (Diog. L., VII, 137 ss.).
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Disse-se já que, segundo os Estoicos, a alma entra no rol das coisas corpóreas
com base no princípio de que é corpo aquilo que age e que a alma age, Crisipo
servia-se da própria definição platónica da morte como "separação da alma do
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corpo" para tirar dela a confirmação da corporeidade da alma. "0 incorpóreo não
poderia separar-se do corpo nem unir-se com ele; mas a alma une-se ao corpo e
não se separa dele, portanto a alma é corpo" (Nemésio, De nat. nom., 2, 81). A
Alma humana é uma parte da Alma do mundo, isto é, de Deus; como Deus é fogo
ou sopro vivificante; e sobrevive à morte no seio da Alma do Mundo (Diog. L., VII,
156).
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para o princípio que opera e age no homem. Não faltou, porém, entre os mestres
do Stoa quem quisesse reconhecer a iniciativa do sage uma certa margem de
liberdade no confronto com a própria ordem cósmica. Crisipo distinguia entre as
causas perfeitas e fundamentais e as concomitantes ou próximas. As primeiras
agem com necessidade absoluta; as segundas podem sofrer a nossa influência; e
mesmo quando não a sofrem está no nosso poder secundá-las ou não. Assim
como quem dá um impulso a um cilindro lhe imprime o começo do movimento mas
não a capacidade de rodar, assim os objectos externos imprimem dentro de nós a
representação mas não determinam o assentimento que permanece em nosso
poder. Nestes limites, a vontade e a índole de cada um podem influir, em
conformidade com a ordem do todo, na escolha e na execução das acções
(Cícer., De fato,
41-43; Aulo G., Noet. att., VII, 2).
A Ética dos Estoicos é, substancialmente, uma teoria do uso prático da razão, isto
é, do uso da razão com o Em de estabelecer o acordo entre a natureza o o
homem. Zenão afirmava que o fim do homem é o acordo consigo próprio, isto é, o
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viver "segundo uma razão única e harmónica". "Ao acordo consigo próprio,
Cleanto acrescentou o acordo com a natureza e por isso define o fim do homem
como "a vida conforme a natureza". E Crisipo exprimo a mesma coisa
dizendo: "viver conforme com a experiência dos acontecimentos naturais" (Stobeo,
Ecl., 11, 76, 3). Mas parece que já Zenão tinha adoptado a fórmula do "viver
segundo a natureza" (Diog. L., VII, 87). E indubitavelmente esta é a máxima
fundamental da doutrina estoica.
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dever. outras nem próprias do dever nem contrárias ao dever. Próprias do dever
são aquelas que a razão aconselha efectuar, como honrar os pais, os irmãos, a
pátria e viver em harmonia com os amigos. Contra o dever são aquelas que a
razão aconselha a não fazer... Nem próprias do dever nem contrárias ao dever
são aquelas que a razão nem aconselha nem condena, como levantar uma palha,
pegar numa pena, etc.". Como nos refere Cícero, (De offi, 111, 14), os Estoicos
distinguiam o dever recto, que é perfeito e absoluto e não pode encontrar-se em
mais ninguém a não ser no sage, e os deveres "intermédios" que são comuns a
todos e muitas vezes só são realizados com a ajuda da boa índole e de uma certa
instrução. Esta prevalência da noção do dever levou os Estoicos a uma doutrina
típica da sua Ética: a justificação do suced-io. Efectivamente, quando as
condições contrárias ao cumprimento do dever prevalecem sobre as favoráveis, o
sage tem o dever de abandonar a vida mesmo se está no cume da felicidade
(Cicer., De fin., 111, 60). Sabemos que muitos mestres do Stoa seguiram este
preceito que é, na realidade, a consequência da sua noção do dever.
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taleza sobre os obstáculos, a justiça sobre a distribuição dos bens (Stobeo, Ecl.,
11, 7, 60). Mas, na realidade, existe uma só virtude e só a possui integralmente
aquele que sabe entender e compreender e cumprir o dever, isto é, só o sage
(Diog. L., VII, 126).
Entre a virtude e o vício não há, portanto, meio termo. Como um pedaço de
madeira ou é direito
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outras não, como os seus contrários. Existem, pois, além dos bens (a virtude),
outras coisas que não são bens mas que, todavia, são também dignos de ser
escolhidos. E para indicar o conjunto dos bens e de tais coisas os Estoicos
utilizaram a palavra valor (axia). Valor é, portanto, "todo o contributo para uma vida
conforme com a razão" (Diog. L., VII, 105) ou em geral "aquilo que é digno de
escolha" (Cicer., De fin., 111, 6, 20). Com esta noção de valor fazia o seu ingresso
na Ética um conceito que devia revelar-se de grande importância na história desta
disciplina.
Faz parte integrante da Ética estoica a negação total do, valor da emoção
(pathos). Efectivamente, ela não tem qualquer função na economia geral do
cosmos que providenciou de modo perfeito na conservação e no bem dos seres
vivos, dando aos animais o instinto e ao homem a razão. Pelo contrário, as
emoções não são provocadas por forças ou situações naturais: são opiniões ou
juízos ditados pela ligeireza, por isso fenómenos de estultícia e de ignorância que
constituem em "julgar saber o que se não sabe" (Cicer., Tuse., IV, 26). Os
Estoicos distinguiam quatro emoções fundamentais às quais reduziam todas as
outras: duas originadas pelos bens presuntivos: o desejo dos bens futuros e a
alegria dos bens presentes; duas originadas pelos males presuntivos: o temor
dos males futuros e a aflição dos males presentes. A três destas emoções, e
precisamente ao desejo, à alegria e ao temor faziam corresponder três estados
normais próprios do sage, isto é, respectivamente a vontade, a alegria e a
prudência que são estados de calma e de equilíbrio racional. Nenhum estado
normal corresponde, pelo contrário, no sapiente àquilo que é aflição para o estulto:
efectivamente, para ele não existem males de que deva doer-se, dado que
conhece a perfeição do universo. As emoções são, portanto,
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verdadeiras e típicas doenças que afectam o estulto mas de que o sage está
imune. A condição do sage, é, pois, a indiferença a toda a emoção, a apatia.
A ordem racional do mundo, do mesmo modo que dirige a vida de todo o homem
singular, dirige o da comunidade humana. Aquilo que se chama justiça é a acção,
nesta comunidade, da própria razão divina. A lei que se inspira na razão divina é a
lei natural da comunidade humana: uma lei superior à reconhecida pelos
diferentes povos da terra, perfeita, portanto não susceptível de correcções ou
melhoramentos. Cícero, numa página famosa, exprimia assim o conceito desta lei:
"Por certo, existe uma verdadeira lei, a da recta razão conforme com a natureza,
difundida entre todos, constante, eterna, que com o seu mandado convida ao
dever e com a sua proibição dissuade do engano... Não será diferente em Roma
ou em Atenas ou hoje ou amanhã, mas como única, eterna, imutável lei governará
todos os povos e em todos os tempos" "Lactâncio, Div. inst., VI, 8, 6-9; Cicer., De
rep., 111, 33). Estes conceitos constituem e constituirão a base da teoria do direito
natural que, por muitos séculos, foi um fundamento de toda a doutrina do direito.
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NOTA BIBLIOGRáFICA
§ 91. Sobre a doutrina estoica em geral: BARTI1, Díe Stoa, Stutgard, 1908; 4.1 ed.
1922; BRÉMER, Chrí- &ippe, Paris, 1910; 2.1 ed. 1951; POFILENZ, Die Stoa,
Gottingen, 1948; 2., ed. 1954; J. BRUN, Le stoicisme, Paris, 1958.
§ 92. Sobre a lógica estóioa: B. MATrS, StoiC Logic, BerkeIey (Cal.), 1953; W
KNEALE. e M. KNEALE, The Development of Logic, Oxford, 1962, cap. 3.
§ 93. Sobre a física: J. MOREAu, LIâme du monde de Platon aux Stoiciens, Paris,
1939; S. SAMBURSKI, The Physies of lhe Stoics, Londres, 1959,
§ Sobre -a ética: RIETH, Grundbegriffe der stoischen Ethik, B@rlim, 1934; KIRK,
The Moral Philosophy of lhe Stoics, New Brunswick, 1951.
35
XIV
O EPICURISMO
§ 96. EPICURO
Aos 18 anos, Epicuro dirigiu-se a Atenas. Não está demonstrado que tenha
frequentado as lições de Aristóteles e de Xenócrates que era naquele tempo o
chefe da Academia. Começou a sua actividade de mestre aos 32 anos, primeiro
em Mitilene e em Lâmpsaco, e alguns anos depois em Atenas (307-06 a.C.), onde
permaneceu até à sua morte (271-70).
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A escola tinha a sua sede no jardim (kepos) de Epicuro pelo que os seus
sequazes foram chamados "filósofos do jardim". A autoridade de Epicuro sobre os
seus discípulos era muito grande. Como as outras escolas, o Epicurismo
constituía uma associação de carácter religioso, mas a divindade a que era
dedicada esta associação era o próprio fundador da escola. "As grandes almas
epicuristas -diz Séneca (Ep., 6) - não as formou a doutrina mas a assídua
companhia de Epicuro". Tanto durante a sua vida como depois da sua morte, lhe
tributaram os discípulos e os amigos honras quase divinas e procuraram modelar
a sua conduta pelo seu exemplo. "Comporta-te sempre como se Epicuro te visse"-
era o preceito fundamental da escola (Séneca, Ep., 25).
Epicuro foi autor de numerosos escritos, cerca de 300. Restam-nos apenas três
cartas conservadas por Diógenes Laércio (livro X): a primeira, a Heródoto, é uma
breve exposição de física; a segunda, a Meneceu, é de conteúdo ético; e a
terceira, a Pitocles, de atribuição duvidosa, trata de questões metereológicas.
Diógenes Laércio conservou-nos também as Máximas capitais e o Testamento.
Num manuscrito vaticano foi encontrada uma colecção de Sentenças e nos
papiros de Herculano fragmentos da obra Sobre a Natureza.
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Tito Lucrécio Caro deixou-nos no seu De rerum natura não só uma obra de grande
valor poético mas também uma exposição fiel do Epicurismo. Pouco se sabe da
vida de Lucrécio. Nasceu provavelmente em 96 a.C. e morreu em 55 -a.C.. A
notícia de que estava louco, transmitida pelos escritores cristãos, e que havia
escrito o seu poema nos intervalos da loucura, ode ser uma invenção devida à
39
EPICURO
dos deuses, demonstrando que pela sua natureza feliz, não se ocupam das obras
humanas. 2.' Libertar os homens do temor da morte, demonstrando que ela não é
nada para o homem: "quando nós existimos, não existe a morte; quando a morte
existe, não existimos nós" (Ep. a Men., 125).
3.' Demonstrar a acessibilidade do limite do prazer, isto é, o alcançar fácil do
próprio prazer; 4.' Demonstrar a distância do limite do mal, isto é, a brevidade e a
provisoriedade da dor.
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O erro, que não pode subsistir nas sensações e nos conceitos, pode subsistir, em
contravertida, na opinião, a qual é verdadeira se é confirmada pelos testemunhos
dos sentidos ou pelo menos não contraditada por tal testemunho; é falsa no caso
contrário. Atendo-se aos fenómenos, tal como se nos manifestam mercê das
sensações, pode-se, com o raciocínio, estender o conhecimento até às coisas que
para a própria sensação são desconhecidas; mas a regra fundamental do
raciocínio é, neste caso, o mais rigoroso acordo com os fenómenos percebidos.
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recolher "não só os sinais que nos aparecem ou que nós próprios experimentamos
mas também as coisas que aparecem na experiência de outrem e que por ela
podem ser tomadas" (1b., 32, 14). E também nisto se afastavam dos Estoicos que
reduziam a experiência ao aqui e agora percebido e instituíam, como se viu, a
força inteira do raciocínio sobre este aqui e agora.
Acerca da linguagem Epicuro formulava, pela primeira vez, uma doutrina que foi
retomada nos tempos modernos: a linguagem é um produto natural porque é a
expressão sonora das emoções que unem os homens em determinadas
condições (Diog. L., X, 75-76). É a tese que foi defendida no século XVIII por
Rousseau.
Como os Estoicos, Epicuro afirma que tudo aquilo que existe é corpo porque só o
corpo pode agir ou sofrer uma acção. De incorpóreo, admite apenas o vazio, mas
o vazio não age nem sofre alguma coisa, apenas permite aos corpos moverem-se
através de si próprio (Ep. ad Her., 67). Tudo aquilo
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que age ou sofre é corpo e todo o nascimento ou morte é mais que a agregação
ou a desagregação dos corpos. Por isso Epicuro admite com Demócrito que nada
vem do nada e que cada corpo é composto de corpúsculos indivisíveis (átomos)
que se movem no vazio.
Um mundo é, segundo Epicuro, "um pedaço de céu que compreende astros, terras
e todos os fenómenos, recortado no infinito". Os mundos são infinitos; eles estão
sujeitos ao nascimento e à morte. Todos se formam devido ao movimento dos
átomos no vazio infinito. Mas Epicuro, ao considerar que os átomos caem no vazio
em linha recta e com
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mais perfeita e, portanto, a única digna de ser racional. Eles mantêm uns com os
outros uma amizade análoga à humana; e habitam os espaços entre mundo e
mundo (ilitermundi). Mas não se preocupam nem com o mundo nem com os
homens. Todo o cuidado deste género seria contrário à sua perfeita beatitude,
dado que lhes imporia uma obrigação e eles não têm obrigações, antes vivem
livres e felizes. Por isso, o motivo pelo qual o sage os honra não é o temor, mas a
admiração da sua excelência.
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48
Mas, por isto, a doutrina de Epicuro não se pode confundir com um vulgar
hedonismo. Opor-se-ia a tal hedonismo o culto da amizade que foi característico
da doutrina e da conduta prática dos Epicuristas. "De todas as coisas que a
sageza nos oferece para a felicidade da vida, a maior é de longe a aquisição da
amizade" (Max. cap., 27). A amizade nasceu do útil, mas ela é um bem por si
mesma. O amigo não é aquele que procura sempre o útil, nem quem nunca o une
à amizade, dado que o primeiro considera a amizade como um tráfico de
vantagens, o segundo destrói a confiada esperança de ajuda que constitui grande
parto da amizade (Sentenças Vaticanas, 39, 34, Bignone).
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A atitude do epicurista para com os homens em geral é definida pela máxima: "É
não só mais belo, mas também mais agradável fazer o bem do que recebê-lo" (fr.
544). Nesta máxima o prazer surge de facto como fundamento e a justificação da
solidariedade entre todos os homens. E, na verdade, Diógenes Laércio
testemunha-nos o amor de Epicuro pelos seus pais, a sua fidelidade aos amigos,
o seu sentido de solidariedade humana (X, 9).
Quanto à vida política, Epicuro reconhecia as vantagens que ela traz aos homens,
obrigando-os a acatar as leis que os impedem de se prejudicarem mutuamente.
Mas aconselhava ao sage que permanecesse alheio à vida política. O seu preceito
é: "vive escondido" (fr. 551). A ambição política só pode ser fonte de perturbaçã o
e, portanto, obstáculo para o alcançar da ataraxia.
NOTA BIBLIOGRÁFICA
50
§ 99. Sobre Epicuro em geral: BAILEY, The Greek Atomists and Epicurus, Oxford,
1928; N. W. DE WITT, Epicurus and his Philosophy, Minneapolis, 1954.
x_V
O CEPTICISMO
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O cepticismo não é uma escola mas a orientação seguida na Grécia por três
escolas diferentes: La a escola de Pirro de Elis, no tempo de Alexandre Magno;
2.a a média e nova Academia; Ia os Cépticos posteriores, a começar por
Enesidemo, os quais defendem um retorno ao pirronismo.
§ 103. PIRRO
Pirro, natural de Elis, pôde ainda conhecer talvez na sua cidade, a dialéctica da
escola eleo-megárica (§ 33) que, em muitos aspectos, é um antecedente do
Cepticismo. Participou na campanha de Alexandre Magno no Oriente juntamente
com o
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democritiano Anaxarco. Fundou na pátria uma escola que depois da sua morte
teve pouca duração. Viveu na pobreza e morreu muito velho cerca de
270 a.C.. Não deixou escritos. Conhecemos as suas doutrinas através da
exposição de Diógenes Laércio (IX, 61, 108) e pelos fragmentos de Sílloi (ou
versos burlescos) com os quais o seu discípulo Tímon de Fliunte (329-230 a.C.
aproximadamente) expôs e defendeu a sua doutrina.
Esta suspensão leva a admitir que todas as coisas são indiferentes para o homem
e evita que se conceda qualquer preferência a uma mais do que a outra. Assim a
suspensão do juízo é já por si mesma ataraxia, ausência de qualquer perturbação
ou paixão. Para ser coerente, Pirro, que não tinha fé nos sentidos, andava em
redor sem olhar e sem se esquivar de nada, afrontando os carros se os
encontrava, precipícios, cães, etc. (Diog. L., IX, 62).
Timón de Fliunte rebatia a doutrina do mestre, considerando que, para ser feliz, o
homem devia conhecer três coisas: La qual é a natureza das coisas; 2 a que
posição é necessário tomar frente a elas; Ia que consequências resultarão dessa
atitude. Mas as coisas mostram-se todas igualmente indife-
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Aquele que iniciou este novo rumo da Academia foi Arquesilau de Pitane (315/14-
241/40) que sucedeu a Cratete na direcção da escola. Arquesilau não escreveu
nada, de modo que conhecemos as suas doutrinas só indirectamente.
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com segurança. Por Sexto Empírico sabemos que as suas críticas principais foram
dirigidas ao seu contemporâneo Zenão de Citium, o fundador da Stoa. Arquesilau
negava que existisse uma representação catalética porque negava que existisse
uma representação que não possa tornar-se falsa. Por isso a função do sage não
é a de dar o assentimento a uma representação qualquer, mas abster-se de
qualquer assentimento. Quanto à acção, ela não tem necessidade da
representação catalética. Arquesilau sustentava que a regra daquilo que se deve
escolher ou evitar é o bom senso ou a equidade (eulogia) que é a base da sageza
(Sexto E., Adv. math., VII, 153 ss.).
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59
Segundo Sexto Empírico, Enesidemo admitia dez modos (tropi) para chegar à
suspensão do juízo.
O primeiro é a diferença entre os animais, pela qual não podemos julgar entre as
nossas representações e as dos animais, porque derivam de diferentes
constituições corpóreas. O segundo é a diferença entre os homens; o terceiro o da
diferença entre as sensações; o quarto, o das circunstâncias, isto é, das diferentes
disposições humanas. O quinto é o das posições, dos intervalos e dos lugares. O
sexto, o das misturas. O sétimo, o da quantidade e composições dos objectos. O
oitavo, o da relação das coisas entre si e com o sujeito que as julga. O nono, o da
continuidade ou raridade dos encontros entre o sujeito que julga e os objectos. O
décimo, o da educação, dos costumes, das leis, das crenças, e das opiniões
dogmáticas. Cada um destes modos estabelece uma diversidade nos
conhecimentos humanos
60
A Agripa (de quem não se sabe nada), atribui Sexto Empírico outros cinco modos
para alcançar a suspensão do juízo, modos de carácter dialéctico, úteis sobretudo
para refutar as opiniões dos dogmáticos: 1.' o modo da discordância, que consiste
em mostrar um dissídio insanável entre as opiniões dos filósofos e, por
conseguinte, a impossibilidade de escolher entre elas, 2.' o modo que consiste em
reconhecer que toda a prova parte de princípios que, por ;sua vez, exigem prova e
assim até ao infinito; 3.O o modo da relação, pelo qual nós conhecemos o objecto
relativamente a nós, e não qual é em si próprio; 4.' o modo da hipótese, pelo qual
se vê que toda a demonstração se funda em princípios que não se demonstram,
mas se admitem por convenção; 5.O o círculo vicioso (dialelo), pelo qual se
assume como demonstrado precisamente aquilo que se deve demonstrar: o que
demonstra a impossibilidade da demonstração.
Outros Cépticos, sempre segundo Sexto Empírico (Pirr. hyp., 1, 178), reduziam
todos estes modos a dois modos fundamentais de suspensão, isto é,
demonstrando que não se pode compreender nada nem por si nem na base de
outro. Que nada se
61
62
Na vida prática o céptico deve, segundo Sexto, seguir os fenómenos. Por isso são
quatro os seus guias fundamentais: as indicações que a natureza lhe dá através
dos sentidos, as necessidades do corpo, a tradição das leis e dos costumes e as
regras das
63
NOTA BIBLIOGRÁFICA
Para a doutrina, as fontes mais importantes são CICERO, Opp. filos., e STOBEO,
Eclogae, lI, 39, 20 ss..
§ 107. As obras de Sexto Empírico foram editadas por Bekker, Berlim, 1892. Os
Elementos Pirrõ-
64
65
XVI
O ECLECTISMO
67
A orientação ecléctica apareceu pela primeira vez na escola estoica, dominou por
largo tempo na Academia e foi acolhida também pela escola peripatética. Só os
Epicuristas se mantiveram estranhos ao Eclectismo, permanecendo fiéis à
doutrina do mestre.
68
dor de Aristóteles o inspirou-se em muitos pontos na sua doutrina. Com efeito,
afirmou, com Aristóteles e contra a doutrina clássica do Estoicismo, a eternidade
do mundo. Distinguiu na alma três partes: vegetativa, sensitiva e racional,
seguindo também nisto Aristóteles e separando nitidamente a parte racional das
outras.
69
Mas a própria certeza incondicionada que Filon excluía foi admitida pelo seu
sucessor, Antíoco de Ascalona, com o qual a Academia abandona definitivamente
o cepticismo para inclinar-se para o eclectismo. Antíoco (morto em 68 a.C.) foi
também mestre de Cícero que ouviu as suas lições no Inverno de 79-78 e entrou
em polémica literária com Ffion. Sem uma certeza absoluta não é possível,
segundo Antíoco, nem sequer estabelecer graus de probabilidade, dado que a
probabilidade se pode julgar somente pelo fundamento da verdade e não se pode
admitir aquela se não se está na posse desta. Como critério da verdade ele
colocava o acordo entre todos os verdadeiros filósofos e procurou demonstrar
esse acordo entre as doutrinas académicas, peripatéticas e estoicas, só o
conseguindo à custa de graves deformações.
Ao eclectismo de Antíoco liga-se o de Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) que deve
a sua importância, não à originalidade do pensamento, mas à sua capacidade de
expor de forma clara e brilhante as doutrinas dos filósofos gregos contemporâneos
ou precedentes. O próprio Cícero reconhece a sua dependência das fontes gregas
dizendo das suas obras filosóficas numa carta Ad Attico (XII, 52, 3): "custam-me
pouca fadiga, porque de meu incluo só as palavras que, não me faltam". Dos
principais escritos de Cícero, o De republica e o De legibus têm como fontes
Panézio e Antíoco; o Hortênsio que se perdeu inspirava-se no Protréptico de
Aristóteles; os Academia, em Antíoco; o De finibus no mesmo Antíoco e, quanto
ao epicurismo, em Zenão e Filodemo. As Tusculanae dependem dos escritos do
académico Crantore, de Panézio, de Antíoco, do estoico Crisipo, de Posidónio. O
De natura deorum, de várias fontes estoicas e epicuristas. O De oficies, de
Panézio; os outros esciftos menores, de fontes análogas.
70
Como Antíoco, Cícero admite como critério da verdade o consenso comum dos
filósofos e explica tal consenso com a presença em todos os homens de noções
inatas, semelhantes às antecipações do Estoicismo. Na física, rejeita a concepção
mecânica dos Epicuristas. Que o mundo possa formar-se, devido a forças cegas,
parece-lhe tão impossível como, por exemplo, obter os Annales de Énnio atirando
ao chão desordenadamente um grande número de letras alfabéticas. Mas quanto
a resolver de modo positivo os problemas da física, Ocero considera isso
impossível e assim adopta, neste ponto, uma posição céptica. Na ética, -afirma o
valor da virtude por si própria, mas oscila entre a doutrina estoica e a académico-
peripatética. Afirma a existência de Deus e a liberdade e a imortalidade da alma,
mas evita afrontar os problemas metafísicos inerentes a tais afirmações.
71
72
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1
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CICERO
Na primeira metade do século 111 a.C., Bión de Boristene iniciou aquele género
literário que foi depois a característica da escola cínica, a diatribe. As diatribes
eram prédicas morais contra as opiniões e os costumes dominantes; prédicas
enriquecidas com múltiplos artifícios retóricos destinados a aumentar a sua
eficácia.
Menipo de Gadara, pelos meados do século 111 a.C., nas suas sátiras escritas
em prosa mas intercaladas de versos, representou cenas burlescas
73
Dión, chamado Crisóstomo, que viveu nos tempos do imperador Trajano, surge
corno um propagandista popular das doutrinas tradicionais dos Cínicos.
A escola cínica, que se reduziu a uma simples pregação moral sem fundamento
filosófico, não sofreu a influência dos sucessivos desenvolvimentos da
especulação e sobreviveu até ao século V d.C.
§ 113. SÉNECA
74
Séneca insiste no carácter prático da filosofia: "a filosofia -escreve- ensina a fazer,
não a dizem (F-p., 20, 2). O sage é para ele o "educador do género humano" (Ep.,
89, 13). Por isso descura a lógica e só se ocupa da física de um ponto de vista
moral e religioso. Com efeito, a ignorância dos fenómenos físicos é a causa
fundamental dos temores do homem e a física elimina tais temores. Além da
grandeza do mundo e da divindade ensina-nos
75
76
Musónio Rufo de Volsínio na Etrúria, foi expulso por Nero em 65 d.C. Regressou
seguidamente a Roma e esteve em relações pessoais com o imperador Tito. Dos
seus discursos conservou-nos numerosos fragmentos o Florilégio de Stobeo.
Musónio acentua ainda mais que Séneca o carácter prático e moralizante da
filosofia. O filósofo é o educador e o médico dos homens; deve curá-los das
paixões que são as suas doenças. Para este fim, não há necessidade de muita
ciência, mas apenas de muita virtude. Musónio inclina-se, por esta desvalorização
da actividade teorética, para o cinismo e isto retira-lhe toda a importância
especulativa.
Frígia. Nasceu cerca do ano 50 d.C., era escravo de Epafrodito, liberto de Nero.
Libertado, viveu em Roma até 92-93 d.C. quando o édito de Domi-
77
ciano baniu de Roma todos os filósofos. Fundou então em Nicópolis no Epiro uma
escola à qual pertenceu entre outros Flávio Arriano que recolheu as suas lições.
Dos oito livros de Diatribes ou Dissertações em que Arriano recolheu tais lições,
restam quatro. Além disto, ficou-nos um Manual que é uma espécie de breve
catecismo moral.
78
Com Marco Aurélio o estoicismo sobe ao trono imperial de Roma. Nascido em 121
d.C., de nobre família, Marco Aurélio foi adoptado pelo imperador Antonino e
sucedeu-lhe em 161. Morreu em
180 durante uma campanha militar. Deixou um escrito composto de aforismos
diversos, intitulado Colóquios consigo próprio ou Recordações, em 12 livros.
Como Séneca, afasta-se aqui e ali da doutrina tradicional dos Estoicos; destaca-se
principalmente no que respeita ao conceito da alma, no qual renega o
materialismo estoico. Considera que o homem é composto de três princípios: o
corpo, a alma material que é o princípio motor do corpo, e a inteligência. Como
todos os elementos do organismo humano são partes dos correspondentes
elementos do universo, assim o intelecto humano é parte do mundo. O génio que
Zeus deu a cada
79
(IV, 21). Nisto Marco Aurélio é mais fiel que o platonizante Séneca à doutrina
original do Estoicismo.
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 109. Os dados antigos sobre o Estoicísmo Ecléctico estão recolhidos in
ZELLER, 111, 1, p. 57 ss. Os fragmentos de Panézio foram recolhidas por
FoWLER (juntamente com os de Ecatón), Bonn, 1885. Funda- mental sobre a
média Stoa a obra de SCHMEKEL, Die Philosophie der mittleren Stoa in ihrem
geschichtliche Zusammenhange, Berlim, 1892.
§ 110. Os dados antigos sobre Filon e Antíoco, ín ZELLER, EI, 1, p. 609 ss. As
obras de Cícero tiveram numerosas edições críticas: ver a da Biblioteca
Teubneriana de Leipzig.
Sobre Terêncio Varrão: ZELLER, 111, 1, p. 692 ss. As obras filosóficas de Varrão
perderam-se e -apenas restam alguns fragmentos. A distinção das três teologias
foi-nos conservada por S. AGOSTINHo, De civitate Dei, VI, 5.
Sobre estes peripatéticos: ZELLER, M, 1, 641 ss. Sobre a lógica: PRANTL, 1, 528
ss.
81
§ 113. Os dados antigos sobra Séneza foram recolhidos ín ZELLER, HI, 1, p. 719
ss. Das obras de Séneca ver as edições Teubnerianas de Leipzig. Sobre Séneca:
MARCHESI, Seneca, Messina, 1920; MARTIjA, Les moralistes sous Z'Empire
romain, Paris, 1896.
§ 115. Os <lados antigos sobre Márcio Aurélio estão recolhidos in ZELLER, 111,
1, p. 781 ss. As Recordações (In semetipsum, livros XII) foram editados
criticamente por SchenkI, Leipzig, 1913 (Bibl. Teubneriana). Trad. italiana:
ORNATO, MORICCA, MAZZANTINI.
82
XVIII
PRECURSORES DO NEOPLATONISMO
83
§ 117. OS NEOPITAGóRICOS
84
85
ou divindade, e a dualidade que se identifica com a matéria, segundo a doutrina
dos antigos académicos.
86
Plutarco considera impossível fazer derivar todo o mundo de uma única causa. Se
Deus fosse a única causa do mundo, não deveria existir o mal; tem pois de se
admitir, ao lado de Deus, um outro princípio que seja a causa do mal no mundo
como Deus é a causa do bem. Este princípio não é a matéria, mas uma força
indeterminada e indeterminável que é subjugada por Deus no acto de criação,
mas se mantém de modo permanente no mundo como causa de toda a
imperfeição e de todo o mal. Deus como puro bem é assim situado absolutamente
acima do mundo; e a sua relação com o mundo é estabelecida pelas divindades
intermédias ou demónios com cuja acção Plutarco explica e justifica as crenças da
religião popular dos gregos e das outras nações.
87
Se, por uma parte, a filosofia grega estende a mão neste período à sabedoria
oriental, por outra a sabedoria oriental estende a mão à filosofia grega,
solidarizando-se com ela na mesma tentativa de fundir juntamente os resultados
da especulação grega e da tradição religiosa do Oriente.
Na Palestina, no século 1 da era cristã, a seita dos Essénios, de que nos falam
Ffion, Josefo e Plínio, mostra uma profunda afinidade com o Neopitagorismo de tal
modo que faz supor que ela se tenha desenvolvido sob a influência dos mistérios
órfico-pitagóricos. Esta seita era constituída por várias comunidades submetidas a
uma disciplina severa e a um certo número de regras ascéticas. Do ponto de vista
doutrinal, interpretavam alegó-
88
MARCO AURÉLIO
Terreno muito favorável para a fusão dos elementos doutrinais gregos o orientais
foi Alexandria. Alguns fragmentos de Aristóbulo (cerca de 150 a.C.) procuram
demonstrar que já Pitágoras e Platão tinham conhecido os escritos do antigo
Testamento.
89
O Logos foi o mediador da criação do mundo. Antes de criar o mundo, Deus criou
um modelo perfeito, não sensível, incorpóreo, e semelhante a ele, que é
precisamente o Logos (De mundi opif., 4). E sei-vindo-se dele criou o mundo.
Criou-o ser-
90
O fim do homem é a sua união com Deus. Para chegar a Deus o homem deve, em
primeiro lugar, libertar-se da sensibilidade e dos vínculos com o corpo, deve
libertar-se também da razão e esperar a graça divina que o eleve até à visão de
Deus. Só se tem esta visão quando o homem saiu fora de si mesmo (estasi) e
está debaixo de urna espécie de furor dionisíaco, como ébrio e enlouquecido.
Trata-se de uma condição que não se pode exprimir porque é sobrehumana e
misteriosa (De ebrietate, 261-62).
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 118. Dados antigos sobre Plutarco, recolhidos em ZELLER, 111, 2, 176 ss. As
obras de Plutarco encontram-se em numerosas edições: ver a de 7 volumes a
cargo de vários autores na Biblioteca Teubneriana de Leipzig. D. BAssi, Il pensiero
moraZe, peda, gogico, religioso di Plutarco, Florença, 1927; P. THÉ-
91
§ 119. Noticias antigas sobre os Essénios In ZELLER, 111, 2, p. 308 ss. Sobre os
manuscritos do Mar Morto: DuPONT-SOMMER, Observations sur le Commentaire
d'Habacuc découvert près de Ia Mer morte, Paris,
1950; ID., Observations sur le Manuel de Discipline découvert près de Ia Mer
Morte' Paris, 1951; MILLAR BURROWS, The Dead Sea, Scrolls, Nova Iorque,
1956 (que contém também a tradução inglesa dos textos encontrados).
§ 120. Das obras de Ffion as edições são: Mangey, Londres, 1742 (com tradução
latina); Richter, Leipzig, 1828-30; Cohn e WendIand, Berlim, 1896 ss.
Commentaire allégorique des saintes lois, texto, tradução francesa e comentário
de BRÉHIER, Paris, 1909.
Sobre F'ílDn: BRÉHIER, Les idées philos. et relig. de Ph. d'Alex., Paris, 1908;
GOODENOUCri, The Politics of Philo. Juda6us, New Haven, 1938 (com bibl.);
WOLFSON, Philo. Foundations of Religious Philosophy in Judai.sm, Christianity
and Islam, Cambridge (Mass.),
2 vols., 1947.
92
XVIII
O NEOPLATONISMO
93
compreender, explicar e defender tal verdade; para este fim se utiliza a filosofia
que melhor se presta, neste caso o Platonismo.
Por isso o Neoplatonismo não tem nada que ver com o Platonismo original e
autêntico. É, pelo contrário, uma espécie de escolástica que utiliza o Platonismo,
em mistura confusa com elementos doutrinais heterogéneos com o fim de justificar
uma atitude religiosa. O facto de Proclo, o representante mais sabedor da
escolástica neoplatónica, ter considerado apócrifas a República e as Leis de
Platão, que se prestam mal, pelo seu dominante interesse político, a serem
utilizadas para os fins de uma apologética religiosa, constitui uma prova evidente
da descontinuidade que existe entre o Platonismo e Neoplatonismo e da
impossibilidade de utilizar este último como elemento de compreensão histórica do
Platonismo originário.
Fundador do Neoplatonismo é António Sacca, que viveu entro o ano 175 e o 242
d.C. sem deixar nenhum escrito. Era braceiro (donde o sobrenome de "Sacca");
seguidamente ensinou em Alexandria a filosofia platónica.
Entro os seus alunos contaram-se Orígenes, que não se deve confundir com o
Orígenes cristão (§ 144), e Cássio Longino (cerca de 213-273), retórico o filólogo,
sob o nome do qual nos chegou o escrito Do sublime, que não obstante não é seu.
94
95
Além disso, a definição de Deus como unidade não tem nada a ver com o
monoteísmo. Conformemente a toda a tradição grega, Plotino defende
explicitamente o politeísmo como consequência necessária do poder infinito da
divindade. "Não restringir a divindade a um único ser, fazê-la ver múltiplice: como
ela própria se manifesta, eis o que significa conhecer o poder da divindade, capaz,
ainda que permanecendo aquele que é , de criar uma multiplicidade de deuses
que se ligam com ele, existem para ele, existem para ele e vêm dele" (11, 9, 9).
Para uma divindade concebida deste modo a criação não pode ser um acto de
vontade, o que implicaria uma mudança na essência divina. A criação acontece de
tal maneira que Deus permanece imóvel no centro dela, sem querê-la nem
consenti-Ia. Ela é um processo de emanação, semelhante àquele pelo qual a luz
se difunde em torno do corpo luminoso ou o calor em torno do corpo cálido ou,
melhor, semelhante ao perfume que emana do corpo odorífero (V, 1, 6). Utilizando
a noção aristotélica de Deus como "pensamento do pensamento" (§ 78), Plotino
interpreta a própria emanação como o pensamento que o Uno pensa de si.
O Uno, pensando-se, dá origem ao Intelecto, que é a sua imagem (V, 4, 2); o
Intelecto, pensando-se, dá origem à Alma, que é a imagem do Intelecto (IV, 8, 3).
Passando rapidamente de imagem a imagem, a emanação @ também um
processo de degradação. Aquilo que emana do Uno é inferior ao Uno, assim como
a luz é menos luminosa do que a fonte donde emana e a onda de perfume é
menos intensa à medida que se afasta do corpo odorífero. Os seres que emanam
de Deus não podem--- por-
96
séneca
tanto, ter nem a sua perfeição nem a sua unidade, mas tendem cada vez mais
para a imperfeição e a multiplicidade.
97
Dominado como está pela Alma universal, o mundo tem uma ordem e uma beleza
perfeitas. Para descobrir esta ordem é necessário olhar o todo no qual encontra o
seu posto e a sua função cada parte singular, ainda aquela aparentemente
imperfeita ou má. O próprio vício tem uma função útil ao todo porque se torna um
exemplo da força das leis e acaba por produzir consequências úteis (111, 2, 5).
98
póreos; com a temperança liberta-se das paixões; com a coragem não teme
separar-se do corpo; com a justiça faz que comande em si apenas a razão e o
Intelecto (1, 2, 3). A virtude como purificação constitui, contudo, apenas uma
condição libertadora do itinerário interior em direcção a Deus. Na música, no amor
e na filosofia, a alma encontra os caminhos positivos do retorno a Deus.
99
100
e das fórmulas propiciatórias. A divindade, diz ele, não pode ser persuadida a agir
pelo nosso pensamento porque a perfeição não é levada a agir por aquilo que é
imperfeito. Ela age, em contrapartida, em virtude dos símbolos o das fórmulas
que ela própria sugeriu aos homens. O Neoplatonismo inclinava-se assim com
Jâmblico para uma teologia mítica que se prestava a justificar todas as
superstições das crenças pagãs.
Jâmblico -teve numerosos discípulos que, pelas notícias que nos chegaram,
aparecem desprovidos de qualquer originalidade. Quando o imperador Juliano,
(dito o Apóstada) quis dar nova vida ao paganismo para pô-lo como fundamento
da vida política do Império, recorreu precisamente à filosofia neoplatónica na
forma que Jâmblico lhe tinha dado.
Dos escritos do seu discípulo Sinésio de Cirena (nasceu por volta do ano 370) que
em 411 se torna bispo de Ptolomaida (§ 169) parece que ela expusera a doutrina
neoplatónica segundo os ensinamentos de Jâmblico.
§ 126. A ESCOLA DE ATENAS
101
O seu último representante pode dizer-se que foi Severino Boécio (§ 172).
Boécio traduziu e comentou os principais escritos do Organon aristotélico e a
Introdução às categorias de Porfírio. Escreveu também um Comentário desta obra
e outros trabalhos de lógica, matemática e música. No cárcere escreveu depois a
obra que o tornou famoso durante toda a Idade Média, A consolação da filosofia.
Esta obra não é original, mas resulta da utilização de várias fontes, entre as quais
o Protréptico de Aris-
102
103
semelhança com ela, permanece aderido a ela e por sua vez se afasta dela; 3.' o
retorno ou conversão (epistrophé) do ser derivado à sua causa originária. Aquele
processo de emanação, que Plotino ilustrava em termos metafópicos com o
exemplo da luz e do odor, é justificado por Proclo com esta dialéctica da relação
entre a causa e a coisa produzida, pela qual ao mesmo tempo se enlaçam, se
separam e voltam a unir-se num processo circular no qual o princípio e o fim
coincidem.
Além das faculdades assinaladas na alma por Platão e Aristóteles, Proclo admite
nela uma faculdade superior a todas, o Uno na alma, que corresponde ao Uno no
mundo e é a faculdade apta a
104
NOTA BIBLIOGRÁFICA
121. Os dados antigos sobre Amónio Sacca, Orígenes e Longino foram recolhidos
por ZELLER, HI,
2, p. 500 ss. Para Plotino a fonte principal das notícias biográficas é a Vida de
Plotino de PORFIRIO.
As obras de Plotino foram editadas por Creuzer e Moser, O.@ffürd, 1835, ed.
reproduzida na de Firmin-Didot, París, 1855; Volkmann, Leipzig, 1883-84; na
colecção "A Universidade de França" apareceu a edição e a tradução de
BRÉHIER em 6 vdls., 1924-38. Traduções italianas: CILENTo, 4 vols., Bari, 1947-
49; FAGGIN, Milão, 1947-48. As fontes para a biografla de Porfirio, são a sua Vida
de Plotino e o artigo do Léxico de Suidas. A Vida de Plotino está publicada na
edição plotiniana de Creuzer e M<)ser, o Co~tário às categorias de Aristóteles nos
"Comentários gregos de Aristóteles" da Academia de Berlim, IV, 1. Para as
edições das obras de Porfirio, ver UEBERWEG-PRAECHTER, p. 598.
105
§ 126. Os dados antigos sobre Proclo, foram recolhidos na Vida escrita pelo seu
disc@pulo M_ARiNo, ed. Boisonade, Leipzig, 1814. Sobre os outros Neoplatónios
da escola de Atenas os dados antigos foram recolhidos em ZELLER, 111, 2, p.
805 ss. (Plutareo),
890 ss. (Simplício, Damáscio, Boécio).
§ 127. As obras de Proclo foram publicadas por Cousín, 6 vols. Paris, 1820-25;
existem também numerosas edições de Leipzig de obras separadas. As obras de
Boécio está(> na Patr. Latina de MIGNE, vol. 63 e 64. Os Elementos de Teologia
de Proclo foram traduzidos para italiano por LoSAceo, Lanciano, 1927. G.
MARTANO, L'uomo e Dio in Proclo, Nápoles, 1952, com bibliografia.
106
SEGUNDA PARTE
FILOSOFIA PATRISTICA
O CRISTIANISMO E A FILOSOFIA
A Grécia foi o berço verdadeiro da filosofia. Pela primeira vez no mundo ocidental,
compreendeu e realizou a filosofia como investigação racional, isto é, como
investigação autónoma que em si mesma encontra o fundamento e a lei do seu
desenvolvimento. A filosofia grega demonstrou que a filosofia só pode ser procura
e a procura liberdade. A liberdade implica que a disciplina, o ponto de partida, o
fim e o método da investigação sejam justificados e postos por essa mesma
investigação, e não aceites independentemente dela.
109
cristianismo. Aos fariseus que lhe diziam: "Tu alegas de ti mesmo e, portanto, o
teu testemunho não tem valor", Jesus respondeu: "Eu não estou só, somos eu e
aquele que me enviou (S. João, VIII, 13, 16), apoiando assim o valor da sua
doutrina no testemunho do Pai. A religião parece, portanto, nos seus próprios
princípios, excluir a investigação e consistir antes numa atitude oposta, a da
aceitação de uma verdade testemunhada do alto, independentemente de qualquer
investigação. Todavia, logo que o homem se interroga quanto ao significado da
verdade revelada e tenta saber porque caminho pode realmente compreendê-la e
fazer dela carne da sua carne e sangue do seu sangue, renasce a exigência da
investigação. Reconhecida a verdade no seu valor absoluto, tal como é revelada e
testemunhada por um poder transcendente, imediatamente se impõe a cada
homem a exigência de se aproximar dela e de a compreender no seu significado
autêntico para com ela e dela viver verdadeiramente. Esta exigência só pode -ser
satisfeita pela investigação filosófica. A investigação renasce, pois, da própria
religiosidade, pela necessidade que o homem religioso tem de se aproximar, tanto
quanto lhe for possível, da verdade revelada. Renasce com uma tarefa específica,
que lhe é imposta pela natureza de tal verdade e pelas possibilidades que pode
oferecer à sua efectiva compreensão pelo homem; mas renasce com todas as
características, próprias da sua natureza, e com força tanto maior quanto maior for
o valor que se atribui à verdade em que se acredita e se pretende fazer sua.
Da religião cristã nasceu assim a filosofia cristã. Esta tomou também como
objectivo conduzir o homem à compreensão da verdade revelada por Cristo, de
modo a que ele possa realizar o seu autêntico significado. Os instrumentos
indispensáveis para este fim encontrou-os a filosofia cristã, prontos a
lio
A pregação de Cristo, por um lado, está ligada à tradição hebraica e, por outro,
renova-a profundamente. A tradição hebraica ensinava a crença num Deus único,
puro espírito e garantia da ordem moral no mundo dos homens; um Deus que
escolheu como seu povo eleito o povo hebraico, a quem ampara nas dificuldades
como pune inexoravelmente nas aberrações religiosas e nas suas imperfeições
morais. A última tradição hebraica, a dos profetas, anunciava, depois de um
período de desventuras e tremendas punições, o renovo do povo hebreu. e o seu
ressurgimento como potência material e moral, que faria dele o instrumento directo
de Deus para o seu domínio no mundo.
O reino de Deus anunciado por Jesus não exige uma transformação política: "Dai
a César o que é
111
o seu próprio eu, o que esta total entrega a Deus implica para o homem disse-o
Jesus no Sermão da Montanha. O reino de Deus é para os pobres de espírito,
para os que sofrem, para os pacíficos, para aqueles que desejam a justiça, para
os que são perseguidos. Isto impõe ao homem o amor. À lei do Velho Testamento:
"Olho por olho, dente por dente", Jesus opõe a nova lei cristã: "Amai os vossos
inimigos, e orai pelos que vos perseguem e caluniam, para que sejais filhos do
vosso Pai que está nos céus, o qual faz nascer o sol para os bons e os maus e dá
a chuva aos justos e aos injustos. Pois se amais apenas os que vos amam que
mérito tereis? Não fazem os publicanos 1 o mesmo? E se estimais ape-
Na pregação de Jesus, Deus mais do que Senhor é o Pai dos homens; mais do
que executor daquela justiça inflexível e vingativa que lhe atribuíam os hebreus, é
fonte inesgotável de amor, que aponta a todos os homens como primeiro e
fundamental dever. A comunidade humana que deverá surgir da pregação de
Cristo será , portanto, uma comunidade fundada no amor. Mesmo a relação entre
o homem e Deus deve ser uma relação de amor. O homem deve abandonar-se à
providência do seu Pai celeste: "Procurai antes de mais nada o reino de Deus e
a sua justiça e tudo o restante vos será concedido" (S* Mateus, 6, 33). Mas este
abandono não deve ser uma expectativa inerte. "Velai-disse Jesus porque não
sabeis o dia em que chegará o vosso Senhor. (S. Mateus, 24, 42). Esperar pelo
reino de Deus significa preparar-se incessantemente para ele. Não é concedido
sem esforço: "Pedi e recebereis; procurai e encontrareis; batei e as portas se
abrirão" (S. Lucas, 11, 9). Todo o ensinamento de Jesus pretende transmitir a
necessidade desta expectativa activa e preparatória, desta procura sem a qual
não é possível tornarmo-nos dignos do reino de Deus. Por isso Jesus se volta de
preferência para os humildes e para os que sofrem ("Eu fui enviado apenas às
ovelhas tresmalhadas da casa de Israel", S. Mateus, 15, 24), enquanto considera
que o seu apelo ressoa em vão naqueles que estão contentes consigo e nada têm
que pedir à vida": "É mais fácil passar um camelo pelo cu de uma agulha do que
entrar um rico no reino de Deus" (S. Mateus, 19,
24). Só pela dor, pela inquietação e pela necessidade nasce no homem a
aspiração da justiça, da paz e do amor, que conduz ao reino de Deus.
113
3.* O conceito da graça como acção salvadora de Deus através da fé. "Não
acontece com o pecado o que sucede com a graça; pois se pelo pecado de um
pereceram muitos, muito mais abundou a graça de Deus e o dom da graça de um
homem: Jesus Cristo" (Rom., V, 15-16).
114
de todas" (Cor., 1, 13, 7, 13). Este acentuar o valor da caridade e a posição central
que o conceito de vocação ocupa nas epístolas paulinas demonstram com toda a
evidência que o cristianismo se tornou uma comunidade histórica, cuja vida
consiste em procurar compreender os ensinamentos e a pessoa de Cristo e
realizar o seu significado.
116
em mim, para que todos sejam uma única coisa, como tu, 6 Pai, estás em mim e
eu em ti, para que eles estejam em nós e todo o mundo acredite que tu me
enviaste". (17, 20-21).
117
118
119
120
121
Era natural, segundo este ponto de vista, que se tentasse, por uni lado interpretar
o cristianismo mediante conceitos tirados da filosofia grega, para assim o ligar a
esta filosofia e, por outro, -reconduzir o significado da filosofia grega ao próprio
cristianismo. Esta dupla tentativa que, na realidade, é uma só, constitui a essência
da elaboração doutrinal que o cristianismo sustentou nos primeiros séculos da
nossa era.
122
que vai de 450 até ao final da Patrística, é mar. cada pela reelaboração e
sistematização das doutrinas já formuladas.
Os Padres Apostólicos do século 1 são os autores das Cartas que ilustram alguns
pontos da doutrina cristã e regulam questões de ordem prática e religiosa. Tais
são: o autor da chamada Carta de Bernabé, Gemente Romano, Hermes, Inácio de
Antioquia e Policarpo. Mas estes escritores não encaram ainda problemas
filosóficos.
123
tração são usados conceitos platónicos. A ordem do mundo, tal como aparece nos
céus e na terra, faz pensar que tudo se move por necessidade e que Deus é
aquele que move e governa tudo. Aristides insiste na inacessibilidade e
inefabilidade da essência divina, para contrapor o monoteísmo rigoroso do
cristianismo às crenças dos bárbaros que adoraram os elementos materiais, às
dos gregos que atribuíram aos seus deuses fraquezas e paixões humanas, o às
dos judeus que, admitindo embora um só Deus, servem melhor os anjos do que a
Ele. Mas a primeira grande figura de Padre apologeta e o verdadeiro fundador da
Patrística é Justino.
§ 135. JUSTINO
124
fon refere uma discussão que ocorreu em Éfeso entre Justino e Trifon e visa, em
substância, demonstrar que a pregação de Cristo realiza e completa os
ensinamentos do Velho Testamento.
125
O homem foi criado por Deus, livre de fazer o bem e o mal. Se o homem não
tivesse liberdade, não teria mérito no bem nem culpa no mal realizado (Apol.
prima, 43). A alma do homem é imortal, apenas por obra de Deus: sem esta, com
a morte volveria ao nada (Dial., 6). Mas o próprio corpo está destinado a participar
na imortalidade da alma. Efectivam-ente, deverá vir, segundo o anúncio dos
profetas, uma segunda parusia de Cristo, e desta vez ele virá em glória,
acompanhado pela legião dos anjos, ressuscitará os corpos e revestirá com
imortalidade os dos justos, ao mesmo tempo que condenará ao fogo eterno os dos
iníquos (Apol. prima, 52).
126
Deus. Ele deve desprezar a matéria, da qual se servem os demónios para perdê-
lo, e voltar-se exclusivamente para a vida espiritual (Ib., 16).
127
divindades, não poderiam existir no mesmo lugar porque, sendo todas incriadas,
não poderiam cair sob um tipo ou modelo comum. Deveriam, pois, existir em
lugares diferentes. Mas não podem estar em lugares diferentes porque o espaço
para lá do mundo é a sede de um único Deus que é essência supramundana e
assim não há espaço para as outras divindades. Uma outra divindade poderia
existir num outro mundo ou em torno de um outro mundo; mas, em tal caso, essa
não chegaria até nós e, pela limitação da sua esfera de acção, não seria a
verdadeira divindade (Supp1. pro crist., 8). Por isso, os próprios poetas e filósofos
gregos conheceram a unidade de Deus, ainda que o claro, seguro e completo
conhecimento dele só nos tenha sido dado através dos profetas (1b., 7). O Logos
gerado pelo Pai e coeterno com ele, é o modelo, a força criadora de todas as
coisas criadas, enquanto o Espírito Santo é um eflúvio de Deus, semelhante a um
raio de sol (1b., 24).
Teófilo de Antioquia foi bispo desta cidade e deixou três livros Ad Autolico, que
são três escritos independentes, o terceiro dos quais foi composto à volta de 181-
182 e os primeiros dois pouco antes. Ao desafio de Autólico: "Mostra-nos o teu
Deus", Teófilo responde: "Mostra-me o teu homem e eu te mostrarei o meu Deus."
Deus só é visto por aqueles que têm bem abertos os olhos da alma. Como não se
pode ver a face do homem no espelho coberto de ferrugem, também o homem
quando está no pecado não pode ver a Deus (Ad. Autol., 1, 2). À pergunta: "Tu
que o vês, descreve-me o aspecto de Deus", Teófilo responde: "Escuta-me; a
beleza de Deus é indizível e inefável e não se pode ver com os olhos corpóreos"
(1b.,
1, 3). Deus que é eterno e, portanto, não gerado e imutável, é o criador de tudo:
tudo ele fez do nada, para que através da sua obra se compreen-
128
desse a sua grandeza. Por isso, ele torna-se visível através da, sua criação.
"Como a alma humana que é invisível aos homens é conhecida através dos
movimentos do corpo, também Deus, que não pode ser visto pelos olhos
humanos, pode ser visto e conhecido através da sua providência e das suas
obras." (Ib., 1, 5). A via da criação divina é o Logos Deus, mediante o Logos e a
sabedoria, criou todas as coisas (1b., 1, 7). O Logos é o conselheiro de Deus, a
sua mente e a sua prudência (1b., 11, 22). Pela primeira vez, Teófilo usou a
palavra trindade (trias) para indicar a distinção das pessoas divinas. Os três dias
da criação da luz de que fala o Génesis "são imagens da trindade, de Deus, do
seu Verbo, da sua sabedoria" (1b.,
11, 15).
Sob o nome de Justino chegou até nós uma Carta a Diogneto que certamente não
pertence a Justino pela diversidade do estilo e da doutrina.
O autor responde às dúvidas levantadas por um pagão que se interessa pelo
cristianismo. A composição da Carta não deve ter sido antes de 160, e
provavelmente nos finais do século 11. O autor responde a três dúvidas de
Diogneto. Ao culto pagão e judaico, a Carta contrapõe o culto cristão do Deus
invisível e criador. A religião cristã não é uma descoberta humana mas uma
revelação divina: Deus mandou o seu Filho, a eterna Verdade e a eterna Palavra,
a ensinar aos homens a verdadeira religião; e o Filho de Deus veio ao mundo não
como senhor mas como salvador @ libertador e encaminhou-nos para a salvação
pelo amor (Ep. ad Diog., 7).
129
trina sobre a alma humana (cap. 1-2) o sobre os princípios fundamentais das
coisas (cap. 3-10). A obra pertence provavelmente ao final do século II.
§ 137. A GNOSE
A obra dos Padres Apologetas não tem de se dirigir apenas contra os inimigos
externos do cristianismo, pagãos e hebreus, mas ainda contra os inimigos
internos, contra as tendências e as seitas que, na tentativa de interpretarem a
mensagem original do cristianismo, falseavam o seu espírito e a letra,
contaminando-o com elementos e motivos heterogéneos. O maior perigo contra a
unidade espiritual do cristianismo foi representado nos primeiros séculos pelas
seitas gnósticas que se difundiram amplamente no Oriente e no Ocidente,
especialmente nas esferas dos doutos e produziram uma rica o variada literatura.
No entanto, esta literatura, com excepção de poucos escritos, conservados em
traduções coptas, perdeu-se o só a conhecemos através dos passos citados pelos
Padres Apologetas que os refutaram.
130
Basilides, que ensinou em Alexandria entre 120 e 140, escreveu uni Evangelho,
um Comentário e Salmos. A sua doutrina é conhecida através das obras de
Clemente de Alexandria (Stromata) e das refutações de Irineu (Contra os
heréticos) e de Hipólito (Filosofemi). Para Basilides, a fé é uma entidade real, uma
coisa, deposta por Deus no espírito dos eleitos, isto é, dos predestinados para a
salvação. Levado pela necessidade de explicar o mal no mundo, Basilides foi
levado a admitir dois princípios da realidade, um como causa do bem, o outro do
mal: a luz e as trevas. Postas em contacto entre si, as trevas procuraram unir-se à
luz e participar dela, enquanto a luz, por sua vez, permanecia retraindo-se sem
absorver as trevas. As trevas originaram assim uma aparência e uma imagem da
luz, que é o mundo, no qual o bem se encontra por isso em quantidade
desprezível e o mal predomina. Esta concepção de Basilides é muito semelhante
à maniqueia, mas não admite, como esta, a luta entre os dois princípios.
131
132
Abismo, e procurou subir até às regiões superiores do Pleroma. Mas isso não foi
avante e neste esforço inútil deu origem ao mundo, o qual por isto apresenta as
características de um esforço incompleto o os erros e o pranto que o esforço
fracassado produz. "Da ansiedade e da inquietação nasceram as trevas; do temor
e da ignorância nasceram a malícia e a perversão; da tristeza e do pranto as
Contes de água e os mares. Cristo foi mandado pelo Pai Primeiro, inviolável no
seu mistério, a restaurar o equilíbrio desfeito pelo louco sonho da Sabedoria"
'Tertuliano, Contra os Valentinianos, 2). Deste modo, o universo nasce na rebelião
infecunda do cone Sophia que dá origem à obra plasmadora de um Demiurgo.
Valentino repartia o género humano em três categorias: a massa dos homens
carnais, o conjunto dos psíquicos e a casta dos espirituais (pneumáticos). Os
primeiros estão destinados à perdição; os segundos podem salvar-se à custa de
um esforço; aos privilegiados basta, para alcançar a beatitude, a gnose, isto é, o
conhecimento dos mistérios divinos.
133
uma corpórea que é o princípio do mal, a outra luminosa que é o bem. O homem
atinge a sua perfeição com um tríplice selo, isto é, abstendo-se da comida animal
e dos discursos impuros (signaculum oris), da propriedade e do trabalho
(signaculum manus) e do matrimónio e do concubinato (signaculum sinus). O
maniqueísmo encontrou o seu grande e implacável adversário em S. Agostinho.
134
A verdadeira gnose é, segundo Irineu, aquela que foi transmitida pelos apóstolos
da Igreja. Mas esta gnose não tem a pretensão de superar os limites do homem,
como a falsa gnose dos heréticos. Deus é incompreensível e impensável. Todos
os nossos conceitos -são para ele inadequados. Ele é intelecto, mas não é
semelhante ao nosso intelecto. É luz, mas não é semelhante à nossa luz. "É
melhor não saber nada, mas crer em Deus e permanecer no amor de Deus, do
que arriscar-se a perdê-lo com investigações subtis" (Adv. haer., 11, 28, 3).
O que podemos saber de Deus, podemos conhecê-lo somente por revelação: sem
Deus não se pode conhecer Deus. E a revelação de Deus acontece também
através do mundo que é obra dele, como reconheceram até os melhores entre os
pagãos. A mais grave blasfémia dos gnósticos é, segundo Irineu, (11, 1, 1) a tese
de que o criador do mundo não é o próprio Deus, mas uma emanação sua. Que
Deus tenha tido necessidade de seres intermédios para a criação do mundo,
significaria que ele não teria tido a capacidade de levar a efeito aquilo que tinha
projectado. Contra a doutrina gnóstica de que o Logos e o Espírito Santo são
eones subordinados, Irineu afirma a igualdade de essência e de dignidade entre o
Filho, o Espírito Santo e o Pai. O Filho de Deus não teve princípio. pois que ele é
desde a eternidade coexistente com o Pai, nem teve princípio o Espírito Santo, o
qual como o Filho está desde a eternidade junto ao Pai. Nem se pode admitir a
emanação do Filho e do
135
Pelo que se refere ao homem, Irineu, contra a distinção gnóstica de corpo, alma e
espírito, afirma que o homem resulta da alma e do corpo e que o espírito é apenas
a capacidade da alma pela qual o homem se torna perfeito e se constitui à
imagem de Deus. Mas para que o espírito transfigure e santifique a figura humana
é necessária a acção do Espírito Santo. A alma humana está entre a carne o o
espírito e pode voltar-se para uma ou para outro. Apenas pela fé e pelo temor de
Deus, o homem participa do espírito e se eleva à vida divina (V, 9, 1). Mas os
gnósticos erram ao afirmar que a carne em si é um mal ou a origem do mal.
O corpo como a alma é uma criação divina e não pode, portanto, implicar o mal na
sua natureza (IV,
37, 1). A origem do mal está antes no abuso da liberdade e, por isso, deriva não
da natureza, mas do homem e da sua escolha (IV, 37, 6). O bem consiste em
obedecer a Deus, em acreditar nele, em guardar os seus perceitos, o mal consiste
na desobediência e na negação de Deus (IV, 39, 1).
O bem conduz o homem à imortalidade que é concedida à alma por Deus, mas
não é intrínseca à sua própria natureza; o mal é punido com a morte eterna.
Também os corpos ressuscitarão; mas ressuscitarão com a nova vinda de Cristo,
que se verificará depois do reino do Anticristo. Então as almas, tendo readquirido
os seus corpos, poderão chegar à visão de Deus (V, 31, 2; 27, 2).
Hipólito propõe-se refutar os heréticos mostrando que eles vão beber a sua
doutrina não na tradição cristã, mas na sabedoria pagã. Por isso, o I e o IV livro
(no último dos quais talvez se possa ver também o 11 e o 111), traçam um quadro
da sabedoria pagã, enquanto os últimos seis expõem e
137
138
O homem foi criado por Deus dotado de liberdade e Deus deu-lhe. através dos
profetas e especialmente de Moisés, a lei que deve guiar a sua vontade livre. O
homem não é Deus; mas se quiser pode tornar-se Deus: " Sô seguidor de Deus e
co-herdeiro de Cristo, em vez de servir os instintos e as paixões e tornar-te-ás
Deus" (Philos., X, 33).
§ 139. TERTULIANO
139
pôde seduzi-lo por algum tempo, mas não pôde detê-lo. E assim, se imprimiu à
especulação cristã do Ocidente a sua terminologia, não conseguiu dar-lhe um
contributo substancial de pensamento.
143
144
contrário à morte, a vida, não será outra coisa senão a união da alma e do corpo.
Estão fundidos pela vida os elementos que são desintegrados na morte" (1b., 27).
Por isso, Tertuliano defende a realidade do corpo de Cristo contra aqueles que o
reduziam a uma pura aparência (docetismo). No De carne Christi detém-se, com
aquela complacência no repugnante e no abjecto que lhe é tão característica, nos
mais grosseiros detalhes da geração e do nascimento, para defender a total e
plena humanidade do homem. "Cristo, diz ele (De carne Christi, 4), amou o
homem tal como é. Se Cristo é o criador, amou justamente o que era seu; se vem
de outro Deus, o seu amor é mais meritório porque se redimiu a um estranho. Era,
pois, lógico que amasse também o seu nascimento, a sua carne; é impossível
amar um objecto qualquer sem amar o que é uno com ele. Acaba com o
nascimento e faz-me ver um só homem que seja; suprime a carne e diz-me que
coisa pôde Deus remir, se de um e da outra resultou a humanidade que Deus
redimiu". A realidade e o valor da carne justificam a ressurreição de Cristo. E a
este respeito encontramos palavras paradoxais que exprimem aquela exasperada
tensão entre a certeza da fé e a verdade do intelecto que se expressou na fórmula
(que não se encontra em Tertuliano): credo quia absurdum. "0 Filho de Deus foi
crucificado; não é vergonhoso porque poderia sê -lo. O Filho de Deus morreu: é
crível porque é inconcebível. Sepultado, ressuscitou: é certo porque é impossível"
(De carne
Chr., 5). Aqui a fé tem tanta maior certeza quanto mais repugna às avaliações
naturais do homem.
145
testim. an., 6). Mas à imortalidade da alma andará unida a ressurreição da carne.
O homem deverá ressurgir na sua natureza inteira e esta não seria tal sem a
carne (De ressur. carnis, 56-57).
146
de Minúcio Félix é, no seu espírito, uma obra mais próxima dos escritores gregos
do que de Tertuliano.
O cristianismo é apresentado como monoteísmo e caracterizado acima de tudo
através da sua moral prática. Não se fala dos mistérios da fé nem da Sagrada
Escritura. A concordância de todos os filósofos sobre a unicidade de Deus faz
concluir que "ou os cristãos são os filósofos de agora ou os filósofos de então
eram cristãos" (Oct., 20). Todavia, a obra apresenta no seu conteúdo uma grande
afinidade com o Apologeticum de Tertuliano. Não é fácil elucidar a prioridade de
uma ou de outra obra. Como quer que seja, as teses que, em Tertuliano, têm uma
forma violenta e extrema, tomam em Minúcio Félix uma forma atenuada e cortês,
que as torna mais aptas para influir persuasivamente sobre os pagãos cultos a
quem a obra se dirige. À posição céptica de Cecílio, o interlocutor pagão que,
reconhecendo a impossibilidade da mente humana para olhar os mistérios divinos,
julga que nos devemos contentar com as crenças dos nossos pais, Octávio
contrapõe a evidência pela qual o Deus único se manifesta na sua obra: o céu e a
terra. Como quem entra numa casa e, ao vê-Ia bem ordenada e disposta, atribui
esta ordem ao dono, do mesmo modo quem considera a ordem, a providência e a
lei que regem o céu e a terra, deve crer num senhor do mundo que o move, o
alimenta e o governo (1h., 18). Como Tertuliano, Minúcio recorre ao testemunho
da alma simples e reconhece nela "a palavra espontânea da multidão". A crença
cristã num Deus único confirmada juntamente pela demonstração dos filósofos e
pelo sentido comum da maioria, e contraposta por Minúcio ao politeísmo pagão,
tal como a moral cristã se opõe à moral pagã, degenerada e corrupta.
147
A alma humana não tem, pois, o carácter divino que os Platónicos lhe tinham
atribuído. Arnóbio combate expressamente a doutrina platónica da
148
Discípulo de Arnóbio, segundo parece, foi Lúcio Célio - Firmiano Lactâncio que
também havia ensinado retórica em África e desenvolvera já uma certa actividade
literária quando se converteu ao cristianismo. Chamado por Diocleciano para
ensinar retórica latina em Nicomédia, a nova capital do Império, conheceu a vida
errante e pobre quando, no ano de 305, foi obrigado pela perseguição a deixar o
seu ofício. Mas alguns anos depois assistia à mudança radical da política do
Império, relativamente ao cristianismo, por obra de Constantino e compunha o De
mortibus persecutorum, no qual, com amargo espírito de vingança, se compraz
com a ruína em que caíram os perseguidores dos cristãos. Na sua velhice foi, na
Galiá, perceptor de Crispo, filho de Constantino. A sua obra mais importante, os 7
livros
149
das Divinae institutiones são, ao mesmo tempo, a apologia do cristianismo contra
os seus inimigos e um manual de toda a doutrina cristã. Um compêndio desta obra
é o Epitome divinarum institutionum.
O tratado De opificio Dei tem como fim demonstrar contra os Epicuristas que o
organismo humano é uma criação de Deus; e o tratado De ira Dei, contra a
indiferença atribuída pelos Epicuristas à divindade, pretende demonstrar a
necessidade da ira divina. A obra principal de Lactâncio é a primeira tentativa,
realizada no ocidente, para reduzir a sistema a doutrina cristã expondo-a de modo
orgânico e completo. Pela forma literariamente apreciável desta exposição,
Lactâncio foi chamado pelos humanistas o Cicero cristão; mas a sua obra
apresenta escassa originalidade de pensamento. Que existe uma providência que
rege o mundo é evidente, segundo Lactâncio, a quem quer que erga os olhos ao
céu. Só pode haver dúvidas sobre a quem pertence tal providência, se a um único
Deus ou a várias divindades; a alternativa é, pois, entre monoteísmo e politeísmo.
Mas admitir mais divindades significa aceitar que Deus não tinha poder suficiente
para reger por si só o mundo, com o que se nega a Deus uma potência infinita e
se elimina o próprio conceito de Deus. Divindades diversas poderiam estabelecer
no mundo leis antagónicas que lutassem entre si, o que está excluído pela
unidade e a ordem do mundo. Além disso, como no corpo humano os diferentes
membros e os diversos aspectos da vida espiritual são dirigidos por uma única
alma, assim o mundo deve ser regido por uma única mente divina (Instit. div., 1,
2). A doutrina cristã do Logos não divide nem multiplica o único Deus. O Pai e o
Filho não estão separados um do outro, pois nem o Pai pode ser dito tal sem o
Filho, nem o Filho pode ser gerado sem o Pai. Constituem entre ambos uma única
razão, um único espírito, uma única substância. Mas o Pai é como a fonte
150
transbordante, o Filho é a torrente que emana da fonte; o Pai é como o sol, o Filho
é o raio irradiado pelo sol; como a torrente não pode separar-se da fonte e o raio
não pode separar-se do sol, também o Filho não pode separar-se- do Pai. Como
uma casa que pertença a um dono que ame o seu único filho
e o reconheça igual a si, não cessa com isto de ser juridicamente uma só casa
com um só dono, assim o mundo é a casa de Deus e o Pai e o Filho que a
habitam são um único Deus (1b., IV, 29). O Filho foi gerado antes da criação do
mundo para ser o conselheiro de Deus na concepção e na realização do plano da
criação (Ibid., 11, 10). E o mundo não foi criado por Deus para si próprio, pois não
tem necessidade dele, mas para o homem; Deus criou, em contrapartida, o
homem para si, para que o reconhecesse e lhe prestasse o devido culto,
compreendendo e medindo a perfeição da obra que tem diante de si (Ib., VII, 5).
Deus também não teve necessidade, na criação, de uma matéria pré-existente: o
homem tem necessidade da matéria para todas as suas obras, mas Deus cria a
própria matéria (1b., 11, 9). O homen-i é composto de alma e corpo. A alma não
tem nenhum peso terreno: é tão ténue e subtil que escapa até aos olhos da mente
(1b., VII,
12-13). Alma e mente não são idênticos; a alma é o princípio da vida e não
entorpece no sonho nem se extingue na loucura; a mente é o princípio do
pensamento, aumenta ou diminui com a idade, perde-se no sonho e na loucura
(1b., VII, 12). A alma e o corpo estão ligados entre si e contudo são opostos:
aquilo que é bem para a alma como a renúncia à riqueza, aos prazeres, o
desprezo pela dor e pela morte é um mal para o corpo; aquilo que é um bem para
o corpo é um mal para a alma que se relaxa e extingue com os prazeres e com o
desejo da riqueza (1b., VII, 15). O homem é formado por princípios diferentes e
contrários, como o mundo é formado
151
por luz e trevas, vida e morte. Estes princípios combatem dentro dele e se nesta
luta a alma vence será imortal e admitida à luz eterna; se vence o corpo, a alma
estará sujeita às trevas e à morte (1b., 11, 13). Mas a imortalidade não é só o
termo e o prémio da virtude: é condição da própria virtude. Seria estulto renunciar
àqueles prazeres aos quais o homem é naturalmente inclinado e entrar num
caminho que é hostil e mortificante para a natureza humana, se a imortalidade não
existisse para dar um sentido à obra contra a natureza da virtude (lb., VII, 9).
a sua salvação, este é também o sumo grau da sabedoria (Ib., VI, 9). Mas este
grau mais alto da sabedoria não é a filosofia. A filosofia procura a
152
sabedoria, mas não é a própria sabedoria (1b., 111, 2). Ela não atinge o
conhecimento das causas, como ensinam com razão Sócrates e os Académicos.
A disparidade das escolas filosóficas torna impossível orientar-se alguém nas suas
opiniões se se não possui antecipadamente a verdade. Só a revelação pode, pois,
dar a verdade. E a dialéctica é inútil (1b., 111, 13).
NOTA BIBLIOGRáFICA
§ 135. As obras de Justino em Patr. Graec., vol. 6.1; Apologia, edição Pautigny,
Paris, 1904; edição Rauschen, Bonn, 1911; edição Pfattisch, Münster,
1912. Sobre Justino: LAGRANCE, Saint Justin, Paris
1914; MARTINDALE, St. Justin, Londres, 1921; RIVIÈRE, st. Justin et les
apologistes du Ile. siècle, Paris, 1907;
153
154
§ 138. As obras de IRINEU, in Patr. Graec., vol. 7.o; Adversus haereses, edição
Harvey, Cambridge, 1857; edição Stieren, Londres, 1848-53. Sobre Irineu:
HITCHCOCK, Irenaeus of Lugdunum, Cambridge, 1914; BON=SCH, Die
Theologie des Irenaeus, Güterslok, 1925.
155
HI
157
O primeiro impulso para tal investigação foi dado pela escola catequística de
Alexandria, que existia já há muito tempo quando, em 180, se tornou seu chefe
Panteno, que lhe deu as características de uma academia cristã , na qual toda a
sabedoria grega era utilizada para os fins apologéticos do cristianismo. A escola
alcançou o seu máximo esplendor com Clemente e Orígenes; mas quando, em
233, Orígenes procurou na Palestina uma nova pátria e abriu em Cesareia a sua
escola, esta suplantou a outra e tornou-se a sede de uma grande biblioteca que foi
a mais rica de toda a antiguidade cristã.
158
Os três escritos de Clemente que nos restam, Protréptico aos gregos, Pedagogo e
Stromata foram concebidos por ele como três partes de um plano único, de
uma progressiva introdução ao cristianismo. O Protréptico, ou exortação aos
gregos, aproxima-se muito, pelo conteúdo e a forma, da literatura apologética do
século H. O Pedagogo, em três livros, procura educar na vida cristã o leitor que já
se afastou do paganismo. Os Stromata ou Tapetes, isto é, "tecidos de comentários
científicos sobre a filosofia" deviam ter como finalidade expor cientificamente a
verdade da revelação cristã. Perdeu-se a sua obra intitulada Hipotiposis
(esquemas ou esboços) e chegou até nós uma liomilia com o título Qual o rico que
se salvará?
159
fé. A fé é tão necessária ao conhecimento como os quatro elementos são
necessários à vida do corpo (1b., 11, 6). Fé e conhecimento não podem subsistir
um sem o outro (1b., 11, 4). Mas para chegar da fé ao conhecimento é necessária
a filosofia. A filosofia teve para os gregos o mesmo valor que a lei do Velho
Testamento para os hebreus: conduziu-os a Cristo. Clemente admite, corno
Justino, que, em todos os homens, mas especialmente naqueles que se
dedicaram à especulação racional, está presente um "eflúvio divino", uma
"centelha do Logos divino" que lhes faz descobrir uma parte da verdade, ainda
que não os torne capazes de alcançar toda a verdade que só é revelada por Cristo
(Prop.,
6, 10; 7, 6). Por certo, os filósofos misturaram o verdadeiro e o falso; trata-se
agora de escolher entre as suas doutrinas aquilo que é verdadeiro, abandonando
o falso, e a fé fornece o critério desta escolha (Stromata, 11, 4). A filosofia deve
ser neste sentido a serva da fé como Agar de Sara (1b.,
1. 5). Nesta subordinação da filosofia à fé reside o carácter da gnose cristã. A
gnose dos Gnósticos é a falsa gnose porque estabelece entre a filosofia e a fé a
relação inversa: se ao gnóstico fosse dado escolher entre a gnose e a salvação
eterna, ele escolheria a gnose porque a julga superior a todas as coisas (1b., IV,
22).
160
161
dos, conseguiu formular as bases do seu sistema. Neste período, o seu zelo
religioso levou-o a castrar-se. Tomara por certo à letra a palavra evangélica
(Mateus, 19, 12) que louva aqueles que se fazem eunucos por amor do reino dos
céus. Mas, provavelmente, como observa ainda Eusébio (IV,
23, 1), queria tirar todo o pretexto à malignidade pública, dado que a sua escola
era também frequentada por mulheres. Em 215 ou 216 os massacres praticados
por Caracala em Alexandria obrigaram Orígenes a fugir para a Palestina onde os
bispos Alexandre de Jerusalém e Teoctisto de Cesareia o acolheram com honra e
o fizeram pregar nas suas i,-rejas. Demétrio não aprovou esta pregação de um
laico e impôs a Orígenes o regresso a Alexandria. Aqui retomou a sua actividade
de mestre e de escritor que era intensíssima: um discípulo, Ambrósio, pusera à
sua disposição sete estenógrafos e vários copistas (Eus., IV, 23, 2). Ordenado
padre durante uma viagem, caiu em desgraça do bispo Demétrio e foi expulso de
Alexandria. Demorou-se então em Cesareia onde fundou uma escola teológica
que, em breve, se tornou florescentíssima e onde permaneceu até à morte.
Morreu mártir durante a perseguição de Décio. Orígenes suportou a tortura na
prisão e pouco depois morreu em Tiro, com 69 anos, e portanto em 254 ou 255.
Um seu discípulo, Gregório o Taumaturgo, fornece interessantes pormenores
acerca do seu ensino em Cesareia (Panegiricum in Orig.,
7-15). O princípio e base do ensino de Orígenes era o estudo da dialéctica.
Seguia-se o estudo das ciências naturais, das matemáticas, da geometria, da
astronomia; a geometria era considerada como o modelo de todas as outras
ciências. Seguidamente, estudava-se a ética que tinha por objecto as quatro
virtudes cardiais de Platão e a Caridade cristã. A filosofia grega tinha um posto
eminente neste
162
163
cipiis, ele próprio traça a finalidade que se propôs. "Os apóstolos, diz,
transmitiram-nos com a maior claridade tudo aquilo que julgaram necessário a
todos os fiéis, mesmo aos ma-is lentos no cultivo da ciência divina. Mas deixaram
àqueles que são dotados dos dons superiores do espírito e especialmente da
palavra, da sabedoria e da ciência o cuidado de procurar as razões das suas
afirmações. Sobre muitos outros pontos, limitaram-se à afirmação e não deram
nenhuma explicação, para que aqueles seus sucessores que têm a paixão da
sabedoria possam exercitar o seu génio" (De prine. pref. 3). Orígenes distingue
aqui as doutrinas essenciais e as doutrinas acessórias do cristianismo. O cristão
que recebeu a graça da palavra e da ciência tem a obrigação de interpretar a
primeira e de explicar a segunda. A primeira função é indispensável a todos; a
segunda é uma investigação supletória, movida por um amor particular da
sabedoria e que consiste no simples exercício da razão. Orígenes empreendeu
uma e outra investigação. O seu trabalho exegético dos textos bíblicos tende a
fazer luz sobre o significado oculto e, portanto, procura a justificação profunda das
verdades reveladas. Ele distingue um tríplice significado das Escrituras o
somático, o psíquico e o espiritual, que estão entre si como as três partes da alma:
o corpo, a alma e o espírito (De princi., IV, 11). Mas, na prática, contrapõe ao
significado corpóreo ou literal o significado espiritual ou alegórico e sacrifica
resolutamente o primeiro ao segundo sempre que o considera necessário (1b., IV,
12).
A passagem do significado literal ao significado alegórico das Sagradas Escrituras
é a passagem da fé ao conhecimento. Orígenes acentua a diferença entre uma e
outra e afirma a superioridade do conhecimento que compreende em si a fé (In
Joan., XIX, 3). Aprofundando-se em si própria, a fé
164
Deus é superior à própria substância, pois que não participa dela: a substância
participa de Deus,
165
mas Deus não participa de nada. Do Logos pode dizer-se que é o ser dos seres, a
substância das substâncias, a ideia das ideias; Deus está para lá de todas estas
coisas (1b., VI, 64). Orígenes rejeita decididamente os antropomorfismos do Velho
Testamento, interpretando-os alegóricamente. Dizer que Deus tem forma humana
e é agitado por paixões como as nossas é a maior das impiedades (1b., IV,
71). A omnipotência de Deus encontra um limite na sua perfeição. Deus pode
fazer tudo aquilo que não é contrário à sua natureza, mas não pode cometer a
injustiça, porque o poder ser injusto é contrário à sua divindade e à sua potência
divina (1b., 111, 70). Deus é vida, mas num significado diferente da vida no nosso
mundo, ele é a vida absoluta, isto é, na sua absoluta imutabilidade (In Joha., 1,
31). Deus é o bem no sentido platónico já que só a ele pertence a bondade
absoluta: o Logos é a imagem da bondade de Deus, mas não o bem em si (In
Math., XV, 10). A providência divina dirige-se, em primeiro lugar, à educação dos
homens. Retomando e ampliando o conceito de Clemente, Orígenes compara a
acção de Deus à de um pedagogo ou de um médico que pune ou inflige males e
dores para corrigir ou para curar (Contra Cels., VI, 56). Assim se explica a própria
severidade divina, da qual os livros do Velho Testamento dão tantos exemplos.
"Se Deus fosse apenas bom e não fosse severo, desprezaríamos a sua bondade;
se fosse apenas severo sem ser bom, os nossos pecados conduzir-nos-iam ao
desespero" (In Jerem., IV, 4).
166
queda dado que a ausência do bem é o mal o na medida em que alguém se afasta
do bem cai no mal. Assim as inteligências foram conduzidas ao mal, segundo
descuraram mais ou menos o bem, conformemente ao movimento secreto de
cada uma delas (De princ., 11, 9, 2; fr. 23 a). Orígenes insiste na liberdade do acto
que provocou a sua queda. A doutrina gnóstica negara essa liberdade: Orígenes
combate vivamente o gnosticismo (1b., 1, 8, 2-3). o próprio demónio, - diz ele -
não é mau por natureza, mas tornou-se pela sua vontade (In Joan. XX, 28). A
queda é devida a um acto livre de webelião contra Deus, no qual participaram
todos
167
168
11, 2). Por esta sua natureza subordinada, o Logos recebeu do Pai a tarefa de
penetrar a obra da criação e de infundir-lhe ordem e beleza (Ib., VI, 38,
39). Mas, em segundo lugar, o Logos vive nos homens e todos participam dele
(1b., 1, 3): ainda que permanecendo idêntico a si mesmo, o Logos adapta-se aos
homens e à sua capacidade de atingi-lo (Co.,dra Cels., IV, 15); e reveste formas
diversas, segundo aqueles que conseguem conhecê-lo, isto é, segundo a sua
disposição e a sua capacidade de progresso Ub., IV, 16). O Logos é, portanto, a
força imanente que diviniza o mundo e o homem. Na mesma medida em que se
aproxima do mundo e do homem para penetrá-los e reconduzi-los à perfeição
originária, assim se afasta do Pai.
169
170
e a natureza do Deus (In Jomi., VIII, 19). Mas quando for possível este
conhecimento directo de Deus, quando Deus não for visto já através do Filho, na
imagem de uma imagem, mas directamente corno o próprio Filho o vê, o ciclo do
retorno do mundo a Deus, da apocatastasi, estará completo e Deus será tudo em
todos (lb., XX, 7).
Tais são os traços fundamentais do sistema de Orígenes no qual pela primeira vez
o cristianismo encontrou uma formulação doutrinal orgânica e completa. O
Platonismo e o Estoicismo constituíram as duas raízes fundamentais pelas quais
se une à filosofia grega. Mas Orígenes adaptou com grande equilíbrio, da
mensagem cristã, a doutrina platónica da queda e da redenção dos seres
espirituais e a doutrina cosmológica dos Estoicos. Por certo, alguns elementos que
a consciência religiosa contemporânea considerava essenciais nesta mensagem
foram perdidos na síntese de Orígenes. o conceito da criação é, no fundamental,
estranho a Orígenes para quem a criação das substâncias racionais é eterna. Na
sua natureza o Logos está subordinado a Deus Pai e o Espírito Santo ao Logos,
na sua natureza e na sua função. O sacrifício de Cristo não encontra urna própria
e verdadeira justificação e a ressurreição da carne, sobre a qual tanto insistiram
outros padres (por exemplo Tertuliano) é explicitamente excluída (De princ., 11,
10, 3; Contra Cels., V, 18). Mas, em compensação, Orígenes elevou, pela primeira
vez. à clareza da reflexão filosófica o significado mais profundo e universal do
cristianismo. Foi o primeiro que viu no facto histórico da redenção o destino da
humanidade inteira que, decaída da vida espiritual, deve retornar a ela. Foi o
primeiro que reuniu numa única visão de conjunto a sorte da humanidade e a sorte
do mundo, fazendo da antropologia cristã o elemento de uma concepção
cosmológica. Foi o pri-
171
meiro que afirmou a exigência de liberdade humana que se havia perdido não só
nas doutrinas duaUsticas dos gnósticos, mas também todas as interpretações que
faziam do homem o sujeito da obra redentora de Cristo.
172
Discípulo de Orígenes foi também Gregório o Taumaturgo, que nasceu por volta
do ano 213 em Neo-Cesareia, no Ponto, e que foi depois bispo da sua cidade
natal e morreu no tempo de Aureliano (270-275). Duas biografias, uma de
Gregório Niceno, outra siríaca, que é um arranjo da primeira, narram uma série de
histórias miraculosas que explicam o seu cognome. Gregório é autor de um
Discurso de acção de graças, no qual se exalta a obra do mestre Orígenes, de um
escrito "A Teopompo sobre a capacidade e incapacidade de padecer em Deus",
conservado em siríaco e no qual se discute a questão de saber se a
impassibilidade de Deus implica a sua despreocupação pelos homens; e de outros
escritos menores, exegéticos e dogmáticos. Atribui-se-lhe também o breve tratado
Sobre a alma, a Taciano, que examina a natureza da alma, fora de qualquer prova
tomada das Escrituras.
173
174
176
Esta doutrina teve como defensores "os três luminares de Capadócia": Basílio o
Grande, Gregório Nazianceno e Gregório de Nisa. Basílio foi sobretudo homem de
acção; Gregório Nazianceno, orador e poeta; Gregório de Nisa, pensador.
177
178
pessoa, não como essência e portanto só como pessoa se distingue do Pai. Por
sua vez, o Espirito Santo recebe o ser do Filho e tem, portanto, o seu lugar depois
dele (Adv. Eun., 111, 1). Contra a afirmação de Eunómio de que conhecemos
directamente a essência de Deus (que seria precisamente a não gerabilidade),
Basílio opõe que podemos conhecer Deus através das suas obras, mas a sua
essência permanece inacessível para nós. "As criaturas, diz (lb., 11, 32), fazem-no
conhecer certamente o poder, a sabedoria e a arte do criador, mas não a sua
natureza. Mais ainda, nem sequer manifestam necessariamente o poder do
criador, pois pode acontecer que o artista não ponha toda a sua capacidade na
obra, mas só a exercite nela de maneira restrita. Que se tivesse aplicado todo o
seu poder na obra, seria possível por ela medir a potência dele, mas nunca
compreender a essência, na sua natureza." Mesmo depois da revelação, o
conhecimento de Deus só nos é dado de modo que o infinito pode ser conhecido
pelo finito e até na vida futura a essência de Deus nos será incompreensível. A
conclusão é uma bela e profunda frase que Basílio coloca como corolário da sua
doutrina: "0 conhecimento da essência divina consiste apenas na percepção da
sua incompreensibilidade" (Ep., 234, 2).
O limite que o homem encontra no conhecimento do transcendente é a mais
directa e evidente revelação do mesmo transcendente.
179
180
Gregório de Nisa era irmão de Basílio o Grande e bastante mais jovem do que ele.
Encaminhado para a carreira de professor de retórica, foi retirado
181
dela por Basílio que o nomeou bispo de Nisa. Como tal Gregório participou na luta
contra os arianos. Em 394 estava em Constantinopla para participar num sínodo
que devia resolver uma controvérsia entre bispos árabes; depois o seu nome
deixa de aparecer; muito provavelmente, a sua morte ocorreu pouco depois
daquela data. A sua obra mais notável é o Discurso Catequético Grande,
demonstração e defesa dos dogmas principais da Igreja contra os pagãos, judeus
e heréticos. A obra mais extensa é o escrito Contra Eunómio, réplica ao escrito
Em Defesa da Apologia, com o qual Eunómio respondem a Basílio. Gregório
escreveu mais: duas obras Contra Apolinário: vários tratados ou diálogos (Contra
os Gregos, Sobre a Fé, Sobre a Trindade, Sobre a Alma e a Ressurreição, Contra
o Fado, Sobre os Meninos que Morrem Prematuramente). Compôs, além disso,
numerosos escritos exegéticos, dos quais os mais notáveis são o Apologético
sobre Hexameron e o De opificio hominis e outros discursos ascéticos, discursos e
cartas.
182
pôs em prática este procedimento na medida mais lata, como só Orígenes fizera
antes, e apela continuamente, para lá do testemunho da tradição, para princípios e
demonstrações racionais. O seu Discurso Catequético bem como o diálogo Sobre
a Alma e a Ressurreição são inteiramente guiados por investigação puramente
racional. No diálogo citado, vê na dúvida uma ajuda metódica da pesquisa.
184
O mundo é uma criação de Deus. A questão de saber por que modo uma essência
absolutamente simples, incorpórea e imutável, como Deus, tenha podido produzir
uma realidade composta, mutável e, sobretudo, corpórea, só pode encontrar
resposta se se considera a natureza do corpo. Todo o
185
corpo resulta de partes que, tomadas de per si, são momentos ou potências
puramente inteligíveis, como a quantidade, a qualidade, a figura, a cor, a grandeza
e assim sucessivamente. Se se prescinde delas, nada resta do corpo. Portanto, o
corpo como tal é apenas a ligação de qualidades em si próprias incorpóreas e ele
mesmo é incorpóreo no seu fundamento. Pode-se, pois, conceber como possa ter
sido criado por uma essência incorpórea (De hom. opif., 23-24). Partindo da
exigência teológica de eliminar o abismo entre a natureza de Deus e a da criação,
Gregório foi assim levado a formular uma doutrina da pura inteligibilidade do
mundo corpóreo, voltando ao contrário o materialismo de Tertuliano que exprimia,
contudo, uma tendência muito difundida entre as primeiras seitas cristãs. Enganar-
se-ia, porém, quem interpretasse esta inteligibilidade como subjectividade das
qualidades corpóreas em sentido idealístico. A inteligibilidade confirma e reforça a
pura objectividade das qualidades porque, aproximando-as da natureza de Deus,
as eleva ao princípio supremo da objectividade, que é o próprio Deus.
não pudesse escolher entre o bem e o mal. Sem liberdade não haveria virtude
nem mérito nem pecado (1b., 5). Só na liberdade está a origem do mal. O corpo
não é um mal nem causa do mal porque é uma criação de Deus. O mal está na
nossa interioridade e consiste no desvio do bem devido ao livre arbítrio (1b., 5). O
mal não tem nenhuma essência na realidade em que é apenas privação do bem,
que é a única realidade positiva. Como a obscuridade é a privação da luz ou a
cegueira a privação da vista, assim o mal não é outra coisa senão a falta do bem.
"A maldade tem o seu ser no não-ser: e não tem outra origem senão a privação do
sem (De an. et resur., p. 223).
O homem deve retornar então à sua condição originária. Para orientá-lo na via do
retorno, foi necessária a encarnação do Logos. Contra a encarnação não vale a
objecção de que o finito não pode abarcar o infinito e de que, por isso, a natureza
humana não pode receber em si a divina, dado que a encarnação do Logos não
significa mais do que a infinidade de Deus se ter encerrado nos Emites da carne
como num vaso. A natureza divina uniu-se com a humana mais como a chama se
une ao corpo inflamável ou também como a alma supera os limites do nosso corpo
e se move livremente com o pensamento através da criação inteira (Or. catech.,
10). Com a morte e a ressurreição de Cristo, o Deus-homem, a natureza humana
como tal, recuperou a sua condição originária, da qual o pecado a tinha feito cair.
Mas com ela não retornaram à condição primitiva todos os indivíduos nos quais,
depois da queda, se multiplicou e dispersou. A obra redentora de Cristo deve,
portanto, frutificar através dos indivíduos singulares e reconduzi-los todos à
condição originária.
Segue-se daqui que a punição que cai sobre o mal na outra vida só pode ser
purificador. Aqueles que deixaram por si a sujidade do vício com a água do
baptismo não terão necessidade de outra purificação, mas aqueles que não
participaram desta purificação sacramental serão necessàriamente purgados pelo
fogo (1b., 35). Finalmente, a natureza chega por necessidade inevitável à
apocatástasis, à reconstrução da condição feliz, divina e livre de toda a dor, como
era a originária (1b., 35). Gregório afirma decididamente o carácter universal da
apocatástasis: "Até o inventor do mal, isto é, o demónio, unirá a sua própria voz no
hino de gratidão ao Salvador (1b., 26). Já um escritor antigo (Germano de
Constantinopla em Fozio, Bibli. cod., 233) adiantara a hipótese de uma posterior
falsificação dos
188
escritos de Gregório nos pontos em que trata da apocatástasis universal. Mas esta
hipótese não tem nenhum fundamento dado que aquela doutrma corresponde ao
espírito e ao tom geral da obra de Gregório. O ciclo do mundo ficaria incompleto
ou coxo se uma parte dos seres se subtraísse à apocatástasis e não fosse
restituída à sua condição ideal originária. Esta condição originária é concebida
platónicamente por Gregório como o ser, a substância ou a norma de toda a
existência: portanto, a existência permanece tal, mesmo depois que, afastando-se
do bem, se incline para o nada, só pela possibilidade, que lhe é própria, de uma
restituição à sua substância originária.
189
190
cismo e de Misticismo. Segundo Macário, tudo aquilo que existe, incluindo a alma
e as suas faculdades, é corpóreo, excepto Deus. Mas a alma corpórea tem em si
uma "imagem celeste" de Deus e é esta imagem celeste de Deus que é pouco a
pouco libertada e purificada pela acção de Deus sobre a alma com a cooperação
da vontade humana. Este processo de purificação é o processo de elevação a
Deus, que parte da apatia e, através da iluminação, da visão e da revelação da
comunhão com Deus, chega ao grau mais alto, ao êxtase, que é a união com
Deus.
O mais douto adversário de Grilo foi Teodoreto, que nasceu por volta do ano 386
em Antioquia, discípulo de Crisóstomo e de Teodoro de Mopsuestia e condiscípulo
de Nestório. Primeiramente favorável
191
à doutrina de Nestório, que só abandonou nos últimos anos de vida (morreu pelo
ano 458), Teodoreto combateu a doutrina contrária de Eutiques, bispo de
Constantinopla, que defendia uma só natureza em Cristo, não no sentido de um só
indivíduo, como ensinara Cirilo, mas no sentido de uma natureza mista na qual
existissem fundidas a divina e a humana. Contra esta doutrina, Teodoreto
escreveu o Mendigo ou Polimorfo porque ela lhe parecia uma aberração retirada
de muitas heresias precedentes. A favor da tese de Nestório, escreveu o
Pentalogium de que apenas temos fragmentos. Teodoreto escreveu a última e
mais completa das apologias cristãs que nos transmitiu a antiguidade grega.
Intitula-se Cura das Enfermidades Pagãs ou Conhecimento da Verdade
Evangélica por meio da Filosofia Pagã. Ele utiliza as apologias precedentes,
especialmente os Stromata de Clemente Alexandrino e a Preparação Evangélica
de Eusébio.
192
Uma grande figura de homem de acção é Ambrósio, que nasceu cerca de 340,
bispo de Milão de 374 a 397, ano da morte. Ambrósio escreveu numerosas
exegeses dos livros bíblicos, obras dogmáticas dirigidas contra os arianos, cartas,
sermões e um tratado, De officiis núnistrorum, que tem semelhança com os três
livros do De officiis de Ocero. Nele Ambrósio segue de perto a obra de Cícero,
mas completa-a em sentido cristão, apontando como último limite da moralidade a
felicidade em Deus. Nas suas obras dogmáticas, de que as principais são o De
fide ad Gratianum Augustum e o De Spiritu Sancto ad Gratianum Augustum,
inspira-se preferentemente nas obras de Anastásio e de Basilio o Grande.
193
obras mais conseguidas são as Cartas que constituem algumas vezes verdadeiros
tratados. Contudo, a sua importância está toda na sua obra de crudito o de
historiador.
Agostinho nomeia com louvor nas Confissões (VIII, 2) o retórico africano Mário
Vitormo. Convertido ao cristianismo em idade avançada, traduziu para latim o
Isagogo de Porfírio, as Categorias e a Interpretação de Aristóteles e escreveu
diversos escritos contra os arianos e maniqueus. O escrito De definitionibus, que
está entre as obras lógicas de Boécio, deve ser atribuído a ele. Aparece nas suas
obras teológicas a doutrina da predestinação.
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 143. As obras de Clemente in P. G., 8.1 e 9.1; ed. Dindorf, 4 vols., Oxford, 1869;
ed. Stãhlin, 3 vols., Berlim, 1906-1909. Sobre Clemente: DE FAYE, Clément
d?Alexandrie. Êtude sur les rapports du christianisme et de Ia philosophie grecque
au II Wele, Paris, 1898, 2.1 edição 1906; MEYBOOM, Clemens Alexandrinus,
Leiden,
1912; TOLLINGTON, Clemens of AIex. A Study in Christian Liberalism, 1-2,
Londres, 1914.
194
195
IV
SANTO AGOSTINHO
197
o seu rigor, mas não é exigência de pura razão. Todo o homem procura: toda a
parte ou elemento da sua natureza, intranquilidade da sua finitude, dirige-se para
o Ser que é o único que pode dar-lhe
198
deu) em, como se disse (§ 110), exortação à filosofia que seguia de perto os
passos do Protréptico de Aristóteles. Assim, Santo Agostinho, do entusiasmo
pelas questões formais e gramaticais, encaminhou o seu entusiasmo para os
problemas do pensamento e, pela primeira vez, orientou-se para a investigação
filosófica. Aderiu então à (374) seita dos maniqueus (§ 137). Com 19 anos
começou a ensinar retórica em Cartago e manteve o seu erwino nesta cidade até
aos 29 anos, entre amores de mulheres e o afecto dos amigos, do que se acusou
e arrependeu igualmente depois. Com 26 ou 27 anos compÔs o seu primeiro livro
Sobre o Belo e o Conveniente (De pulchro et apto) que se perdeu. O seu
pensamento ia amadurecendo; leu e compreendeu por si mesmo o livro de
Aristóteles Sobre as Categorias e outros escritos, e entretanto formulava as
primeiras dúvidas sobre a verdade do maniqueísmo, dúvidas que se confirmaram
quando viu que nem o próprio Fausto, o mais famoso maniqueu do seu tempo,
sabia resolvê-las. Com
29 anos, em 383, dirigiu-se a Roma com a intenção de continuar ali o ensino de
retórica; era movido pela esperança de encontrar uma estudantada menos
turbulenta e mais preparada do que a cartaginesa
e talvez também pela ambição de conseguir sucesso
e dinheiro. Mas as suas esperanças não se realizaram e ao fim de um ano dirigiu-
se a Milão para ensinar oficialmente retórica, cargo que obtivera do perfeito
Simaco. O exemplo e a palavra do bispo Ambrósio persuadiram-no da verdade do
cristianismo e tornou-se catecúmeno. Em Milão reuniu-se-lhe sua mãe, cuja
influência teve importância decisiva na críse espiritual de Agostinho. A leitura dos
escritos de Plotino na tradução de Mário Vitorino, um famoso retórico que se
convertera ao cristianismo, fornece a Agostinho a orientação definitiva. Não
encontrou nos livros dos Neoplatónicos
200
S
1 . AGOSTINHO (Ambrósio Berognone)
201
Contra esta tese escreveu Santo Agostinho, entre 412 e 426, a sua obra-prima: A
Cidade de Deus. Mas, entretanto, um flagelo análogo, a invasão dos Vândalos,
abateu-se em 428 sobre a África romana. Havia três meses que as tropas de
Genserico assediavam Hipona quando, a 28 de Agosto de 430, Agostinho morreu.
Santo Agostinho foi chamado o Platão cristão. Esta definição é verdadeira não
tanto porque se encontrem na sua doutrina pontos e motivos doutrinais do Platão
autêntico ou do Neoplatonismo, mas porque renova no espírito do cristianismo a
investigação que fora a realidade fundamental da especulação platónica. A fé está
para Agostinho no termo da investigação, não no seu início. Por certo a fé é a
condição da procura que não teria direcção nem guia sem ela; mas a procura
dirige-se para a sua condição e trata de, esclarecê-la com o aprofundamento
incessante dos problemas que suscita. Por isso a procura encontra o fundamento
e o guia na fé e a fé encontra a sua consolidação e enriquecimento na procura.
Por um lado, na medida em que leva a esclarecer e a aprofundar a própria
condição, a procura estende-se e robustece-se porque se aproxima da verdade e
se funda nela; por outro lado, a própria fé é alcançada e possuída através da
procura na sua realidade mais rica e consolida-se no homem triunfando da dúvida.
Nada é tão contrário ao espírito de Agostinho como uma pura gnose, um
conhecimento puramente racional do divino, a não ser talvez a afirmação
desesperada da irracionalidade da fé,
204
No início dos Solilóquios (1, 2), que são uma das suas primeiras obras, Agostinho
declarava o fim da sua investigação deste modo: "Desejo conhecer Deus e a alma.
E nada mais? Nada mais, absolutamente". E tais foram na realidade os termos
para os quais se dirigiu constantemente a sua especulação
205
do princípio ao fim. Mas Deus e a alma não requerem para Agostinho duas
investigações paralelas ou diversas. Com efeito, Deus está na alma e revela-se na
mais recôndita interioridade da própria alma. Procurar a Deus significa procurar a
alma e procurar a alma -significa reclinar-se sobre si mesmo, reconhecer-se, na
própria natureza espiritual, confessar-se. A atitude de confissão que deu origem à
mais famosa das obras agustinianas é, na realidade, desde o princípio, a atitude
fundamental de S. Agostinho, aquela que ele mantém e observa constantemente
em toda a sua actividade de filósofo e de homem de acção. Esta atitude não
consiste em descrever para si e os outros as alternativas da própria vida interna
ou externa, mas em pôr a claro todos os problemas que constituem o núcleo da
própria personalidade. Mesmo as Confissões não são uma obra autobiográfica: a
autobiografia é um dos seus elementos que fornece os pontos de referência dos
problemas na vida de Santo Agostinho, mas não é o seu carácter dominante, tanto
que, num certo ponto, no livro X todo o acento autobiográfico cessa e Santo
Agostinho passa nos outros três livros a tratar de problemas de pura especulação
teológica. O esforço de Santo Agostinho nesta obra é dirigido no sentido de fazer
luz sobre os problemas que constituem a sua própria existência. quando,
consegue aclarar a natureza da inquietação que dominou a primeira parte da sua
vida e que o levou a dissipar-se e a divagar desordenadamente, dá-se conta que,
na realidade, nunca desejou outra coisa a não ser a verdade, que a verdade é o
próprio Deus, que Deus se encontra no interior da sua alma. "Não, saias de ti
mesmo, volta * ti próprio, no interior do homem habita a verdade; * se verificas que
a tua natureza é mutável, transcende-te para lá de ti mesmo" (De vera rel., 39).
Apenas o retorno a si próprio, o encerrar-se na própria interioridade é
verdadeiramente o abrir-se à
206
207
208
Aqui está o nó da procura que se dirige à alma e da procura que se dirige a Deus,
nó que é o centro da personalidade de Agostinho. Não é possível procurar Deus
senão submergindo-se na própria interioridade, senão confessando-se e
reconhecendo o verdadeiro ser próprio; mas este reconhecimento é o próprio
reconhecimento de Deus como verdade e transcendência. Se o homem não se
procura a si próprio não pode reconhecer a Deus. Toda a experiência da vida de
Agostinho se exprime nesta fórmula, dado que só para lá de si, naquilo que
transcende a parte mais elevada do eu, se entrevê, pela própria impossibilidade
de alcançá-la, a realidade do ser transcendente. Por um lado, as determinações
de Deus radicam-se na procura dado que Deus se revela como transcendência e
verdade apenas na procura; por outro lado, a procura funda-se nas
209
210
todo o valor humano à graça divina não é um puro resultado da polémica contra os
pelagianos, um resultado que negaria os motivos agostinianos mais profundos,
mas é exigência intrínseca da especulação agostiniana. Tal exigência funda-se na
relação com que, na personalidade de Agostinho, se enlaçam a filosofia e a
religião, a procura e a fé: relação de tensão, pela qual se a-traem o ao mesmo
tempo se opõem uma à outra.
211
cia e vontade; entendo por compreender, querer e recordar; e quero querer,
recordar e compreendem. E recordo toda a minha memória, toda a inteligência e
toda a vontade e do mesmo modo compreendo e quero todas estas três coisas; as
quais coincidem plenamente e, não obstante a sua distinção, constituem uma
unidade, uma só vida, uma só mente e uma só essência. Nesta unidade da alma
que se diferencia nas suas faculdades, cada uma das quais compreende as
outras, está a imagem da trindade divina, imagem desigual mas imagem.
A própria estrutura do homem interior torna, pois, possível a procura de Deus. Que
o homem seja feito à imagem de Deus significa, portanto, que o homem pode
procurar a Deus e amá-lo e relacionar-se com o seu ser. Deus criou o homem a
fim de que ele seja, dado que o ser, mesmo em grau menor, é sempre um bem e o
Ser supremo é o supremo Bem; mas o homem pode afastar-se e decair do ser e,
em tal caso, peca. A constituição do homem como imagem de Deus, se lhe dá a
possibilidade de se relacionar com Deus, não lhe garante a realização necessária
desta possibilidade. Com efeito, o homem é, em primeiro lugar, o homem velho, o
homem exterior ou carnal que nasce e cresce, envelhece e morre. Mas, em
segundo lugar, pode ser também homem novo ou espiritual, pode renascer
espiritualmente e conseguir submeter a sua alma à lei divina. Também este
homem novo tem as suas idade que, contudo, não são dadas pelo transcorrer do
tempo, mas pelo seu progressivo aproximar do divino (De vera rel., 26). Todo o
indivíduo é pela sua natureza um homem velho, mas deve tornar-se um homem
novo, deve renascer para a vida espiritual- Este renascimento apresenta-se-lhe
como a alternativa em que deve escolher- ou viver segundo a carne e debilitar e
romper a própria relação com o ser, isto é, com Deus e cair na mentira e no
pecado; ou viver
212
213
Deus, que é coeterno como ele (1b., XI, 7). O Logos ou Filho tem em si as ideias,
isto é, as formas ou as razões imutáveis das coisas que são eternas como eterno
é ele próprio: e em conformidade com tais formas ou razões são formadas todas
as coisas que nascem e morrem (De div. quaest., 83, q; 46). Estas formas ou
ideias não constituem, portanto, como queria Platão, um mundo inteligível, mas a
eterna e imutável Razão, através d a qual Deus criou o mundo. Separar o
mundo inteligível de Deus significaria admitir que Deus está privado de razão na
criação do mundo ou antes dela (Retract., 1, 3). As ideias divinas são comparadas
por Agostinho às raízes seminais de que falavam os Estoicos (§ 93). A ordem do
mundo, que depende da divisão das coisas em géneros e espécies, é garantida
precisamente pelas razões seminais que, implícitas na mente divina, determinam,
no acto da criação, a divisão e o ordenamento das coisas singulares.
214
215
Tudo aquilo que é, enquanto é, é bem. Também as coisas corruptíveis são boas,
dado que se tais não fossem não poderiam, corrompendo-se, perder a sua
bondade.. Mas à medida que se corrompem, elas não perdem apenas a bondade,
mas também a realidade; dado que se perdessem a bondade continuando a ser,
chegaríam a um ponto em que seriam privadas de toda a bondade e, contudo,
seriam reais, portanto incorruptíveis. Mas incorruptível é Deus e é absurdo supor
que as coisas, corrompendo-se, se aproximam de Deus. É necessário, pois,
admitir que, à medida que se corrompem, as coisas perdem a sua realidade, que
216
o mal absoluto é o nada absoluto e que o ser e o bem coincidem (Conf., VII, 12
ss).
Não pode, pois, haver outro mal no mundo senão o pecado e a pena do pecado.
Ora o pecado consiste, como se viu, na deficiência da vontade que renuncia ao
ser e se entrega ao que é inferior. Como não é um mal a água, enquanto, pelo
contrário, é um mal o precipitar-se voluntariamente na água, assim nenhuma coisa
criada, por humilde que seja, é um mal, mas é mal entregar-se a ela como se
fosse o ser e renunciar por isso ao ser verdadeiro. (De Vera rel., 20). Da tese
maniqueia que fazia do mal não apenas unia realidade, mas um princípio
substancial do mundo, Santo Agostinho chegou à tese oposta: a negação total da
realidade ou substancialidade do mal e a sua redução à defecção da vontade
humana frente ao ser. O mal não é, portanto, realidade nem sempre no homem,
dado que é defecção, deficiência, renúncia, não-decisão, não-escolha; também no
homem é, pois, não-ser e
que dirige contra o donatismo. Trata-se de uma polémica que levou Agostinho a
esclarecer vigorosamente pontos fundamentais da sua construção religiosa. O
donatismo (assim chamado de Donato de Casas Negras, um dos seus corifeus),
quando Agostinho foi consagrado bispo, estendia-se pela África romana havia
quase um século. Era um Movimento cismático fundado no princípio da abso-
217
tendas por toda a parte onde há vida civil, testemunha, com a sua existência, a
validade do Evangelho no mundo. E esta Igreja é a Igreja de torna." Assim Santo
Agostinho via na universalidade da Igreja a demonstração de facto do valor da
mensagem cristã e ao mesmo tempo defendia essa universalidade contra a
tentativa de a negar e de reduzir
* comunidade cristã, como queriam os Donatistas,
* um conventículo de isolados.
218
O monge inglês Pelágio vivia em Roma nos primeiros anos do século V. Ali teve,
pela primeira vez, informação sobre a doutrina agostiniana da graça expressa na
famosa invocação a Deus: "Dá aquilo que mandas e manda aquilo que queres"
(Da quod jubes et Jube quod vis). Tendo Pelágio ido depois a Cartago com o seu
amigo Celestio, na altura em que à aproximação dos Godos muitas famílias
romanas se refugiavam em África, as suas críticas ao agostinismo difundiram-se
principalmente por obra de Celestio, na própria grei do bispo Agostinho. O ponto
de vista de Pelágio consistia essencialmente em negar que a culpa de Adão
tivesse debilitado radicalmente a liberdade originária do homem e, portanto, a sua
capacidade de fazer o bem. O pecado de Adão é apenas um mau exemplo que
pesa, sim, sobre as nossas capacidades e torna mais difícil operar o bem, mas
não o toma impossível e principalmente não priva os homens da possibilidade de
reagir e de decidir-se pelo melhor. Para Pelágio, o homem, quer antes do pecado
de Adão, quer depois, é naturalmente capaz de operar virtuosamente sem
necessidade do socorro extraordinário da graça. Mas esta doutrina levava a
considerar inútil a obra redentora de Cristo. Se o pecado de Adão não colocou o
homem na impossibilidade de salvar-se só com as suas forças, o homem não tem
evidentemente necessidade da ajuda sobrenatural que lhe trouxe a encarnação do
Verbo, nem tem necessi-
219
dade, por conseguinte, de fazer-se participe desta ajuda pela obra mediadora da
Igreja e dos sacramentos que ela administra.
Frente a uma doutrina que se apresentava tão destruidora para a dogmática cristã
e a obra da Igreja, Agostinho reagiu energicamente, afirmando que com Adão e
em Adão pecou toda a humanidade e que, portanto, o género humano é uma só
"massa condenada" e nenhum membro dela se pode subtrair à devida punição a
não ser pela misericórdia e pela não devida graça de Deus (De civ. Dei, XIII, 14).
E para justificar a transmissão do pecado, Agostinho foi levado a defender, acerca
da origem da alma, não o criacionismo (dado que não se pode admitir que Deus
crie uma alma condenada), mas o traducianismo pelo qual a alma é transmitida de
pai a filho através da geração do corpo. O vigor com que Agostinho defendeu
estas teses levou-o a não hesitar diante de nenhuma das consequências. Inclinou-
se para um pessimismo radical sobre a natureza e a possibilidade do homem,
considerado incapaz de dar o mais pequeno passo no caminho da elevação
espiritual e da salvação; e foi levado a insistir no carácter imperscrutável da
escolha divina que predestina alguns homens e condena os outros. Mas por mais
que estas conclusões pareçam paradoxais (e a própria Igreja católica teve de
mitigar-lhes o rigor), não há dúvida de que o princípio sobre o qual S. Agostinho as
funda tem na sua doutrina um alto valor, de todo independente da polémica
antipelagiana. Este princípio é a identidade da liberdade humana com a graça
divina. A vontade, segundo Agostinho, só é livre quando não está escravizada
pelo vício e o pecado; e é esta liberdade que só pode ser restituída ao homem
pela graça divina (lb., XIV, LQ. O primeiro livre arbítrio, aquele que foi dado a
Adão, consistia no poder não pecar. Perdida esta liberdade pelo pecado original, a
liber-
220
dade final, aquela que Deus dará como prémio, consistirá no não poder pecar.
Esta última liberdade -será dada ao homem como um dom divino, dado que não
pertence à natureza humana, e tornará esta última partícipe da impecabilidade
própria de Deus. Mas pois que a primeira liberdade foi dada ao homem a fim de
que ele procure a última e completa liberdade, é evidente que só esta última
exprime aquilo que o homem verdadeiramente deve ser e pode ser. O não poder
pecar, a libertação total do mal é uma possibilidade do homem fundada numa
dádiva divina: "0 próprio Deus é a nossa possibilidade" diz Agostinho (Sol., 11, 1;
De gratia Chr., 25).
Estas duas cidades nunca dividem nitidamente o seu campo de acção na história.
Nenhum período da história, nenhuma instituição é dominada exclusivamente por
uma ou por outra das duas cidades. Elas nunca se identificam com os elementos
particulares de que a história dos homens é construída, dado que dependem
apenas daquilo que cada homem singular decide ser. "O amor de si levado até ao
desprezo de Deus gera a cidade terrena; o amor de Deus levado até ao desprezo
de si gera a cidade celeste. Aquela aspira à glória dos homens, esta coloca acima
de tudo a glória de Deus, testemunhado pela consciência... Os cidadãos da cidade
terrena são dominados por uma estulta cupidez de predomínio que os induz a
subjugar os outros; os cidadãos da cidade celeste oferecem os seus serviços uns
aos outros com espírito de caridade e respeitam docilmente os deveres da
disciplina social" (De civ. Dei, XIV, 28). Nenhuma marca exterior distingue as duas
cidades que estão misturadas desde o começo da história humana e o estarão até
ao fim dos tempos. Só interrogando-se a si
222
homem, a sua pátria celeste, mas não puderam ensinar-lhe o caminho que é o
assinalado pelo apóstolo João: a encarnação do Verbo (De civ. Dei, X, 29).
NOTA BIBLIOGRÁFICA
224
§ 163. Sobre a doutrina das razões seminais: WIE=, Geschichte der Lehre von
den Koimekrãften,
1914, p. 108-224.
225
A úLTIMA PATRÍSTICA
227
228
229
são criadas por Deus no momento desta união. Deus criou todas as inteligências
incorpóreas de uma vez, mas cria diariamente as almas dos homens.
230
em Deus como a natureza comum das três hipóstasis e fazia assim, das três
pessoas divinas, três existências particulares, isto é, três divindades. Ao lado
desde trideísmo (que, por outro lado, teve neste período, como no precedente,
numerosos defensores) João admitia o monofisismo no que respeita à
encarnação. Não podem subsistir duas naturezas numa única hipóstasis: na
pessoa de Cristo não pode, portanto, subsistir senão a natureza divina. O
pressuposto destas interpretações dogmáticas é a lógica aristotélica, à qual João
dedicara um comentário: de facto o significado de natureza e de hipóstasis é tirado
de Aristóteles. É curioso notar que quando a lógica aristotélica for de novo
empregada, por acção de Roscelino de Compiègne, na interpretação do dogma da
trindade, chegar-se-á à mesma conclusão trideIstica.
Ao tempo de Justiniano pertence Leôncio de Bizâncio que viveu entre 475 e 543
aproximadamente, autor de três livros contra os Nestorianos
231
Como Proelo, Dionísio distingue uma teologia afirmativa, a qual, partindo de Deus,
se dirige para o finito com a determinação dos atributos ou nomes de Deus e uma
teologia negativa, a qual procede do finito para Deus e o considera acima de todos
os predicados ou nomes com que podemos designá-lo. A este segundo tipo de
teologia pertence o breve tratado Teologia Mística, segundo o qual o mais alto
conhecimento é o não saber místico: só prescindindo de toda a determinação de
Deus, se compreende Deus no seu ser em si. No tratado Sobre os Nomes Divinos,
Dionísio insiste na impossibilidade de designar adequadamente a natureza de
Deus. Ainda que seja a unidade absoluta e o bem supremo de que todas as coisas
participam e sem o qual não poderiam ser, Deus é superior à própria unidade tal
como é concebida por nós: é o Uno super-essencial, que é causa e princípio de
todo o número e de toda a ordem. Elo não pode ser designado verdadeiramente
nem como unidade, nem como trindade, nem como número,
232
nem como qualquer outro termo de que nos servimos para as coisas finitas. O
próprio -nome de Bem, que é o mais alto de todos, é inadequado para a altura da
perfeição divina. A emanação das coisas por Deus, que tem em si as ideias ou
modelos de toda a realidade, é compreendida por Dionísio como criação. O
mundo não é um estádio do desenvolvimento de Deus, mas um produto da
vontade divina. Contudo os seres do mundo sã o todos manifestações ou
símbolos de Deus e por isso a sua consideração permite ao homem ascender a
Deus e refazer assim no inverso o caminho da criação.
233
234
que contrastam com a razão e nos elevarmos ao perfeito amor de Deus, podemos
conseguir um conhecimento de Deus que transcende a razão e o procedimento
discursivo e no qual Deus se revela imediatamente. Mas a este conhecimento de
Deus não se pode chegar com a capacidade da natureza humana, mas mercê da
graça divina, a qual, todavia, não age por si só, mas eleva e aperfeiçoa as
capacidades que são próprias do homem (Quaest. ad Thalassium, q. 59). O centro
das especulações teológicas de S. Máximo é o Deus-Homem. Para ele o Logos é
a razão e o fim último de todo o criado. A história do mundo efectua um duplo
processo: o da encarnação de Deus e o da divinização do homem. Este último só
se Pôde iniciar com a encarnação e com o f@n de restabelecer no homem a
imagem de Deus. Como princípio deste segundo processo, Cristo devia
necessariamente ser verdadeiro Deus e verdadeiro homem. As duas naturezas
nele não se misturam nem rompem a unidade da pessoa e dado que a cada uma
das duas naturezas está unida a capacidade de querer, em Cristo subsistiam duas
vontades, a divina e a humana, mas a vontade humana era levada à decisão e à
acção pela vontade divina (Patr. Grec.,
91.*, col. 48).
235
criador, que não seja criado por sua vez mas incriado; e este é Deus. Em segundo
lugar, a conservação e
a duração das coisas supõem a existência de Deus, dado que elementos diversos
e contrastantes como o fogo, a água, a terra, o ar não poderiam permanecer
unidos sem destruir-se se não interviesse uma força omnipotente para mantê-los e
conservá-los juntos;
236
esta força omnipotente é Deus- Finalmente, a ordem
e a harmonia do mundo não podem ser produzidos pelo puro acaso e pressupõeM
um principio ordenador que é Deus (De fide orthod., 1, 3), Mas se a
existência de Deus pode ser alcançada pela razão humana, a sua essência é
incompreensível. "A divindade, diz joão (Ib., 1, 4), é indeterminável e incOm-
não predetermina tudo: o mal depende unicamente do livre querer do homem (Ib.,
11, 30).
o iniciador do semipelagianismo foi JO" Cassiano, nascido por volta do ano 360 na
Gália
237
quios travados por ele e seu amigo Germano com eremitas egípcios.
Precisamente nesta obra, Cassiano considera a tese de que Deus ilumina e
reforça a boa vontade que nasce no homem, mas que esta vontade tem origem
apenas no esforço humano. Se o querer bem não basta ao homem, quando não é
socorrido pela graça divina, todavia esta graça só é dada àquele que tem boa
vontade. A tese de Cassiano difundiu-se largamente nos mosteiros do Sul da
Gália.
Claudino Mamerto, que foi padre em Viena no Delfinado e morreu por volta de
474, é autor de um escrito em três livros, De statu anin2ac, composto em 468 ou
469, no qual se defende a incorporeidade da alma humana. É impossível que a
ffima caia sob a categoria da quantidade, que é própria do corpo, dado que o seu
poder, memória, razão, vontade estão privados de quantidade, portanto são
incorpóreos. Ora estas faculdades da alma são a sua própria substância, dado
que toda a alma é razão, vontade, memória; segue-se daqui que toda a alma está
privada de quantidade e é incorpórea (De statu an.,
111, 4). A alma é a vida do corpo e está, portanto, presente em todas as partes do
corpo; mas está presente num modo que exclui a sua distribuição espacial porque
está toda em todo o corpo e toda em cada parte singular do corpo. A sua presença
no corpo é idêntica à de Deus no mundo. Portanto, a alma tem a mesma
incorporeidade de Deus. Trata-se de um resumo da demonstração agostiniana da
imaterialidade da alma.
Por volta de 430, Marciano Capela compunha o seu escrito De nií,Ptiis Mercurii et
Philologiae, um prospecto de todas as artes liberais, que subsistiu como um dos
textos fundamentais da erudição medieval. Mas a quem se deve a sobrevivência
de uma parte notável da filosofia grega na Idade Média é a Ãneio Mânho Torquato
Severino Boécio, nascido
238
encontra na obra e assim não faltou quem, em tempos recentes, acreditasse que
Boécio era pagão, ou então cristão só de nome, e que portanto fossem apócrifos
os opúsculos teológicos que nos chegaram dele (De Sancta Trinitate; Utrum Pater
et Filius et Spirictus Santus de divinitate substantialiter praedicentur; Quomodo
substantiae in eo quod sint bonae sint; De fide; Liber contra Nestorium et
Eutychen). Mas a autenticidade destes escritos, com excepção do
239
De fide, está comprovada, não só pelo testemunho dos códices, como pelo do
contemporâneo de Boécio, Cassiodoro, e portanto não pode ser posta em dúvida.
Além disso, se o De consolatione não tem qualquer referência aos mistérios do
cristianismo, está impregnado por aquele espírito platónico ou neoplatónico que os
escritores da patrística consideram substancialmente cristão. As traduções e os
escritos lógicos de Boécio asseguraram a sobrevivência da lógica aristotélica
mesmo no período da maior obscuridade medieval e fizeram dela um elemento
fundamental da cultura e do ensino medieval. Quanto à De consolatione, está
entre as obras mais famosas da Idade Média. Divide-se em 5 livros e é mista em
verso e prosa. O primeiro livro é uma espé cie de introdução na qual a filosofia se
apresenta a Boécio na forma de augusta matrona que vem trazer-lhe conforto na
triste condição em que se encontra, não por sua culpa, mas por ter querido seguir
a verdade
e a justiça. No segundo livro, a filosofia faz ver a Boécio que a felicidade não
consiste nos bens da fortuna, que são mutáveis e caducos e que, mesmo quando
se possuem, trazem consigo o perigo e o temor da sua perda. A felicidade deve
consistir numa condição que exclua qualquer temor deste género e compreenda
em si todos os bens que tornam o homem suficiente por si próprio. O terceiro livro
contém, precisamente, a teoria da felicidade assim compreendida. É evidente que
não pode consistir nem na riqueza, nem no poder, nem nas honras, nem na glória,
nem nos prazeres. Nenhum destes é o bem supremo, o bem melhor de todos e
que torna o homem auto-suficiente. Defende pois que a felicidade consiste no
próprio Deus, enquanto é o ser de que não se pode conceber melhor, portanto o
bem supremo. Deus é conjuntamente a origem de todas as coisas e o fundamento
da verdadeira felicidade humana (111, 10). O quarto livro examina em que
240
S. GREGÓRIO MAGNO
o mundo e modo Deus, como supremo bem, rege expõe uma teoria da
providência e do fado. A proVidência é o plano da ordem e da disposição do
mundo na inteligência divina; o fado é a própria ordem que por aquele plano
vem a ser determinada no mundo. "A providência é a própria razão (ratio)
divina que, constituída como supremo Princípio de tudo, dispõe todas as
coisas; o fado é a disposição inerente às coisas mutáveis, disposição pela qual a
Providência assinala a cada coisa a sua ordem própria" (IV, 6). A ordem do fado,
na multiplicidade dos seus desenvolvimentos temporais, depende pois da própria
razão de Deus. Os problemas que nascem deste conceito da Providência e do
fado são examinados no quinto livro. A Providência e o fado parecem excluir à
primeira vista a liberdade, mas em tal caso seria inútil para o homem a razão que
serve para julgar e escolher livremente. A resposta da filosofia ao problema é que,
se Deus prevê tudo, não prevê que tudo aconteça com necessidade. A previsão
de um acontecimento não implica que o acontecimento se deva realizar
necessariamente. Além disso, em Deus a previsão é inerente à natureza da sua
vida, que é uma eternidade privada de qualquer sucessão. Nele não existe nem o
passado nem o futuro e a sua ciência é o conhecimento total e simultâneo de
todos os acontecimentos que se verificam sucessivamente no tempo (V, 6). Nele
estão presentes também os
241
tudo isto, Boécio não assume o lugar de pensador original. É um hábil compilador
e uni retóricO CIO-
rico, cuja recolha leva o nome@de Variae, e a História dos godos de que só nos
chegou um estrato A obra mais importante, que escreveu no claustro, são as
dois livros: o primeiro indica os autores que são estudados Corno guias das
disciplinas teológicas; o
devia servir aos monges e foi na Idade Média um dos manuais mais usados. Num
breve escrito, De a?úma, Cassiodoro propõe-se demonstrar, nas pegadas de
Claudiano Mamerto, a incorporeidade da alma humana. O escrito reproduz os
argumentos de Mamerto que, por sua vez, como se viu, foram retirados de S.
Agostinho.
242
Assim Isidoro de Sevilha, nascido cerca de 570 e falecido em 636, compôs uma
série de obras que deviam servir às escolas abaciais e episcopais onde se
243
passado, das artes liberais à agricultura e às outras artes manuais. Grande parte
desta enciclopédia é destinada a investigações gramaticais, mas não se descura
aquilo que pode ser útil a uma educação filosófico-teológica. Há entremeados
estratos retirados das obras de escritores clássicos e dos padres da Igreja, em
particular de Gregório Magno. A filosofia é definida com os Estoicos como "a
ciência das coisas humanas e divinas" e é dividida em física, ética e lógica.
Através da obra de Isidoro, de Sevilha os resultados da ciência antiga eram salvos
do naufrágio e destinados a alimentar o trabalho intelectual dos séculos seguintes.
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 168. Sobre a história deste período: DAWSON, Les origines de I'Europe, Paris,
1934. Sobre os escritores gregos deste período: KRUMBACHER, Geschichte der
byzantinische Literatur, 2.1 edição, 1897.
244
245
íNDICE
-Aristotética ... ... ... ... ... 11 §90. A escola estoica ... ... ... ... 12
§91. Característica da Filosofia estoica 15 §92. A Lógica ... ... ... ...
... 16 §93. A Física ... ... ... ... ... 23 §94. A Psicologia ... ... ... ...
... 27 §95. A ntica ... ... ... ... ... ... 29
§ 96. Epicuro ... ... ... ... ... ... 37 § 97. A escola epicurista ... ... ...
38
247
§ 98. Características do epicurismo § 99. A Canónica ... ... ... ... § 100. A Física §
101. A Ética ... ... ... ... ...
§ 102. Características do cepticismo § 103. Pirro ... ... ... ... ... § 104. A
média Academia ... ... § 105. A nova Academia ... ... § 106. Os últimos
cépticos ... ... § 107. Sexto empírico ... ... ...
248
§ 112. A Escola Cinica ... ... ... ... 73 § 113. Séneca ... ... ... ... ... ...
74 § 114. Musónio. Epicteto ... ... ... 77 § 115. Marco Aurélio ... ...
... ... 79
Nota bibliográfica ... ... ... 81
§ 121. A "Escolãstica" Neoplatónica ... 93 § 122. Plotino: Deus ... ... ... ... 95 §
123. Plotino: as emanações ... ... 97
249
SEGUI-4DA PARTE
FILOSOFIA PATRISTICA
cristã ... ... ... ... ... ... 109 § 129. Os evangelhos sinópticos ... ... 111 §
130. As "cartas" Paulinas ... ... 114 § 131. O quarto evangelho ... ...
... 116 § 132. A Filosofia cristã ... ... ... 117
250
A PATRISTICA DOS DOIS PR=IROS SÊCULOS ... ... ... ... ... ... 121
251
§118. Sequazes e adversários de Orígenes ... ... ... ... ... ... 172 §149.
Basílio o grande ... ... ... 177 §150. Gregório Nazianceno ... ...
179 §151. Gregõrio de Nisa: a Teologia ... 181 §152. Gregório de Nisa: o
mundo e o
homem ... ... ... ... ... ... 185 §153. Gregório de Nisa: a Apoca-
tástasis ... ... ... ... ... 187 §154. Outros padres orientais do sé-
culo IV ... ... ... ... ... 190 §155. Os padres latinos do IV século 192
§ 156. A figura histórica ... ... ... 197 § 157. A vida ... ... ... ... ... ...
199 § 158. As obras ... ... ... ... ... 202 § 159. Características da
investigação
Agostiniana ... ... ... ... ... 204 § 160. O fim da procura Deus e a
252
§ 161. A procura de Deus ... ... ... 208 § 162. O homem ... ... ... ...
... 211 § 163. O problema da criação e do
tempo ... ... ... ... ... ... 213 § 164. A polémica contra o mani-
queísmo ... ... ... ... ... 215 § 165. A polémica contra o donatismo
217 § 166. A polémica contra o pelagia-
nismo ... ... ... ... ... ... 219 § 167. A cidade de Deus ... ... ... 222
masceno ... ... ... ... ... 234 § 172. Escritores latinos ... ... ... 237
253